Equitativa Suficiência de Oportunidades

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    Quaestio Iuris vol.08, n. 01, Rio de Janeiro,

    2015. pp. 162-185 DOI: http://dx.doi.org/10.12957/rqi.2015.15354

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    EQUITATIVA SUFICINCIA DE OPORTUNIDADES

    Leandro Martins

    Zanitelli 1

    Resumo

    O artigo expe alguns problemas a que se sujeita o princpio da equitativa igualdade deoportunidades de Rawls. Afirma-se que um princpio alternativo de suficincia deoportunidades, a equitativa suficincia de oportunidades (ESO), menos suscetvel aesses problemas. Observa-se, alm disso, que alguns argumentos em defesa daigualdade de oportunidades so mais bem sucedidos quando tratados como argumentosem favor de um princpio de suficincia como a ESO. O trabalho esclarece, por fim, porque a ESO pode ser entendida ou como princpio lexicamente superior ao princpio dadiferena, ou como parte desse princpio.

    Palavras-chave: Igualdade de Oportunidades; Rawls; Suficientismo; Igualitarismo;Princpio da Diferena

    INTRODUO

    Contrastando com a sua notria popularidade no discurso poltico brasileiro, o

    princpio da equitativa igualdade de oportunidades (EIO), ao menos na verso (no

    correspondente, diga-se de passagem, mera igualdade formal) em que aparece na

    teoria da justia de Rawls, academicamente contestado (ALEXANDER, 1985;

    ARNESON, 1999; 2013). H dvida no apenas sobre a validade do princpio em si, comotambm sobre a prioridade lxica que Rawls lhe atribui em relao ao princpio da

    diferena (RAWLS, 1999, p. 53-57; 77), cuja implicao a de que a EIO deveria ser

    assegurada ainda que custa de uma considervel reduo das expectativas dos

    cidados em pior situao quanto riqueza e renda.2

    1Doutor em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS); Professor no CentroUniversitrio Ritter dos Reis (UniRitter). E-mail: [email protected]

    O prprio Rawls manifesta dvida sobre a prioridade lxica do princpio da equitativa igualdade deoportunidades sobre o da diferena em uma verso reformulada da teoria da justia. Ver Rawls (2001,p. 163 e nota de rodap 44). Alm disso, em contraste com a primazia do princpio das liberdades

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    Neste artigo, examino trs objees EIO, as quais designo, respectivamente,

    como Problemas do Nivelamento por Baixo, da Classe Mdia e do Custo. Meu propsito

    , primeiro, verificar em que medida a EIO vulnervel aos referidos problemas, tantona verso concebida por Rawls, em que somente se requer igualdade de oportunidades

    para cidados com iguais aptides inatas (verso Sensvel a Talentos), como em uma

    outra na qual essas mesmas aptides so desconsideradas (verso Insensvel a Talentos).

    Pretendo tambm, em segundo lugar, avaliar as chances de sucesso de uma verso

    suficientista da EIO, a equitativa suficincia de oportunidades (ESO). Princpios

    distributivos podem ser concebidos ora como princpios de igualdade, ora de prioridade

    e ora de suficincia. Enquanto o que se demanda no caso de um princpio de igualdade igual distribuio de um ou mais bens, o importante para um princpio de prioridade

    aumentar o quinho de bens de cada um, tendo esse aumento tanto maior importncia

    quanto pior a situao daquele de cujo quinho se trata. Princpios de suficincia, por

    sua vez, definem um limiar a ser alcanado para todos os envolvidos, mostrando-se

    indiferentes distribuio de bens acima desse limiar.

    Tanto os ataques j referidos como as tentativas de justificao da EIO

    (TAYLOR, 2004; SHIFFRIN, 2004) costumam ter em vista a verso igualitria desseprincpio. oportuno, ento, verificar em que p os mesmos argumentos a favor e

    contra quando o que se tem em vista a verso suficientista do princpio das

    oportunidades. Minhas concluses a respeito so, em suma, as seguintes. Primeiro, a

    ESO , em considervel medida, menos vulnervel do que a EIO aos Problemas do

    Nivelamento por Baixo, da Classe Mdia e do Custo. Segundo, argumentos empregados

    em defesa da EIO tambm servem para justificar a ESO e, em alguns casos (dos

    argumentos que denominarei como Argumentos de Bens Atrelados), so mais

    apropriados como argumentos em favor da ESO do que da EIO. Terceiro, plausvel

    que a ESO seja lexicamente superior ao princpio da diferena entendido como

    princpio atinente unicamente distribuio de riqueza e renda (princpio da diferena

    na Verso Simples). Em uma outra verso (Verso Complexa) na qual impe a

    maximizao das expectativas dos cidados em pior situao quanto a um indexde bens

    bsicas, em favor da qual Rawls argumenta exaustivamente, h poucas indicaes em Uma Teoria daJustia sobre as razes para a superioridade do princpio da equitativa igualdade de oportunidadesem relao ao da diferena.

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    primrios composto no apenas pelos bens da riqueza e da renda, provavelmente mais

    apropriado tratar a ESO como parte do princpio da diferena ao invs de como

    princpio independente e lexicamente superior a ele.O artigo organizado como segue. A primeira seo contm alguns

    esclarecimentos sobre a EIO. Na segunda seo, trata-se dos trs problemas

    (Nivelamento por Baixo, Classe Mdia e Custo) da EIO nas duas verses antes citadas,

    Sensvel e Insensvel a Talentos. A terceira seo volta-se para a ESO, examinando em

    que medida ela afligida pelos mesmos problemas, bem como se argumentos

    apresentados com o fim de justificar a EIO prestam-se tambm a verso suficientista

    desse princpio. A quarta seo examina a prioridade lxica da ESO sobre o princpio dadiferena.

    ALGUMAS DEFINIES

    Rawls define a equitativa igualdade de oportunidades (EIO) em contraposio ao

    princpio da igualdade formal de oportunidades ou das carreiras abertas a talentos. De

    acordo com o princpio da igualdade formal de oportunidades, todos possuem direitos

    legais iguais de acesso a posies (RAWLS, 1999, p. 62). J a equitativa igualdade deoportunidades, ao invs de se contentar com a mera falta de impedimentos legais,

    requer que todos os cidados tenham uma chance equnime (fair chance) de ocupar

    posies de vantagem (RAWLS, 1999, p. 63). Esclarecendo o que uma chance

    equnime significa, Rawls (ibid.) diz que, a fim de atender EIO:

    os que possuem talentos e habilidades em um mesmo patamar e esto

    igualmente dispostos a fazer uso deles devem ter as mesmas perspectivas de sucesso,

    independentemente do seu lugar inicial no sistema social. Em todos os setores dasociedade, as perspectivas culturais e de realizao devem ser aproximadamente as

    mesmas para os similarmente dotados e motivados. As expectativas dos cidados com

    iguais habilidades e aspiraes no devem sofrer a influncia da classe social.3

    3No original: those who are at the same level of talent and ability, and have the same willingness touse them, should have the same prospects of success regardless of their initial place in the social

    system. In all sectors of society there should be roughly equal prospects of culture and achievement foreveryone similarly motivated and endowed. The expectations of those with the same abilities andaspirations should not be affected by their social class.

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    Essa definio da EIO se baseia, portanto, em uma diferena entre trs ordens de

    fatores determinantes das chances de cada um, a saber, aptides inatas, circunstncias

    sociais e motivao. Isso suscita um problema, porque o ltimo fator pode no serindependente das demais. possvel, em outras palavras (provvel, at), que a

    motivao de cada um para perseguir posies seja em alguma medida uma funo de

    caractersticas inatas e do meio social (ALEXANDER, 1985, p. 201). Tendo em vista essa

    dificuldade, ignorarei, no que segue, o fator motivacional.4 Consideradas os demais

    fatores, possvel ento distinguir duas verses da EIO:

    Sensvel a Talentos: Para cidados cujas aptides naturais sejam as mesmas, as

    chances de ocupar posies de vantagem devem ser iguais.Insensvel a Talentos: As chances de ocupar posies de vantagem devem ser

    iguais para todos, independentemente das aptides naturais de cada um.

    Com a ressalva feita acerca da motivao, Sensvel a Talentos , como se percebe

    nas passagens transcritas acima, a verso mais prxima da EIO de Rawls. primeira

    vista, Insensvel a Talentos deve parecer implausvel. Ela requer, por exemplo, que dois

    cidados, um deles enormemente dotado musicalmente e o outro no, tenham a mesma

    chance de reger uma orquestra. No h, entretanto, um meio palatvel de realizar isso.

    5

    Como veremos adiante, contudo, Insensvel a Talentos ganha em plausibilidade quando

    se consideram verses menos ambiciosas da EIO.6

    EIO COMO PRINCPIO DE IGUALDADE

    Nesta seo, tratarei dos problemas que a EIO enfrenta uma vez interpretada

    como princpio de igualdade. Observe que, como princpio assim, a EIO impe

    4

    Um problema de ignorar motivaes o mencionado por Arneson (1999, p. 78-79): no deveramosdeixar que as chances de sucesso variem de acordo com as ambies dos cidados? A respostadepende de saber se EIO deve ou no ser atendida ao longo de toda a vida. Considere umainterpretao da EIO segundo a qual suficiente que as chances dos cidados sejam as mesmas auma idade baixa o bastante para que no parea contraintuitivo deixar de lado as ambiesdesenvolvidas at ento. Diferenas de ambio verificadas aps essa idade no seriam, assim, umaameaa EIO.5 Uma soluo seria designar o chefe da orquestra por sorteio. Outra, de consequncias menosdesastrosas mas eficcia duvidosa e, de um modo geral, tambm pouco atraente, consiste em investirpesadamente no treinamento musical do cidado inapto, procurando compensar, assim, a suadesvantagem natural.6 Insensvel a Talentos tem a bvia vantagem de no requerer que se determine a importncia

    relativa das contingncias naturais e sociais para as chances de sucesso. Para uma reviso recente dapesquisa emprica sobre a persistncia de desigualdades de renda (entre outras) de gerao paragerao e a dificuldade para discriminar suas causas, ver Black e Devereux (2010).

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    igualdade de chances, nada menos. Tendo em vista, ainda, as relaes de prioridade

    entre as diferentes partes da concepo de justia de Rawls, deve-se entender que o

    requerimento de igualdade da EIO somente pode ser deixado de lado devido aconsideraes baseadas no primeiro princpio da justia, o princpio das liberdades. Ao

    longo da seo, terei como referncia a verso Sensvel a Talentos da EIO. Mais ao final,

    voltarei a ateno para a verso Insensvel a Talentos.

    Sensvel a Talentos

    Entendida como princpio de igualdade, a EIO pe-se diante de ao menos trs

    problemas, a saber: o do Nivelamento por Baixo (levelling down), o da Classe Mdia, e o

    do Custo. Examino-os a seguir.

    Problema do Nivelamento por Baixo

    O Problema do Nivelamento por Baixo aflige princpios de igualdade em geral,

    desde que entendidos como princpios sobre estados de coisas ou de igualdade tlica

    (PARFIT, 1997, p. 206; 210-211). Atribui-se a qualquer princpio de igualdade a

    implicao de que se deva tratar como moralmente valioso o fato de A e B possurem a

    mesma quantidade do bemx, ainda que esse resultado se obtenha custa de uma perda

    para uma das partes e nenhum ganho para a outra. Por exemplo, imagine que A possua

    4xe B2x. De acordo com a objeo, um princpio de igualdade faz com que haja uma

    razo para passar a uma outra situao na qual A e B possuem apenas 2x. Ainda que a

    razo em questo no seja peremptria, mas meramente prima facie, isto , que o

    princpio da igualdade no necessariamente requeira nivelar por baixo depois de tudo

    considerado, afirma-se que o simples fato de oferecer uma razo para uma diminuio

    das posses de A sem nenhum aumento para B basta para tornar a igualdade

    contraintuitiva.

    Pode-se pensar que o Problema do Nivelamento por Baixo mais ameno quando

    se trata da EIO pelo fato de ela se referir a um bem posicional. Diz-se que um bem

    posicional quando uma perda para alguma das partes vem necessariamente

    acompanhada de um ganho para outra. Ao menos quando concebida em termos

    probabilsticos, a oportunidade para ocupar posies de vantagem um bem assim.

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    Suponha que a probabilidade atual de A chegar a uma certa posio seja de x, e que

    sejam tomadas medidas para reduzir essa probabilidade para x - n. Mantendo-se

    constante o nmero de posies de vantagem, a diminuio da probabilidade de Aimplica um aumento total de n na probabilidade de outros ocuparem a posio em

    questo.7

    A importncia de a oportunidade ser um bem posicional reside no fato de que o

    Problema do Nivelamento por Baixo no existe para esses bens (Brighouse e Swift

    2006). A objeo do Nivelamento por Baixo acusa a igualdade de atribuir valor moral

    prima faciea uma alterao do estado de coisas que resulte em uma distribuio igual a

    despeito de essa alterao no trazer consigo uma melhora na situao de cada um dosenvolvidos. Ocorre que isso impossvel no caso de um bem posicional, j que qualquer

    reduo do quinho de uma das partes necessariamente traz consigo um ganho para

    algum. Imagine que haja apenas dois cidados, A e B, e apenas uma posio a ser

    ocupada. Se, inicialmente, a probabilidade de A ser o escolhido for de 0,8, qualquer

    medida pela qual se diminuam as chances de A necessariamente aumentaro as de B.

    Ainda, no entanto, que a EIO se refira a um bem posicional, o Problema do

    Nivelamento ressurge quando se consideram os efeitos de medidas para a realizao daEIO sobre outros bens que no a oportunidade para ocupar posies de vantagem. Salvo

    alguma estipulao adicional, a EIO no impede medidas para a sua realizao que, em

    relao a outros bens, apenas piorem a situao de alguns sem melhorar a de mais

    ningum. Por exemplo, se uma das causas da desigualdade de oportunidades for a

    superior qualidade do ensino pago sobre o que oferecido pelo estado gratuitamente,

    uma medida que se limitasse a proibir o ensino pago, forando os filhos de famlias

    abastadas a frequentar a escola pblica, seria compatvel com a EIO. Embora no se

    possa dizer que uma medida assim tenha o efeito de nivelar por baixo oportunidades (j

    que ela plausivelmente aumenta as chances de estudantes pobres), esse pode ser o seu

    efeito quanto a um outro bem, o da educao, se a proibio ao ensino privado no

    ocasionar melhora na qualidade do ensino pblico.

    7Repare, entretanto, que pode ser incorreto classificar o bem objeto da EIO como bem posicionalquando no so constantes o nmero de posies de vantagem e o de candidatos a essas posies. Se,

    por exemplo, o nmero de posies puder sofrer variao negativa, corre-se o risco de que oestreitamento das diferenas de oportunidade se faa custa meramente da reduo dasoportunidades dos que esto em melhor situao.

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    No caso da EIO, o Problema do Nivelamento por Baixo torna-se mais agudo

    quando se aceitam as relaes de prioridade lxica entre os princpios da justia. Uma

    das defesas do igualitarismo contra a objeo do Nivelamento por Baixo consiste, comovisto, em afirmar que, no sendo a igualdade o nico valor, a razo para nivelar por

    baixo uma razo to-somente prima facie, cuja fora seria no mais das vezes

    sobrepujada pela de razes contrapostas baseadas em outros valores (PARFIT, 1997, p.

    211). Uma vez evitados, assim, os resultados indigestos que adviriam de uma verso

    monista do igualitarismo, fica-se em posio mais confortvel para afirmar que a

    igualdade tem, mesmo (e ainda quando obtida custa apenas de perdas), um valor

    moral intrnseco (TEMKIN, 2003, p. 67-68). Essa sada pluralista, entretanto, no esttotalmente franqueada para quem, como Rawls, postula uma estrita prioridade da EIO

    sobre o princpio de distribuio da riqueza e da renda, o princpio da diferena

    (RAWLS, 1999, p. 53-57; 77).

    Problema da Classe Mdia

    O Problema da Classe Mdia est em boa medida relacionado prioridade lxica

    da EIO sobre o princpio da diferena. Em uma das suas formulaes mais comuns, esse

    princpio requer a maximizao das expectativas dos cidados em pior situao quanto

    a certos bens primrios (RAWLS, 1999, p. 68; 2001, p. 42-43). A preocupao com os

    cidados em pior situao, justificvel tendo em vista o autointeresse das partes na

    posio original, parece ser, contudo, contraditada pela primazia atribuda EIO.

    Devido a essa primazia, acaba-se tendo que preferir um arranjo institucional que em

    certo sentido atenda ao interesse de cidados de classe mdia (mais precisamente, o

    interesse por gozar de chances no inferiores s dos cidados do estrato mais elevado)

    em detrimento de outro sob o qual as expectativas dos cidados em pior situao sejam

    maximizadas (ARNESON, 1999, p. 82).

    Em ateno ao Problema da Classe Mdia, pode-se argumentar que nem toda

    medida que reduza a diferena entre as oportunidades de cidados dos estratos alto e

    mdio necessariamente referendada pela EIO. Suponha que haja trs cidados, A, B e

    C, situados, respectivamente, nos estratos alto, mdio e baixo. Inicialmente, as chances

    de ocupar certas posies de vantagem so de 0,6 para A, 0,3 para B e 0,1 para C. Uma

    medida que iguale, ento, as chances de A e B e mantenha inalteradas as de C

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    (resultando, assim, em uma distribuio de chances de 0,45 para A e B e 0,1 para C) no

    seria imposta pela EIO porque, embora reduza as diferenas entre A e B e A e C,

    aumenta a distncia entre B e C.Uma resposta a esse argumento consistiria em dizer que, ainda que no requeira,

    tampouco h algo na verso sob exame da EIO que proba a medida em favor de B.

    Salvo alguma estipulao adicional (por exemplo, que d prioridade a reduzir as

    diferenas entre B e C), o estado de coisas inicial imaginado acima no se mostraria

    nem mais nem menos conforme EIO do que o final. Isso, entretanto, j no constitui

    um problema srio para um rawlsiano, uma vez que, se a medida em favor da classe

    mdia no requerida pela EIO, ento ela s poder ter lugar (ao menos nos termos daconcepo de justia de Rawls) caso no contrarie o princpio da diferena, que o

    princpio de justia a aplicar subsequentemente EIO. Uma medida que reduza a

    disparidade de chances entre os cidados A e B somente seria permitida, em outras

    palavras, caso no contrariasse o objetivo de maximizar as expectativas de C, o cidado

    em pior situao.

    O Problema da Classe Mdia ressurge, no entanto, quando se considera a

    hiptese de que, dos trs cidados antes considerados, apenas os dos estratos alto emdio, A e B, sejam iguais em suas aptides naturais (ALEXANDER, 1985, p. 204;

    ARNESON, 1999, p. 82-83). Nesta hiptese, se as chances de ocupar posies de

    vantagem forem inicialmente de 0,6 para A, 0,3 para B e 0,1 para C, a EIO no apenas

    compatvel como requer que se igualem as chances dos dois primeiros, ainda que para

    isto seja preciso deixar A e B com 0,45 de chances cada um e C com apenas 0,1.8

    Problema do Custo

    A exemplo do anterior, o Problema do Custo tambm tem em vista a prioridade

    lxica que Rawls atribui EIO em relao ao princpio da diferena. Uma vez aceita essa

    prioridade, a EIO, ainda que se limite a beneficiar os cidados em pior situao, pode

    ser acompanhada de uma piora das expectativas desses cidados em relao a certos

    bens primrios. O Problema do Custo , em suma, o de a igualdade de oportunidades

    8Note, entretanto, que a nica maneira de a EIO se mostrar completamente indiferente sorte dos

    cidados em pior situao a de que no haja nenhum cidado das outras classes cujas aptidesnaturais sejam idnticas s dos primeiros. justamente a um cenrio irrealista como esse queArneson (1999, p. 82-83) alude ao tratar do Problema da Classe Mdia.

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    ter de ser realizada ainda que em detrimento das expectativas dos cidados em

    desvantagem quanto aos bens primrios (em particular, a riqueza e a renda) sujeitos ao

    princpio da diferena.Uma das razes para temer o Problema do Custo que a EIO pode demandar

    investimento macio de recursos (por exemplo, em educao) para reduzir as diferenas

    de oportunidades entre jovens de famlias ricas e pobres (ALEXANDER, 1985, p. 202).

    Em lugar de investidos na igualdade de oportunidades, esses recursos poderiam ser

    usados de maneira a elevar as expectativas dos cidados em pior situao quanto a

    outros bens primrios, por exemplo, em programas de renda mnima ou de combate ao

    desemprego.

    9

    Outra razo para imaginar que a realizao da EIO venha acompanhada de uma

    significativa piora das expectativas dos cidados em desvantagem que a desigualdade

    de oportunidades pode ser um importante incentivo para a produo. Um motivo para

    que os cidados procurem acumular riqueza por meio do trabalho o de elevar as

    chances de que seus filhos venham a ocupar posies de vantagem no futuro. Assim,

    quando se tomam medidas para que as chances de ocupar essas posies sejam as

    mesmas para todos, o referido incentivo para o trabalho desaparece, o que podeocasionar uma reduo geral da produo e a consequente piora das expectativas dos

    cidados em pior situao quanto riqueza e renda.

    Por fim, vale observar tambm que no h nada na EIO (no, ao menos, na

    verso que estamos considerando) que a impea de ser realizada mediante uma

    mudana nas posies de vantagem. Imagine uma sociedade na qual o ensino da

    matemtica seja um fator determinante das diferenas de oportunidades, e na qual se

    constate que, mantidas as posies de vantagem atuais, impossvel anular esse fator

    (por exemplo, devido influncia dos pais). Uma soluo para realizar a EIO consistiria

    ento em suprimir as posies de vantagem para as quais a matemtica se mostre

    particularmente importante. Em uma sociedade na qual as posies de vantagem sejam

    redefinidas de tal maneira, a desigualdade de oportunidades entre bons e maus

    9Contra isso, poder-se-ia alegar que a EIO no necessariamente requer investimento considervel derecursos, j que, ao invs de aumentar os gastos com o ensino pblico, as diferenas de oportunidade

    poderiam ser diminudas com restries ou at a proibio do ensino privado. Tal como observadoanteriormente, contudo, possvel que estratgias menos dispendiosas de realizao tal como arecm mencionada tornem a EIO mais vulnervel ao Problema do Nivelamento por Baixo.

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    matemticos desapareceria. escusado dizer, no entanto, que o emprego disseminado

    da estratgia de redefinir posies de vantagem a fim de promover a EIO pode ser

    danoso para todos, inclusive para os cidados em pior situao (ALEXANDER, 1985, p.204).

    Insensvel a Talentos

    Passemos a examinar agora a importncia dos problemas acima mencionados

    para a verso Insensvel a Talentos da EIO. Convm antes observar que, na verso em

    questo, a EIO escapa objeo de tratar desigualmente duas ordens de fatores

    igualmente arbitrrios, as aptides naturais e as contingncias sociais (ALEXANDER,

    1985, p. 201). Tal tratamento desigual no pode ser justificado pela impossibilidade de

    alterar a distribuio natural de aptides (a loteria natural). Embora, de fato, essa

    distribuio no seja em grande medida controlvel (no, ao menos, no estgio atual da

    cincia), as chances de alcanar posies de vantagem atreladas s aptides naturais o

    so.10 perfeitamente possvel conceber, assim, polticas pblicas que procurem reduzir

    diferenas de oportunidade entre cidados desiguais em suas aptides inatas (por

    exemplo, polticas que privilegiem a educao dos naturalmente menos aptos) e que aofaz-lo propendam, pois, para a realizao da verso Insensvel a Talentos da EIO.

    Comparando-se as duas verses, a EIO na verso Insensvel a Talentos se mostra

    igualmente vulnervel ao Problema do Nivelamento por Baixo, menos vulnervel ao

    Problema da Classe Mdia e mais vulnervel ao Problema do Custo. Em relao ao

    primeiro problema, viu-se acima que ele no existe quanto s oportunidades, j que elas

    (mantendo-se constantes as posies de vantagem e o nmero de candidatos a essas

    posies) caracterizam-se como bem posicional. possvel, porm, que medidas para arealizao da EIO tenham o condo de influir sobre a distribuio de outros bens e que,

    em relao a esses bens, o efeito das referidas medidas apenas piore a situao de

    algumas das partes sem melhorar a de nenhuma outra. Isto igualmente verdadeiro

    para as verses Sensvel e Insensvel a Talentos.

    10Taylor (2004, p. 346) esboa um argumento em favor do tratamento diferenciado das contingnciasnaturais e sociais. Segundo ele, a indiferena ao efeito das contingncias sociais sobre as

    oportunidades mais propensa a ser atribuda ao humana e a parecer, como tal, degradante,constituindo, por esse motivo, uma ameaa ao autorrespeito mais sria do que a indiferena desigual distribuio natural de aptides.

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    A razo pela qual o Problema da Classe Mdia no tem lugar sob a verso

    Insensvel a Talentos que essa verso elimina a possibilidade de a realizao da EIO

    ser incua para os cidados em pior situao. Na verso Sensvel a Talentos, a EIO podese mostrar indiferente aos interesses desses cidados caso eles sejam naturalmente

    menos aptos do que os demais. Supondo que haja equivalncia de aptides inatas

    apenas entre os cidados dos estratos alto e mdio, Sensvel a Talentos requerer

    medidas em favor dos cidados do estrato mdio a fim de eliminar as diferenas entre as

    chances desses cidados e as dos cidados do estrato mais elevado. Na verso Insensvel

    a Talentos, em contrapartida, a referida possibilidade desaparece. Salvo estipulao

    adicional que conceda prioridade a aumentar as chances dos cidados em pior situao,Insensvel a Talentos se mostra indeterminada quanto a medidas que reduzam as

    diferenas de oportunidades entre os cidados dos estratos alto e mdio e mantenham

    inalteradas as chances dos cidados do estrato baixo, uma vez que se, por um lado,

    promovem a igualdade no que se refere s camadas superiores, por outro essas medidas

    tambm alargam as diferenas entre os cidados em pior situao e os que lhes esto

    imediatamente acima.

    O Problema do Custo, por sua vez, acirra-se em Insensvel a Talentos. Sensvel aTalentos exige ou que a sociedade invista para compensar desvantagens decorrentes de

    contingncias sociais, ou ento que abdique das vantagens de empregar os cidados

    favorecidos por essas contingncias (por exemplo, distribuindo posies de vantagem

    mediante sorteio entre aqueles com aptides inatas equivalentes). Isso se repete em

    Insensvel a Talentos, com a diferena que se trata agora ou de investir para compensar

    os efeitos de contingncias sociais e naturais ou de abdicar das vantagens de fazer uso

    dos cidados beneficiados por essas duas espcies de contingncias.

    EIO COMO PRINCPIO DE SUFICINCIA: EQUITATIVA SUFICINCIA

    DE OPORTUNIDADES (ESO)

    Nesta seo, examino a hiptese de a EIO ser entendida como princpio de

    suficincia ao invs de igualdade. Antes, no entanto, gostaria de explicar por que um

    outro princpio distributivo, o de prioridade, no constitui uma alternativa atraente

    para a interpretao da EIO.

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    Em contraste com o igualitarismo, o prioritarismo se caracteriza por ter em vista

    apenas a vantagem de cada um em termos absolutos (PARFIT, 1997, p. 212-214). Por

    exemplo, supondo que haja dois grupos de cidados, um em melhor e outro em piorsituao, irrelevante para um princpio de prioridade determinar o quanto cada grupo

    possui em relao ao outro (para o igualitarismo, em contraste, isso, e somente isso,

    relevante). O prioritarismo trata qualquer melhora na situao de alguma das partes

    como moralmente relevante, e to mais relevante quanto pior seja, em termos

    absolutos, a situao da parte beneficiada.

    Pois bem, o que impede a EIO de ser entendida como princpio de prioridade? A

    dificuldade decorre do fato de o bem cuja distribuio a EIO regula ser um bemposicional. Em relao ao igualitarismo, o prioritarismo tem a vantagem de no deixar

    de atribuir valor moral melhora da situao de algum em termos absolutos, mesmo

    quando essa melhora tenha como resultado um aumento da desigualdade. Em outras

    palavras, o prioritarismo escapa ao Problema do Nivelamento por Baixo ao tratar como

    moralmente prefervel um estado de coisas em que A e B tm, respectivamente, 2xexa

    outro em que ambos tenhamx. Ocorre que, quando se trata de um bem posicional, uma

    piora na situao de B nunca apenas isso, j que vem necessariamente acompanhadade uma melhora na situao de A. O corolrio disso tornar as demandas do

    prioritarismo e do igualitarismo coincidentes (BRIGHOUSE e SWIFT, 2006, p. 475).

    Para ilustrar, imagine que A e B sejam as nicas partes envolvidas, e que haja uma

    medida capaz de elevar em 0,1 as chances de A (e, consequentemente, reduzir as de B na

    mesma proporo). Como o ganho de A equivalente perda de B, essa medida

    somente ser chancelada pelo prioritarismo caso A tenha, inicialmente, menos chances

    do que B, pois essa a condio necessria para que o ganho de A tenha maior peso

    moral do que a perda de B.11O mesmo vale, contudo, para a igualdade. Se A j possui, de

    11 Acredito que qualquer verso plausvel do prioritarismo avalie o peso do ganho de A e dacorrespondente perda de B de acordo com a situao final das partes. Em sendo assim, o fato de A terinicialmente menos chances do que B uma condio necessria, mas no suficiente, a que amudana cogitada acima seja referendada pelo prioritarismo. que, em decorrncia da mudana, Apode chegar a uma situao ainda melhor do que a situao inicial de B (por exemplo, se asprobabilidades iniciais de A e B forem, respectivamente, de 0,46 e 0,54), caso no qual beneficiar Aser menos importante do que evitar a perda de B. Mas o fato de o prioritarismo ter de preferir uma

    situao em que as chances de A so de 0,46 e as de B de 0,54 outra em que essas chances passam a0,56 e 0,44 apenas ratifica a assero de que, em relao a bens posicionais, o igualitarismo e oprioritatismo so redundantes.

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    incio, mais chances de sucesso do que B, aumentar as chances do primeiro em 0,1

    alargaria a diferena entre ambos, algo que a igualdade repudia.

    Os princpios de igualdade e prioridade de oportunidades podem deixar decoincidir caso haja variao no nmero de posies de vantagem e de candidatos a essas

    posies. Em tal caso, o princpio de prioridade tambm se mostra vulnervel ao

    Problema do Nivelamento por Baixo, embora provavelmente de maneira atenuada. Na

    verso conforme ao prioritarismo, a EIO no reconhece valor igualdade de

    oportunidades em si mesma, mas pode chancelar um aumento das chances dos que tm

    menos custa de uma diminuio (mesmo que de maior proporo) das dos que tm

    mais. Esse aumento das chances dos cidados em pior situao pode ser conseguido,por sua vez, custa de um nivelamento por baixo na distribuio de outros bens, como

    educao e renda. O princpio de prioridade de oportunidades tambm afligida pelos

    Problemas da Classe Mdia (na verso Sensvel a Talentos) e do Custo.

    Consideremos agora a hiptese de a EIO ser entendida como princpio de

    suficincia. Segundo Casal (2007), duas teses podem ser relacionadas ao suficientismo,

    uma positiva e outra negativa. A tese positiva a de que h valor moral no fato de as

    partes no se encontrarem abaixo de um certo limiar no que toca a certo bem ou bens.De acordo com a tese negativa, moralmente irrelevante a distribuio de bens acima

    do citado limiar. Para ilustrar, suponha que o limiar seja 5 e que A e B possuam,

    respectivamente, 6 e 3. Para o suficientismo, esse estado de coisas deve ser preterido a

    um no qual A e B tenham ao menos 5 cada um (tese positiva). Alm disso, o princpio

    de suficincia indiferente entre dois estados de coisas em que A e B tenham alcanado

    esse limiar por exemplo, entre um no qual A e B possuam, respectivamente, 6 e 5 e

    outro no qual possuam 10 e 5,5.

    Quando se cogita de um princpio de suficincia como interpretao da EIO

    rawlsiana, as duas teses mencionadas no pargrafo anterior podem ser reformuladas do

    seguinte modo. De acordo com a tese positiva, lexicamente prioritrio em relao s

    demais demandas da justia (exceo feita s do princpio das liberdades bsicas) que os

    cidados no estejam abaixo de um certo limiar quanto s chances de ocupar posies

    de vantagem. A tese negativa, por sua vez, traduz-se como a de que, acima do limiar em

    questo, a distribuio de oportunidades deixa de se submeter EIO. Ao invs de

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    moralmente irrelevante, pode-se entender essa distribuio (acima do limiar) regulada

    ento por outros princpios de justia que no a EIO, entre eles o princpio da diferena.

    Entendida como parte da concepo de justia rawlsiana, o princpio dasuficincia de oportunidades escapa a uma das crticas feitas ao suficientismo em geral,

    a saber, a de que a indiferena distribuio de bens acima do limiar contraintuitiva

    (ARNESON, 2005).12 Resta verificar, no obstante, se h uma verso suficientista

    plausvel da EIO. Para comodidade da exposio (e tambm para evitar o uso do termo

    igualdade em relao a um princpio que no , na interpretao a seguir cogitada,

    estritamente igualitrio), referir-me-ei doravante verso suficientista da EIO como

    equitativa suficincia de oportunidades (ESO).Qualquer verso do princpio da ESO se caracteriza por definir uma

    probabilidade limiar de ocupar posies de vantagem. Que nenhum cidado se

    encontre aqum desse limiar algo requerido pela ESO e deve, portanto, ter primazia

    sobre a realizao do princpio da diferena. Oportunidades acima do referido limiar

    so irrelevantes para o princpio, embora no precisem s-lo de um modo geral.

    Lembre-se, ainda, que, tal como a EIO, a ESO pode se apresentar nas verses Sensvel e

    Insensvel a Talentos. possvel conceber um princpio de suficincia que combineessas duas verses ao definir dois limiares distintos, um abaixo do qual nenhum

    cidado, independentemente das aptides inatas, pode se encontrar e outro aplicvel

    apenas a cidados com iguais aptides inatas (bem como uma regra sobre como

    proceder quando os dois limiares no puderem ser simultaneamente atingidos). No que

    segue, terei em vista simultaneamente as hipteses de uma ESO Sensvel, Insensvel a

    Talentos, e Mista (isto , que combine as duas primeiras da maneira recm

    mencionada).

    Tratemos agora da situao da ESO em relao aos trs problemas expostos

    anteriormente, os do Nivelamento por Baixo, Classe Mdia e Custo. Uma vantagem da

    ESO em relao EIO diz respeito ao Problema do Nivelamento por Baixo. Como

    12 Uma outra crtica, a de que o suficientismo privilegia a melhora da situao daqueles que seencontram logo abaixo do limiar em detrimento dos que esto ainda pior (em relao aos quais umamelhora de mesma magnitude seria insuficiente para chegar ao limiar) (Arneson, 2005), pode serrebatida caso o princpio da suficincia seja redefinido de modo a tratar como intrinsecamente mau

    que algumas pessoas estejam aqum do limiar, e tanto pior quanto mais distantes do limiar elasestiverem. Para verses de suficientismo que incluem essa estipulao, ver HUSEBY (2010) eSHIELDS (2012).

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    observado anteriormente, esse problema no existe quanto s chances de ocupar

    posies de vantagem em si mesmas (desde que, ao menos, essas chances sejam

    entendidas como um bem posicional), mas possvel que certas medidas deatendimento EIO tenham como resultado a piora (sem qualquer correspondente

    melhora) da situao de alguns cidados quanto distribuio de outros bens. Para

    evitar isso, pode-se definir o limiar da ESO de maneira a que ele se considere atingido

    sempre que, a fim de elevar as chances de certos cidados, somente sejam possveis

    medidas que tenham como efeito o nivelamento por baixo em relao distribuio de

    outros bens. Supondo, para exemplificar, que o bem em questo seja a educao, a ESO

    pode estipular como limiar o de um estado de coisas no qual mais nenhum aumento daschances dos cidados em desvantagem se mostre possvel a no ser mediante uma piora

    na qualidade do ensino oferecido a outros cidados. Deve-se observar, por outro lado,

    que o fato de a aplicao da ESO ter como resultado uma piora geral na distribuio de

    certo bem no sempre indesejvel ou indesejvel na mesma medida. O limiar da ESO

    pode, pois, mostrar-se mais sensvel quanto ao nivelamento por baixo na distribuio de

    alguns bens primrios do que de outros.

    O Problema da Classe Mdia , como visto, restrito verso Sensvel a Talentosda EIO. Havendo equivalncia de aptides inatas entre cidados dos estratos alto e

    mdio, mas no entre esses e os cidados em pior situao, a EIO requer igualdade de

    oportunidades entre os primeiros, o que pode ter de ser realizado por meios que

    atentem contra os interesses dos cidados do estrato mais baixo. No difcil perceber

    agora por que o Problema da Classe Mdia no mnimo abrandado no caso da ESO,

    inclusive em uma verso Sensvel a Talentos. Nas circunstncias recm aludidas, a ESO

    no requer igualdade de oportunidades, mas to-somente que as oportunidades dos

    cidados do estrato mdio no fiquem aqum do limiar. Em comparao com a EIO,

    portanto, a ESO menos tendente a requerer medidas que sacrifiquem os cidados pior

    situados a fim de elevar as chances dos cidados de classe mdia.

    O Problema do Custo tambm mais ameno na ESO. Quando se consideram os

    custos da igualdade de oportunidades, percebe-se como a ideia de um limiar tem

    consequncias intuitivas: a partir de um certo ponto, melhor que os cidados em pior

    situao tenham menos chances de ocupar posies de vantagem do que seguir

    aumentando essas chances at que a vantagem atrelada s referidas posies (por

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    exemplo, devido a uma reduo geral da riqueza e da renda) se torne desprezvel. Isso

    vale inclusive para a verso Insensvel a Talentos, em relao qual o Problema do

    Custo maior. A esse respeito, a ESO tem, , como antes observado, a vantagem depoder combinar as verses Sensvel e Insensvel a Talentos, definindo um limiar para

    cidados com iguais aptides inatas e outro para cidados com diferentes aptides.13

    O fato de se mostrar menos vulnervel aos problemas que afligem a EIO no

    basta, entretanto, para concluir que a ESO seja um princpio vlido. Segue-se podendo

    perguntar por que devemos atribuir importncia (ainda que moderada) s chances de

    ocupar posies de vantagem, ao invs de simplesmente maximizar as expectativas dos

    cidados em pior situao quanto a certos bens relevantes.

    14

    Pois bem, pretendo demonstrar agora como certos argumentos acerca da

    prioridade lxica da EIO sobre o princpio da diferena so mais bem sucedidos quando

    entendidos como argumentos em favor da ESO. Trata-se de argumentos que designarei

    como Argumentosdos Bens Atrelados, porque chamam a ateno para a importncia

    de bens aos quais as posies de vantagem costumam estar atreladas. Entre eles esto

    argumentos que apelam para o valor do trabalho, ou de um trabalho com certas

    caractersticas. Segundo Taylor (2004), o trabalho significativo, entendido comotrabalho que atende ao que Rawls designa como princpio aristotlico (RAWLS, 1999,

    65), isto , um trabalho que desafia progressivamente o desenvolvimento de uma ou

    mais capacidades humanas, indispensvel para a autorrealizao. Como o interesse

    pela autorrealizao mais importante do que o interesse por riqueza e renda, justifica-

    se, segundo Taylor, a primazia da EIO sobre o princpio da diferena (entendido como

    princpio adstrito riqueza e renda). Shiffrin (2004, p. 1.666-1.669) tambm defende a

    EIO como oportunidade para o trabalho significativo, mas no s. Para ela, a EIO, ao

    diversificar as opes de trabalho, ajuda a tornar realizveis diferentes concepes de

    bem. O trabalho (e a EIO, como princpio de acesso a ele) tem valor, ainda, por ser uma

    13Por exemplo, supondo que A e B possuam aptides naturais equivalentes e superiores s de C, aESO pode definir um limiar de 0,3 para A e B e outro de 0,15 para C.14Se a oportunidade um bem relevante, ela pode ser includa no indexde bens primrios acerca dosquais o princpio da diferena determina que as expectativas dos cidados em desvantagem sejam

    maximizadas. Isso, no entanto, diferente de dar prioridade s chances de ocupar posies devantagem (seja igualdade de chances, seja a que essas chances no fiquem aqum de um limiar) emrelao distribuio de outros bens primrios.

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    fonte de statuse uma base social do autorrespeito ao servir como meio de interao e

    estreitamento de relaes.

    Uma falha de Argumentos de Bens Atrelados consiste em confundir as chancesde ocupar posies de vantagem com as de usufruir de certos bens aos quais essas

    posies costumam estar relacionadas.15 Considere-se, para exemplificar, o caso do

    trabalho significativo. Do fato de o trabalho significativo ser importante pode-se tirar

    uma razo em favor de um princpio que iguale (ou maximize para os cidados em pior

    situao) as chances de realizar um trabalho assim. Isso diferente, todavia, de igualar

    as chances de ocupar posies de vantagem, ou , ao menos, diferente se admitirmos

    que nem toda posio de vantagem envolve, ou envolve em mesma medida, trabalhosignificativo. No que se refere s chances de realizar trabalho significativo, pode ser

    prefervel um estado de coisas no qual as chances de ocupar posies de vantagem so

    distribudas de maneira desigual, mas h trabalho significativo em abundncia, a um

    outro em que, embora as chances de ocupar posies de vantagem sejam iguais para

    todos, poucas dessas posies requeiram trabalho significativo.16

    Quando o que se alega para embasar a EIO uma caracterstica do trabalho em

    geral, e no de alguns trabalhos (como no caso dos argumentos de Shiffrin sobre otrabalho como fonte de status e base social do autorrespeito), o problema recm

    aludido no somente volta a se apresentar, como a ele se acrescenta um outro. Primeiro,

    se o trabalho que importa (ou algo que se obtm por meio dele), um estado de coisas

    no qual as chances de ocupar posies de vantagem sejam iguais pode no ser a melhor

    opo. Melhor do que tornar iguais as chances de ocupar posies de vantagem

    aumentar a oferta de trabalho, a fim de maximizar as chances de trabalho dos cidados

    15

    O mesmo erro encontrado em uma breve passagem na qual Rawls observa que as suas razes paradefender a EIO no so meramente de eficincia (RAWLS, 1999, p. 73). Mesmo em uma sociedade naqual a falta de ateno EIO se mostre eficiente, diz Rawls, aqueles aos quais fossem negadas iguaischances teriam razo em se sentir injustamente tratados ainda que beneficiados pelo esforodaqueles aos quais fosse permitido ocup-las [as posies de vantagem]. Eles teriam razo de sequeixar por lhes serem negadas no apenas certas recompensas externas dos cargos, mas tambm aexperincia de autorrealizao que advm do exerccio hbil e dedicado de deveres sociais. Essescidados seriam privados, assim, de uma das principais formas de bem humano. (no original: wouldbe right in feeling unjustly treated even though they benefited from the greater efforts of those who wereallowed to hold them. They would be justified in their complaint not only because they were excluded

    from certain external rewards of office but because they were debarred from experiencing therealization of self which comes from a skillful and devoted exercise of social duties. They would be

    deprived of one of the main forms of human good.)16 Para um crtica mais abrangente aos argumentos de Taylor e Shiffrin sobre a EIO (incluindo aponderao feita acima), ver Arneson (2013, p. 320-327).

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    em pior situao (mesmo que, para que esse objetivo maximizador seja alcanado, as

    chances desses cidados tenham de ser menores do que as dos demais). Em segundo

    lugar, curioso que um argumento sobre o trabalho seja apresentado para a justificaode um princpio relativo s chances de ocupar posies de vantagem. Deve-se entender

    que todo trabalho (ou, ao menos, todo trabalho que seja fonte de status ou envolva

    interaes propcias ao autorrespeito) uma posio de vantagem, inclusive o trabalho

    tedioso e mal remunerado? Esse , sem dvida, um ponto de vista surpreendente, que

    leva a atribuir EIO certas consequncias contraintuitivas. Em sociedades nas quais h

    um excesso de oferta de trabalho braal (e em que, portanto, esse trabalho

    habitualmente mal pago), ser um ideal o de que se tomem medidas para que todos (oupelo menos aqueles com iguais aptides inatas) tenham a mesma chance de realizar um

    trabalho assim?

    Apesar de implausveis como argumentos em defesa da EIO, Argumentos de

    Bens Atrelados so aptos justificao da ESO. Ideias como a da autorrealizao pelo

    trabalho (Taylor 2004) e a do trabalho como meio para a realizao de diferentes

    concepes de bem, aquisio de statuse base social do autorrespeito (SHIFFRIN, 2004,

    p. 1.666-1.669) no apenas oferecem uma razo para que todos tenham alguma chancede ocupar posies de vantagem (admitindo-se que tais posies estejam comumente

    atreladas aos bens em questo) como ajudam a definir um ou mais limiares da ESO. Por

    exemplo, a exigncia de que todos tenham uma certa probabilidade de realizar um

    trabalho significativo define como limiar da ESO aquele no qual o acesso a posies de

    vantagem no deixe ningum com chances de trabalho significativo inferiores s

    mnimas exigidas. A altura desse limiar depender ento do quanto as posies de

    vantagem em uma determinada sociedade esto associadas a trabalho significativo. Em

    sociedades na qual a oferta desse trabalho abundante (isto , posies de vantagem

    geralmente ou quase sempre envolvem trabalho significativo), o limiar em questo pode

    ser mais baixo do que em sociedades nas quais o trabalho significativo mais raro.

    Argumentos mais bem sucedidos quando se trata de justificar a EIO so os

    Argumentos de Competio Justa (fair competition).17 Ao invs de aludir aos bens

    atrelados a posies de vantagem, esses argumentos ressaltam a importncia das

    chances de ocupar as referidas posies, importncia essa que pode ser intrnseca ou

    17A expresso de Brighouse e Swift (2006, p. 475-477).

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    derivada de algum outro bem, como o autorrespeito. Argumentos de Competio Justa

    so mais promissores do que Argumentos de Bens Atrelados porque do nfase s

    chances de ocupar posies de vantagem, e no ao que essas posies trazem consigo.Mesmo quando essas chances so importantes no intrinsicamente, mas como meio

    para a obteno de outro bem, como o autorrespeito, o bem em questo visto (no caso

    dos Argumentos de Competio Justa) como uma consequncia direta das chances de

    sucesso, e no das posies a que essas chances se referem.

    Argumentos de Competio Justa so, primeira vista, aptos a justificar a EIO,

    pois se o que importa, afinal, so as chances de ocupar posies de vantagem, bem

    possvel que essas chances tenham que ser iguais. Disso no segue, contudo, que taisargumentos sejam incompatveis com a ESO. Se as chances de ocupar posies de

    vantagem so valiosas, provavelmente prefervel um estado de coisas no qual elas

    sejam desiguais mas no estejam abaixo de um certo limiar a um outro no qual as

    chances de alguns cidados no atinjam esse limiar.18 Alm disso, embora a EIO se

    mostre superior ESO no que se refere distribuio de chances em si, a ESO tem,

    como visto, outras vantagens, entre elas a de tornar palatvel uma verso (Insensvel a

    Talentos) na qual alguns cidados no sejam simplesmente desconsiderados devido aseus dotes naturais. Por fim, nos casos em que Argumentos da Competio Justa tratam

    as chances de ocupar posies de vantagem como meio para algum fim valioso,

    possvel que o fim em questo requeira algo menos do que uma estrita igualdade de

    chances e seja, portanto, plenamente realizvel mediante a ESO e inapto, portanto, a

    justificar a EIO.

    Um ponto acerca do qual a anlise at aqui talvez tenha se mostrado pouco

    esclarecedora o do limiar correspondente a ESO. Tomadas em conjunto, as

    consideraes precedentes provavelmente implicam a existncia no de um, mas de

    diversos limiares. Cogitou-se, em primeiro lugar, da possibilidade de limiares distintos

    para cidados com aptides naturais iguais e desiguais. Alm disso, para lidar com o

    Problema do Nivelamento por Baixo, afirmei tambm que a ESO poderia ser

    interpretada de maneira a no exigir que as chances de alguns cidados vo alm do

    ponto em que, para que continuem se elevando, seja preciso reduzir a quantidade total

    18Para uma defesa do ponto de vista segundo o qual Argumentos de Competio Justa embasam osuficientismo em relao a bens posicionais, ver Brighouse e Swift (2006, p. 476).

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    a distribuir de certos bens sem ganho para quem quer que seja. Por ltimo, Argumentos

    de Bens Atrelados e de Competio Justa (os segundos quando atribuam s chances de

    ocupar posies de vantagem uma importncia derivada) ajudam a estipular um limiarem conformidade com a justificativa que oferecem para a ESO. Por exemplo, se as

    chances de ocupar posies de vantagem so importantes por causa do trabalho

    significativo ao qual essas posies costumam estar atreladas (um dos possveis

    Argumentos de Bens Atrelados), pode-se definir como limiar aquele no qual as

    expectativas de trabalho significativo dos cidados em pior situao sejam maximizadas.

    A coexistncia de mais de um limiar torna a ESO um princpio intrincado. Essa

    parece ser, contudo, a nica alternativa a uma conformao simplesmente arbitrria.Alm disso, se, por um lado, pouco provvel que os vrios limiares cogitados

    coincidam, por outro tambm no se trata (no, ao menos, obrigatoriamente) de

    limiares conflitantes. Por exemplo, se a justificativa para que as chances de ocupar

    posies de vantagem no fiquem aqum de um certo limiar reside na relao entre

    essas chances e o autorrespeito, uma vez alcanado esse limiar, no preciso seguir

    perseguindo maior igualdade at o ponto em que isso torne necessrio nivelar por baixo

    a distribuio de outros bens (isto , at o ponto correspondente ao limiar concebidopara fazer frente ao Problema do Nivelamento por Baixo).

    ESO E PRINCPIO DA DIFERENA

    A seo anterior afirmou que uma verso suficientista da EIO, ESO, menos

    vulnervel aos Problemas do Nivelamento por Baixo, da Classe Mdia e do Custo,

    podendo ser defendida (em certos casos, at com mais propriedade) com argumentos

    como os de Bens Atrelados e Competio Justa. Isso pode ser suficiente para sugerir quea ESO um princpio vlido, mas ainda pouco para concluir que ela deva ter a

    prioridade lxica sobre o princpio da diferena. Esta seo encerra o trabalho tratando

    da relao entre a ESO e o princpio da diferena.

    O problema de justificar a supremacia de um princpio (qualquer princpio)

    sobre o princpio da diferena que isso como atacar um alvo mvel. H diferentes

    verses do princpio da diferena, algumas das quais tornam a tese da prioridade lxica

    da ESO mais, e outras menos, fcil de defender. No que segue, considerarei duas verses

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    que se distinguem unicamente quanto aos bens cuja distribuio o princpio da

    diferena regula. Em ambas as verses, esse princpio requer a maximizao das

    expectativas do cidados em pior situao, mas em uma das verses, que designareicomo Verso Simples, as expectativas em questo dizem respeito to-somente riqueza

    e renda, enquanto na outra, a Verso Complexa, as expectativas a serem maximizadas

    so quanto a um index constitudo por todos os bens primrios cuja distribuio no

    tenha sido exaurida por algum princpio anterior ao da diferena.

    Comecemos com a relao entre a ESO e a Verso Simples.19Tendo em vista a

    importncia de outros bens atrelados a posies de vantagem alm da riqueza e da

    renda, bem como a importncia (intrnseca ou derivada) das chances para ocupar essasposies, plausvel que, em alguma medida, o objetivo de maximizar as expectativas

    dos cidados em pior situao quanto riqueza e a renda esteja subordinado a que as

    referidas chances (e as expectativas quanto aos bens a elas relacionados) alcancem um

    certo limiar. Vale lembrar, quanto a isso, que as relaes de prioridade lxica entre

    princpios so peculiares ao que Rawls designa como concepo especial de justia, uma

    concepo cuja validade limitada a condies entre as quais se inclui a de uma certa

    disponibilidade de meios de subsistncia (RAWLS, 2001, p. 47 e nota de rodap 12). Sobcondies como essas, compreensvel que se abra mo de um pouco de riqueza e

    renda a fim de prevenir uma desigualdade de chances corrosiva do autorrespeito ou que

    restrinja demasiadamente para alguns o acesso a bens como o trabalho e o trabalho

    significativo.

    Algo diverso se passa na Verso Complexa, em que o princpio da diferena

    requer a maximizao de um indexde bens primrios no limitado riqueza e renda.20

    Ocorre que vrios argumentos que se propem a justificar a EIO (e a ESO) aludem a

    bens (como a autorrealizao e o autorrespeito) que, na Verso Complexa, podem ser

    considerados parte do indexcuja maximizao o princpio da diferena impe. Isso no

    s pode como deve ser assim, considerando-se que h apenas duas razes concebveis

    para que um bem fique de fora do index, a saber, a de que a sua distribuio seja

    regulada com exclusividade pelo princpio das liberdades bsicas ou que se trate de um

    19 a Verso Simples do princpio da diferena que Taylor (2004) tem em vista ao defender a

    primazia da EIO com base no interesse pela autorrealizao.20Para exemplos de aplicao do princpio da diferena na Verso Complexa, ver Freeman (2007, p.113), ONeill (2008, p. 47-52; 2012, p. 87-91) e Arnold (2012).

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    bem ao qual uma concepo de justia deva permanecer alheia a fim de no incorrer em

    perfeccionismo. Essas duas razes impedem que um bem pertena ao rol cuja

    distribuio o princpio da diferena regula, mas tambm tornam o bem em questoinapropriado para um argumento rawlsiano em defesa da ESO, no primeiro caso devido

    primazia do princpio das liberdades bsicas, no segundo pela sua incompatibilidade

    com uma concepo neutra de justia.

    Embora a Verso Complexa faa surgir a necessidade de trade-offsentre os bens

    componentes do index, essa verso concilivel, dadas as circunstncias que tornam a

    concepo especial de justia aplicvel, com a ideia de que certa distribuio das

    chances de ocupar posies de vantagem tenha prioridade sobre a maximizao dasexpectativas dos cidados em pior situao quanto riqueza e renda. medida, no

    entanto, que essa prioridade seja justificada pela relao entre as referidas chances e

    certos bens primrios (sejam eles bens atrelados a posies de vantagem, sejam bens

    que as chances de ocupar essas posies diretamente proveem), a ESO em questo deve

    ser entendida no como princpio independente e lexicamente superior, mas como

    parte do princpio da diferena.

    CONCLUSO

    Este trabalho tratou de uma alternativa suficientista ao princpio da equitativa

    igualdade de oportunidades (EIO), a equitativa suficincia de oportunidades (ESO).

    Afirmei que a ESO menos vulnervel a trs problemas que afligem a EIO, os

    Problemas do Nivelamento por Baixo, da Classe Mdia e do Custo. Disse, tambm, que

    certos Argumentos de Bens Atrelados apresentados em favor da EIO so mais

    apropriados para a justificao da ESO. Outros argumentos, os Argumentos deCompetio Justa, so no mnimo compatveis com a preferncia por um estado de

    coisas no qual a ESO seja atendida a outro em que as chances de ocupar posies de

    vantagem sejam desiguais e isso no ocorra. Alm disso, Argumentos de Competio

    Justa que apelam para o valor derivado das referidas chances tambm podem ser aptos a

    justificar no a EIO, mas a ESO.

    Distinguiram-se, ainda, duas verses do princpio da diferena, uma Verso

    Simples, na qual o princpio em questo se limita a requerer a maximizao das

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    expectativas dos cidados em pior situao quanto aos bens primrios da riqueza e da

    renda, e outra, a Verso Complexa, em que essa mesma maximizao se refere a um

    index de bens do qual a riqueza e a renda so apenas parte. Observei ento que aprioridade lxica da ESO sobre a Verso Simples do princpio da diferena no parece

    difcil de defender nas circunstncias do que Rawls designa como concepo especial de

    justia (as nicas sob as quais so vlidas as relaes de prioridade lxica entre os

    princpios da justia). Na Verso Complexa, em contrapartida, a ESO mais

    propriamente entendida como parte do princpio da diferena ao invs de como

    princpio que lhe seja lexicamente superior. Ela importante, no obstante, como limite

    aos trade-offsenvolvendo, de um lado, a riqueza e a renda e, de outro, os demais bensprimrios aos quais as chances de ocupar posies de vantagem esto direta ou

    indiretamente relacionadas.

    FAIR SUFFICIENCY OF OPPORTUNITY

    Abstract

    The article presents some problems facing Rawlss fair equality of opportunity principle.It claims that an alternative principle of sufficiency, fair sufficiency of opportunity(FSO), is less vulnerable to those problems. It further points out that some of thearguments employed in support of equality of opportunity look more promising whentaken as arguments favoring a principle of sufficiency such as FSO. Finally, the paperalso clarifies why FSO may be understood either as a principle which is lexically prior tothe difference principle or as a constitutive part of the latter.

    Keywords: Equality of Opportunity; Rawls; Sufficientarianism; Egalitarianism;Difference Principle

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

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    Trabalho enviado em 05 de novembro de 2014.Aceito em 05 de dezembro de 2014.