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217 Kalagatos Kalagatos Kalagatos Kalagatos Kalagatos - REVISTA DE FILOSOFIA. FORTALEZA, CE, V. 11 N. 21, INVERNO 2014 DOUGLAS JOÃO ORBEN Recebido em mai. 2014 Aprovado em jul. 2014 CONSIGNAÇÃO SUBJETIVA DAS IDEIAS TRANSCENDENTAIS COMO PRINCÍPIOS DE ORIENTAÇÃO DO PENSAMENTO * RESUMO O artigo analisa a consignação subjetiva das ideias transcendentais, como uma disposição natural da própria razão especulativa, na filosofia teórica de Kant. Neste sentido, o filósofo moderno reconhece que a origem de tais ideias não pode ser negada ou eliminada, pois sua fundamentação integra uma necessidade subjetiva da razão pura. Não obstante, através de uma dedução subjetiva que faz jus à origem transcendental das ideias metafísicas, apresenta-se a importante função regulativa relacionada a estas ideias, quando consideradas como princípios subjetivos de orientação do pensamento. PALAVRAS-CHAVE Ideias. Transcendental. Orientação. Pensamento. Kant. * O presente texto é um trecho da dissertação de mestrado defendida no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL - PUC/ RS, sob a orientação do Prof. Dr. Thadeu Weber. * * Mestre em Filosofia pela PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL - PUC/RS (Porto Alegre), com Mestrado- Sanduíche na U NIVERSIDAD DE LA REPÚBLICA – UDELAR (Montevidéu/Uruguai) e professor do curso de FILOSOFIA DA FACULDADE PALOTINA – FAPAS (Santa Maria/RS).

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DOUGLAS JOÃO ORBEN

Recebido em mai. 2014Aprovado em jul. 2014

A CONSIGNAÇÃO SUBJETIVA DAS IDEIAS TRANSCENDENTAIS

COMO PRINCÍPIOS DE ORIENTAÇÃO DO PENSAMENTO *

RESUMO

O artigo analisa a consignação subjetiva das ideiastranscendentais, como uma disposição natural daprópria razão especulativa, na filosofia teórica de Kant.Neste sentido, o filósofo moderno reconhece que aorigem de tais ideias não pode ser negada ou eliminada,pois sua fundamentação integra uma necessidadesubjetiva da razão pura. Não obstante, através de umadedução subjetiva que faz jus à origem transcendentaldas ideias metafísicas, apresenta-se a importante funçãoregulativa relacionada a estas ideias, quandoconsideradas como princípios subjetivos de orientaçãodo pensamento.

PALAVRAS-CHAVE

Ideias. Transcendental. Orientação. Pensamento. Kant.

* O presente texto é um trecho da dissertação de mestradodefendida no Programa de Pós-Graduação em Filosofia daPONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL - PUC/RS, sob a orientação do Prof. Dr. Thadeu Weber.

* * Mestre em Filosofia pela PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO

RIO GRANDE DO SUL - PUC/RS (Porto Alegre), com Mestrado-Sanduíche na UNIVERSIDAD DE LA REPÚBLICA – UDELAR(Montevidéu/Uruguai) e professor do curso de FILOSOFIA DA

FACULDADE PALOTINA – FAPAS (Santa Maria/RS).

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ABSTRACT

The article analyses the subjective consignment of thetranscendental ideas, as a natural arrangement of theown speculative reason, in the Kant’s theoreticalphilosophy. In this sense, the author recognizes thatthe origin of these ideas can’t be negated or eliminated,because it’s establishment integrates a subjectivenecessity of the pure reason. Although, through asubjective deduction that deserves the transcendentalorigin of the metaphysics ideas, comes forward animportant regulative function related to these ideas,when considered as subjective principles of thought’sorientation.

KEYWORDS

Ideas. Transcendental. Orientation. Thought. Kant.

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CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Adespeito da invariável delimitação do conhecimento possível (estabelecida pela �������

transcendental da Crítica da razão pura 1), ImmanuelKant reconhece que a razão especulativa não secontenta em soletrar fenômenos (Cf. KrV B 371),respeitando assim fielmente os limites do conhecimentoempírico. Não obstante, a Dialética transcendental

admite como inevitável a consignação de ideiastranscendentais, as quais mesmo extrapolando oslimites do conhecimento possível, não podem sersimplesmente eliminadas, pois elas são produzidas pelaprópria natureza metafísica da razão especulativa.Neste sentido, a origem de tais ideias encontra-se nabusca pela totalidade absoluta e incondicionada detodas as condições empiricamente dadas, pelo que oseu estabelecimento transcendental integra umanecessidade subjetiva da própria razão. Neste caso, anecessidade subjetiva da razão faz jus à consignaçãodas ideias metafísicas, remetendo assim a uma espéciede dedução subjetiva destes conceitos, o que justificaa sua necessidade transcendental. Com efeito,assumindo a validade subjetiva das ideias, estasadquirem um uso legítimo, a saber: o uso regulativo,como princípios subjetivos de orientação para opensamento. Deste modo, o próprio conhecimentopossível que inicialmente poderia opor-se às ideiasmetafísicas, por estas ultrapassarem os limites da1 Em todas as referências a esta obra será utilizado o modo

abreviado de citação, a saber: Kritik der reinen Vernunft [A -1781/ B - 1787]: KrV .

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experiência, então, mediante o uso regulativo dasideias, adquire organização sistemática e um horizontenorteador (como um princípio de orientação) para oseu desenvolvimento.

1 A ORIGEM DAS IDEIAS TRANSCENDENTAIS

Na Crítica da razão pura, mais propriamente naseção Das ideias transcendentais, Kant afirma que, assimcomo “a analítica transcendental deu-nos o exemplo decomo a simples forma lógica do nosso conhecimentopode conter a origem de conceitos puros a priori, que,anteriormente a qualquer experiência, nos representamobjetos, ou melhor, indicam a unidade sintética, únicaque permite um conhecimento empírico dos objetos”(KrV, B 378), pode-se, igualmente, “esperar que a formados raciocínios, quando aplicada à unidade sintética dasintuições, segundo a norma das categorias, contenha aorigem de conceitos particulares a priori, a que podemosdar o nome de conceitos puros da razão ou idéias

transcendentais e que determinam, segundo princípios,o uso do entendimento no conjunto total da experiência”(KrV, B 378).

A série fenomênica, atuando no âmbito empírico,é sempre condicionada, ou seja, todo fenômeno temsua(s) condição(ões). A razão, por seu turno, busca asérie completa dos fenômenos, a totalidade dascondições. Porém, seguindo este princípio nocondicionado (fenomênico), ela não encontra o que estáprocurando, pois a experiência sempre exige novascondições. Neste caso, para satisfazer seu desejo detotalidade sistemática e acabar com uma procura quenão teria fim, a razão estabelece um início na série das

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incondicionada 2. “Deste modo, as idéias transcendentaisservem apenas para ascender na série das condições atéao incondicionado, isto é, até aos princípios” (KrV, B394). Esta engenhosa solução da razão, apesar desatisfazer seu desejo metafísico, traz consigo umproblema especulativo, a saber: o incondicionado nãopode ser conhecido, ele é uma simples ideiatranscendental, estabelecida além dos limites doempiricamente condicionado.

Ao estabelecer as ideias transcendentais comoconceitos incondicionados, Kant as situa em umdomínio próprio: separadas do campo fenomênico, asideias são entes do puro pensamento, númenos. Estes,mesmo não sendo objetos do conhecimento, sãonaturalmente pensados e admitidos pela razãoespeculativa. Por extrapolarem os limites doconhecimento empírico, as ideias não são conhecidas,como é possível conhecer sinteticamente os fenômenos.A impossibilidade de conhecer o supra-sensível éconfirmada, sobretudo, pelas contradições e disputasintermináveis encontradas nas posições racionalistas

2 Neste processo transcendental, as ideias de imortalidade da alma,unidade da experiência (mundo) e existência de Deus, são ospróprios termos incondicionados estabelecidos pela razão. Nestecaso, “haverá tantos conceitos puros da razão quantas as espéciesde relações que o entendimento se representa mediante ascategorias: teremos, pois, que procurar, em primeiro lugar, umincondicionado da síntese categórica num sujeito, em segundo

lugar, um incondicionado da síntese hipotética dos membros deuma série e, em terceiro lugar, um incondicionado da síntesedisjuntiva das partes num sistema” (KrV, B 380).

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que, dogmaticamente, fazem uso objetivo das ideiastranscendentais. Neste sentido, compreende-se aafirmação kantiana, encontrada no início do Apêndice à

dialética transcendental, a qual assevera que: “o resultadode todas as tentativas dialéticas da razão pura [...]confirma o que provamos na Analítica Transcendental,a saber, que todos os nossos raciocínios que pretendemlevar-nos para além do campo da experiência possívelsão ilusórios e destituídos de fundamento” (KrV, B 670),pois estes já não podem ser conhecidos. Por outro lado,esta mesma parte da primeira Crítica, “também nosesclarece esta particularidade, que a razão humana temum pendor natural para transpor essa fronteira e que asidéias transcendentais são para ela tão naturais comoas categorias para o entendimento” (KrV, B 670). Mesmosem nenhum fundamento epistemológico, as ideiastranscendentais têm embasamento subjetivamentenecessário, encontrado na própria natureza da razãoespeculativa.

2 A FUNDAMENTAÇÃO DA NECESSIDADE NATURAL DA RAZÃO:A DEDUÇÃO SUBJETIVA DAS IDEIAS TRANSCENDENTAIS

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totalmente incondicionadas, tornam-se então evidentesos erros da metafísica racionalista: esta tomava as ideias(incondicionadas) como conceitos condicionados. Opretenso uso constitutivo da metafísica especialtransformou o domínio supra-sensível num teatro dedisputas infindáveis (Cf. KrV, A VIII), onde nenhumaverdade poderia ser edificada com segurança. Contudo,mesmo estando em frangalhos devido aos maus-tratosdo racionalismo dogmático, Kant não cansa de salientar

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1987, p. 41), pelo que a metafísica é algo inevitável,uma questão natural para a razão humana.

Apesar de rejeitar categoricamente o usoindevido das ideias metafísicas, a Dialética não rejeitacomo falso e enganoso o princípio metafísico em si 3.Muito pelo contrário, ela reconhece sua autenticidadetranscendental, afirmando assim que as ideiasmetafísicas são um produto legítimo da razão (Cf.LICHT D. S, 2008, p. 138). Para tanto, Kant precisafundamentar as ideias transcendentais na próprianatureza da razão humana. Quanto a esta questãoparece não haver dúvidas, o filósofo constantementeafirma que os princípios da metafísica “estão fundadosna natureza da razão humana” (KrV, B 380). Algunsautores, contudo, (Kemp Smith, por exemplo,4)

3 As ideias transcendentais são impostas pela natureza metafísicada razão, elas levam a cabo a destinação natural da razão, poisem sua natureza pura não existe contradição. O conflito dialético,portanto, só é gerado quando estas ideias são utilizadas de modoindevido, como princípios constitutivos. Neste sentido, “as idéiasda razão pura não podem nunca ser em si mesmas dialéticas, sóao seu abuso se deverá atribuir a aparência enganosa que possamapresentar; são-nos impostas pela natureza da nossa razão e estainstância suprema de todos os direitos e pretensões da nossaespeculação não pode conter originariamente enganos e ludíbrios.Presumivelmente, têm o seu bom e apropriado destino nadisposição natural da nossa razão” (KrV, B 697).

4 Segundo Kemp Smith, as ideias transcendentais só poderãoser validamente radicadas na razão humana por meio de umadedução metafísica. Esta dedução, segundo o autor, é umaexigência da razão pura, ela é estabelecida a partir das trêsformas silogísticas, donde são derivadas as três ideiastranscendentais: “(as ideias transcendentais) exigem [CONTINUA]

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defendem que, além desta fundamentação subjetiva,Kant desenvolve uma dedução subjetiva das ideiastranscendentais. Esta dedução garantiria a autenticidadecrítica das ideias, pois demonstraria como a razãonaturalmente as produz.

Nesta interpretação, assim como as categorias doentendimento só foram transcendentalmentedemonstradas por uma dedução metafísica (Cf. KrV, B91-116), que assegurou a realidade transcendental destesconceitos, com as ideias transcendentais o caso não podeser diferente. A disposição natural da razão humana porquestões metafísicas, que inevitavelmente produz ideiastranscendentais, deve ser criticamente assegurada poruma dedução metafísica das ideias. Esta deduçãocomprovaria, por assim dizer, a naturalidade dialéticada razão especulativa, demonstrando assim que as ideiasmetafísicas (alma, mundo e Deus) não são oriundas deuma mera análise histórica ou ilusões descabidas,produzidas aleatoriamente pela razão, mas sim conceitosautênticos, fundamentados na própria razão humana (Cf.LICHT D. S, 2008, p. 137).

Ao propor uma dedução das ideiastranscendentais, Kant estaria buscando um fundamentocriticamente aceitável para estes conceitos. O conceitode “dedução” é determinante para assegurar alegitimidade crítica da filosofia kantiana. Não poracaso, Kant assevera que “não podemos servir-nos com

[CONTINUAÇÃO DA NOTA 4] uma dedução metafísica e umadedução transcendental. Esta exigência é completada pela suaderivação a partir das três formas silogísticas e pela prova deque sua função é indispensável: tanto limitar como dirigir oentendimento” (KEMP SMITH, 1918, p. 426).

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014sUVWXYZ[Y \U W] ^_Z^U`a_ a priori se não tivermos

efetuado a sua dedução transcendental” (KrV, B 697).O que poderia soar como estranho, numa leituraapressada, é a passagem em que Kant afirma que “asidéias da razão pura não permitem, é certo, umadedução da mesma espécie da das categorias” (KrV, B697). Esta frase parece contradizer o princípiosupracitado ou, então, negar a legitimidade crítica dasideias transcendentais, já que elas não poderiam serdeduzidas. Contudo, Kant reconhece o valor crítico dadedução, bem como a validade transcendental dasideias. Para resolver este problema, deve-se atentar,sobretudo, às condições que Kant estabelece ao afirmarser impossível uma dedução das ideias. Kant afirma,pois, que não é permitida uma dedução das ideias, masnão qualquer dedução, apenas um modo de dedução:“da mesma espécie da das categorias” (KrV, B 697).Não é possível, portanto, fazer uma deduçãotranscendental das ideias como a das categorias doentendimento, pois as ideias não se referem àexperiência sensível, não tendo assim nenhumaconfirmação empírica, o que impossibilita este tipo dededução. Todavia, o próprio Kant reconhece que asideias transcendentais, “para que tenham algum valorobjetivo, por indeterminado que seja, e para que nãorepresentem apenas meras entidades da razão (entia

rationis ratiocinantis), tem de ser de qualquer modopossível a sua dedução, embora se afaste muito da quese pode efetuar com as categorias” (KrV, B 697-698).A questão está, então, em como compreender oconceito kantiano de “dedução”.

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2.1 ANÁLISE DO CONCEITO KANTIANO DE “DEDUÇÃO” COMO

CONDIÇÃO DE POSSIBILIDADE PARA UMA DEDUÇÃO SUBJETIVA DAS

IDEIAS TRANSCENDENTAIS

Segundo Dieter Henrich, o conceito kantianode “dedução” vai muito além de seu significado comumou literal. O simples “significado literal de “deduzir”,(em latim) é extrair uma coisa de outra”, não abarca aprofundidade e a extensão que o conceito possui nafilosofia crítica. Segundo Dieter Henrich, paraesclarecer o que Kant compreende por “dedução”,“temos que analisar o contexto no qual se desenvolvemas deduções de Kant” (1999, p. 396). Kant nãodesconsidera, certamente, o sentido silogístico de umadedução, porém “este não era o único, nem o maiscomum dos usos na linguagem acadêmica do séculoXVIII” (Henrich, 1999, p. 397). O significado kantianode “dedução”, para Henrich, deve ser analisado dentrodo contexto jurídico (do século XVIII) de significação,pois esta era a compreensão mais popular e aceita naépoca. Neste período, a dedução era um gênero literáriopopular, muitas questões imperiais eram apresentadasem escritos chamados de “deduções”. Uma deduçãonão era simplesmente uma teoria, por assim dizer, “masum argumentação que pretendia justificarconvincentemente um problema, defendendo alegitimidade de uma teoria ou de um uso, ela deviaevitar elucubrações desnecessárias e generalizações [...]Uma dedução deveria ser breve, consistente, mas nãosutil, e clara” (Henrich, 1999, p. 401). Considerandoa popularidade do gênero literário conhecido como“deduções”, Kant parece ter boas razões para transferir

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âmbito filosófico (Cf. Henrich, 1999, p. 400). Pode-seconcluir, portanto, “que Kant escreveu os textos dasdeduções, na primeira Crítica, seguindo os padrões deuma boa dedução jurídica, que se atinha exclusivamentena justificação de uma demanda” (Henrich, 1999, p.401).

Outra característica acentuada nas deduçõesjurídicas, que aparece frequentemente nas deduçõeskantianas, é a necessidade de se apresentar a origem daquestão. Este, talvez, seja o aspecto mais importantepara se entender o verdadeiro significado das deduções,em Kant. Segundo Henrich, ao remeter às origens doproblema, a dedução, frente a uma postura quequestiona a legitimidade de “um conhecimento genuíno,busca descobrir e examinar a verdadeira origem”(Henrich, 1999, p. 403) deste problema, bem como afonte de sua legitimidade. Neste sentido, as deduçõeskantianas não são apenas demonstrações lógicas, comoacontece nos silogismos. A proposta kantiana é buscaros fundamentos transcendentais da razão humana, peloque suas demonstrações devem tanger a origem doproblema, proporcionando assim explicações “genéticas”das demandas. Para Henrich, a dedução “necessitaencontrar o que Kant chama de “verdadeiras razões”(rationes verae). Fazendo uso destas, é necessáriomostrar de que maneira o conhecimento brota de suasverdadeiras fontes. Neste sentido, a filosofia deveproporcionar explicações “genéticas”. (Isto correspondeao que a dedução proporciona – fontes e origens.)”(1999, p. 410). A dedução metafísica das categorias,

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por exemplo, frente ao problema epistemológicolevantado pelos céticos, busca esclarecer a questão pormeio de explicações fundamentais, que expõem asorigens transcendentais que asseguram a legitimidadedo conhecimento. A dedução, assim entendida, não éum mero processo lógico, mas sim uma operaçãofundamental que tange à apresentação das origens doproblema abordado. Poder-se-ia afirmar que em Kantesta operação pretende, sobretudo, apresentar anatureza transcendental da razão em geral.

É evidente que esta proposta, de uma deduçãodas ideias transcendentais, não deve ser entendida nomesmo nível (de validade) da dedução das categoriasdo entendimento 5. Quando se trata de ideias metafísicas,a dedução é apenas subjetiva (Cf. KrV, B 393). Osconceitos deduzidos neste processo subjetivo, devido asua natureza supra-sensível, não têm a mesma validadeconstitutiva daqueles encontrados na dedução daprimeira parte da Crítica, pois eles (os conceitosmetafísicos) não podem ser empiricamente confirmados(como no caso das categorias do entendimento).

Seguindo a interpretação de Henrich, aodefender que o significado de “dedução” não é apenas

� Muito embora não seja possível fazer uma dedução objetiva dasideias transcendentais, sua necessidade pode ser demonstradaatravés de uma derivação subjetiva. Nos termos de Kant, “não épossível, propriamente, falar de uma dedução objetiva destas idéiastranscendentais, tal como a que pudemos apresentar das categorias.Porquanto não têm, de fato, relação com qualquer objeto dado,que lhes pudesse corresponder, precisamente porque se trataapenas de idéias. Mas foi possível empreender a sua derivaçãosubjetiva a partir da natureza da nossa razão” (KrV, B 393).

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sua vez, entende este conceito como sendo uma espéciede apresentação das origens e fontes do assunto emquestão, as diferentes deduções (das categorias e dasideias, por exemplo) poderiam ser analisadas de acordocom um princípio comum: “as diferenças entre asdeduções kantianas podem ser explicadas mediante osdistintos modos de acesso às origens e princípios dosproblemas, bem como por variações na noção deorigem” (Henrich, 1999, p. 405). Neste caso,compreende-se como, mesmo não sendo possível fazeruma dedução equivalente à das categorias, pode-seafirmar uma dedução das ideias transcendentais, porémem outro nível, por assim dizer. O princípio dasdeduções é o mesmo, a saber: a busca pela origem doproblema. O que muda, todavia, são as fontes destasexplicações: na dedução das categorias a fonte é oentendimento, na dedução das ideias a fonte é a razão.

Neste sentido, a Dialética transcendental não podeser reduzida a sua tarefa negativa, a saber: revelar oserros e mostrar a impossibilidade da metafísica tradicional.Se a dialética for entendida somente neste sentido, entãoseria justificado afirmar que Kant “matou” a metafísica.Para que isso não aconteça, deve-se entender que, alémda tarefa negativa, a Dialética transcendental possui umaparte positiva. Esta, a despeito das limitações doconhecimento, estabelece a legitimidade e a necessidadesubjetiva da metafísica. Na verdade, toda a parte negativada dialética supõe a parte positiva: a exposição dos errosda metafísica dogmática pressupõe, por assim dizer, oinventário das ideias transcendentais. Apesar dos erros e

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contradições do racionalismo dogmático, a metafísica nãoperde sua legitimidade subjetiva. Ela continua sendocapital, uma questão imprescindível para a razão humana.Eliminar a metafísica é negar a própria razão, pois suanatureza está destinada a fins supra-sensíveis (Cf. LICHTD. S, 2008, p. 144).

Ora, se a metafísica integra a própria essênciada razão, como uma disposição natural e inevitável,por mais que seu uso indevido tenha produzido inúmeroserros, criando assim um campo de batalhasintermináveis, ela não pode ser simplesmente eliminada.Sua eliminação, talvez, pusesse fim às disputas dialéticas,porém não eliminaria o “problema” essencial da razãoespeculativa, seu destino natural. É neste contextoambíguo, marcado por erros, disputas e desejos, queKant procura salvaguardar os interesses da razão pura,apaziguando igualmente as intermináveis disputasdialéticas. Para tanto, é necessário considerarrigorosamente o(s) limite(s) entre o domínio daexperiência possível (fenômenos), e o campo supra-sensível, das simples ideias metafísicas (númenos). A estadistinção fundamental deve-se vincular usos distintosda razão: um uso constitutivo, vinculado à experiênciapossível e outro uso regulativo, relacionado, por sua vez,às ideias transcendentais.

3 IDEIAS TRANSCENDENTAIS: USO REGULATIVO E USO

CONSTITUTIVO

 ¡ ¢£¤¥¢¡ ¦¡ Apêndice à dialética transcendental,Kant reconhece que “tudo o que se funda sobre anatureza das nossas faculdades tem de ser adequado aum fim e conforme com o seu uso legítimo” (KrV, B

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Kant só pode estar referindo-se à naturalidade subjetivadas ideias transcendentais. A análise crítica (dadialética) mostrou, por um lado, que a metafísica éuma disposição natural da razão humana, algoinevitável e subjetivamente necessário (Bedürfnis). Ora,se as ideias transcendentais são naturalmenteproduzidas pela razão especulativa, elas não podementão ser simplesmente desconsideradas, como umproblema que poderia ser resolvido pela sua simpleseliminação. Além do mais, se considerarmos a últimaassertiva kantiana, elas devem também ter “um fim” euso legítimos. Apesar da situação incômoda, produzidapela tradição racionalista, a metafísica conserva(assegurada em sua naturalidade) um uso legítimo,no qual as contradições, se não totalmente eliminadas,podem ser evitadas; “trata-se apenas de evitar um certomal-entendido e descobrir a direção própria dessasfaculdades” (KrV, B 670-671). Neste caso, “tantoquanto se pode supor, as idéias transcendentaispossuirão um bom uso e, por conseguinte, um usoimanente (indevido), embora, no caso de serdesconhecido o seu significado e de se tomarem porconceitos das coisas reais, possam ser transcendentesna aplicação e por isso mesmo enganosas” (KrV, B 671).O problema, portanto, não está na própria ideia (queem si é natural), mas no uso que lhe é atribuído.

Se as ideias transcendentais são conceitosnecessários, produzidos pela própria razão especulativa,qual é então a sua finalidade? Qual é o seu uso legítimo?E, talvez, o ponto mais complicado: como admitir sua

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necessidade e, ao mesmo tempo, evitar o conflitodialético? Todas estas questões, na verdade, estão inter-relacionadas; não é possível resolver uma sem consideraros problemas assinalados pelas outras. Neste contexto,o que não pode ser questionado, como estabelecido naanalítica do entendimento e na parte negativa dadialética, são os limites do conhecimento humano, bemcomo sua total incapacidade de conhecer objetos supra-sensíveis 6. Isso basta para afirmar “que as idéiastranscendentais não são nunca de uso constitutivo, quepor si próprio forneça conceitos de determinadosobjetos e, no caso de assim serem entendidas, sãoapenas conceitos sofísticos (dialéticos)” (KrV, B 672).

Os enganos dialéticos não provêm, por assimdizer, da própria natureza das ideias, senão que do

Ä Neste sentido, a questão dos limites da razão pura encontra-seestreitamente relacionada ao seu (razão) uso. Primeiramente,em seu uso constitutivo, os limites do entendimento humanosão naturais e necessários para a produção de conhecimentoslegítimos, sendo inevitável, portanto, frear todo e qualquerpretenso conhecimento que ultrapasse as balizas daexperiência possível. De outro modo, a razão pura, em seuuso especulativo, ultrapassa naturalmente os limites dosobjetos empiricamente condicionados, elevando-se até àtotalidade absoluta das condições, ou até ao totalmenteincondicionado. Neste último uso, as especulações racionais,mesmo extrapolando os limites do conhecimento humano, nãosão rejeitadas por Kant. Assim, “embora tenhamos de dizerdos conceitos transcendentais da razão que são apenas idéias,nem por isso os devemos considerar supérfluos e vãos” (KrV,

B 386), pois “ainda quando nenhum objeto possa por eles serdeterminado, podem, contudo, no fundo e sem serem notados,servir ao entendimento de cânone que lhe permite estendero seu uso e torná-lo homogêneo” (KrV, B 386).

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Desconsiderando os limites do conhecimentofenomênico, o uso constitutivo atribui realidadeobjetiva a simples ideias transcendentais. O errofundamental, que gera raciocínios dialéticos, está emtomar a realidade como se ela fosse uma coisa em si,não fenomenicamente determinada 7, mas sim conhecidaem sua totalidade. Deste pressuposto equivocado

× Considerar as coisas como se elas fossem dadas em si, totalmenteindependentes das condições subjetivas do entendimento humano,é partir de um pressuposto epistemologicamente equivocado, asaber: um realismo transcendental. Segundo Kant, o realismotranscendental é o modo de pensar que “considera o espaço e otempo como algo dado em si (independente da nossasensibilidade). O realista transcendental representa, pois, osfenômenos exteriores (se se admite a sua realidade) como coisasem si, que existem independentemente de nós e da nossasensibilidade e, portanto, também estariam fora de nós, segundoconceitos puros do entendimento.” (KrV, A 369). A esta concepçãoque, ao considerar as coisas em si, acredita conhecer oincondicionado (ou conhecer de modo incondicionado – semcondições prévias), Kant contrapõe o seu idealismo transcendental:“Compreendo por idealismo transcendental de todos os fenômenosa doutrina que os considera, globalmente, simples representaçõese não coisas em si e segundo a qual, o tempo e o espaço são apenasformas sensíveis da nossa intuição, mas não determinações dadaspor si, ou condições dos objetos considerados como coisas em si”(KrV, A 369). Altera-se assim o pressuposto fundamental doconhecimento, embora se possa admitir a coisa em si, ela não éacessível ao entendimento humano. O conhecimento possível ésomente fenomênico, limitado pelas condições transcendentais dasensibilidade e do entendimento. Para aprofundar esta questão, aobra El idealismo trascendental de Kant: una interpretación y defensa,

de Henry Allison, é esclarecedora e profunda. (Cf. Allison, 1992,p. 29-113).

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emanam todas as infindáveis disputas dialéticas: aoconsiderar a totalidade absoluta das condições como sendouma coisa em si, pretende-se conhecer o incondicionado,afirmando assim a realidade objetiva de simples ideias 8.Por outro lado, se a realidade for considerada como sendofenomenicamente limitada, torna-se evidente então que ametafísica não pode ser estabelecida como conhecimentopossível, pois o incondicionado não é empiricamenteintuído, estando, deste modo, totalmente fora dos limitesdo conhecimento humano.

Ora, mesmo não sendo princípios constitutivos,as ideias transcendentais, segundo Kant, (por seremnaturais e necessárias) possuem um uso legítimo eindispensável, a saber: o uso regulativo. Considerandoa metafísica apenas como subjetivamente necessária,as ideias possibilitam a organização do conhecimentonum todo sistemático (Cf. KrV, B 395), servindo assimcomo regulativas, orientando e organizandosistematicamente o conhecimento possível. Deste modo,não se pretende afirmar algo sobre a natureza doincondicionado, “mas como, sob a sua orientação,devemos procurar a constituição e ligação dos objetosda experiência em geral” (KrV, B 699). Assumidas comoprincípios subjetivos, as ideias tornam-se máximasregulativas. Estas, por sua vez, sem contradizer os limitesdo conhecimento possível, permitem alargar e orientaro entendimento em seu empreendimento constitutivo.Þ Segundo Kant, “os princípios da razão pura, em relação aos

conceitos empíricos, nunca podem ser constitutivos, porquenão pode dar-se-lhes nenhum esquema correspondente dasensibilidade e não podem, por conseguinte, ter nenhum objetoin concreto” (KrV, B 692).

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SUBJETIVO DE ORIENTAÇÃO DO PENSAMENTO

Orientar-se a partir de um princípio subjetivo,esta é a proposta kantiana atribuída ao uso regulativodas ideias transcendentais. Este, também, é o tema doopúsculo (1786) Que significa orientar-se no pensamento?

(opúsculo este muitas vezes desconsiderado, mas quemerece ser analisado com mais atenção). Segundo Kant,para orientar-se, em geral, é necessário um princípiosubjetivo de diferenciação, pois a noção de localização,que permite a orientação, só é possível a partir de umsentimento de diferenciação subjetiva. Neste caso, para“orientar-me geograficamente” devo, por exemplo, “apartir de uma dada região cósmica (uma das quatroem que dividimos o horizonte) encontrar as restantes,ou seja, o ponto inicial. Se vejo o Sol no céu e sei queagora é meio-dia, sei encontrar o Sul, o Oeste, o Nortee o Oriente” (Kant, 1987, p. 41). Porém, “para essefim, preciso do sentimento de uma diferença quantoao meu próprio sujeito, a saber, a diferença entre adireita e a esquerda. Dou-lhe o nome de sentimentoporque, exteriormente, estes dois lados não apresentamna intuição nenhuma diferença notável” (Kant, 1987,p. 41). “Portanto, oriento-me geograficamente emtodos os dados objectivos [...] só por meio de umprincípio subjectivo de diferenciação” (Kant, 1987, p.41). Sem este sentimento natural, as mudançasgeográficas poderiam constantemente desorientar oobservador, “em seu auxílio, porém, e de modo muitonatural, surge a faculdade diferenciadora estabelecidapela natureza” (Kant, 1987, p. 41). Esta, apesar das

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mudanças objetivas, orienta 9 o observador a partir deum princípio subjetivo, dando-lhe a noção espacial delocalização.

A questão central do opúsculo, contudo, não versasobre a orientação geográfica ou espacial, mas sim comoorientar-se no pensamento em geral, isto é, de modoteórico (Cf. Kant, 1987, p. 42). “Sem custo se podeadivinhar, por analogia, que isto deveria ser uma tarefada razão pura, dirigir o seu uso, quando, ao partir deobjectos conhecidos (da experiência), ela quiser estender-se para lá de todos os limites da experiência” (Kant, 1987,p. 42). A própria natureza da razão, enquanto sente10 aé Kant cita, ainda, outro exemplo de como orientar-se

geograficamente a partir de um princípio subjetivo dediferenciação. Segundo Kant, “oriento-me às escuras num quartoque me é conhecido, quando consigo agarrar um único objecto,cujo lugar tenho na memória. Mas aqui, evidentemente, nadame ajuda, a não ser o poder de determinação das posiçõessegundo um princípio de diferenciação subjectiva, pois não vejoos objectos cujo lugar devo encontrar, e se alguém, porbrincadeira, tivesse posto todos os objectos na mesma ordem,uns em relação aos outros, mas colocasse à esquerda o que antesestava à direita, eu não poderia encontrar-me num quarto emque todas as paredes fossem inteiramente iguais. Mas orientar-me-ia, logo a seguir, pelo simples sentimento de uma diferençaentre os meus dois lados, o direito e o esquerdo. É o quejustamente acontece quando, à noite, tenho de caminhar e detomar a direcção correcta em ruas que me são conhecidas, masnas quais não distingo agora casa alguma” (Kant, 1987, p. 42).

10 Todavia, Kant adverte: “a razão não sente; discerne a suadeficiência e, mediante a tendência para o conhecimento, realizao sentimento da necessidade. Passa-se aqui o mesmo que como sentimento moral, o qual não produz lei moral alguma, poisesta brota inteiramente da razão; mas o sentimento moral écausado ou produzido pela lei moral, portanto pela razão, namedida em que a vontade compelida e, no entanto, livre requermotivos determinados” (nota de rodapé) (Kant, 1987, p. 47).

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torna-se a orientadora de todo conhecimento possível.É, pois, “apenas o sentimento da necessidade(Bedürfnis) própria da razão” (Kant, 1987, p. 43), seuprincípio subjetivo de diferenciação, que pode orientara diversidade de objetos fenomênicos. Compreende-se, assim, como orientar-se a partir de uma noçãosubjetiva, algo como uma simples ideia transcendental:“orientar-se no pensamento em geral significa, pois,em virtude da insuficiência dos princípios objectivosda razão, determinar-se no assentimento segundo umprincípio subjectivo da mesma razão” (nota de rodapé)(Kant, 1987, p. 42). Considerando as ideiastranscendentais apenas como subjetivamentenecessárias, elas adquirem um imprescindível valorregulativo. O “sentimento da necessidade” (Bedürfnis)da razão, que naturalmente busca a totalidadeincondicionada das condições, é condição depossibilidade para a orientação do conhecimento numtodo sistemático e organizado.

Surge aqui [...] o direito da necessidade da razão,como fundamento subjectivo, para pressupor eadmitir algo que ela, com fundamentos objectivos,não pode pretender saber e, por conseguinte, parase orientar no pensamento apenas pela sua próprianecessidade, no incomensurável espaço do supra-sensível, para nós todo nimbado de uma densa noite(Kant, 1987, p. 43-44).

Ao projetar a totalidade absoluta das condições,a razão especulativa produz (naturalmente) oincondicionado, o qual é apenas (como se fosse) um

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ponto metafísico (focus imaginarius), totalmente forados limites do conhecimento possível, mas que “servetodavia para lhes conferir a maior unidade e,simultaneamente, a maior extensão” (KrV, B 672).Neste sentido, as ideias transcendentais, que sefundam na própria natureza da razão, sãoimportantíssimas para a determinação doconhecimento num todo sistemático, garantindosimultaneamente sua unidade e maior extensão (Cf.KrV, B 395). Para Kant, “se considerarmos em todoo seu âmbito os conhecimentos do nossoentendimento, encontramos que a parte de que arazão propriamente dispõe e procura realizar é asistemática do conhecimento, isto é, o seuencadeamento a partir de um princípio” (KrV, B673). Este encadeamento racional, porém, produzinevitavelmente ideias transcendentais. “Esta(s)Ideia(s) postula(m), por conseguinte, uma unidadeperfeita do conhecimento do entendimento, mercêda qual, este não é apenas um agregado acidental,mas um sistema encadeado segundo leis necessárias”(KrV, B 673). Não é possível afirmar que estas ideiassejam conceitos de objetos, pois elas estão além doslimites da experiência sensível, mas, como princípiossubjetivos de orientação, as mesmas possibilitam aunidade completa dos conceitos fenomênicosconhecidos, sem contradizer em nada os limites destedomínio.

Considerar as ideias transcendentais como sefossem entidades reais, tendo em vista seu aspectoregulativo, é, pois, utilizá-las de modo hipotético.

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fundamento em ideias admitidas como conceitosproblemáticos, não é propriamente constitutivo” (KrV,B 675), pois não pretende provar a realidade objetivada hipótese. É apenas uma hipótese racional, “suficientepara se tomar por verdadeiro em virtude de motivossubjetivos” (Kant, 1987, p. 49), com consciência desua insuficiência especulativa, mas fundamentada no“direito da necessidade” da razão pura. “Estanecessidade da razão relativamente ao seu uso teórico,que a satisfaz, nada mais seria que uma hipótese

racional” (Kant, 1987, p. 49), que projetada em ideiastranscendentais, torna-se “o poste indicador ou abússola pela qual o pensador especulativo se orientanas suas incursões racionais no campo dos objectossupra-sensíveis” (Kant, 1987, p. 49).

O uso hipotético da razão tem, pois, por objeto aunidade sistemática dos conhecimentos doentendimento e esta unidade é a pedra de toque

da verdade das regras. Reciprocamente, aunidade sistemática (como simples idéia) éapenas uma unidade projetada, que não se podeconsiderar dada em si, tão-só como problema,mas que serve para encontrar um princípio parao diverso e para o uso particular do entendimentoe desse modo guiar esse uso e colocá-lo emconexão também com os casos que não são dados(KrV, B 675).

A totalidade incondicionada não pode sertomada como real, mas ela deve ser apenashipoteticamente projetada como se fosse real, porémtendo consciência de sua simples idealidade

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transcendental. A hipótese metafísica 11, segundo Kant,não deve ser eleita com a pretensão de ser conhecida,porque seria algo indemonstrável, um uso“completamente arbitrário e cego” (KrV, B 800) dashipóteses. Por outro lado, se a hipótese12 for11 Assim como não se deve eleger uma hipótese transcendental

com a pretensão de ser conhecida, Kant nega, igualmente, o usode princípios hiperfísicos para suprir a falta de explicações físicas.“Para explicar fenômenos dados, não podem introduzir-se outrascoisas e outros princípios de explicação diferentes daqueles que,segundo as leis já conhecidas dos fenômenos, são postos emrelação com as coisas e os princípios dados. Uma hipótesetranscendental, na qual se utilizaria uma simples idéia da razãopara explicar coisas naturais, não seria por isso explicação alguma,pois aquilo que não se compreende suficientemente por princípiosempíricos conhecidos seria explicado por algo de que nada secompreende” (KrV, B 800). Segundo Kant, “o princípio de umatal hipótese serviria propriamente apenas para contentar a razãoe não para fazer progredir o uso do entendimento relativamenteaos objetos” (KrV, B 800), pois, ao estabelecer a hipótese, toda apossibilidade investigativa é vedada. “A ordem e a finalidade nanatureza devem ser explicadas por razões naturais e segundoleis naturais e, neste caso, mesmo as hipóteses mais grosseiras,desde que sejam físicas, são mais suportáveis do que uma hipótesehiperfísica, isto é, o apelo a um autor divino, que para este efeitose supõe” (KrV, B 801). Assumir uma hipótese metafísica na faltade explicações físicas, “na verdade, seria um princípio da razãopreguiçosa (ignava ratio) pôr de lado todas as causas, cujarealidade objetiva, pelo menos quanto à possibilidade, se podevir a conhecer graças a uma experiência progressiva, pararepousar numa simples idéia que é muito cômoda para a razão.Mas, no que respeita à totalidade absoluta do princípio deexplicação na série das causas, isso não pode constituir umobstáculo, relativamente aos objetos do mundo, porque sendoestes apenas fenômenos, nunca se pode esperar qualquer coisade acabado na síntese da série de condições” (KrV, B 801).

12 O uso hipotético das ideias transcendentais, analisadas comoprincípios subjetivos de orientação, deve considerar as ideias dealma, de mundo e de Deus como se fossem reais. [CONTINUA]

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então passa a estabelecer princípios regulativos, comose fossem linhas orientadoras, que guiam a razãoespeculativa em meio a enorme multiplicidadefenomênica. O conhecimento torna-se assim umagregado sistemático, no qual os princípios racionaisdão a unidade fenomênica, ao mesmo tempo em quepromovem a extensão do conhecimento da experiência.“Com efeito, um tal princípio abre à nossa razão,

[CONTINUAÇÃO DA NOTA 11] Neste sentido, respectivamente, cadaideia assume uma importante função regulativa: segundo Kant,“tomando as idéias como princípios, vamos primeiramente ligar(na psicologia), ao fio condutor da experiência interna, todos osfenômenos, todos os atos e toda a receptividade do nosso espírito,como se este fosse uma substância simples, que existe comidentidade pessoal (pelo menos em vida), enquanto mudamcontinuamente os seus estados, entre os quais se encontram os docorpo, mas como condições apenas externas. Em segundo lugar(na cosmologia), temos de procurar as condições dos fenômenosnaturais, tanto internos como externos, numa investigação jamaisterminável, como se fosse infinita em si e sem um termo primeiroou supremo, muito embora se não se possa negar que,exteriormente a todos os fenômenos, haja fundamentos primeiros,meramente inteligíveis, desses fenômenos mas sem nunca ospodermos integrar no conjunto das explicações naturais, porqueos não conhecemos. Por fim, e em terceiro lugar (em relação àteologia), devemos considerar tudo o que possa alguma vezpertencer ao conjunto da experiência possível, como se estaconstituísse uma unidade absoluta, embora totalmente dependentee sempre condicionada nos limites do mundo sensível, mastambém, simultaneamente, como se o conjunto de todos osfenômenos (o próprio mundo sensível) tivesse, fora da sua esfera,um fundamento supremo único e omnissuficiente, ou seja, umarazão originária, criadora e autônoma, relativamente à qualdirigimos todo o uso empírico da nossa razão, na sua máximaextensão, como se os próprios objetos proviessem desse protótipode toda a razão” (KrV, B 700 – B 701).

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aplicada ao campo das experiências, perspectivastotalmente novas de ligar as coisas do mundo segundoleis teleológicas e, deste modo, alcançar a máximaunidade sistemática” (KrV, B 714 – 115).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Analisando a origem e a consignação das ideiastranscendentais, pôde-se visualizar o seu uso legítimo,bem como o uso indevido destes conceitos metafísicos.Quando consideradas como conhecimento possível, asideias transcendentais extrapolam os limitesfenomênicos e (inevitavelmente) acabam produzindocontradições radicais. Não obstante, quando as mesmassão consideradas apenas como princípios subjetivos,estabelecidas pela necessidade da razão especulativa,estas assumem uma importantíssima função regulativa,na medida em que serve como princípios subjetivospara a orientação do pensamento. Muito embora nãopossuindo qualquer validade objetiva (epistemológica),senão que uma fundamentação subjetiva, as ideiasmetafísicas não podem ser simplesmente eliminadaspor estarem situadas para além de todo conhecimentopossível. A sua eliminação ou negação, por razõesepistemológicas, causaria um tremendo prejuízo àprópria epistemologia, tendo em vista que todo oconhecimento possível encontra-se orientado eorganizado através das ideias transcendentais.Portanto, o uso regulativo de tais ideias, comoprincípios subjetivos de orientação do pensamento, fazjus à sua origem natural, produzidas mediante anecessidade especulativa da razão pura.

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