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ERNANI ROSAS (1886-1955) Ernani Salomão Rosas Ribeiro de Almeida, nasceu em Desterro, Florianópolis em 31 de março de 1886, mas viveu no Rio de Janeiro desde os 3 anos de idade. Chegou a entrevistar-se com poetas como Luiz de Montalvo, Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro, mas sua poesia é considerada simbolista, tardia. Viveu em Nova Iguaçu, onde morreu em condições difíceis, com o agravante da discriminação por ser gago e homossexual. Poeta em certo sentido hermético, de inspiração mallarmáica. Chegou a ser redescoberto e cultuado pelos concretistas paulistas na busca de uma paideuma nacional. Simbolista marginal Já se disse, e foi dito por um inglês, que os escritores menores são os que realmente representam o caráter e a natureza das suas respectivas literaturas: os gênios literários são execepcionais em todos os sentidos da palavra, inclusive e sobretudo na "escola" a que pertencem ou em que se vêem incluídos. Em outras palavras, o QI de cada literatura mede-se pelo mínimo, não pelo máximo denominador comum. Daí o interesse algo vicioso e, em todo caso, compensatório, na recuperação dos marginais e esquecidos, suposta ou realmente injustiçados na memória coletiva: é um esforço subconsciente para equipará-los aos maiores, assim restabelecendo a homogeneidade do tecido literário. Nessas perspectivas, o paradoxo está em que todas as "escolas" são, na realidade, compostas dos menores destinados ao abandono e à indiferença da posteridade, ato de crueldade e justiça, não só historiográfica, mas estética. Numa escola de si mesma periférica como o simbolismo, permaneceram justamente as exceções, os escritores representativos que se chamaram Cruz e Sousa e Alphonsus de Guimaraens, dentre os 131 repertoriados com empenho totalizante e exaustivo no livro clássico de Andrade Muricy (Panorama do movimento simbolista brasileiro. 3.ª ed., 2 vols. São Paulo: Perspectiva, 1987). No pelotão de marginais e excêntricos com relação ao núcleo vital do movimento (aliás "reconstruído"

Ernani Rosas

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ERNANI ROSAS(1886-1955)

  Ernani Salomão Rosas Ribeiro de Almeida, nasceu em Desterro, Florianópolis em 31 de março de 1886, mas viveu no Rio de Janeiro desde os 3 anos de idade. Chegou a entrevistar-se com poetas como Luiz de Montalvo, Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro, mas sua poesia é considerada simbolista, tardia. Viveu em Nova Iguaçu, onde morreu em condições difíceis, com o agravante da discriminação por ser gago e homossexual. Poeta em certo sentido hermético, de inspiração mallarmáica. Chegou a ser redescoberto e cultuado pelos concretistas paulistas na busca de uma paideuma nacional.   

Simbolista marginal 

 

Já se disse, e foi dito por um inglês, que os escritores menores são os que realmente representam o caráter e a natureza das suas respectivas literaturas: os gênios literários são execepcionais em todos os sentidos da palavra, inclusive e sobretudo na "escola" a que pertencem ou em que se vêem incluídos. Em outras palavras, o QI de cada literatura mede-se pelo mínimo, não pelo máximo denominador comum.

Daí o interesse algo vicioso e, em todo caso, compensatório, na recuperação dos marginais e esquecidos, suposta ou realmente injustiçados na memória coletiva: é um esforço subconsciente para equipará-los aos maiores, assim restabelecendo a homogeneidade do tecido literário. Nessas perspectivas, o paradoxo está em que todas as "escolas" são, na realidade, compostas dos menores destinados ao abandono e à indiferença da posteridade, ato de crueldade e justiça, não só historiográfica, mas estética.

Numa escola de si mesma periférica como o simbolismo, permaneceram justamente as exceções, os escritores representativos que se chamaram Cruz e Sousa e Alphonsus de Guimaraens, dentre os 131 repertoriados com empenho totalizante e exaustivo no livro clássico de Andrade Muricy (Panorama do movimento simbolista brasileiro. 3.ª ed., 2 vols. São Paulo: Perspectiva, 1987). No pelotão de marginais e excêntricos com relação ao núcleo vital do movimento (aliás "reconstruído" postumamente, mais que atuante no seu tempo), Ernani Rosas (1886-1954) foi solitário e marginal (palavras de Andrade Muricy) e, por isso mesmo, poeta de exemplar fidelidade aos lugares-comuns estilísticos da escola, em particular no que se refere ao vocabulário, que foi, de fato, a característica identificadora dos seus processos, porque, na técnica, todos continuaram parnasianos, sem excluir o paradigmático Cruz e Sousa

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(Ernani Rosas. História do gosto e outros poemas. Texto, int. e notas de Ana Brancher. Bibliografia por Iaponan Soares. Florianópolis: OFSC, 1997).

Iaponan Soares e Danila Carneiro da Cunha Luz Varella promoveram, em 1989, a edição comemorativa do centenário (Poesias. Florianópolis: FCC), situando-o na sua constelação literária e estabelecendo o que se pode ter como texto canônico e definitivo, cabendo perguntar se a recuperação dos inéditos acrescenta qualquer coisa à sua memória de escritor. A tendência instintiva nesses casos é supervalorizar a importância, a qualidade e o interesse dos tesouros encontrados, como aconteceu com a obra de Sousa Andrade e Pedro Kilkerry, que, de resto, nem de longe foram ignorados pela história literária contemporânea e crítica posterior.

É possível que Ernani Rosas deixasse nas gavetas o que decidira impróprio para publicação, textos quase sempre imperfeitos e desleixados, como a repetição sistemática da síncope "p'la" e "p'lo" pelas aglutinações prepositivas correspondentes. Chegar à medida certa do verso por meio da mutilação da palavra era processo habitual em Castro Alves, que, para celebrar a beleza da amada, dizia vê-la "co'a co'a" dos cabelos, recurso igualmente freqüente em Ernani Rosas: "Como uma C'ruja às horas do sol-poente", ou "Quando a certhora o luar é só doçura" o que revela, pelo menos, dureza de ouvido numa escola que, acima de tudo, buscava a musicalidade.

Vendo em Ernani Rosas a "encarnação perfeita do poeta simbolista do começo do século", Andrade Muricy destacava que "a sua linguagem habitual, e mesmo familiar, é repleta dos vocábulos típicos, de ressaibos do ritualismo e do hermetismo característicos." Foi, realmente, um epígono na constância com que obedecia aos cânones convencionais. Imerso no "oceano do símbolo", era uma "sobrevivência e uma ruína sombria do Decadentismo", perfil tanto mais exato quanto os seus poemas representam graficamente, por assim dizer, o desvanecimento da escola enquanto presença literária efetiva.

Parte substancial da benevolência com que o lemos (e com que o lia Andrade Muricy) resulta da simpatia que nos despertam as condições infelizes em que viveu: "A obra desse humilde poeta, sumido no subúrbio, e que longe, pelos seus correspondentes portugueses foi tomado a sério, será uma obscura nebulosa, porém que se percebe trespassada por iluminações que não desmaiam com o tempo, e vive de uma vida misteriosa." Na espiritualidade simbolista e respectivo idioma, ele está mais perto do lirismo melancólico de Alphonsus de Guimaraens que das fulgurações sinfônicas de Cruz e Sousa, tendo, embora, recebido deste último, escreve Iaponan Soares, "sua primeira revelação literária. [] Aquele conterrâneo de quem o pai falava com tanto carinho nos serões domésticos, era na verdade um ser superior, inquebrantável e límpido, que lhe despertava profunda simpatia."

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Gago, homossexual e pobre, escreve Ana Brancher, "apreciando sobremaneira o álcool e provavelmente o ópio", Ernani Rosas encarnou a figura romântica do poeta maldito, aliás paradigmático no universo simbolista. Mesmo as influências literárias, inclusive maliarmeanas, que os tratadistas se esforçam por identificar nos seus versos, serão, creio eu, mais coincidências de época que repercussões de leitura, se não forem meras congeminações livrescas. Afinal de contas, todos usavam o mesmo dicionário, já então transformado em dialeto comum. 

 

 

REINO DESEJADO Peregrino do Sonho errei Caminhosque iam ter às Portas da Alegria.Poeta e Marujo naufraguei sozinhoe a minha Nau fora a Melancolia. Meus olhos não beijaram a luz da Glórianem meus lábios chegaram a balbuciar,quero encerrar-me em vós Portas da inglóriaNoite, que é Mar sem-fim a serenar! Onde as almas na febre de seus lábiosnunca chegam a tocar para matá-laNa insaciável Ebriez dos lábiosA Olhar amortecendo, sonha e cala E como Solitário a Tempos-Idosnosso frescor de lábio sossegadoos Antigos Caminhos percorridosPeregrino! Da Morte no vencer! 

        CREPÚSCULO Toda existência, é ocasional regresso...Ali, a sombra do homem é grave e austera,recai a tarde em cisma, à noute o esperasossega a ceifa célere dos músculos... É efêmero o viver do caminheirofalsa visão do sonho p´la atmosferana demência da enxada do coveiroque enterra as ruínas, mais as primaveras!... Vida e ânsia vibrando num só versono transporte da serra ao éter puro,é contato genial com o Universo... Bruxuleia a minguar em céu escuro,porque não crê, ficando submerso...entre o oceano e o Nirvana do futuro!...

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                     CONVALESCENTE                    Convalesço dos males da Quimera                   partindo sempre de um desejo rude,                   a malograda sorte da galera                   que aportar com delírio nunca pude...                    Do amor, nada pretendo com veemência                   pela vida misérrima que arrasto!                   Eu sinto o frágil coração tão gasto                   às futuras e rudes penitências...                    Desconheço o rigor dessa ironia

Quando o sol tomba na água e eril centelhasem n´a apagar em fulva alegoria... Amo a noute, amo o espelho do Universonunca a chaga de um Deus que se avermelhano sangue que palpita no meu verso!...  TÂNTALO DA DOR Maldita, seja a Arte incompreendidae a taça do Ideal que nos lacera...os vinhos de Luxúria e da Quimerae a báquica eclosão da Luz dorida! dos tântlos letais e da beleza,da dúvida do mundo em meu pensar...os ciclos turvos de íntimas tristezasque nunca mais se vão para o Luar! Eo meu cismar romântico e amoroso,é como um rio fundo rumoroso,cheio de sombras e de estrelas d´oiro... P´la maldição dessa sinistra incúria,maldiz ao fel da vida, como agouro...Maldita seja a serpe das Luxúrias!  VISÃO Agoirenta visão da luz gelada!Que mistério possui tua Presença?Quando desces à terra anuviada,Vais a Jesus, a Deus pedir licença!... E arrebatas as almas desgraçadasàs geenas do Mal, como sentença!e a mim, me levarás pela alvoradade tuas vestes lúgubres – e descrença!... Louca hiena da fé bebes-me a vida,na fria tentação do teu segredo!

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no Tântalo falaz, como bebida... Cerras-me os olhos, gelam-me teus dedos...arrebatas-me o corpo a vão degredonum só beijo de morte apetecida!...  A MORTE  Sou dos ventres a lúbrica bacante,a pantera em meus ócios de veludo:fascino os corações, que enervante,no languir dos aromas, sobretudo... Serei do teu Amor, homem, o quebranto,talvez, a morte em minha garra adunca,sou bizarra no amor, não vejo nunca:o que possa na dor causar espanto! Venho meu corpo à alambra do oriente,Lascivo riso exóticos perfumes...Encarno a mancenilha em forma ingente! Sou a sombra do Amor luxuriante.,Inebrio as cabeças dos amantes...Nunca amei, nem de mim não tive ciúmes!  SALOMÉ Ó Bailarina, oh! mariposa inquieta!Aljofrada da gema de uma tarde.És nume, Salomé, ágil goleta...dentre o incenso da sombra que oura e arde... Espectro errante de um cometa absortoapós a bacanal "saturniana"!...(onde os nardos têm ócio do "Mar-Morto"!)e ergue-se a lua irial, sibariana... Chovem do céu os raios da nova aurorasobre seu corpo d'âmbar colmadoda via Láctea que su'alma olora... Numa auréola de Luz e alegoriaEsvaindo-Te em Sonho musicado,para a glória do "Mal" que a irradia...  LÚCIFER No espelho encantado do destinoMais de uma vez me vi transfigurado:As horas tinham timbre cristalinoE erravam opalizadas no passado... Não me fato de olha-las, no mistérioTênues e loiras como a corda flébil

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Do violino outonal do poente aéreo,Que amortece em lilás num corpo débil... Não me farto de olhar, erro inconsciente...O solo é de diamante e o espaço um astro...Vivem mármores d’alma no poente! Foge-me a luz e se antecipam as horas,No lago azul há cisnes de alabastro,E o espelho em que me vi é tudo auroras!... Perdi-me... Toda uma Ânsia..."Perdi-me... toda uma ânsia me revelasombra de Luz em corpo de olor vago,a saudade é um passado que cinzelaem presente, a legenda desse orago". "Errasse em densa noite de beleza,pisasse incerto, um falso solo de umbra...sonho-me Orfeu... o Luar, que me deslumbra...é marulho de luz na profundeza!..." Toda a alma do azul esvai-se em lua...nimba-lhe a face um crepe de Elegia...É alvor do dia numa rosa nua, que as minhas mãos cruéis sonham colher...mas ao tocar desfolha-se mais fria,que a sombra de meus dedos a tremer... 

  O SONHO-INTERIOR

O Sonho-Interior que renascesteera o Poema dum Lírio do Deserto,o vinho de Outras-Almas que bebestefatalizou o meu destino incerto...

Depois por Ti em Sombras de degredoencerrei a minha alma desolada,tive a tua visão crepusculadana Beleza fugaz do meu segredo...

Perdeu-se-me ao Sol-Pôr teu rastro amado!qual Cipreste, no Poente agonizado,— na demência autunal duma Alameda...

Velaram-se Sudários teus Espelhos...ante o cerrar do teu Olhar de seda,que era um descer de lua em cedros velhos.

ALUCINA-TE A COR

Alucina-te a cor e a calmaria

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desse oceano fulgente em que demoraso olhar em sonho a germinar auroras...entre a quimera e a líquida ardentia...

Pareces caminhar magnetizada,sob um chover de estrelas e de rosas...pelo florir da Luz quimerizadasurges de um mar de nuances misteriosas...

Como ilha d'aromas e de gases,esparsa, no silêncio, que desperta...o lírio de teu gesto, entre lilases!

Acenando do azul do meu assomo...ou d'aérea visão que à luz deserta,ao mágico poder que vem dum gnomo!...

SOMBRA IDÍLICA 

I

Amplo mistério, abraça meu segredo,floresce num delírio de inconscientee a alma, que envelheceu pelo degredo,alheia-se a sonhar convalescente.

Para mim, tudo num Luar se estagnou,como um adeus de cinza esmorecendoem tarde que minh'alma se evolou...num crepúsculo em seda amortecendo.

A luz é uma ante-sombra, pela tardena envolvência dum sonho de acordar...embolada na voz que se oira e arde...

Ó Alma, que és sol pálido de Lua!sou o idílico irmão do teu cismar...que é meu rastro de branca Ofélia nua.

II

Ó Ninfas ao Luar da noite aindaabraçando a ansiedade da minh'alma...idílica e lunar, que em flor se alindano abismo d'água clara da voss'alma...

A hora trespassando antiguidade,faz-se ausência, etereal melancolia...canção d'aroma as formas da saudadeque passa lenta como a luz do dia...

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Inquietação de tarde sibilinaacorda-te, ó Luar adolescente...pela noite imperial da minha sina!

Adormeci... pela manhã amigadespertei sombra vã de antigamente,vi-me passar no Espelho d'hora antiga...

SaloméÓ Bailarina, oh! mariposa inquieta!Aljofrada da gema de uma tarde.És nume, Salomé, ágil goleta...dentre o incenso da sombra que oura e arde... Espectro errante de um cometa absortoapós a bacanal "saturniana"!...(onde os nardos têm ócio do "Mar-Morto"!)e ergue-se a lua irial, sibariana... Chovem do céu os raios da nova aurorasobre seu corpo d'âmbar colmadoda via Láctea que su'alma olora... Numa auréola de Luz e alegoriaEsvaindo-Te em Sonho musicado,para a glória do "Mal" que a irradia...

  Hora da InsôniaNoite sem termo! A Lua erra em delírio,Balbucío palavras sem querer...Cismo no olor vernal d'alma de um lírio,E sou memória d'algo a transcender...

Sofro-lhe a ausência. A carne é meu martírio,Ressurjo... Amo a visão do meu Não-Ser!Todo meu corpo é amorfa névoa--círio...Volúpia de um perfume a se perder.

Cismo na errante estrela, que deslumbraO vaso de teu ser dentre o relentoNum murmúrio de fonte que ressumbra!

Sou o olfato! Amo as horas de um jardim...Sou uma vaga sonora em pensamento:Eflúvio lirial que vens a mim!...

 Rimas à Lua:Dorme em lascivo leito, reclinada...Repontando de Astros e fogueiras,Ateias a coivara prateadaDos caminhos desertos, pegureira...

Lua! Da meia noite, solitária,Urna errante p'la nave do infinito...Cravas o lácteo incêndio funerária,

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Às montanhas geladas de granito...

Peregrinando em tua marcha hianteE exausta de fadiga em água amaraBuscas o mar, o oceano o teu amante...

Artista, cuja tela, ao ver-Te aclara!N'esse sonambulismo inebriante...Em suas vagas verdes Te enlaçara...

 LúciferNo espelho encantado do destinoMais de uma vez me vi transfigurado:As horas tinham timbre cristalinoE erravam opalizadas no passado...

 Não me fato de olha-las, no mistérioTênues e loiras como a corda flébilDo violino outonal do poente aéreo,Que amortece em lilás num corpo débil...

 Não me farto de olhar, erro inconsciente...O solo é de diamante e o espaço um astro...Vivem mármores d’alma no poente!

 Foge-me a luz e se antecipam as horas,No lago azul há cisnes de alabastro,E o espelho em que me vi é tudo auroras!...

 Perdi-me... Toda uma Ânsia..."Perdi-me... toda uma ânsia me revelasombra de Luz em corpo de olor vago,a saudade é um passado que cinzelaem presente, a legenda desse orago".

 "Errasse em densa noite de beleza,pisasse incerto, um falso solo de umbra...sonho-me Orfeu... o Luar, que me deslumbra...é marulho de luz na profundeza!..."

 Toda a alma do azul esvai-se em lua...nimba-lhe a face um crepe de Elegia...É alvor do dia numa rosa nua,

 que as minhas mãos cruéis sonham colher...mas ao tocar desfolha-se mais fria,que a sombra de meus dedos a tremer...

 O Sonho-InteriorO Sonho-Interior que renascesteera o Poema dum Lírio do Deserto,o vinho de Outras-Almas que bebestefatalizou o meu destino incerto...

 Depois por Ti em Sombras de degredoencerrei a minha alma desolada,tive a tua visão crepusculada

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na Beleza fugaz do meu segredo...

 Perdeu-se-me ao Sol-Pôr teu rastro amado!qual Cipreste, no Poente agonizado, —na demência autunal duma Alameda...

 Velaram-se Sudários teus Espelhos...ante o cerrar do teu Olhar de seda,que era um descer de lua em cedros velhos Depois de te Sonhar...Depois de Te sonhar Mistério idoe .seguir-Te e ouvir-Te em Hora leda,de vesti teu Ser a raios de Astro e Olvido,de Antigüidade o teu perfil de Moeda.

 Parei depois de haver corrido tantoe amado e urdido Horas de Sonho-Asa?constelada de azul fulgor de brasapor Tardes enlaivadas de quebranto...

 Sonho em Cristal teu corpo de Champagne?mansa luz que morrendo sem alarde,não há sol de crepúsculo, que a estranhe...

 Acordas do teu Sono, para Mim!nos meus olhos à sombra, para a Tarde...por que surges em Sonhos num jardim? Noite de ValpurgisNáufrago brigue do Éter e do Sonho,Derramando um clarão tíbio e suicida...O sol acena um áureo Adeus à VidaE doura a imensa estrada ante-sonho!

Âmbito argivo em mármore de estranhaVisão de torres e cruzes brancas,Onde passaram adejos de asas francasDas aves, se o Luar neva à montanha...

Gotas nitentes pela luz douradasSão pérolas que um mar verteu um dia,Junto às areias gris das alvoradas!

Exaurindo-se à Luz dentre a agonia,Difunde-se qual tule em nuvem alada...Para voar a tua fantasia!...

 Penumbra do LuarNoite de lua e noveiro, argenteDifunde-se o luar pela folhagem...Com a mesma languidez vaga e dormenteDa chuva, quando cai sobre a ramagem...

Como a música ao longe e som dolenteRecorda todo esse abandono... E a aragemQue passa, agita o olor suave e florenteVindo das messes, da vernal paisagem...

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E o luar cresce através de ermo arvoredo,Noite chuvosa e triste a Lua ateia...Fluida névoa de luz... Sonho... Segredo...

Ao ressurgir das coisas na saudadeQue o silêncio evocou... E à luz ondeiaErra na morta e fria claridade...

 SonetoVai alta a lua lírica e silente,Toda paisagem em sonho se embebeu!Narra a si-mesmo o eco, vagamente...Paira a auréola da luz dentre os céus...

Parece madrugada! Um galo canta...Uivam de tédio os cães, não chega o dia![pois] se o Luar turvou minha alegria...E a noite toda de uma mágoa santa!

Outono! Vão-se as horas... E lacrimosaÉ tão triste a vereda e a própria casa...Traz saudades da vida religiosa!

Cada vez mais o luar neva e cintila...Seixos em pranto à flux o areal abrasa,E a água por ser ceguinha erra e vacila...

SOMBRA IDÍLICA (I)

Amplo mistério, abraça meu segredo,floresce num delírio de inconscientee a alma, que envelheceu pelo degredo,alheia-se a sonhar convalescente.

Para mim, tudo num Luar se estagnou,como um adeus de cinza esmorecendoem tarde que minh'alma se evolou...num crepúsculo em seda amortecendo.

A luz é uma ante-sombra, pela tardena envolvência dum sonho de acordar...embolada na voz que se oira e arde...

Page 12: Ernani Rosas

Ó Alma, que és sol pálido de Lua!sou o idílico irmão do teu cismar...que é meu rastro de branca Ofélia nua.

A LUZ QUE SOBRE SI...

A luz que sobre si orquestra em doido hinário.Ébria de sonho e cor, na dança a prosseguir,É toda etéreo luar, que a vela num sudário,Sortílega no anseio, heráldica a florir...

Insônia a macerar-lhe a carne enlanguescente,Suscita-me a lascívia o seio virginal!Aclara-lhe o esplendor... O corpo, ópio-indolente,Oscila, desfalece ao meu desejo irreal...

Angelizada voz numa noite em que os lisesFloriam pelo azul... na lenda humanizou-se,Na insídia dum amor a distender raízes...

Lúgubre agonizava à sombra da cisterna:E uma voz de perdão, mais rude do que doce,Parecia falar pela ilusão eterna!...

A GLÓRIA A CONSTELAR...

A glória a constelar de vitória em vitória,Como um poente, que à luz anoiteceu mais cedo,E fora a cravejar de rubis a memóriaDo teu cio sangrento às lajes dum degredo...

Sinto-me a errar n'alguém, da sombra indefinida,No esquecer dos teus pés, assim como um segredo,A bailar como o olor na névoa adormecida,

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Duma dança que tem espasmos como o medo!

No interlúnio da noite, incompreendido e lindo,Como um sonho febril, pela carne perdido,Que pelo olhar sem fim vai friamente ungindo...

Pelo fluido lilás dessa penumbra intensaA silhueta de alguém, num gesto adormecido,Caminha pelo azul que as estrelas incensa...

ALUCINA-TE A COR

Alucina-te a cor e a calmariadesse oceano fulgente em que demoraso olhar em sonho a germinar auroras...entre a quimera e a líquida ardentia...

Pareces caminhar magnetizada,sob um chover de estrelas e de rosas...pelo florir da Luz quimerizadasurges de um mar de nuances misteriosas...

Como ilha d'aromas e de gases,esparsa, no silêncio, que desperta...o lírio de teu gesto, entre lilases!

Acenando do azul do meu assomo...ou d'aérea visão que à luz deserta,ao mágico poder que vem dum gnomo!...

QUEM ÉS TU, LOBA?

Quem és tu, loba ingente? que me buscase atalhas meu sofrer incerto a Luz...

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e a estrela, que eu ideei no céu, me ofuscas...no entanto, est'alma triste inda reluz...

Nuvem extinta do sol... já, na alvorada...foste a morte, que as horas escureceaguardando de lâmina doirada,o precursor do Sonho que floresce...

Inesperadamente, entardeci!como um castelo à sombra de um cedral,pelo meu coração tu'ânsia ergui.

Senti-Me arrebatar por teus segredos,escravo do teu Elo imaterial...Coluna envolta à vida dos teus dedos...

OUTUBRO, O SOL...

Outubro. O sol em fuga d'oiro parte!E a paisagem parece que morreu.Todo um temor procura-me afastar-te...Dentro de mim tu'alma floresceu.

Cerrou-se teu palácio em brônzeas portas,Teus repuxos cessaram de se erguer...Há um estranho rumor a coisas mortas,Já as fontes pararam de correr.

Guardo um rumor de folhas na alameda,Gela-me a paz da tarde pelo outono...Anda um tecer de luz a oiro em seda!

Sonho-te ausente... ou antes recolhida,Vejo teu ser passar pelo abandono:Como uma sombra errante em minha Vida.

Page 15: Ernani Rosas

À TARDE O POENTE DESFIA...

À Tarde o Poente desfiaTopázios com filigrana,Vindo ouvir a melodiaDos vasos de porcelana!

Castelos do ocaso, esfinge,Em cinza d'oiro, penumbra!A Tarde em lírios nos cingePara o longe que a deslumbra...

Fulgores de rubra sedaNa dolência carmesimQue vai do poente à alameda...

Cintilos d'Astros, Poema!Diluir d'Opalas, Jardim...De Salomé: o Diadema!

QUIMERA

Nossa cabeça é uma divina furna,onde sonhos edênicos adejamantes que os olhos da nossa alma vejamabandonar do nosso corpo a urna.

Ela é a falena do irreal casuloda nossa carne enferma de beleza...voltando à realidade com tristeza,dá do seu sonho para a vida um pulo...

Mas, o mocho do Tédio, que negreja

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a curva azul da noite que nos beijaa afastada paisagem da ilusão...

faz a alma voltar à realidade,e olhar o paraíso com saudade...da nossa astral, cruel decepção!...

TÍSICA

A saúde falhou... desiludida,Em seu jardim de Além concebe o olor...p'la inércia de uma tarde indefinidaa custo segue para o umbral transpor!

Não maldigas a sós meu doce amor,não maldigas da carne e do sentir...a vida é vã, como delgada flor!tem espasmos de aroma no florir...

Passou metade-luz por noite escura,presença espiritual dando-se a Deus...requeimando-se às chamas das alturas...

A própria natureza lhe mentiraera sombra da vida que surgira...sua alma triste pertencia a Deus!

LÁGRIMA!...

Ó lágrima nitente de MariaEstrela d'alva a cintilar tremente,És a divina lágrima d'um crenteNa fervorosa prece da agonia.

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Rolas de olhos trêmula e frementeCelestial, misteriosa e fria,Caias talvez na pétala sombriaDum olímpico lírio alvinitente.

É tão divina, mística e singela...Parece feita de luar ou neveOu do estilhaço duma branca estrela,

Na flor silvestre de celeste alvuraA pequenina lágrima tão breveSe congelara para sempre pura!...

LANGUIDEZ OUTONAL

Minha volúpia é como uma moléstia estranha...— Inverno. Vento forte, névoa no entardecer;Eu sei que um mal qualquer dentro de mim se entranha,Embora sinta, enfim, desejo de viver.

Já invejei, Senhor! o cimo da montanha.Um coração, que parte, outro logo a sofrer;Tudo quanto se esvai nessa horrenda campanha,Nesse estéril lutar, nesse aziago prever.

A dolência abateu-me! Em mim, o que ainda existeDe apagado e sublime, unicamente, é a sombraDe um sol crepuscular ou de um espírito triste!

De mim há de nascer o Sonho de Amanhã...Nesse prolongamento hibernal, que me agüentaDe um outono vermelho, aos beijos de Satã.

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AO POENTE

Gosto de ver na síncope do diaA mistura de tintas do poente,O sangue vivo, violento e quenteDo sol, n'uma medonha hemorragia.

A claridade extingue-se na enchenteDa noite, de uma atroz melancolia,Mas, na curva rosada inda sorriaA luz do fim da tarde no ocidente.

Pirilampos azuis, misteriososSaem das moitas frescas, perfumadas,Como os astros por Céus silenciosos...

E, por entre o salgueiro de uma cova,Surgia além, das fúnebres moradas,A cimitarra de uma lua nova.

MISTICISMO DO OUTONO

Ó meu jardim de flores e quimeras,Porcelana, que à luz é carne acesa...Ó Sol d'oiro fluido das esferas,Doces cismas d'Além para a tristeza...

Bosque, onde a quimérica belezaPasseia, à luz cerâmica das Eras:Cuidando ver nos Astros a luz presa,O moribundo encanto — as primaveras!

Vaso de Eucaristia... Ó bizantinoCastelo, onde a Graça d'Ela habita,Furtando-se aos desejos vespertinos!...

Page 19: Ernani Rosas

Ó Silêncio da noite erma no Eufrates...A florir arcangélica e infinitaNum pôr-de-Sol de flores escarlates!...

ESPIRITUALISMO (a Miguel Monteiro)

Carne que foste aroma e primaveraImpregnada de Volúpia e Dor;Onde as lavas quiméricas do amorTransformaram-Te em Alma de Pantera

Foste corpo de rosa n'outra Era,Infância embalsamada n'um Sol-pôr:Teclas violando músicas sem cor,Beijos frios que são pura quimera!...

Misticismo de graça e de abandono.És o dia a findar-se e a mágoa vence-o:Num desconforto d'horas pelo Outono!...

És o arcanjo do bem revelador!Névoa a dormir nos braços do Silêncio:Como adormece no meu peito a Dor!...

BOÊMIA

Adeus, flor da Boêmia! Adeus ó minha amante!Eu tenho a sensação da queda em pleno abismo!A minha vida foi, toda ela, em romantismoPresa à taça do vício e o amor d'uma bacante.

Adeus ó Natureza eterna e fascinante!Foi-se-me a vida um sonho, à luz do Idealismo...

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Eu sinto-me afogar no horror do paroxismo!...Hoje sigo devasso um coração constante.

Meus amigos, adeus! Adeus, minhas tabernas!Adeus, taça de vinho! Adeus, magos cantares!...E a guitarra a chorar nas melodias ternas

Traz-me recordações das noites do passado...— Noites que em pleno azul lascívias estelaresCantavam ao meu Amor a luta do meu fado!...

VERSOS

Ó capitosos, delirantes beijos!...De aromáticos lábios macerados;Mornos beijos de meigos namorados,Em lúbricos, harmônicos harpejos.

Voluptuosos lábios encarnados,Na febre intensa de carnes e desejos;Beijos de Amor em lôbregos solfejosBelos, sutis aromas abrasados.

Perfumosas romãs de rubros lábiosEm fogo, em gelo, d'um supremo gozo,Furtando, às vezes, beijos em ressaibos.

Beijos, lembrando todo um céu aberto,Abrasam-se no riso luminosoDum lúcido verão, que vem tão perto!...

APARIÇÃO

Eu sou aquela Sombra aérea e antiga

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— Aparição das horas vesperais,que um perfume ideal de rosa amigadivinizou-A para vós mortais.

Eu sou aquela Sombra aparecidanum crepúsculo lívido e outonale fui divina luz amanhecidanum ser de carne etérea e espiritual!...

Sentinela do luar numa alamedadei-lhe meu corpo aéreo de Penumbra,fui a Alma dum Cisne amando Leda...

Fui essa Ofélia de jardins irreaise como névoa iriada que se alumbra,sangra o espectro de Sol dentre Vitrais!...

O AMOR NO IRREAL

Irrealizei-Me Luz de teus baços Vislumbresmorrente d'Oiro à Tarde em Ânforas, Olência...e como realizar-se em sonho ou Aparênciaem doido sortilégio a iluminar vislumbres

Nunca realizar-Me, ao menos voz na Noite...Olor que feneceu na sombra do que fui!acordo-Me Saudade em nostálgico açoitede incerta em tentação no encanto que possui

Abre-se dentro em Mim, como em falso ambienteÁgua sinistra e azul ofelizada em Lua!Todo Eu, Alma e temor por jardins d'Oriente...

Minh'alma se evolou em gestos de Odorar-Te!teu corpo convalesce na minha Dor mais crua

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no Inexo da cor por nunca realizar-Te.

CREPÚSCULO

A sombra é Deus — Penumbra d'Ópio ascensa!a esmorecer num sol de ocaso exangue;diluências de luz, que ungindo incensaem mãos de espectro úmidas de sangue.

Noite d'Alma que avulta em sombra densaas árvores à beira d'algum mangue,num dilúvio de cinzas, na descrençadessa tarde de túnicas em sangue...

Dá-lhe um ar roxo à anímica miragem,é monges d'água errante de nascentesonhando com carenas em paisagem!

Soturno em luzes tristes a cismarsobre o azul Adriático ao Sol-poente,que sonha ver Palácios sob o mar!...