Eros e Psique Em F Pessoa - Rodrigo Faleiro

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

    FACULDADE DE LETRAS

    Eros e Psique em Fernando Pessoa

    Uma releitura moderna

    do Mito de origem grega

    Rodrigo da Fonseca Faleiro

    Monografia apresentada disciplina Pesquisa

    em Literatura, no segundo semestre de 2010

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    ndice

    - Introduo................................................................................................................: 3

    - Captulo 1

    1.1. Mitologia e pensamento............................................................................................: 5

    1.2. Os relatos mitolgicos...............................................................................................: 5

    1.3. Trs dimenses do mito.............................................................................................: 6

    1.3.1. Os Mitos cosmognicos................................................................................: 6

    1.3.2. Os ciclos hericos.........................................................................................: 7

    1.3.3. As Novelas lendrias..................................................................................: 7

    1.4. A metamorfose na mitologia......................................................................................: 8

    - Captulo 2

    2.1. Literatura Comparada...............................................................................................: 10

    2.2. O Asno de Ouro........................................................................................................: 11

    2.4. Narrativas orais..........................................................................................................: 12

    2.5. Semitica...................................................................................................................: 13

    2.6. O mito e o tempo histrico........................................................................................: 13

    - Captulo 3

    3.1. Eros e Psique em Apuleio (re-apresentao da lenda)..............................................: 15

    3.2. Consideraes gerais Eros e Psique em Apuleio...................................................: 17

    3.3. Eros e Pisque em Fernando Pessoa...........................................................................: 20

    3.4. Eros e Psique em Fernando Pessoa Anlise...........................................................: 21

    3.4.1. Anlise comparativa do tema da mitologia ...................................,.................: 23

    3.4.2. Anlise comparativa do tema da metamorfose................................................: 24

    - Concluso..................................................................................................................: 27

    - Bibliografia...............................................................................................................: 30

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    Introduo

    Este trabalho vincula-se rea da Literatura Comparada. O objetivo principal analisar

    o poema Eros e Psique, do escritor portugus Fernando Pessoa, ao lado da novela lendria

    homnima escrita por Lcius Apuleio, ou Apuleio de Madaura, no sculo II d.C., inserida em

    seu livro O Asno de Ouro. A idia fundamental a orientar o trabalho identificar no poema,

    quando comparado ao mito, elementos de intertextualidade.

    A mitologia apresenta-se como fenmeno de criao coletiva. Sua origem na cultura

    oral faz do mito um gnero especial de literatura. [os mitos] No so usualmente escritos ou

    criados por um ser individual, porque na realidade so produtos de uma imaginao coletiva,

    so experincias de toda uma era, de toda uma cultura. (JOHNSON, 1987, 6) Submetidos ao

    tempo-espao histrico, os mitos se transformam, mas mantm uma unidade fundamental.

    Representam coisas, elaboraes mentais, tomadas como verdadeiras por todos.

    O mito mantm uma espcie de essncia que o caracteriza como estrutura extraordinria

    de pensamento, carregando em si a representao de algum conceito existencial fundador: o cu,

    o amor, a alma, a guerra, ou o fluxo marinho. Devido a seu carter fludo, refere-se tambm a

    representaes mais complexas, como as caractersticas de um heri, ou a uma aventura, em

    que, atravs de peripcias, uma herona percorre o caminho apotetico da redeno. O mito

    revela-se camalenico, muda de cor, de matiz, na medida em que transportado de um espao

    geogrfico, num dado momento, para outro, em outra ocasio. Apresenta-se essencialmente

    metamrfico.

    Essa reflexo sobre a lenda Eros e Psique se prope a considerar o mito do ponto de

    vista de sua caracterizao histrica. Para tanto, no primeiro captulo, tratamos da mitologia

    grega, onde est localizado o mais antigo vestgio da novela lendria em questo. Alm disso, a

    mitologia grega est entre as mais difundidas no mundo ocidental. A partir do segundo captulo,

    apresentamos conceitos de literatura comparada, para fundamentar a apreciao conjunta dos

    dois textos, o de Apuleio de Madaura e o de Fernando Pessoa. Recorremos ainda ao conceito de

    cronotopo para caracterizao do gnero literrio. E por fim, recorremos semitica para

    analise dos smbolos.

    Na anlise propriamente dita, interessa-nos reconhecer tanto pontos em comum, quanto

    variaes entre os dois textos, o novo e o fundador. Essa caracterizao se dar a partir da

    modalidade de estilizao utilizada pelo autor portugus, quando de sua recriao do mito de

    origem grega. Nessas circunstncias, intentamos identificar, na comparao entre os dois textos,

    a presena de diferentes vozes concorrentes, na perspectiva da polifonia. O texto ser

    considerado como fruto de seu tempo, do espao, da cultura, das tradies e dos costumes.

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    O mito o nada que tudo.

    (Fernando Pessoa Mensagem)

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    Captulo 1

    1.1. Mitologia e pensamento

    A histria do pensamento mitolgico na antiguidade remonta aos confins do sculo IX

    ou VIII a.C., ao menos no caso grego. Os mitos, as lendas, a representao fantstica dos

    fenmenos naturais e sobrenaturais incidiu e reincidiu de forma substancial nas formas prprias

    em que o homem antigo pensou-se a si prprio e ao mundo que o rodeava.

    A tradio dos mitos lendrios desenvolveu-se principalmente atravs de relatos orais.

    Em alguns casos, como no pensamento grego antigo, a mitologia, ao deparar-se com os

    fenmenos e mistrios da existncia, tomou-os como representao e os imaginou sob a forma

    de histrias fabulosas que reuniam deuses, humanos e criaturas muitas vezes hbridas, como os

    heris, frequentemente associados, na mitologia grega antiga, aos deuses; sendo o mais das

    vezes descendentes de prstinas linhagens que se originaram das prprias divindades.

    Os textos tradicionalmente considerados fundadores da cultura antiga grega so

    atribudos a Hesodo, a Teogonia, e a Homero, a Ilada e a Odissia. Esses relatos e histrias

    conservaram-se como tradies orais, e foram matria para a posterior elaborao da religio, da

    filosofia e mesmo do pensamento racional dos gregos antigos.

    A palavra mhyto aplica-se a todas as histrias contadas, tanto ao tema de uma tragdia

    ou intriga de uma comdia quanto ao tema de uma fbula de Esopo. (GRIMAL, 2009, 8) Nesse

    sentido, ope-se palavra logos como a fantasia ope-se razo e a palavra que relata que

    demonstra. (Idem, ibidem) Se o logos lograva convencer a partir da razo e da demonstrao, o

    mito revelava-se multifacetado, apreciado como crena, f, elaborao esttica, ou expediente

    de verossimilhana.

    A concepo mitolgica, de alguma forma, permeou todos os campos do pensamento

    antigo grego. Em alguns casos, como representao do pensamento dito irracional; no por ser

    bestial ou ignorante, mas por permitir-se elaborar interpretaes da existncia a partir de

    imaginao e fabulao, percorrendo um caminho que ia a da metafsica fsica. Uma dimenso

    interagindo com a outra, tecendo uma rede de causas e conseqncias de amplitude csmica.

    Em praticamente todos os campos de elaborao do pensamento, l estava a mitologia,

    servindo como ponto de referncia e matria de reflexo. O mito desenhava uma imagem, um

    smbolo, de uma realidade que, de outro modo, seria inefvel. (GRIMAL, 2009, 10). Assim,

    Do pensamento, o mito passou a viver uma vida prpria, no meio do caminho entre a razo e a

    f [...]. (Idem, ibidem, 11)

    1.2. Os relatos mitolgicos

    Todo esse material mitolgico, coligido por sbios na antiguidade, reelaborado por

    escritores e poetas, provm primordialmente das tradies orais de contar histrias. No se sabe

    com segurana a origem das lendas e mitos. De modo geral, no caso grego, o mito parece

    adequar-se a cada regio da chamada Hlade (Grcia antiga) de acordo com os costumes e

    tradies locais, o que revela uma diversidade enorme de variaes e adaptaes das narrativas

    e relatos. O mais das vezes, atribui-se principalmente aos aedos e rapsodos a tradio de

    conservar as histrias ao longo do tempo. Esses cantores-poetas se faziam presentes em festas e

    ocasies de reunio pblica. Uma vez ali, entoavam, ao som dos ps rtmicos, slabas poticas

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    longas e breves, narrativas ou canes que davam conta das aes dos deuses e dos homens. O

    aedo representava uma ponte entre o presente e o passado, resgatando e reelaborando as

    histrias e mitos tradicionais; auxiliado pelas Musas, filhas de Zeus e da Memria.

    Os mitos no formavam originariamente um conjunto organizado, maneira de um

    sistema filosfico, teolgico ou cientfico. (GRIMAL, 2009, 13) A diversidade era uma

    caracterstica fundamental da mitologia na Grcia. Em cada regio da Hlade, essas histrias

    iam se adaptando s idiossincrasias locais, e as divindades e os heris conformavam-se s

    concepes de mundo de cada comunidade. As histrias mticas, transpostas de uma regio a

    outra, incorporavam elementos tpicos locais, o mito no uma realidade independente, mas

    que evolui com as condies histricas e tnicas, s vezes conservando testemunhos imprevistos

    de situaes que de outra forma seriam esquecidas (Idem, Ibidem, 15)

    Hesodo, pastor e aedo, considerado o compositor da Teogonia, poema cosmognico

    que trata das origens dos deuses e do universo; a Homero, aedo cego, atribui-se a elaborao dos

    poemas picos Ilada e Odissia. Hesodo, em sua Teogonia, recorre s Musas para que o

    inspirem a cantar as histrias da formao do universo, e da gnese dos deuses. Homero, por

    seu turno, no descuida da tradio, e recorrendo tambm s filhas de Zeus e Memria, canta a

    Guerra de Tria, e o priplo do heri Odisseu pelos mares gregos, em seu retorno da expedio

    troiana para casa. A Teogonia trata fundamentalmente da gnese do universo e dos deuses; os

    poemas picos homricos, por outro lado, vo desenvolver episdios especficos dos grandes

    ciclos hericos. Na Ilada, a ira de Aquiles; na Odissia, poema de estrutura mais complexa, o

    longo retorno de Odisseu, depois da queda de Tria, para sua terra natal, a ilha de taca.

    1.3. Trs dimenses do mito

    Deve-se, na antiguidade, a nomes como Hecateu de Mileto, Acusilaos de Argos,

    Pherecydes, Apolodoro e Pausnias uma parte considervel das notcias que nos chegaram a

    respeito dos relatos mticos antigos. A partir dos sculos VI e V a.C., procedeu-se a tentativas

    de fixao das cronologias dos acontecimentos histricos e lendrios. No incio da Idade

    Clssica (sculo IV a.C.), as lendas se estabilizaram, conservando muito de sua diversidade

    caracterstica. A partir do sculo II a.C., surgem as chamadas colees de histrias, como as

    Transformaes em Astros, de Eratostene de Cirena, e coletneas de transformaes, como as

    de Nicandro. (GRIMAL, 2009, 17-18), que viriam a originar as clebres adaptaes do tema por

    Ovdio e Apuleio, j em Roma.

    Podem-se subdividir esses relatos mticos em trs dimenses imbricadas, que mantm

    relao com as origens das histrias mticas em alguns casos mais, em outros, menos

    relacionadas com as questes metafsicas e ou religiosas.

    1.3.4. Os Mitos cosmognicos

    As histrias mticas, em seu sentido mais estrito, so relatos a respeito da formao do

    mundo e do nascimento dos deuses. So os chamados mitos cosmognicos. Ao que parece,

    deve-se principalmente a Hesodo a reunio desses relatos, provenientes ou no da prpria

    Hlade, e que remontam a pocas anteriores a ele.

    importante observar que tais formulaes no devem ser consideradas como dados

    primitivos.

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    So, em sua maioria, concepes muito evoludas que se formaram dentro dos meios

    sacerdotais e pouco a pouco foram enriquecidas com elementos filosficos sob a

    forma de smbolos mal dissimulados. Esses mitos no deixaram de viver mesmo em

    plena poca clssica e alm dela. Continuaram servindo de suporte s crenas

    religiosas e [...] as religies de salvao os integraro aos seus mistrios. (GRIMAL,

    2009, 19)

    1.3.5. Os ciclos hericos

    Os ciclos hericos so geralmente relatos fracionados que no tem nenhum significado

    csmico, ou ao menos no tratam especificamente da formao do universo ou dos deuses.

    Esses ciclos so elaborados em torno da figura do heri. So histrias que vo se alterando ao

    longo do tempo O ciclo definitivamente no nasce formado; ele o resultado de uma longa

    evoluo, ao longo da qual, episdios independentes em sua origem se justapem

    desordenadamente e se integram em um todo. (GRIMAL, 2009, 20)

    A Ilada e a Odissia so exemplos desses relatos fracionados, episdios de histrias

    maiores que ganharam notoriedade entre os povos gregos de modo geral, tendo, alm disso,

    permanecido na histria da literatura at os dias atuais.

    1.3.6. As Novelas lendrias

    As novelas lendrias originam-se de alguma forma na mitologia, mas, assim como nos

    ciclos lendrios, no tem dimenso cosmognica, no tratam da formao dos deuses e do

    universo. Embora, tambm aqui, como nos ciclos lendrios, haja frequentemente a presena de

    divindades, nem toda lenda relativa a uma divindade provida de um alcance teolgico. As

    novelas lendrias, segundo (GRIMAL, 2009, 22) no tm valor csmico ou simblico, mas,

    enquanto o ciclo concentrado em torno de uma s figura, a unidade da novela puramente

    literria e se define pela intriga.

    Essas novelas, o mais das vezes, resgatam histrias mticas tradicionais, amplamente

    presentes na antiguidade. Elas lanam mo da mitologia para constituir enredos povoados por

    heris e deuses, e j tambm por humanos. No so, todavia, conjuntos lendrios. Muitas

    vezes adquirem significaes que funcionam como relatos elementares, que se baseiam em

    costumes, toponmias ou algum detalhe surpreendente do real.

    Atravs desses relatos, a mitologia misturou-se ainda histria do povoamento da

    Grcia. Assim, nos ciclos hericos, observa-se uma tendncia de amalgamar a genealogia dos

    povos e raas das grandes correntes migratrias com as divindades originais.

    Prometeu, tit filho de Urano e Geia1, considerado, na mitologia grega, o ancestral dos

    seres humanos. Atravs de Deucalio, filho de Prometeu, a imaginao mtica criou uma

    genealogia para as grandes raas e famlias gregas.

    Deucalio e Pirra tiveram [...] filhos, que foram os ancestrais dos diferentes povos da

    Grcia; o mais velho foi chamado de Heleno, que engendrou Doro, Xuto e olo.

    Doro e olo so os epnimos das raas drica e elica. Xuto, por sua vez, teve entre

    seus filhos Aqueu e on, epnimos dos aqueus e dos jnios. J se esboavam as

    grandes divises do povo grego, e estamos na fronteira entre a cosmogonia e a

    histria. (GRIMAL, 2009, 38)

    1 A genealogia primordial ser retomada mais adiante.

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    V-se a flexibilidade do mito. As trs dimenses se interpenetravam.

    Ttis, titnida filha de Urano, tornou-se me de Aquiles, heri da Ilada, j nos ciclos

    hericos. Eros, divindade primordial, tendo nascido da ciso da Noite, vai reaparecer,

    posteriormente, como filho de Afrodite. Essa deusa, por outro lado, segundo a tradio

    teognica, teria surgido do sangue de Urano espargido nas guas do mar, quando seus testculos

    foram decepados pela foice de seu filho, Crono. Afrodite, nessa verso, seria, portanto, mais

    jovem que Eros. No entanto, no romance Eros e Psique, na verso de Apuleio, Eros filho de

    Afrodite. O mito, desde as origens, sofre adaptaes e adequaes.

    1.4. A metamorfose na mitologia

    O tema das metamorfoses antigo. So muitas as histrias lendrias que vo tratar do

    assunto. Zeus, o senhor do Olimpo, lanava mo de metamorfoses para conquistar suas paixes.

    Assim foi, por exemplo, com Europa, quando se tornou um touro para am-la; mito de onde se

    origina a clebre histria do Minotauro, no ciclo herico de Teseu. Ou quando gerou Helena,

    protagonista da Guerra de Tria, tornando-se um cisne para conquistar a mortal Leda, me da

    herona. Supe-se tambm que a deusa Hera, irm e esposa de Zeus, para castigar as paixes

    deste, submetia os amores do deus a metamorfoses degradantes.

    Nereu, o Velho do Mar, que conhecia profecias e segredos, metamorfoseava-se em

    vrios tipos de animais para no os revelar. Assim como Proteu, clebre personagem da

    Odissia, capturado e interrogado pelo Heri Menelau.

    A ninfa Dafne metamorfoseou-se em loureiro para fugir das investidas de Apolo, a

    quem, a partir da, identificou-se simbolicamente a rvore das folhas de louro. Destino

    semelhante ao de Jacinto e Ciparisso, mortais por quem Apolo se apaixonara e que foram

    metamorfoseados, respectivamente, na rvore do jacinto e no cipreste.

    Sobre a questo da simbologia, uma boa parte dos relatos cosmognicos so vinculados

    a fenmenos da natureza. Pierre Grimal (GRIMAL, 2009, 30) fala de divindades como Ponto, o

    fluxo marinho, filho de Geia, sem a participao de Urano.

    No entanto, essa interpretao dos mitos como personificaes de foras da natureza

    pode estar relacionado s tradies de povos anteriores aos Helenos propriamente ditos. Tal

    interpretao se deve ao fato de que os chamados Olmpicos so divindades complexas,

    representadas de formas diversas, e de natureza muitas vezes humanizada.

    Zeus, o mais importante dos Olmpicos, interpretado comumente como o senhor dos

    raios, na perspectiva naturalista, interpretado mesmo como personificao dos relmpagos.

    tambm conhecido por suas aventuras amorosas, que incluem desde divindades, a homens e

    mulheres.

    Sobretudo, interessam-nos as metamorfoses de Eros, divindade primordial no panteo

    grego e eixo principal deste trabalho, ao lado de Psique. Eros est na gnese da criao para o

    pensamento mitolgico grego.

    Gostaramos de reiterar o carter ensastico deste trabalho, que se prope a apresentar

    um tema extremamente complexo de forma simples. Neste panorama, escolhemos apresentar a

    parte das reflexes sobre mitologia grega tendo como ponto principal de referncia o classicista

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    francs Pierre Grimal. Neste trecho, que hora citamos, este autor esboa uma histria da criao

    do mundo entre os antigos gregos, destacando a presena de Eros

    Todos os povos, em um momento de sua histria, sentiram necessidade de explicar o

    mundo. Os gregos, em busca como tantos outros de um princpio motor no cerne do

    ser, acreditaram descobri-lo no Amor. No comeo, havia a noite (Nyx) e, ao lado

    dela, o rebo, que seu irmo. So os dois rostos das Trevas do Mundo: Noite do

    alto e escurido dos infernos. Essas duas entidades coexistem no seio do Caos,

    que o Vazio no o vazio inexistente e negativo dos fsicos e dos sbios, mas um

    vazio que inteiramente potncia e matriz do mundo, vazio por inorganizao, e

    no por privao, vazio porque indescritvel, e no porque no nada. Pouco a

    pouco, Nyx e rebo se separam no Vazio. rebo desce e libera a Noite, que d a si

    mesma uma forma cncava, tornando-se uma esfera imensa cujas duas metades se

    separam maneira de um ovo que se abre: o nascimento de Eros (o Amor),

    enquanto uma metade da concha se torna a abbada do Cu e a outra, o disco mais

    achatado, da Terra. O Cu e a Terra (Urano e Geia) possuem uma realidade material.

    O Amor uma fora de natureza espiritual, e ele que assegura a coeso do universo

    nascente. Urano se inclina na direo de Geia, e a unio dos dois d incio s

    geraes divinas. (GRIMAL, 2009, 24)

    Esta no , entretanto, a nica verso. Grimal tem o cuidado de apresentar tais relatos

    ressaltando que h variaes nas interpretaes.

    Existem outras verses dessa lenda. s vezes se dizia que a Terra tinha sado

    diretamente do Vazio e que ela engendrara a si mesma, ajudada somente por Eros, o

    segundo a nascer no Mundo, a abbada do Cu. Por outro lado, o Caos engendrara a

    Noite, que por sua vez, ensejara o nascimento do ter, que a luz brilhante, o fogo

    mais puro, e do Dia, que ilumina os Mortais. (cf. GRIMAL, 2009, 24-25)

    Posteriormente, outra divindade ser tambm chamada Eros.

    Da unio [...] de Afrodite e Ares nasceram dois filhos, Eros e Anteros (Amor e Amor

    recproco), que os artistas da poca alexandrina procuraram representar com formas

    infantis, modelos diretos de nossos querubins. A pintura pompeana popularizou

    esse gnero de cena: o Amor punido, o Amor ferido, nos quais Eros aparece como

    uma criana travessa (lembra tambm o cupido romano, grifo nosso), rabugenta ou

    desolada junto a uma Afrodite maternal. O Eros das cosmogonias foi completamente

    esquecido; sua me e ele no so mais as grandes figuras primordiais de antigamente,

    mas sim meros ornamentos. (GRIMAL, 2009, 48)

    A flexibilidade da lenda recria o Amor entidade ou fora geratriz primordial, moto

    contnuo que fecunda e revitaliza o universo, de natureza cosmognica sobre a forma de uma

    divindade concebida, agora, pela deusa do Amor e da fecundidade primordial feminina, e at da

    natureza. Este, o Eros das lendas, no o dos mitos teognicos. Parece, todavia, seguindo a

    tendncia do pensamento mitolgico grego antigo, no se tratar de mitos diferentes, mas de

    diferentes adaptaes de um mito abrangente e extremamente difundido por largas regies da

    antiga Hlade. As variaes e adequaes espao-temporais esto na essncia do mito (...) a

    realidade derradeira da mitologia reside no em seus membros esparsos, mas em um organismo

    de pulsaes e metamorfoses incessantes. (GRIMAL, 2009, 23).

  • 10

    Captulo 2

    2.1. Literatura Comparada

    Literatura Comparada designa uma forma de investigao literria que confronta duas

    ou mais literaturas (CARVALHAL, 2006, 5). Em geral, a chamada Literatura Comparada

    clssica, de origem francesa, adota duas orientaes metodolgicas bsicas, estudos onde

    [predominem] as relaes causais entre obras ou entre autores, mantendo uma estreita

    vinculao com a historiografia literria. (idem, ibidem, 14) Por outro lado, o comparativismo

    de origem norte-americana procurou analisar as relaes estruturais internas s obras, deixando

    em segundo plano questes histricas ou que relacionem artista e obra. J o comparativismo de

    origem russa privilegia a compreenso da literatura como produto da sociedade (Idem,

    Ibidem, 16).

    Essa ltima orientao comparatista originou-se, sobretudo, do chamado Crculo

    Lingstico de Moscou (1914-1915). Recusava o historicismo literrio, propondo uma reflexo

    sobre a natureza e o funcionamento dos textos, sobre as funes que exercem no sistema que

    integram e sobre as relaes que a literatura mantm com outros sistemas semiticos (...)

    (CARVALHAL, 2006, 45). Estabeleceram a idia de uma linguagem potica como conjunto de

    relaes entre as partes e o todo. O chamado Formalismo russo procurou estudar a construo

    do texto, sua estrutura interna, rejeitando o estudo da gnese, que se apoiava na sociologia e na

    biografia e postularam os princpio da imanncia da obra: esta um produto que deve ser

    estudado em si mesmo e do qual necessrio analisar a construo. (Idem, ibidem, 46).

    Posteriormente, tericos como Tynianov e Bakhtin argumentaram que a deciso de

    ignorar a influncia de elementos extratextuais no texto diminui as possibilidades e o escopo de

    sua interpretao. Assim, em Tynianov, surge a idia de que um elemento inserido num sistema

    diferente tem sua funo modificada. A partir da, a obra literria pode ser constituda por

    diferentes tipos de relaes que a antecedem ou lhe so simultneas, e que podem ser de

    natureza no literria. Estas relaes se constituem num processo conflituoso de constante

    movimento, indo e voltando, que a tradio. Para Bakhtin, o texto uma construo

    polifnica, em que vrias vozes interagem num processo dialgico e ideolgico. Essas reflexes

    abalaram a noo de sistemas literrios fechados e previamente conformados. A partir da,

    comeou-se a considerar que os textos se constroem de acordo com o que vo escutando, em

    moto contnuo.

    A partir de Jlia Kristeva, chegou-se noo de intertextualidade. Passou-se a

    estabelecer a significao de um texto em sua relao de interpenetrao com outros textos que

    absorve e transforma. Passa-se a considerar a escrita tambm do ponto de vista da leitura.

    Podem-se analisar essas relaes sob a perspectiva dos procedimentos mimticos, como, por

    exemplo, a parfrase e a pardia, a apropriao; a estilizao; aproximao, deslocamento e

    desvio.2

    A partir da reflexo desses dois tericos, modificou-se a idia de que a influncia da

    obra fundadora determina a interpretao das releituras, o dilogo entre os textos no um

    processo tranqilo nem pacfico, pois, sendo os textos um espao onde se inserem

    dialeticamente estruturas textuais e extratextuais, eles so um local de conflito.

    2 O assunto ser retomado na anlise.

  • 11

    (CARVALHAL, 2006, 53) A repetio das estruturas ou do contedo de um texto para outro

    adiciona novos sentidos ao produto final. A repetio reconfigura de alguma forma o original,

    mas mantm um dilogo com esse texto fundador, construindo efetivamente outros sentidos, os

    quais podem ser produzidos numa outra espcie de relao entre idias e formas, sob o ponto de

    vista de sua adaptao no tempo e no espao.

    Para se reconhecer o elemento de intertextualidade, buscam-se as vrias vozes que

    dialogam nos textos. A forma ou o contedo, ou ambos, atualizam-se de acordo com o momento

    histrico, com a tradio. Nesse dilogo, a reconfigurao dos elementos constri significaes

    e sentidos novos, a obra literria ento

    [sofre um deslocamento, migrando] da tradio original onde surgiu para incluir-se

    em uma outra contemporaneidade, que se fundamenta em uma tradio diferente e

    onde ganha outras conotaes lingsticas (CARVALHAL, 2006, 72).

    Assim, a insero de um elemento em um contexto diferente atribui a ele uma nova

    funo. Deve-se, alm disso, considerar a questo da recepo, em quais circunstncias a leitura

    do texto novo teve acesso ao chamado texto original. O dilogo entre as diversas vozes

    estabelece uma rede de interdisciplinaridade. Relaes entre Literatura e outras artes, e tambm

    entre esta e a Psicologia, o Folclore, a Mitologia e a Histria. O estudo do texto literrio se faz,

    nessa perspectiva, pela interrelao entre os vrios objetos que se analisa, buscando as

    aproximaes e os desvios a que so submetidos em seu dilogo com outros textos, bem como

    de suas especificidades. A intertextualidade considera a subjetividade nos termos da alteridade.

    A reproduo, reinveno e ou imitao de um dado elemento formal ou significativo se d a

    partir de sua reinsero espao-temporal, em contextos especficos.

    Assim compreendida, a literatura comparada uma forma especfica de interrogar

    os textos literrios na sua interao com outros textos, literrios ou no, e outras

    formas de expresso cultural e artstica. (CARVALHAL, 2006, 74)

    2.2. O Asno de Ouro

    A verso mais antiga que conhecemos do mito Eros e Psique encontra-se no livro O

    Asno de Ouro, escrito por Lcius Apuleio no sculo II de nossa era, em Roma. Optamos, em

    razo do objetivo e do carter restrito deste trabalho, por proceder comparao apenas entre

    verso original do mito e o poema de Fernando Pessoa, embora a histria tenha sido submetida

    a outras tantas adaptaes, em outras circunstncias de espao e tempo.

    Lcia Pimentel Ges analisa em seu livro Eros e Psique Passagem pelos portais da

    metamorfose a mitologia sob o ponto de vista da semitica e da tradio, e procede a uma

    anlise minuciosa e abrangente desse mito especificamente. Para tanto, Ges procura

    caracteriz-lo a partir de suas origens na linguagem oral, passando por uma teoria dos signos,

    das simbologias. Estuda ainda a questo da gnese do romance antigo, desde a Grcia, com as

    influncias da mitologia, at Roma, no chamado romance de aventuras e costumes, gnero

    literrio em que se insere a obra de Lcius Apuleio.

    Como j reiteramos, nosso foco de anlise o poema de Fernando Pessoa. Assim,

    optamos por buscar no trabalho de Ges as referncias que dizem respeito ao mito em sua forma

    original. Trazendo da tambm algumas idias a respeito da semitica peirciana3 e dos conceitos

    3Charles Sanders Peirce (1839-1914), considerado o criador da disciplina Semi

  • 12

    de cronotopos de Mikhail Bakhtin. Todavia, tais contribuies sero apresentadas de forma

    rpida e no muito detida. Queremos, atravs dessas referncias, contextualizar o mito em suas

    origens e contribuir para a ampliao do horizonte de sua leitura, enquanto estrutura simblica,

    para da investigar o dilogo encetado pelo poeta portugus com este mito e com a tradio;

    considerado do ponto de vista da intertextualidade, da polifonia e do dialogismo, lanando mo

    de conceitos como estilizao, aproximao e desvio.

    2.4 Narrativas orais

    As novelas lendrias, assim como os relatos mitolgicos e dos ciclos hericos,

    mantiveram-se vivas, sobretudo, no contar e recontar da cultura oral. Assim, o prprio motivo

    da metamorfose pode ser visto como um processo metalingstico: fala-se de metamorfose por

    um processo discursivo de carter essencialmente metamrfico. Devido a seu aspecto

    significativo polivalente, o mito mantm-se como estrutura potencialmente metamrfica.

    Do ponto de vista de Bakhtin, o conceito de romance4 est vinculado oralidade

    (...) a oralidade, o discurso dialgico so entendidos no como simples comunicao

    de voz, mas como imagem de linguagem. A escrita aponta a voz do autor que

    inscreve palavras suas e de outros, criando um campo complexo de representao.

    (apud GES, 2007, 18-19)

    Esse sujeito de linguagem dialoga com dados pluridimensionais que o envolvem. Falando,

    sobretudo, do que os outros tambm esto a falar. o fenmeno da polifonia. Vrias vozes

    dialogam entre si, na perspectiva de inserir sua voz na voz coletiva.

    No que diz respeito criao artstica, a obra de arte segue um percurso que vai da

    forma simples5 para a forma erudita

    6 (ou artstica) (...) a forma mais ampla e popular,

    autctone ou no, foi a potica. E a potica musicada. O canto ritmava e desenvolvia o idioma

    (...) (GES, 2007, 39).

    Dessas duas modalidades de forma, surgem as formas em resgate as que nascem de

    uma forma simples ou de uma forma erudita (...) configurando Parfrase ou Pardia em

    Estilizao ou Apropriao (...) No contar humano, corrente a referncia a motivos, no

    sentido de invariantes. (GES, 2007, 25)

    4

    As novelas lendrias figuram como uma espcie de antepassado do romance.

    5 Sempre que uma disposio mental, (...) apreendida pela linguagem em seus elementos primordiais e indivisveis e

    convertida em produo lingstica, possa ao mesmo tempo querer dizer e significar o ser e o acontecimento, diremos

    que se deu o nascimento de uma forma simples.

    6 Bakhtin examina a forma no plano esttico, como forma artisticamente significante. Todavia, a forma realiza-se

    efetivamente no material, sendo a forma de um contedo, e mantendo com o observador uma relao axiolgica. (...)

    a forma a expresso da relao axiolgica ativa do autor-criador e do indivduo que percebe (co-criador da forma)

    com o contedo (BAKHTIN, 1990, 57)

  • 13

    2.5 Semitica

    Processo de interpretao gradativo dos signos: da conscincia imediata s reaes, at

    chegar inteleco e recriao: signo7 ou primeiridade, objeto ou secundidade e interpretante

    ou terceiridade. Um exemplo desse processo interpretativo:

    (...) o azul, simples e positivo azul, um primeiro. O cu, como lugar e tempo, aqui

    e agora, onde se encarna o azul, um segundo. A sntese intelectual, elaborao

    cognitiva o azul no cu, ou o azul do cu um terceiro. (SANTAELLA, 1984,

    62-67, apud GES, 2006, 30)

    O signo se conforma como elemento mediador entre a inteligibilidade e o fenmeno. H

    uma vinculao entre linguagem verbal, terceiridade8 e smbolo. O processo semitico segue

    pluridimensional, os fenmenos interagem dinamicamente na rede de significaes, em

    semioses de vrias espcies, pois qualquer elemento perceptvel torna-se, em potencial, um

    elemento determinado na existncia. O signo ento abrange uma enorme rede de categorias, e

    pode-se falar de uma semitica literria.

    A definio do signo (...) geral e tanto pode se referir a uma unidade constitutiva

    [um conto especfico], quanto a uma complexidade mais vasta sem limites definidos

    (o conto na moderna Literatura brasileira) (...) Pode-se compreender a especificidade

    da semiose literria em vrios nveis, desde o nvel da Literatura em geral (...) at o

    das obras de um autor, e por fim, o de uma obra especfica, e at mesmo de uma

    nica estrofe de um nico verso. (SANTAELLA, 1992, 200-201).

    2.6. O mito e o tempo histrico (Cronotopo)

    A idia de Cronotopo, em Mikhail Bakhtin, associa o tempo e o espao s

    circunstncias histricas. Ges recorre ao autor russo para situar a obra O Asno de Ouro no

    espao histrico e social. O texto de Apuleio, segundo a tipologia desenvolvida por Bakhtin,

    pertence a um gnero literrio chamado por este autor de romance de aventuras e costumes.9

    Esse tipo de romance est relacionado, de alguma forma, literatura hagiogrfica crist

    primitiva. O tempo, elemento fundamental no cronotopo, atua de forma decisiva no enredo e

    nos personagens. O heri em nosso caso especfico, a herona vive aventuras de

    peregrinao, partindo da culpa, passando pela crise, at a redeno e, no caso de Psique, at a

    apoteose. A metamorfose funciona como um motivo de transformao de identidade, do ponto

    de vista do motivo do invlucro mitolgico da metamorfose.

    Do ponto de vista da obra artstica O cronotopo tem sentido fundamental para os

    gneros... sendo que em literatura o princpio condutor do cronotopo o tempo. (GES, 2007,

    47). Assim, as coordenadas temporais, o tempo histrico, so fundamentais para o estudo do

    texto literrio. No caso do romance de aventuras e provaes, o cronotopo se refere

    7 (...) Diante de qualquer fenmeno, para conhecer e compreender qualquer coisa, a conscincia produz um signo, isto

    , um pensamento como mediao irrecusvel entre ns e os fenmenos. (GES, 2007, 31)

    8 A mais simples idia da terceiridade aquela de um signo ou representao. E esta diz respeito ao modo, mais

    proeminente, com que ns, seres simblicos, estamos postos no mundo. (Ges, 2007, 31)

    9 Segundo Bakhtin, as trs tipologias do Romance grego antigo so I) Romance de aventuras de provaes II)

    Romance de aventuras e de costumes III) Romance biogrfico.

  • 14

    interligao fundamental das relaes temporais e espaciais, artisticamente

    assimiladas em literatura. (...) O tempo revelado no espao, este espessando-se na

    dimenso semntica, esta sendo medida pelo tempo. (GES, 2007, 232)

  • 15

    Captulo 3

    3.1. Eros e Psique em Apuleio (re-apresentao da lenda)

    Um rei e uma rainha tinham trs filhas, das quais a mais nova, Psique, possua uma

    beleza inebriante. Sua fama se espalhou, e tal formosura foi comparada ento da prpria deusa

    Vnus (Afrodite).

    Esta, irritada com a situao, resolveu punir a moa, exortando seu filho Cupido (Eros)

    a atingir Psique com a seta do Amor, para que ela se apaixonasse pelo mais ignominioso dos

    mortais. Enquanto isso, a beleza estonteante de Psique assustava seus pretendentes, e a menina

    vivia triste e amuada.

    Consternado com o sofrimento da filha, o rei resolveu consultar um orculo para ajud-

    la. A pitonisa ordenou ento que o rei abandonasse Psique no alto de um rochedo, para se casar

    com um um monstro terrvel. Cumpridos os votos, Psique encontrava-se no alto do rochedo,

    quando subitamente o vento Zfiro a carregou suavemente para um palcio em um vale de relva

    florida. Psique foi recebida por vozes que lhe tratavam com todo zelo, as quais a moa tomou

    como divinas. Quando se recolheu para dormir, recebeu ento a visita do deus do amor, Eros,

    que, enamorado pela moa, fez dela sua mulher.

    Psique passou a receber o amante todas as noites no tlamo. Ele chegava e saia numa

    completa escurido, e a princesa, no vendo seu rosto, desconhecia sua identidade. Durante

    muito tempo as coisas transcorreram assim, seus pais seguiam tristes e em luto constante. As

    irms de Psique, pelo concurso da Fama, descobriam que ela estava viva.

    Eros, ciente do perigo que as irms de Psique representavam, anunciou amada que elas

    viriam visit-la, exortando-a a no dar ouvidos ao que dissessem. A jovem princesa aquiesceu

    ao pedido do amante; entretanto, durante o dia, quando Eros se ausentava, sofria enormemente a

    falta das irms. Uma noite, aps as carcias do amor, suplicou ao consorte que lhe permitisse o

    encontro. Eros resistiu, mas acabou por ceder aos caprichos da amada.

    As irms, ao serem recebidas em um palcio suntuoso, e depois do banquete de natureza

    divina e do banho, comearam a sentir o veneno do cime e da inveja. Questionaram ento a

    irm sobre seu esposo. Atarantada, Psique inventou que o marido era um caador. As irms,

    todavia, comearam a desconfiar da situao.

    Eros advertiu novamente Psique sobre o perigo iminente, e lhe revelou que as irms

    tentariam persuadi-la a ver sua fisionomia - Esta, todavia, no mais vers depois de uma s vez

    que a tiveres visto, asseverou o deus do amor. Na oportunidade, revelou-lhe ainda uma gravidez

    uma criana de natureza divina, caso o segredo fosse guardado; do contrrio, um simples

    mortal.

    Ento aconteceu uma segunda visita das irms. Interrogada novamente sobre o marido,

    Psique mais uma vez se contradisse. As irms, impressionadas pelo luxo e pelas iguarias

    misteriosas, comearam a desconfiar que Psique se casara com um deus, e seria me de uma

    linhagem divina. Corrodas pela inveja, resolveram ento se vingar.

    Elaboraram um plano para convencer Psique de que seu marido uma vbora, valendo-

    se da predio da pitonisa.

  • 16

    Psique enredou-se no ardil: assustada com as palavras das irms, desprezou as

    exortaes de Eros. Impelida pela curiosidade e pelo temor, resolve conhecer o rosto do amante,

    tomando de um punhal para decepar a cabea da terrvel serpente.

    Nesta noite, aps o amor, adormeceu o deus no leito. A jovem princesa, com a ajuda de

    uma pequena lamparina de azeite, iluminou as fauces do amante. Encantada e aturdida, ao se

    deparar com a beleza do prprio deus do Amor, deixou cair uma gota de azeite fervente no

    ombro de Eros. Este despertou do sono e fugiu, revelando Psique que seu castigo por ignorar

    seus avisos seria a separao definitiva.10

    A partir da, Psique segue um percurso de aventura de provaes, dor e sofrimento,

    indo da culpa redeno, para unir-se novamente a Eros. Dentre algumas de suas peripcias, ela

    passa pela condio de suplicante nos templos das deusas Ceres e Juno (Demter e Hera, na

    mitologia grega); desce ao Hades, alm de outras provaes.

    Ao final da lenda, Psique novamente passa pelo castigo do conhecimento proibido. Fora

    enviada por Vnus ao Hades, para que trouxesse uma pequena caixa contendo a beleza divina.

    Havia, todavia, uma condio para a consecuo correta da provao, a caixa no deveria ser

    aberta. Tentada por sua curiosidade, a jovem princesa abre o artefato e ferida de morte por um

    encantamento.

    Eros ento recorre a Jpiter (Zeus) para salvar a amada. O pai dos deuses aquiesce ao

    pedido. Psique levada ento ao Olimpo por Mercrio (Hermes). Torna-se deusa, alm de

    esposa do Amor. De sua unio nasce a Volpia.

    10 Motivo recorrente do castigo do conhecimento proibido. (Ges, 2007, 83)

  • 17

    3.2 Consideraes gerais Eros e Psique em Apuleio

    Privilegiamos neste trabalho a anlise do contedo, no em detrimento da anlise da

    forma. As duas dimenses funcionam simultaneamente, interagindo no tempo e no espao. A

    forma realiza-se plenamente no contedo. Mas ela existe autonomamente. Segundo Bakhtin, na

    anlise de uma obra esttica literria deve se considerar trs aspectos importantes para

    interpretao: buscar uma compreenso do objeto do ponto de vista puramente esttico,

    artstico; depois, abord-lo atravs de processos de natureza cognitiva, axiolgica, pelo seu

    aspecto cientfico, enquanto estrutura lingstica, independente do carter esttico; e finalmente,

    estudar o aspecto material de realizao da obra de arte, como aparato tcnico da realizao

    esttica. (BAKHTIN, 1990, 22). Em relao a este terceiro aspecto, ou tarefa metodolgica de

    anlise, o autor salienta que preciso proceder a uma investigao pelo mtodo teleolgico.

    O autor subdivide a forma em duas dimenses: forma arquitetnica e forma

    composicional. A primeira se d consoante o processo de individualizao de um objeto

    esttico, As formas arquitetnicas so as formas dos valores morais e fsicos do homem

    esttico (...) so formas da existncia esttica na sua singularidade (Idem, ibidem, 25),

    vinculada aos fenmenos da vida social e histrica.

    As formas composicionais tem um carter teleolgico, utilitrio, como que inquieto, e

    esto sujeitas a uma avaliao puramente tcnica, para determinar quo adequadamente elas

    realizam a tarefa arquitetnica. (Idem, ibidem) Esto relacionadas ao processo tcnico de

    composio da obra.

    Neste panorama, o indivduo, ao entrar em contato com a sociedade, com a histria, a

    tradio e os costumes, interage com eles em dois momentos distintos: em um deles, recria e

    remodela estruturas arquitetnicas livres e de carter artstico, Em outro momento, interage com

    a realidade a partir do contedo dimenso axiolgica e histrica que configura a forma.

    Naturalmente, nessa interao, h um dilogo entre a dimenso subjetiva e a dimenso coletiva,

    e o resultado desse processo a inscrio das diversas vozes individuais na voz coletiva, de

    natureza, como a denominou Bakhtin, polifnica.

    Alm disso, ao recriar essas estruturas, inscrevendo sua voz na voz coletiva, no caso da

    criao artstica, do objeto esttico, o carter teleolgico fundamental. O artista, valendo-se da

    forma arquitetnica, configurada a partir da forma composicional, quer intervir naquela

    realidade que se lhe apresenta. Da o carter teleolgico da obra de arte.

    Do ponto de vista da forma composicional, o texto de Apuleio uma narrativa, filia-se

    ao gnero literrio romance de aventuras e costumes. Fernando Pessoa recria o mito na lrica.

    So dois gneros distintos, formas arquitetnicas diversas. Na conformao do poema, a

    influncia preponderante, em termos formais, no ser a obra de Apuleio, mas principalmente a

    composio baseada na chamada Lrica Provenal, e no Cancioneiro popular lusitano.

    Do ponto de vista da forma arquitetnica, em funo de sua origem mitolgica, a novela

    Eros e Psique apresenta um carter especial enquanto obra literria. A plasticidade do mito,

    como elemento de natureza simblica, sinttica, permite uma gama imensa de significaes em

    potencial. O mito tende a representar estruturas complexas de pensamento, relacionadas

    terceiridade, em termos de Semitica, configurando-se como smbolo, repleto de significaes

    concomitantes.

  • 18

    Outrossim, representa um tema, um motivo, individualizado por um autor em particular.

    Esse tema identifica-se a formulaes mentais, pensamentos de natureza coletiva, que

    representam estruturas cognitivas de natureza generalizante, partilhada pela massa dos

    indivduos, ao longo do tempo e do espao, de acordo com a cultura, com a histria e as

    relaes sociais: o amor, a guerra, ou o caminho que leva do humano ao divino, a mente, o

    esprito.

    O texto de Apuleio pertence ao livro O Asno de Ouro, escrito no sculo II de nossa era.

    O mito Eros e Psique foi inserido na obra guisa de uma novela intercalada, e segue o enredo

    principal no tocante carreira de Lcio, apresentada no invlucro de uma metamorfose. A

    carreira liga-se com o caminho real das peregrinaes de Lcio sob a forma de um asno.

    (GES, 2007, 49)

    O enredo desenvolve uma aventura em torno da transformao de Lcio em asno, em

    razo de sua conduta pueril e curiosidade. A lgica do acaso, a volpia, a leviandade juvenil e

    a descabida curiosidade impeliram Lcio a uma aventura perigosa com feitiaria. (...) Toda a

    srie de aventuras de Lcio interpretada como um castigo e uma redeno. (Idem, ibidem,

    51)

    E ainda,

    esta carreira de Lcio no invlucro da metamorfose est presente tanto no enredo

    principal como na novela intercalada sobre Amor e Psique, constituindo-se em uma

    variante semntica paralela do enredo principal (...) Toda a srie de aventuras est

    presente, tambm em Amor e Psique. A culpa pessoal de Psique se constitui no

    primeiro n da srie, e a proteo dos deuses no ltimo. As peripcias e as aventuras

    so entendidas como castigo e redeno. (GES, 2007, 22)

    Eros e psique, em certa medida, personificam, ou simbolizam, respectivamente, o desejo

    e a contemplao. O mito sugere a representao de uma srie de ambigidades simblicas

    O Mito de Eros e Psique, smbolo e metfora do casamento da Sabedoria com a

    Matria (...) Remete-nos s dades Corpo e Alma, Matria e Esprito, Cu e Terra,

    Acima e Abaixo, Terra e gua, Superfcie e Subterrneo, Sol e Lua, Dia e Noite,

    Princpio e Fim. (GES, 2007, 15)

    Eros o deus do Amor (o Cupido romano). uma divindade vinculada essencialmente

    aos prazeres do corpo da carne s sensaes. O amor de Eros tradicionalmente interpretado

    nestes termos. Um amor lbrico, como o cantava Safo

    (...) quando te vejo por uns instante, ento fa-

    lar no posso mais,

    mas se quebra minha lngua, e ligeiro

    fogo de pronto corre sob minha pele,

    e nada vem meus olhos, e zum-

    bem meus ouvidos,

    e gua escorre de mim, e um tremor

    de todo me toma, e mais verde que a relva

    estou (...)

    (RAGUSA, 2005, 442)

    Aqui, nestes versos de Safo, o amor toma o eu lrico de sbito, e vai lhe invadindo o

    corpo numa exuberncia de sensaes. A essa modalidade de amor vincula-se vrios conceitos

    relacionados s sensaes e sensualidade narcisismo, ninfomania, pederastia, satirase,

  • 19

    afrodisaco, ertico. (MAZEL, 1988, XII) Neste aspecto, a idia do Amor ertico vincula-se

    primordialmente divindade filha de Afrodite com Ares (Vnus e Marte).

    Todavia, Eros, como j foi apresentado neste trabalho, relaciona-se ainda com uma

    divindade primordial, uma espcie de energia de natureza espiritual proveniente da ciso da

    Noite, quando surgiram Urano e Geia (Cu e Terra), na conformao do mundo, tal qual o

    concebia a mitologia grega antiga.

    J em relao a Psique, associa-se a simbologia da personificao da alma humana. O

    motivo parece ser antigo.11

    Pertence tambm mitologia, tendo assim um carter simblico.

    No h dvida de que a narrativa uma tessitura mtica, pois as personagens so deuses, e

    Psique se torna, no final, uma deusa. (GES, 2007, 77) Nesse caso, o smbolo, enquanto

    estrutura semitica, do que se poderia chamar de alma humana. Por outro lado, Psique

    tambm uma personagem de natureza essencialmente humana. Ela no uma divindade, no

    tambm uma herona (no representa uma linhagem, ou uma famlia), uma princesa mortal;

    porm, seu destino tornar-se uma divindade. um tipo de personagem, no que diz respeito s

    dimenses mticas de Grimal, caracterstica das novelas de carter lendrio. Ela galga o

    caminho da imortalidade, num percurso de apoteose.

    O mito de Psique apresenta-se, segundo Lcia Ges, como um smbolo da purificao

    da alma, no caminho das provaes materiais. Da sua relao com a literatura crist primitiva.

    As sucessivas readaptaes do mesmo motivo, em pocas e em culturas diferentes, sugerem o

    carter mitolgico do tema. Ges apresenta exemplos de motivos semelhantes encontrados

    desde a literatura marroquina, de carter muulmano, passando por variantes romanas, indianas,

    bengalesas, etc. Mantendo frequentemente elementos composicionais recorrentes, e desenhando,

    na outra ponta, uma forma arquitetnica, nos moldes de uma representao de carter simblico,

    como tambm mitolgico.

    11 Cf. Ges, 2006, 86.

  • 20

    3.3. Eros e Pisque em Fernando Pessoa

    Conta a lenda que dormia

    Uma Princesa encantada

    A quem s despertaria

    Um Infante, que viria De alm do muro da estrada.

    Ele tinha que, tentado,

    Vencer o mal e o bem,

    Antes que, j libertado,

    Deixasse o caminho errado

    Por o que Princesa vem.

    A Princesa Adormecida,

    Se espera, dormindo espera,

    Sonha em morte a sua vida,

    E orna-lhe a fronte esquecida,

    Verde, uma grinalda de hera.

    Longe o Infante, esforado,

    Sem saber que intuito tem,

    Rompe o caminho fadado,

    Ele dela ignorado,

    Ela para ele ningum.

    Mas cada um cumpre o Destino Ela dormindo encantada,

    Ele buscando-a sem tino

    Pelo processo divino Que faz existir a estrada.

    E, se bem que seja obscuro

    Tudo pela estrada fora,

    E falso, ele vem seguro,

    E vencendo estrada e muro, Chega onde em sono ela mora,

    E, inda tonto do que houvera,

    cabea, em maresia,

    Ergue a mo, e encontra hera,

    E v que ele mesmo era A Princesa que dormia.

    Publicado pela primeira vez in Presena, n.os 41-42, Coimbra, maio de 1934. Acerca da epgrafe que encabea este

    poema diz o prprio autor a uma interrogao levantada pelo crtico A. Casais Monteiro, em carta a este ltimo:

    A citao, epgrafe ao meu poema "Eros e Psique", de um trecho (traduzido, pois o Ritual em latim) do Ritual do

    Terceiro Grau da Ordem Templria de Portugal, indica simplesmente - o que fato - que me foi permitido folhear os

    Rituais dos trs primeiros graus dessa Ordem, extinta, ou em dormncia desde cerca de 1888. Se no estivesse em

    dormncia, eu no citaria o trecho do Ritual, pois se no devem citar (indicando a origem) trechos de Rituais que

    esto em trabalho [In VO/II.] (FRANCO, 2006)

    ...E assim vdes, meu Irmo, que as verdades

    que vos foram dadas no Grau de Nefito, e

    aquelas que vos foram dadas no Grau de Adepto

    Menor, so, ainda que opostas, a mesma verdade.

    (Do Ritual Do Grau De Mestre Do trio

    Na Ordem Templria De Portugal)

  • 21

    3.4. Eros e Psique em Fernando Pessoa Anlise

    Inicialmente, para a anlise do poema, resgatamos o conceito de intertextualidade,

    recorrendo principalmente obra Pardia, Parfrase e Cia, de Santanna.12 Neste pequeno

    estudo, o autor investiga os conceitos de pardia, parfrase, estilizao e apropriao, como

    recursos de natureza composicional, ressaltando o largo uso da pardia na modernidade,

    sobretudo a partir do surgimento das chamadas vanguardas modernas.

    Como j se ressaltou, no intentamos promover uma anlise minuciosa e acurada,

    aprofundada e detida do poema. Nosso objetivo identificar o dilogo entre o escrito de

    Fernando Pessoa e o mito de Eros e Psique pelo ponto de vista da intertextualidade entabulada

    pelo texto com a tradio, os costumes, a tica, os elementos que antecedem a criao, ou

    recriao; como tambm fenmeno de exerccio esttico de um autor.

    Portanto, o que nos interessa, sobretudo, tratar da comparao entre os contedos,

    segundo a teoria que apresentamos, realizando-se plenamente na forma, no material, na

    estrutura composicional. Por isso resgatamos a semitica. Signos como o amor primordial, a

    alma humana, estrada para a redeno, essncia e, destacadamente, no caso da mitologia, o

    tema dAs metamorfoses, povoam desde sempre a mente humana. Ges recorre a Jung para tratar

    do assunto

    Para Jung, o inconsciente coletivo estruturado por arqutipos, dinamismos

    inconscientes que podem ser postulados a partir de suas manifestaes, das imagens

    primordiais ou smbolos comuns a toda a humanidade, e que so a base das religies,

    dos mitos, dos contos maravilhosos e da maioria das atitudes em face da vida.

    (GES, 2007, 24)

    Voltaremos posteriormente ao tema da psicanlise. Por ora, basta atentar para a questo

    simblica do mito, que agrega em si uma srie de marcas de natureza social em sua

    configurao, seu carter de signo, pertencente ao mundo coletivo. O dilogo entre o autor e o

    texto fundador estabelece uma rede de interaes e trocas, e esse processo acaba por recriar a

    tradio, configurando o texto polifnico, em que h uma pluralidade de vozes inscritas no

    discurso.

    Quanto forma composicional, o texto de Fernando Pessoa pertence lrica. No nos

    parece proveitoso, em vista das condies espao-temporais reduzidas, e tambm da natureza

    sucinta deste trabalho, empreender uma comparao minuciosa da forma composicional do

    poema com a do romance. Pertencem a gneros diferentes de composio literria. Alm disso,

    como se pde notar, apresentamos o romance de Apuleio, no em sua forma original, a partir da

    transcrio ipsis literis das palavras do autor13

    . Buscamos resumir a histria, apresentando os

    pontos fundamentais no que diz respeito ao enredo e natureza simblica dos personagens. Essa

    proposta nos pareceu a mais coerente, j que tratamos de uma espcie literria essencialmente

    metamrfica, que se adapta s circunstncias locais. Assim, o mito, em razo de sua natureza

    simblica, transporta no espao-tempo idias fundamentais, fundadoras, e as reconfigura de

    acordo com as necessidades de representao, ou re-apresentao, do seu contedo, do tema ou

    12 SANT'ANNA, Affonso Romano. Parodia, parafrase & cia. 2. ed. So Paulo: tica, 2007.

    13 Considerando-se que as seguidas readaptaes e tradues pudessem, supostamente, conservar essa forma literal.

  • 22

    motivo. Por isso, pareceu-nos legitimo apresentar uma verso resumida do texto. Ressaltamos,

    todavia, a importncia da leitura do original para uma interao mais abrangente com a histria.

    Antes de entrarmos na anlise composicional propriamente dita do poema, que ser feita

    com contribuies variadas dos autores escolhidos como referncia para este trabalho,

    gostaramos de ressaltar a filiao da forma, no poema de Fernando Pessoa, tradio do

    Cancioneiro lusitano, e de sua relao com a chamada Lrica Provenal. F-lo-emos

    resumidamente, com o intuito de demonstrar o processo de reconfigurao do mito quando de

    sua absoro nas diversas culturas.

    Na histria da literatura portuguesa, a tradio do Cancioneiro remonta Idade Mdia,

    no sculo XII, quando predomina[va] o lirismo trovadoresco em todas as cortes europias

    (GES, 2007, 66). O prprio rei D. Diniz, descendente de Afonso I (Dom Afonso Henriques),

    primeiro rei de Portugal, revelou-se um dos principais divulgadores da chamada Lrica

    Provenal, sendo ele prprio autor de poesia popular, compondo tanto Cantigas de Amor e de

    Amigo, como Cantigas de escrnio e maldizer. A tradio do Cancioneiro baseia-se em larga

    escala na cultura oral, dos trovadores, quando os textos eram efetivamente cantados, da o nome.

    A forma composicional mais popularizada do Cancioneiro so as Redondilhas: versos

    pentassilbicos na redondilha menor; versos heptassilbicos na redondilha maior. A chamada

    Medida Velha. O poema hora analisado vincula-se a essa tradio, os versos so heptassilbicos,

    e esto dispostos em sete estrofes (setina) de cinco versos (quintilha). A lrica trovadoresca

    estava em voga na Europa na poca do primeiro reinado portugus, precisamente no sculo XII.

    No nos parece que seja simples acaso que Fernando Pessoa tenha recorrido a esta forma

    especfica para se referir mitologia e lenda. No tema, reconfigura-se a lenda da prpria

    formao de Portugal, com seus heris e fatos marcantes. O caminho do infante pode referir-se

    a duas dimenses que se completam: o percurso do autoconhecimento do indivduo, e o

    percurso de realizao histrica da uma nao. Alm disso, a escolha da forma tpica do

    Cancioneiro, vinculada oralidade, bastante adequada para tratar de um tema essencialmente

    oral e popular, a mitologia.

    O poema de Pessoa introduzido por uma epgrafe

    ...E assim vdes, meu Irmo, que as verdades

    que vos foram dadas no Grau de Nefito, e

    aquelas que vos foram dadas no Grau de Adepto

    Menor, so, ainda que opostas, a mesma verdade.

    (Do Ritual Do Grau De Mestre Do trio

    Na Ordem Templria De Portugal)

    Essa voz introduzida no mito est permeada pela tradio, pela histria e pelos

    costumes. O caminho do infante esforado vai da ignorncia ao conhecimento, num percurso de

    aventuras e provaes. Tal qual a Psique, de Apuleio, o infante rompe o caminho fadado, mas

    cumpre o Destino, em busca da compreenso e do esclarecimento.

    Pessoa sugere que esse caminho envereda por uma dimenso esotrica e ocultista.

    clebre a relao do poeta da Mensagem com a ordem de carter esotrico Rosa Cruz14. Outro

    elemento a referncia aos Templrios, antiga ordem crist, na qual os nefitos eram iniciados

    14 Cf. o clebre poema de Fernando Pessoa, No tmulo de Christian Rosenkreutz.

  • 23

    no conhecimento dos mistrios. O caminho de autoconhecimento do infante confunde-se com o

    caminho de realizao coletiva, de todo um povo, de toma uma nao.

    Ao lanar mo da mitologia, o poeta insere sua voz na tradio e nos costumes. O objeto

    esttico, de carter puramente arquitetnico, submetido esfera axiolgica, resulta numa obra

    que, mantendo traos da tradio, tambm dialoga com ela, fazendo soar sua voz na voz

    coletiva, da a importncia do mtodo teleolgico. De certa forma, o poeta atualiza o mito:

    despe o mito de sua roupa anterior, para vesti-lo com as roupas de uma nova cultura.

    Voltando ento ao modelo terico proposto por Santanna,

    Parte-se do princpio de que numa teorizao sobre a linguagem, dentro e fora da

    literatura, a parfrase e a apropriao funcionam como elementos de tenso que

    explicam melhor os prprios conceitos de pardia e estilizao. (SANTANNA,

    2007, 7-8)

    Este autor apresenta trs propostas de mtodos tericos para se analisar a

    intertextualidade. Para fins deste trabalho, optamos pela segunda modalidade. Isso significa que

    no ser to importante para ns o conceito de apropriao. Interessa-nos principalmente o

    conceito de estilizao, mas configurado ao lado dos conceitos de parfrase e pardia.

    Essa modalidade de anlise baseia-se ainda na idia de desvio

    Consideramos que os jogos estabelecidos nas relaes intra e extratextuais so

    desvios maiores ou menores em relao a um original. Desse modo, a parfrase surge

    como um desvio mnimo, a estilizao como um desvio tolervel, e a pardia como

    um desvio total. (SANTANNA, 2007, 38)

    A estilizao seria ento

    (...) algo quantitativamente verificvel, sem (...) problemas qualitativos (...). Esse

    desvio tolervel seria o mximo de inovao que um texto poderia admitir sem que

    se lhe subverta, perverta ou inverta o sentido. Seria a quantidade de transformaes

    que o texto pode tolerar mantendo-se fiel ao paradigma inicial. (SANTANNA,

    2007, 39).

    Configurao do modelo terico

    Vamos comparar dois temas principais nos dois textos: a questo da mitologia e da

    metamorfose.

    3.4.1. Anlise comparativa do tema mitolgico

    Para fins desta anlise, importante reiterar o carter flexvel do mito, que se conforma

    a diferentes sistemas, no s culturais, mas tambm de organizao e representao do

    pensamento. O mito apresentado no texto pessoano, ou como um desvio mnimo ou como um

    desvio tolervel. Mnimo, pois a intertextualidade bastante bvia no resgate do ttulo do texto

    original, Eros e Psique. Nesse sentido, uma parfrase, como processo de intertextualidade. O

    parfrase estilizao pardia

    (desvio mnimo) (desvio tolervel) (desvio total)

  • 24

    poeta j adianta que se trata do mesmo motivo lendrio. Por outro lado, h tambm desvios

    tolerveis em relao ao sentido original.

    A vinculao do mito a rituais iniciticos corresponde idia das Religies de mistrios

    na antiguidade. Enquanto esses rituais estariam relacionados ao mundo moderno e histria

    pessoal do autor (ou artista) e de sua matriz histrica, as antigas religies de mistrios exerciam

    uma funo semelhante na antiguidade grega. Mantm-se a estrutura composicional, entretanto,

    ocorre um deslocamento espao temporal, o signo inserido numa nova realidade, atualizado.

    A prpria conformao do mito o predispe adaptao e transformao. Sua codificao,

    embora mantenha um ncleo significante bsico (relacionado sua forma arquitetnica, como

    estrutura mental elementar), adapta-se s condies espao-temporais.

    Por outro aspecto, o mito, segundo nos parece, apresenta-se essencialmente

    metamrfico, o que atribui ao tema um aspecto metalingstico. A capacidade de adaptao do

    mito em contextos diversos deve-se sua potencialidade como dispositivo de metamorfose

    constante. O mito mantm uma flexibilidade que o caracteriza como uma estrutura semitica

    extremante polivalente. Portanto, tratando ou no do motivo metamrfico, a reconfigurao do

    mito essencialmente um processo de metamorfose.

    No texto pessoano, o mito mantm seu carter fundador. Origina-se na mitologia

    cosmognica, mantm seu carter simblico, configurado em sua forma arquitetnica de

    natureza elementar e coletiva. Todavia, Eros e Psique aparecem no poema como as duas

    faces de uma mesma moeda. No so duas personagens, mas uma individualidade no caminho

    do autoconhecimento. H um desvio. No entanto, ele no subverte a lgica essencial do enredo:

    o percurso que parte da ignorncia, passando por provaes, at chegar ao conhecimento.

    Contudo, o destino de Psique a deificao, o destino do infante/princesa o

    autoconhecimento.

    Pode-se interpretar que a simbologia a mesma nos dois textos. A opo da forma

    composicional, no entanto, sugere uma variao: Em Apuleio, a metfora do casamento do

    Amor com a Sabedoria configura-se na aventura humana, galgando o percurso da

    espiritualizao e da deificao. Em Pessoa, as duas personagens distintas, configuram, ao final

    do poema, uma mesma individualidade. uma busca simblica, o humano procurando o divino

    dentro de si mesmo. A parfrase parece clara: ambos os textos tratam do percurso do humano

    rumo espiritualizao. Todavia, h um desvio no modo de composio da forma.

    No texto de Apuleio, o mito tem um carter moralizante: Psique percorre o caminho

    culpa-castigo-redeno-beatitude (GES, 2007, 22). A realizao dos amantes se d a partir

    da divinizao e redeno do amor humano e eivado de culpa. Em Fernando Pessoa, o infante

    segue o caminho da autodescoberta, da conscincia e da unificao. O dilogo com a tradio

    explcito, como tambm a inteno (configurada no texto, no a inteno do autor) de intervir

    no discurso original, inscrevendo a voz autoral na voz coletiva.

    3.4.2. Anlise comparativa do tema da metamorfose

    A metamorfose, em Apuleio, corresponde a uma aventura num percurso que vai da

    ignorncia ao esclarecimento. Paradoxalmente, no se trata de metamorfose da forma, mas da

    essncia. Psique transformada por dentro, no por fora. Reside aqui uma das singularidades da

    alegoria Psique. Ela essencialmente a personificao da alma. Segundo Grimal, nas origens, o

    conceito de esprito, entre os antigos gregos, estava essencialmente associado natureza

  • 25

    feminina. O autor, recorrendo aos mitos cosmognicos, tece algumas consideraes sobre o

    tema do feminino

    Dentre as Titnidas, duas sobretudo, Tmis e Mnemosina, merecem ateno. A

    primeira o poder por excelncia da Ordem do Mundo: Tmis a Lei, o equilbrio

    eterno. Sua irm Mnemosina o poder do Esprito, a Memria que garante a vitria

    do esprito sobre a matria instantnea e a base de toda a inteligncia. Elas no se

    uniram aos Tits, mas foram de alguma maneira reservadas para Zeus e a gerao

    dos Olmpicos. Isso porque os Tits so foras brutais, elementares, nas quais o

    espiritual ainda no foi incorporado, a no ser em estado rudimentar. singular e

    significativo que as duas potncias nas quais se prefiguram o esprito sejam de

    natureza feminina (grifo nosso) talvez porque o esprito recuse a violncia e adie

    qualquer ao imediata; talvez por ele ser de lenta maturao; talvez simplesmente

    porque se observe nessas crenas o reflexo de um estado social bem conhecido em

    outros lugares no qual as mulheres so depositrias dos segredos e da cincia

    comuns tribo. (26)

    Psique, nesta perspectiva, representa a essncia feminina, alm de smbolo do esprito

    encarnado no corpo, a alma personificada.

    Em Pessoa, a personagem apresenta-se de modo ambguo. Os dois personagens so o

    mesmo. ele mesmo era/ a princesa que dormia. A metamorfose tambm processo interior, mas

    no h duas personagens que se completam, trata-se do indivduo que se transforma ao tomar

    conscincia de si mesmo.

    Em outra perspectiva, (Franco, 2006)15

    esboa uma interpretao psicanaltica (...)

    Psique (...) a feminilidade na mulher, como a prpria mulher (a, me, irm, amiga, amante) e

    tambm, e ao contrrio, a alma feminina na psicologia masculina.

    Johnson, por outro ponto de vista, apresenta Psique em contraste com Afrodite,

    personagens centrais neste mito. Afrodite, personagem arcaica da feminilidade nasceu do mar,

    primeva, a feminilidade ocenica. Faz parte de um estado de evoluo pr-consciente (...) Em

    termos psicolgicos, ela reina no inconsciente, simbolizado pelas guas ocenicas.

    (JOHNSON, 1987, 10) Psique, por outro lado, a que nasceu de uma gota de orvalho que caiu

    sobre a terra. A terra smbolo da conscincia, e aqui vemos o que seja a mudana do oceano

    para a terra. Ao invs de propores ocenicas, temos as controlveis guas de uma gota de

    orvalho (idem, ibidem, 15). Psique representa o aspecto autoconsciente da matria. O smbolo

    da alma, como elemento de natureza metafsica, adquire uma conotao orgnica, funcional.

    Psique torna-se a mente, em sua poro consciente.

    Na anlise comparativa, a estilizao segue ainda a orientao de desvio tolervel. Na

    voz pessoana, o desvio pode ser interpretado no sentido de uma atualizao do mito, ou da

    simbologia que o envolve. Psique a alma que reside dentro do humano, seu encontro com Eros

    simboliza o encontro do amor sensrio com a mente e com a dimenso cognitiva. Neste sentido,

    est mais prximo dos rituais de autoconhecimento praticados nas antigas religies de mistrio

    gregas. A metamorfose aqui adquire caracterstica de um processo psicanaltico, embora no

    recuse a dimenso espiritual. Todavia, no um percurso no caminho da deificao.

    A interpretao mais provvel da novela lendria escrita por Apuleio, parece-nos, segue

    a mesma linha de pensamento; todavia, no processo de composio da obra, os elementos so

    15 O livro no numerado em pginas.

  • 26

    dispostos em processos composicionais diferentes, expressando costumes diferentes. H uma

    atualizao da histria: o amor se espiritualiza no encontro com a divinidade, em Apuleio; o

    indivduo se espiritualiza, quando segue a estrada dos mistrios, da busca pela dimenso

    esotrica da existncia, ao mesmo tempo em que se conscientiza de sua filiao a uma nao

    cultural especfica, em Fernando Pessoa; realizando-se no coletivo. o motivo da metamorfose,

    mas sua configurao passa por um desvio tolervel.

    Na resoluo do enredo, em Apuleio, Psique torna-se deusa, e de sua unio com Eros,

    surge a Volpia. Em Pessoa, as duas personagens se fundem numa s. O amor espiritualizado,

    e surge o humano consciente. O desvio tolervel, no h subverso do original, mas uma

    reforma, a pardia deforma, a parfrase conforma e a estilizao reforma. (SANTANNA,

    2007, 41)

  • 27

    Concluso

    Vale ressaltar que a mitologia interpretada frequentemente como pensamento de

    natureza religiosa. Talvez isso se deva fundamentalmente s formulaes originais em torno do

    tema relatos a respeito da formao do mundo e do nascimento dos deuses. (GRIMAL,

    2009, 19). Sendo assim, lanando mo das reflexes de Santanna, conclumos que a estilizao

    revela-se efetivamente como o processo composicional de intertextualidade mais adequado ao

    tipo de readaptao proposto por Fernando Pessoa.

    A pardia deforma o original; a estilizao o reforma. A obra de Fernando Pessoa no

    intenta deformar o mito, nem tampouco destru-lo. Ao contrrio, quer reforar sua importncia,

    exaltar sua riqueza simblica. Da que sua interveno no relato mitolgico se faa por um

    processo de desvio tolervel, no eixo da estilizao. A parfrase e a estilizao podem ser

    consideradas como a linguagem do sagrado por excelncia; ao profano, convm o eixo da

    pardia e da apropriao.

    (...) esses eixos esto na raiz da teoria do conhecimento. So formas de pensar o

    mundo. Por isso posso penetrar livremente em comparaes at msticas e teolgicas,

    para dizer que a parfrase pretende ser a linguagem do paraso (...) ela a linguagem

    do homem antes da queda, quando tudo era igual e indiferenciado. J a pardia um

    rudo, a tentao, a quebra da norma. tica e misticamente a pardia s poderia estar

    do lado demonaco e do Inferno. (SANTANNA, 2007, 33)

    Santanna destaca o aspecto dialtico da intertextualidade. No h nenhuma

    considerao de ordem religiosa ou maniquesta, apenas um exemplo. Por outro lado, um

    processo de desvio total seria talvez a carnavalizao, a dessacralizao do mito, como a pensou

    Bakthin. O importante perceber as aproximaes e afastamentos, as semelhanas e as

    diferenas Falar da pardia falar de intertextualidade das diferenas. Falar de parfrase falar

    de intertextualidade das semelhanas. (SANTANNA, 2007, 28)

    Poderamos proceder comparao de outros elementos, mas optamos por restringir a

    anlise a esses dois apenas: a mitologia e a metamorfose. Pareceu-nos serem os temas

    fundamentais, mais significativos, nas duas obras, e os elementos que mais as aproximam.

    Poder-se-ia destacar outros elementos do texto para fins de comparao: o amor, o cronotopo da

    estrada, a culpa, a redeno, etc.

    importante ressaltar que a comparao se deu a partir da interpretao dos textos.

    Certamente foi significativo nosso olhar subjetivo, mesmo que amparado decisivamente em

    outras vozes. Essa constao, parece-nos, mais um indicativo do carter polifnico do

    discurso. Quando algum dialoga com a voz coletiva, de alguma forma, insere ali sua voz.

    Como ltimo ponto, tratamos da questo da modernidade. O texto de Fernando Pessoa

    dialoga com o texto anterior pelo dispositivo da estilizao, promovendo um desvio tolervel. A

    intertextualidade encontra-se estabelecida no eixo das semelhanas. Por outro lado, a

    modernidade, enquanto paradigma de pensamento poca do autor, expressou-se, sobretudo,

    no eixo da pardia, entendida aqui como processo de desvio total do texto novo em relao ao

    texto fundador.

    No campo das artes visuais, nas primeiras dcadas do sculo XX, a forma

    composicional figurativa deu lugar abstrao. No discurso literrio, a nova ordem era no ter

    nenhuma ordem. Movimentos como o Dadasmo defendiam a destruio dos sistemas

  • 28

    organizados, o rompimento absoluto com a tradio. Era um momento de rompimento, e os

    chamados Movimentos de Vanguarda estabeleceram novas diretrizes para a criao artstica. A

    relao com a tradio baseava-se na destruio dos paradigmas. A pardia, enquanto

    dispositivo de desvio total, configura-se como o processo de intertextualidade mais adequado a

    estas propostas vanguardistas.

    O poema de Pessoa, nessa perspectiva, dialoga com o mito atualizando-o, inserindo-o

    em um novo contexto. No intenta apagar a tradio, mas reconfigur-la. A modernidade est

    caracterizada na obra do autor portugus como um processo essencialmente de estilizao, no

    de pardia.

    A abordagem do tema, no sentido do esclarecimento do ser humano, revela um

    elemento do pensamento moderno: o antropocentrismo, a busca pelo autoconhecimento, a

    verdade est dentro do prprio homem. O homem figura como centro das reflexes. No uma

    busca por uma dimenso espiritual externa ao homem, mas o encontro com a divindade interna

    que ele traz em si. Se essas reflexes no esto relacionadas especificamente modernidade, no

    sentido das inovaes artsticas de carter pardico, elaboradas pelos movimentos de vanguarda,

    no incio do sculo XX; elas vinculam-se, de alguma maneira, s formulaes mentais que

    surgiram a partir da chamada Idade Moderna.

    Finalmente, o aspecto mais moderno da obra de Fernando Pessoa a heteronmia. Sua

    obra est repartida em uma infinidade de personalidades autorais concorrentes. O tema Eros e

    Psique, na forma como tratada pelo poeta, sugere uma reunificao. possvel que haja aqui

    um dilogo do autor com sua prpria obra, uma intratextualidade. A desintegrao de sua

    personalidade era angstia constante para o poeta portugus. Ainda que as indicaes extra-

    textuais, a epgrafe, a nota enviada a Joo Gaspar Simes, acenem no sentido de outra

    interpretao, parece-nos fecunda tambm essa leitura. [Pessoa] encerra a duplicidade em uma

    nica pessoa, o ortnimo, e o heternimo, desvelados como espacial e temporalmente, sendo

    todos e um nico. (GES, 2007, 233) No seria a poesia de Fernando Pessoa essencialmente

    polifnica?

    Nosso objetivo neste trabalho era investigar a intertextualidade como processo

    composicional e artstico dentro da Literatura, considerado sob o ponto de vista da histria das

    sociedades humanas. Lanamos mo do conceito de estilizao para comparar os dois textos.

    Nessa comparao, procuramos mostrar como o mito, ou o relato de natureza mitolgica, foi

    conformado e readaptado nas obras de Lcius Apuleio e de Fernando Pessoa, e como se

    estabeleceu o dilogo entabulado entre os textos.

    Para tanto, apresentamos consideraes sobre Mitologia, Literatura comparada,

    Semitica e cronotopo. Como aporte terico, valemo-nos de um modelo de anlise comparativa

    que conjuga os conceitos de pardia, parfrase e estilizao. Procuramos ento destacar o

    processo de estilizao utilizado por Fernando Pessoa para dialogar com a tradio e com a

    mitologia, inserindo sua voz autoral na voz coletiva.

    No foi nossa inteno esgotar o assunto, longe disso. Procedemos a uma anlise

    sucinta, principalmente no que diz respeito comparao dos elementos num e noutro texto.

    Todavia, a reflexo sobre o tema encontra-se difundida ao longo do estudo de forma

    generalizada.

  • 29

    Na investigao de carter literrio, a interpretao pessoal permitida, e at mesmo

    desejada. Por isso, apresentamos uma comparao baseada, sobretudo, na dimenso do

    contedo, elemento da obra onde a interpretao se faz mais aparente, e que se realiza

    plenamente na forma.

    Por essa razo, parece-nos que comparaes que partissem de interpretaes diversas

    poderiam apresentar resultados diversos. Em nosso caso, conclumos que a comparao

    apresentada mostra que a intertextualidade presente no texto lrico de Fernando Pessoa, em

    relao novela lendria de Apuleio, foi construda pelo vis da estilizao e da parfrase, num

    processo de desvio tolervel, em que o texto fundador no foi deformado e nem subvertido, mas

    reformulado, reconfigurado e reformado.

    A intertextualidade configura-se pelo dilogo entre as vrias vozes que so veiculadas

    nos discursos. A interpretao pessoal, nesse panorama, mostra-se aceitvel, desejvel e,

    poderamos at mesmo dizer, inseparvel do processo de leitura do texto literrio. Tomamos o

    cuidado, no entanto, de no proceder interpretao segunda uma viso hegemnica e

    definitiva. Procuramos inscrever nossa voz na voz coletiva, com o intuito de ampliar as

    possibilidades de leitura e releitura do texto literrio.

    Por outro lado, gostaramos de reiterar o carter comparativo do trabalho, destacando a

    funcionalidade dos modelos tericos de pardia, parfrase, estilizao e apropriao. Essa

    ferramenta facilita a anlise comparativa, mesmo em textos que porventura pertenam a pocas,

    localidades ou gneros diversos.

  • 30

    Bibliografia

    Fontes primrias

    BAKHTIN, M. M. Questes de literatura e de estetica: a teoria do romance. 2. ed. So Paulo:

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