Erros Irreversiveis Scott Turow

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  • EDIES BESTBOLSO

    Erros irreversveis

    Scott Turow nasceu em Chicago, em 1949, e estreou na literatura em 1977 com o livro O primeiroano, um relato de suas experincias como estudante de direito em Harvard. Dez anos depois,publicou Acima de qualquer suspeita, best-seller que o consagrou. O escritor um mestre daliteratura de suspense de tribunais, seus livros so sucessos instantneos, chegando sempre ao topodas principais listas de mais vendidos de todo o mundo. Turow scio de um escritrio deadvocacia em Chicago e em 2002 participou de uma comisso federal para discutir a pena de morteao lado de polticos e dos maiores juristas dos Estados Unidos.

  • Traduo de

    ALES CALADO

    1 edio

    Rio de janeiro 2012

  • CIP-BRASIL. CATALOGAO NA FONTE

    SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

    Turow, Scott, 1949-T858e

    Erros irreversveis / Scott Turow; traduo de Alves Calado. 1 ed. Rio de Janeiro: BestBolso, 2012. Traduo de: Reversible ErrorsFormato: ePubRequisitos do sistema: Adobe Digital EditionsModo de acesso: World Wide WebISBN 978-85-7799-433-5 (recurso eletrnico) 1. Fico norte-americana. I. Calado, Alves, 1953- II. Ttulo.

    CDD: 813CDU: 821.111(73)-3

    Erros irreversveis, de autoria de Scott Turow.Ttulo nmero 326 das Edies BestBolso.Primeira edio impressa em outubro de 2012.Texto revisado conforme o Acordo Ortogrfico da Lngua Portuguesa. Ttulo original norte-americano:REVERSIBLE ERRORS Copyright 2002 by Scott Turow.Publicado mediante acordo com o autor.Copyright da traduo by Distribuidora Record de Servios de Imprensa S.A.Direitos de reproduo da traduo cedidos para Edies BestBolso, um selo daEditora Best Seller Ltda. Distribuidora Record de Servios de Imprensa S. A. e Editora Best Seller Ltda so empresas do GrupoEditorial Record. www.edicoesbestbolso.com.br Design de capa: Srgio Campante sobre foto Photo 24 (Getty Images), a partir do conceito desenvolvido por Tita Nigr.Todos os direitos reservados. Proibida a reproduo, no todo ou em parte, sem autorizao prvia por escrito da editora, sejam quaisforem os meios empregados. Direitos exclusivos de publicao em lngua portuguesa para o Brasil em formato ePub adquiridos pelas Edies BestBolso um selo daEditora Best Seller Ltda. Rua Argentina 171 20921-380 Rio de Janeiro, RJ Tel.: 2585-2000. Produzido no Brasil ISBN 978-85-7799-433-5

  • Para Jonathan Galassi

  • erro reversvel s. No sistema legal norte-americano, um erro jurdico to significativocometido por um tribunal, que um juiz de apelao que esteja revendo o processo podedescartar o julgamento anterior. Nesse caso, o tribunal instrudo a arquivar o processo, ajulg-lo de novo ou ento a modificar sua deciso.

    Nota do editor: Apesar do original Reversible Errors, optamos por manter nesta edio debolso o mesmo ttulo publicado pela Editora Record, em 2003, e do filme homnimoproduzido para a tev norte-americana em 2004.

  • Parte IInvestigao

  • 1Advogado e cliente

    20 de abril de 2001

    O cliente, como a maioria dos clientes, dizia ser inocente. Seria executado em 33 dias.Arthur Raven, seu advogado, estava decidido a no se preocupar. Afinal de contas, pensava

    Arthur, ele nem mesmo era voluntrio. Em vez disso, fora convocado pelo Tribunal Federal deApelaes para garantir que, aps dez anos de litgio, no restasse nenhum argumento vivel parasalvar a vida de Rommy Gandolph. Preocupar-se no fazia parte do trabalho.

    Mesmo assim estava preocupado. O que foi? perguntou Pamela Towns, sua jovem scia, do banco do carona. Um murmrio

    angustiado havia escapado de Arthur quando ele tinha ficado novamente sozinho consigo mesmo. Nada disse ele. S odeio ser o perdedor designado. Ento no deveramos perder. Pamela, com seu belo rosto rosado, perfeito para um

    noticirio de TV, abriu um amplo sorriso luminoso.Agora estavam longe da cidade, a 130 por hora no piloto automtico do novo sed alemo de

    Arthur. Naquela regio, a estrada era to plana e reta que ele nem precisava tocar o volante. Asfazendas nas pradarias passavam rapidamente, com restolhos de milho e terra preta, silenciosas eeternas luz dbil da manh. Haviam deixado Center City s 19 horas, para no pegarem trnsito.Arthur esperava ter uma breve reunio de apresentao com seu novo cliente, Rommy Gandolph, napenitenciria estadual de Rudyard e estar de volta a sua mesa s 14 horas ou s 15 horas, sedecidisse se arriscar a convidar Pamela para o almoo. Sua ateno se concentrava na jovem, nocabelo castanho e sedoso cado sobre os ombros e na mo que ia at a coxa a intervalos de algunsquilmetros para puxar para baixo a bainha da saia xadrez.

    Por mais ansioso que estivesse por lhe agradar, Arthur no podia oferecer muita esperana aocaso.

    Neste estgio falou , segundo a lei, a nica coisa que poderia significar um erro reversvelseria uma nova prova de inocncia. E ns no vamos achar isso.

    Como voc sabe? Como eu sei? Porque, afora ao Daily Planet, o cara confessou a todo mundo. Dez anos

    antes, Gandolph tinha admitido a culpa para a polcia; depois, fez uma declarao escrita para a

  • promotora, Muriel Wynn, e finalmente repetiu a confisso em vdeo. Em cada ocasio, ele admitiuser a pessoa que tinha atirado em dois homens e uma mulher e que os deixara no frigorfico de umrestaurante, num caso que ainda era chamado, segundo as palavras comportadas da imprensa, deMassacre de Quatro de Julho.

    Bom, ele ficou dizendo ao telefone que era inocente disse Pamela. possvel, no ?Para Arthur, que fora assistente da promotoria antes de ir trabalhar, havia sete anos, na

    OGrady, Steinberg, Marconi e Horgan, no havia nenhuma possibilidade disso. Mas Pamela, com25 ou 26 anos, tinha apenas comeado a exercer a profisso. Salvar um cliente inocente era o tipode aventura que ela havia imaginado na faculdade de direito, partindo como Joana dArc emdireo justia fulgurante. Em vez disso, tinha se conformado com uma grande firma de advocaciae 120 mil dlares por ano. Mas por que no ter tudo? Bem, no se podia culpar as pessoas por suasfantasias. Arthur Raven tinha conscincia disso.

    Escute o que eu achei nos registros de condicional de Rommy disse Pamela. Em 5 de julhode 1991, ele foi condenado a uma pena j cumprida por uma violao de condicional. Osassassinatos foram na manh do dia 4 de julho. De modo que pena j cumprida significa que eleestava na cadeia, no ?

    Significa que em algum momento ele esteve na cadeia. No necessariamente em 4 de julho. Aficha do sujeito diz que ele estava na cadeia em 4 de julho?

    No. Mas uma coisa a investigar, no ?Teria sido algo a investigar havia uma dcada, quando os registros para provar que isso era um

    absurdo ainda existiam. Mas, mesmo assim, o Tribunal Federal de Apelaes poderia conceder aGandolph um breve adiamento na execuo, tempo durante o qual Arthur e Pamela seriamobrigados a se esforarem numa pesquisa difcil e intil dessa teoria imaginria.

    Irritado com a perspectiva de mais tempo perdido, Arthur mexeu no piloto automtico,aumentando um pouco a velocidade, e sentiu uma leve satisfao na resposta do grande automvel.Comprara o carro havia dois meses, como uma espcie de trofu, depois de se tornar scio integralna firma de advocacia. Era um dos poucos luxos que j se permitira, porm mal tinha virado achave quando comeou a sentir que havia desrespeitado a memria do pai, falecido recentemente,um homem amoroso, mas cujas excentricidades incluam uma frugalidade rgida.

    E oua isto dizia Pamela. Ela havia tirado a ficha policial de Rommy Gandolph da pastagrossa que estava sobre seu colo. Leu as anotaes. Gandolph era ladro e receptador de coisasroubadas. Tinha meia dzia de condenaes: invaso de domiclio, roubo, posse de materialroubado. Mas nada com uma arma disse Pamela. Nenhuma violncia. Nenhuma vtima dosexo feminino. Como que, de repente, ele vira estuprador e assassino?

  • Treino, treino, treino respondeu ele.Com o canto do olho, Arthur viu a boca de lbios carnudos de Pamela se curvar em uma

    expresso desapontada. Como sempre, estava estragando tudo. No sabia exatamente o que tinhafeito de errado com as mulheres para estar solteiro aos 38 anos. A aparncia era uma razo, elesabia. Tinha a postura cada e uma palidez de meia-idade desde a adolescncia. Durante afaculdade, vivera um casamento breve e doloroso com Marjya, uma imigrante romena. Depoisdisso, durante um perodo, parecia no ter a inclinao nem tempo para comear de novo. Havia sededicado muito advocacia muita fria e paixo em cada processo, inmeras noites e fins desemana nos quais chegava a sentir prazer em ter tempo para se concentrar. A sade decadente dopai e o futuro de sua irm, Susan, tambm tinham sido preocupaes exaustivas durante anos. Masagora, procurando ao menos um leve sinal de que Pamela tivesse algum interesse por ele, sentiu-seesmagado pela prpria tolice. Suas esperanas em relao a ela eram to infundadas quanto as delaem relao a Gandolph. Sentia a necessidade de cortar ambas.

    Olha disse Arthur. O nosso cliente Gandolph. Rommy? No somente Rommy confessoulogo e vrias vezes, mas, quando foi a julgamento, sua defesa foi insanidade. Isso exigiu que oadvogado admitisse que Rommy havia cometido o crime. Depois, temos mais dez anos deapelaes, com dois grupos novos de advogados, e nenhum deles menciona que Rommy era ohomem errado. Nem mesmo Rommy, que s se lembrou de que no cometeu o crime quandofaltavam uns 45 dias para receber a picada. Verdade, Pamela. Voc acha que ele contou aosadvogados antes de ns que era inocente? Todo preso conhece esse jogo. Novos advogados, novahistria.

    Arthur sorriu, tentando parecer um homem sbio, mas a verdade era que nunca tinha seacostumado realmente s embromaes dos acusados de crimes. Desde que deixara a promotoria,s atuara como advogado de defesa esporadicamente, quando um dos clientes corporativos dafirma ou um dos chefes das empresas eram suspeitos de alguma manipulao financeira. Aadvocacia que ele vivia na maior parte do tempo como advogado cvel era uma advocacia maisarrumadinha, mais feliz, em que os dois lados fingiam e os assuntos levantados eram questesminsculas de poltica econmica. Seus anos como promotor pareciam um tempo em que ele foradesignado diariamente para limpar um poro inundado onde coliformes fecais e fedor de esgotoapodreciam quase tudo. Algum tinha dito que o poder corrompia. Mas o ditado se aplicavaigualmente ao mal. O mal corrompia. Um nico ato deturpado, algum pedao de psicopatologiagrosseira que ia alm dos limites do que quase todo mundo podia imaginar um pai que jogava seubeb pela janela do dcimo andar, um ex-aluno que enfiava gua sanitria pela garganta daprofessora, ou algum como o novo cliente de Arthur, que no apenas tinha matado, mas depois

  • havia sodomizado um dos cadveres , a sujeira desses atos polua qualquer um que se envolvesse:policiais, promotores, advogados de defesa, juzes. Ningum, diante desses horrores, reagia com aiseno que a lei supunha. Havia uma nica lio: as coisas desmoronam. Arthur no tinha desejode voltar a esse reino onde o caos era sempre iminente.

    Em mais quinze minutos, chegaram. Rudyard era uma cidadezinha parecida com muitas outrasno Meio-Oeste; o centro era formado por alguns prdios escuros, ainda manchados de fuligem decarvo, e vrios hangares de zinco com tetos de plstico corrugado que abrigavam equipamentosagrcolas. Nos arredores, uma espcie de minissuburbanizao estava acontecendo, com shoppingcenters e casas com quintais, resultado da segurana econmica proporcionada por uma indstria-ncora incomum a priso.

    Depois que viraram em uma esquina que parecia cenrio de cinema, com bordos e pequenascasas de madeira, de repente o lugar apareceu no fim do quarteiro, como um monstro de filme deterror saltando de um armrio, uma imagem contnua de 800 metros, composta por prdios detijolos amarelos conectados aleatoriamente, impressionantes pela estreiteza das poucas janelas. Porsua vez, essas estruturas rodeavam um velho edifcio de pedra, forte o bastante para tersobrevivido desde a Idade Mdia. No permetro, ficava no somente um muro de tijolos de 3metros de altura, mas tambm um fosso de cascalho com pontas de ao inoxidvel se projetando, e,para alm disso, uma fronteira de cercas anticiclone sustentando espirais de 1,5 metro de arame-navalha, brilhante ao sol.

    Na casa de guarda da priso, eles assinaram o livro de visitas e, em seguida, foramdirecionados a um banco gasto, para a longa espera enquanto Rommy era trazido para baixo. Nointervalo, Arthur reviu a carta dele, que havia chegado ao Tribunal de Apelaes por intermdio devrias mos. Era escrita numa letra irregular, com marcas multicoloridas e outras caractersticasirregulares demais at para serem chamadas de infantis. S de olh-la se percebia que RommyGandolph estava desesperado e louco.

    Caro juiz,Eu estou no CORREDOR DA MORTE por um CRiMe que nunca CoMeti. Eles Diz que

    eu tIve todas as ApeLaes, e que tudo est contra mim MESMO assim EU SOUINOCENTE. os adevogados que cuidaram do meu Processo No EsTado diz que eles nopode me defender agora, por causa das leIs Federal. o que eu posso fazer? o dia da minhaexecuo deve ser 23 de maio!!!!. eu no posso ter um adiamento nem nada se no tiverum habeus, mas no tenho Adevogado, tenho. O que eu posso fazer? ser que algum ano pode me Ajudar? eu vou ser morto, e nunca machuquei ningum, no nesse caso e

  • nenhuma vez que eu lembre AgorA. ME AJUDE. EU NO MATEI NINGUM nunca!!!!!

    O Tribunal de Apelaes dos Estados Unidos tinha emitido uma ordem tratando acorrespondncia de Rommy Gandolph como uma petio sucessiva para adiamento sob o estatutofederal do habeas corpus e indicando um advogado: Arthur. Os juzes costumavam balanar suasvarinhas mgicas ao acaso para transformar algum sapo involuntrio um advogado totalmenteocupado num prncipe pro bono, com um cliente exigente que no pagava e cujas regras o juizexigia que ele aceitasse. Algum poderia ler a nomeao como um elogio; o tribunal pedindo a umrespeitado ex-promotor estadual para aplicar o equivalente legal da extrema-uno, mas significavaum novo fardo para quem j possua uma vida assoberbada.

    Finalmente, o nome de Rommy foi chamado. Pamela e Arthur foram levados at a rea deconteno, ento a primeira de muitas trancas eletrnicas foi acionada e uma porta de vidro provade balas e de barras de ferro se fechou irrevogavelmente com estrondo atrs deles enquantoseguiam um guarda. Fazia muitos anos que Arthur estivera dentro da penitenciria, mas Rudyard, aseu modo, era atemporal. No os procedimentos. Os procedimentos, do modo como ele recordava,pareciam mudar a intervalos de alguns dias. As autoridades o legislativo estadual, o governador,a administrao penitenciria estavam sempre tentando aumentar a disciplina, impedir a entradade contrabando, controlar as quadrilhas, impedir que os presos, trapaceiros veteranos, armassemesquemas. Havia sempre um novo formulrio para preencher, um novo lugar para guardar dinheiro,chaves, celulares tudo que era proibido de entrar no prdio principal. Sempre outro porto peloqual passar, sempre um novo procedimento de revista.

    Mas o clima, o ar, as pessoas eram imutveis. A pintura era nova; o piso brilhava. Noimportava. Eles podiam esfreg-lo o quanto quisessem. Com tanta gente confinada num lugar topequeno, com uma privada aberta em cada cela, a atmosfera era maculada pelo cheiro deexcremento humano e algum eflvio maior, que primeira respirada deixou Arthur vagamentenauseado, como acontecera havia anos.

    No fim de um corredor baixo de tijolos na qual eles chegaram a uma porta de metal verde,estava pintada uma palavra: Condenados. Ao entrarem por ela, foram levados sala dosadvogados, que na verdade no era uma sala, mas sim duas, um espao com no mais de 1,5 metrode largura dividido por uma parede, que na metade tinha algo parecido com um guich de banco:um painel de vidro com uma abertura de metal embaixo para passar papis. Apesar de isso violartodos os princpios de sigilo entre advogado e cliente, o sistema correcional tinha obtido o direitode manter um guarda postado num canto, do lado do prisioneiro.

    Atrs do vidro, estava Rommy Gandolph, uma apario com cabelos revoltos. As pregas soltas

  • do macaco amarelo usado apenas pelos condenados morte o engoliam. Seus braos estavamalgemados, e, assim, ele teve que estender as duas mos para alcanar o telefone que lhe permitiriaconversar com os advogados. Do outro lado, Arthur pegou o nico fone e o segurou entre Pamela eele, enquanto se apresentavam.

    Vocs so os primeiros adevogados de verdade que eu tive disse Rommy. O resto eradefensor pblico. Acho que talvez eu tenha chance, agora que tenho adevogados de verdade. Rommy chegou perto do vidro para explicar a situao. Eu sou o prximo Homem Amarelo quevai andar pelo corredor, sabiam? Todo mundo j t olhando pra mim. Como se tivesse uma coisadiferente porque agora eu vou morrer logo.

    Pamela se curvou para a abertura dos documentos e disse palavras encorajadoras. Eles iamconseguir um adiamento da execuo naquele dia, prometeu.

    disse Rommy , porque eu sou inocente, cara. Eu no matei ningum. Eu quero fazeraquele exame de DMA, cara, pra ver se eu tenho algum. O DNA, sempre o primeiro pensamentonaqueles dias, no trazia qualquer esperana para Rommy porque o Estado jamais alegara que eledeixara alguma prova gentica identificvel no local do crime: sangue, smen, cabelo, pele oumesmo saliva.

    Sem aviso, Gandolph apontou para Pamela. Voc bonita que nem pareceu pelo telefone. Acho que a gente devia se casar.Levantando-se brevemente, o sorriso de Pamela se transformou de sbito num eclipse, j que

    lhe pareceu que Rommy estava falando muito srio. O cara precisa casar antes de morrer, certo? perguntou Rommy. No uma boa ideia?Fantstico, pensou Arthur. Concorrncia. Se a gente se acertar disse Rommy a ela , eu posso conseguir uma visita ntima.A julgar por sua postura rgida, aquilo no fazia parte do conceito de defesa corajosa de

    Pamela. Arthur, que no tivera ideia de como iniciar a entrevista, pegou rapidamente o julgamentoe a ordem de cumprimento de pena da juza Gillian Sullivan em 1992, que sentenciava Rommy morte, e comeou a ler em voz alta.

    Auga o qu? Quem? perguntou Rommy Gandolph. Augustus Leonidis disse Arthur. Eu conheo ele? As plpebras de Rommy estremeceram sobre os olhos fechados enquanto

    ele se esforava para identificar o nome. Ele foi um dos trs disse Arthur em voz baixa. Que trs?

  • Os trs que o Estado diz que voc matou. Confessou ter matado, pensou Arthur. Mas no erapreciso entrar em muitos detalhes por enquanto.

    Mmm. Acho que no conheci ele. Rommy balanou a cabea, como se tivesse deixado deatender um telefonema pessoal. Gandolph estava chegando aos 40 anos. Tinha um tom amareladonos olhos e, aparentemente, o sangue das Amricas nas veias. No linguajar contemporneo, ele eranegro, mas parecia haver tambm algo de branco, ndio e hispnico nele. Seu cabelo eraenrolado e comprido e lhe faltavam vrios dentes, mas no era feio. A loucura simplesmenteparecia ter comido seu interior. Ao ver os olhos de Rommy ziguezagueando como insetos frenticosperto da luz, Arthur tinha pouca dvida sobre o motivo por que os advogados anteriores haviam seconcentrado numa defesa psiquitrica. Pelo modo como as pessoas usavam comumente a palavramaluco, Rommy Gandolph, sem dvida, era um. Mas no o bastante. Sociopata. Desordem depersonalidade limtrofe, talvez at cabalmente esquizoide. Mas no totalmente perdido na natureza,no absolutamente desprovido de uma bssola a ponto de no diferenciar o certo do errado, que erao que a lei exigia para uma defesa.

    Eu no sou do tipo que mata ningum argumentou Rommy, como um pensamento de ltimahora.

    Bom, voc foi condenado por matar trs pessoas: Augustus Leonidis, Paul Judson e LuisaRemardi. Dizem que voc atirou neles e os deixou num frigorfico. O Estado tambm dizia queele havia sodomizado Luisa depois da morte, ainda que Rommy, provavelmente pela vergonha,tivesse se recusado a admitir essa parte. Entretanto, a juza Sullivan, que julgara o processosozinha, sem um jri, tambm o considerou culpado dessa acusao.

    No sei de nada disso. Nesse ponto, Rommy olhou de soslaio, como se isso encerrasse oassunto. Arthur, cuja irm, Susan, era ainda mais louca do que Rommy, bateu no vidro para secertificar de que o olhar do prisioneiro voltasse para ele. Com pessoas como Rommy, como Susan,s vezes era preciso segurar o olhar delas para conseguir se comunicar.

    De quem esta letra? perguntou Arthur calmamente e empurrou a confisso escrita porRommy por baixo do vidro. O guarda pulou de sua cadeira e exigiu ver cada pgina, frente e verso,para garantir que nada estivesse escondido. Rommy examinou o documento durante algum tempo.

    O que voc acha de aes? perguntou ele. Voc costuma comprar aes? E como que ?Depois de um intervalo considervel, Pamela comeou a explicar como a bolsa de valores

    funcionava. No, eu quis dizer: como falar que voc tem aes? Como que a sensao? Cara, se

    algum dia eu sair daqui, vou comprar umas aes. Depois vou ter todo aquele troo que aparece nateleviso. Subiu meio por cento. Down Jones. Vou saber qual a desse negcio a.

  • Pamela continuou tentando delinear os mecanismos da participao em empresas, e Rommyassentia diligentemente depois de cada frase, mas logo estava visivelmente distrado. Arthurapontou de novo para o papel que Rommy segurava.

    O Estado diz que voc escreveu isso.Os olhos escuros de Rommy baixaram brevemente. Era isso que eu tava pensando. Olhando isso e coisa e tal, eu meio que acho que a letra

    minha. Bom, o papel diz que voc matou aquelas trs pessoas.Rommy finalmente voltou primeira pgina. Isso aqui no faz nenhum sentido pra mim. No verdade? Cara, isso foi h um tempo. Quando foi que isso aqui aconteceu? Arthur respondeu, e

    Rommy se recostou na cadeira. Faz tanto tempo assim? Pra onde que foi esse tempo todo? Voc escreveu essa confisso para a polcia? Eu sabia que eu escrevi alguma coisa l naquela delegacia. Ningum disse que era pro

    tribunal. Havia, claro, uma declarao assinada de que Rommy sabia quais eram seus direitos,reconhecendo que qualquer declarao que fizesse poderia ser usada contra ele. E eu no ouvifalar nada sobre levar a injeo. Isso certo. Tinha um polcia me dizendo um monte de coisa queeu assinei. Mas no me lembro de ter escrito nada disso. Eu no matei ningum.

    E por que voc escreveu o que o policial estava dizendo? perguntou Arthur. Porque eu, puxa, eu me sujei. Uma das provas mais controvertidas do processo foi que

    Rommy literalmente cagou nas calas quando o detetive encarregado do caso, Larry Starczek,comeou a interrog-lo. No julgamento, a promotoria tivera permisso para apresentar a cala sujade Rommy como prova de conscincia de culpa. Isso, por sua vez, se tornou uma das questesproeminentes das muitas apelaes de Rommy, que nenhum juiz conseguiu abordar sem um ligeirotom de zombaria.

    Arthur perguntou se Larry, o detetive, tinha batido em Rommy, ou lhe negado comida, bebida ouum advogado. Ainda que raramente respondesse diretamente, Rommy no parecia estar afirmandonada disso s que tinha escrito uma elaborada admisso de culpa que era completamenteinverdica.

    Por acaso voc se lembra de onde estava em 3 de julho de 1991? perguntou Pamela. Osolhos de Rommy se alargaram com uma incompreenso desamparada, e ela explicou que elestinham imaginado se ele estaria na cadeia.

  • Eu no cumpri pena sria antes dessa respondeu Rommy, que claramente achava que seucarter estava sendo questionado.

    No disse Arthur. Voc poderia estar preso quando os assassinatos aconteceram? Algum t dizendo isso? Rommy se curvou para a frente, em tom confidencial, esperando

    uma deixa. medida que a ideia se assentava, ele conseguiu rir. Essa seria boa. Tudo eranovidade para Rommy, embora ele afirmasse que, naquela poca, costumava ser arrochadoregularmente pela polcia, o que dava um leve apoio ideia de Pamela.

    Rommy realmente no tinha o que oferecer em defesa prpria, mas, enquanto conversavam,negou cada elemento da argumentao do Estado. Os policiais que o prenderam disseram quetinham achado um colar pertencente vtima do sexo feminino, Luisa Remardi, no bolso deGandolph. Isso tambm, segundo ele, era mentira.

    Os polcia j tava com aquilo. E de jeito nenhum aquilo tava comigo quando fui apanhado.No fim, Arthur entregou o telefone a Pamela para mais perguntas. Rommy deu sua prpria

    verso excntrica do triste drama social revelado em sua ficha. Tinha nascido fora do casamento; ame, de 14 anos, bebera durante toda a gravidez. Ela no podia cuidar do menino, e o mandou paraos avs paternos em DuSable, fundamentalistas que consideravam a punio parte significativa dareligio. Rommy no era necessariamente desafiador, mas sim estranho. Foi diagnosticado comoretardado; ficou atrasado na escola. E comeou a se comportar mal. Roubava desde pequeno.Comeou a usar drogas. Tinha sido preso por outros delitos pequenos. Rudyard estava cheia deRommys brancos, pretos e mulatos.

    J estavam juntos havia mais de uma hora quando Arthur se levantou, prometendo que Pamela eele fariam o mximo possvel.

    Quando vocs a voltarem, voc traz o vestido de noiva, certo? disse Rommy a Pamela. Tem um padre aqui, ele vai fazer uma boa cerimnia.

    Enquanto Rommy tambm se levantava, de novo o guarda ficou de p, segurando a corrente quepassava em volta da cintura do prisioneiro e ia at as algemas dos pulsos e dos tornozelos. Pelovidro, eles podiam ouvir Rommy falando sem parar. Aqueles eram advogados de verdade. A garotaia se casar com ele. Eles iam tir-lo dali porque ele era inocente. O guarda, que parecia gostar deRommy, deu um sorriso indulgente e assentiu quando Rommy pediu permisso para se virar.Gandolph apertou as mos algemadas contra o vidro, falando suficientemente alto para ser ouvidodo outro lado da divisria:

    Obrigado por vocs terem vindo aqui e tudo que to fazendo por mim, obrigado mesmo.Arthur e Pamela foram levados para fora, sem falar. De volta ao ar livre, Pamela balanou os

    ombros magros em alvio enquanto andavam em direo ao carro de Arthur. Seu pensamento,

  • previsivelmente, permanecia na defesa de Rommy. Ele parece um assassino? perguntou ela. Ele estranho. Mas isso quer dizer que

    assassino?Ela era boa, pensou Arthur, uma boa advogada. Quando Pamela o procurou como voluntria

    para o caso, ele tinha presumido que a garota fosse jovem demais para ser de grande ajuda. Haviaaceitado por causa da relutncia em desapontar algum, embora o fato de ela ser graciosa edescomprometida tivesse ajudado. Descobrir que era talentosa apenas parecia aumentar a atraoque ele sentia.

    Vou lhe dizer a nica coisa que no consigo v-lo sendo disse Arthur. Seu marido. Isso no foi incrvel? Pamela riu. Ela era suficientemente bonita para no se abalar. Os

    homens, reconhecia Arthur, costumavam ficar bobos perto dela.Os dois fizeram algumas piadas e, ainda de brincadeira, Pamela disse: Acho que no conheci ningum decente nos ltimos tempos, mas essa ela apontou uma das

    mos para a via expressa, distante uma viagem muito longa para fazer todo sbado noite.Ela estava junto porta do carona. O vento agitou seu cabelo meio alourado enquanto ela ria

    despreocupada outra vez, e Arthur sentiu o corao bater mais rpido. Mesmo aos 38 anos, aindaacreditava que em algum lugar dentro dele havia um outro Arthur, mais alto, mais magro, maisbonito, despojado e de voz suave, que poderia ter aproveitado a observao de Pamela sobre seuperodo de vacas magras com os homens para fazer um convite disfarado para almoar, ou mesmopara uma ocasio social mais significativa. Mas, levado quele limite aterrorizante em que suasfantasias se conectavam ao mundo real, percebeu que, como sempre, no daria o passo frente.Temia a humilhao, claro, mas se fosse suficientemente casual ela poderia recusar, comoprovavelmente faria, de modo igualmente incuo. Mas o que o fez parar mesmo foi o friopensamento de que qualquer abordagem seria, numa palavra, injusta. Pamela era uma subordinada,inevitavelmente ansiosa com suas perspectivas, e ele era um scio da empresa. No havia comomudar a posio desigual ou a vantagem dele; de modo nenhum Arthur Raven poderia se afastar dombito da decncia estabelecida em que sentia seu nico conforto consigo mesmo. E, ao mesmotempo que aceitava esse raciocnio, sabia que, com as mulheres, algum tipo de obstculo sempresurgia, deixando-o confinado s pontadas do desejo infrutfero.

    Usou o controle remoto no bolso para destrancar a porta de Pamela. Enquanto ela entrava nosed, ele ficou parado na poeira amarga que havia se erguido no estacionamento. A morte de suasesperanas, no importava quanto fossem implausveis, era sempre insuportvel. Mas o vento dapradaria soprou de novo, dessa vez limpando o ar e trazendo o cheiro de terra recm-revirada dos

  • campos em volta da cidade, um aroma de primavera. O amor a doce e espantosa possibilidade doamor se grudou em seu peito como uma nota de msica perfeita. Amor! De algum modo, eleestava empolgado com a chance que tinha perdido. Amor! E, naquele momento, pensou pelaprimeira vez em Rommy Gandolph. E se ele fosse inocente? Essa tambm era uma inspirao quaseto doce quanto o amor. E se Rommy fosse inocente!

    Ento percebeu de novo que Rommy no era. O peso da vida de Arthur caiu sobre ele, e aspoucas categorias que o descreviam voltaram sua mente. Ele era scio de uma firma deadvocacia. E sem amor. Seu pai estava morto, mas Susan ainda estava viva. Pensou na lista, sentiude novo que era muito menos do que ele esperava havia muito, ou mesmo do que merecia, depoisabriu a porta do carro e voltou realidade.

    2O detetive

    5 de julho de 1991

    Quando Larry Starczek ouviu falar do assassinato de Gus Leonidis, estava na cama com umapromotora chamada Muriel Wynn, que tinha acabado de lhe contar que estava comeando umrelacionamento srio com outra pessoa.

    Dan Quayle respondeu ela, quando ele exigiu saber quem era. Ele ficou encantado comigo.Enojado, Larry mexeu um dos ps em meio s roupas no carpete do hotel, procurando sua cueca.

    Quando o dedo do p esbarrou em seu bipe, ele estava vibrando. Coisa ruim disse a Muriel depois de desligar o telefone. O Bom Gus acaba de bater as

    botas. Foi achado com dois clientes, mortos a tiros, dentro do freezer dele. Larry balanou acala e disse que precisava ir. O comandante queria todo mundo mobilizado.

    Pequenina e morena, Muriel estava sentando sobre o lenol engomado do hotel, aindacompletamente nua.

    J h algum promotor designado? perguntou.Larry no fazia ideia, mas sabia como a coisa funcionava. Se ela aparecesse, eles presumiriam

    que algum a havia mandado. Esse era outro detalhe fantstico em Muriel, pensou Larry. Adorava a

  • rua tanto quanto ele.Perguntou a ela de novo quem era o cara. Olha, eu s quero ir em frente respondeu Muriel. Acho que essa outra histria... acho que

    pode chegar a algum lugar. Eu posso at me casar. Casar! Diabo, Larry, isso no uma doena. Voc casado. .Havia cinco anos, ele se casara pela segunda vez, porque fazia sentido. Nancy Marini, uma

    enfermeira de bom corao, era agradvel aos olhos, gentil e bem-disposta em relao aos garotosdele. Mas, como Nancy tinha observado vrias vezes recentemente, ele nunca disse adeus anenhuma das coisas que haviam levado seu primeiro casamento runa: a galinhagem ou o fato deque seu principal relacionamento adulto era com os cadveres que ele tirava da rua. O casamentonmero dois era praticamente passado, mas, mesmo com Muriel, Larry preferia guardar seusproblemas para si.

    Voc sempre falou que o casamento um desastre disse ele. Meu casamento com Rod foi um desastre. Mas eu tinha 19 anos. Aos 34, Muriel tinha a

    distino de ser viva havia mais de cinco anos.Era o fim de semana do Quatro de Julho, e o Hotel Gresham, no incio da tarde, estava

    estranhamente silencioso. O gerente devia favor a Larry por causa de vrias situaes que ele haviaresolvido hspedes que no queriam ir embora, uma profissional que pegava clientes no saguo.Ento conseguia um quarto para Larry sempre que ele pedia. Enquanto Muriel passava em direoao espelho, Larry agarrou-a por trs e apertou-a contra si, os lbios perto dos caracis pretos ecurtos atrs da orelha dela.

    Seu novo namorado to divertido quanto eu? Larry, isso aqui no o Concurso Nacional de Foda do qual voc acabou de ser eliminado.

    Ns sempre nos divertimos bastante.O combate definia a relao entre os dois. Larry gostava disso, talvez mais do que do sexo.

    Eles haviam se conhecido na faculdade de direito, sete anos antes, quando ambos tinham comeadoa estudar noite. Muriel se transformou numa estrela e foi transferida para o turno da manh. Larrydecidira desistir mesmo antes de conseguir a custdia dos filhos, porque no tinha os motivoscertos para estar l. Estava tentando se animar depois do divrcio, ficar longe dos bares, atmesmo subir no conceito da famlia, que via o trabalho policial como algo abaixo dele. No fim,Muriel e os ocasionais interldios dos dois foram provavelmente as melhores coisas que surgiramdaquela experincia. Na vida dele, havia mulheres, muitas, que provocavam o desejo, mas a coisa

  • nunca era realmente certa. Os dois iam em frente depois, falando de como tinha sido fantstico, mashavia um triste calculismo em tudo que tinha acontecido. Nunca fora assim com Muriel. Com seusdentes separados e nariz grosso, o corpo fino o bastante para escorrer pelo ralo, Muriel no estariaem muitas capas de revista. Mas, depois de se casar duas vezes por causa da aparncia, em algunsmomentos, Larry sentia vontade de botar uma corda no pescoo quando estava com ela, s porconhecer to pouco sobre si mesmo.

    Enquanto Muriel terminava de passar p sobre as sardas de vero, Larry ligou o rdio. Todasas estaes de notcias j falavam dos assassinatos, mas Greer, o comandante, tinha escondido osdetalhes.

    Eu realmente adoraria pegar esse caso disse ela. Muriel estava havia trs anos e meio nocargo de promotora, e no tinha chegado perto de ser designada para um caso capital, nem mesmocomo assistente ou subassistente. Mas nunca se chegava muito longe dizendo a Muriel para baixar abola. No espelho sobre a penteadeira, seus pequenos olhos escuros buscaram os dele. Eu adoroHistria. Voc sabe. Grandes acontecimentos. Coisas com consequncia. Quando eu era pequena,minha me sempre me dizia: Faa parte da Histria.

    Ele assentiu. O caso seria importante. Apagar o Gus disse Larry. Algum vai fritar por causa disso, voc no acha?O estojo de p se fechou com um estalo, e Muriel concordou com um sorriso triste. Todo mundo gostava do Gus disse ela.

    AUGUSTUS LEONIDIS era dono do restaurante chamado Paradise havia mais de trinta anos. O bairroNorth End tinha se arruinado pouco depois de ele inaugur-lo, quando o ltimo baluarte contra odeclnio, o Campo DuSable, o pequeno aeroporto dentro da cidade, foi abandonado pelas grandescompanhias areas no incio dos anos 1960, porque as pistas eram pequenas demais para os jatos.Mas Gus, cheio do otimismo exagerado dos imigrantes, tinha se recusado a se mudar. Ele era umpatriota de um tipo que no existia mais. Que rea poderia ser ruim se era nos Estados Unidos daAmrica?

    Apesar do ambiente em volta, o negcio de Gus tinha prosperado, graas sada para o leste daU.S. 843 que ficava bem diante de sua porta e aos seus lendrios cafs da manh, em que oprincipal item era um omelete assado que chegava mesa do tamanho de um balo. O Paradise eraum renomado cruzamento no condado de Kindle, onde todo mundo era recebido com entusiasmopelo alegre proprietrio. Ele era chamado de Bom Gus havia tanto tempo que ningum se lembravaexatamente do motivo se era pela comida grtis para os desafortunados, por suas atividadescvicas ou por seu estilo efusivo e seu alto-astral. Com o passar dos anos, ele era constantemente

  • citado no levantamento anual do Tribune como um dos cidados prediletos do condado de Kindle.Na rua, quando Larry chegou, os policiais da diviso de patrulha tinham feito o mximo para

    parecerem importantes, estacionando os carros pretos e brancos do outro lado da avenida com asluzes em cima das capotas girando. Vrios vagabundos e cidados de respeito tinham sido atrados.Era julho, e ningum estava usando muita roupa, j que os antigos prdios de apartamentos nasproximidades no tinham fiao que suportasse ar-condicionado. As garotas pobres, com seuscabelos estilo garota-pobre, esticados e cheios de laqu, estavam do outro lado, cuidando de seusbebs. No meio-fio, vrios furges de TV se preparando para transmitir notcias tinham levantadosuas antenas, que pareciam instrumentos de cozinha gigantes.

    Muriel havia chegado sozinha, mas estava espreitando perto das amplas vitrines do restaurante,esperando que Larry a introduzisse no caso. Caminhando, Larry apontou para ela com um vagogesto de reconhecimento e disse:

    Oi. Mesmo vestida de modo casual, Muriel usava seus saltos altos estilo Minnie Mouse. Elasempre queria ficar mais alta e, Larry suspeitava, no desperdiava uma chance de enfatizar otraseiro em forma. Muriel aproveitava o que tinha. Olhando sua cala azul balanando ao vento, eleexperimentou uma leve empolgao ao se lembrar da carne agora escondida de todo mundo.

    Mostrou o distintivo aos dois policiais uniformizados junto porta. L dentro, esquerda, trscivis estavam sentados juntos a um banco de um reservado um negro de avental, uma mulheratormentada usando um vestido bege de ficar em casa e um cara mais novo, de ombrosarredondados e um brinco grande o suficiente para piscar para Larry a 10 metros de distncia. Ostrs pareciam em seu prprio universo, isolados do turbilho da atividade policial em volta.Empregados ou familiares, pensou Larry, esperando para serem interrogados ou para fazerem suasprprias perguntas. Ele sinalizou para Muriel, e ela se sentou perto deles, em um dos bancosgiratrios que cresciam como uma fileira de cogumelos diante do balco.

    A cena do crime estava sendo examinada por dzias de pessoas pelo menos seis peritos, comsuas camisas cqui, passavam p procurando digitais , mas a atmosfera estava notavelmentecalma. Quando havia uma multido assim, algumas vezes podia haver muita comoo, humor negroe grande agitao. Mas naquele dia todo mundo tinha sido chamado da folga do feriado de quatrodias, o que significava que estavam mal-humorados ou com sono. Alm disso, o comandante estavaali. Ele era solene por natureza. E o crime era brutal.

    O detetive-comandante, Harold Greer, tinha montado a central no minsculo escritrio de Gusatrs da cozinha, e a equipe de detetives que ele havia chamado estava se reunindo l. Gus,surpreendentemente, era organizado. Acima da mesa, havia uma cruz bizantina, um calendrio de

  • um atacadista de alimentos com fotos de garotas, e fotos da famlia de Gus tiradas, pelo que Larrysups, em uma viagem Grcia. As fotos, mostrando a esposa, duas filhas e um filho, deviam teruns quinze anos, mas esse era o tempo que Gus, como a maioria das pessoas, segundo a experinciade Larry, gostava de lembrar. A poca em que estava realmente com tudo em cima, montando umnegcio, sustentando a famlia. A mulher, sorridente e parecendo bem interessante num maienrugado, era a mesma pobre coitada sentada junto porta.

    Greer estava ao telefone, com um dedo ao ouvido, explicando a situao a algum do gabinetedo prefeito, enquanto os detetives em volta da sala olhavam para ele. Larry foi at Dan Lipranzerpara obter as informaes quentes. Lip, que tinha o penteado cheio de brilhantina de um delinquentejuvenil dos anos 1950, estava, como sempre, sozinho a um canto. Sempre parecia frio, mesmo emjulho, fechado em si mesmo como um pssaro na muda. Ele fora o primeiro a chegar ao local, etinha interrogado o gerente da noite, Rafael.

    O Paradise s fechava duas vezes por ano no Natal e no Quatro de Julho, aniversrios deDeus e dos Estados Unidos da Amrica, as duas coisas pelas quais Gus jurava. De vez em quando,havia filas do lado de fora da porta, das 5 horas da manh ao meio-dia, com movimento menor nashoras restantes, gerado sobretudo por policiais, motoristas de txi e muitos trabalhadores decompanhias areas que estavam indo ou vindo do Campo DuSable, que renascera havia trs anos,quando a Trans-National Air iniciou um servio regional.

    Segundo o que o gerente noturno havia contado a Lipranzer, Gus tinha ido pegar o dinheiro edispensar os empregados pouco antes da meia-noite de quarta-feira, 3 de julho. Cada trabalhadorrecebeu 100 dlares da caixa. Quando estavam para pendurar a placa de Fechado, perceberam queLuisa Remardi, que trabalhava no aeroporto como vendedora de passagens da Trans-National, tinhaentrado. Ela era cliente habitual, e Gus, que tinha uma queda por todas as freguesas, mandouRafael, o cozinheiro e o ajudante de garom embora, cuidando pessoalmente da cozinha. Em algummomento nas duas horas seguintes, Gus, Luisa e uma terceira pessoa tinham sido assassinados. Altima vtima era um branco beirando os 40 anos, identificado a princpio como Paul Judson, combase na investigao das placas de um dos carros que continuavam absorvendo o sol de julho noestacionamento de Gus e pelo aviso de desaparecimento feito pela esposa na vspera. A Sra.Judson disse que Paul deveria chegar em 4 de julho, num voo das 12h10 no Campo DuSable.

    Rafael tinha voltado para abrir o restaurante s 4h30 da madrugada daquele dia. No haviapensado muito na desordem que encontrara, presumindo que logo depois de se livrar dos clientes,Gus sara depressa para no ter que dispensar novos clientes. Perto das 5 da manh, a Sra.Leonidis, Athena, telefonou perturbada porque Gus no tinha aparecido na vspera no chal delesperto de Skageon. Procurando, Rafael notou o Cadillac de Gus, ainda no estacionamento, e

  • comeou a se preocupar com a possibilidade de a trilha de sangue perto da caixa registradora noser de carne descongelada que Gus teria levado at a cozinha l em cima. Quando o cozinheirochegou, eles chamaram a polcia e, depois de alguma discusso, finalmente puxaram a maaneta dofrigorfico no poro, torcendo para que algum ainda estivesse vivo. Ningum estava.

    Eram quase 15h30 quando Greer desligou o telefone e anunciou aos 12 detetives convocadosque estava na hora de comear. Apesar do calor de mais de 30 graus, Greer usava um blazeresporte de l e gravata, percebendo que apareceria na TV. Segurando uma prancheta, comeou aanunciar as tarefas, de modo que cada policial soubesse sua abordagem ao examinar o local docrime. Harold administraria o caso como uma fora-tarefa, recebendo ele mesmo todos osrelatrios. Isso pareceria impressionante para os reprteres, mas Larry sabia que o resultado seriaseis equipes de detetive se chocando umas contra as outras, cobrindo as mesmas pistas e deixandoescapar outras. Em uma semana, apesar de todas as suas boas intenes, Greer teria que comear alidar com todas as outras coisas empilhadas em sua mesa, e os detetives, como gatos, se afastariam.

    Larry tentou deixar o rosto inexpressivo quando Greer anunciou que ele ficaria com WilmaAmos. Wilma era um item bsico do sistema de cotas, cuja maior e melhor utilidade eraprovavelmente como cabide de chapu. Pior, isso significava que Larry no chegaria perto docomando do caso. Em vez disso, Wilma e ele foram encarregados de levantar o passado da vtimado sexo feminino, Luisa Remardi.

    Passeio guiado disse Harold, e foi andando pela cozinha. Harold Greer era um sujeitoimpressionante para a maioria das pessoas, um negro de bom tamanho, fala clara, calmo eorganizado. Larry no se incomodava com Harold. Ele era menos poltico do que a maioria dospoliciais de alta patente na Fora e era competente. Fazia parte do pequeno grupo de policiaisque Larry considerava to inteligentes quanto ele.

    Os peritos tinham isolado um caminho. Harold instruiu os detetives a seguirem em fila indiana emanter as mos nos bolsos. Algum com um diploma de criminologia diria que Harold era lunticopor levar uma dzia de pessoas a mais para uma cena de crime. Isso criava um risco decontaminao e, mesmo que todos usassem protetores para os sapatos, um advogado de defesa fariacom que a viso parecesse a travessia de Anbal pelos Alpes com elefantes. Mas Harold sabia quenenhum investigador se sentiria dono de um caso se no tivesse examinado a cena. At os sabujostinham que captar o cheiro real.

    Teorias viveis disse Harold. Ele estava parado atrs da caixa registradora, que ficavasobre uma bancada de vidro cujas prateleiras em ngulo guardavam cigarros velhos e barras dechocolate. No exterior, digitais prpura por causa do p para identificao se destacavam comoenfeites. Teoria nmero um, que bastante slida: este um assalto mo armada que deu

  • errado. A caixa registradora est vazia, o saco para o depsito bancrio sumiu e nenhuma vtimaest com relgio, carteira ou joias. Segunda teoria: hoje estou falando de um nico criminoso. Essa fraca, mas gosto cada vez mais dela. Todas as balas que recuperamos parecem de calibre.38,mesmas marcas. Um s atirador, com quase certeza. Poderia haver cmplices, mas a coisa noparece ser assim. Gus foi morto aqui mesmo, atrs da caixa, aparentemente indo pegar o telefone.Um tiro na parte posterior esquerda do crnio. Baseado em um exame preliminar, Indolor estdizendo que foi dado de 1 metro a 1,5 metro de distncia, o que significa que o atirador estavaperto da caixa. Assalto mo armada que deu errado repetiu Greer. Do bolso de dentro dopalet, Harold tirou uma fina caneta prateada e apontou para o sangue: uma grande poa seca nolinleo sujo e manchas no telefone verde de parede. Depois continuou. Assim que nosso atiradorderruba o Gus, ele tem um srio problema, porque h dois clientes no restaurante. aqui quepassamos de um assassinato comum para um assassinato brutal e hediondo. As palavras eramtermos de arte; assassinato brutal e hediondo, naquele Estado, se qualificava para a pena capital. Em vez de sair correndo pela porta como um vagabundo comum, nosso cara decide pegar astestemunhas. A Sra. Remardi morta aqui mesmo, com um tiro na barriga.

    Harold tinha se afastado 6 metros at um reservado do lado oposto porta da frente, na reaoriginal do restaurante. Quando Gus comprou o imvel, muito antes de expandir para as lojasvizinhas, o lugar devia ter um tema medieval. Duas fileiras de reservados, compostas de pranchaspesadas e escuras, encalombadas por causa das camadas de poliuretano, juntavam-se no painel docentro. Em cada canto, um cabide de casacos, quadrado, se erguia como uma torrinha.

    Parece que a Sra. Remardi decidiu que sua melhor chance era tentar pegar a arma. Temosferimentos nos braos e nas mos dela, um dedo est quebrado. Mas isso no deu certo para ela. Otecido do uniforme, em volta do ferimento, est queimado e cheio de pontinhos, ento o tiro foi queima-roupa. A julgar pelo ferimento de sada, Indolor est dizendo preliminarmente que a balapassou pelo fgado e pela aorta, de modo que ela morreu em alguns minutos.

    A bala tinha sido retirada do painel central pelos peritos. Um crculo irregular de sangue secoaparecia onde a madeira havia se espatifado, expondo o pinho por baixo. Isso significava que Luisatinha morrido sentada. Uma xcara de caf, com uma brilhante meia-lua de batom, ainda estavasobre a mesa, alm de um cinzeiro cheio de guimbas.

    Se ela estiver olhando para um cmplice do assassino, no faz sentido estar lutando. De modoque esse outro motivo para acharmos que esse foi um espetculo de um homem s. Debaixo damesa, para onde Harold tinha apontado, um prato de refeio, manchado de molho de bife, tinha sedespedaado na luta. Dois centmetros de gordura de bife estavam entre os fragmentos de loua,

  • alm de meio mao de cigarro e um isqueiro descartvel. O Sr. Judson estava comendo l no canto, perto da janela. Rafael tirou um prato, um copo e

    uma lata de Seven Up daquela mesa hoje de manh. Do lado direito do terno do Sr. Judson h umalinha de poeira, sugerindo que ele provavelmente estava debaixo da mesa, talvez se escondendodos tiros. Talvez s se escondendo. Mas o atirador o encontrou.

    A julgar pelas marcas de sapato no sangue, pelo padro de arrastamento e pela distribuioda lividez cadavrica nos corpos de Gus e Luisa, o Sr. Judson foi forado, sob a mira da arma, aarrastar os dois cadveres para o freezer no poro.

    Harold guiou seus detetives, como uma turma de colegial, passando pelo balco, junto ao qualMuriel ainda estava sentada, e por uma porta estreita. A escada era iluminada por uma nicalmpada, sob a qual o grupo se apertou para descer os degraus de madeira. No poro de tijolos,acharam um verdadeiro acampamento. Do outro lado, trs macas com rodas esperavam os corpos,que ainda no tinham sido retirados porque estavam congelados. O patologista da polcia, IndolorKumagai, precisava fazer vrios testes e tirar medidas antes de deixar que os corposdescongelassem. Enquanto o grupo se aproximava, Larry pde ouvir a voz de Indolor, incisiva ecom sotaque carregado, dando ordens ao seu pessoal. Harold alertou os policiais atrs dele sobreos fios eltricos esticados no cho para alimentar as vrias luzes halgenas que a equipe de Indolortinha montado no frigorfico para tirar fotos.

    Usando a caneta, Harold abriu mais a cmara frigorfica. O corpo de Judson estava ali mesmo,com uma perna no vo da porta. Harold apontou para os sapatos dele, com as solas marrons porcausa do sangue. Os padres do solado combinavam com as marcas l em cima. Com luvas deborracha, Indolor e sua equipe trabalhavam do outro lado, distante do frigorfico.

    Depois de o Sr. Judson ter arrastado os corpos para a cmara, ele foi amarrado com um fioeltrico, amordaado com uma toalha de pratos e assassinado com um tiro na nuca. A canetaprateada de Harold deslizava pelo ar como um mssil indicando cada ponto de interesse. A forado tiro havia lanado Judson de lado. E ento, acho que, para comemorar, nosso heri sodomizouo corpo da Sra. Remardi.

    Um dos patologistas ficou de lado, revelando totalmente os restos de Luisa Remardi. Depois doexame preliminar, eles a haviam reposicionado como ela fora encontrada, de rosto para baixosobre uma pilha de sacos de 25 quilos de batatas fritas congeladas. Acima da cintura, ela vestia ouniforme cor de ferrugem da Trans-National. O ferimento de sada nas costas tinha feito umpequeno rasgo no tecido, quase como se ela tivesse apenas prendido a roupa em um prego, e ocrculo de sangue que Larry tinha visto vagamente impresso na lateral do reservado l em cimaestava ampliado ali, escurecendo o tecido. A saia e a calcinha vermelha combinando tinham sido

  • puxadas at os tornozelos e, debaixo de sua blusa branca, suas ndegas redondas como melesestavam erguidas, penetradas pela elipse escura de seu esfncter anal, que estivera distendido nomomento da morte. Algum a havia comido ali embaixo havia uma vermelhido, significando, seHarold estava correto, que isso tinha acontecido logo depois da morte, enquanto uma reao vitalainda era possvel.

    O kit de estupro deu negativo, mas vocs vo achar a parte de cima de uma embalagem decamisinha aqui, em cima da calcinha, e o que parece ser uma marca de lubrificante em volta donus. Seguindo a instruo de Greer, um jovem patologista apontou uma lanterna para ilustrar altima observao. O gel no havia evaporado no frio. Atualmente, os estupradores sepreocupavam com a Aids e tinham ouvido falar em DNA. No existia cmplice, pensou Larry.No se a histria fosse essa. Os necrfilos e os que gostavam de ir pela porta dos fundos no seapresentavam para uma plateia. At os tarados tinham vergonha.

    Harold deu algumas ordens de procedimentos e subiu. Larry continuou na cmara frigorfica eperguntou a Indolor se podia dar uma olhada por ali.

    No toque em nada disse o patologista. Ele trabalhava na polcia havia duas dcadas, etinha uma certa teoria de que cada policial era mais idiota do que o outro.

    Larry era o primeiro a dizer que tinha um relacionamento sobrenatural com todo o processo deinvestigao, mas no estava sozinho nisso. Metade dos detetives que ele conhecia que trabalhavamcom assassinatos confessavam, depois de uns dois usques, que sentiam ocasionalmente a presenaorientadora de espritos. Ele no podia dizer que entendia, mas o mal nessa escala parecia dispararalgum tipo de discordncia csmica. Para o bem ou para o mal, ele frequentemente comeava comum instante de comunho solene com as vtimas.

    Ficou parado perto de Gus durante um minuto. exceo dos estupradores em grupo, que eramsuspeitos num dia e assassinados no outro, era raro Larry conhecer uma vtima. Ele no conheciaGus bem, a no ser por desfrutar de seu alegre espalhafato de imigrante e dos omeletes, semprecomidos ali mesmo. Mas Gus tinha aquele dom, como um bom professor ou padre: era capaz de seconectar com as pessoas. Voc o sentia.

    Estou com voc, compadre, pensou Larry.O tiro havia penetrado no plano occipital na parte de trs do crnio de Gus, arrebentando

    tecidos moles e ossos. Posicionado como fora encontrado, seu rosto estava apoiado sobre umacaixa de carne cortada em bifes, de boca aberta. Peixe morto. Todos eles pareciam peixes mortos.

    Como sempre, naquele momento, Larry tinha uma conscincia intensa de si mesmo. Aquela era asua profisso. Assassinato. Como todo mundo, ele pensava em comprar uma nova mangueira dejardim e pensava na escalao do jogo de hquei do dia seguinte. E em como poderia ir aos jogos

  • de futebol dos dois garotos. Mas, em algum ponto de cada dia, ele se esgueirava para dentro dacaverna coberta de musgos do assassinato, para a escurido mida e empolgante da ideia.

    No tinha do que se desculpar. O assassinato fazia parte da condio humana. E a sociedadeexistia para impedi-lo. Para Larry, o nico servio mais importante do que o dele era o de umame. Leia um pouco de antropologia, dizia ele aos civis que perguntavam. Todos aquelesesqueletos desenterrados com os machados de pedra ainda presos nos buracos? Voc acha que istocomeou agora? Todo mundo tinha o assassinato dentro de si. Larry tinha matado. No Vietn. Deussabe em quem ele havia acertado disparando seu M16 no escuro. A verdade era que conhecia muitomelhor a morte de seu prprio lado. Mas um dia, durante o breve tempo que passou patrulhando,tinha jogado uma granada num tnel; viu o cho ceder e os corpos que vieram voando numa fonte deterra e sangue. O primeiro homem foi lanado aos pedaos, um tronco com um brao, as pernas noar soltas. Mas os outros saltaram da terra intactos. Larry ainda se lembrava deles voando no ar, umgritando, o outro, que estava provavelmente morto, com uma expresso que voc s poderia chamarde profunda. Ento era isso: o cara estava pensando ele poderia muito bem estar segurando umcartaz. Larry ainda via aquela expresso o tempo todo. Viu-a no rosto de Gus, agora, a coisa maiorna vida a morte e ela preenchia Larry em cada ocasio com a emoo rigorosa, de tirar oflego, de uma daquelas pinturas realistas, perfeitas, que voc v num museu Hopper ou Wyeth.Aquela coisa: isso a.

    Esse era o fim das vtimas, a rendio instantnea. Mas poucas se rendiam voluntariamente.Com a morte to iminente e inesperada, cada ser humano era reduzido ao terror e ao desejo odesejo de continuar e a angstia inexprimvel de que no continuaria. Ningum poderia morrer comdignidade nessas circunstncias, acreditava Larry. Paul Judson, largado perto da porta, certamenteno pudera. Ele era um suburbano comum, um sujeito de aparncia afvel, apenas comeando aperder o cabelo louro, que era fino como seda. Provavelmente do tipo que nunca demonstravamuita emoo. Mas agora tinha demonstrado. De joelhos, Larry pde ver marcas de sal nos cantosdos olhos dele. Paul tinha morrido, como Larry morreria, chorando pela vida.

    Finalmente, Larry foi at Luisa Remardi, que, sendo sua responsabilidade, exigia a maiorateno. O sangue havia manchado os enormes sacos sobre os quais seu corpo fora largado, masela tinha morrido l em cima. Rasgados pela bala como um prdio em um atentado a bomba, asartrias e rgos devastados tinham jorrado o sangue que o corao estpido continuavabombeando. Primeiro Luisa ficou sonolenta. Depois, cada vez menos oxignio passou a chegar aocrebro, e as alucinaes comearam, alucinaes de medo, provavelmente, at que seus sonhos sedesbotaram numa luz sem fim.

  • Quando os patologistas autorizaram, ele subiu no monte de sacos para olhar o rosto dela. Luisaera bonita, flcida debaixo do queixo, mas com malares belos e altos. Luzes mais claras riscavamseu cabelo escuro, e, mesmo trabalhando no turno da meia-noite, ela aplicava um monte demaquiagem, fazendo um servio elaborado em volta dos grandes olhos castanhos. Na garganta,dava para ver a linha em que o blush e a base paravam e sua palidez natural tomava conta. Era umadaquelas mulheres de origem italiana Larry conhecera muitas encorpando medida quechegavam aos 30, mas ainda no preparadas para deixar de se sentirem gostosas.

    Agora voc a minha garota, Luisa. Eu vou cuidar de voc.L em cima, Larry foi procurar Greer para ver se conseguia pr Muriel no caso. A caminho,

    parou junto a uma mesa sobre a qual um perito de provas, um garoto chamado Brown, estavainventariando o contedo da bolsa de Luisa, que fora espalhado no cho perto da porta.

    Alguma coisa? perguntou ele. Caderno de telefones. Com suas luvas, Brown virou as pginas para Larry. Bela letra observou Larry. O restante era a baguna de sempre: chaves de casa, recibos,

    balas. Debaixo da capa do talo de cheques de Luisa, Brown apontou para duas camisinhaslubrificadas com a mesma embalagem marrom encontrada em sua calcinha. O que isso significava,pensou Larry, alm do fato de que Luisa costumava transar? Talvez, enquanto procurava a carteirano bolso, o bandido tivesse achado aquilo e ficado com teso.

    Mas eles nunca reconstruiriam os acontecimentos com exatido. Larry havia aprendido isso. Opassado era o passado, sempre escapando da memria ou das melhores tcnicas forenses. E issono importava. As informaes essenciais tinham chegado ao presente: trs pessoas haviammorrido. Sem dignidade. Em terror. E um escroto cruel tinha exultado em seu poder a cada vez quepuxara o gatilho.

    Parado perto do lugar onde Luisa havia morrido, Larry fechou os olhos para transmitirvibraes mais uma vez. Estava certo de que em algum lugar, provavelmente no muito longe, umhomem tinha acabado de experimentar uma pontada dolorosa no corao.

    Estou indo pegar voc, seu filho da puta.

    3A ex-juza

  • 4 de maio de 2001

    Gillian Sullivan, de 47 anos, recentemente solta da Penitenciria Federal Feminina de Alderson,Virgnia do Oeste, estava sentada com um cigarro em um pequeno caf em Center City, esperandoArthur Raven. Ao telefone, Raven, que ela conhecia havia bem mais de uma dcada, tinha feitoquesto de dizer que desejava v-la por motivos profissionais. Como tantos outros, aparentementeArthur no queria que ela pensasse que ele ofereceria consolo e apoio. Ela estava reconsiderando adeciso de ir, no pela primeira vez, quando o viu passando pela porta de vidro do vestbulo dorestaurante, carregando debaixo do brao uma pasta atulhada de papis.

    Juza disse ele, oferecendo a mo. Aquilo pareceu falso instantaneamente. Mesmo antes desua desgraa, era improvvel que ele a chamasse de juza em particular.

    Basta Gillian, Arthur. Desculpe. esquisito. Ela esmagou o cigarro, pensando s agora que a fumaa poderia incomod-lo.

    Na cadeia, ningum reclamava da fumaa. Continuava sendo um privilgio.Em sua poca, Gillian passara de promotora a juza, e depois a r condenada por crime. Era um

    exemplo extremo, mas at mesmo sua carreira tortuosa refletia a natureza da advocacia criminal,que se parecia muito com uma companhia de teatro de repertrio em que cada advogado era capazde fazer um papel diferente a cada vez. A promotora contra quem se trabalhava em um processoestava na bancada do juiz na oportunidade seguinte e no servio particular, atropelando os seusclientes, uma dcada depois. As rivalidades e amizades eram fortificadas ou esquecidas com opassar dos anos, enquanto cada realizao ou fracasso permanecia em algum lugar na memria dacomunidade.

    Mesmo entendendo tudo isso, Gillian achava um tanto indigesto o acaso que a havia reunido denovo ao triste e incisivo Arthur Raven. Havia treze anos, depois de vinte meses como juza, Gilliantinha recebido sua primeira tarefa no tribunal criminal, presidindo casos de contraveno eaudincias de causas presumveis. Arthur Raven era o vice-promotor designado para o seu tribunal.Os dois eram novos no trabalho, e, nesse ponto, ela tinha certeza de que suas perspectivas erammuito melhores do que as de Arthur. Era comum, na prtica jurdica, encontrar homens e mulhereshbeis em se fazerem atraentes, pessoas que tinham dominado os gestos externos de sinceridade ehumildade, mesmo quando mascaravam um mago vulcnico de egocentrismo e ambio. ComArthur, o que se via era o que havia: uma intensidade implacvel e um desejo de vencer quechegava s raias do desespero. Na metade do tempo em que ele estava diante dela, Gillian sentia

  • vontade de mand-lo tomar um comprimido. Provavelmente tinha feito isso, j que, mesmo em suaprpria opinio, ela nunca fora uma juza especialmente gentil ou paciente. Mas quem poderiaculp-la? Por baixo daquilo tudo, Arthur parecia se agarrar crena improvvel de que a vitriafinalmente lhe daria o carter mais triunfante que ele to claramente desejava.

    Como se no fosse uma coisa ridcula, Arthur perguntou: Como voc tem andado? Mais ou menos. A verdade era que, depois de vrios anos tentando segurar as pontas, ela

    estava percebendo que no tinha segurado ponta alguma. Havia perodos a maioria do tempoagora e sempre, durante vrios anos em que a insuportvel vergonha da situao a deixava louca,louca no sentido de que sabia que cada pensamento era prejudicado por isso, como um carrosacolejando em uma estrada cheia de buracos.

    Voc continua com uma aparncia fantstica disse ele.Na experincia de Gillian, os motivos de um homem para elogiar uma mulher eram sempre

    suspeitos, um degrau para o sexo ou alguma manipulao menos grandiosa. Ela perguntouabruptamente do que se tratava.

    Bom disse ele , deixe-me usar a sua palavra. esquisito. Eu fui nomeado pelo TribunalFederal de Apelaes para um caso. Um segundo habeas. Rommy Gandolph. Voc se lembra donome?

    Ela se lembrava, naturalmente. S dois casos de pena capital chegaram fase de sentena nosanos em que fora juza criminal. No outro, a pena de morte havia sido imposta por um jri. RommyGandolph tinha sido responsabilidade somente sua. Julgamento direto com a juza. Sentena diretada juza. Ela reconsiderara o caso de novo havia alguns meses, ao receber uma carta de Rudyardcom as reivindicaes tipicamente enlouquecidas de um criminoso que, dez anos depois dosassassinatos, de repente dizia ter informaes importantes para ela. Provavelmente algum quemandara para a cadeia, agora esperando que Gillian fosse at l para levar uma cuspida no olho.Revirando a memria em busca do julgamento de Gandolph, ela ainda podia invocar as fotos doscadveres no frigorfico do restaurante. Durante o julgamento, um dos policiais tinha explicado queo frigorfico era enorme por causa do amplo menu do Paradise. Uma lembrana estranha.

    Certo disse Raven quando ela descreveu o caso. O Bom Gus. Mas voc conhece o jogo.Eu tenho que percorrer todas as trilhas. Chega a haver momentos em que me iludo e acho que elepode ser inocente. Eu tenho uma scia que est revirando o caso pelo avesso e encontrando coisasespantosas. Aqui. Olhe isto.

    Raven tirou a primeira de vrias folhas da sua pasta. Aparentemente tentava montar uma teoriade que Gandolph estava na cadeia por violao de condicional no momento dos assassinatos.

  • Restavam poucos registros, e a ficha policial de Gandolph no oferecia corroborao. Mas nosltimos dias Arthur tinha achado um manifesto de transferncia mostrando que seu cliente foratransportado para o tribunal na manh de 5 de julho de 1991, vindo da Casa de Correo.

    E o que Muriel diz em relao a isso? perguntou Gillian. Muriel Wynn, que tinha sidopromotora do caso havia uma dcada, era agora a subchefe da promotoria e uma das favoritas ainda que com menores chances para suceder Ned Halsen como promotora-chefe na eleio doprximo ano. Gillian nunca gostara muito de Muriel, o tipo de mulher insensvel que o tribunalcriminal produzia com frequncia ultimamente. Mas, na verdade, o apreo de Gillian pelospromotores, mesmo que ela j tivesse sido uma, tinha praticamente desaparecido, dadas as suasexperincias nos ltimos anos.

    Ela acha que o agente da condicional de Rommy pode t-lo pegado naquela manh, para eleno deixar de comparecer ao tribunal na data marcada disse Arthur. Eu no engulo isso, numasexta-feira, logo depois de um feriado, quando ningum queria trabalhar. Muriel tambm diz que ridculo pensar que tanto o cliente quanto o advogado de defesa tivessem deixado escapar o fato deque Rommy estava na cadeia quando os assassinatos aconteceram. Mas ele s foi preso quatromeses depois do crime, e Rommy no sabe diferenciar hoje de amanh.

    A aposta de Gillian seria de que Muriel estava correta. Mas no queria mergulhar na discusso.Com Arthur, sentia-se chamada de volta a um tipo de decoro que pensava ter deixado para trs:estava tentando ser judiciosa. Apesar de seus esforos para reagir com neutralidade, ele pareceudetectar seu ceticismo.

    Havia um monte de provas fortes disse ele. Eu sei disso. Quero dizer, Rommy confessouumas vinte vezes. E Cristo poderia voltar terra para testemunhar a favor do meu cliente e aindaassim eu perderia, nesse estgio. Mas o cara no tinha histria de agresses ou assaltos moarmada. Molto e Muriel explicaram isso no julgamento, mas afirmaram que o sujeito estavadrogado com PCP. S que agora todas as pesquisas feitas com essa droga dizem que ela no secorrelaciona com a violncia. De modo que, voc sabe, a tem coisa.

    E como foi que o Tribunal de Apelaes nomeou voc, Arthur? No fao ideia. Eles sempre acham que as grandes empresas de advocacia tm recursos.

    Alm disso, algum de l provavelmente se lembrou de que eu tenho experincia com pena demorte por ter sido promotor do caso Francesco Fortunato.

    O cara que envenenou a famlia? Trs geraes, dos avs aos filhos. E ria alto no tribunal toda vez que ns mencionvamos um

    dos nomes deles. Mesmo assim eu quase desmaiei quando o jri leu a sentena de morte. Foiquando fui transferido para os Crimes Financeiros. Eu, provavelmente morreria se tivesse que

  • apertar o boto da cmara de execuo, mas ainda acredito na pena capital, em princpio.Estranhamente, Gillian no acreditava nem agora nem antes. Em poucas palavras, era

    problema demais. Havia uma dcada, depois do julgamento de Rommy Gandolph, o advogado dedefesa dele, Ed Murkowski, admitiu para ela que pedira um julgamento sem jri porque tinhaouvido um boato sobre os pontos de vista dela. Mas ela no estava sentada ali como legisladora.Se algum crime merecia execuo, era o de Gandolph.

    E o que voc quer saber de mim, Arthur? Se eu me arrependi? Nesse ponto, ningum seimportaria com a opinio dela. E Gillian no tinha dvida da culpa de Gandolph tinha resolvidoisso de novo na mente quando a carta do prisioneiro chegou de Rudyard. Ela ainda podia selembrar de outra observao que Murkowski, o advogado de Gandolph, fez depois da sentena,quando todos eles, inclusive os promotores, tinham se reunido na sala dela durante um momento,quando as palavras medonhas j haviam sido pronunciadas. Gillian comentou secamente sobre adefesa de insanidade de Gandolph, e Ed respondeu: Era melhor do que a histria que ele tinhapara contar, juza. Isso no passou de uma lenta admisso de culpa.

    Ela havia pensado em explicar tudo isso a Arthur, mas subitamente os olhos dele tinhambaixado para o cinzeiro, examinando os restos escuros como se fossem folhas de ch. Arthur,percebeu Gillian, ia finalmente chegar ao ponto.

    O Tribunal de Apelaes est me matando com gentileza disse ele , provavelmente porqueme nomearam. Eu implorei uma chance de fazer alguma descoberta, e eles mandaram a questopara o Tribunal Distrital at 29 de junho, antes de decidirem se vo permitir que Gandolph pea umnovo habeas. De modo que estou revirando pedra por pedra. Ele finalmente terminou seusesforos estudados de no olhar para ela. Escute, eu tenho que perguntar. Enquanto julgavacrimes, voc estava fazendo o que lhe causou encrenca mais tarde, quando estava atuando em casosde danos pessoais?

    Ela no estava gostando daquela conversa, mas, agora que reconhecia a direo, um gelofamiliar a dominou.

    As pessoas dizem isso? Gillian, por favor, no faa jogo. Nem se sinta insultada. Eu estou fazendo o que preciso

    fazer. No, Arthur, eu no estava aceitando dinheiro quando julgava crimes. Ningum me subornou

    no caso Rommy Gandolph; nem em nenhum caso daquela poca. A coisa comeou na vara cvel,onde isso parecia ser a ordem do dia. Ela balanou a cabea uma vez, por causa da loucuradaquilo e porque sua observao pareceu levemente uma desculpa.

  • Certo disse ele, mas estava claramente aplicando um julgamento de advogado respostadela, pesando sua veracidade. Observando-o calcular, ela achou que Arthur no pareciaparticularmente bem. Ele era baixo e nunca parecera especialmente em boa forma fsica, masestava envelhecendo antes do tempo. Seus olhos escuros tinham se retrado na carne de aparnciamachucada, o que sugeria trabalho demais e m alimentao, e o cabelo estava ficando ralo. Pior,ele ainda tinha um aspecto ansioso de co de caa, como se a qualquer segundo sua lngua pudessecair pelo canto da boca. Ento ela se lembrou de que ele tinha algum problema, algo de famlia,algum com uma doena crnica. Talvez isso o houvesse desgastado.

    E quanto bebida, juza? A bebida? Voc tinha problema com bebida quando julgou Rommy Gandolph? No. No estava bebendo?Ele se mostrava ctico. Com razo, pensou ela. O que as outras pessoas dizem, Arthur? O que as outras pessoas dizem no importa muito se voc for testemunhar que no estava

    bebendo na poca. Eu bebia, Arthur. Mas no em excesso. No naquela poca?Ela dobrou a lngua dentro da boca. Guiado pelo senso comum, Raven havia perdido seu ponto.

    Ela deveria corrigi-lo ou dizer nunca, esperando que Arthur reencontrasse o caminho correto,mas se lembrou das instrues que todo bom advogado dava ao preparar uma testemunha:Responda pergunta. De maneira breve, se possvel. No diga nada voluntariamente.

    No, no naquela poca. Ela jogou o mao de cigarros na bolsa de lona e a fechou com umgesto autoritrio. Estava pronta para ir e perguntou se Raven tinha terminado. Em vez de responder,ele demorou um segundo passando o dedo grosso pela borda de sua xcara de caf.

    Eu tenho uma pergunta pessoal disse ele finalmente , se voc no se importar.Provavelmente ia perguntar o que todo mundo queria saber. Por qu? Por que ela havia

    permitido que uma vida de possibilidades ilimitadas terminasse na dependncia e, logo depois, nocrime? Raven era muito desajeitado socialmente para hesitar onde a cortesia impedia os outros deir em frente, e ela sentiu a familiar mo de ferro do ressentimento. Por que as pessoas noentendiam que ela no conseguira avaliar a coisa? Ser que algum que no fosse, nem mesmoagora, um mistrio to absoluto para si prpria, poderia ter cado to baixo? Mas as preocupaesde Raven eram mais prosaicas.

  • Eu fico imaginando por que voc voltou para c. Quero dizer, voc como eu, certo?Solteira. Sem filhos.

    Se no estivesse numa gaiola, Raven aparentemente teria voado para longe. No entanto, elasentiu uma relutncia impulsiva em se comparar com ele. Estava sozinha, mas por opo, e semprevia isso como uma condio temporria. Tinha 39 anos na noite em que os agentes federaischegaram a sua porta, mas um casamento, uma famlia permaneciam como figuras slidas no retratoque ela havia feito para o prprio futuro.

    Minha me estava morrendo. E o Bureau de Prises estava disposto a me dar o crdito paraajudar a cuidar dela. Foi opo do Bureau, francamente. Como outras respostas que ela dera aRaven, essa tambm era confortavelmente incompleta. Gillian falira na priso; o governo e seusadvogados haviam levado tudo. E Duffy Muldawer, seu padrinho, no jargo dos programas de 12passos, estivera disposto a lhe oferecer um lugar para ficar. Mesmo assim, algumas vezes elacompartilhava da perplexidade de Raven em relao ao motivo de ter voltado ao que, em todos ossentidos, era a cena do crime. Assim que minha pena de servios comunitrios terminar,provavelmente vou pedir para me mudar.

    Ela faleceu? Sua me? H quatro meses. Sinto muito.Gillian deu de ombros. Ainda no tinha decidido como se sentia em relao morte dos pais.

    Havia muito parecia ser um dos seus poucos pontos fortes o fato de no pensar muito nesse tipo decoisa. Ela tivera um lar e uma infncia piores do que muitos, mas melhores do que alguns. Eramseis filhos, dois pais alcolatras e um estado contnuo de rivalidade e guerra entre todos eles. ParaGillian, todo o significado de sua criao era que isso a havia inspirado a ir em frente. Era comovir de Pompeia das runas queimadas e da atmosfera envenenada s era possvel fugir. Acivilizao teria que ser reinventada em outro lugar. Ela havia posto toda a f em duas coisas:inteligncia e beleza. Era linda e inteligente, e, com esses trunfos, no tinha visto motivo para serpuxada para baixo pelo que estava no passado. A Sullivan nascida naquela casa emergiu como aGillian que ela forara a existir e depois destrura.

    Meu pai morreu h trs meses e eu ainda estou arrasado disse Arthur. Sua testa curta ficoubrevemente moldada pela dor. Ele nunca parava de me enlouquecer. Provavelmente era o serhumano mais nervoso que j andou pela Terra. A ansiedade poderia t-lo matado anos atrs. Mas,voc sabe, apesar de toda aquela presso e das censuras, eu sempre senti o quanto ele se importavacomigo. Os olhos de Raven, imobilizados pela lembrana, subiram at ela, confessando, num

  • olhar sombrio e lamentoso, o quanto pessoas assim eram raras na vida dele. Arthur era como umcachorrinho, sempre encostando o nariz mido mo da gente. Num instante, at pareceuembaraado, fosse pelo tanto que havia revelado, fosse pelo evidente desconforto dela. Por queestou contando isso?

    Provavelmente porque acha que algum como eu no tem coisa melhor a fazer.O tom de voz de Gillian era totalmente informal. A princpio, ela achou que as palavras

    significariam algo diferente do que pareciam. Mas isso no aconteceu. Por um momento, a purabrutalidade da observao pareceu atordoar os dois. Um tremor perpassou pelo rosto macilento deRaven, depois ele se empertigou e fechou um boto do palet.

    Desculpe ter incomodado voc. Eu cometi o erro de achar que ns tnhamos algo em comum.Tentando se controlar, Gillian achou o mao na bolsa e acendeu mais um cigarro. Mas sua mo

    tremia ao riscar o fsforo. Render-se vergonha era um perigo enorme. Assim que isso comeasse,jamais poderia sair de baixo da montanha de entulho. Olhou a chama percorrer o fsforo,transformando-o em cinza. Do outro lado da mesa, pde ouvir o zper da pasta de Raven.

    Talvez eu tenha que intim-la a depor disse ele.Touch, pensou ela. E despeda-la, claro, assim que tivesse a oportunidade. Merecidamente,

    tambm. Voc vai aceitar a intimao por correspondncia? Ele perguntou como encontr-la sem ter

    que passar pelo escritrio do tribunal federal de condicional, e ela disse que estava morando noapartamento do poro na casa de Duffy Muldawer. Duffy, um ex-padre catlico romano, fora ochefe dos defensores pblicos no tribunal de Gillian havia anos e, em resultado, constante opositorde Raven. Mas Arthur nem se incomodou em fazer perguntas educadas sobre o bem-estar de Duffy.Em vez disso, sem olhar para ela, anotou secamente o endereo de Duffy numa agenda eletrnica,uma de 1 milho de maravilhas, cada qual menor do que a outra, que tinham se tornadoindispensveis para os americanos nos quatro anos e meio em que ela estivera fora de circulao.Os fiapos azuis de fumaa enlanguesceram entre eles, e uma garonete interveio brevemente paraperguntar se queriam mais caf. Gillian esperou que ela se afastasse.

    Eu no tinha motivo para ser grosseira com voc, Arthur. Tudo bem, Gillian. Eu sei que voc sempre me achou chato.Ela deu um sorriso amargo, mas sentiu certa admirao por Arthur. Ele tinha crescido. Agora

    podia pr as cartas na mesa. E tinha acertado na mosca. Mesmo assim, ela tentou de novo. Eu no estou muito feliz, Arthur. E acho que fico ainda mais infeliz ao ver as pessoas que

    conhecia. uma lembrana dolorosa.Isso era estpido, claro. Quem, afinal de contas, era feliz? No Arthur Raven, feio, desajeitado,

  • sozinho, a no ser por seu problema familiar, que, ela lembrara, era uma irm com problemasmentais. E, de qualquer modo, ningum estava preocupado com os problemas emocionais deGillian. No que duvidassem de que ela estava sofrendo. Mas acreditavam que merecia.

    Sem responder, Raven se levantou, dizendo simplesmente que manteria contato, e foi para aporta. Olhando-o sair, ela viu o prprio reflexo nos espelhos baratos com enfeites dourados queligavam os pilares sustentando o teto do restaurante. Frequentemente se espantava ao se ver,porque, em termos gerais, sua aparncia era muito melhor do que o modo como ela se sentia. Haviaalguma coisa reveladora, percebeu, no fato de que, como o ao inoxidvel, ela no aparentava osdanos provocados pelas pancadas. Mas era alta, com postura forte, e nem o tempo cobrava seupreo s suas feies. Estava perdendo cor agora. O cabelo louro-avermelhado tinha um tom deroedor, a caminho do grisalho. E, como havia muito, descobrira ser verdade sobre as pessoas depele clara, a sua estava mostrando cada ruga fina, como porcelana. Mas os detalhes elegantes umvestido bem-cortado, um colar de prolas, o cabelo alisado com mousse sustentavam o portecomposto que parecia irradiar dela. Era uma aparncia que tinha assumido na juventude, to falsaquanto o autorretrato feito pela maioria dos adolescentes, mas nunca abandonada, nem a aparnciaexterna de controle nem a sensao de fraude leviana que acompanhava isso.

    Certamente enganara Arthur Raven. Havia respondido de modo a induzi-lo ao erro, depois ochicoteou, para garantir que ele no se demorasse a ponto de descobrir a verdade. Raven tinha sidodesviado pelos boatos, pela conversa maligna que circulava a respeito dela havia anos, quando suavida desmoronou. Diziam que ela era uma bbada mas no era assim. Diziam que bebia at ficardoida no almoo e chegava ao tribunal meio area tarde. Era verdade que ela cara na cadeira dejuiz, no em um cochilo momentneo, mas com o rosto sobre a bancada, apagando a tal ponto que,depois de o meirinho acord-la, Gillian pde ver a marca de seu borrador de couro impressa nabochecha, ao se olhar num espelho. Eles zombavam de seus murmrios inebriados e dos insultos debaixo nvel que deixava escapar. Lamentavam o brilho desperdiado que a pusera na magistraturaaos 32 anos, para acabar afogando na bebida os dons que a tinham levado ao diploma da Escola deDireito de Harvard. Zombavam de seu fracasso em atender aos avisos que recebera repetidamentepara ficar sbria. E o tempo todo ela mantivera seu segredo. Gillian Sullivan no era uma bbada,como dizia a lenda, nem mesmo viciada em comprimidos a suspeita dos funcionrios do tribunalque garantiam nunca terem sentido cheiro de bebida em seu hlito. No, Gillian Sullivan, ex-promotora e juza do Tribunal Superior, era uma drogada, uma pirada, uma viciada em herona.

    Ela no se aplicava nunca se aplicou. Como algum que valorizava a aparncia, mesmo emseu estado de maior desespero, no admitiria a feiura. Em vez disso, fumava a herona caava odrago, como dizia a gria. Queimava. Com um cachimbo, um tubo de papel de alumnio, sugava a

  • fumaa enquanto o p aquecido se transformava primeiro numa gosma marrom, depois num delriopungente. Era mais lento, demorava minutos em vez dos segundos, at o fabuloso jorro de prazercomear a tomar conta, mas ela fora deliberada em tudo na vida, e isso, uma espcie de vcioexecutivo, se adequava imagem que fazia de si mesma, mais arrumada e menos detectvel semmarcas de picadas, sem os sangramentos no nariz resultantes do hbito de cheirar.

    Tinha comeado com um cara. No assim que sempre comea? Toby Elias era uma criaturagalante, bonita, deturpada, assistente no Departamento da Promotoria, com quem Gillian chegara apensar em se casar. Uma noite ele voltou para casa com uma dose de herona tirada de um caso emque estava trabalhando. Era a presena que um traficante tinha oferecido a outro como preldiode uma venda, apresentada como prova, e nunca devolvida depois do veredito.

    Por que no? perguntou ele. Toby sempre conseguiu fazer a perversidade parecer cheia deestilo. Sua irnica desconsiderao por seguir as regras destinadas aos outros a deixavaimpressionada. Eles cheiraram na primeira noite e reduziram a quantidade em cada noitesubsequente. Era uma paz etrea, mas nada que exigisse repetio.

    Um ms depois, Toby entrou na frente de um caminho de 18 rodas. Ela nunca soube se foiacidente. Ele no morreu. Virou um corpo sobre a cama durante meses, e ento um destroo em umacadeira de rodas. E ela o abandonou. No estava casada com o cara. No poderia lhe dar sua vidaquando ele no havia prometido a dele.

    Mas foi um momento triste. Agora ela sabia. Toby nunca havia se recuperado, nem ela. Trs ouquatro meses depois disso, ela havia experimentado uma dose sozinha. Durante um julgamento,tinha permitido que o qumico da defesa abrisse o saco de prova, lacrado, para pesar a herona quefora confiscada. Agora o barato parecia mais delicioso. Ela forjava oportunidades, oferecia arealizao de testes quando eles no tinham sido requisitados, encorajava os promotores a trancaras provas em sua sala de um dia para o outro em vez de lev-las de novo para a promotoria.Finalmente, a adulterao foi descoberta, mas as suspeitas recaram sobre um policial do tribunal,e ele foi transferido para uma delegacia distante. Depois disso, ela teve que procurar na rua. Eprecisava de dinheiro.

    Ento foi considerada uma bbada. Como aviso, foi transferida da vara criminal para a cvel,onde julgava casos de danos pessoais. Algum de l descobriu. Um dos drogados que ela haviacondenado a reconheceu: uma dona branca e bonita espreitando nos quarteires que pareciam tersido bombardeados, a menos de 1,5 quilmetro do tribunal. Ele contou ao policial que o haviaprendido. A partir da, a notcia viajou at o juiz que presidia a vara cvel, um vilo chamadoBrendan Tuohey, e seu lacaio, Rollo Kosic. Kosic visitou-a com a notcia, mas no ofereceu uma

  • punio. S dinheiro. Aceitar o conselho dele de vez em quando em um caso. Haveria dinheiro.E ela obedeceu, sempre com arrependimento, mas agora a vida era o sofrimento entre cada

    viagem. Uma noite houve uma batida, uma cena sada de 1984 ou de Darkness at Noon. O promotorfederal e agentes do FBI estavam a sua porta. Ela tinha sido presa. Por suborno, e no pelas drogas.Chorou, reclamou e fumou o bagulho quando eles saram.

    Depois daquela noite, foi procurar Duffy, seu atual senhorio, um alcolatra em recuperao,com grande experincia como conselheiro em virtude dos seus dias de padre. Ela estava sbria aoser condenada. Seu vcio foi o nico segredo que sobreviveu a um perodo em que, afora isso,Gillian sentiu que fora despida e obrigada a marchar acorrentada pela Avenida Marshal. No iriareviver tudo isso agora, certamente no por Arthur Raven ou por um assassino que fora bestial aponto de estuprar a morta.

    Mas a sbita maldade que havia lhe escapado com Arthur a deixou abalada, como seencontrasse uma rachadura no cho sob seus ps. Tentando se poupar de mais vergonha, em vezdisso ela a tinha feito aumentar. Durante horas estaria pensando em Raven e no modo como a bocado sujeito tinha se suavizado num pequeno o incrdulo depois de sua observao. Ela precisariade Duffy naquela noite, de seu aconselhamento suave, para no afundar.

    Depois dessa reflexo, levantou-se da mesa e se olhou de novo. vista, havia uma mulhermagra e elegante, cuidadosamente arrumada. Mas por dentro estava seu maior inimigo, um eudemonaco que, mesmo depois da priso e da desgraa, permanecia insatisfeito e inabalvel e, ano ser pela vontade de v-la sofrer, desconhecido.

    4A promotora

    5 de julho de 1991

    Um uivo, sbito o bastante para fazer o corao de Muriel parar, irrompeu do reservado diantedela, que estava sentada perto do balco. Um negro com avental at os ps, provavelmente ocozinheiro, tinha se levantado, e a perspectiva de sua partida parecia ter renovado a angstia damulher que estava ali. Morena e magra, ela estivera chorando encostada nele. O homem mais novo,

  • com um brinco brilhando na orelha, continuava atrs dos dois, desamparado. A viva sussurrou um dos peritos, passando p para digitais debaixo da caixa registradora.

    Ela no quer ir para casa.O cozinheiro entregou a mulher ao rapaz, que relutantemente levou um brao ao ombro dela,

    enquanto a Sra. Leonidis continuava chorando ferozmente. Num daqueles momentos de clareza esangue-frio pelos quais Muriel j era conhecida na promotoria, de repente ela reconheceu que aviva de Gus estava passando pelas fases padronizadas de sofrimento que conhecia. O choro, ogrito eram seu dever. Uma reao mais genuna morte do marido, o sofrimento verdadeiro, ou atmesmo o alvio, viriam dali a bastante tempo, em particular.

    Desde o dia em que comeara a trabalhar como promotora, Muriel tinha um instinto para ossobreviventes da violncia. No sabia muito bem at que ponto fora ligada aos pais nem se algumhomem, incluindo seu marido morto, tivera importncia verdadeira. Mas se importava com essasvtimas cheias de fria. No demorara muito a perceber que o sofrimento delas surgia no apenasda perda, mas tambm da natureza impondervel da mesma. A dor no se devia a algumacalamidade fatdica como um furaco ou a um inimigo impalpvel e irracional como a doena, masao fracasso humano, vontade demente de um agressor e ao fracasso do regime da razo e dasregras para cont-lo. As vtimas tinham direito especial de achar que isso nunca deveria teracontecido porque, segundo a lei, no deveria.

    Quando voltou a ter algum controle, a Sra. Leonidis passou por Muriel e foi ao banheirofeminino. O rapaz, que a havia acompanhado at a metade do caminho, lanou um olhar sem graapara Muriel quando a porta do banheiro se fechou.

    Eu no consigo falar com ela explicou ele. Minhas irms esto voltando para a cidade.Elas vo tir-la daqui. Ningum me ouve. De aparncia frgil e arisca, o rapaz estava ficandoprecocemente careca, e o cabelo era cortado curto como o de um recruta do exrcito. De perto,Muriel pde ver que seus olhos e seu nariz estavam vermelhos. Perguntou se ele tambm eraparente de Gus.

    O filho disse ele com uma nfase sombria. O filho grego.Ele encontrou algum humor amargo no que tinha dito. Apresentou-se como John Leonidis e

    ofereceu a mo mida. Quando Muriel respondeu com seu nome e seu cargo, o rapaz se animousubitamente.

    Graas a Deus disse ele. Era isso que minha me estava esperando, falar com umpromotor. Ele bateu nos bolsos at perceber que j estava segurando um mao de Kools. Possoperguntar uma coisa? Ele ocupou um banco ao lado dela. Eu sou suspeito?

    Suspeito?

  • No sei, todo tipo de coisa est me passando pela cabea. A nica pessoa em quem euconsigo pensar que gostaria de matar Gus sou eu.

    Voc queria? perguntou Muriel, em tom casual.John Leonidis olhou para a ponta acesa do cigarro. Suas unhas tinham sido rodas at ficarem

    completamente irregulares. Eu nunca teria coragem. Mas, voc sabe, toda essa coisa de bom. Era uma estratgia de

    relaes pblicas. Em casa, ele era um porco. Obrigava minha me a cortar as unhas do p dele.D para imaginar? No vero, ficava sentado feito um sulto na varanda dos fundos enquanto elafazia isso. Puxa, d vontade de vomitar.

    John sacudiu a cabea, amargurado, e depois, praticamente sem aviso, comeou a chorar.Muriel no se relacionava bem com o pai quando ele morreu, dois anos antes, e fez uma avaliaoinstantnea do tornado de confuso que sacudia John. Tom Wynn fora presidente da seo local doSindicato dos Trabalhadores de Autopeas na fbrica da Ford, perto de Fort Hill, e representantede vendas, um homem que falava em fraternidade na fbrica e soltava bile em casa. Depois de suamorte, aps um intervalo breve demais, a me de Muriel havia se casado com o diretor da escolaem que ela dava aula. E agora estava mais feliz no amor do que Muriel jamais estivera. Como John,Muriel fora deixada para trabalhar as emoes natimortas que acompanhavam tudo que ficouinacabado com seu pai. Enquanto John lutava para recuperar a compostura, apertando o nariz,Muriel ps a mo em cima da dele, sobre a frmica manchada do balco.

    Quando sua me saiu do banheiro, John j estava recomposto. Como ele havia previsto, aoapresentar Muriel como a promotora, Athena Leonidis, que havia apenas um instante estiveradobrada pelo sofrimento, enrijeceu-se para dar seu recado.

    Eles deveriam estar mortos, eu