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Erudito ou popular? A música de Garoto Daniel Amaral Introdução O presente estudo pretende discutir as diferenças existentes entre o violão clássico e violão popular a partir de estudos acerca dos conceitos de alta cultura e cultura popular de Diana Crane (2011); e da análise das peças Inspiração e Debussyana, que fazem parte do conjunto de peças para violão solo, que datam de 938 a 1954, do compositor Aníbal Augusto Sardinha, o Garoto. Tais peças são analisadas em sua totalidade por Delneri (2009). Partimos do pressuposto de que a classificação genérica em erudito e popular para estilos de composição (no caso de obras para violão solo) não é abrangente o suficiente em casos de compositores como Garoto: músico de rádio que transita entre e domina ambos os estilos. Garoto: seu contexto histórico e suas múltiplas influências Garoto foi um multi-instrumentista das cordas: começou com o banjo (instrumento que lhe rendeu o apelido); logo dominou vários outros instrumentos como a guitarra portuguesa, o bandolim e o violão. Sua vida artística e criativa se dá simultaneamente ao aparecimento e difusão do rádio no Brasil. Não apenas com o rádio, mas também o disco e o nascimento da música popular urbana no país. Compositor de enorme importância para a música brasileira, renomado instrumentista, com sua morte prematura aos 39 anos em 1954, caiu no esquecimento. Alguns anos depois -59-

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Erudito ou popular? A música de Garoto

Daniel Amaral

Introdução

O presente estudo pretende discutir as diferençasexistentes entre o violão clássico e violão popular a partir deestudos acerca dos conceitos de alta cultura e cultura popular deDiana Crane (2011); e da análise das peças Inspiração eDebussyana, que fazem parte do conjunto de peças para violãosolo, que datam de 938 a 1954, do compositor Aníbal AugustoSardinha, o Garoto. Tais peças são analisadas em sua totalidadepor Delneri (2009).

Partimos do pressuposto de que a classificação genéricaem erudito e popular para estilos de composição (no caso deobras para violão solo) não é abrangente o suficiente em casos decompositores como Garoto: músico de rádio que transita entre edomina ambos os estilos.

Garoto: seu contexto histórico e suas múltiplas influências

Garoto foi um multi-instrumentista das cordas: começoucom o banjo (instrumento que lhe rendeu o apelido); logodominou vários outros instrumentos como a guitarra portuguesa,o bandolim e o violão. Sua vida artística e criativa se dásimultaneamente ao aparecimento e difusão do rádio no Brasil.Não apenas com o rádio, mas também o disco e o nascimento damúsica popular urbana no país.

Compositor de enorme importância para a músicabrasileira, renomado instrumentista, com sua morte prematuraaos 39 anos em 1954, caiu no esquecimento. Alguns anos depois

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suas obras foram reencontradas (e revividas) por algunspesquisadores: Irati Antônio e Regina Pereira, Paulo Bellinatti,Geraldo Ribeiro, entre outros.

Nascido em família de músicos teve sua formação inicialem grupos regionais, onde aprendeu a ‘tocar de ouvido’memorizando as melodias e harmonias nos conjuntos de choro.Sua carreira, segundo Poletto (2001), inicia-seconcomitantemente com a ‘era de ouro’ da música popularbrasileira. Aos 15 anos realiza sua primeira gravação e écontratado por Francisco Mignone para fazer parte do grupo deartistas da gravadora Parlophon. O mercado da música popularnesse início da era do rádio e dos discos ainda era uma incógnitapara uma grande maioria dos artistas. Garoto tocava em bailes,festas de casa de família, serestas, circos, com seus grupos.Realizou durante algum tempo do início de sua carreira, algumasgravações de músicas suas e interpretações.

O que diferencia Garoto dos violonistas de entãocomo Canhoto, João Pernambuco, Armandinho, etc,é que ele era faminto por conhecimento eaprimoramento. Mesmo assoberbado peloscompromissos nos anos 30, ele estudou violãoclássico com Atílio Bernardinni, que foi um dosintrodutores da escola de Tarrega em São Paulo, eestudou harmonia e composição no ConservatórioDramático e Musical. Bernardini dizia que Garotoera um aluno rebelde, mas, que sabia o que queriaaprender e transbordava força criadora. Essaformação é o fundamento para a originalidade desuas composições. Depois da geração de Garoto, lermúsica tornou-se uma habilidade vital para o violãopopular brasileiro. O que por si só responde peloavanço da qualidade de nossas músicas nas décadaseguintes (ZANON, s.d.).

Em 1933, Garoto vai estudar violão com AtílioBernardini, um dos pioneiros do violão erudito em São Paulo.

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Completa sua formação com estudos de harmonia e composiçãono Conservatório Dramático e Musical de São Paulo. Garotoficou conhecido por sua atitude ‘rebelde’ diante das lições dadaspor seu professor, Bernardini. Poletto (2001) afirma que ainfluência do professor pode ser verificada na multiplicidade deinstrumentos pelos quais Garoto começa a se interessar:cavaquinho, guitarra havaiana, violão tenor (no qual se destacacomo solista nos anos 30), entre outros. “Nota-se já nesta épocauma característica muito própria do seu estilo, a da constantebusca pelo novo, novas soluções técnicas e mesmo musicais quesatisfizessem suas necessidades expressivas” (POLLETO, 2001,p.22).

Garoto é convidado para algumas gravações, entre elascom Carmem Miranda, o que lhe rende o convite para integrar o‘Bando da Lua’ que logo rumaria para uma temporada de showsnos Estados Unidos. A temporada no país duraria menos de novemeses, porém seria de total importância para a música de Garoto.Ele era apresentado como artista convidado pelo grupo comdireito a nome estampado em separado nos cartazespromocionais.

Segundo Poletto (2001), mesmo não sendo um músicoespecializado em jazz, é provável que Garoto tenha seinteressado por aquela música e sua experiência com o choro ecomo músico de rádio o ajudaria a tocar de improviso. Assim,sua temporada nos Estados Unidos não é apenas importante paradestacá-lo como artista, mas também há um provávelcrescimento técnico e musical. Garoto, segundo o autor, nutria aesperança de criar uma carreira na América com um contratomais flexível e com maiores liberdades de divulgação para a suamúsica uma vez que sua atuação estava bastante presa aoesquema de divulgação e ao repertório da cantora. Entretanto,sua proposta não é aceita pelos empresários de Carmem e Garotonão retorna com ela aos EUA. Fica no Rio e retoma suasatividades na Rádio Mayrink Veiga. No período que vai de 1940

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a 1955, Garoto realiza mais de 100 gravações. Em 1943 muda-separa a Rádio Nacional e permanece lá pelo resto da década. Seuprimeiro disco solo é lançado em 1940. É na Rádio Nacional queGaroto conhece Radamés Gnattali e seu contato com o violãoerudito o que leva à apresentação do Concertino nº2 de Gnattali,no Teatro Municipal, em 1952.

Delneri (2009) afirma que o ambiente no qual Garotoesteve inserido em sua vida artística foi a ‘Era do Rádio’ e que atransmissão radiofônica dependia muito da capacidadeimprovisativa não apenas dos músicos, mas para todas as áreasafins. A formação de Garoto, no entanto, vai além do ‘tocar deouvido’ nas rádios e gravadoras que trabalhava: houve, por partedo músico, um estudo mais aprofundado do violão erudito e dateoria musical (quando faz aula de violão com Bernardini etambém aprende teoria musical e composição). “Portanto, olimite de sua música alcança dimensões estéticas que estão alémdas necessidades pragmáticas da profissão” (DELNERI, 2009,p.6). Garoto, segundo o autor, tinha um conhecimento profundoda escrita violonística uma vez que, a partir da análise de seusmanuscritos, verifica-se um domínio técnico do que ele chama de‘orquestração do violão’.

A música popular urbana ganha força a partir da décadade 30 e se torna um campo de trabalho de muitos músicos dediversas formações, inclusive erudita (DELNERI, 2009). Nesseínterim, os gêneros de música vocal e instrumental que reuniamos elementos sonoros resultantes de uma prática musical ondeimprovisação e espontaneidade eram atributos fundamentais,ganham forma mais estruturada. “A música erudita e a músicapopular tiveram a oportunidade de aproximação e deinfluenciarem-se mutuamente” (DELNERI, 2009, p.6).

O período que vai da década de 1920 a 1960 é estudadopor Wisnik (2007) e o autor afirma que é nessa época que surgemartistas envolvidos por uma necessidade de ‘entender’ o Brasil,criando assim obras decisivas para o pensamento de como ‘ser

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brasileiro’ no mundo. É nas décadas de 20 e 30 que a culturapopular de massas ganha enorme força como advento do rádio,discos, cinema, etc. Surgem obras que mesclam manifestações dacultura erudita europeia, com manifestações da cultura popularrural (folclórica) e a cultura popular urbana, de massas. Assim,ambos os autores concordam que esse intervalo de tempo é deenorme importância para a cultura brasileira, uma vez que énessa época que as manifestações artísticas preocupadas emdemonstrar brasilidade se fortalecem.

Os objetos de estudo do presente trabalho são duas peças,Inspiração e Debussyana, que pertencem ao seu conjunto depeças para violão solo que datam de 1938 a 1954. Tais peças sãoanalisadas em sua totalidade por Delneri (2009)

A obra para violão solo de Garoto esteve semprereconhecida como um conjunto de muitaimportância para a música instrumental brasileira.Trata-se de um repertório de profundacomplexidade que, utilizando elementos técnicos doviolão clássico, vem colocar a música popularbrasileira, tais como o choro e a valsa, o samba, acanção e o prelúdio, numa posição de vanguardaem relação ao seu tempo (DELNERI, 2009, p.4).

Nesse pequeno parágrafo fica claro que o autor consideraGaroto como um instrumentista-violonista-compositor douniverso da música popular urbana, habituado a gêneros típicosdo repertório das rádios e dos discos. Porém, suas peças paraviolão solo tem uma tendência para a escrita baseada na técnicade violão clássico:

Os procedimentos composicionais e os recursostécnicos que envolvem a música de Garoto paraviolão colocam-nos diante de uma obra que defineum estilo musical, uma sonoridade e um modo deexecução que são encontrados, de uma maneirabem integrada e fluente, na produção popular eerudita do violão (DELNERI, 2009, p.4).

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“... violonista raro que demonstra um domínio maduro doinstrumento. O chamado ‘violão brasileiro’ começa um longocaminho de afirmação artística e musical. Garoto passa adeterminar o que podemos chamar de um novo violonismo.”(DELNERI, 2009, p.9). Multi-instrumentista acostumado àefemeridade das músicas tocadas ao vivo nas rádios, não sepreocupava muito com a organização de sua obra, assim como oregistro cronológico de suas composições.

Sua obra para violão solo apresenta característicasque nos coloca diante de uma linguagem musicalinovadora para o seu tempo e que se projeta comosendo influência constante para as gerações deviolonistas e compositores, até os dias atuais(DELNERI, 2009, p.16)

A divisão da obra de Garoto, segundo Delneri (2009) sedá da seguinte forma: os choros, que representam a “invenção eo futuro” (DELNERI, 2009, p.9); prelúdios, com certo ‘espíritode liberdade’; valsas, onde a tradição é invocada; o samba e ascanções, “propostas de um estilo comprometido com as tradiçõesurbanas da música” (idem). “Obras de caráter forte, utilizam-sede uma dialética musical dos compositores comprometidos como novo” (idem).

Do início de sua carreira enquanto profissional da músicaem meados de 20 e 30, Garoto desenvolve sua técnica e seuconhecimento mais aprofundado de música: domina a técnica doviolão clássico e a escrita da música em partitura. “O estilopopular e a técnica clássica estarão presentes nas composições,nas invenções, que exige, da mesma maneira, um apuradodomínio do violão para a execução da música de Garoto”(DELNERI, 2009, p.13). Garoto tem sua formação musical emambientes populares (das práticas de rodas de choro) e seuinteresse pela ‘teoria musical’ modifica suas obras.

Assim, a partir da análise de sua formação artístico-profissional e seu contexto sociocultural e histórico verifica-se a

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múltipla influência em suas criações: da sua atuação enquantomúsico de rádio, solista e acompanhador em regionais de choro;e da sua inquietação criativa e a busca por conhecimentos maisprofundos da técnica e teoria musical. Sua obra, talvez porcarregar essa múltipla influência, tenha despertado o interesse demúsicos, intérpretes e pesquisadores.

Dos conceitos de erudito e popular

Música, enquanto objeto artístico é a arte de combinarsons (e silêncio) para a obtenção de formas sonoras a fim deatingir algum efeito expressivo (GUETTER, 2002). É comum, adiferenciação genérica de diversas manifestações musicais:gêneros específicos (como o rock, o samba, etc); e gêneros maisabrangentes (como música popular e música erudita). É possívela distinção a nível educacional: exemplo, o curso de MúsicaPopular da Faculdade de Artes do Paraná; a distinção de cursosde violão erudito e violão popular em alguns conservatórios doBrasil.

As peças para violão solo de Garoto são frequentementecomparadas à música de concerto

Compositor de música instrumental de qualidadetão superior que é hoje tocado no mundo todo comose fosse música de concerto. Só que enquanto vivoele gastou seu tempo mais precioso no papel decoadjuvante, já que sua música era ‘sofisticada’demais para ser veiculada. Esquecido pela soberbado cenário da música popular, foi resgatado décadasmais tarde, ironicamente, pela musicologia e pelosviolonistas clássicos (ZANON, s.d.)

Segundo Guetter (2002), a música erudita ocidentaltambém chamada de música de concerto, teve seu nascimentoamplamente ligado à música sacra. Somente nos séculos XVII e

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XVIII que a música de elevada técnica composicional passa aindepender de uma temática sacra.

Do outro lado encontra-se a música popular: ela tem suaorigem no povo, porém, a maneira com a qual é produzida e atémesmo sua função social são pontos de apoio para a suadefinição. Segundo a definição de Oneida Alvarenga (citado porGUETTER, 2004, p.4) a música popular se divide entrefolclórica, ou seja, a música criada de forma anônima e usadacoletivamente por um grupo de pessoas não preocupados comsua teorização e/ou com suas estruturas técnicas, e divulgadaspor meios orais através de atividades de interesse social; e amúsica popularesca, ou seja, aquela composta por autorconhecido e destinada a todas as camadas de uma coletividade,utiliza-se de meios técnicos e teóricos básicos e/ou rudimentarese se difunde através de meios de comunicação (rádios, imprensamusical).

A autora afirma ainda que “a música popular usa recursostécnicos e teóricos mais simples, enquanto a música erudita usaestruturas mais elaboradas e instrumentos técnicos e teóricosmuito desenvolvidos” (GUETTER, 2004, p.7). E completa: “Amúsica popular, portanto, tem um acesso muito direto ao ouvinte,independentemente o nível sócio cultural dele; já a músicaerudita pressupõe um mínimo de formação específica para a suacompreensão” (idem). Fica claro que ela não considera aprimeira como sendo inferior à segunda, entretanto, consideraseus recursos (seja composicionais, seja de execução) comosendo menos elaborados que os da música erudita.

As definições de música erudita e popular buscadas porGuetter (2002) e descritas acima se tornam insuficientes se seampliar o campo de discussão aos pensamentos acerca de altacultura e cultura popular estudados por Crane (2011): é possívelbaseado em apenas um padrão de análise, classificar duasmanifestações musicais de contextos (e, muitas vezes, atéépocas) distintos?

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As generalizações a respeito da alta cultura e dacultura popular encobrem em vez de clarificar, anatureza e os efeitos da cultura registrada, poisrecorrem a conceituações obsoletas, tanto daestrutura social, como das culturas registradas.Como é considerada superior à cultura popular, aapreciação da alta cultura foi utilizada como limitesimbólico para excluir aqueles que preferem outrasformas de cultura (CRANE, 2011, p.29).

Essa diferenciação dicotômica entre diferentesmanifestações culturais, segundo Crane (2011), implica que“itens culturais podem ser categorizados inequivocadamente emtermos de uma dessas categorias” (CRANE, 2011, p.29). Talprocesso de diferenciação cultural (baseado num conjunto únicode padrões) é obsoleto. Na atualidade, o conceito de cultura épluralista. Vários sistemas estéticos funcionam em todas asformas culturais. Não há mais um padrão universal de qualidade.

Nessa situação, não é mais apropriado sustentar queos sistemas estéticos utilizados por determinadasformas de cultura, como as artes, são superiores emrelação àqueles utilizados para outras formas,disseminadas entre públicos maiores e maisheterogêneos. Em vez disso, como revelaramdiversos estudos na sociologia da cultura, os limitesentre alta cultura e cultura popular são fluidos; asduas formas de cultura são socialmente construídas(CRANE, 2011, p.30).

Música de concerto está associada à ideia de alta culturadebatida por Crane (2011). Segundo a autora, a ideia de altacultura tende a ser associada a contextos sociais específicos e quenão são acessíveis às pessoas comuns (museus, orquestrassinfônicas, galerias de arte).

Wisnik (2007) destaca a característica fusional da culturabrasileira: certa “vocação para cruzar ou dissipar fronteiras”(WISNIK, 2007, p.56). Ainda resgata o pensamento

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antropofágico de Oswald de Andrade e sublinha que a culturabrasileira se fez por esse traço de antropofagia: a de se apropriarde elementos internos e externos para a elaboração de umacultura singular, com múltiplas características; o autor encaraesse traço antropofágico como uma identificação afirmativa dotraço multicultural e multiétnico da cultura brasileira.

Garoto foi um músico profissional que, além de tocargêneros consagrados de música popular (como choro, samba,etc) trabalhou durante muito tempo nas rádios: um poderosoveículo de música popular urbana na década de 30 e 40. Assim,pode-se dizer que sua atuação enquanto músico foi voltada para aprática da música popular urbana. Entretanto, entra em contatocom a ‘alta cultura’ da música quando estuda violão clássico eteoria musical. Assim, sua obra carrega essa dupla influência: ada alta cultura e da cultura popular, o que impossibilita umaclassificação inequívoca de sua obra em uma dessasclassificações genéricas

Nessa situação, não é mais apropriado sustentar queos sistemas estéticos utilizados por determinadasformas de cultura, como as artes, são superiores emrelação àqueles utilizados para outras formas,disseminadas entre públicos maiores e maisheterogêneos. Em vez disso, como revelaramdiversos estudos na sociologia da cultura, os limitesentre alta cultura e cultura popular são fluidos; asduas formas de cultura são socialmente construídas(CRANE, 2011, p.30).

Entretanto, segundo a autora não há sistemas alternativospara a classificação de diferentes formas de cultura que sejaaceito. Do ponto de vista sociológico a autora afirma que ascategorizações das culturas registradas deveriam ser feitas emrelação aos ambientes onde foram criadas, produzidas edisseminadas.

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Da análise das peças

As composições para violão solo de Garoto sãoanalisadas e classificadas por Delneri (2009) em gênerosdistintos: choros (típicos e modernos), sambas e canções, valsase prelúdios. Inspiração e Debussyana, as peças escolhidas paraanálise nesse trabalho, se encontram dentro dos prelúdios deGaroto, de acordo com o estudo de Delneri (2009).

A forma prelúdio segundo o Dicionário Grove de Músicaé

Movimento instrumental destinado a preceder umaobra maior, ou um grupo de peças. Os prelúdiosevoluíram a partir de improvisações feitas pelosintrumentistas para testar a afinação, o toque e otimbre de seus instrumentos, e por organistas deigreja para determinar a altura e o modo da músicaa ser cantada durante a liturgia (SADIE, 1994,p.742/743).

Segundo o dicionário, tal gênero, apesar de seunascimento condicionado a uma introdução improvisativa dealgum conjunto de peças, continuou sua evolução ao longo dotempo adquirindo maiores liberdades formais. Bastanteconhecidas são as séries de prelúdios para instrumentos: osprelúdios e fugas d’O cravo bem temperado de J. S. Bach; os 24Prelúdios op. 28 de Chopin; os Préludes de C. Debussy; Os 5Prelúdios para violão de Villa-Lobos; entre outros. Assim,conclui-se que a forma prelúdio tem sua origem na tradiçãoeuropeia de composição instrumental, ou seja, na música eruditaocidental, a música de concerto.

Da observação dessa tradição composicional do gênero,Delneri (2009) classifica algumas das peças para violão solo deGaroto como peças que exploram a poética do devaneio, do‘tempo presente’, sem o compromisso com uma forma rígida de

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composição, que segundo ele, seriam as características da formaprelúdio, principalmente se comparada ao conjunto de peças parapiano intituladas Prèludes do compositor francês ClaudeDebussy (1862-1918). Tais peças são em andamento lento e decaráter improvisativo e Garoto mantém nelas um discurso livrede caráter meditativo.

Um fato importante a ser observado é que a peçaDebussyana (uma das peças classificadas como prelúdio) carregano próprio nome a homenagem e deixa claro a fonte deinspiração para a sua composição. Segundo Griffiths (1998), amúsica de Debussy é o abandono da narratividade: sua músicaevoca mais a esfera da imaginação livre, do sonho. Talconstatação dialoga com a afirmação de Delneri de que osprelúdios de Garoto “vem criar um estado de sonho, umdevaneio através de imagens sonoras de caráter descritivo”(DELNERI, 2009, p.98). Outro ponto que dialoga nos escritos deambos os autores é a ideia de uma música sugestiva: Griffithsafirma que o Prelude de Debussy é uma sequência de cenários, eque possui uma forte sugestão ambiental.

Assim, ao ouvir o Prelude a l'apres-midi d'un faune deDebussy, analisado por Griffiths (1998), e a Debussyana deGaroto, analisada por Delneri, ficam claras as correspondênciastemáticas entre ambos: Garoto, na sua observação atenta damúsica do compositor francês, cria um ambiente sugestivo.Como nas palavras de Griffiths (1998) sobre Debussy (Garoto,no caso da Debussyana) “não projeta sua ideia principal numdesenvolvimento progressivo de longa duração. O efeito é antesde improvisação” (GRIFFITHS, 1998, p.9).

Já na peça peça intitulada Inspiração a classificação deprelúdio fica a cargo do próprio compositor. No manuscrito, logoabaixo do título, lê-se a palavra prelúdio. Sua estética sediferencia da de Debussyana uma vez que aqui a peça sedesenvolve num modelo mais ‘clássico’ de prelúdio: há umapequena introdução que leva ao tema, e vai do compasso 1 ao 8

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compositor de criatividade inegável, Garoto é um marco para oviolão brasileiro: suas peças para violão solo despertam ointeresse de músicos e pesquisadores. A partir do conhecimentomais profundo de seu contexto histórico é possível observar quesua música sofre grande influência de seu ambiente e de suacondição enquanto músico profissional num Brasil onde amúsica popular urbana ainda está se formando; um Brasil ondeas características principais do ‘ser brasileiro’ ainda não estãomuito claramente estabelecidas.

A partir dos estudos realizados ao longo dessa pesquisa, épossível afirmar que o entendimento do que é música erudita oupopular está ligado ao contexto onde essa música é tocada: se amúsica é veiculada por um meio de comunicação como a rádio,está mais ligada às manifestações de música popular; se éapresentada em um teatro (por exemplo) toma certo status demúsica de concerto.

Garoto teve uma formação inicial e atuação profissionalque o classificaria como músico popular. Entretanto, seuconhecimento técnico e domínio das formas típicas da música deconcerto (observados na análise de Debussyana e Inspiração)obtidos através de estudo (de teoria e harmonia e da técnica deviolão erudito) observados em suas peças para violão solo, épossível afirmarmos que também é um músico erudito.

Da leitura das pesquisas realizadas acerca de suabiografia e obra, é possível compreender os motivos de suaimportância e influência. Sem negar é claro que Garoto não é oúnico dentro dessa ideia de músico versátil que realiza o diálogoentre a música clássica e a música popular (a alta cultura e acultura popular). Muitos músicos, assim como nos traz o estudode Wisnik (2007), antes mesmo de Garoto nascer, já realizavam aponte entre esses dois mundos artísticos.

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Referências

ANTONIO, Irati; PEREIRA, Regina. Garoto, sinal dos tempos.Rio de Janeiro, FUNARTE, 1982.

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BACH, J. S. Prelude- Cello Suite n1 in G major BWV 1007.Arquivo em Pdf. Violoncelo. Disponível em: <http://conquest.imslp.info/files/imglnks/usimg/f/f3/IMSLP01298-BWV1007.pdf>. Acesso em: 16/09/2012.

BELLINATI, Paulo. The Guitar Works of Garoto – Vol. 1 e 2.GSP, San Francisco, CA. USA, 1991.

CRANE, Diana. Ensaios sobre moda, arte e globalizaçãocultural. São Paulo: SENAC-SP, 2011.

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GUETTER, Maria Luiza Gomes. Villa-Lobos: Popular ouErudito?. Monografia de Pós-Graduação, FAP, 2004.

POLETTO, Fábio Guilherme. Garoto: uma trajetória e seusdesdobramentos. 2001. Monografia de Pós Graduação,EMBAP, 2001.

SADIE, Stanley. Dicionário Grove de Música: edição concisa.Rio de Janeiro: Zahar, 1994.

WISNIK, José Miguel. “Entre o Erudito e o Popular”. In: Revistada História, nº 157, 2007. p. 55-72.

ZANON, Fábio. “O violão brasileiro. Os criadores: Garoto.” programa radiofônico gravado, disponível em:

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<http://vcfz.blogspot.com.br/2006/10/42-garoto.html>.Acessado em 19/05/2012.

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