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“TRAMAS POPULARES: rebelião religiosa na construção da devoção à escrava Anastácia” Mônica Dias Gualda Pereira Mestranda em História – Universidade Federal Fluminense Resumo: O início da década de 1970 é o marco do processo que levaria a imagem de uma escrava a tornar-se uma entidade espiritual cultuada em diversos cantos da cidade do Rio de Janeiro. Irrompem inúmeras histórias a respeito da vida da escrava - verdadeiras hagiografias. Louvada com fervor a escrava Anastácia é reconhecida como milagreira por muitos e seu culto, como é próprio às expressões populares, resgata crenças e práticas religiosas diversas. Esse fenômeno religioso tão recente pode ser percebido como fruto de um modo particular do catolicismo brasileiro: religiosidade recheada de particularismos em detrimento de ordenações maiores que advêm das instâncias religiosas oficiais. Introdução: “Construção da trama – rebeldia religiosa” Maracanã, Rio de Janeiro, domingo à tarde. Muitas expectativas. Eliminatória: Botafogo X Fluminense. Campeonato carioca de 2000. Visível tensão: jogadores e torcedores vibrando com cada movimento de seus times. Final do segundo tempo: jogo fica mais disputado, ansiedade e nervosismo crescentes. O juiz consulta o relógio. Jogadores jogam duro. A bola rola para o pé de “Magrão”, toda velocidade possível, sem olhar para os lados, apenas fantasiando antecipadamente a comemoração botafoguense. O Fluminense arrisca uma jogada. Lance ousado: Paulo César toma toma a posse da bola – choque no meio de campo! O zagueiro é atendido ali mesmo: boca machucada, refeita com um curativo, volta à peleja. Término da partida. Resultado: “Olha só como ele está parecendo a escrava Anastácia ... aquela com a mordaça...”.

Esc Rava Anastacia

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“TRAMAS POPULARES: rebelião religiosa na construção da devoção à

escrava Anastácia”

Mônica Dias Gualda Pereira

Mestranda em História – Universidade Federal Fluminense

Resumo: O início da década de 1970 é o marco do processo que levaria a imagem de

uma escrava a tornar-se uma entidade espiritual cultuada em diversos cantos da

cidade do Rio de Janeiro. Irrompem inúmeras histórias a respeito da vida da escrava -

verdadeiras hagiografias. Louvada com fervor a escrava Anastácia é reconhecida

como milagreira por muitos e seu culto, como é próprio às expressões populares,

resgata crenças e práticas religiosas diversas. Esse fenômeno religioso tão recente

pode ser percebido como fruto de um modo particular do catolicismo brasileiro:

religiosidade recheada de particularismos em detrimento de ordenações maiores que

advêm das instâncias religiosas oficiais.

Introdução: “Construção da trama – rebeldia religiosa”

Maracanã, Rio de Janeiro, domingo à tarde. Muitas expectativas.

Eliminatória: Botafogo X Fluminense. Campeonato carioca de 2000. Visível tensão:

jogadores e torcedores vibrando com cada movimento de seus times. Final do

segundo tempo: jogo fica mais disputado, ansiedade e nervosismo crescentes. O juiz

consulta o relógio. Jogadores jogam duro. A bola rola para o pé de “Magrão”, toda

velocidade possível, sem olhar para os lados, apenas fantasiando antecipadamente a

comemoração botafoguense. O Fluminense arrisca uma jogada. Lance ousado: Paulo

César toma toma a posse da bola – choque no meio de campo! O zagueiro é atendido

ali mesmo: boca machucada, refeita com um curativo, volta à peleja. Término da

partida. Resultado: “Olha só como ele está parecendo a escrava Anastácia ... aquela

com a mordaça...”.

Existe uma crença, no sentido religioso da palavra, em torno da imagem de

uma escrava. Imagem esta que evoca lembranças do martírio da escravidão, pois lhe

foram infligidos dois castigos comuns aplicados aos cativos, a gargalheira, sendo esta

uma coleira pontiaguda e a máscara de flandres que cobria a boca impedindo o

escravo de falar e de alimentar-se. A escrava Anastácia, como é conhecida, ganhou

popularidade e um culto estruturado no Rio de Janeiro. Diversas versões a respeito

de histórias de sua vida circulam de forma oral, de boca em boca, em livretos

religiosos por vezes anônimos ou veiculados por grupos ligados ao movimento que

busca sua difusão. Temos, portanto, diversas recriações em torno das histórias

elaboradas sobre sua existência e, mesmo com variações locais, percebemos eixos

que se mantêm inalteráveis. O mais conhecido e reconhecido estando ligado ao lado

religioso.

A escrava Anastácia representa nos dias atuais mais uma força espiritual na

qual seus fiéis depositam seus anseios e aflições. É tratada com as mesmas

reverências que os santos e entidades espirituais da Igreja Católica Romana e das

religiões afro-descendentes. O objetivo do presente trabalho não é resgatar uma

crença, pois com isso estaríamos pressupondo que estivesse perdida num tempo um

tanto quanto imemorial. Ao contrário, é pensar um pouco mais a respeito desse

fenômeno religioso que vem sendo construído no cotidiano da população do Rio de

Janeiro, fruto de uma herança religiosa permeada de recriações que permitem o

exercício da fé de modo diversificado e, queno caso brasileiro, tais “reinvenções

religiosas” se processam partindo de uma matriz que é o catolicismo.

A popularidade existente em torno da crença na escrava Anastácia é grande

o bastante em relação ao seu surgimento, que reconhecemos como tendo origem na

década de 1970, em um museu no centro da cidade do Rio de Janeiro. Este Museu

faz parte de um complexo que pertence a Irmandade do Rosário e de São Benedito

dos Homens Pretos. Possui uma entrada independente, em uma ruela sem saída, na

lateral da igreja, por onde os visitantes entram. Existe uma grande porta que dá

passagem para outras salas onde funciona a administração da Irmandade, e

percorrendo os corredores e descendo uma grande escada de madeira, tem-se acesso

à sacristia da igreja. Em dia de missa, pode-se acompanhá-la do interior do Museu,

pois existem três “portas” de treliça que possibilitam, em parte, escutar e ver a

cerimônia. Essa aproximação contudo, pouco influencia o perfil “sincrético” do

Museu, sendo bastante forte a presença de práticas relacionadas a outras religiões.

Tendo surgido a primeira imagem da escrava numa exposição no interior do

Museu do Negro, no início da década de 1970, em meados da mesma década, uma

imagem em formato de busto começa a ser cultuado num altar menor, na lateral da

Igreja do Rosário. É interessante pensar que nesta Igreja, no século XIX, bem

próxima ao cruzeiro, local de queima de vela para as almas, existia uma pintura

conhecida como “senhora da cabeça”1. Seria uma representação de Nossa Senhora

que traz uma cabeça nas mãos? Seria a representação de uma cabeça de mulher ?

Enfim, este detalhe alimenta possibilidades de analogias em relação ao culto da

Anastácia: é o busto que entra na Igreja, quase somente sua cabeça, assim como a

senhora do século anterior.

Ainda não se pode confirmar, em termos quantitativos, a real abrangência

da popularidade da escrava Anastácia, mas as pesquisas de campo, em vários bairros

do Rio de Janeiro e municípios circunvizinhos, revelam que nenhuma das pessoas

abordadas desconhecia sua existência. Havia variações em torno das histórias

conhecidas e estas confirmavam a popularidade da escrava. Desse modo, podemos

afirmar que não se trata de um reconhecimento localizado, restrito a um determinado

espaço geográfico ou a categorias sociais; ao contrário, vem sendo utilizado e

difundido através dos meios de comunicação como rádio, revistas, jornais, televisão,

out-door. Com esta ampla difusão, são diversas as versões conhecidas a respeito da

escrava Anastácia, gerando diferenciados usos de suas histórias, garantindo, de sua

eficácia.

1 Karash, Mary. Slave “Beloging”: Religious and Social Groups. In: Slave Life in Rio de Janeiro 1808-1850.

New Jersey: Princeton University Press, 1987. P. 269.

Não foi exclusividade do momento futebolístico a associação de uma boca

machucada, fechada por um curativo, com a imagem da negra Anastácia. Outras

correlações são feitas a partir da imagem da escrava. Igualmente popular, as novelas

brasileiras, assistidas diariamente por milhares de pessoas, apresentaram, em horário

nobre, entre os protagonistas, uma personagem “esotérica” devoto da escrava.

Walber, como era conhecido, lançou uma espécie de bordão que muitos repetiam e

repetem, “Valei-me escrava Anastácia!”, frase que repetia nos momentos de aflição

ou alegria. Ele lançava seu pedido e era atendido2.

O culto à escrava Anastácia é recente em termos históricos e, embora conte

com o resgate de alguns elementos do passado histórico escravista, nas diversas

versões de sua “hagiografia”, isto não significa que tanto a crença quanto o culto

sejam reminiscências de um remoto passado imemorial. Ao contrário, indícios

apontam para uma criação e não sobrevivência. O início da devoção em torno da

imagem da negra escrava amordaçada deu-se início no interior de um museu, o

Museu do Negro, espaço criado, organizado e mantido por uma destacável

irmandade religiosa, a Irmandade do Rosário e de São Benedito dos Homens Pretos

do Rio de janeiro. Referida a dita Irmandade como “destacável” em seus quase

quatro séculos de história, pela manutenção de sua memória alicerçada na construção

e efetiva participação de escravos, negros e libertos, funciona como uma comunidade

identitária engajada.

O Museu do Negro foi criado pela Irmandade com o objetivo de manter a

memória da escravidão. Em seu interior, grande parte das peças é de instrumentos de

tortura como gargalheiras, palmatórias, correntes, calcetas (argolas de ferro que se

prendiam ao tornozelo dificultando o passo). Alguns armários guardam também

objetos referentes à “religiosidade dos escravos”3, sendo estes esplendores e

2 Personagem interpretado pelo ator Diogo Vilela na novela, Suave Veneno, no ano de 1998, veiculada à sdezenove horas, na rede Globo de televisão.3 Foi mantida a forma original escrita no texto anexado ao vidro.

imagens de santos, que expressam a religiosidade católica dos escravos em

detrimento das práticas africanas. O ambiente vai nos levando a uma sensação de

rebeldia religiosa, pois, nas estantes fechadas com cadeado, vêm sendo mantidas

memórias de castigo e uma determinada religião. Contudo, seus visitantes,

juntamente com alguns membros da Irmandade (dissonantes do discurso hegemônico

de catolicismo tradicional), foram recriando novos sentidos para o espaço, e grande

parte do Museu foi recebendo imagens de religiões afro-brasileiras como, por

exemplo, pretos-velhos da umbanda, fumo de rolo e cigarros aos pés de

representações de escravos, flores, guias de divindades, que são colocados lado a

lado de terços católicos.

Nessas alterações ou mesmo inversões, percebemos novos signos

introduzidos por vezes com antigos sentidos. Para o historiador inglês E. P.

Thompson, “a cultura popular é rebelde mas o é em defesa dos costumes. Esses

pertencem ao povo, e alguns deles se baseiam em reivindicações muito recentes”. E,

continua o autor, “quando procura legitimar seus protestos, o povo retorna

freqüentemente às regras paternalistas de uma sociedade mais autoritária,

selecionando as que melhor defendam seus direitos atuais”4. O Museu retrata

justamente este aspecto “rebelde”, por não receber e assimilar prontamente uma

estrutura previamente determinada. Sendo fruto de criação ‘popular’, estabelece com

a cultura oficial a proximidade relativa para que, em determinados momentos, possa

utilizar-se de suas regras, para afirmar sua oposição em relação a esta. Desse modo,

delimita suas diferenças ou mesmo objetiva assemelhar-se à estrutura oficial, mas

com recriações próprias que lhe garanta independência: tradições herdadas somadas

às novas práticas, determinando inovações nas tradições.

Neste contexto de recriação de um espaço, no caso, o Museu do Negro, local

de resgate de uma memória, de manutenção de histórias e tradições, foram criadas

versões a respeito de uma dada escrava. No Museu, é mantida uma memória

determinada da escravidão, onde predomina a versão da dominação dos senhores

através da crueldade dos castigos. Anastácia, neste universo representa uma escrava,

por vezes originada de uma mestiçagem, mistura de uma relação sexual forçada entre

um senhor e uma escrava e, por outras, de origem é africana, bantu, tendo ela

herdado de sua família uma ancestralidade real e poderes místicos. Em ambas as

versões, africana ou mestiça, Anastácia é dotada de um poder espiritual praticado

ainda em vida.

Em algumas versões, a escrava Anastácia é apresentada dotada de

resistência diante do cativeiro. E, justamente, seu comportamento rebelde foi o

responsável pelo castigo que lhe tirou a possibilidade de falar, a máscara de flandres.

Esta máscara impedia o suicídio através da ingestão de terra até a morte, o banzo,

como também o vício da bebida. A máscara confeccionada com zinco ou folha de

flandres deveria cobrir todo rosto, era presa na nuca por uns prolongamentos que se

fechavam com cadeado e possuia furos que permitiam a respiração. Em nenhuma das

versões recolhidas Anastácia aparece como suicida, o destaque é sua grande

capacidade de comunicação e liderança. Lilia Schwarcz em artigo onde descreve a

rebelião escrava cita Anastácia como exemplo de rebelião individual5:

“A escrava Anastácia permanece na memória popular como uma

mulher que, ao reagir ao cativeiro, foi obrigada a usar

permanentemente essas máscaras. Pouco se sabe da existência

empírica dessa cativa, o que mais importa é como o exemplo vira

evento; uma forma de simbolizar a reação.”

Em diversas versões, Anastácia aparece apregoando a liberdade, a

existência de uma terra onde nenhum homem deteria os direitos sobre a vida de

outro, invocando reação. Num desses casos contados oralmente, Anastácia aparece

4 Thompson. E.P. “Costume e Cultura”, in Costumes em Comum, estudos sobre a cultura popular tradicional.São Paulo: Cia das Letras,1998. P.195 Scwarcz, Lilia Moritz..”Ser peça ser coisa: definições e especificidades da escravidão no Brasil.” In:

Scwarcz, Lilia Moritz & Reis, Letícia Vidor de Souza Reis (org.) Negras Imagens. São Paulo: Edusp,1998.

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também como co-responsável pela abolição da escravatura: ela teria aberto os

portões da senzala, em maio de 1887, ou seja, um ano antes da assinatura da Lei

Áurea que aboliu a escravidão; teria libertado os escravos e permanecido no local

como mártir salvadora; sua atitude teria sido um prenúncio, como se a força de seu

ato tivesse levado ao inevitável fim da escravidão.

O sentido da resistência, entretanto, não é o mais divulgado a respeito da

escrava. A negra rebelde possui, para além da comunicação verbal, uma especial

forma de relacionar-se que seria através de seu espírito. As versões fazem uma

esplanação dos poderes espirituais desta negra dotada do poder de cura de dores e de

doenças, da conquista do amor bem como da liberdade. Impossibilitada de falar, a

escrava se comunica de outro modo: através do olhar. Visando ressaltar este poder,

seus olhos além de serem descritos nas histórias como sendo azuis, são assim

representados em diversas imagens. O azul, considerado cor que simboliza o céu,

também tomado como local de morada de Deus, anjos e santos, sendo, portanto,

associado à noção de divindade, também lembrado como pureza, signo da Mãe de

Deus – realeza, recordando a expressão “sangue azul”6. Anastácia, negra escrava,

olhar de profundo azul, que mexe significamente com o imaginário. Olhar que

transmite suas vontades e indica para os que a procuram, caminhos a serem seguidos.

Os indícios seguidos nos apontam que existe, dentre as diversas histórias

uma determinada versão do cativeiro e da conduta dos escravos, do senhor opressor e

do escravo rebelde. No entanto, nos diversos registros orais, há uma variação desta

ação rebelde da escrava. Mas o que sempre permanece em toda que tivemos acesso é

o seu caráter espiritualista.

Neste sentido, abordaremos a efetivação deste caráter já destacado dos

poderes espirituais da escrava Anastácia. O caminho percorrido para esta

configuração espiritual ocorreu de forma inversa do que geralmente acontece na

formação ou criação de uma entidade espiritual. Tomando-se a princípio uma pessoa,

homem ou mulher, para “espiritualiza-la”, dotando-a de valores espirituais e, deste

modo, sendo aclama-a enquanto entidade.

Na Igreja Católica, por exemplo, para que haja a aceitação de santificação

de uma determinada pessoa, se faz necessário, em primeiro lugar, a comprovação

histórica de sua existência. Este procedimento estabelecido por lei, está descrita na

constituição apostólica “Divinus Perfectionis Magister”, de 21 de janeiro de 1983

bem como na “Sagrada Congregação para causa dos Santos”, de 07 de fevereiro de

1983. Esta determinação, embora seja a máxima da Igreja, não conduz à realidade,

pois existem santos que são amplamente venerados e que tiveram sua real existência

questionada, como é o caso de São Jorge. Este santo do panteão católico teve

registrada sua hagiografia entre as obras apócrifas, por falta de evidências

consistentes da verdade dos fatos7, porém, é considerado o santo mais popular do Rio

de Janeiro e comemorado com grandiosas festas em diversas paróquias do Estado.

O processo de santificação é longo e o percurso é marcado por sucessivas

demonstrações de graças alcançadas pelos devotos, pelo do intermédio do postulante

a santo. No caso específico do brasileiro, onde não temos nenhum santo nacional, são

inúmeros os casos de tentativa de conquistar um santo próprio. Constatamos que a

ação oficial da Igreja Católica de reconhecimento de existência histórica e de uma

vida “santa”, cristã, não impede que grande parte da sociedade alimente sua fé em

pessoas consideradas e aclamadas pelos “populares” como “santos’, como é o caso

do Pe. Cícero do Ceará, no nordeste brasileiro ou do beato Frei Galvão, de São

Paulo, no sudeste. E esta prática de “rebelião religiosa” não é uma inovação da

atualidade, mas representa um modo prático de relacionar-se com o sagrado, próprio

do catolicismo popular brasileiro.

6 Chevalier, Jean & Gheerbrant, Alain. Dicionário de símbolos. 13. Ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1999.7 COSTA, Ricardo Maciel da. A cavalgada do Santo Guerreiro: Duas festas de São Jorge em São Gonçalo,

Rio de Janeiro. Dissertação de mestrado, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 1997.p. 11

A Igreja Católica no Brasil, segundo Maria Lúcia Montes, desde os tempos

coloniais, “foi igualmente capaz de acomodar-se ao etos da sociedade em que se

inseria e assim incorporar sistema de crenças particularistas e locais, adaptar-se às

devoções de cunho privado e mesmo incentivá-las, como no caso das confrarias e

irmandades, ou criar práticas devocionais de marcada característica intimista, como a

que se traduz, por exemplo, nos ex-votos populares encontrados em toda a parte do

país.”8

Os santos, nesse contexto, são vistos como figuras próximas, fazendo parte

da vida cotidiana, aqueles que estão próximos para ouvir, acalentar e ajudar. Outro

exemplo de devoção a santo, sem que este tenha sido canonizado pela Igreja

Católica, vem do século XVIII. São Gonçalo Garcia, venerado pelos pardos do

Recife, cidade do nordeste brasileiro, africano, filho de pai português com uma

mulher de origem hindu, deixando a profissão de mercador, ocupa-se do pastoreio de

almas vestindo o hábito dos franciscanos e acaba sendo morto, crucificado, no

Japão. Foi considerado beato pelos cânones católicos, no ano de 1627, e consta em

documentação, já na década de 1740, um culto fortemente arraigado na América

Portuguesa, quando foram construídas igrejas e instituídas irmandades religiosas sob

sua invocação em diversos centros urbanos. Sua canonização, portanto, ocorre mais

de um século depois, em 10 de julho de 1862. Nesse período, o culto a São Gonçalo

Garcia já constava no calendário oficial de festas da Igreja Católica, sem lesões às

regras oficiais. Ao contrário, a própria instituição milenar se responsabilizando,

diretamente, pela crença ao santo, como descreve Rita de Cássia Barbosa9:

“Vieram as cerimônias da Igreja propriamente ditas: missas, orações, visitas

de irmandades ao novo altar do santo, hinos e Te Deum Laudamus, realizadas com

esmero pela comunidade eclesiástica.” [grifo meu]

8 MONTES, Maria Lúcia. “As figuras do Sagrado: entre o público e o privado. In: História da Vida Privada

no Brasil, São Paulo: Cia das Letras, 1999. P. 101.

9 Araújo, Rita de Cássia Barbosa de. A redenção dos pardos: a festa de São Gonçalo Garcia no Recife em1745. Pernambuco: Fundação Joaquim Nabuco, 1999.

A Igreja Católica aparece, no caso de São Gonçalo Garcia, como parceira da

aclamação popular e, embora outros casos registrem sua postura no sentido de

reprimir ações religiosas que exprimem a autonomia do popular, continua sendo o

próprio catolicismo a base de muitas reinterpretações religiosas. No campo de

constituição da personalidade da entidade: companheiro, preocupado com os pobres

e desvalidos, amoroso, dos sofrimentos vividos: martírio, premonições; e do poder:

realização de curas. Mas para o catolicismo, o poder de mediação dos santos para

ajudar as pessoas em suas dificuldades deve-se à sua santidade, o que significa um

estado de pureza alcançado - quanto mais santo, mais puro.

Encontramos também no catolicismo colonial o molde de festejo de vários

“santos populares”, ou seja, cultuados mas não reconhecidos. Neste caso, o “santo”

festejado é o caboclo, que aparece na festa em comemoração à Independência do

Brasil, na Bahia, no século XIX. Esta festividade contava com a presença de duas

estátuas feitas em bronze, de caboclos que representavam a imagem do brasileiro: a

“mistura de raças”. Estas cruzavam as ruas da cidade num evento cívico que, aos

poucos, foi adquirindo um caráter bastante religioso, quando a marcha transformava-

se em procissão e os símbolos de uma nacionalidade eram tomados como santos. O

desejo por parte do governo de realizar um evento solene não se concretizava, pois a

“alma do povo” garantia à comemoração, um espetáculo da devoção popular, onde

os caboclos eram saudados durante o cortejo cívico, com fogos, vivas e flores

atiradas das janelas10.

É nesse catolicismo que está a base para a formação da religiosidade no

Brasil. Partindo deste referencial, é tantas outras religiões se estruturam, seja para

opor-se ou dele retirar aspectos que favoreçam a novas resignificações do campo

religioso.

10 Albuquerque, Wlamyra Ribeiro de. Algazarra nas ruas, comemoração da Independência na Bahia (1829-1923). São Paulo: FAPESP, 1999

Pensando ainda em compreender o processo que viabiliza a estruturação de

uma pessoa em “ser” espiritual, recorremos à Umbanda, para que seja ponto de

referência na encruzilhada que estamos propondo: caminhos diferentes que, em

determinados pontos, se encontram ou se entrecruzam, configurando novas

formações. Religiões, como o espiritismo, o candomblé e a umbanda, que foram

ferozmente perseguidas e recriminadas pelo Estado e por adeptos das religiões

oficialmente aceitas. Atualmente convivem neste nosso contexto religioso plural e,

neste sentido, não estão alienadas da sociedade e suas tramas, porque o evento não

decorre de modo linear, ao contrário, é dialético, com circularidades, nichos,

dimensões, planos e interpenetrações. Como afirma Da Matta, é necessário

reconhecer que: “o mundo social é antes de mais nada humano e dotado de múltiplas

determinações”.11

Na Umbanda, são cultuadas também as entidades espirituais que tiveram

uma passagem pela terra além das divindades que representam a força da natureza,

sendo este elemento herança da tradição africana. Essas divindades, por serem

consideradas como força, energia, nunca “encarnaram”. Já as entidades que tiveram

passagem pela terra, são cultuadas livremente e “recebidas” através das sessões de

possessão. Não importa aos umbandistas a descoberta de documentos que

comprovem as identidades das personagens que viveram na terra. Um bom exemplo

são os caboclos, entidades que representam os índios brasileiros, que mesmo

tomados individualmente através de nomes, representam um conjunto. Seus nomes

indicam os locais de origem na natureza, como Caboclo Arranca-Toco, Caboclo

Rompe-Mato ou mesmo nomes próprios da língua tupi: Ubiratã, Jacira, Jurema,

Tubinambá, dentre outros12. Estas entidades espirituais possuem em comum traços

semelhantes e marcantes; todos fazem parte de uma mesma “linha” ou “falange

espiritual”13. O caboclo, então, representa um grupo ou serve para designar um

11 Da Matta, Roberto. “Carnaval em múltiplos planos”, in: Carnaval, malandros e heróis. 5a ed. Rio deJaneiro: Guanabara, 1990. P.71-212 Birman, Patrícia. O que é Umbanda. São Paulo: Brasiliense, 1985. P. 39-4013 É definido por Renato exército de espíritos que obedecem a um chefe (Orixá); estes espíritos, segundo oautor, teriam uma missão, uma tarefa, uma função. Ortiz in: A morte Branca do feiticeiro negro, umbanda esociedade brasileira. São Paulo: Brasiliense,1988. P. 79

determinado segmento social como, por exemplo, os habitantes do meio rural.

Tornaram-se entidades integradas ao panteão da religião afro-brasileira como “donos

da terra”, respeitados como divindades que já habitavam o Brasil, antes da chegada

dos orixás africanos14.

Em outros casos, existem entidades que possuem histórias de vida, por

vezes personalizada, como é o caso de Santa Bárbara, turca e francesa, cristã e

feiticeira e, também Iansã15. Maria Padilha é outro exemplo que figura nos

romances relativos à história da Espanha, como amante de Pedro I, de Castela.

Dizem que o influenciou, e era conhecido por “Pedro o Cruel devido a “una mala

mujer” e “hermosa”: Doña Maria de Padilla. Por amor a Doña Maria, o Rei

abandonou dias após o casamento, sua jovem esposa, Doña Blanca de Borbon16. Esta

mulher, Padilha, representa a vitalidade e a beleza, os desejos e a determinação e,

desse modo, com tais predicados, se tornou uma entidade da umbanda. A “Maria

Padilha” integra a “falange” ou “linha” de Pomba-Gira. A representação da Pomba

Gira é de uma bonita mulher, que gosta de homem, seduz com seu ar de prostituta e

com feitiçaria.

Do indivíduo e seus atributos para entidades que os representam: este vem

sendo o percurso de vários seres espirituais, comprovada sua real existência ou

acreditada para ser reificada através da devoção.

A fascinante história da escrava Anastácia insere-se num percurso similar,

porém, não idêntico. Nas mais diversas histórias, é apresentada como possuidora de

poderes sobrenaturais: comunicando através do olhar, realizava curas, recebia

aconselhamento espiritual de uma entidade, uma negra africana. Já nasceu entidade.

O trajeto iniciado do interior de uma irmandade tradicional das entranhas do

14 A respeito do caboclo e sua instituição como entidade conferir o trabalho da antropóloga Véronique Boyer,“O Pajé e o Caboclo: de homem a entidade”, in: Revista Mana, no 5(1): 29-56,1999.15 Meyer, Marlyse. Maria Padilha e toda a sua quadrilha, de amante de um rei de Castela a pomba-gira deUmbanda. São paulo, Duas Cidades, 1993. P. 2116 Op.cit.p.30-31

catolicismo, para tornar-se uma entidade cultuada pela religião umbandista17, é um

espaço para uma reflexão acerca da dinâmica própria da religiosidade popular, bem

como da sociedade na qual está inserida.

Todo santo tem um registro, geralmente feito por artesão que reproduzem as

imagens com os atributos que a identificam como, por exemplo, os instrumentos de

seu martírio, como é o caso de Santa Catarina de Alexandria, e a roda dentada, ou

mesmo a própria representação da cena do martírio, como São Sebastião amarrado ao

tronco e com o corpo flexado, ou ainda os olhos de Santa Luzia. Lembro-me que,

quando criança, ouvi uma das histórias do martírio da escrava Anastácia que, além

de usar máscara que a impedia de comer, havia sido posta num formigueiro, esta

cena contada oralmente me vinha à cabeça, ao olhar o busto da escrava. Tatuada em

seu rosto a marca da escravidão, com histórias que indicavam possibilidades de

entrar na história como mártir e guerreira da resistência contra o regime escravista,

Anastácia foi alçada à religiosidade.

No Museu do Negro, o pequeno espaço de memória da escravidão, aos

poucos se tornou pequeno para o volume de pessoas que vinham de diversos

municípios do Rio de Janeiro e mesmo de outros Estados, para conhecer a escrava

milagrosa. Cura de câncer, amores desfeitos, recuperação de acidentes sofridos ou

empregos perdidos. Não cunharam uma especificidade para a escrava como, por

exemplo, “padroeira dos endividados”, “das causas urgentes”, “das parturientes”.

Inúmeras pessoas passaram a freqüentar o museu assiduamente, em busca de graças

das mais variadas.

Ainda na década de 1970, estrato de um grupo político do movimento

negro, preferiu deixar de associar a escrava à resistência, tal qual Zumbi dos

Palmares, devido ao seu caráter religioso que se aproximava muito mais de uma

“santificação” nos moldes católicos do que da esfera afro-brasileira. Esse era um

17 A ênfase deste trabalho é na umbanda mas existem outras religiões que se apropriaram da popularidade daescrava Anastácia como a Igreja Católica Ortodoxa e a Igreja Católica Brasileira.

momento político importante de afirmação da umbanda como um campo religioso18

que vinha sendo disputado já há algumas décadas e se fazia necessário afirmar, para

parcela do movimento negro, uma maior aproximação com raízes dos dominados, ou

seja, escravos africanos, com a dos dominantes, representados pela Igreja Católica. A

figura de Zumbi se encaixa neste modelo de “resistência. Zumbi, adotado pelo

movimento negro como símbolo de luta contra a escravidão, aparece num congar de

um terreiro de Umbanda, localizado no morro do Salgueiro em 195819, ou seja,

elevado ao patamar de grande símbolo de luta negra na década de setenta, figurando

no panteão de divindades africanas- religião de expressão de identidade étnica.

O culto a escrava começou a incomodar. Chegara a um ponto em que a

Igreja Católica, ou melhor, setores tradicionais no sentido de conservador, de

manutenção de uma “pureza”, intervira, pois aos seus olhos, o culto se assemelhava

às práticas pagãs africanas, ao sincretismo, no sentido pejorativo da palavra, que

significa misturar, degenerar. Essa liminaridade, que forjava uma situação de não

pertencimento a nenhum dos dois lados, abriu espaços para a multiplicidade de

práticas devocionais. Ao descartar a escrava Anastácia neste período, tomando-a

como um culto “embranquecido” e alienante por estar localizado e sendo

administrado por setores da Igreja Católica. O Movimento Negro deixou de perceber

que, já neste período, a religiosidade, no sentido amplo e fluido do termo, explodira

sem rédeas e sua prática estava imbricada no que é peculiar a qualquer símbolo: a

polissemia20. Os sentidos e usos tanto da imagem quanto das histórias da escrava

Anastácia não ficaram restritos a uma determinada corrente religiosa, mas ao formato

de bricolage foram tecidos múltiplos significados e práticas. O culto livre e sem

fronteiras religiosas é revestido da própria ambigüidade que estava exposta e o uso

de sentidos e práticas são apropriados de modo dinâmico e autônomo.

18 Para pensarmos a respeito da conceituação de campo recorremos ao trabalho de Pierre Bourdieu19 Ortiz, Renato. Op. Cit.p.200-120 Para o estudo de símbolo: Geertz, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Livro Técnico,1989

No decorrer da década de 1980 o culto cristalizava-se. O movimento no

Museu era constante e as missas ficavam lotadas. A Igreja passou a ser confundida,

deixavam de dizer Igreja de Nossa Senhora do Rosário e de São Benedito para

chamá-la de “Igreja da Anastácia”, do mesmo modo que chamam o museu

atualmente: “Museu da Anastácia”.

Iniciou-se um processo de tentativa de desmobilizar a devoção: uma reação

ao movimento que vinha desde 1984, o “Movimento pró-Anastácia”, que tentava,

através de abaixo assinado e confecção de um documento que divulgava os milagres

já realizados pela escrava, uma penetração na Cúria, na tentativa de conseguir a

canonização. A resposta estava apenas começando, iniciada em um jornal de grande

circulação do Rio de Janeiro, com uma matéria escrita pelo Monsenhor Schubert,

especialista em arte sacra e membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro,

buscando, através do resgate da imagem “original” da escrava no livro “Viagem ao

redor do Mundo” do viajante francês Étienne Victor Arago, de 1817. Na matéria do

jornal, a tentativa clara era de desqualificação: “ela nunca existiu”, “é totalmente

invenção”, “ligado primeiro à Igreja do Rosário (melhor: ao museu desta igreja),

depois à Umbanda”. 21,

As críticas de Monsenhor Schubert definitivamente não caíram num vazio.

Ao contrário, a polêmica aumentou o debate, alimentando, na mídia, um maior

interesse pela disputa e em conhecer a tal escrava que era repelida pela Igreja e

aclamada pelo povo.

Neste período, a escrava já contava com uma data específica para sua

comemoração, 12 de maio, véspera do dia dedicado à comemoração da abolição da

escravatura. Com o advento da comemoração do centenário da abolição, no ano de

1988, a imagem da escrava é amplamente divulgada. Daí reforçam o aspecto

“rebelde” sendo destaque de carro alegórico no carnaval da Escola de Samba Unidos

21 Jornal do Brasil, 15 de setembro de 1987.

de Vila Isabel22, passava pela Avenida esplendorosa, e o samba, “Kizomba, festa da

raça” declarava que “Anastácia não se deixou escravizar”. Além de resistir à

escravidão, Anastácia aparece no imaginário como a própria responsável pela

libertação dos escravos. Este registro está no documentário “O Fio da memória”23,

onde são resgatadas memórias de ex-escravos e de diversas pessoas sobre a

escravidão e abolição. Nele Eduardo Coutinho entrevista uma criança perguntando-

lhe quem havia libertado os escravos. Logo o menino lhe responde: “aquela negra ...

a escrava Anastácia ...”. Sendo alvo das brincadeiras dos colegas que lhe indicam a

resposta, ele volta atrás e fala da “Princesa Isabel”.

Nesse mês de março de 1988, logo após a e comemoração do carnaval, uma

avalanche de matérias em jornais e revistas abrem seus espaços para discutir sobre a

escrava-santa, questionando como mito ou reafirmando a fé em Anastácia: “Se a

escrava nunca existiu, como diz o historiador cônego monsenhor Guilherme

Schubert, da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro, os fiéis da Igreja do Rosário que

freqüentam o Museu do Negro, no prédio anexo, não se importam. Continuam

freqüentando o local com a mesma assiduidade ...”24.

O passo maior que estava prestes a ocorrer, ainda não havia sido dado, mas

não tardaria a acontecer, reunindo seus poderes, ala conservadora e depuradora da

Igreja Católica, o fechamento do Museu do Negro. Para os visitantes um aviso:

“fechado para obras”. Esta foi a forma encontrada para a Igreja Católica não entrar

num embate direto. Ao reabrirem o Museu, a imagem não se encontrava mais lá . Os

devotos, contudo, não deixavam de ir, mas, aos poucos, a freqüência foi diminuindo.

Como a Igreja do Rosário foi construída pelos escravos e o espaço era utilizado para

o enterro dos “irmãos” - prática comum das irmandades negras, circulava a crença de

22 Autores do samba: Rodolpho/Jonas/Luiz Carlos da Vila23 Documentário: Coutinho, Eduardo. O fio da Memória, 1988.24 Jornal “Última Hora” do dia 25 e março de 1988

que Anastácia havia sido enterrada naquele local. Assim, muitas pessoas

freqüentavam o Museu, mesmo sem a imagem acreditando nesta história.

O fechamento, contudo, não significou o fim da devoção a escrava

Anastácia, ao contrário, foi ponto de partida para novas apropriações.

Compreendemos este processo, nos valendo da análise de Roger Chartier de romper

com a idéia de sujeito universal que consome e produz do mesmo modo, como se

toda representação da realidade tivesse somente um único significado. Em relação à

produção literária, o autor faz uma afirmação que para nós é ponto de partida para

pensarmos as apropriações da escrava Anastácia: “a obra só adquire sentido através

da diversidade de interpretações que constroem suas significações”. Ou seja,

permitem a reapropriação, o desvio, a desconfiança ou a resistência.25

A partir do fechamento do Museu, a pluralidade de indefinidas

significações da escrava Anastácia alçou vôos. A devoção se fortaleceu em diversos

pontos da cidade do Rio de Janeiro, ganhou templos dedicados à sua veneração em

Madureira. Com o fechamento deste ficou um período na quadra da Escola de Samba

da Portela, a Portelinha, também em Madureira. Logo depois, uma Igreja foi

construída, em Olaria, especificamente para o seu culto e de dois santos

“marginais” da Igreja Católica, São Cosme e São Damião. Esta Igreja é administrada

e tem suas missas celebradas por padres da Igreja Católica Ortodoxa, que dedicam as

missas de segunda-feira especialmente à escrava Anastácia. Outro templo, em Vaz

Lobo, dedica seu espaço unicamente para a Escrava Anastácia; este tem as

cerimônias dirigidas pela Igreja Católica Brasileira. Além desses espaços de culto de

devoção à escrava Anastácia, bem como de tendas espíritas, em diversos bairros do

subúrbio do Rio de Janeiro -as apropriações se encaminharam para o espaço privado.

25 Chartier, Roger. História Cultural, entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Bertand Brasil, 1990. P.59

A devoção sai das igrejas para as ruas e casas. Para invocar proteção, basta

possuir o sagrado, o mana26, adquirindo através da prática das orações, do uso das

medalhas, de imagens, do óleo bento, dentre outras. A relação com o sagrado é

renovada a cada instante em que o fiel busca esta ligação, com ou sem

intermediários. Basta clamar: “Valei-me escrava Anastácia!”. Foram levantadas

imagens da escrava em praças públicas e mesmo um altar no interior de uma favela

carioca, com uma imagem de tamanho natural, adornado por flores e fechado por

vidraça e no muro uma prece:

“(...) Escrava que fizeram deusa que nasceu princesa; Que nasceu livre, daí-

nos a melancolia do seu olhar e a altivez do teu porte e livrai-nos da mordaça que

ainda hoje nos ameaça, Amém (...) Daí-nos teu amor e tua coragem. Amém; Deusa

do povo, escrava de um povo. Princesa do teu povo, daí-nos a fé do povo, a força do

povo, o amor do povo, para que possamos ser mulheres e homem dignos do povo,

Amém; Mulher escrava, deusa-mulher-princesa; Daí-nos tua força para luta(r)mos e

nunca sermos escravos. Porque somos tão rebeldes como tu. Assim seja, Amém.”27

[grifos meus]

A oração com forte conotação social de crítica, reflete a riqueza do “povo”

de Acari, que pede o amor do povo, a fé do povo e a coragem do povo e encontra na

escrava Anastácia a representação para a superação de suas angústias, “livrai-nos da

mordaça que ainda hoje nos ameaça”. Além de não conseguirem eliminar a

veneração à escrava Anastácia, ocorreu uma explosão de variadas formas de crenças.

Sua imagem não ficou restrita à da “santa”, nem somente a uma entidade espiritual

da Umbanda, mas convivem a guerreira e a milagrosa, sem que isto signifique

perdas ou “misturas”, sem que um elemento anule o outro.

26 É o que permite produzir os efeitos que estão fora do poder dos homens, fora dos processos da natureza.Um sacerdote, um pai ou mãe de santo tem o mana, assim como uma fórmula ritual.27 SOUZA, Marcos Alvito Pereira de. As Cores de Acari. Tese de doutorado: Universidade de São Paulo,1998.P. 26-27

Enfim, a ação de monsenhor Schubert, neste sentido, foi frutífera, quando

não aniquila a crença, mas amplia consideravelmente os sentidos. Quando a revista

“Domingo”, encarte do Jornal do Brasil, afirmava que a Igreja via no culto um “um

sinal de histeria das massas ignorantes” 28, a instituição religiosa estaria negando o

caráter próprio do catolicismo brasileiro, herdado em parte do catolicismo português,

centrado principalmente nas devoções aos santos e nas festas. O rompimento das

regras canônicas que prescrevem a santificação de indivíduos, bem como o modo

como cada fiel deve cumprir este culto particular, é visto como uma ameaça às regras

estabelecidas, o que não significa que as normas sejam espartanamente seguidas.

Após o fechamento do Museu e a sua reabertura sem a imagem da escrava

Anastácia, vimos que houve uma continuidade nas visitas ao local, que não deixou

de ser lembrado como um espaço da escrava Anastácia. Este caráter, que chamo de

“rebelde”, promoveu uma nova etapa do culto, com o retorno da imagem, não só a

que já existia, mas novas versões com cores, além de “posters” pintados como ex-

votos. Nesta nova etapa, ficou nítido o caráter sincrético do culto a escravo;

sincrético, no sentido de representar integrações e estar em constante processo de

reformulação29. O salão do Museu do Negro foi tomado por diversas imagens de

pretos-velhos. Imagens da escrava Anastácia foram colocada ao lado de vovó Maria

Conga.

O Museu do Negro é palco desta devoção popular há algumas décadas,

recriando ao seu modo e inscrevendo nesta prática modos de operar sua própria

coerência diante do modelo que os grupos dominantes lhe impõem. Liberta da

homogeneização que é constante ameaça quando falam a repeito de uma determinada

“cultura popular”. Recriam o que muitos acreditam serem regras a cumprir. Desse

28 Jornal do Brasil, Revista de Domingo, 24 de março de 1988

29 Canclini, Culturas híbridas, estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo: Edusp, 1999.

modo, os fieis, fazem do Museu espaço próprio de recepção, de múltiplos usos e de

livre interpretação.30

Esta despreocupação com o reconhecimento oficial da existência

comprovada que encontramos na Umbanda, pode ser estendida ao catolicismo

popular praticado no Brasil. Há uma busca pela eficácia, pela concessão de graças e,

uma vez alcançadas, independe desse reconhecimento. Se, em uma paróquia da

Igreja Católica Romana o padre não aceita celebrar uma missa em intenção da

escrava Anastácia, o devoto procura outra Igreja. Se não encontrar, procura outra

comunidade religiosa similar como, por exemplo, a Igreja Católica Ortodoxa e/ou a

Igreja Católica Brasileira. E, se ainda não tiver qualquer empatia pelas religiões

espíritas, vai numa tenda levar um maço de velas e fumo de rolo em homenagem à

escrava.

Como afirma Chartier:

“As formas populares das práticas nunca se desenvolvem num

universo simbólico separado e específico; sua diferença é sempre

construída através das mediações e das dependências que as unem

aos modelos e as normas dominantes .”31

Atualmente o Museu do Negro está novamente em fase de depuração por

ordem da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro. Foi contratada uma museóloga para

imprimir ao espaço um caráter de “Museu” e não de Igreja. Ainda não retiraram a

imagem da Anastácia, o busto “original”. Este foi acomodado no interior de um

armário, com as frestas lacradas para que lá não possam ser colocados pedidos e

dinheiro. Dizem, as especialistas museólogas, que as mudanças serão feitas aos

poucos, o dar a entender que se pretende em breve retirar definitivamente a imagem

do Museu. Mesmo que isto ocorra, o culto já está arraigado em diversos pontos da

30 Chartier, Roger. ““Cultura Popular”: revisitando um conceito historiográfico”, in: Revista de EstudosHistóricos. N o16. P.18631 Chartier, op.cit.p.189

cidade e nos lares, com seus altares e congares particulares, no peito em forma de

medalhas, nas carteiras em orações invocando proteção. Enfim, podemos afirmar que

a escrava Anastácia partiu de uma representação que lhe desfigura completamente,

tornando-a impessoal, identidade de “cativos” para uma mulher, princesa, guerreira,

santa, com histórias próprias de libertação, do cativeiro, de família e de

espiritualidade. E, a partir de atributos espirituais, alcançou enorme popularidade no

Rio de Janeiro, sendo venerada independente da perseguição que até o momento,

como vimos, impera, sem que isto signifique extermínio de uma crença popular.

Resta-nos estar atentos às diversas mudanças ocorridas e às que ainda estão por vir.

“Valei-me escrava Anastácia!”

BIBLIOGRAFIA BÁSICA

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Jornal do Brasil, 15 de setembro de 1987.Jornal “Última Hora” do dia 25 e março de 1988

Jornal do Brasil, Revista de Domingo, 24 de março de 1988