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Escola do bem e do mal

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No povoado de Gavaldon, 2 adolescentes somem misteriosamente a cada 4 anos. Os pais trancam e protegem seus filhos, apavorados com uma lenda antiga: os jovens desaparecidos são levados para a Escola do Bem e do Mal, onde estudam para se tornar heróis e vilões das histórias.

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NaFlorestaPrimitivaHáduastorreserguidasNaEscoladoBemedoMal,APurezaeaMalícia.QuemnelasingressarNãotemcomoescaparSeumContodeFadasNãovivenciar.

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1Aprincesaeabruxa

Sophievinhaesperandoavidainteiraparaserraptada.Naquelanoite,porém,todasasoutrascriançasdeGavaldoncontorciam-seemsuascamas.SeoDiretordaEscolaaslevasse,elasnãovoltariam.Jamaispoderiamviveruma vida plena. Nunca mais veriam suas famílias. Naquela noite elassonhavamcomum ladrãodeolhosvermelhose corpode fera, quevinhaarrancá-lasdeseuslençóisesufocarseusgritos.

Sophie,porsuavez,sonhavacompríncipes.Elachegavaaumcasteloondeumbaileestavasendooferecidoemsua

homenagem.No salãohavia cempretendentes enenhumaoutra garota àvista.Ali,pelaprimeiravezemsuavida,haviagarotosqueamereciam,elapensavaenquantocaminhava.Cabelossedososefartos,músculosrijossobaroupa,pelemaciaebronzeada,beloseatenciosos,comopríncipesdeviamser. Contudo, assim que ela se aproximou de um deles, que lhe pareciamelhor que os outros, de olhos azuis e cabelos louros esbranquiçados,aquele que lhe dava uma sensação de felizes para sempre..., um marteloirrompeunasparedesdoquartoeestilhaçouseuspríncipes.

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Os olhos de Sophie abriram-se para amanhã. Omartelo era real. Ospríncipesnão.

“Pai,seeunãodurmopornovehorasmeusolhosficaminchados.”“Todosestãotagarelando,dizendoquevocêserálevadaesteano”,disse

seupai,enquantopregavaumatábuanajaneladoseuquarto,játotalmenteescondidaportrancas,estacaseparafusos.“Disseram-meparacortarseuscabelos e enlamear seu rosto, como se eu acreditasse nesse disparate decontode fadas.Masninguémvai entrar aqui estanoite. Isso é certo.”Eledeuumamarteladaensurdecedoracomoexclamação.

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Sophieesfregouasorelhasefranziuorostoparaajanelaque,antestãoadorável,assemelhava-seagoraaalgoquepodiaservistonocovildeumabruxa.“Cadeados.Porqueninguémpensounissoantes?”

“Não sei por que todos estão achando que é você”, ele disse, com oscabelosgrisalhosmolhadosdesuor.“SeébondadequeoDiretordaEscolaquer,elelevaráafilhadeGunilda.”

Sophieficoutensa.“Belle?”“Aquelasiméumacriançaperfeita”,eledisse.“Elalevaalmoçofeitoem

casaparaopai,lánomoinho.Edáassobrasparaapobrevelhadapraça.”Sophiepercebeuotomnavozdopai.Elanuncatinhafeitoumarefeição

para ele, nem mesmo depois que sua mãe morreu. Naturalmente, tinhabonsmotivos(oóleoeafumaçaentupiriamseusporos),porém,elasabiaqueaquelaeraumaquestãodelicada.Nãoqueopaitivessepassadofome.Em vez disso, ela havia oferecido suas comidas favoritas: purê debeterrabas, brócolis ensopado, aspargos cozidos, espinafre no vapor. ElenãotinhaviradoumbalãocomoopaideBelle,exatamenteporqueelanãolevavafricassédecarneiroesuflêdequeijoparaelenomoinho.Quantoàpobre mendiga da praça, aquela velha encarquilhada, apesar de alegarfomediaapósdia,elaeragorda.EseBelletivessealgoavercomisso,entãoelanãoeranemumpoucoboa,esimcapazdapiorespéciedemaldade.

Sophieretribuiuosorrisodopai.“Comovocêdisse,umdisparate.”Elasaiurapidamentedacamaebateuaportadobanheiro.

Observou o próprio rosto no espelho. Seu rude despertar já tinhasurtidoefeito.Seuscabelosdouradosatéacinturanãoestavambrilhantescomo sempre. Seus olhos verdes, cor de jade, pareciam desbotados. Oslábiosvermelhosestavamligeiramenteressecados.Atésuapeledepêssegotinhaficadoopaca.Noentanto,aindapareciaumaprincesa,elapensou.Seupainãoconseguiaverquãoespecialelaera,masamãetinhavisto.“Vocêélinda demais para este mundo, Sophie”, dissera ela, entre seus últimossuspiros.Suamãetinhaidoparaumlugarmelhor,eagoraelatambémiria.

Naquelanoite,elaserialevadaparaafloresta.Naquelanoite,começariaumanovavida.Naquelanoiteviveriaoseucontodefadas.

Eagoraelaprecisavaestarvestidaacaráter.Para começar, passou ovas de peixe no rosto, pois apesar de terem

cheirode chulé, elaspreveniammanchas.Entãomassageou-se compastadeabóbora,enxaguou-secomleitedecabra,emergulhouorostoemumamáscarademelão e gemadeovode tartaruga. Enquanto esperavaque a

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máscara secasse, Sophie folheou um livro de contos de fadas e deu unsgolesemumsucodepepino,paramanterapelemaciaehidratada.Puloupara sua parte predileta da história, na qual a bruxa malvada desciarolando pela colina em um barril espetado com pregos, até que restavaapenas a sua pulseira, feita de ossinhos de meninos. Olhando para apulseira repulsiva, Sophie começou a divagar, até que seus pensamentoschegaramapepinos.E senãohouverpepinosna floresta?E se asoutrasprincesas tiverem acabado com o estoque? Nada de pepinos! Elamurcharia,secaria,ela...

Flocosdemelão secocaíramnapágina.Elavirou-separaoespelhoeviusuasobrancelhafranzidadepreocupação.Primeiro,osonoarruinado;agora,asrugas.Nesseritmo,elapareceriaumabruxaatéatarde.Relaxouorostoeafastouqualquerpensamentosobrelegumes.

Quanto ao resto do ritual de beleza de Sophie, seria suficiente parapreencherumadúziadelivrosdecontosdefadas(bastadizerqueestavamincluídospenasdegansos,batatasemconserva,cascosdecavalo,cremedecastanhaeumpequenofrascodesanguedevaca).Depoisdeduashorasderigorososcuidados,ela saiudecasausandoum jovialvestidorosa, saltoscintilantesdevidro,ecabelosimpecavelmentetrançados.ElasótinhamaisumdiaantesdachegadadoDiretordaEscola,eplanejavausarcadaminutoparalembrá-lodoporquêdeserela,enãoBelle,nemTabitha,ouSabrina,ouqualqueroutraimpostora,quemdeveriaserlevada.

AmelhoramigadeSophieviviaemumcemitério.Porabominarcoisasfúnebres,cinzentasemaliluminadas,eradeesperarqueSophiepreferisseencontrá-laemseuchalé,ouqueprocurasseumanovamelhoramiga.Emvezdisso,todososdiasdasemanaelahaviasubidooGravesHillatéacasaqueficavanotopo,cautelosaparamanterumsorrisonorosto,jáqueessaera,afinaldecontas,afinalidadedeumaboaação.

Para chegar lá ela precisava andar quase dois quilômetros, desde oschalésiluminadosdabeiradolago,comtelhadosverdesepequenastorresensolaradas, até as bordas sombrias da floresta. Sons de marteladasecoavam pelas ruas, enquanto ela passava por pais que lacravam portascom tábuas, mães que estufavam espantalhos, meninos e meninasdebruçadosemvarandas,comonarizmergulhadoemlivrosdecontosdefadas.Aúltimavisãonãoeraincomum,poisascriançasdeGavaldonfaziam

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poucacoisaalémdelerseuscontosdefadas.Contudo,hojeSophienotavaos olhos frenéticos, percorrendo cada página, como se a vida delesdependesse disso. Quatro anos antes, ela tinha visto omesmodesesperoparaevitaramaldição,porém,naquelaocasião,nãotinhasidoasuavez.ODiretordaEscolasólevavaosquejáhaviampassadode12anos,osquejánãopodiamdisfarçar-sedecrianças.

Agorasuaveztinhachegado.Enquanto esforçava-se para subir Graves Hill com um cesto de

piquenique namão, Sophie sentiu suas coxas queimando. Será que essasandançasmorroacimatinhamengrossadosuaspernas?Todasasprincesasdos livros de histórias tinham as mesmas proporções perfeitas; coxasgrossas eram tão improváveis quanto um nariz adunco ou pés grandes.Angustiada, Sophie distraiu-se contando suas boas ações do dia anterior.Primeiro, ela havia alimentado os gansos do lago com uma mistura delentilhasealho-poró(umlaxantenaturalparacompensaroqueijoatiradoporcriançasestúpidas).Depois,doouloçãofacialcaseiradecapim-limãoaoorfanato da cidade (pois, conforme ela insistiu à benfeitora confusa,“cuidadosapropriadoscomapelesãoamaiordetodasasboasações”).Porfim, ela havia colocado um espelho no banheiro da igreja, para que aspessoas pudessem regressar aos bancos em sua melhor aparência. Issoseria o suficiente? Competiria com assar tortas caseiras e alimentar asmendigasdapraça?Seuspensamentosdesviaram-senervosamenteparaospepinos. Talvez pudesse levar um suprimento escondido para a floresta.Aindahavia tempode sobra para fazer asmalas antes do anoitecer.Maspepinos eram pesados, não? Será que a escola mandaria carregadores?Talvezeladevesseespremê-losantes...

“Ondeestáindo?”Sophie virou-se.Radley sorriupara ela, com seusdentesde coelho, e

claríssimoscabelosruivos.ElenãomoravanempertodeGravesHill,mastinhaadquiridoamaniadeficarespreitando-a,aqualquerhoradodia.

“Verumaamiga”,disseSophie.“Porquevocêéamigadabruxa?”,perguntouRadley.“Elanãoéumabruxa.”“Elanãotemamigoseéesquisita.Issofazdelaumabruxa.”Sophie conteve-se para não dizer que isso fazia de Radley um bruxo

também.Emvezdissoelasorriu,paralembrá-lodequejáhaviafeitoumaboaaçãoporsuportarsuapresença.

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“ODiretordaEscolavailevá-laparaaEscoladoMal”,eledisse.“Entãovocêprecisarádeumnovoamigo.”

“Elelevaduascrianças”,disseSophie,cerrandoomaxilar.“ElelevaráBelleparaaoutraescola.NinguémétãoboaquantoBelle.”OsorrisodeSophieevaporou.“Maseusereiseunovoamigo”,disseRadley.“Estoucheiadeamigosnomomento”,Sophieretrucou.Radleyficouvermelhocomoumpimentão.“Ah,certo–eusópensei...”

Eledesapareceu,comoumcachorroquerecebeuumchute.Sophie ficouolhandoos cabelosdesgrenhadosdescendoomorro.Ah,

agora você realmente estragou tudo, ela pensou. Meses praticando boasações e sorrisos forçados, e agora você estragou tudo por causa dessetampinha do Radley. Por que não fazê-lo ganhar o dia? Por que nãoresponder apenas “Eu ficariahonradaemser suaamiga!” edar ao idiotaummomento do qual se lembraria por anos? Ela sabia que seria a coisaprudente a fazer, já que o Diretor da Escola devia estar julgando-aatentamente,assimcomoPapaiNoelnavésperadoNatal.Noentanto,elanãoconseguia.Elaera linda,Radleyerahorrível.Sóumavilão iludiria.ODiretordaEscolacertamenteentenderiaisso.

Sophie abriu os portões enferrujados do cemitério e sentiu o matoarranharsuaspernas.Lánoaltoaslápidesmofadasdespontavam,aesmo,de dunas de folhas mortas. Espremendo-se por entre tumbas escuras egalhossecos,Sophieseguiucontandoasfileirascuidadosamente.Elanuncatinhavistoasepulturadamãe,nemnoenterro,nemveriahoje.Aopassarpelasexta fileira,elagrudouosolhosnabétula,e lembrouasimesmadeondeestarianodiaseguinte.

Nomeiodoajuntamentomaisvolumosodesepulturas,ficavaonúmero1 da rua GravesHill. A casa não tinha tapumes como os chalés perto dolago, mas nem por isso era mais convidativa. Os degraus que subiam àvaranda reluziam pelo verde do limo. Bétulas e vinhas mortasserpenteavam-se ao redor damadeira escura e do telhado torto, preto efino,quelembravaumchapéudebruxa.

Ao subir os degraus rangentes da varanda, Sophie tentou ignorar ocheiro, uma mistura de alho e gato molhado, e desviou os olhos dospássarosdecapitadosespalhadosaoseuredor,semdúvidavítimasdogato.

Elabateunaportaepreparou-separaumabriga.“Váembora”,disseavozemburrada.

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“Issonãoéjeitodetratarsuamelhoramiga”,Sophiecantarolou.“Vocênãoéminhamelhoramiga.”“Então quem é?”, perguntou Sophie, imaginando se Belle alguma vez

vieraaGravesHill.“Nãoédasuaconta.”Sophie respirou fundo. Ela não queria outro incidente como o de

Radley. “Nós nos divertimos tanto ontem,Agatha. Achei que pudéssemosfazerissooutravez.”

“Vocêpintoumeucabelodelaranja.”“Masnósconsertamos,nãofoi?”“Você sempre testa seus cremes e poções emmim, só pra ver como

funcionam.”“Osamigosnãosãopraisso?”,perguntouSophie.“Paraajudarunsaos

outros?”“Eununcavouserbonitacomovocê.”Sophie tentouencontrar algo legalparadizer.Elademoroudemais, e

ouviupassosfortes,afastando-se.“Issonãosignificaquenãopodemosseramigas!”,Sophiegritou.Umgatoconhecido,carecaeenrugado,bufouparaela,dooutroladoda

varanda.Elavirou-sedevoltaparaaporta.“Eutrouxebiscoitos!”Ospassospararam.“Deverdade,oufoivocêquefez?”Sophie encolheu-se, protegendo-se do gato furtivo. “Fofinhos e

amanteigados,dojeitoquevocêadora!”Ogatochiou.“Agatha,deixe-meentrar...”“Vocêdizqueeucheiromal...”“Vocênãocheiramal.”“Então,porquevocêdisseissodaúltimavez?”“Porquedaúltimavezvocêestavacheirandomal!Agatha,ogatoestá

babando...”“Talvezelefarejesegundasintenções.”Ogatomostrousuasgarras.“Agatha,abraaporta!”O gato pulou no rosto dela. Sophie berrou. Umamão surgiu nomeio

deleseafastouogato.Sophieergueuosolhos.“Reaperestásempássaros”,disseAgatha.

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Seuscabelosnegros,curtos,pareciamcobertosdeóleo.Ovestidopreto,semforma,comoumsacodebatatas,nãoconseguiaesconderaestruturaossudaeapeleassustadoramentebranca.Olhosesbugalhadossaltavamdeseurostomirrado.

“Penseiemdarmosumavolta”,disseSophie.Agathaencostou-senaporta. “Aindaestoutentandoentenderporque

vocêéminhaamiga.”“Porquevocêémeigaeengraçada”,respondeuSophie.“Minha mãe diz que sou amarga e mal-humorada”, disse Agatha.

“Portanto,umadevocêsestámentindo.”ElaenfiouamãonocestodeSophieetirouolenço,revelandobiscoitos

secos e esfarelados. Agatha lançou um olhar fulminante para Sophie erecuouparadentrodacasa.

“Masnãopodemospelomenosdarumavolta?”,perguntouSophie.Agatha começou a fechar a porta, mas depois viu seu rosto

desapontado,comoseSophietivesseficadonaexpectativadopasseiotantoquantoelaprópria.

“Sóumavoltinha.”Agathapassouporelacomumpassoarrastado.“Massevocêdisseralgoarroganteoufútil,euvoumandaroReapersegui-laatéemcasa.”

Sophie saiu correndo atrás dela. “Mas assim eu não vou poder falarnada!”

Depois de quatro anos, a temida décima primeira noite do décimoprimeiro mês havia chegado. Sob o sol do entardecer, a praça tinha setransformado em um burburinho de preparativos para a chegada doDiretordaEscola.Oshomensafiavamespadas,preparavamarmadilhaseplanejavam a guarda noturna, enquanto as mulheres disfarçavam ascrianças.Tosavamoscabelosdasmaisbonitas,escureciamseusdentes,eesfarrapavam suas roupas; limpavam e esfregavam as de aparênciacomum,evestiam-nas comcoresalegres, cobrindo-as comvéus.Asmãesimploravam para que as crianças mais bem comportadas xingassem ouchutassemseusirmãos,easmaismalcomportadaseramsubornadasparaficarrezandonaigreja.Enquantoisso,asoutrascriançaseramorganizadasemfilaparacantar,emcoro,ohinodavila:“Abençoadossejamoscomuns”.

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Omedo crescia comoumanuvemcontagiante.Emumbecoescuro, oaçougueiroeoferreirotrocavamlivrosdecontosdefadasporpistasparasalvaros filhos.Soba torreenvergadadorelógio,duas irmãs listavamosnomesdosvilõesdoscontosdefadasembuscadepadrões.Umgrupodemeninosuniaseuscorposcomcorrentes,algumasmeninasseescondiamno telhadodaescola, euma criançamascaradapulavados arbustosparaassustaramãe,ganhandopalmadasimediatamente.Atéamendigaentrouna dança, pulando diante de uma fogueirinha e gritando: “Queimem oslivrosdecontosde fadas!Queimemtodos!”.Entretanto,ninguémouviu,enenhumlivrofoiqueimado.

Agathaficavapasmacomtudoisso,incrédula.“Comopodeumacidadeinteiraacreditaremcontosdefadas?”

“Porqueelessãoreais.”Agatha parou de caminhar. “Não é possível que você acredite que a

lendasejaverdade.”“Éclaroqueacredito”,disseSophie.“QueumDiretordeEscolarapteduascrianças,leve-asparaumaescola

naqualumaaprendeoBemeoutraaprendeoMal,eelassegraduememcontosdefadas?”

“Meparecepossível.”“Meavisesevirumforno.”“Porquê?”“Quero enfiar aminha cabeça dentro dele. E o que, eu lhe pergunto,

ensinamexatamenteaessascrianças?”“Bom,naEscoladoBemelesensinammeninosemeninascomoeuase

tornar heróis e princesas, a governar seus reinos de forma justa e aencontrar o felizes para sempre”, disse Sophie. “Na Escola do Mal, elesensinam como tornarem-se bruxas malvadas e trolls corcundas, e comolançarmaldiçõesepragas.”

“Maldições e pragas?”, Agatha perguntou, com a voz aguda. “Queminventouisso?Algumacriançade4anos?”

“Agatha,aprovaestános livrosdecontosde fadas!Vocêpodeverascrianças desaparecidas nos desenhos! João, Cinderela, Rapunzel – todoselesganharamasprópriashistórias...”

“Eunãovejonada,porquenãoleiolivrosbobosdecontosdefadas.”“Entãoporquetemumapilhadelesaoladodesuacama?”,perguntou

Sophie.

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Agatha fez uma careta. “Olhe, quem pode dizer que esses livros sãoreais?Talvezsejaumtrotedovendedordelivros.Talvezsejaumamaneirade osmais velhosmanterem as crianças fora da floresta. Seja qual for aexplicação, não existe um Diretor de Escola e não existem maldições epragas.”

“Entãoquemestáraptandoascrianças?”“Ninguém. A cada quatro anos, dois idiotas entram escondidos na

floresta esperando assustar seuspais e seperdem, ou são comidospeloslobos,epronto,alendacontinua.”

“Essaéaexplicaçãomaisimbecilqueeujáouvi.”“Nãoachoquesejaeuaimbecilaqui”,disseAgatha.AlgumacoisanofatodeserchamadadeimbecilfezosanguedeSophie

ferver.“Vocêsóestáassustada”,eladisse.“Certo”,Agathariu.“Eporqueeuestariaassustada?”“Porquevocêsabequevemcomigo.”Agathaparouderir.EntãoseuolharpassoudeSophieparaapraça.Os

aldeõesencaravam-nascomosefossemasoluçãoparaummistério.OBemderosa,oMaldepreto.OparperfeitoparaoDiretordaEscola.

Ainda paralisada, Agatha observou dezenas de olhos assustadosrecaíremsobreela.Seuprimeiropensamentofoiquedepoisdeamanhãelae Sophie poderiam fazer seus passeios em paz. Ao seu lado, Sophieobservava as criançasmemorizando seu rosto, caso ele surgisse em seuslivros de contos de fadas algum dia. Seu primeiro pensamento foi seolhavamparaBelledamesmaforma.

Então,emmeioàmultidão,elaaviu.De cabeça raspada e vestido imundo, Belle estava ajoelhadana terra,

enlameando o próprio rosto freneticamente. Sophie respirouprofundamente, pois percebeuqueBelle era exatamente comoos outros.Ela queria um casamento comum, com um homem que ficaria gordo,preguiçoso e exigente. Queria dias monótonos, cozinhando, limpando ecosturando.Queriarecolherexcrementoscomumapá,ordenharovelhaseabaterporcosguinchando.QueriaapodreceremGavaldon,atéquesuapeleficasse todamanchada e seusdentes caíssem.ODiretordaEscola jamaislevariaBelle,porqueelanãoeraumaprincesa.Elaera...nada.

Vitoriosa,Sophieolhouradianteparaospatéticosaldeõesesedeleitoucomseusolhares,comosefossemespelhosbrilhantes...

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“Vamos”,disseAgatha.Sophievirou-se.OsolhosdeAgathaestavamfixosnamultidão.“Praonde?”“Pralongedepessoas.”

Enquanto o sol se punha, adquirindo um tom avermelhado, as duasmeninas,umalinda,outrafeia,sentaram-seladoaladoàbeiradeumlago.Sophie guardava pepinos em um saco de seda, enquanto Agatha acendiafósforosejogavanaágua.Depoisdodécimofósforo,Sophielançou-lheumolhar.

“Issomeacalma”,disseAgatha.Sophietentouabrirespaçoparaoúltimopepino.“Porquealguémcomo

Belleiaquererficaraqui?Quemiapreferirissoaquiaumcontodefadas?”“Equemescolheriadeixarsuafamíliaparasempre?”,Agathabufou.“Excetoeu,vocêquerdizer”,disseSophie.Elasficaramemsilêncio.“Vocêàsvezesseperguntaparaondefoioseupai?”,perguntouSophie.“Eujálhedisse.Elefoiemboradepoisqueeunasci.”“Mas pra onde ele foi? Estamos cercados por florestas! Desaparecer

assim, de repente...”, Sophie virou-se. “Talvez ele tenha encontrado umcaminho para dentro das histórias! Talvez tenha encontrado um portalmágico!Talvezeleestejaesperandoporvocêdooutrolado!”

“Ou talvez tenha voltado para sua esposa, fingido que eu nuncaaconteci,emorrido,dezanosatrás,emumacidentenomoinho.”

Sophiemordeuoslábiosevoltouaospepinos.“Suamãenuncaestáemcasaquandovouvisitar.”“Agoraelavaiàcidade”,disseAgatha.“Nãohápacientessuficientesem

casa.Provavelmenteporcausadolocal.”“Tenho certeza de que é isso”, disse Sophie, sabendo que ninguém

confiaria na mãe de Agatha nem para curar assadura de fralda, menosaindapara tratarumdoente. “Achoqueocemitérionãodeixaaspessoasmuitoàvontade.”

“Os cemitérios têm suas vantagens”, disse Agatha. “Nada de vizinhosenxeridos. Nem vendedores. Nem ‘amigos’ suspeitos com cremes pararostoebiscoitosdietéticos,dizendoquevocêvaiparaaEscoladoMal,naTerradosContosdeFadas.”Elajogouumfósforocomprazer.

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Sophiepousouopepinonochão.“Entãosoususpeitaagora?”“Quem pediu para você aparecer? Eu estava perfeitamente bem

sozinha.”“Vocêsempremedeixaentrar.”“Porquevocêsempreparecemuitosolitária”,disseAgatha.“Eeusinto

penadevocê.”“Sentepenademim?”, os olhos de Sophie faiscaram. “Você tem sorte

que alguém venha vê-la, quando ninguém mais vem. Tem sorte de teralguémcomoeuparasersuaamiga.Temsortedeeuserumapessoatãoboa.”

“Eu sabia!”, Agatha ficou furiosa. “Eu sou sua boa ação! Apenas umfantocheemsuafantasiaimbecil!”

Sophienãodissenadaporumlongotempo.“TalvezeutenhametornadosuaamigaparaimpressionaroDiretorda

Escola”,elaconfessou,afinal.“Masagoraémaisdoqueisso.”“Porqueeudescobri”,resmungouAgatha.“Porqueeugostodevocê”.Agathavirou-separaela.“Ninguémaquimeentende”,disseSophie,olhandoparaasmãos.“Mas

vocêmeentende.Vocêvêquemeusou.Porissoeusemprevolto.Vocênãoémaisaminhaboaação,Agatha.”

Sophieergueuosolhosparaela.“Vocêéminhaamiga.”OpescoçodeAgathaficouvermelhocomoumpimentão.“Oquefoi?”,Sophiefranziuorosto.Agatha curvou-se dentro do vestido. “É que... é... eu... não estou

acostumada...é...ateramigas.”Sophiesorriuepegouamãodela.“Bem,agoranósseremosamigasem

nossanovaescola.”Agatha deu um suspiro, afastando-se. “Digamos que eu encolha até o

seuníveldeinteligênciaefinjaqueacreditonissotudo.Porqueeuiriaparaa escola de vilões? Por que todos elegeriam amim como a Soberana doMal?”

“Ninguém disse que você é má, Agatha”, Sophie suspirou. “Você éapenasdiferente.”

Agathaespremeuosolhos.“Diferente,como?”“Bem,pracomeçar,vocêsóvestepreto.”“Porquenãosuja.”

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“Vocênemsaidecasa.”“Láninguémficameolhando.”“NoconcursoCrieumConto,asuahistóriaterminoucomaBrancade

NevesendodevoradaporabutreseaCinderelaseafogandonabanheira.”“Acheiqueeraumfinalmelhor.”“Vocêmedeuumsapomortodeaniversário!”“Paralembrarquetodosnósmorremoseacabamospodresembaixoda

terra, comidos porminhocas, e que por isso devemos aproveitar nossosaniversáriosenquantoaindaostemos.Acheiatencioso.”

“Agatha,vocêsevestiudenoivanoHalloween.”“Casamentossãoassustadores.”Sophieolhouparaela,boquiaberta.“Tudobem.Então,eusouumpouquinhodiferente”,Agathaencarou-a.

“Edaí?”Sophiehesitou.“Bem,équenoscontosdefadasodiferentegeralmente

acabasendoo...hum...mal.”“Você está dizendo que vou me transformar em uma feiticeira má”,

disseAgatha,magoada.“Estoudizendoque,oquequerqueaconteça,vocêteráumaescolha”,

disseSophie,suavemente.“Nósduasvamosescolhercomoterminaonossocontodefadas.”

Agathanãodissenadaporumtempo.EntãoelatocouamãodeSophie.“Porquevocêquer tanto iremboradaqui?Porqueacreditaemhistóriasquesabequenãosãoverdadeiras?”

SophieencontrouosolhosgrandesesincerosdeAgatha.Pelaprimeiravezeladeixoufluirasondasdadúvida.

“Porque eu não posso viver aqui”, disse Sophie, com a voz falhando.“Nãoconsigoviverumavidacomum.”

“Engraçado”,disseAgatha.“Éporissoqueeugostodevocê.”Sophiesorriu.“Porquevocêtambémnãoconsegue?”“Porquevocêfazcomqueeumesintacomum”,disseAgatha.“Eessaéa

únicacoisaqueeusemprequis.”Orelógiosoouagudo,sombrio,novale,batendoashoras,seisousete,

elas tinhamperdidoanoçãodotempo.Eenquantoosecosressoaramnoburburinho distante da praça, tanto Sophie quanto Agatha fizeram umpedido.Quedaliaumdiaaindaestivessemnacompanhiaumadaoutra.

Ondequerquefosse.

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2Aartedorapto

Quando o sol se pôs, as crianças já estavam trancadas havia muitotempo. Pelas persianas dos quartos elas espiavam seus pais queempunhavamtochas,esuasirmãseavósestavamenfileiradasaoredordaflorestaescura,desafiandooDiretordaEscolaaatravessaroaneldefogo.

Contudo, enquanto as crianças trêmulas apertavam os parafusos dasjanelas, Sophie preparava-se para desaparafusar os seus. Ela queria queaquele rapto fosse o mais conveniente possível. Entrincheirada em seuquarto,eladispôsgramposdecabelo,pinçaselixasdeunhaàsuafrente,ecomeçouatrabalhar.

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Os primeiros raptos tinham acontecido há duzentos anos. Em algunsanos,doismeninoseramlevados,emoutros,duasmeninase,certasvezes,umdecada.Asidadeseramigualmentevariáveis;umpoderiater16anoseoutro14,ouamboster12anosrecém-completos.Se,porém,asprimeirasescolhaspareciamseraleatórias,logoopadrãoficouclaro.Umerasemprelindo e bom, o filho que todo pai gostaria de ter. O outro era rude eestranho, umexcluídodesdeonascimento.Umpar oposto, arrancadodesuajuventudeelevadoparalonge.

Naturalmente, os aldeões culparam os ursos. Ninguém nunca tinhavistoumursoemGavaldon,masissoosdeixavaaindamaisdeterminadosaencontrar um. Quatro anos mais tarde, quando outras duas criançasdesapareceram,osaldeõesadmitiramquedeviamtersidomaisespecíficos,edeclararamqueosursosnegroseramosculpados.Ursostãonegrosquesemesclavamcomanoite.Masquandoascriançascontinuavamasumira

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cada quatro anos, a atenção da vila desviou-se para ursos escavadores,depoisparaursosfantasmas,eposteriormenteparaursosdisfarçados...atéqueficouclaroquenãohaviaursonenhum.

Enquantoosaldeõesfrenéticosproduziamsuasnovasteorias(ateoriado buraco negro, a teoria do canibal voador), as crianças de Gavaldoncomeçaramanotaralgosuspeito.Àmedidaqueestudavamasdezenasdecartazes com fotos dos desaparecidos afixados na praça, os rostos dosmeninosedasmeninasperdidoscomeçaramaparecer-lhesestranhamentefamiliares. Foi quando abriram seus livros de contos de fadas eencontraramnelesascriançasraptadas.

João,levadocemanosantes,nãohaviaenvelhecidonada.Aliestavaeledesenhado,comosmesmoscabelosindisciplinados,ascovinhasrosadaseo sorriso torto que o haviam tornado tão popular entre as garotas deGavaldon.Comadiferençadequeagoraeletinhaumpédefeijãonoquintalde casa, e uma queda por feijões mágicos. Enquanto isso, Angus, odesordeirosardentodeorelhaspontudasquedesapareceranomesmoanoque João, havia se transformado em um gigante sardento de orelhaspontudas no alto do pé de feijão de João. Os dois meninos tinhamencontrado seus caminhos para os contos de fadas. Quando, porém, ascrianças apresentaram a teoria dos livros de contos de fadas, os adultosresponderam como quase sempre fazem. Afagaram suas cabeças evoltaramaosburacosnegrosecanibais.

Então as crianças mostraram-lhes mais rostos conhecidos. Levadacinquenta anos antes, a doce Anya estava agora sentada em uma rochailuminadapelaluzdoluarcomoaPequenaSereia,enquantoacruelEstrahavia se tornado uma terrível bruxa do mar. Philip, o correto filho dopastor,tinhasetornadooalfaiatezinhoesperto,enquantoapomposaGulaassustavaascriançascomoaBruxadaFloresta.Muitascriançasraptadasemparestinhamencontradonovasvidasemlivrosdecontosdefadaspelomundoafora.Umasendoboaeaoutra,má.

Os livrosvinhamdaLivrariadeContosdeFadasdoSr.Deauville,umcantinhomofadoentreapadariaBattersby’seopubPorcoemConserva.Oproblema,éclaro,estavaemsaberondeovelhoSr.Deauvillearranjavaosseuslivros.

Umavezporano,numamanhãquenãohaviacomoprever,elechegavaemsualojaeencontravaumacaixadelivrosesperandoporeleládentro.Quatro contos de fadas novinhos em folha, um exemplar de cada. O Sr.

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Deauvillependuravaumavisonaportadesualoja:“Fechadoatésegundaordem”. Então ele aconchegava-se na sala dos fundos, dia após dia,copiando diligentemente as novas fábulas, à mão, até que tivesse livrossuficientesparacadaumadascriançasdeGavaldon.Quantoaosoriginaismisteriosos,elessurgiriamemumamanhã,navitrinedaloja,comosinaldeque o Sr. Deauville finalmente havia concluído sua exaustiva tarefa. Eleabria asportasparauma filade cincoquilômetros, que serpenteavapelapraça,desciapelascolinasecontornavaolago,apinhadadecriançasávidaspelas novas histórias, e pais desesperados para ver se algum dosdesaparecidosteriasidocaracterizadonashistóriasdaqueleano.

Desnecessário dizer que o Conselho dos Anciões tinha perguntas desobraparaoSr.Deauville.Quandolheperguntavamquemhaviamandadoos livros,elediziaquenão faziaamaisvaga ideia.Quando indagavamháquanto tempo os livros vinham aparecendo, dizia que não conseguialembrar-se de um tempo em que os livros não chegavam. Quandoperguntavam-lhe se alguma vez questionara aquela apariçãomágica doslivros,elerespondia:“Deondemaisoslivrospoderiamvir?”.

EntãoosAnciõesnotaramoutracoisanoslivrosdoSr.Deauville.TodasasvilasdoslivroseramidênticasaGavaldon.Osmesmoschalésdamargemdo lago e seus beirais coloridos. As mesmas tulipas roxas e verdes queperfilamasestradasdeterra.Asmesmascarruagensvermelhaselojascomfachadasdemadeira.Aescolaamarela,eumatorretortacomumrelógio.Tudoisso,noentanto,desenhadocomosefosseumafantasiaemumaterramuito,muitodistante.Essesvilarejosdoslivrossóexistiamporummotivo:paracomeçareterminarumcontodefadas.Tudoentreocomeçoeofimacontecianaflorestaescuraeinfinitaquecercavaacidade.

Foi quando notaram que Gavaldon também era cercada por umaflorestaescuraeinfinita.

Nopassado,quandoascriançascomeçaramadesaparecer,osaldeõesinvadiram a floresta para encontrá-las, mas foram repelidos portempestades, inundações, ciclones e árvores que caíam. Quandocorajosamente conseguiram abrir um novo caminho, encontraram umacidadeescondidaportrásdasárvores,evingativamentesitiaram-na,paramais tarde descobrir que era a sua própria cidade. De fato,independentemente do local por onde os aldeões entrassem na floresta,eles sempre saíamporondehaviamentrado. Peloqueparecia, a floresta

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nãotinhaintençãodedevolversuascrianças.Eumdiaelesdescobriramomotivo.

OSr.Deauvilletinhaterminadodedesempacotaroslivrosdecontosdefadas daquele ano quando notou um grande borrão escondido em umadobradacaixa.Elepassouodedoedescobriuqueoborrãoaindaestavaúmidodetinta.Olhandomaisdeperto,viuquenaverdadeeraumselocomumelaboradobrasãodeumcisnenegroedeumcisnebranco.Nobrasãohaviatrêsletras:

E.B.M.

Nãofoiprecisoqueeleadivinhasseoqueasletrassignificavam.Estavaescritonalinhaabaixodotimbre.Palavrasrealçadasempretoinformavamàvilaparaondeassuascriançastinhamsidolevadas:

EscoladoBemedoMal.

Osraptoscontinuavam,masagoraoladrãotinhanome.ElesochamavamdeDiretordaEscola.

Algunsminutosdepoisdasdez,Sophiedestravouoúltimocadeadodajanela, e abriuaspersianas.Davaparaverosarredoresda floresta,ondeseupai,Stefan,estavacomorestantedaguardadoperímetro.Contudo,emvez de parecer aflito como os outros, ele estava sorrindo, com amão noombrodaviúvaHonora.Sophiefezumacareta.Elanãofaziaideiadoqueseupaitinhavistonaquelamulher.Houveumtempoemquesuamãeeratão infalível quanto uma rainha dos contos de fadas. Honora, por outrolado,tinhaumacabecinhaminúscula,umcorpoarredondado,epareciaumperu.

Seupai sussurrava algomaliciosamente aoouvidoda viúva, e Sophiesentiu suas bochechas arderem. Se fossem os dois filhinhos deHonora aseremlevados,elenãoestariabrincando.EraverdadequeStefantrancara-anahoradopôrdosol,dera-lheumbeijo,agirazelosamentecomoumpaiamoroso.Sophie,porém,sabiaaverdade.Elaviraemseurostoacadadia

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desuavida.Seupainãoaamava.Porqueelanãoeraummenino.Porqueelanãoofazialembrar-sedesimesmo.

Agoraelequeriasecasarcomaquelafera.Cincoanosapósamortedesua mãe, isso não seria impróprio ou insensível. Uma simples troca devotoseeleteriadoisfilhos,umanovafamília,umnovocomeço.Noentanto,primeiroeleprecisavadabençãodafilha,paraqueosAnciõespermitissem.As poucas vezes em que ele tentou, Sophiemudou de assunto, ou picoupepinosruidosamente,ousorriudaformacomosorriaparaRadley.SeupainãovoltaraamencionarHonora.

Deixe que o covarde case-se com ela depois que eu tiver partido, elapensou,olhandoparaeleentreaspersianas.Sódepoisquepartisseelelhedariavalor.Sóentãosaberiaqueninguémpoderiasubstituí-la.Esóentãoveriaquehaviatrazidoaomundomuitomaisqueumfilho.

Haviageradoumaprincesa.Noparapeitodesuajanela,Sophiecolocoudelicadamentebiscoitosem

formadecoraçãoparaoDiretordaEscola.Pelaprimeiravezemsuavida,ela os fizera com açúcar e manteiga. Afinal, aqueles eram especiais. Umrecadoparadizerqueelairiadeboavontade.

Mergulhandoemseutravesseiro,elafechouosolhosparaviúvas,pais,eparaamiserávelGavaldone,comumsorriso,contavaossegundosparaameia-noite.

Assim que a cabeça de Sophie sumiu da janela, Agatha enfiou osbiscoitosnaboca.Issosóvaiatrairratos,elapensou,comosfareloscaindoem seus sapatos pretos volumosos. Ela bocejou e seguiu seu caminho,enquantoorelógiodacidadepassavadoquartodehora.

Após seu passeio com Sophie, Agatha trilhava o caminho de casaquando começou a ter visões de Sophie disparando rumo à floresta paraencontrar a Escola de Tolos e Malucos, e sendo devorada por javalis domato.EntãoelavoltouaojardimdeSophieeficouesperandoatrásdeumaárvore,ouvindoenquantoeladesfaziaastrancasdajanela(cantandoumacanção idiota sobre príncipes), fazia suas malas, (agora cantando sobresinos de casamento), passava maquiagem e vestia seu melhor vestido(“Todosamamumaprincesaderosa”?!),e, finalmente(finalmente!)foisedeitar. Agatha esmagou os últimos farelos com os sapatos e seguiu emfrente, rumo ao cemitério. Sophie estava segura e, de manhã, acordaria

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sentindo-se uma tola. Agatha não zombaria dela. Sophie precisaria aindamais dela agora, e ela estaria lá. Aqui, nestemundo seguro e recluso, asduasfariamopróprioparaíso.

EnquantoAgatha subia a encosta, elanotouumarcode escuridãonaborda da floresta iluminada pelas tochas. Aparentemente, os guardasresponsáveispelocemitériotinhamdecididoqueoqueviviaalidentronãoeradignodeproteção.Pois,peloqueAgathaselembrava,elasempretiveraum talento para fazer as pessoas se afastarem. As crianças fugiam delacomoseelafosseummorcegovampiro.Osadultosgrudavamnasparedesquandoelapassava,temendoqueelapudesserogar-lhesumapraga.Atéoscoveirossaíamcorrendoaovê-la.Acadanovoano,ossussurrosdacidadeiam ficandomais ruidosos– “bruxa”, “vilã”, “EscoladoMal” – até que elacomeçou a arranjar desculpas para não sair. Primeiro, por alguns dias,depois por semanas, até que passou a assombrar sua casa no cemitério,comoumfantasma.

Nocomeço,haviamuitasformasdesedistrair.Elaescreviapoemas(“Éuma vidamiserável” e “O céu é um cemitério” foram os seusmelhores),faziadesenhosdeReaperqueassustavammaisosratosdoqueogatoemsi,eatéaventurou-seaescreverumlivrodehistórias,Infelizesparasempre,sobrecriançaslindasquesofriammorteshorríveis.Contudo,elanãotinhaninguémaquemmostraressascoisasatéodiaemqueSophiebateuàsuaporta.

Reaperlambeu-lheostornozelosquandoelapisounochãodavaranda,querangia.Elaouviuumacantorialádentro...

NaflorestaprimitivaHáduastorreserguidas.

Agatharevirouosolhoseempurrouaporta.Suamãe,decostas,cantavaalegremente,enquantoenchiaumbaúcom

capaspretas,cabosdevassouraechapéuspontudosdebruxa.

NaEscoladoBemedoMalAPurezaeaMalícia.QuemnelasingressarNãotemcomoescapar

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SeumcontodefadasNãovivenciar...

“Planejando férias em algum lugar exótico?”, perguntou Agatha. “Daúltima vez que verifiquei, vi que não há saída deGavaldon, amenos quevocêcrieasas.”

Callis virou-se. “Acha que três capas são suficientes?”, ela perguntou,com os olhos arregalados, e os cabelos parecendo um engorduradocapacetenegro.

Agatha estremeceu diante da imensa semelhança entre as duas. “Sãoexatamenteiguais”,elamurmurou.“Porqueprecisadetrês?”

“Casovocêpreciseemprestarumadelasaumaamiga,querida.”“Elassãopramim?”“Coloqueidoischapéus,casoumfiqueamassado,umcabodevassoura,

caso o deles seja fedorento, e alguns frascos com línguas de cachorros,pernasdelagartoededosdesapos.Quempodesaberháquantotempoosingredientesdelesestãolá?”

Agathasabiaaresposta,masperguntoumesmoassim.“Mãe,paraqueprecisodecapas,chapéusededosdesapo?”

“ParaaRecepçãodasNovasBruxas,éclaro!”,disseCallis,empolgada.“VocênãovaiquererchegaràEscoladoMalparecendoumaamadora.”

Agathatirouseussapatospesados. “Deixemosde ladoo fatodequeomédicodacidadeacreditaemtudoisso.Porqueétãodifícilaceitarquesoufeliz aqui? Tenho tudo o que preciso. Minha cama, meu gato e minhaamiga.”

“Bem,vocêdeveriaaprender comsuaamiga,querida.Pelomenoselaquer algo da vida”, disse Callis, fechando o baú. “Realmente, Agatha, quedestino poderia ser melhor do que tornar-se uma bruxa dos contos defadas?EusonheiemfrequentaraEscoladoMal!Emvezdisso,oDiretordaEscola levou o idiota do Sven, que acabou sendo enganado por umaprincesa em O ogro inútil, e depois queimado. Isso não me surpreende.Aquelemeninomalconseguiaamarrarasprópriasbotas.Tenhocertezadeque,sepudesseescolhernovamente,eleteriamelevado.”

Agatha entrou embaixo das cobertas. “Bem, todos nesta cidade aindaachamquevocêéumabruxa,portanto,no finaldascontas,vocêrealizouseudesejo.”

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Callis virou-se bruscamente. “Meu desejo é que você vá pra longedaqui”, ela disse, sibilando, com olhos escuros como carvão. “Este lugartornou-a fraca, preguiçosa e medrosa. Eu pelo menos me tornei alguémaqui. Você simplesmente fica à toa, apodrecendo, esperando que Sophieapareçaparalevá-laparapassear,comosefosseumcachorro.”

Agathaencarou-a,estarrecida.Callissorriuradianteevoltouaarrumarascoisas.“Mastomecontade

sua amiga, querida. A Escola do Bem talvez pareça um festival de rosas,porém,elateráumasurpresa.Agoravápracama.ODiretordaEscolalogoestaráaqui,eserámaisfácilparaelesevocêestiverdormindo.”

Agathacobriuacabeçacomolençol.

Sophie não conseguia dormir. Faltavam cinco minutos para a meia-noiteenadadeo intrusoaparecer.Elaseajoelhounacamaeespioupelapersiana. Na borda de Gavaldon, a guarda, composta por mil pessoas,seguravatochasparailuminarafloresta.Sophiefezumacarafeia.Comoelepoderiapassarporeles?

Foi quando ela notouque os corações noparapeito da janela haviamsumido.

Elejáestáaqui!Trêsmalas cor-de-rosa foram arremessadas pela janela, seguidas por

doispéscomsapatinhosdevidro.

Agathadeuumsaltonacama,sacudidaporumpesadelo.Callisroncavaruidosamente,dooutroladodoquarto,comReaperaoseulado.Aoladodesua cama estava o baú trancado, com os escritos “Agatha de Gavaldon,Estrada de Graves Hill, 1”, em uma letra garranchada, junto com umsaquinhodebolinhosdemelparaaviagem.

Mastigando o bolo, Agatha olhava pela janela quebrada. Abaixo domorro, as tochas ardiam em um círculo fechado, mas ali em Graves Hillrestaraapenasumguardarobusto,debraçostãograndesquantoocorpointeirodeAgatha,epernasquepareciamcoxasdegalinha.Elemantinha-seacordadoerguendoumalápidequebradacomosefosseumhaltere.

Agathadeuaúltimamordidanobolinhodemeleolhouparaaflorestaescura.

Brilhantesolhosazuisolharamdevoltaparaela.

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Agathaengasgouemergulhouemsuacama.Lentamente,elaergueuacabeça.Nadaali.Nemoguarda.

Entãoelaencontrou-o,inconsciente,emcimadalápidequebrada,comatochaapagada.

Arrastando-separalongedelehaviaumasombrahumana,corcundaeesquelética.Semumcorpoatreladoaela.

A sombra flutuoupelomarde túmulos, semomenor sinaldepressa.Passou por debaixo dos portões do cemitério e seguiu descendo, emdireçãoaocentroiluminadodeGavaldon.

Agatha sentiu o terror estrangulando seu coração. Ele era real.Quemquerquefosse.

Eelenãomequeria.Oalíviotomou-a,seguidoporumanovaondadepânico.Sophie.Eladeveriaacordaramãe,deveriagritarpedindoajuda.Deveria...Não

haviatempo.Fingindodormir,CallisouviuospassosapressadosdeAgatha,edepois

a porta fechar-se. Ela abraçou Reaper commais força, para que ele nãoacordasse.

Sophie agachou-se atrás de uma árvore, esperando que o Diretor daEscolaaraptasse.

Elaesperou.Eesperou.Depoispercebeualgonosolo.Farelos de biscoito amassados por uma pegada. Uma pegada de um

calçadotãopesadoeabominávelquesópoderiapertenceraumapessoa.OspunhosdeSophiefecharam-se,seusangueferveu...

Mãos cobriram sua boca, e uma bota chutou-a para dentro de suajanela. Sophie caiu de cabeça na cama e virou-se bruscamente, vendoAgatha.“Seuvermepatéticoeintrometido!”,elagritou,antesdevislumbraromedonorostodaamiga.“Vocêoviu!”,Sophiesussurrou...

Agatha colocou uma das mãos na boca de Sophie e, com a outra,segurou-a junto ao colchão. Enquanto Sophie retorcia-se em protesto,Agathaespioupelajanela.AsombracurvapassavapelapraçadeGavaldon,pela guarda armada e distraída, seguindo diretamente para a casa deSophie. Agatha engoliu um grito. Sophie libertou-se e segurou-a pelosombros.

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“Eleébonito?Comoumpríncipe?Ouumdiretordeescolanormal,deóculosesobretudoe...”

BUM!SophieeAgathaviraram-selentamenteparaaporta.BUM!BUM!Sophiefranziuonariz.“Elepoderiasimplesmentebater,não?”Oscadeadosquebraram-se.Asdobradiçasvibraram.Agathaencolheu-sejuntoàparede,enquantoSophieenlaçavaasmãos

eafofavaovestido,comoseesperasseumavisitareal.“Émelhordar-lheoqueelequer,semexagero.”

Quando a porta cedeu, Agatha pulou da cama e jogou-se contra ela.Sophie revirou os olhos. “Ora, sente-se, pelo amor de Deus.” Agathaempurrouamaçanetacomtodaasuaforça,porém,elaescapou-lhe–houveum ruído ensurdecedor, e a porta foi escancarada, lançando Agatha dooutroladodoquarto.

Era o pai de Sophie, branco como papel. “Eu vi algo!”, ele estavaofegante,segurandoatocha.

Então,Agathaviuasombracurvadanaparede,aproximando-sedesuasilhueta larga.“Ali!”,elagritou.Stefanvirou-se,masasombraapagousuatocha.Agathapegouumfósforonobolsoeacendeu-o.Stefanestavadeitadonochão,inconsciente.Sophiedesaparecera.

Gritosvinhamdefora.Pela janela,AgathaviuosaldeõescorrendoatrásdeSophie,àmedida

que a sombra arrastava-a emdireção à floresta. E enquantomais emaisaldeõesgritavamperseguindo-os...

Sophiesorriadeorelhaaorelha.Agathasaltoupelajanelaecorreuatrásdela,masassimqueosaldeões

alcançaramSophie, suas tochasexplodirampormágica, eprenderam-nosem círculos de fogo. Agatha desviou-se das armadilhas flamejantes edisparouparasalvarsuaamigaantesqueasombraapuxasseparadentrodafloresta.

Sophiesentiuseucorpodeixaragramamaciaeserarrastadocontraapoeirapedregosa.Elafezumacaretaaopensaremaparecernaescolacomovestidosujo.“Eurealmenteacheiquehaveriacocheiros”,eladisseparaasombra.“Ou,pelomenos,umacarruagememformadeabóbora.”

Agathacorriafuriosamente,masSophiejátinhaquasedesaparecidoemmeio às árvores. Por todos os lados chamas ardiam cada vezmais altas,

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prontasparadevoraravilainteira.Vendoofogotãoalto,Sophiesesentiualiviada,sabendoqueninguém

poderiasalvá-laagora.Mas,ondeestáasegundacriança?OndeestáaquevaiparaoMal?ElaestiveraerradaquantoaAgatha.Enquantoerapuxadapara dentro das árvores, Sophie olhou para trás, vendo a parede delabaredas,edeuadeusàmaldiçãodeumavidacomum.

“Adeus,Gavaldon!Adeus,faltadeambição!Adeus,mediocridade...”Então,elaviuAgathairromperdaschamas.“Agatha,não!”,gritouSophie...Agatha pulou em cima dela, e ambas foram arrastadas rumo à

escuridão.Instantaneamente, as chamasao redordos aldeões apagaram-se.Eles

dispararam rumo à floresta, mas as árvores foram ficandomagicamentegrossaseespinhosas,trancando-osdoladodefora.

Eratardedemais.“O QUE ESTÁ FAZENDO?”, rugiu Sophie, empurrando e arranhando

Agatha, enquanto a sombra as arrastava em direção ao breu da floresta.Agathadebatia-seloucamente,tentandosoltarSophiedasmãosdasombraeasombradasmãosdeSophie.“VOCÊESTÁESTRAGANDOTUDO!”,Sophieberrou.Agathamordeu-lheamão. “EEEEiiiiii!!!!”, Sophieurravaegirouocorpo,paraqueAgatharalassenaterra.AgathagirouSophienovamente,esubiu em direção à sombra, com o sapato pesado apertando o rosto deSophie.

“QUANDOASMINHASMÃOSENCONTRAREMSEUPESCOÇO...”Elassentiramqueestavamsaindodochão.Enquanto algo delgado e frio enroscava-se ao redor delas, Agatha

remexia-se à procura dos fósforos em seu vestido; ela riscou um em seupunho ossudo e empalideceu. A sombra havia sumido. Elas estavamemaranhadasemumaplanta trepadeiraqueas transportouatéo altodeum olmo enorme e pousou-as em um galhomais baixo. As duas garotasolharam-se,tentandorecuperarofôlegoparafalar.Agathaconseguiufalarprimeiro.

“Nósvamosparacasaagoramesmo!”Ogalhobalançou,recuoucomoumelásticoeatirou-asparacimacomo

balas.Antesquepudessemgritar,elasaterrissaramemoutrogalho.Agatharemexeu-se procurando outro fósforo, mas o galho impulsionou-senovamente e lançou-as ao próximo, que as enviou a outro. “QUAL É A

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ALTURADESSAÁRVORE?”,Agathagritou.Saltandocomobolasdepingue-ponguepor cimadosgalhos, os corposdasmeninas trombavame caíam,seusvestidosrasgavam-seemespinhosegravetos,eseusrostosbatiamemgalhos que ricocheteavam, até que finalmente alcançaramos ramosmaisaltos.

Nacopadoolmohaviaumovonegrogigante.Asgarotasolharam-no,boquiabertas. O ovo rachou-se, fazendo jorrar uma gosma preta bem emcimadelas.Nessemomento,saiudedentrodeleumpássaroimenso, feitode ossos. Ele deu uma olhada para a dupla, e soltou um grasnadoesganiçado e zangado, que quase estourou seus tímpanos. Então, eleprendeu-as em suas garras e saiu voando, enquanto as duas gritavam,finalmenteconcordandoemalgumacoisa.Opássaroossudoirrompeupelamatanegra,enquantoAgathaacendia,freneticamente,umfósforoatrásdooutronascostelasdele,oquelhespermitiaverflashesdeolhosvermelhosbrilhantes e sombras arrepiantes. Por todos os lados árvores finasinvestiamcontraeles,eopássarosubiaedescianoar,tentandoevitá-las,até que um trovão explodiu logo à frente, e eles penetraramimpetuosamenteemumatempestadefuriosaecheiaderelâmpagos.Raiosdefogoderrubaramárvoresemsuadireçãoeelasprotegeramseusrostosdachuva,da lama,depedaçosdemadeira,deteiasdearanha,colmeiasevíboras,atéqueopássaropenetrouemmortaisarbustosespinhosos,easmeninasempalideceram,fechandoosolhosesperandoador...

Eentãoveioosilêncio.“Agatha...”Agathaabriuosolhoseviuraiosdesol.Elaolhouparabaixoesuspirou.“Éreal.”Bemabaixodelaserguiam-sedoiscastelos imensosemplenafloresta.

Umdelesreluziasoba luzdosol,comtorresdevidrorosadaseazuladassobre um lago cintilante. O outro pairava, enegrecido e serreado, compináculos afiados como os dentes de um monstro, rasgando as nuvenstempestuosas.

AEscoladoBemedoMal.OpássaroossudopairouacimadasTorresdoBem,afrouxandoSophie

desuasgarras.Agathaagarrouaamiga,horrorizada,masentãoviuorostodeSophieradiantedefelicidade.

“Agatha,eusouumaprincesa!”Mas,emvezdela,opássarosoltouAgatha.

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Estarrecida, Sophie observou Agatha cair dentro da névoa rosada dealgodãodoce.“Espere...não...”

OpássarodeuumaguinadabrutalemdireçãoàsTorresdoMal,cujasmandíbulasestendiam-separasuanovapresa.

“Não!Eusouboa!Estáerrado!”,gritavaSophie...Sempestanejar,porém,elafoidespejadanaescuridãoinfernal.

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3Ograndeequívoco

Sophieabriuosolhoseviu-seflutuandoemumfossodecheiropodre,repletoatéabordacomumlodopreto.Umaparededenévoaacircundava.Ela tentou ficar em pé, mas seus pés não encontravam o fundo, e elaafundou;o lodoinvadiuseunarizequeimousuagarganta.Sufocando,embuscadear,elaachoualgoemqueseagarroueviuqueeraacarcaçameiodevoradadeumbode.Elaengasgou,etentouafastar-senadando,masnãoconseguia enxergar nem um centímetro à frente de seu rosto. Gritosecoaramacimadelaeelaolhouparaoalto.

Houve movimentação, depois dezenas de pássaros ossudosirromperamdaneblinaesoltaramgarotosqueberravamnofosso.Quandoosgritosderamlugaraosomdoscorposcaindonaágua,veiooutraondadepássaros,depoisoutra,atéquecadacentímetrodocéuestavapreenchidoporcriançasquecaíam.Sophieavistouumpássaroquemergulhavaemsuadireçãoedesvioubemnahoradereceberumaborrifadadelodonorosto.

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Ela limpou o lodo dos olhos e ficou cara a cara com um menino. Aprimeiracoisaquepercebeu foiqueeleestavasemcamisa.Seupeitoerafranzinoepálido,semnenhumaesperançademúsculos.Desuacabecinhamiúda saía umnariz protuberante e uma arcada dentuça, e seus cabelosnegros caíam sobre seus olhos pequenos. Ele parecia um pequeno furãosinistro.

“Opássarocomeuminhacamisa”,eledisse.“Possotocarseuscabelos?”Sophierecuou.“Eles não costumam fazer vilãs com cabelos de princesa”, ele disse,

nadandocachorrinhoemdireçãoaela.Sophieprocuroudesesperadamenteporumaarma–umavareta,uma

pedra,umbodemorto...“Talvez possamos ser parceiros de beliche, ou melhores amigos, ou

qualquertipodeparceiros”,eledisse,agoraaalgunscentímetrosdela.Eracomo seRadley tivesse se transformando emum roedor e passado a tercoragem.Eleestendeuamãoesqueléticaparatocá-laeSophiepreparou-separalhedarumsoconoolho,quandoumgarotocaiuberrandoentreeles.

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Sophie disparou na direção oposta e, quando olhou para trás, o GarotoFurãojátinhasumido.

Atravésdaneblina,Sophieviasombrasquenadavamporentremalasebaúsflutuantes,embuscadesuasbagagens.Osqueconseguiamencontrá-lascontinuavamadescerpelacorrenteza,emdireçãoauivosagourentosàdistância. Sophie seguiu aquelas silhuetas até que a neblina dissipou-se,revelandoamargem,ondehaviabandosdelobosempénaspatastraseiras,com jaquetas vermelhas de soldados e calças pretas de couro, estalandochicotesdemontariaparajuntarosalunosemfila.

Sophieagarrou-seàmargemparasairdali,masgelouaoverseureflexonofosso.Seuvestidoestavamergulhadoemlama,seurostobrilhavacomolodopegajosoeseuscabeloshaviamsetransformadoemumlarparaumafamíliademinhocas.Elaengasgou,tentadorespirar...

“Socorro!Estounaescolaerrad...”Umloboarrancou-aparaforaechutou-aparaentraremfila.Elaabriua

boca para reclamar, mas viu o Garoto Furão nadando em sua direção,gritando:“Esperepormim!”.

Rapidamente, Sophie juntou-se à fila de garotos sombrios quearrastavam seus baús pela neblina. Se algum deles demorasse um poucomais, um lobo dava uma chicotada no chão; então, ela manteve o ritmoirrequieta, o tempo todo alisando o vestido, retirando minhocas, elamentandoporsuasmalastãobemfeitasqueestavamagoramuito,muitodistantes.

Os portões enormes eram feitos de lanças de ferro entremeadas comaramefarpado.Aoaproximar-se,elaviuquenãoeraarame,masummardevíboras negras, que chiavam e avançavam em sua direção. Dando umgritinho,Sophiefoipassandoenquantoolhavaparatrás,lendoaspalavrasenferrujadasacimadosportões,entredoiscisnesnegrosentalhados:

ESCOLAPARAEDIFICAÇÃODOMALEPROPAGAÇÃODOPECADO

Logo adiante, a torre da escola erguia-se como um demônio alado. Atorreprincipal,construídacompedrasnegrassulcadas,irrompiaemmeioàsnuvenssombriascomoumtorsogrosseiro.Desuaslateraiserguiam-sedois pináculos grossos e retorcidos que gotejavam, com trepadeirasvermelho-sanguecomoasasensanguentadas.

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Oslobosconduziamascriançasemdireçãoàportadatorreprincipal,umtúnellongoeserrilhado,quetinhaaformadeumfocinhodecrocodilo.Sophiesentiuarrepiosquandootúnelfoiestreitando-secadavezmais,atéqueelamalconseguiaenxergaracriançaqueestavaàsuafrente.Elaestavaespremidaentreduasrochaspontiagudas,eseviuemumsaguãorepletodegoteiras,quecheiravaapeixepodre.Gárgulasdemoníacaspendiamdevigasdepedra,comtochasacesasemsuasmandíbulas.Aestátuadeumabruxacarecaebanguelaqueseguravaumamaçãreluziasobaluzdofogo.Ao longo domuro, uma coluna em ruínas ostentava uma imensa letraNpreta,decoradacomduendes,trollseharpiasquesubiamedesciam,comoem uma árvore. Na coluna seguinte havia uma letraU vermelho-sangue,adornada com gigantes e goblins se balançando. Rastejando ao longo dafila,SophiepercebeuqueascolunasformavamapalavraN-U-N-C-A.Então,ela subitamente viu-se dentro o suficiente na sala para que pudesseenxergar a fila que serpenteava à sua frente. Pela primeira vez, ela teveumavisãoclaradosoutrosalunos,equasedesmaiou.

Haviaumameninaterrivelmentedentuça,comtufosralosdecabelo,eemvezdedoisolhosela tinhasomenteum,bemnomeioda testa.Outrogaroto era como um monte de massa, com uma barriga protuberante,carecaecomosmembrosinchados.Umameninaaltaeirônicaarrastava-seà sua frente, e tinhaumapeleverde,doentia.Ogarotoà sua frente tinhatantopelonocorpoquepoderiapassarporummacaco.Todospareciamteremtornodesuaidade,masassemelhançasterminavamaí.Aliestavaumamassadecorposhorríveisedefeituosos,rostosrepulsivoseasexpressõesmaiscruéisqueelajátinhavisto,comoseprocurassemalgoparaodiar.Umaum,seusolhosrecaíramsobreSophie,eelesencontraramoqueestavamprocurando. A princesa petrificada de sapatinhos de cristal e cachosdourados.

Arosavermelhaentreosespinhos.

Dooutroladodofosso,Agathaquasematouumafada.Ela despertou debaixo de lírios vermelhos e amarelos que pareciam

estar em uma animada conversa. Agatha teve certeza de que ela era oassunto,poisasfloresgesticulavambruscamenteapontandoparaelacomsuas folhas e botões. Depois, porém, a questão pareceu se resolver, e asflores curvaram-se, como avós meticulosas, e enrolaram suas hastes ao

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redorde seuspunhos. Comumpuxão elas colocaram-na empé eAgathaobservouumcampodemeninasquefloresciamexuberantementeaoredordeumlagofulgurante.

Agathanãopodiaacreditarnoquevia.Asmeninasbrotavamdaterra.Primeiro, as cabeças espetavam para fora, saindo da terra; depois, ospescoços e os peitos iam subindo, subindo, até que elas esticavam seusbraçosparacima,nadireçãodocéuazuladoefofo,eplantavamsapatinhosdelicadossobosolo.Contudo,nãofoiavisãodasgarotasquebrotavamquemaisabateuAgatha.Foio fatodequeessasmeninasnãosepareciamemnadacomela.

Suas faces, algumas claras e outras escuras, eram irretocáveis, ereluziam de tanta saúde. Elas tinham cabelos brilhantes que caíam emcascatas,lisosoucacheadoscomoosdebonecas,eusavamvestidoscordepêssego,amarelosebrancos,comoumafornadafrescadeovosdepáscoa.Algumas eram mais baixas, outras magras e altas, mas todas tinhamcinturinhasfinas,pernasesguiaseombrosestreitos.Àmedidaqueocampoiaflorescendocomnovasalunas,umgrupodetrêsfadasdeasascintilantesesperava por elas, uma a uma. Cantando e brilhando, elas espanavam apoeiradasmeninas,serviam-lhesxícarasdechá,ecuidavamdeseusbaús,quetinhambrotadodosolo,comsuasdonas.

Deondeexatamenteessasbeldades tinhamvindo,Agathanão fazia amenor ideia. Tudo o que ela queria era que alguma desgrenhadadespontasse da terra para que ela não se sentisse tão deslocada. Noentanto, eraumbrotar incessantedeSophies, que tinham tudooqueelanãotinha.Umavergonhafamiliarapertousuabarriga.Elaprecisavadeumburacoondeseenfiar,umcemitérioondeseesconder,algoparafazercomquetodaselassumissem...

Foiquandoafadaamordeu.“Quediabos...”Agathatentousacudirdesuamãoaquelacoisaquezunia,maselavoou

e mordeu seu pescoço, e depois seu traseiro. Outras fadinhas tentavamdissuadir a malvada enquanto ela gritava, mas ela também as mordia evoltavaaatacarAgatha.Enfurecida, tentoupegara fadinha,porémela semoviatãodepressacomoumraio,então,elapulavainutilmentedeumladoparaoutroenquantoafadinhaamordia,atéqueelavoousemquererparadentrode suaboca, eAgatha a engoliu.Agatha suspirou aliviada e olhouparacima.

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Sessenta lindas meninas olhavam-na, boquiabertas, um gato em umninhoderouxinóis.

Agatha sentiu um beliscão na garganta e tossiu a fadinha. Para suasurpresa,eraummenino.

À distância, sinos ecoavam suavemente dos espetaculares castelos devidrocor-de-rosaeazul,dooutroladodolago.Osgruposdefadaspegaramtodasasmeninaspelosombroselevaram-naspeloar,voandoporcimadolagonadireçãodas torres.Agathapercebeuque era sua chancede fugir,mas, antes que saísse correndo, foi içada por duas fadinhas. Enquantovoava, ela olhou para trás e viu a terceira fada, o menino-fada que amordera, fincando seus pés no solo. Ele cruzou os braços e sacudiu acabeça,comosedissesse,deformainequívoca,queumerroterrívelhaviasidocometido.

Quandoasfadaspousaramasmeninasdiantedocastelodevidro,elassoltaramseusombrosedeixaramqueseguissemlivremente.Asduasfadasde Agatha, porém, continuaram a segurá-la, conduzindo-a para a frentecomoumaprisioneira.Agathaolhoupara trás,paraooutro ladodo lago.OndeestáSophie?

Aáguacristalina transformava-seem fosso lodosodametadedo lagopara a frente; uma neblina cinzenta obscurecia o que havia na margemoposta.SeAgathafossesalvaraamiga,teriadeacharumjeitodeatravessaraquelefosso.Noentanto,primeiro,elaprecisavaafastar-sedaquelaspestesaladas.Elaprecisavadeumadistração.

Palavrasespelhadasemarcoacimadosportõesdouradosdiziam:

ESCOLAPARAAILUMINAÇÃONOBEMENOSENCANTAMENTOS

Agatha viu seu reflexo nas letras e desviou o olhar. Ela detestavaespelhoseevitava-osaqualquercusto.(Porcosecãesnãoficamseolhandoporaí,elapensou.)Seguindoemfrente,Agathadeuumaolhadaparacima,paraasportasdevidrojateadodocastelo,ornadaspordoiscisnesbrancos.Contudo,quandoasportasseabrirameasfadasguiaramasmeninasporumcorredorapertadodeespelhos,afilasubitamentefreou,eumgrupodemeninascercou-a,comotubarões.

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Elas encararam-na por um momento, como se esperassem quearrancasse a máscara e revelasse a verdadeira princesa que havia porbaixo. Agatha tentava encará-las, mas, em vez disso, viu o próprio rostorefletidomilvezesnoespelho,einstantaneamentegrudouosolhosnochãodemármore.Algumas fadaszuniamparadispersaraaglomeração,masamaioriaapenaspousavanosombrosdasmeninaseobservava.Finamente,uma das meninas deu um passo à frente. Ela tinha cabelos louros até acintura,lábioscarnudoseolhosdetopázio.Eratãolindaquenempareciareal.

“Olá,eusouaBeatrix”,eladisse,amavelmente.“Eunãoouviseunome.”“Éporqueeunãofalei”,disseAgatha,comosolhosfixosnochão.“Você tem certeza de que está no lugar certo?”, perguntou Beatrix,

aindamaismeiga.Agathasentiuumapalavrarondandosuamente–umapalavradaqual

elaprecisava,masqueaindaestavaembaçadademaisparaqueenxergasse.“É,eu,é....”“Talvezvocêtenhasimplesmentenadadoparaaescolaerrada”,Beatrix

sorriu.Apalavraacendeu-senacabeçadeAgatha.Distração.Agathaolhouparacima,paraosolhosdeslumbrantesdeBeatrix.“Esta

éaEscoladoBem,nãoé?Alendáriaescolaparameninaslindasedignas,destinadasaseremprincesas?”

“Ah”,disseBeatrix,apertandooslábios.“Entãovocênãoestáperdida?”“Ouconfusa?”,perguntououtra,quetinhatraçosárabes,pelemorenae

cabelosnegros.“Oucega?”,perguntouumaterceira,comcachosruivos.“Nesse caso, tenho certeza de que você está com seu passe para o

JardimdasFlores”,disseBeatrix.Agathapiscou.“Meuoquê?”“Seubilhetedeentradaparao JardimdasFlores”,disseBeatrix. “Você

sabe,omodopeloqualtodaschegamosaqui.SomentealunasoficialmenteaceitastêmbilhetesparaentrarnoJardimdasFlores.”

Todas as garotas ergueram seus bilhetes dourados, ostentando seusnomesemumacaligrafiaprópriadarealeza,comoselodecisnespretoebrancodoDiretordaEscola.

“Aaah,essepassedoJardimdasFlores...”,Agathazombou.Elaenfiouasmãosnosbolsos.“Aproximem-seeeulhesmostrarei.”

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As meninas juntaram-se, desconfiadas. Enquanto isso, as mãos deAgatha remexiam seus bolsos, em busca de uma distração – fósforos...moedas...folhassecas...

“É...maisperto.”As garotas aproximaram-se, murmurando. “Não deveria ser tão

pequenoassim”,Beatrixdisseirritada.“Encolheu durante a lavagem”, disse Agatha, revirando os fósforos,

chocolate derretido, um passarinho sem cabeça (Reaper o escondera nomeiodesuasroupas).“Estáaqui,emalgumlugar...”

“Talvezvocêtenhaperdido”,disseBeatrix.Bolasdenaftalina...cascasdeamendoim...outropássaromorto...“Oucolocadoemoutrolugar”,sugeriuBeatrix.Opássaro?Ofósforo?Acendoopássarocomofósforo?“Oumentidosobreterum.”“Ah,agoraestousentindo...”MastudooqueAgathasentiaeraumacoceiranervosaemseupescoço...“Vocêsabeoqueacontececomintrusas,nãosabe?”,perguntouBeatrix.“Aquiestá...”Façaalgumacoisa!Asmeninasrodeavam-na,sinistramente.Façaalgoagora!Elafezaprimeiracoisaquelheocorreu,quefoisoltarumpumrápidoe

sonoro.Umadistraçãoeficazcriatantoopânicoquantoocaos.Agathacriouos

dois. O cheiro vil emanava pelo corredor apertado, enquanto as garotasgritavamecorriam,eas fadasdesmaiavamaoprimeiroodor,deixandoocaminho livre até a porta. Somente Beatrix bloqueava o seu caminho,chocada demais para se mexer. Agatha deu um passo em sua direção einclinou-separaafrentecomoumlobo.

“Bu!”Beatrixsaiucorrendo.Enquanto Agatha disparava rumo à porta, ela olhou para trás,

orgulhosa, vendo as meninas trombarem nas paredes e pisotearem-setentando fugir. Com o pensamento fixo em salvar Sophie, ela irrompeupelas portas de vidro jateado, e correu para o lago. Entretanto, na horaexata em que chegou lá, a água ergueu-se em uma onda gigante, quearrebentou lançando-a de volta pelas portas, pelas garotas que gritavam,fazendo-aaterrissar,debruços,emumapoça.

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Elalevantou-secambaleandoecongelou.“Bem-vinda,NovaPrincesa”,disseumaninfa flutuantededoismetros

dealtura.Elachegouparaolado,revelandoumsaguãotãomagníficoqueAgathaperdeuoar.“Bem-vindaàEscoladoBem!”

Sophienãoconseguiasuportarofedordolugar.Enquantoarrastava-sepela fila, tinhaânsiasdevômitoporcausadocheiro,ummistodecorpossembanho,pedraslamacentaselobosfedorentos.Elaficounaspontasdospés para ver para onde a fila se dirigia, mas só conseguiu enxergar umdesfile intermináveldeaberrações.Osoutrosalunosolhavamparaeladecarafeia,maselaretribuíacomseusorrisomaisgentil,nocasodetudonãopassardeumteste.Tinhaqueserumteste,oupiada,oualgodotipo.

Elavirou-separaumlobocinza.“Nãoqueeuestejaquestionandoasuaautoridade,maseupoderiaveroDiretordaEscola?Achoqueele...”Oloborugiu,encharcando-adecuspe.Elanãoinsistiu.

Seguiu cabisbaixa na fila até uma antessala rebaixada, na qual haviatrês escadarias pretas perfeitamente alinhadas, em espiral. Uma delas,entalhadacommonstros,diziaMALÍCIAaolongodocorrimão;asegunda,cravejada com aranhas, dizia INJÚRIA; e na terceira, com cobras, lia-seVÍCIO. Ao redor das três escadarias, Sophie notou que as paredes eramcobertas com molduras de cores diferentes. Em cada moldura havia oretratodeumacriança,aoladodeumailustraçãodeumlivrodecontosdefadas,quemostravanoqueoalunohaviasetransformadoapósformar-se.Umamoldura dourada trazia a foto de uma garotinha duende e, ao ladodesta,umdesenhomagníficodelacomoumabruxarevoltantesobreumadonzelaemcoma.Umaplacadouradaestavaembaixodasduasilustrações:

CATHARINEDEFOXWOODBrancadeNeve(Vilã)

Amolduradourada seguinte traziao retratodeumgarotoque sorriamaliciosamente,comsobrancelhasgrossaseemendadas,aoladodeoutrapinturadele,jáadulto,colocandoumafacanopescoçodeumamulher:

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DROGAN,DEMONTANHASMURMURANTES

BarbaAzul(Vilão)

Abaixo de Drogan, uma moldura de prata mostrava um meninomagricela, de cabelos louros espetados, transformado em um dos dozeogrosqueatacavamumavila:

KEIRDENETHERWOODTomThumb(Ocorcunda)

Então,Sophienotouumamolduracordebronzeenvelhecido,naparteinferior, com um garotinho pequeno, careca, de olhos arregalados eassustados.Umgarotoqueelaconhecia.SeunomeeraBane.ElecostumavamordermeninasbonitasemGavaldon,atéserraptado,quatroanosantes.Contudo, não havia desenho ao lado de Bane. Apenas uma placaenferrujadaquedizia:

FRACASSOU

Sophie olhou o rosto aterrorizado de Bane e sentiu um aperto noestômago. O que teria acontecido com ele? Ela olhou para cima, vendomilhares de molduras de ouro, de prata e de bronze, que cobriam cadacentímetro do corredor: bruxas assassinando príncipes, gigantesdevorando homens, demônios ateando fogo em criancinhas, ogroshediondos, górgonas grotescas, cavaleiros sem cabeça, impiedososmonstros marinhos. Um dia eles haviam sido adolescentes esquisitos.Agora, eram retratos do mal absoluto. Até os vilões que haviam sofridomorteshorrendas–Rumpelstiltskin,oGigantedoPédeFeijão,oLoboMauda história de Chapeuzinho Vermelho – estavam desenhados em seusmelhores momentos, como se tivessem emergido triunfantes de suasfábulas. Sophie sentiu outro aperto nas vísceras quando notou os outrosalunosolhandoosretratoscomlouvoresdeadmiração.Foiquandoelacaiu

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em si, com uma clareza de arrepiar. Ela estava em uma fila com futurosassassinosemonstros.

Sophie começou a suar frio. Precisava encontrar algum membro docorpodocente.Alguémquepudesseolharalistadealunosmatriculadoseverqueelaestavanaescolaerrada.Atéagora,porém,sóencontraralobosquemalsabiamfalar,muitomenoslerumalista.

Aovirar-separaentraremumcorredormaislargo,Sophieviuumanãochifrudo de pele vermelha em cima de uma escadinha, pregando maisretratos em uma parede vazia. Ela cerrou os dentes com esperança, aoaproximar-sedelenafila.Quandotentouchamarsuaatenção,subitamentenotou que asmolduras na parede continham rostos conhecidos. Havia ogaroto glutão que ela vira mais cedo e, abaixo dele, o nome BRONE, DEROCHBRIAR.Aoseulado,umdesenhodeumameninadeumolhosóedecabelos ralos:ARACHNE,DE FOXWOOD. Sophie olhouos retratos de seuscolegasdeclasse,esperandosuastransformaçõesvilãs.SeusolhospararamnoGarotoFurão.HORT,DE BLOODBROOK.Hort. Parecia nome de doença.Elaseguiunafila,prontaparachoramingarparaoanão...

Entãoviuamolduraembaixodeseumartelo.Seuprópriorostosorriaparaela.Sophie deu um grito agudo, saiu correndo da fila, subiu a escada em

disparada, e arrancouamolduradasmãosdoanãoestarrecido. “Não!Euestou na Escola doBem!”, ela gritou,mas o anão arrancou amoldura devoltaeosdoisbrigarampeloretrato,trocandochutesepuxandooquadro,atéqueSophie ficou fartaedeu-lheumbofetão.Oanãogritoucomoumagarotinha,evoltou-separaelacomseumartelo.Sophieesquivou-se,masperdeuoequilíbrio,eaescadabalançouecaiuentreasparedes.Penduradanoarsobreosdegraus,elaolhouparabaixo,vendooslobosquerosnavame os alunos com olhos arregalados – “Eu preciso falar com o Diretor daEscola!”–,depois,amãodelasoltou-seeeladeslizoupelaescada, caindosobreummontedeestudantesnafrentedafila.

Umabruxadepeleescura,ecomumenormefurúnculonorosto,atirouumafolhadepergaminhoemsuasmãos.

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Sophie olhou para cima, pasma. “Eu a vejo na sala de aula, Bruxa deAlém da Floresta”, grasnou a bruxa velha. Antes que Sophie pudesseresponder,umogrosoltouumapilhadelivrosamarradosemsuasmãos.

Osmelhoresmonólogosvilanescos–2ª.ediçãoFeitiçosparasofrimento,Ano1GuiaderaptoeassassinatoparainiciantesAbraçandoafeiura–PordentroeporforaComocozinharcrianças(comnovasreceitas!)

Comoseoslivrosjánãobastassem,Sophieviuqueafitaqueamarravaopacoteeraumaenguiaviva.Elagritouederrubouoslivros,logoantesdeum sátiro jogar um pano preto embolorado em cima dela. Quando odesenrolou,Sophieencolheu-seaoverumatúnicavelhaeesfarrapada,quemaispareciaumacortinarasgada.

Elaolhouparaasoutrasmeninas,quevestiamalegrementeouniformepútrido enquanto examinavam os livros e comparavam a grade de

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matérias. Sophie lentamente olhou para baixo, para sua túnica preta efedorenta.Depois,paraseuslivroseparaatabeladehoráriosmeladospelaenguia.E,finalmente,paraseuretratosorridente,devoltaàparede.

Elasaiuemdisparada.Agatha sabia que estava no lugar errado, porque até os professores

lançavam-lhe olhares confusos. Juntos, eles perfilavam as quatro escadasemespiral,duascor-de-rosaeduasazuis,nosaguãoenvidraçado,jogandoconfetes nos novos alunos. As professoras usavam versões de coresdiferentes do mesmo modelo de vestido justo, de gola alta, com umemblemade cisneprateadonopeito.Cadaumadelashavia acrescentadoumtoquepessoalaovestido,comocristaisincrustados,floresdemiçangasouatéumlaçodetule.Osprofessores,porsuavez,usavamuniformesemum arco-íris de tonalidades, combinados com coletes, gravatas finas elenços coloridos nos bolsos, que também tinham bordados os mesmoscisnesprateados.

Agathalogonotouquetodoseleserammaisatraentesdoquequalqueradultoqueelajáhaviavisto.Atéosdocentesmaisvelhoseramelegantesaponto de intimidar. Agatha sempre havia tentado convencer-se de que abeleza era sem sentido por ser temporária. Ali estava a prova de queduravaparasempre.

Osprofessorestentaramdisfarçarseuscutucõesecochichosaoverema aluna encharcada e deslocada, mas Agatha já estava acostumada aperceberessascoisas.Então,elanotouumprofessorquenãoeracomoosoutros. Juntoaumvitral,vestindoumternoverde,decabelosgrisalhoseolhos brilhantes cor de mel, ele a olhava como se ela combinasseperfeitamente com o lugar. Agatha ficou vermelha. Qualquer um que aconsiderasse compatível com aquele lugar só poderia ser maluco.Desviandooolhar,consolou-secomasmeninasqueaolhavamfixamente,equeclaramentenãohaviamdesculpadooincidentedohall.

“Ondeestãoosmeninos?”Agathaouviuumadelasperguntaràoutra,enquanto aglomeravam-se diante de três ninfas enormes, com cabelos elábiosnéon,queentregavamaelassuasprogramações,livrosetúnicas.

EnquantoAgathaseguiaatrásdelasnafila,elapôdevislumbrarmelhoromajestososalãodasescadarias.AparedeemfrenteaelatinhaumimensoS cor-de-rosa, com adoráveis anjinhos pintados ao redor. As outras trêsparedestambémtraziamletraspintadas, formandoapalavraSEMPRE emrosa e azul. As quatro escadas em espiral eram posicionadas

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simetricamente nos cantos de cada parede, iluminadas por vitrais altos.Uma das duas escadas azuis tinha a palavra HONRA inscrita em seubalaústre, junto a desenhos de cavaleiros e reis gravados no vidro,enquantoaoutradiziaCORAGEM,decoradacomrelevosazuisdecaçadorese arqueiros. As duas escadas rosadas tinham as palavras PUREZA eCARIDADE inscritas emdourado, junto a frisos delicados esculpidos comdonzelas,princesaseanimaisdóceis.

Nocentrodasala,retratosdeex-alunoscobriamumaltíssimoobeliscodecristal,desdeochãodemármoreatéaclaraboiaabobadada.Noaltodoobelisco ficavam, emoldurados em dourado, os retratos dos alunos quetinham se tornado príncipes e princesas após a formatura. Na parte domeio,emmoldurasprateadas,estavamosquehaviamtidodestinosmenosnobres, tornando-se auxiliares animados, donas de casa zelosas, e fadasmadrinhasbondosas.Epertodabasedopilar,cobertosdepoeira,estavam,emmoldurasdebronze,osque tiverambaixodesempenhoe terminaramcomo criados e serventes. Entretanto, independentemente de terem setornadoaRainhadaNeveoua limpadorada chaminé,Agathaviaqueosalunos compartilhavam dos mesmos belos rostos, sorrisos bondosos eolhares expressivos. Ali, naquele castelo de vidro no meio da floresta, omelhor da vida havia se reunido a serviço do Bem. E lá estava ela, aSenhoritaInfeliz,aserviçodecemitériosepuns.

Agatha esperou com grande expectativa até finalmente chegar a umaninfa de cabelos cor-de-rosa. “Houve uma confusão!”, ela disse, ofegante,pingandoáguaesuor.“MinhaamigaSophieéquemdeveriaestaraqui.”

Aninfasorriu.“Tenteiimpedirqueelaviesse”,disseAgatha,comavozacelerando-se

pelaesperança,“masdeixeiopássaroconfuso,eagoraeuestouaquieelaestálánaoutratorre,maselaébonitaegostaderosaeeu...bem,olhepramim. Eu sei que vocês precisam de alunas, mas Sophie é minha melhoramiga,eseelaficareutenhoqueficar,enósnãopodemos ficar,portanto,porfavor,meajudeaencontrá-laparaquepossamosirpracasa.”

Aninfaentregou-lheumpedaçodepergaminho.

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Agathaficouolhandopasma.“Mas...”Umaninfadecabelosverdesatirou-lheumcestodelivros,algunsdeles

saindoparafora:

OprivilégiodabelezaConquistandoseupríncipeOmanualdaboaaparênciaPrincesacomumpropósitoDiscursoanimalI:latidos,relinchosegorjeios

Então, uma ninfa de cabelos azuis estendeu-lhe seu uniforme: umpavoroso vestido rosa tipo avental, terrivelmente curto e com mangasbufantes, para ser usado sobre uma blusa branca de renda, na qualpareciamfaltartrêsbotões.

Estarrecida, Agatha olhou para as futuras princesas à sua volta,apertandoseusvestidoscor-de-rosa.Olhouparaoslivros,quediziamquesua beleza era um privilégio, que ela poderia ganhar um príncipeprimorosoefalarcompássaros.Olhouparaagradedematérias,destinada

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aumameninabonita,graciosaegentil.Entãoergueuosolhosparaobeloprofessor,queaindaestavasorrindoparaela,comoseesperassegrandescoisasdeAgathadeGavaldon.

Agatha fez a única coisa que sabia fazer quando estava diante deexpectativas.

Subiu correndo a escada azul da Honra, passando por corredoresverde-água,comas fadinhastinindo furiosamenteatrásdela.Movendo-seruidosamente pelos corredores, irrompendo pelas escadas, ela não tinhatempoparaabsorveroqueestavavendo–pisofeitodejade,salasdeaulafeitasdedoces,umabibliotecadeouro–,atéquechegouaoúltimolancedeescadaedisparouporumaportadevidrojateadoparaotelhadodatorre.Àsua frente, o sol iluminava um jardim a céu aberto, com cercas-vivasesculpidas, de tirar o fôlego.AntesqueAgathapudesse sequer ver oqueeram as esculturas, as fadas irromperam pela porta, lançando-lhe teiasdouradas que saíam de suas bocas. Ela abaixou-se para escapar delas,rastejandocomouminsetopelascercas-vivascolossais.Ficandoempé,elasaltou para a escultura mais alta, de um príncipe musculoso que erguiauma espada acima de um lago. Escalou a espada de folhas até a ponta,dandochutesparaafastarasfadasqueatacavamembando.Rapidamente,porém,elastornaram-semuitas,elogoquecuspiramsuasredescintilantes,Agathanãoconseguiumaissesegurarnaespadaedespencouemdireçãoàágua.

Quandoabriuosolhos,elaestavacompletamenteseca.Olagoeraprovavelmenteumportal,porqueagoraelaestavadoladode

fora,sobumarcodeazul-celeste.Agathaolhouparacimaecongelou.Elaestava no final de umaponte estreita que se estendia através da neblinaespessa,rumoàtorreapodrecida,dooutroladodolago.Umaponteentreasduasescolas.

Lágrimasarderamemseusolhos.Sophie!ElapodiasalvarSophie!“Agatha!”Agatha estreitou os olhos e viu Sophie sair correndo da neblina.

“Sophie!”De braços estendidos, as duas meninas dispararam pela ponte, uma

gritandoonomedaoutra...Elasderamdecaracomumabarreirainvisívelecaíramnochão.Tontadedor,Agathaolhou,horrorizada,enquantooslobosarrastavam

Sophiepeloscabelos,devoltaparaaescoladoMal.

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“Vocêsnãoentendem”,Sophiegritou,vendoas fadas levaremAgatha.“Tudoissoéumengano!”

“Nãohánenhumengano”,umloborosnou.Elessabiamfalar,afinal.

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4Astrêsbruxasdoquarto66

Sophie não tinha certeza do motivo pelo qual seis lobos precisavampuni-la em vez de um, mas imaginou que seria para darmais ênfase aoocorrido. Eles prenderam-na em um espeto, enfiaram umamaçã em suaboca, e exibiram-na como um leitão de banquete, passando pelos seisandares do Salão da Malícia. Perfilando as paredes, novos alunosapontavam e riam, mas o riso transformava-se em caretas quando sedavamcontadequeaquelaaberraçãoderosaseriaumadesuascolegasdequarto.OslobosrebocaramaexasperadaSophie,passandopelasportas63,64, 65, e depois deram um chute na porta do dormitório 66, earremessaram-na lá dentro. Sophie entrou deslizando, até que seu rostobateuemumpécheiodeverrugas.

“Eulhedissequeelaficariacomagente”,disseumavozamarga.Ainda amarrada ao espeto, Sophie olhou para cima e viu uma garota

alta,decabelospretosoleososemechasruivas,batompreto,umaargolanonarizeumatatuagematerrorizantedeumdemôniochifrudoemvoltadopescoço.AgarotaficouencarandoSophiecomolhosnegrospetrificados.

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“ElaatétemocheirodosSempres.”“As fadas logopegarão issodevolta”,disseumavozdooutro ladodo

quarto.Sophie virou a cabeça e viu uma menina albina, de cabelos

branquíssimos, pele clara e olhos vermelhos caídos, que estava servindoum guisado de um caldeirão para três ratazanas pretas. “Pena. Nóspoderíamos cortar o pescoço e pendurar a cabeça no corredor paraenfeitar.”

“Quegrosseira”,disseumaterceira.Sophieviuumameninarisonha,decabeloscastanhos,sentadanacama,redondacomoumbalãodearquente,comumpicolédechocolateemcadaumadasmãosgorduchas.“Alémdisso,écontraasregrasmataroutrosalunos.”

“Quetalseapenasadesfigurarmosumpouquinho?”,disseaalbina.“Achoqueelaérevigorante”,dissearechonchuda,dandoumamordida

nopicolé.“Nemtodasasvilãsprecisamcheirareteraparênciadepressiva.”

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“Elanãoéumavilã”,disseram,simultaneamente,aalbinaeatatuada.Enquanto se contorcia para soltar-se das cordas, Sophie esticou o

pescoço e teve a primeira visão completa do quarto. Algum dia talveztivessesidoumasuíteaconchegante,antesquealguémateassefogoaele.Asparedesdetijolinhosestavamcarbonizadas.Haviamarcaschamuscadaspretas emarrons pelo teto, e o piso estava coberto por uma camada decinzas. Até os móveis pareciam queimados. Enquanto olhava, porém,Sophiepercebeuquehaviaumproblemaaindamaiorcomoquarto.

“Ondeestáoespelho?”,elasussurrou.“Deixe-meadivinhar”,debochouagarotatatuada.“ÉBela,ouAriel,ou

Anastasia.”“ParecemaisLindinhaouDocinho”,disseaalbina.“OuCinderela,ouAurora,ouJasmine.”“Sophie.” Sophie levantou-seemmeioaumanuvemde fuligem. “Meu

nomeéSophie.Eunãosouuma‘vilã’,nãosouumacoisa,esim,claramentenãopertençoaestelugar,portanto...”

A albina e a garota tatuada dobraram-se de tanto rir. “Sophie!” Asegundagargalhou.“Épiordoquequalquerumpoderiaimaginar!”

“Qualquer coisa chamada Sophie não pertence a este lugar”, disse aalbina.“Pertenceaumajaula.”

“Eupertenço àoutra torre”,disseSophie, tentandopermaneceracimadamaldadedelas,“motivopeloqualeuprecisoveroDiretordaEscola.”

“Preciso falarcomoDiretordaEscola”, aalbina imitou. “Que talpularpelajanelaeverseeleapega?”

“Vocêsnãotêmnenhumaeducação”,caçoouagorducha,debocacheia.“EusouaDot.EssaéHester”,eladisse,apontandoparaagarotatatuada.“Eesse raio de sol”, ela disse, apontando para a albina, “é Anadil.” Anadilcuspiunochão.

“Bem-vindaaoquarto66”,disseDot,fazendoumfloreiocomamãoquevarreuascinzasdacamavazia.

Sophieretraiu-seolhandooslençóiscomidosportraças,commanchasagourentas.“Agradeçoasboas-vindas,masrealmenteprecisoirandando”,ela disse, recuando até a porta. “Poderiam me indicar o escritório doDiretordaEscola?”

“Ospríncipesdevem ficar tãoconfusosquandoaveem”,disseDot. “Amaioriadasvilãsnãoseparececomprincesas.”

“Elanãoéumavilã”,resmungaramAnadileHester.

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“Preciso marcar um horário para vê-lo?”, pressionou Sophie. “Oumandarumbilhete,ou...”

“Você poderia voar, eu imagino”, disse Dot, tirando dois ovos dechocolatedobolso.“Masosstymphspodemcomê-la.”

“Stymphs?”,perguntouSophie.“Aquelespássarosquenosdeixaramaqui, amor”, disseDot enquanto

mastigava.“Vocêteriaquepassarporeles.Evocêsabecomoelesdetestamvilões.”

“Pelaúltimavez”,disparouSophie.“Eunãosouumavil...”Sonsecoaramnaescada.Eraumzunidotãodelicadoquesópoderiam

ser...Fadas.Elastinhamvindobuscá-la!Sophie conteveumgrito.Elanão se atreveria adizer àsmeninasque

seuresgateera iminente(quempoderiasaberoquãoseriamentehaviamfaladosobretransformá-laemumornamentodeparede).Elarecuouatéaportaeficououvindooszunidos,cadavezmaisaltos.

“Não sei por que as pessoas achamque princesas são bonitas”, disseHester,mexendoemumaverruganodedodeseupé.“Elastêmosnarizestãopequenos,comobotõezinhos,quedãoatévontadedearrancar!”

Fadas em nosso andar! Sophie queria começar a pular. Assim quechegasseaocastelodoBem,elatomariaobanhomaislongodesuavida!

“E seus cabelos são tão compridos”, disse Anadil, balançando umcamundongo morto para a sobremesa das ratazanas. “Dá vontade dearrancartudo.”

Agoraestãoaapenasalgunsquartosdedistância...“Eaquelessorrisosfalsos”,disseHester.“Eaquelaobsessãoporcor-de-rosa”,disseAnadil.Asfadasestãonaportaaolado!“Malpossoesperarparamataraminhaprimeira”,disseHester.“Hojeéumdiatãobomquantoqualqueroutro”,disseAnadil.Elas chegaram! Sophie inflou de alegria – nova escola, novos amigos,

novavida!Contudo,asfadasvoaramdiretopeloquarto.O coração de Sophiemurchou. O que aconteceu? Como podiam tê-la

esquecido?ElapassoucorrendoporAnadil, rumoàporta,escancarou-aedeudecaracomummontedepelosdelobo.Sophiedeuumpulopratrás,eHesterbateuaporta.

Page 53: Escola do bem e do mal

“Vocêfarácomquetodasnóssejamospunidas”,rosnouHester.“Maselasestavamaqui!Estavammeprocurando!”,gritouSophie.“Você tem certeza de que não podemos matá-la?”, disse Anadil,

observandosuasratazanascomeremocamundongo.“Então,dequelugardaflorestavocêé,amor?”,DotperguntouaSophie,

cheirandoumsapodechocolate.“Nãovenhoda floresta”, disse Sophie, impaciente, espiandopeloolho

mágico. Sem dúvida, os lobos haviam afugentado as fadas. Ela precisavavoltaràponteeencontrá-las.Entretanto,agorahaviatrêslobosvigiandoocorredor,comendoumarefeiçãodenabosgrelhadosempratosdeferro.

Loboscomemnabos?Degarfo?Havia, porém, outra coisa esquisita nos pratos dos lobos: fadas

revirandoacomidadasferas.OsolhosdeSophiearregalaram-sedesusto.Umpequenomenino-fadaolhou-adecima.Eleestámevendo!Fazendo

uma concha com as mãos, Sophie fez mímica com os lábios “Socorro!”através do vidro. Omenino-fada sorriu, compreendendo, e cochichou noouvido do lobo. O lobo olhou para cima, viu Sophie, e estilhaçou o olhomágicocomumchutebrutal.Sophiecambaleouparatrás,ouvindoumcoroderisadinhaslevesegargalhadasrosnadas.

Asfadasnãotinhamnenhumaintençãoderesgatá-la.OcorpointeirodeSophiesacudia,estavaprestesaexplodirempranto.

Entãoelaouviualguémlimpandoagargantaevirou-se.As três meninas olhavam, boquiabertas, com expressões igualmente

confusas.“Oquequerdizercom‘vocênãovemdafloresta?’”,disseHester.Sophienãoestavaemcondiçõesderesponderaperguntasidiotas,mas

agora essas patetas eram sua única esperança de encontrar oDiretor daEscola.

“Eu venho de Gavaldon”, ela disse, contendo as lágrimas. “Vocês trêsparecem sabermuito deste lugar; portanto, eu ficaria grata se pudessemmedizerse...”

“IssoficapertodasMontanhasMurmurantes?”,perguntouDot.“Só as Nunca moram nas Montanhas Murmurantes, sua tola”,

resmungouHester.“Perto de Rainbow Gale, aposto”, disse Anadil. “É de lá que vêm as

Sempremaisirritantes.”

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“Desculpe, eu já estou perdida”, Sophie franziu o rosto. “Sempre?Nunca?”

“Aquele tipo Rapunzel trancada-numa-torre”, disse Anadil. “Explicatudo.”

“Sempreécomochamamosasbenfeitoras,amor”,DotdisseaSophie.“Sabe,todaaquelatolicedefelizesparasempre.”

“Então, isso faz de vocês ‘Nunca’?”, disse Sophie, lembrando-se dascolunascomasletras,nasaladaescadaria.”

“AbreviaçãodeNuncaMais,revelouHester.“Oparaísodosmalfeitores.NósteremospoderinfinitoemNuncaMais.”

“Controlaremosotempoeoespaço”,disseAnadil.“Assumiremosnovasformas”,disseHester.“Fragmentaremosnossasalmas.”“Conquistaremosamorte.”“Somenteosvilõesmaismalvadosconseguementrar”,disseAnadil.“E amelhor parte”, disseHester, “é que não há outras pessoas. Cada

vilãoganhaseureinoparticular.”“Solidãoeterna”,disseAnadil.“Pareceummartírio”,disseSophie.“Martíriosãoosoutros”,disseHester.“Agathaadorariaficaraqui”,Sophiemurmurou.“Gavaldon...issoficapertodePifflepafHills?”,perguntouDot,aérea.”“Ah,porDeus,nãoficapertodenada”,Sophiegemeu.Elasegurousua

programação, onde estava escrito, no alto, “SOPHIE, de ALÉM DAFLORESTAd”.“Gavaldonficaalémdafloresta.Cercadaporeladetodososlados.”

“AlémdaFloresta?”,disseHester.“Queméseurei?”,perguntouDot.“Nãotemosumrei”,disseSophie.“Quemésuamãe?”,perguntouAnadil.“Elamorreu”,respondeuSophie.“Eseupai?”,perguntouDot.“Eletrabalhanomoinho.Essasperguntassãobempessoais...”“Edequalfamíliadecontosdefadaselevem?”,perguntouAnadil.“E agora as perguntas se tornaram bem esquisitas. Nenhuma família

vemde um conto de fadas. Ele é de uma família normal, comproblemascomuns.Assimcomoosseuspais.”

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“Eusabia”,HesterdisseaAnadil.“Sabiaoquê?”,perguntouSophie.“Leitoressãoosúnicosquesãotolosassim”,AnadildisseaHester.Sophiesentiuseusangueesquentar.“Lamento,masnãosoueuatolase

sou a única pessoa aqui que sabe ler; então, por que não se olha noespelho?Issoseconseguirencontrarum...”

Leitora.Por que ninguém parecia sentir saudade de casa? Por que todos

nadaramemdireçãoaos lobosnofosso,emvezdefugiremetentaremsesalvar?Porquenãochamaramporsuasmãesoutentaramfugirdascobrasnoportão?Porquetodossabiamtantosobreaquelaescola?

Dequalfamíliadoscontosdefadaselevem?OsolhosdeSophiepousaramnocriado-mudodeHester.Aoladodeum

vasocomfloresmortas,deumavelaemformatodegarraedeumapilhadelivros – Passando órfãos para trás, Por que vilões fracassam, Os errosfrequentes das bruxas – havia um porta-retratos torto de madeira. Nele,haviaumdesenhode criança, comumabruxa grotescana frentedeumacasa.

Umacasafeitadepãodemeledoces.“Minhamãe foi ingênua”, disseHester, pegando o porta-retratos. Seu

rostorelutoucomalembrança.“Umforno?Porfavor.Erasócolocá-losnabrasa. Evita complicações.” Seu maxilar endureceu. “Eu vou me sairmelhor.”

OsolhosdeSophiepassaramparaAnadile seuestômagoembrulhou.Seu livrodecontosde fadaspredileto terminavacomumabruxarolandoemumbarrildepregos,atéquetudooquesobravadelaeraumapulseirafeitadeossinhosdemeninos.Agoraa talpulseiraestavanopulsodesuacolegadequarto.

“Conhece bem as bruxas, não?”, Anadil olhou de esguelha. “A vovóficarialisonjeada.”

Sophie virou-se para olhar um pôster acima da cama de Dot. Umhomem bonito, de verde, gritava, enquanto um executor cravava ummachadoemsuacabeça.

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“Opapaiprometeumedeixardaraprimeiramachadada”,disseDot.Sophieficouolhandoastrêscompanheirasdequarto,horrorizada.Elasnãoprecisavamlercontosdefadas,poisvinhamdeles.Tinhamnascidoparamatar.“UmaprincesaeLeitora”,disseHester.“Asduaspiorescoisasqueuma

pessoapodeser.”“NemosSempreaquerem”,disseAnadil.“Ouasfadasjáteriamvindo

buscá-la,aessaaltura.”“Maselastêmquevir!”,Sophiegritou.“EusouBoa!”“Bem, você está presa aqui, benzinho”, disse Hester, afofando o

travesseirodeSophie comumchute. “Portanto, sequer continuarviva, ébomtentarseadaptar.”

Adaptar-seàsbruxas!Adaptar-seaoscanibais!“Não!Ouçam-me!”,Sophieimplorou.“EusouBoa!”“Você não para de dizer isso.” Como um raio, Hester pegou-a pelo

pescoço e pendurou-a acima da janela aberta. “E, no entanto, não hánenhumaprova.”

“Eu doo espartilhos para bruxas velhas sem teto! Vou à igreja tododomingo!”,Sophieuivava,acimadaquedafatal.

“Mmm, nenhum sinal de fada madrinha”, disse Hester. “Tente outravez.”

“Eu sorrio para crianças! Canto para os pássaros!”, disse Sophie,engasgada.“Nãoconsigorespirar!”

“Nenhum sinal de Príncipe Encantado, tampouco”, disse Anadil,agarrando-lheaspernas.“Últimachance.”

“Eufizamizadecomumabruxa.DetãoBoaquesou!”“Ainda nada de fadas”, disse Anadil para Hester, enquanto elas a

erguiam.“Éelaquempertenceaestelugar,nãoeu!”,Sophiechoramingava...

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“Ninguém sabe por que o Diretor da Escola traz aberrações inúteiscomovocêparanossomundo”, estrilouHester. “Mas sópode serporummotivo.Eleéumtolo.”

“PergunteàAgatha!Elalhedirá!Elaéavilã!”“Sabe,Anadil,ninguémaindanosditouasregras”,disseHester.“Então eles não podem nos punir por transgredi-las”, Anadil sorriu,

entredentes.ElasergueramSophieacimadobeiral.“Um”,contouHester.“Não!”,Sophiegritava.“Dois...”“Vocêsqueremumaprova!Eulhesdareiumaprova!”,Sophiegritou...“Três.”“OLHEMPRAMIMEOLHEMPRAVOCÊS!”Hester e Anadil soltaram-na. Perplexas, elas se encararam, depois

olharamparaSophie,curvadanacama,ofegante,emmeioàslágrimas.“Eulhedissequeelaeraumavilã”,falouDot,mordendoumchocolate.De repente, começou um rebuliço do lado de fora do quarto, e as

meninasvoltaram-separaaporta.Elaseabriucomviolência,etrêslobosinvadiramoquarto,pegaram-naspeloscolarinhoselevaram-nas,emmeioaoestampidodealunosdeuniformesnegros.Osalunosacotovelavam-se,algunscaíamnamultidão,enãoconseguiramlevantar-se.Sophieagarrou-seàparede.

“Paraondevamos?”,elagritouparaDot.“ParaaEscoladoBem!”,disseDot.“Paraasboas-vindas...”,umgaroto

ogrochutou-aparaafrente.AEscoladoBem!Transbordandodeesperança,Sophieseguiuahorda

horrenda escada abaixo, alisando seu vestido rosa para o primeiroencontro com suas verdadeiras colegas de turma. Alguém pegou-a pelobraçoeempurrou-acontraobalaústre.Confusa,elaolhouparacima,paraum lobo branco cruel que segurava um uniforme preto que cheirava amorte.Elemostrouosdentes,comumsorrisoradiante.

“Não...”,Sophiesussurrou.Entãooloboresolveucuidarelemesmodaquestão.

EmboratodasasprincesasdaPurezativessemsidoacomodadasjuntasemdormitórioscombelichesparatrêspessoas,Agathaacabouficandocom

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umquartosóparaela.Umaescadariaemvidrocor-de-rosa ligavaoscincopisosdaTorreda

Pureza,espiraladaemumaréplicaesculpidadoscabelosintermináveisdeRapunzel.AportadoquartodeAgatha,noquintoandar, tinhaumaplacacintilante cobertapor corações: “Bem-vindas,Reena,Millicent eAgatha!”.Contudo, Reena e Millicent não ficaram. Reena, abençoada com lindostraçosárabes,pelemorenaeolhos cinzentosbrilhantes, esforçou-separadeslocar seu imenso baú para dentro do quarto, mas quando encontrouAgatha, decidiu levá-lo de volta para fora. “Ela parece tão má”, Agathaouviu-asoluçando.“Eunãoqueromorrer!”(“Venhaficarcomigo”,elaouviuBeatrix dizer. “As fadas entenderão.”) E, de fato, as fadas entenderam. Etambém entenderam quando a ruiva Millicent, de nariz arrebitado esobrancelhas finas, fingiu termedo de altura e demandou umquarto emum andar mais baixo. Portanto, Agatha ficou sozinha, o que a deixavacompletamenteàvontade.

O quarto, no entanto, deixava-a nervosa. Havia espelhos imensos,cravejados com joias, pendurados nas paredes cor-de-rosa. Muraiselaboradosexibiamlindasprincesasquebeijavampríncipeselegantes.Emcadaumadascamashaviaumdosselarqueadoemformatodecarruagemreal,cobertoporumasedabranca.Umgloriosoafrescodenuvenscobriaoteto, com cupidos sorridentes que lançavam flechas de amor. Agathaafastou-se o quanto pôde de tudo aquilo, e aninhou-se em um espaçoembutidonaparede,ondeficavaa janela,pregando-seàparederosacomseuvestidopreto.

Da janela ela podia ver o lago cintilante ao redor das Torres doBemtransformando-se em um fosso lodoso do outro lado, para proteger osMalvados.“BaíadoMeiodoCaminho”,eracomoasmeninasochamavam.Emmeioàneblinaprofundaficavaapontefinadepedrasqueatravessavaaágua,ligandoasduasescolas.Erapossívelvertudoaquilonafrentedosdoiscastelos.Masoqueseráquehaviaatrásdeles?

Curiosa, Agatha subiu no parapeito da janela, segurando-se em umaviga de vidro. Ela olhou para baixo, para a Torre da Caridade, com seupináculorosapontiagudo–ummovimentoemfalsoeelapoderiacair.Naspontasdospés,elafoiatéalateraldobeiral,esticouacabeçaparaolharaoredor, e quase caiu de tanta surpresa. Atrás da Escola do Bem e doMalhaviaumaimensaflorestaazulada.Árvores,arbustos,flores,tudoemtonsdeazul,desdeomaisclaroatéoíndigo.Oazulsuntuosodesfraldava-sepor

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umadistânciaetanto, ligandoospátiosdasduasescolas,atésercercado,portodososlados,poraltosportõesdourados.Alémdosportões,aflorestavoltavaaserverde,emergulhavanoesquecimentodaescuridão.

Aochegarparatrás,Agathaviualgonafrentedaescola,erguendo-seaocentrodaBaíadoMeiodoCaminho.Ficavabemnopontocentral,ondeaságuascintilanteselodosassemisturavam.Elamalconseguiaenxergaremmeio à neblina... havia uma torre fina e alta, de tijolinhos prateados. Asfadaszuniamemmassaemvoltadela,enquantooslobosmantinham-seemvigíliacomseusarcos,empésobreplataformasdemadeirapresasàbasedatorre,juntoàágua.

Oqueelesestavamprotegendo?Agathaespremeuosolhosparaverotopodatorrealtíssima,mastudo

oqueconseguiuenxergarfoiumaúnicajanelacobertapelasnuvens.Entãoaluzbateunajanela,eelaaavistou.Ocontornodasilhuetasobo

sol.Asombratortaqueassequestrara.Seu sapato escorregou e ela sentiu o corpo pender para a frente em

direção àmortal torre da Caridade. Debatendo-se, ela agarrou a viga dajanela bemnahora, e despencoude volta para dentrodo quarto.Agathaesfregou o traseiro dolorido e virou-se depressa – mas a sombra haviasumido.

O coração dela batia mais depressa. Quem quer que fosse que astrouxerapara láestavanaquelatorre.Quemquerquefossequeestivessenaquelatorreeraquempoderiaconsertaraqueleenganoelevá-lasdevoltaparacasa.

Primeiro,porém,elaprecisavasalvarsuamelhoramiga.Algunsminutosdepois,Agatharecuoudeumespelho.Ouniformerosa

semmangasmostravapartesbrancasdeseucorpoquenuncatinhamvistoaluz.Agoladerendadeixavaàmostraaalergiaquesempresurgiaemseupescoço quando ficava ansiosa. Os cravos que enfeitavam as mangasfaziam-na espirrar, e os saltos altos cor-de-rosa pareciampernas de pau.Contudo,otrajehorrendoerasuaúnicachancedefugir.Seuquartoficavadoladoopostodaescadaria.Paravoltaràponteelaprecisavapassarpelocorredorsemsernotadaeescaparescadaabaixo.

Agathacontraiuomaxilar.Vocêprecisasemisturarcomosoutros.Elarespiroufundoeabriuumafrestanaporta.

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Cinquenta lindas meninas de uniformes cor-de-rosa abarrotavam ocorredor, rindo, fofocando, trocando vestidos, sapatos, bolsas, cremes, equalquercoisaquetivessemtrazidoemseusbaúsgigantescos,enquantoasfadas zuniam em volta delas, tentando, em vão, reuni-las para as boas-vindas. Em meio ao falatório, Agatha viu a escada na outra ponta. Sepassasseconfiante,elapoderiapartirantesqueavissem.Noentanto,nãoconseguiasemover.

Elahavialevadoavidainteiraparafazerumaúnicaamiga.Ealiaquelasmeninas tinham se tornadomelhores amigas emminutos, como se fazeramigos fosse a coisa mais simples do mundo. Agatha sentia seu corpoformigar de tanta vergonha. Mesmo naquela Escola do Bem, onde todostinhamdesergentiseamorosos,elatinhaacabadosozinhaedesprezada.Eraumavilã,independentementedolugaraondefosse.

Elabateuaporta,arrancouaspétalasdesuamanga,tirouossaltoscor-de-rosaejogou-ospelajanela.Entãodesmoronoucontraaparedeefechouosolhos.

Tire-medaqui!Elaabriuosolhoseteveumvislumbredeseurostohorrívelnoespelho

dourado. Antes que pudesse desviar os olhos, eles foram captados poroutracoisaemseureflexo.Umladrilhonoteto,comumcupidosorridenteligeiramenteforadolugar.

Agathaenfiouospésdevoltaemseussapatospretosabrutalhados.Elasubiu na cama e afastou o ladrilho, revelando uma saída de ventilaçãoescura, acima do quarto. Segurando-se nas bordas do buraco, girou umapernaparadentrodapassagem,edepoisaoutra,atéqueseviuagachadaemumaplataformaestreitadentrodeumduto.

Ela rastejou pela escuridão, com asmãos e os joelhos remexendo-secegamenteaolongodometalfrio,atéqueometaltornou-searderepente.Dessaveznãoconseguiusesalvar.

Caindo depressa demais para gritar, Agatha foi girando no duto,quicando pelos canos, e escorregou por saídas de ar até dar umacambalhota,passarporumagradeeaterrissaremumpédefeijão.

Ela agarrou-se ao caule largo e verde, grata por ainda estar inteira.Contudo,aoolharemvolta,viuquenãoestavaemumjardim,oufloresta,ounenhumoutrolugarondeumpédefeijãodeveriaestar.Estavaemumasala escura de teto alto, cheia de pinturas, esculturas e vitrines de vidro.

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Seus olhos encontraram as portas de vidro jateado em um canto, compalavrasdouradasgravadasnelas:

Agathadesceupelopédefeijão,atéqueseussapatostocaramochãodemármore.

Ummuralcobriaa longaparedecomavistapanorâmicadeumvastocastelo de ouro, com um príncipe elegante e uma linda princesa, recém-casados sob um arco reluzente, enquanto milhares de expectadoressacudiam sininhos e dançavam em comemoração. Abençoado pelo solradiante, o casal virtuoso beijava-se, enquanto anjinhos revoavam sobreeles,cobrindo-osderosasvermelhasebrancas.Bemacimadacena,letrasdouradas brilhantes destacavam-se, por trás das nuvens, estendendo-seportodoomural:

Agatha fezuma careta. Ela sempredebochoude Sophiepor acreditarem felizespara sempre. (“Quem vai querer ser feliz o tempo todo?”)Masolhando o mural, teve de admitir que aquela escola vendia essa ideiaassustadoramentebem.

Ela olhou para dentro de uma vitrine que guardava um livro fino, decaligrafia floral, com uma placa ao lado: BRANCA DE NEVE, EXAME DEFLUÊNCIA ANIMAL (Leticia de Maidenvale). Nas vitrines seguintes elaencontrouacapaazuldeummeninoquesetornouopríncipedeCinderela,otravesseirododormitóriodeChapeuzinhoVermelho,odiáriodaMeninadosFósforos,opijamadePinóquioeoutrosobjetosdealunoscelebridades,quepresumivelmenteseguiramsuacarreiradecasamentosecastelos.Nasparedes,encontroumaisdesenhosdoqueseriaoParaSempre, feitosporex-alunos, bem como uma exposição da história da escola, faixas emcomemoração a vitórias icônicas, e uma parede intitulada “Capitão daTurma”,repletadefotografiasdealunosdecadaturma.Omuseuiaficandomaisescuroàmedidaqueelaprosseguia,entãoelausouumdos fósforosparaacenderumlampião.Foiquandoviuosanimaismortos.

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Dezenas de criaturas empalhadas pairavam acima dela, presas àsparedes cor-de-rosa. Ela tirou a poeira das placas e descobriu o Gato deBotas, o rato predileto de Cinderela, a vaquinha vendida por João, ediversosnomesdecriançasquenãoforamboasobastanteparasetornarheroínas, auxiliares ou serviçais. Nada de felizes para sempre para eles.Apenasganchosnomuseu.Agathasentiuseusolharessinistrosdevidroesevirou.Foi somenteentãoqueelaviuaplaca reluzentenopéde feijão.HOLDENDERAINBOWGALE.Aquelaplanta infelizhaviasidoummeninoumdia.

O sangue de Agatha gelou. Todas essas histórias nas quais ela nuncahavia acreditado! Agora provavam ser dolorosamente verdadeiras. Emduzentosanos,nenhumacriançaraptadajamaisvoltaraaGavaldon.OqueafaziaacharqueelaeSophieseriamasprimeiras?Oqueafaziapensarqueelasnãoacabariamcomoumcorvoouumaroseira?

Entãoelalembrou-sedoqueastornavadiferentesdetodososoutros.Nóstemosumaàoutra.Elas precisavam trabalhar juntas para romper essa maldição. Ou

terminariamcomofósseisdeumcontodefadas.AatençãodeAgathadesviou-separaumcantoondehaviaumafileira

depinturasdomesmoartista,comasmesmascenas:criançaslendolivrosde contos de fadas, em nebulosas cores impressionistas. Quandoaproximou-se das pinturas, seus olhos se arregalaram. Porque elareconheciaolugardeondevinhamtodasaquelascrianças.

ElaseramdeGavaldon.Elafoidaprimeiraàúltimapintura,todasretratavamcriançasqueliam

juntoàscolinaseo lago,atorretortadorelógioea igrejafrágil, tãoseusconhecidos, e até a sombra de uma casa em Graves Hill. Agatha sentiapunhaladas de saudades de casa. Ela havia debochado das crianças,chamando-asdedoidasoudelirantes.E,nofinaldascontas,elassabiamoque ela não sabia: que a linha divisória entre as histórias e a vida real érealmentebemtênue.

Entãoelachegouàúltimapintura,quenãosepareciaemnadacomasoutras.Nela,criançasenfurecidasatiravamseus livrosdecontosde fadasem uma fogueira na praça, observando-os queimar. Ao redor delas, afloresta inteira ardia em chamas, preenchendo o céu com uma fumaçaviolenta, vermelha e preta. Olhando aquilo, Agatha sentiu arrepios naespinha.

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Vozes. Ela escondeu-se atrásdeuma imensa carruagemem formadeabóbora e bateu a cabeça em uma placa. HEINRICH, DE NETHERWOOD.Agathaengasgou.

Duas professoras entraram no museu, uma mais velha, de vestidoesverdeado de gola alta estampado com asas verdes reluzentes debesouros,eumamaisjovem,comumtrajeroxodeombreiraspontudas.Amulherdeverdetinhacabelosbrancoseusavaumcoquecolmeiatípicodeumaavó,mastinhaapeleluminosaecalmosolhoscastanhos.Amulherderoxotinhaoscabelospretospresosemumatrançacomprida,olhoscordeametistaeumapelelívidaeesticada.

“Eleestámanipulandoashistórias,Clarissa”,disseaderoxo.“ODiretordaEscolanãopodecontrolaroStorian,LadyLesso”,Clarissa

respondeu.“Eleestádoseulado,evocêsabedisso”,LadyLessodisse,agitada.“Elenãoestádoladodeninguém...”,Clarissaparou,derepente.Assim

comoLadyLesso.Agathaviuoqueelasestavamolhando.Aúltimapintura.“EstouvendoquevocêacolheuoutrodelíriodoprofessorSader”,disse

LadyLesso.“Agaleriaédele”,Clarissasuspirou.OsolhosdeLadyLessopiscaram.Magicamente,apinturasoltou-seda

parede e caiu ao ladodeuma redomade vidro, a poucos centímetrosdacabeçadeAgatha.

“Éporissoqueelesnãoestãonagaleriadesuaescola”,disseClarissa.“Qualquer um que acredita na Profecia do Leitor é um tolo”, estrilou

LadyLesso.“IncluindooDiretordaEscola.”“Um Diretor de Escola precisa proteger o equilíbrio”, disse Clarissa,

delicadamente.“ElevêosLeitorescomopartedesseequilíbrio.Mesmoquevocêeeunãosejamoscapazesdeentender.”

“Equilíbrio!”, debochou Lady Lesso. “Então por que o Mal não ganhauma fábuladesdequeele assumiu?PorqueoMalnãoderrotaoBemháduzentosanos?”

“Talvez meus alunos estejam apenas mais bem preparados”, disseClarissa.

LadyLessoolhou-afuriosamenteesaiuandando.Remexendoosdedos,Clarissacolocouapinturadevoltanolugar,ecorreuparaalcançá-la.

“TalvezsuanovaLeitoraprovequevocêestáerrada”,eladisse.

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LadyLessobufou.“Ouvidizerqueelavestecor-de-rosa.”Agathaouviuseuspassosdistanciarem-se.Elaolhouparacima,paraapinturaamassada.Ascrianças,a fogueira,

Gavaldonqueimandoatéochão.Oquesignificavatudoaquilo?Asas tremulantes ecoaram pelo ar. Antes que ela pudesse mexer-se,

fadinhasbrilhantesentraramde repentena sala, vasculhandocada frestacomose fossem lanternas.Dooutro ladodomuseu,Agathaviu asportasporondeasduasprofessorashaviamacabadodepassar.Nahoraemqueasfadas alcançaram a abóbora, ela saiu em disparada para lá. As fadasgritaram de surpresa, enquanto ela deslizava por entre três ursosempalhadoseescancaravaasportas...

Colegas de turma vestidas de rosa formavam duas filas perfeitas.Enquanto elas seguravam as mãos umas das outras e davam risadinhascomograndesamigas,Agathasentiuumavergonhaconhecidasurgir.Tudoemseucorpopediaqueela fechassenovamenteaportae seescondesse.Contudo, em vez de pensar em todas as amigas que não tinha, Agathapensounaquetinha.

Umsegundodepois,asfadasentraram,massóencontraramprincesasacaminho das boas-vindas. Enquanto as fadas sobrevoavam furiosamenteembuscadesinaisdeculpa,Agathaentrousorrateiramentenodesfilecor-de-rosa,mostrouumsorriso...etentousemisturar.

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5Garotosestragamtudo

CadaescolatinhaumaentradaseparadaparaoTeatrodasFábulas,queeradivididoemduasmetades.Asportasdo ladoesquerdodavamparaaseçãodosalunosdoBem,decoradocombancoscor-de-rosaeazul, frisosde cristal e buquês cintilantes de flores vitrificadas. O lado direito davapara a seção dos alunos do Mal, com bancos de madeira, entalhes deassassinatosetortura,eestalactitesmortaispenduradasnoteto.Àmedidaqueosalunosentravamemseus ladosparaasboas-vindas, as fadaseoslobosprotegiamoscorredoresdemármoreprateadoentreeles.Apesardeseu novo uniforme horrendo, Sophie não tinha nenhuma intenção de sesentar com oMal. Foi só dar uma olhada para asmeninas do Bem, paraseus cabelos brilhantes, sorrisos deslumbrantes e elegantes vestidos cor-de-rosa, e ela soube que havia encontrado suas irmãs. Se as fadas nãoviessemsalvá-la,suascolegasprincesascertamenteofariam.Comosvilõesempurrando-sepelocaminho,elatentouchamaraatençãodasmeninasdoBem, mas elas estavam ignorando o seu lado do auditório. Finalmente,Sophieabriucaminhopelocorredor,acenoucomosbraçoseabriuabocaparagritar,quandoumamãopuxou-aparadebaixodeumbancopodre.

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Agatha puxou-a para um abraço. “Eu encontrei a torre do Diretor daEscola!Ficanofossoetemguardas,massenósconseguirmoschegaratélá,podemos...”

“Oi! Que bom ver você! Dê-me suas roupas”, disse Sophie, olhando ovestidorosadeAgatha.

“Ahn?”“Rápido!Issovairesolvertudo.”“Vocênãopodeestarfalandosério!Sophie,nãopodemosficaraqui!”“Exatamente”, Sophie sorriu. “Eu preciso estar em sua escola e você

precisaestarnaminha.Exatamentecomoconversamos,lembra?”“Masseupai,minhamãe,meugato!”,Agathavociferou.“Vocênãosabe

comoeles são aqui! Eles vãonos transformar em cobras, ou esquilos, ouarbustos!Sophie,nósprecisamosvoltarpracasa!”

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“Por quê? O que eu tenho em Gavaldon para querer voltar?” disseSophie.

Agathaficoucoradademágoa.“Vocêtem...é,vocêtem...”“Certo.Nada.Agorameuvestido,porfavor.”Agathacruzouosbraços.“Então,eumesmavoupegá-lo”,Sophiefezumacareta.Noentanto,bem

nahoraemqueelaagarrouAgathapelafloremsuamanga,algoafezpararsubitamente.Sophieficouescutando,deouvidosatentos,epartiufeitoumapantera. Ela mergulhou embaixo dos bancos empenados, esquivando-sedospésdosvilões, abaixou-seatrásdoúltimobancoepôsa cabeçaparaforaparaespiar.

Agathafoiatrás,exasperada.“Nãoseioquedeuemvocê...”Sophie cobriu a boca de Agatha e ficou ouvindo os sons que foram

ficando mais altos. Sons que fizeram todas as meninas do Bem ficaremeretas.Sonspelosquaiselashaviamesperadoavidatoda.Docorredor,asbatidasdasbotas,otilintardoaço...

Asportasdoladoesquerdoforamescancaradasparasessentagarotosbelíssimoscomespadasempunho.

Todos tinhampelesbronzeadas,queerapossívelverpordebaixodasmangas azuis-claras e dos colarinhos engomados; botas de cano altocombinavam com os paletós acinturados e as gravatas finas de nós bemdados,cadaumadelasbordadacomumaúnica inicialdourada.Enquantoos meninos cruzavam as lâminas alegremente, suas camisas saíam dascalçasbegesjustas,revelandocinturasfinaselampejosdemúsculos.Osuorbrilhavanosrostos,enquantoelesselançavampelocorredor,comasbotasbatendonomármore,atéquerapidamentealutadeespadaschegouaoseuclímax,commeninosprendendooutrosmeninosjuntoaosbancos.Emumúltimocorodemovimento,elessacaramrosasdesuascamisas,ecomumgrito de “Milady!”, jogaram-nas às meninas que mais lhes chamaram aatenção.(Beatrixviu-secomrosassuficientesparaplantarumjardim.)

Agathaobservoutudoaquilocomenfado,masdepoisviuSophie,comocoraçãonagarganta,ansiandoporsuaprópriarosa.

Nos bancos decadentes, os vilões vaiavam os príncipes, mostrandofaixascomosescritos:“OSNUNCADOMINAM!”e“OSSEMPRENÃOESTÃOCOM NADA!” (Exceto por Hort cara-de-doninha, que cruzou os braçosemburrado e murmurou: “Por que eles têm direito a uma entradaespecial?”). Com uma reverência, os príncipes mandaram beijos para os

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vilões,eprepararam-separatomarseuslugares,quandoasportasdoladoesquerdosubitamenteescancararam-seumavezmais.

Emaisumentrou.Seus cabelos eram como um halo cor de ouro, seus olhos azuis

pareciam um céu sem nuvens, sua pele era da cor da areia quente dodeserto,eelereluziacomoumnobre,comoseosangueemsuasveiasfossemaispuroqueodosrestantes.Oestranhodeuumaolhadaparaosgarotosarmadoscomespadas,puxouasua...esorriu.

Quarenta meninos vieram para cima dele de uma só vez, mas eledesarmoucadaumdelescomavelocidadedeumraio.Asespadasdeseuscolegasdeclasseempilharam-seaosseuspés,enquantoeleosafastavasemcausar-lhes um só arranhão. Sophie sonhava acordada, boquiaberta,enfeitiçada. Agatha torcia para que ele se espetasse acidentalmente. Ela,porém,nãoteveessasorte,poisogarotodescartavacadanovodesafiocoma mesma rapidez que surgia, fazendo o T bordado em sua gravata azulreluzir a cada dança de sua espada. E quando o último dos príncipesquedou-se abismado e sem espada, ele embainhou a sua e sacudiu osombros, como se dissesse que aquilo não queria dizer nada. Contudo, osmeninos do Bem sabiam o que aquilo significava. Os príncipes agoratinhamumrei.(Nemosvilõesencontrarammotivosparavaiar.)

Enquanto isso, as meninas do Bem já sabiam que cada princesa deverdadeencontravaumpríncipe,portantonãohavianecessidadedebrigar.Entretanto, esqueceram-se daquilo quando o garoto dourado puxou umarosadacamisa.Todaselaspularam,acenandocomseuslencinhos,agitadascomogansosnahoradecomer.Omeninosorriueergueusuarosanoar.

Agatha viu Sophiemexer-se tarde demais. Ela correu atrás dela,masSophie disparou pelo corredor, pulou por cima dos bancos cor-de-rosa,saltouparaalcançararosae,emvezdisso,alcançouumlobo.

EnquantoelearrastavaSophiedevoltaparaoseulado,ela fixouseusolhosnosdomenino,que ficouanalisandoseubelorostoeseuhorrendouniforme preto. Ele inclinou a cabeça, perplexo. Depois ele viu Agathaespantada, de cor-de-rosa, com a rosa dele recém-caída na palma de suamão, e se retraiupelo choque.Enquantoo loboatirouSophieno ladodoMaleasfadasempurraramAgathaparaomeiodoBem,omenino,comosolhos arregalados, observava estupefato, tentando entender tudo. Então,umamãopuxou-oparasentar-se.

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“Oi.EusouBeatrix”,eladisse,fazendoquestãodequeelevissetodasassuasrosas.

DosbancosdoMal,Sophietentavachamarsuaatenção.“Transforme-seemumespelho.Então,vocêteráumachance.”Sophievirou-separaHester,queestavasentadaaoseulado.“O nome dele é Tedros”, disse sua colega de quarto. “E ele é tão

presunçosoquantoseupai.”Sophieestavaprestesaperguntarquemeraopaidele,masolhoupara

suaespadadepratareluzente,comumcabodediamantes.Eraumaespadacom uma empunhadura de leão que ela conhecia dos livros de histórias.UmaespadachamadaExcalibur.

“Ele é filho do Rei Arthur?”, Sophie sussurrou. Ela estudou asmaçãssaltadas do rosto de Tedros, seus loiros cabelos sedosos, seus lábiosgrossos e macios. Seus ombros largos e braços fortes preenchiam suacamisa,onódagravataestavadesfeitoeocolarinho,aberto.Elepareciatãoserenoetranquilo,comosesoubessequeodestinoestavaaseufavor.

Olhandoparaele,Sophiesentiuseuprópriodestinoencaixar-se.Eleémeu.Subitamente, ela sentiu um olhar apimentado do outro lado do

corredor.“Nósvamosparacasa”,Agathapronunciouclaramenteaspalavras.

“Bem-vindosàEscoladoBemedoMal”,disseacabeçamaisagradáveldasduas.

De seus lugares, em lados opostos do corredor, Sophie e Agathaacompanhavamo imenso cachorro, comduas cabeças presas a umúnicocorpo,andandodeumladoparaooutroemumpalcodepedrasprateadas,comumarachaduraaomeio.Umacabeçaeraraivosa,salivante,másculaecinzenta.Aoutraerabonitinha,comamandíbuladelicada,pelossedososeuma voz suave. Ninguém tinha certeza se a cabeça mais bonita era demachoou fêmea,mas independentementedoque fosse, elaparecia estarnocomando.

“SouPólux,líderdasboas-vindas,disseacabeçaagradável.“E EU SOU CÁSTOR, ASSISTENTE DE LÍDER DE BOAS-VINDAS,

EXECUTIVO E EXECUTOR DAS PUNIÇÕES DE QUALQUER UM QUE

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INFRINGE AS LEIS OU AGE COMO UM JUMENTO”, estrondou a cabeçaraivosa.

TodasascriançaspareciamtemerCástor.Atéosvilões.“Obrigado, Cástor”, disse Pólux. “Então, deixe-me lembrá-los por que

estamos aqui. Todos nascem com almas que são do Bem ou do Mal.Algumasalmassãomaispurasqueoutras...”

“EALGUMASSÃOUMAPORCARIA!”,latiuCástor.“Comoeuestavadizendo,dissePólux, “algumasalmassãomaispuras

queoutras,mastodasasalmassãofundamentalmenteBoasouMás.OsquesãoMausnãopodemtornarsuasalmasBoas,eosquesãoBonsnãopodemtornarsuasalmasMás...”

“PORTANTO, SÓ PORQUE O BEM ESTÁ GANHANDO TUDO, NÃOSIGNIFICAQUEVOCÊSPOSSAMMUDARDELADO”,rosnouCástor.

Os alunos Bons vibraram, “SEMPRE! SEMPRE!”; e os alunos do Malresponderam, “NUNCA!NUNCA!”, atéqueos lobosensoparamosSemprecombaldesdeágua,asfadas lançaramarco-írissobreosNunca,eosdoisladoscalaram-se.

“Novamente”,dissePólux,comseriedade,“osquesãoMausnãopodemserBonseosquesãoBonsnãopodemserMaus,nãoimportaquantosejampersuadidos ou punidos. Embora, às vezes, vocês possam sentir asvibrações de ambos, isso só significa que sua árvore genealógica temramificaçõesemqueoBemeoMalsemisturaram.AquinaEscoladoBemedo Mal nós vamos livrá-los dessas vibrações, libertá-los da confusão, etentarfazercomquesetornemomaispurospossível...”

“E, SEVOCÊSFRACASSAREM,VAIACONTECERALGOTÃORUIMQUEEUNEMPOSSOCONTAR,MASQUETEMAVERCOMNUNCAMAISSEREMVISTOS!”

“Mais uma e eu lhe ponho a focinheira!”, gritou Pólux. Cástor ficouolhandoparaaspatas.

“Tenho certeza de que nenhum destes alunos brilhantes fracassará”,Póluxsorriuparaascriançasaliviadas.

“Vocêdizissotodavez,esemprealguémfracassa”,resmungouCástor.Sophie lembrou-se do rosto amedrontado de Bane na parede, e

estremeceu.ElaprecisavairlogoparaoladodoBem.“Cada criança na Floresta Sem Fim sonha em ser capturada para

frequentarnossaescola.ODiretordaEscola,porém,escolheuvocês”,disse

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Pólux, dando uma olhada para os dois lados. “Pois ele olhou dentro docoraçãodevocês,eviualgomuitoraro.BemPuroeMalPuro.”

“Sesomostãopuros,entãooqueéaquilo?”Umgarotolouroendiabradoedeorelhaspontudaslevantou-se,nolado

doMal,eapontouparaSophie.Ummenino corpulento, do Bem, apontou para Agatha. “Nós também

temosuma!”“Anossacheiraaflores!”,gritouumvilão.“Anossacomeuumafada!”“Anossasorridemais!”“Anossasoltouumpumnanossacara!”Sophievirou-separaAgatha,perplexa.“Emtodasasturmas,nóstrazemosdoisLeitoresdeAlémdaFloresta”,

declarouPólux.“Elespodemconhecernossomundosomentededesenhosedos livros,mas conhecemnossas regras tãobemquantovocês.Têmosmesmostalentoseobjetivos,omesmopotencialparaaglória.Algunsdelesjáforamnossosmelhoresalunos.”

“Comoháduzentosanos”,Cástorbufou.“Elasnãosãodiferentesdevocês”,dissePólux,nadefensiva.“Parecembemdiferentes do restante de nós”, disse um vilão de pele

morenaeoleosa.Os alunos dos dois lados murmuraram, concordando. Sophie ficou

olhando para Agatha, como se dissesse que aquilo poderia ser resolvidocomumasimplestrocadetrajes.

“NãoquestionemasseleçõesdoDiretordaEscola”,dissePólux.“TodosvocêsrespeitarãounsaosoutrosindependentementedeseremdoBemoudo Mal, vindos de famílias de histórias famosas ou que fracassaram,príncipes respeitáveis ou Leitores. Todos vocês são escolhidos paraproteger o equilíbrio entre o Bem e o Mal. Pois, se esse equilíbrio forcomprometido...”Seurostotornou-sesombrio.“Nossomundoperecerá.”

Umsilênciorecaiusobreosalão.Agathafezumacareta.Aúltimacoisaque ela precisava era que aquele mundo perecesse enquanto elas aindaestivessemnele.

Cástorergueuapata.“Oquê?”,grunhiuPólux.“PorqueoMalnãovencemais?”Póluxpareciaestarprestesaarrancar-lheacabeçacomumamordida,

maseratardedemais.Osvilõesficaramruidosos.

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“É, se somos tão equilibrados”, gritou Hort, “por que sempremorremos?”

“Nuncaganhamosboasarmas!”,gritouogarotolevado.“Nossospajensnostraem!”“NossosNêmesissempretemumexército!”Hesterlevantou-se.“OMalnãovenceháduzentosanos!”Cástor tentou se controlar,mas seu rosto vermelho inchou como um

balão.“OBEMESTÁTRAPACEANDO!”Os Nunca ergueram-se emmotim, arremessando comida, sapatos ou

qualqueroutracoisaqueestivesseaseualcancenosSemprehorrorizados...Sophie esgueirou-se para baixo em seu assento. Tedros não pensaria

que ela era como esses desordeiros, pensaria? Ela espiou por cima dobancoeviu-oolhandodiretamenteparaela.Elaenrubesceueescondeu-senovamente.

Lobos e fadas atacaramahorda furiosa ao redordela,masdessa vezarco-íriseáguanãosurtiramefeito.

“ODiretordaEscolaestádoladodeles!”,gritouHester.“Nósnãotemoschance!”,uivouHort.OsNunca enfrentaramas fadas e os lobos, e atacaramos bancosdos

Sempre...“Issoéporquevocêssãounsgorilasidiotas!”Osvilõesolharamparacima,abestalhados.“Agorasentem-se,antesqueeuesbofeteietodosvocês!”,Póluxgritou.Eles sentaram-se, sem discutir. (Exceto os ratos de Anadil, que

espiavamdeseubolsoechiavam.)Pólux fez uma cara feia para os vilões embaixo do palco. “Talvez, se

vocês parassem de reclamar, pudessem produzir alguém expressivo!Entretanto,tudooqueouvimosédesculpaemcimadedesculpa.VocêsnãoproduziramnenhumvilãodecentedesdeaGrandeGuerra?UmvilãocapazdederrotaroNêmesisdeles?NãoédeadmirarqueosLeitores cheguemaquiconfusos!NãoédeadmirarquequeiramserdoBem!”

Sophie viu meninos e meninas, de ambos os lados do corredor,lançando-lheolharesdecompaixão.

“Alunos, vocês só têm que ter uma preocupação aqui”, disse Pólux,abrandandoavoz.“Daromelhordesi.Osmelhoressetornarãopríncipesefeiticeiros,cavaleirosebruxas,rainhasemagos...”

“OUUMTROLLOUPORCO,SENÃOPRESTAREM!”,Cástorvociferou.

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Os alunos entreolharam-se dos lados opostos do corredor,conscientizando-sedosgrandesdesafiosqueestavamporvir.

“Portanto, se não há mais interrupções”, disse Pólux, encarando oirmão,“vamosreverasregras.”

“Regratreze.APontedoMeiodoCaminhoeostelhadosdastorressãoproibidos aos alunos”, Pólux lia no palco. “As gárgulas têm ordens paramatarintrusos,tendo,noentanto,quediferenciaralunosdeintrusos...”

Sophieficouentediadacomaleitura,entãodesligou-sedetudoeficouobservando Tedros. Ela nunca tinha visto um garoto tão asseado. Osmeninos de Gavaldon tinham cheiro de porcos, lábios rachados, dentesamareloseunhaspretas.JáTedrostinhaumtomdepeledeumbronzeadodivino,orostopontilhadocomumalevepenugemdebarbaenenhumsinal(semchance!)demanchas.Mesmoapósumavigorosalutadeespadas,cadafio de cabelo dourado estava no lugar. Quando ele umedecia os lábios,fileiras de dentes brancos e perfeitos ficavam à mostra. Sophie ficouolhando uma gota de suor escorrer por seu pescoço e sumir dentro dacamisa. Como será o seu cheiro? Ela fechou os olhos. Deve ser cheiro demadeirafrescae...

Ela abriu os olhos e viu Beatrix cheirando sutilmente os cabelos deTedros.

Essagarotaprecisavasercolocadaemseulugarimediatamente.Um pássaro decapitado aterrissou no vestido de Sophie. Ela deu um

pulodeseuassento,gritandoesacudindoatúnica,atéqueocanáriomortocaiunochão.Elareconheceuopássaro,efezumacareta–depoisnotouosalãointeiroolhandoparaela.Entãofezsuamelhorreverênciadeprincesa,esentou-senovamente.

“Comoeuestavadizendo”,dissePóluxirritado.Sophievirou-separaAgatha.“Oquê?!”,elasussurrou.“Precisamosnosfalar”,Agathasussurroudevolta.“Minharoupa”,Sophiefezmímica,evirou-sedevoltaparaopalco.Hester e Anadil olharam para o pássaro sem cabeça, e depois para

Agatha.“Delanósgostamos”,Anadilbrincou,comosratoschiandoemacordo.“Seuprimeiroanoconsistirádoscursosexigidosparaprepará-lospara

trêstestesimportantes:aProvadosContos,oCircodeTalentoseoBaileda

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Neve”, Cástor rugiu. “Depois do primeiro ano, vocês serão encaminhadosparaumdosseguintescursos:odeLíderes,vilõeseheróis,odeComparsase ajudantes seguidores, e o de Mogrifes, ou seja, os que passarão portransformações.”

“Durante os dois anos seguintes, os Líderes treinarão para lutar comseus futuros inimigos, ou Nêmesis”, disse Pólux. “Os SeguidoresdesenvolverãohabilidadesparadefenderseusfuturosLíderes.OsMogrifesvão adaptar-se às suas novas formas e à sobrevivência nas florestastraiçoeiras. Finalmente, após o terceiro ano, os Líderes vão juntar-se aosSeguidores e Mogrifes, e todos vocêsmudarão para a Floresta Sem Fim,paracomeçarsuasjornadas...”

Sophie tentava prestar atenção, mas não conseguia, com Beatrixpraticamente no colo deTedros. Enfurecendo-se, elamexia no brasão decisneprateadocosturadoemseuuniformemalcheiroso.Eraaúnicacoisatolerávelnele.

“Quanto à forma pela qual selecionamos os alunos para seus cursosfuturos na Escola do Bem e do Mal, nós não concedemos ‘notas’”, dissePólux. “Em vez disso, a cada teste ou desafio, vocês serão classificadosdentrodesuasturmas,demodoasaberexatamenteasuaposição.Há120alunosemcadaescola,enósosdividimosemseisgruposde20.Depoisdecada desafio, vocês receberão uma classificação de 1 a 20. Se ficaremfrequentemente entre os 5 primeiros de seu grupo, acabarão sendoencaminhadosparaocursodeLíderes.Seficaremrepetidamenteentreosmedianos,acabarãocomoSeguidores.Eseconstantementeficaremabaixode13,entãoseustalentosterãomaisserventiacomoMogrifes,sejacomoanimaisoucomoplantas.”

Os alunos dos dois lados começaram a cochichar, já apostando emquemacabariacomoumaplantarasteira.

“Devo acrescentar que qualquer um que for avaliado por três vezesconsecutivas em vigésimo lugar será automaticamente reprovado”, dissePólux, seriamente. “Como eu disse, graças à excepcional incompetênciaexigidaparaficarportrêsvezesseguidasemúltimolugar,estouconfiantedequeessaregranãoseaplicaráanenhumdevocês.”

OsNuncadafileiradeSophielançaram-lheolhares.“Quandomecolocaremondeémeulugar,vocêstodossesentirãouns

tolos,não?”,Sophiedisparou.

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“Seuemblemadecisneficarávisívelsobreseucoraçãootempotodo”,prosseguiu Pólux. “Qualquer tentativa de escondê-lo ou de removê-loresultaráemferimentoouconstrangimento;portanto,evitemfazê-lo.”

Confusa, Sophie viu os alunos dos dois lados tentando esconder oscisnesbrilhantesemseusuniformes.Imitando-os,eladobrouagolacaídada túnica para encobrir o próprio cisne – instantaneamente a crista docisnedesapareceudouniformeesurgiuemseupeito.Perplexa,elapassouo dedo no cisne, mas ele estava entranhado em sua pele como umatatuagem. Ela soltou a dobra e o cisne sumiu de sua pele e ressurgiu naroupa.Sophiefranziuorosto.Talvezelenãofossetãotolerante,afinal.

“Ademais, como o Teatro de Fábulas deste ano é do Bem, os Nuncaserão acompanhados até aqui para todas as atividades escolaresconjuntas”, disse Pólux. “De outro modo, vocês deverão permanecer emsuasescolasotempotodo.”

“Por que o Teatro está no Bem?”, disse Dot, com a boca cheia dechocolate.

Póluxergueuonariz.“QuemganhaoCircodosTalentosganhaoTeatroemsuaescola.”

“EoBemnãoperdeumCircoouumaProvadosContosou,pensandomelhor,nenhumacompetiçãonestaescola,háduzentosanos”,Cástorrugiu.Osvilõescomeçaramaagitar-senovamente.

“MasoBemestátãolongedoMal!”,Dotbufou.“Deusnos livrede ela terqueandar”, Sophiemurmurou.Dotouviue

olhou-a, fulminantemente. Sophie amaldiçoou a si mesma. Era a únicapessoaqueatrataracivilizadamente,eelatinhaqueestragartudo!

PóluxignorouosresmungosdosNuncaeficoufalandodoshoráriosdotoquederecolher,fazendoadormecermetadedasala.Reenaergueuamão.“AsSalasdeEmbelezamentojáestãoabertas?”

Subitamente,osSemprepareceramdespertos.“Bem, eu estava planejando discutir as Salas de Embelezamento na

próximaassembleia”,dissePólux...“É verdade que somente alguns alunos podem usá-las?”, perguntou

Millicent.Póluxsuspirou.“AsSalasdeEmbelezamentodasTorresdoBemficam

disponíveisemqualquerdiaapenasparaosSemprequesãoclassificadosentre os 50% com melhor desempenho em suas turmas. As avaliaçõesserão afixadas nas portas da Sala de Embelezamento e espalhadas pelo

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castelo.Porfavor,nãoperturbemoAlbermarleseeleestiveratrasadoemafixá-las.Agora,quantoàsregrasdotoquederecolher...”

“OquesãoSalasdeEmbelezamento?”,SophiecochichouparaHester.“SãoassalasaondeosSemprevãoparaseenfeitar, secuidare tratar

doscabelos”,Hesterestremeceu.Sophiedeuumsalto.“NóstemosSalasdeEmbelezamento?”Póluxapertouoslábios.“OsNuncatêmSaladeCondenação,querida.”“Ondefazemosocabelo?”,perguntouSophie,radiante.“Ondesãosurradosetorturados”,dissePólux.Sophiesentou-se.“Otoquederecolherocorreráprecisamente...”“Como alguém se torna Capitão de Turma?”, perguntou Hester. A

pergunta e o tom de presunção instantaneamente angariaram-lhe aantipatiadeambososladosdocorredor.

“Se todos vocês forem reprovados no toque de recolher, não meculpem!”,dissePólux. “Tudobem.DepoisdaProvadosContos,osalunosqueforemosprimeirosclassificadosdecadaescolaserãoindicadoscomoCapitãesdeTurma.Essesdoisalunosterãoprivilégiosespeciais,incluindoaulasparticularescomprofessoresselecionados,excursõesàFlorestaSemFimeumachancedetreinarcomheróisevilõesrenomados.Comovocêssabem, nossos capitães continuaram e tornaram-se algumas dasmaioreslendasdaFlorestaSemFim.”

Enquantoosdoisladosfervilhavam,Sophiecerrouosdentes.Elasabiaqueseaomenospudesseestarnaescolacerta,nãosomenteseriaCapitãdeTurma,masacabariamaisfamosadoqueBrancadeNeve.

“Neste ano vocês terão seis disciplinas exigidas em suas respectivasescolas”, prosseguiu Pólux. “A sétima, ‘Sobrevivendo a Contos de Fadas’,incluirátantooBemquantooMal,eserárealizadanaFlorestaAzul,atrásdasescolas.PeçoqueobservemquetantoEmbelezamentoquantoEtiquetasãoapenasparaasmeninasdoBem,enquantoosmeninosdoBemterãoaulasdeCuidadosPessoaiseCavalheirismoMedieval.”

Agathadespertoudeseutorpor.Seelajánãotivesserazõessuficientesparafugir,aideiadeaulasdeEmbelezamentofoiaúltimagota.Elastinhamquesairdalinaquelanoite.Elavirou-separaumameninaadorávelaoseulado, comolhoscastanhosestreitosecabelospretoscurtos,arrumandoobatomemumespelhodebolso.

“Importa-sedemeemprestarseubatom?”,Agathaperguntou.

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A menina deu uma olhada para os lábios cinzentos e rachados deAgatha,eenfiouobatomemsuamão.“Podeficar.”

“O café da manhã e o jantar serão servidos nos refeitórios de suasescolas, mas vocês todos vão almoçar juntos na Clareira”, resmungouCástor. “Quer dizer, se foremmaduros o suficiente para lidar com esseprivilégio.”

Sophie sentiu o coração disparar. Se as escolas almoçavam juntas,amanhãseriasuaprimeirachancedefalarcomTedros.Oquediriaaele?EcomoselivrariadamalditaBeatrix?

“AFlorestaSemFim,alémdosportõesdaescola,éproibidaaosalunosdoprimeiroano”,dissePólux.“Eemboraessaregrapossacairemouvidossurdosparaamaioriadosaventureiros,deixe-melembrá-losdaregramaisimportante de todas. Uma regra que lhes custará a vida se não aobedecerem.”

Sophieficouatenta.“JamaisentremnaFlorestadepoisqueescurecer”,dissePólux.Osorrisinhodelevoltou.“Vocêspodemvoltaràssuasescolas!Ojantar

seráàsseteemponto!”EnquantoSophie levantava-secomosNunca, ensaiandomentalmente

seuencontrocomTedros,umavozirrompeuemmeioaofalatório...“ComofazemosparaveroDiretordaEscola?”Osalãocaiuemsilênciomortal.Osalunosviraram-se,chocados.Agathaestavaempé,sozinhanocorredor,olhandoparaCástorePólux.O cão de duas cabeças pulou do palco e aterrissou a um palmo dela,

respingando-a com sua baba. As duas cabeças encararam os olhos deAgathacomamesmaexpressãoferoz.Nãoficavaclaroquemeraquem.

“Vocêsnãopodemvê-lo”,ascabeçasrosnaram.Enquantoas fadas levaramAgatharevoandoatéaportadaesquerda,

ela passou por Sophie por um instante, apenas o tempo suficiente paralançar-lhe uma pétala de rosa com um recado marcado com batom:“PONTE,21HORAS”.

Mas Sophie não viu. Seus olhos fixaram-se em Tedros, como umacaçadoraàespreitadesuapresa,atéqueelafoiatiradaparaforadosalãopelosvilões.

Bemali,naquelemomento,oproblemaatingiuAgathacomoumtapanacara.Oproblemaquehavia importunado-asdesdesempre.Àmedidaqueas duas meninas eram empurradas para suas torres opostas, os seus

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desejosopostosficarammaisemaisclaros.Agathaqueriasuaúnicaamigade volta. Contudo, uma amiga não era o suficiente para Sophie. Sophiesemprequeriamais.

Sophiequeriaumpríncipe.

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6DecididamentedoMal

Namanhãseguinte,cinquentaprincesasagitavam-sepeloquintoandar,comosefosseodiadeseucasamento.Noprimeirodiadeaula,todaselasqueriam causar a melhor impressão nos professores, nos garotos e emqualqueroutrapessoaquepudesseconduzi-lasaofelizesparasempre.Comoscisnescintilandonascamisolas,elasentravamesaíamdosquartosumasdasoutras,passandobrilhonoslábios,arrumandooscabelos,pintandoasunhas e deixando um rastro tão forte de perfume que as fadinhasdesmaiaram e salpicaram o corredor comomoscasmortas. Ainda assim,nenhumadelaspareciaestarnempertodeficarprontaevestidae,defato,quandoo relógio bateu as oito damanhã, sinalizandoo início do café damanhã,nenhumagarotatinhasevestido.

“Cafédamanhãengordamesmo...”,tranquilizou-asBeatrix.Reenacolocouacabeçanocorredor.“Alguémviuminhacalcinha?”

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Agathacertamentenãotinhavisto.Elaestavadescendoemquedalivrepor um duto escuro, tentando lembrar-se de como havia encontrado aPontedoMeiodoCaminhodaprimeiravez.TorredaHonraatéoRefúgiodeJoãoeMaria,depoisatéaColeçãodeEmpalhadosdeMerlin...

Depois de aterrissar no pé de feijão, ela rastejou pelamal iluminadaGaleria do Bem, até encontrar as portas atrás dos ursos empalhados.OuseriaaTorredaHonraatéoRefúgiodeJoãoeMariadepoisatéaCâmaradeCinderela... Ainda repensando a rota correta, ela abriu as portas para osalão das escadarias e abaixou-se. O saguão de vidro do palácio estavaabarrotado de professores com vestidos e ternos coloridos, conversandoantesdasaulas.Ninfasdecabelosneon,trajescor-de-rosa,véusbrancoseluvasderendaazulflutuavampelovestíbulo,reabastecendoxícarasdecháebiscoitinhosconfeitados,eespanandoasfadinhasdoscubinhosdeaçúcar.Por trás das portas, Agatha espiou a escada com a palavra HONRAiluminada por altas janelas de vitrais, do outro lado da multidão. Comopoderiapassarportodoseles?

Elasentiualgoarranharsuaperna,virou-seeviuumratoroendosuaanágua.Agathachutouoratinho,quesaiurolandoeparoudentrodaspatasde um gato empalhado. O rato deu um gritinho, depois viu que o gato

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estavamorto.Ele lançouumolharmaldosoparaAgathae foimarchandoparaseuburaconaparede.

Atéos ratosdaquimedetestam, ela suspirou, enquanto tentava salvarsuaanágua.Seusdedospararamquandoelapassou-ospelarendarasgada.Talvezelanãodevessetersidotãoduracomaquelerato...

Alguns momentos depois, uma ninfa miúda de véu de rendas largaspassoucorrendopelasala,rumoàescadariadaHonra.Infelizmente,ovéudeixouAgathacega,eelatropeçouemumaninfa,quecaiuemcimadeumaprofessora– “PelaSantaMariadoCéu!”–,Clarissagemeu,encharcadadechádeameixassecas.Enquantoprofessorasalarmadassecavamovestidodela,AgathadeslizouportrásdosdegrausdaCaridade.

“Essas ninfas realmente andam muito distraídas”, Clarissa ralhou.“Daquiapoucoelasvãoderrubarumadastorres!”

A essa altura, Agatha já havia desaparecido para dentro da Torre daHonraeencontradoocaminhoparasubiraoRefúgiodeJoãoeMaria,aalade salasde auladoprimeiro andar totalmente feitasdedoce.Haviaumasaladepalitoscoloridosebalasdeaçúcar,quecintilavacomoumaminadesal.Haviaoutrademarshmallowscomcadeirasfeitasdechocolatebrancoemesasdepãesdemel.Haviaatéumasalafeitadepirulitosquecobriamasparedescomascoresdoarco-íris.Agathaficouseperguntandocomoerapossívelqueaquelassalasficassemintactas,atéqueviuosdizeresqueseestendiampelaparededocorredor,embalasdegomadecereja:

Agatha comeu metade delas antes de passar apressada por duasprofessoras,queolharamcuriosamenteparaseuvéu,masnãoapararam.

“Devemsermanchas”, elaouviuumadelas cochichar, enquantosubiaasescadascorrendodevolta(masnãoantesderoubarumamaçanetadecarameloeumtapetedeboas-vindasdebalascarameladas,paracompletarseucafédamanhãcelestial).

Quandocorreudasfadasnodiaanterior,Agathaencontrousemquerernotelhadoojardimdecercas-vivasesculpidas.Hojeelapoderiaapreciarosanimaisempalhados,aColeçãodeEmpalhadosdeMerlin,comoomapadaescola a chamava. O jardim era repleto de recantos magnificamenteesculpidos, que contavam a lenda do Rei Arthur em sequência. Arthur

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arrancando a espada da pedra, Arthur com os cavaleiros da TávolaRedonda,ArthurnoaltarcomGuinevere...

Agatha pensou naquele menino pomposo do Teatro, que todosdisseramser filhodoReiArthur.Comoelepodiaver issoenão se sentirsufocado?Comopodiasobreviveraessascomparaçõeseexpectativas?Pelomenos ele tinha a beleza a seu favor. Imagine se ele tivesse a minhaaparência,elariucomdesdém.Teriamabandonadoobebênafloresta.

Aúltimaesculturadasequênciamostravaumlagoeumaestátuabemgrande de Arthur recebendo a Excalibur da Dama do Lago. Dessa vez,Agatha pulou na água de propósito e caiu por um portal secreto,completamenteseco,quedavanaPontedoMeiodoCaminho.

Apressou-se até o ponto central, onde começava a neblina, de mãosestendidasparaocasodeabarreirasurgirantesdoqueelase lembrava.Enquanto atravessava a névoa, porém, suas mãos não conseguiamencontrá-la. Ela foi adentrando mais fundo na neblina. Tinha sumido!Agathasaiucorrendo,oventoquebatianovéuetirava-odeseurosto...

BUM! Ela cambaleou para trás, morrendo de dor. Aparentemente, abarreiradeslocava-secomoqueria.

Evitandoseureflexonobrilhodabarreira,elatocouaparedeinvisívelesentiu sua superfície friaedura. Subitamente,notoumovimentosatravésdaneblina,eviuduaspessoaspassandopeloarcodoMalparaaPontedoMeiodoCaminho.Agathaficousemação.ElanãotinhatempoparavoltaraoBem,enenhumlugarnaponteondeseesconder...

Doisprofessores,obeloprofessordoBemquesorriraparaelaeumdoMal,comespinhasnorosto,vinhamatravessandoaponte,epassarampelabarreirasemnenhumahesitação.Penduradanocorrimãodepedrasacimadofosso,Agathaficououvindoenquantoelespassavam,depoisespiouporcima do beiral. Os dois estavam prestes a desaparecer dentro do Bem,quandoohomembonitoolhouparatrásesorriu.Agathaabaixou-se.

“Oquefoi,August?”,elaouviuoprofessordoMalperguntar.“Meus olhos estãome pregando peças”, riu, enquanto adentravam as

torres.Decididamenteumlouco,pensouAgatha.Instantes depois, ela estava diante da parede invisívelmais uma vez.

Comoeleshaviampassado?Procurouporumabeirada,masnãoencontrou.Tentouchutar,maseraduracomoaço.Olhandoparacima,paraaEscoladoMal, Agatha viu os lobos conduzindo os alunos escada abaixo. Ela ficaria

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inteiramente à vista se a neblina se dissipasse, mesmo que só umpouquinho.Dandoumúltimochutenaparede,recuouparaoBem.

“Enãovolte!”Agatha olhou para trás para ver quem tinha falado, mas tudo o que

encontrou foi seu reflexo,debraços cruzados,nabarreira.Ela revirouosolhos.Agoraestououvindocoisas.Queótimo.

Ela virou-senadireçãoda torre enotouque seusbraçospendiamaoladodocorpo,nãoestavamcruzados.Contorceuorostoparaoseureflexo.“Vocêacaboudefalar?”

Seureflexolimpouagarganta.

“OBemficacomoBem,OMalficacomoMal,Volteprasuatorre,antesquevocêsedêmal”.

“É...euprecisopassar”,disseAgatha,comosolhosfixosnochão.

“OBemficacomoBem,OMalficacomoMal,Volteprasuatorre,antesquevocêsedêseriamentemal,Tendo de lavar pratos após o jantar, ou perdendo a Sala de

Embelezamento,ouatétudoissoseeupuderdarminhaopinião”.

“Euprecisoverumaamiga”,Agathapressionou.“OBemnãotemamigosdooutrolado”,disseseureflexo.Agatha ouviu umdoce tilintar e virou-se, vendo o brilho de fadas no

final da ponte. Como poderia superar a si mesma na esperteza? Comopoderiaencontrarumafrestanaprópriaarmadura?

BemcomBem...MalcomMal...Numlampejo,elasoubearesposta.“E quanto a você?”, disseAgatha, aindadesviando o olhar. “Você tem

algumamigo?”Seureflexoficoutenso.“Nãosei.Tenho?”Agathacerrouosdentes,eolhoudentrodosprópriosolhos.“Não,você

éhorríveldemaisparateramigos.”

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Seu reflexo ficou triste. “Decididamente do Mal”, disse ele, edesapareceu.

Agathaestendeuamãoparatocarabarreira.Dessavezamãopassoudireto.

Na hora em que a patrulha das fadas alcançou a ponte, a neblina jáhaviaapagadooseurastro.

No instanteemqueAgathapousouospésnoMal, teveasensaçãodequealieraoseulugar.Agachadaatrásdeumaestátuadeumabruxacarecae ossuda no saguão repleto de goteiras, olhou em volta, vendo o tetorachado,asparedeschamuscadas,asescadasserpenteadas,oscorredoresenvoltosemsombras...Elamesmanãopoderiaterelaboradonadamelhor.

Com o caminho livre de lobos, Agatha saiu sorrateiramente pelocorredor principal, olhando os retratos dos ex-alunos vilões. Ela sempreachouvilõesmaisempolgantesdoqueheróis.Elestinhamambição,paixão.Faziam as histórias acontecer. Vilões não temiam a morte. Não, elesembrulhavam-se na morte como se ela fosse sua armadura! Enquantoinalava o cheiro de cemitério da escola, Agatha sentiu seu sangue corrernasveias.Assimcomoerapara todosos vilões, amortenãoa assustava.Faziacomquesesentisseviva.

Ela subitamente ouviu um falatório atrás de uma parede. Um loboapareceu, conduzindo um grupo de garotas para baixo pela escada dosVÍCIOS. Agatha ouviu-as falando sobre as primeiras aulas e captou aspalavras “corcunda”, “maldições”, “enfeiamento”. Como aquelas garotaspoderiamficarmaishorríveis?Agathasentiuumrubordevergonha.Vendoaquele desfile de corpos pálidos e rostos repugnantes, ela sabia que seencaixariabemali.Atéosrobespretosdesmazeladoseramiguaisaosqueusava todos os dias em casa. Contudo, havia uma diferença entre ela eaquelesvilões.Suasbocasretorciam-sedeamargura,seusolhoscintilavamdeódio,seuspunhosfechavam-sedeira.Eleserammalvados,semdúvida,e Agatha não se sentia nem um pouco malvada. Então lembrou-se daspalavrasdeSophie.

Osdiferentesgeralmenterevelam-seMaus.Opânicotomousuagarganta.Foiporissoqueasombranãosequestrou

umasegundacriança.Otempotodoeuestavadestinadaaestaraqui.

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As lágrimasarderamemseusolhos.Elanãoqueria ser comoaquelasgarotas! Não queria ser uma vilã! Queria encontrar sua amiga e ir paracasa!

Sem nenhuma ideia sobre por onde começar a procurar, Agathaaventurou-seporumaescadariaemcujopatamarestavaescritaapalavraINJÚRIA.Láemcima,ocaminhodividia-seemduastrilhasdepedras.Elaouviuvozesquevinhamdaesquerda,entãodisparouparaadireita,porumcorredor curtinho até um canto sem saída, com paredes cobertas defuligem. Agatha encostou-se numa delas, petrificada, pois as vozes iamficandocadavezmaisaltas,edepoisouviualgorangeratrásdela.Nãoeraumaparede,masumaportacobertadecinzas.Seuvestidotinhalimpadoosuficientepararevelarasletrasvermelhas:

Estavaumbreu ládentro.Tossindoporcausadomofoedas teiasdearanha,Agathaacendeuumfósforo.Se,porumlado,aGaleriadoBemeraimaculadaevasta,aimensasaladoMalrefletiaumasequênciadederrotasocorridas ao longo de duzentos anos. Agatha examinou o uniformedesbotado de um menino que se tornou Rumpelstiltskin, uma molduraquebradacomoensaio“MoralidadedoAssassino”,escritoporumafuturabruxa, alguns corvos empalhados pendurados em paredes caindo aospedaços, e uma vinha apodrecida de espinhos, que cegou um príncipefamoso,comaetiquetaVERA,deALÉMDAFLORESTA.Agathatinhavistoseurostoempôsteresdedesaparecidos,emGavaldon.

Trêmula, ela notoumanchas coloridas na parede, e chegou o fósforomaisperto.Eraumpainelemummural,comooPARASEMPRE,nasTorresdo Bem. Cada um dos oito painéis mostrava um vilão de túnica pretadeleitando-se emum infernodepoder infinito – voando atravésdo fogo,comocorpoemtransmutação,fracionandoaalma,manipulandooespaçoeo tempo. No alto domural, estendendo-se do primeiro ao último painel,estavamasletras,embrasa:

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Enquanto os Sempre sonhavam com amor e felicidade, os Nuncabuscavamummundodesolidãoepoder.Àmedidaqueasvisõessinistrasgelavamseucoração,Agathasentiuochoquedaverdade.

EusouumaNunca.SuamelhoramigaeraumaSempre.Seelasnãofossemlogoparacasa,

Sophieveriaaverdade.Alielasnãopoderiamseramigas.Elaviuasombradeumfocinhopelaluzdofósforo.Duassombras.Três.

Bemnahoraemqueoslobosatacaram,AgathapegouosespinhosdeVeraepassounacaradeles.Os lobosrugiram, surpresos,e cambalearamparatrás, dando a ela o tempo exato para correr até a porta. Ofegante, eladisparoupelocorredoresubiuasescadas,atéqueseviunosegundoandardo Salão da Injúria, procurando o nome de Sophie nas portas dosdormitórios – Vex & Brone, Hort & Ravan, Flynt & Titan – Andar dosmeninos!

Nahoraemqueouviuumaportaseabrir,eladisparouescadaacimaatéumsótãorepletodefrascoslodosos,comdedosdesapo,pernasdelagarto,línguasdecachorro.(Suamãeestavacerta.Quempoderiasaberháquantotempoaquelesfrascosestavamali.)Elaouviuumlobosubindoosdegraus...

Agatha saiu pela janela do sótão e ficou agarrada à calha. Raiosexplodiamdenuvensnegras, aomesmo tempoemque,dooutro ladodolago, as Torres do Bem cintilavam sob o sol perfeito. Enquanto atempestade encharcava seu vestido rosa, seus olhos seguiam a calhacompridaecurva,lançandoaáguapelabocadetrêsgárgulasdepedra,quesustentavam as vigas de bronze. Era sua única esperança. Ela subiu nacalha,segurando-sefirmenostrilhosescorregadios,eengatinhoudevoltaparaajanela,sabendoqueolobobrancoestavavindo...

Noentanto,elenãoestava.Eleficouolhandopelajanela,comosbraçospeludoscruzadossobreajaquetavermelha.

“Hácoisaspioresquelobos,sabe?”Efoiembora,deixando-apasma.Oquê?Oquepodeserpiorque...Agatha protegeu os olhos e espiou pela visão embaçada, vendo a

primeira gárgula de pedra bocejar e abrir suas asas de dragão.Depois, asegundagárgula,comcabeçadecobraetroncodeleão,semexeucomumestalo que pareceu um tiro. Depois, a terceira, duas vezes maior que asoutras, com uma cabeça chifruda de demônio, dorso de homem e rabopontilhadodetachas,abriuasasasmaisamplasdoqueatorre.

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Agatha ficou branca. Gárgulas! O que foi que o cão disse sobre asgárgulas?

Eles olharam para ela, com olhos terrivelmente vermelhos, e ela selembrou.

Ordensparamatar!Com um grito agudo coletivo, elas voaram de seus poleiros. Sem o

suportedeles,acalhadespencou,eelamergulhounaáguacomumgrito.Aondadechuva lançou-aporcurvasedescidasestreitas,enquantoacalhasoltabalançavaloucamentepelachuva.Agathaviuduasgárgulasdescerembruscamenteparapegá-la,porém,elasedesvioubemnahora.Aterceira,odemôniochifrudo,ergueu-see lançoufogopelasnarinas.Agathaagarrou-seà calha, e abolade fogobateubememsua frente, fazendoumrombogigante na viga, e ela escorregou, passando pelo buraco. Uma forçaesmagadoraempurrou-aportráseagárgulacomasasdedragãoagarrousuaperna,comgarrasafiadas,eergueu-anoar.

“Eusoualuna!”,Agathaberrou.Agárgulasoltou-a,estarrecida.“Veja!”,gritouAgatha,apontandooprópriorosto.“EusouumaNunca!”Dandoumarasante,agárgulaestudouseurostoparaverseaquiloera

verdade.Elaagarrou-apelopescoço,paradizerquenãoera.Agatha gritou, e enfiou o pé no buraco aberto pela bola de fogo,

desviando a água para o olho do monstro. Ele cambaleou cegamente,sacudindoasgarrasparaela,ecaiupeloburaco,quebrandoaasanasacadaabaixodeles.Agathaficouagarradaaobeiral,lutandocontraaterríveldorem suaperna. Comumgrito agudo, de furar os tímpanos, a gárgula comcabeçade cobraentrouvoandopela inundaçãoepegou-a, erguendo-anoar.Na hora emque suas imensasmandíbulas abriram-se para devorá-la,Agatha enfiou o pé entre seus dentes, que se fecharam em suas botinaspretas.Confuso,omostrosoltou-a.Agathaaterrissounacalhainundada,esegurou-senabeirada.

“Socorro!”,elagritou.Seelaconseguissesesegurar,alguémaouviriaeviriasocorrê-la.“Socoooo...”

As mãos dela escorregaram. Ela foi inclinando-se pelos tubos,deslizandoatéoúltimoesguicho,ondeamaiorgárgulaesperava,comseuchifre de diabo, mandíbulas abertas na saída do duto, como um túnelinfernal.Agarrando-sepelasunhas,gorgolejando,Agathatentouparar,mas

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achuvalançava-apelodutoemjorrostorrenciais.Olhouparabaixoeviuagárgula soltando fogopelasnarinas, a chamaentrandopelo tubo.Agathaabaixou-senaáguaparaevitarsercremadanahora,evoltounovamenteàsuperfície, agarrando-se à borda, acima da última queda. A torrente dechuvaseguinteamandariadiretoparaabocaabertadagárgula.

Então ela lembrou-se de quando viu as gárgulas pela primeira vez:protegendoacalha,comaáguajorrandodesuasbocas.

Oquesaitemqueentrar.Ouviuapróximaondavindopor trásdela.Comumaprecesilenciosa,

Agatha soltou-se e caiu nasmandíbulas enfumaçadas do demônio. Assimque o fogo e os dentes envolveram-na, a chuva irrompeu atrás dela,lançando-a para fora pelo buraco na garganta da gárgula, rumo ao céucinzento.Eladeuumaolhadapratrás,paraagárgulaengasgada,esoltouumgritodealívio,quesetransformouemterrorquandoviuqueestavaemqueda livre. Através da neblina, Agatha vislumbrou uma parede cheia deespetosprestes a furá-la, euma janela aberta abaixodela.Ela enrolou-seformando uma bola, passou por pouco pelos espetos, e despencou debarrigaparabaixo,encharcada,tossindoágua,nosextoandardoSalãodaMalícia.

“Eu...achei...queas...gárgulas...fossem...decorativas”,eladisse.Segurandoaperna,Agathafoimancandoatéodormitório,embuscade

sinaisdeSophie.Nahoraemqueiacomeçarabaternasportas,elaviuumadelas,nofim

docorredor,pintadacomacaricaturadeumaprincesaloura,cobertacomborrõesde tinta, comaspalavrasFRACASSADA,LEITORA,ADMIRADORADESEMPRES.

Agathabateucomforça.“Sophie!Soueu!”Portascomeçaramaabrir-senaoutrapontadocorredor.Agathabateucommaisforça.“Sophie!”Garotas de uniformes pretos começaram a surgir de seus quartos.

AgathasacudiuamaçanetadaportadeSophieeinvestiucontraela,masaporta não abria. Na hora em que as garotas Nunca voltaram-se, prontasparadescobriraintrusaderosa,Agathadeuumimpulsoejogou-secontraaportapichadadoquarto66,queseescancarouebateu,fechando-seatrásdela.

“VOCÊ NÃO FAZ IDEIA DO QUE EU PASSEI PARA CHEGAR AQ...”. Elaparou.

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Sophie estava agachada sobre uma poça d’água no chão, cantando,enquantopassavablusholhandoparaseureflexo.

“Souumalindaprincesa,deseadmirar,Esperandoumpríncipe,paracomigocasar...”

Astrêscolegasdequartoetrêsratosobservavamdoladooposto,todosboquiabertosdechoque.

HesterergueuosolhosparaAgatha.“Elainundounossochão!”“Parapassarmaquiagem!”,disseAnadil.“Quempoderiaouviralgomaiscruel?”,Dotfezumacareta.“Incluindoa

canção.”“Meurostoestádireito?”,perguntouSophie,estreitandoosolhosparaa

poça. “Não posso ir para a aula parecendo uma palhaça.” Seus olhosdesviaram-se: “Agatha, querida! Já não era sem tempo que vocêrecuperassearazão.SuaauladeEnfeiamentocomeçaemdoisminutos,evocênãovaiquerercausarumamáprimeiraimpressão.”

Agathaencarou-a.“Claro”,disseSophie, levantando-se.“Nóstemosquetrocarderoupas,

primeiro.Venha,vamosresolverisso.”“Você não vai para a aula, querida”, disse Agatha, ficando vermelha.

“NósvamosàtorredoDiretordaEscolaagoramesmo,antesquefiquemospresasaquiparasempre!”

“Não seja tola”, disse Sophie, puxando o vestido de Agatha. “Nãopodemosinvadiratorredealguémemplenaluzdodia.Esevocêforpracasa,devemedarsuasroupasagoradequalquermaneira,paraqueeunãopercanenhumdever.”

Agathaafastou-aparalonge.“Pronto,acabou!Agora,ouça...”“Vocêvai seenturmarbemaqui”,Sophiesorriu,estudandoAgathaao

ladodesuascompanheirasdequarto.Agathaperdeuofervor.“Porqueeusou...horrível?”“Ora, pelo amor de Deus, Agatha, olhe para este lugar”, disse Sophie.

“Vocêgostadepenumbrasemaldições.Gostadesofrimentoeinfelicidadee...é...coisasqueimadas.Vocêseráfelizaqui.”

“Nós concordamos”, disse uma voz atrás de Agatha, e ela virou-se,surpresa.

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“Venhavocêviveraqui”,Hesterdisseaela...“Eelaseafoganolago”,DotolhouSophiedecarafeia,aindamagoada

porsuazombarianacerimôniadeboas-vindas.“Nós gostamos de você desde o primeiro instante em que a vimos”,

disseAnadil,comavozcantarolada,enquantoosratinhoslambiamospésdeAgatha.

“Seu lugar é aqui conosco”, disse Hester, enquanto ela, Anadil e DotcircundavamAgatha,cujacabeçagiravadeumaparaoutra,alternando-seentreotriodevilãs.Seráqueelasrealmentequeriamsersuasamigas?SeráqueSophieestavacerta?Seráqueserumavilãatornaria...feliz?

OestômagodeAgatharevirava-se.ElanãoqueriaserdoMal!NãocomSophiesendodoBem!Elasprecisavamdeixaraquelelugarantesqueeleasarruinasse!

“Nãovoudeixarvocê!”,elagritouparaSophie,afastando-se.“Ninguémestálhepedindoparamedeixar,Agatha”,disseSophie,séria.

“Sóestamospedindoquevocêdeixesuasroupas.”“Não!”, Agatha gritou. “Não vamos trocar nossas roupas. Não vamos

trocarosquartos.Nãovamostrocardeescola!”SophieeHestertrocaramumolharfurtivo.“Nós vamos para casa!”, Agatha disse com um nó na garganta.

“Podemos ser amigas lá... no mesmo lado... nada de Bem, nada de Mal...seremosfelizesparasem...”

Sophie e Hester agarram-na. Dot e Anadil tiraram o vestido rosa docorpodeAgatha,easquatroenfiaramorobepretodeSophieemseulugar.Dançando em seu novo vestido rosa, Sophie escancarou a porta. “Adeus,Mal!Olá,Amor!”

Agathacambaleoueficouempé,olhandoparabaixo,paraosacopretopútrido,exatamentecomoelagostava.

“Etudoestácertonomundo”,Hestersuspirou.“Realmente,eunãoseicomovocêpôdeseramigadessetrambolho...”

“Volte aqui!”, Agatha berrou, segurando Sophie, de rosa, em meio àhordadepretonocorredor.ChocadasporverumaSempreentreelas, asNuncacircundaramSophie,ecomeçaramabaternelanaalturadacabeça,comlivros,bolsasesapatos...

“Não!Elaéumadenós!”Todas as Nunca voltaram-se para Hort, na escada, incluindo Sophie,

pasma.HortapontouparaAgatha,depreto.

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“AquelaéaSempre!”As Nunca soltaram um novo grito de guerra e cercaram Agatha,

enquantoSophieempurravaHortefugiaescadaabaixo.Agathaconseguiulivrar-sedocorredorpolonêscomalgunschutesbemdados,edeslizoupelocorrimão para deter Sophie. Avistando-a, ela a seguiu por um corredorestreito,eestendeuamãoparaagarrá-lapelagolarosa,masSophiedobrouumaesquina,subiualgunsdegrauscorrendo,efugiuparaoprimeiroandar.Agatha desviou-se para um canto sem saída, e viu Sophie pularmagicamente através de uma parede respingada de sangue onde estavaescrito “PROIBIDO PARA ALUNOS!” e pulou através do portal, logo atrásdela...

EaterrissounofinaldaPontedoMeiodoCaminho,noladodoMal.Foi aí, porém, que a perseguição terminou, pois Sophie estava longe

demais na área do Bem para ser alcançada. Através da neblina, Agathapodiavê-la,radiantedealegria.

“Agatha, ele é filho do Rei Arthur”, disse Sophie. “Um príncipe deverdade!Mas,oqueeudigoaele?Comomostroaelequesouaescolhida?”

Agathatentouescondersuamágoa.“Vocêmedeixariaaqui...sozinha?”OrostodeSophieabrandou-se.“Porfavor,nãosepreocupe,Agatha.Agoratudoestáperfeito”,eladisse,

delicadamente. “Ainda seremos amigas. Apenas em escolas diferentes,comoplanejamos.Ninguémpodeimpedirquesejamosamigas,pode?”

AgathaficouolhandoobelosorrisodeSophieeacreditounela.Entretanto, de repente, o sorriso de sua amiga desapareceu. No seu

corpo, o vestido rosa apodreceu magicamente, e tornou-se preto. Derepente,Sophieestavacomseuvelhouniformelargo,comocisnereluzindosobreocoração.Elaolhouparacimaeengasgou.DooutroladodaPonte,atúnicanegradeAgathaficourosanovamente.

Asduasmeninasolharam-se,chocadas.Derepente,sombrascobriramSophie,eAgathavirou-serapidamente.Aondagigantescaerguia-seacimadela,eaáguaformavaumlaçotremulante.Antesquepudessecorrer,olaçoenvolveu-aearrastou-aparaooutroladodabaía,rumoàluzdosol.SophiecorreuparaabeirasombriadaPonteegritou,lamentandoainjustiça.

A onda lentamente ergueu-se novamente sobre ela, mas dessa vez aágua não tremulou. Com um rugido bélico, ela jogou Sophie de volta naEscoladoMal,diretamentedevoltaàssuasaulas.

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7GrandeBruxaMor

“Porqueprecisamosnosenfeiar?”Sophiedeuumaespiadapor entreosdedos, vendoa cabeça carecae

cheiadeespinhas,eapelecordeabóboradoprofessorManley, tentandonão vomitar. Ao redor dela, os Nunca estavam sentados em carteiraschamuscadas, com espelhos de molduras enferrujadas, esmigalhando ematandogirinos empotesde aço, alegremente. Se elanãoos conhecesseumpouquinho,achariaqueestavamfazendoumbolodedomingo.

Porqueaindaestouaqui?,elairritou-se,emmeioalágrimas.“Por que temos que ser repugnantes e revoltantes?”, Manley falou.

“Hester!”“Porquenostornaassustadores.”RespondeuHester,ebebeuseusuco

de girino, que fez com que surgisse instantaneamente uma erupção demanchasvermelhasemsuapele.

“Errado!”,rugiuManley.“Anadil?”“Porque isso faz os menininhos chorarem”, respondeu Anadil, com

bolhasvermelhasirrompendoemseuprópriorosto.

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“Errado!Dot?”“Porque é mais fácil se aprontar de manhã?”, perguntou Dot,

misturandoseusucocomchocolate.“Erradoe imbecil!”,Manleydebochou.“Somentequandoabriremmão

do superficial é que poderão cavar o que há por baixo! Somente quandodesistiremdavaidadeéquepoderãoservocêsmesmos!”

Sophie engatinhou por detrás das carteiras e correu para a porta. Amaçanetaqueimousuamãoeelagritou.

“Somente quando destruírem o que acham que são é que poderãoabraçar quem verdadeiramente são!”, disse Manley, encarando-adiretamente.

Choramingando,Sophievoltouàsuacarteira,passandoporvilõescujaspeles explodiam em brotoejas. Notas de avaliação em verde enfumaçadosurgiram à volta dela, em pleno ar – “1”, acima de Hester, “2”, acima deAnadil,“3”,acimadeRavan,comsuapelemorena,“4”,acimadolouroVex,com suas orelhas pontudas. Hort tomou suamistura empolgadamente, eviuumaespinhabrotaremseuqueixo.Eledeuumtapa tentandoafastarumapéssimaclassificaçãode“19”,masanotaestapeou-odevolta.

“Feiura significa que você recorre à inteligência”, disse Manley, deesguelha,andandoemdireçãoaSophie.“Feiuraquerdizerquevocêconfiaemsuaalma.Feiuraquerdizerliberdade.”

Elejogouumpotenacarteiradela.Sophieolhouparabaixo,paraamisturapretadecaldodegirino.Uma

partedelesaindaestavasemexendo.“Na verdade, professor, eu acredito que meu professor de

Embelezamento fará objeções quanto à minha participação nestetrabalho...”

“Três avaliações ruins e você vai acabar mais horrível do que eu”,vociferouManley.

Sophieolhouparacima.“Eurealmentenãoachoqueissosejapossível.”Manleyvoltou-separaaturma.“Quemgostariadeajudarnossaquerida

Sophieasaborearaliberdade?”“Eu!”Sophievirou-serapidamente.“Nãosepreocupe”,sussurrouHort,“Vocêvaificarmaisbonitaassim.”AntesqueSophiepudessegritar,elemergulhouacabeçadeladentrodo

pote.

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Deitada em uma poça àsmargens do Bem, Agatha reviveu a cena doMal. Sua melhor amiga chamara-a de estúpida, roubara sua roupa,abandonara-acombruxasedepoislhepediraconselhossentimentais.

Oproblemaéestelugar!,elapensou.EmGavaldon,Sophieseesqueceriadas aulas, dos castelos e dos garotos. Em Gavaldon, elas poderiamencontrar um final feliz juntas. Ali não. Eu só preciso achar um jeito devoltarmosparacasa.

E, no entanto, algo ainda a incomodava. Aquelemomento na ponte –Sophiederosa,defrenteparaaEscoladoBem,eladepreto,defrenteparaaEscoladoMal...“Tudoestáperfeitoagora”,Sophiedisse.Eelaestavacerta.Porumbrevemomento,oerrohaviasidocorrigido.Elasestavamnolugaraoqualpertenciam.

Então,porquenãopodemosficar?Oquequerqueviesseaacontecer,aquiloeramuitoarriscado.Porque

umavezqueSophiechegasseaoBem,elajamaisiriaembora.Agathaficoucom a respiração acelerada. Ela precisava assegurar-se de que osprofessores não descobririam a troca! Ela precisava garantir que nãofossem trocadas para as escolas certas! Comopoderia ter certeza de queSophieficariaquieta?

Váparaaaula,seucoraçãorecomendou.Póluxdissequeasescolasmantinhamumnúmeropardealunospara

preservar o equilíbrio. Portanto, para que o equívoco fosse corrigido, asduas teriam que ser trocadas. Enquanto Agathamantivesse seu lugar naEscoladoBem,SophieestariaempacadanaEscoladoMal.Esehaviaalgoque ela sabia, com certeza, era que Sophie não poderia durar como vilã.MaisalgunsdiaseelaimplorariaporGavaldon.

Váparaaaula.Claro!Elaencontrariaummeiodemanter-sefirmenaquelaescolahorrenda,e

de usar o traje de Sophie. Pela primeira vez desde que tinham sidosequestradas,Agathaabriuseucoraçãoparaaesperança.

Aesperançamorreudezminutosdepois.A professora Emma Anêmona, com um vestido amarelo berrante e

luvasdepelederaposa,entrouassobiandoemsuasaladeaulacor-de-rosa,deu uma olhada para Agatha e parou de assobiar. E depois ela disse“Rapunzel também deu trabalho”, e embarcou em sua primeira lição de“Tornandoossorrisosmaisgentis”.

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“O segredo é comunicar-se através de seus olhos”, ela disparou, emostrouumperfeito sorrisodeprincesa.Vendoseusolhosenormeseoscabeloslourosquecombinavamcomovestido,Agathaachouqueelamaispareciaumcanáriomaníaco.Ela sabia, porém,que sua chancede irparacasa estava nas mãos da professora; então imitou-a, dando um sorrisocheiodedentes,juntocomasoutras.

AprofessoraEmmaAnêmonaperambulouobservandoasgarotas.“Nãoprecisa franzir tanto os olhos... menos nariz, querida... Oh, minha nossa,absolutamente linda!”Elaestava falandodeBeatrix,que iluminavaa salacom seu sorriso deslumbrante. “Esse, minhas Sempre, é um sorriso quepodeganharocoraçãodomaisdifícildospríncipes.Umsorrisoquepodenegociar a paz nas maiores guerras. Um sorriso que pode conduzir umreinoàesperançaeàprosperidade!”

Então,elaviuAgatha.“Vocêaí!Nadadesorrisinhoafetado!”Comaprofessoraàsuafrente,Agathatentouseconcentrare imitaro

sorriso perfeito de Beatrix. Por um segundo, ela achou que tinhaconseguido.

“Minha nossa! Agora é um sorriso assustador! Um sorriso, garota!Apenasseusorrisonormaldetododia!”

Feliz.Penseemalgofeliz.Entretanto, ela só conseguia pensar em Sophie deixando-a, na Ponte,

porumgarotoquenemconhecia.“Agora está positivamente maligno!”, disse a professora Emma

Anêmona,comumgritinho.Agathavirou-seeviua sala inteiraencolhendo-se, comoseachassem

que ela as transformaria em morcegos. (“Acha que ela come crianças?”,disse Beatrix. “Estou tão contente de ter mudado de quarto”, Reenasuspirou.)

Agathafranziuorosto.Nãopodiatersidotãoruim.EntãoelaviuorostodaprofessoraEmmaAnêmona.“Sealgumdiavocêquiserqueumhomemconfieemvocê,sealgumdia

precisar que um homem a salve, se precisar que um homem a ame,independentementedoquefizer,criança...nãosorriaparaele.”

Etiqueta para Princesas, lecionada por Pólux, era pior. Ele chegou demauhumor,andandocomdificuldade,comseucabeçãocaninogrudadoaumacarcaçamagrinhadebode,murmurandoqueCástor“estácomocorponestasemana”.Eleergueuosolhoseviuasmeninasolhandoparaele.

Page 96: Escola do bem e do mal

“E euquepensavaque estava lecionandoparaprincesas. Tudooquevejosãovintegarotasmal-educadasencarando-me feitosapos.Vocêssãosapos?Gostamdepegarmoscascomsuaslinguinhasrosadas?”

Asgarotaspararamdeencará-lodepoisdisso.Aprimeiraliçãoera“PosturadePrincesa”,queconsistiaemdesceros

quatro lances de escadas da torre com ninhos com ovos de rouxinol nacabeça.Emboraamaioriadasmeninastivessesesaídobem,semquebrarnenhumovo,Agatha tevemais dificuldade.Havia inúmerosmotivosparaisso: uma vida inteira arrastando os pés, Beatrix e Reena observando-aatentamente com seus novos sorrisos bondosos, sua mente tagarelandoqueSophievenceriaaquelaprovadeolhosfechados,eoabsurdodeumcãolatindodicasdeposturaenquantoseequilibravaempatasdebode.Nofim,eladeixouvinteovoscomasgemasvazandonomármore.

“Vintebelosrouxinóisquenãoganharãovida...porcausadevocê”,dissePólux.

Enquanto as classificações foram surgindo acima da cabeça de cadamenina,emnuvensetéreasdouradas–Beatrix,1ª,claro–,Agathavirou-see viu um “20” enferrujado pairando acima dela, e depois caindo em suacabeça.

Duas aulas, dois últimos lugares. Mais um e ela descobriria o queacontecia com as alunas reprovadas. Com seu plano de resgatar Sophiearruinando-se mais a cada minuto, Agatha apressou-se para a aulaseguinte,desesperadaparaprovarqueeradoBem.

Brotoejas não impediram que Cinderela fosse ao Baile. Também nãoimpediramBelaAdormecidadedarseuprimeirobeijo.

Olhandoseu reflexocheiodebrotoejasnoespelho, Sophie forçouseusorrisomaisbondoso.Elahaviaresolvidotodososproblemasdesuavidacombelezaecharme,eresolveriaaqueledomesmomodo.

OtreinamentodepajenserarealizadonaTorredeSinos,umaabóbadaaberta,acimadaTorredaInjúria,oqueexigiaumasubidadetrintalancesdeumaescadatãoestreitaqueosalunostinhamqueseespremeremfilaindiana.

“Tão...nauseante”,Dotestavaofegantecomoumcameloencalorado.“Seelavomitarpertodemim,euvouatirá-ladatorre”,disseHester.

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Enquantosubia,Sophietentavanãopensarempústulas,vômito,ounopútrido Hort, que estava tentando espremer-se ao seu lado. “Eu sei quevocêmedetesta”, elepressionou.Eladeuumsolavancoparao ladoparabloqueá-lo.Hort tentou a esquerda. “Mas foi umdesafio, e eunãoqueriaquevocêfracassassee...”

Sophie deu-lhe uma cotovelada e subiu correndo os últimos degraus,desesperada para provar para sua nova professora que estava no lugarerrado.Infelizmente,oprofessoreraCástor.

“ÉCLAROQUEALEITORATINHAQUEFICAREMMEUGRUPO.”Opioreraqueseuassistente,Beezle,eraoanãodepelevermelhano

qual Sophie havia batido na véspera, na escada. Ao ver seu rostopustulento,elegargalhoucomoumahiena.“Bruxahorrenda!”

Com a cabeça fora do centro de seu corpo pesado, Cástor não achouengraçado. “Você já é revoltante o suficiente do jeito que é”, lamentou, emandou Beezle ir buscarmadressilva, que imediatamente recuperava osrostosdosvilões.Enquantoelesgemiamdesapontados,Sophiesuspiroudealívio.

“Ganhar ou perder suas batalhas depende de sua competência, e dalealdade de seus comparsas!”, disse Cástor. “É claro que alguns de vocêsacabarãocomocapangas,comaprópriavidadependendodaforçadeseuLíder.Então,émelhorprestarematenção,sequiseremcontinuarvivos!”

Sophie cerrouosdentes.Agatha estavaprovavelmente cantando comospombosemalgumlugar,ealiestavaela,prestesabrigarcomvalentõessedentosdesangue.

“E agora, como seu primeiro desafio: Como treinar...”, Cástor deu umpassoaolado.“UmGansoDourado.”

Sophie ficou boquiaberta ao ver o pássaro de plumas douradas atrásdele,dormindoserenamenteemseuninho.

“MasGansosDouradosodeiamvilões”,Anadilfranziuorosto.“Oquesignificaquesevocêspuderemtreinarum,domarumgiganteda

montanhaseráfácil”,disseCástor.Ogansoabriuparcialmenteseusolhosazuisperolados,olhouaplateia

devilõesesorriu.“Porqueeleestásorrindo?”,disseDot.“Porque ele sabe que estamos perdendo nosso tempo”, disse Hester.

“GansosDouradossóouvemosSempre.”

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“Desculpas, desculpas”, Cástor bocejou. “Sua função é fazer essacriaturapatéticapôrseusovospreciosos.Quantomaioroovo,maiorsuaclassificação.”

OcoraçãodeSophiedisparou.SeopássarosóouviaoBem,elapoderiaprovar,alimesmo,quenãotinhanadaavercomaquelesmonstros!ElasóprecisavafazercomqueoGansopusesseomaiorovo!

Na parede da torre, Cástor entalhou cinco estratégias para treinarcapangas:

“Não provoquem omaldito pássaro, amenos que já tenham passadopelos outros quatro”, alertou Cástor. “Nada impede um capanga deretribuiraprovocação.”

Sophie assegurou-se de ser a última da fila, e ficou olhando os cincoprimeirossemsorte,incluindoVex,quechegouatéaagarraropássaropelopescoço,masapenasviuoGansoDouradoretribuir-lhe,sorrindo.

Milagrosamente, Hort foi o primeiro a ter êxito. Ele havia tentadovociferar “Ponha ovos”, chamá-lo de “pateta”, e tentá-lo com minhocas,antesdedesistirechutarseuninho.Foiacoisaerradaachutar.Comoumraio, o Ganso puxou sua túnica pela cabeça e Hort ficou gritandocegamente,batendonasparedes.(Sophiejurouquesetivessequeveressemenino sem roupasmais uma vez, ela arrancaria os próprios olhos.) Noentanto, o Ganso parecia encantado. Ele batia as asas e ria debochado, egrasnavatãoruidosamentequeperdeuocontrole,epôsumovodouradodotamanhodeumamoeda.

Hortsegurou-onoalto,perplexoetriunfante.“Euganhei!”“Certo,porquenocalordabatalhavocêterátempodecorrernuefazer

oGansosoltarsuaporcaria”,rosnouCástor.Ainda assim, o cão havia dito que quem originasse o ovo maior

venceria; portanto, os outros Nunca imitaram a tática de Hort. Dot fez

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caretas,Ravanfezfantochesdesombra,Anadilfezcócegascomumapluma,e o ousado e rechonchudo Brone sentou-se em Beezle, para deleite dopássaro.(“Bruxafedorenta!”,oanãogritou.)

Olhandotudoaquilodecara feia,Hesteraproximou-seedeuumsocona barriga doGanso. Ele pôs umovo do tamanhode umpunho fechado.“Amadores”,eladebochou.

Então,foiavezdeSophie.Elaaproximou-sedoGansodeOuro,quepareciaexaustoderiredepôr

ovos. Contudo, quando o Ganso olhou nos olhos de Sophie, ele parou depiscare ficou imóvel comoumaestátua, estudandocadacentímetrodela.Porummomento,Sophiesentiuumarrepiopercorrerseucorpo,comosetivessedeixadoumestranhoadentrarsuaalma.Quando,porém,elaolhouos olhos ternos e sábios do pássaro, ela encheu-se de esperança.Certamente,eleviaqueelaeradiferentedorestante.

Sim,vocêcertamenteédiferente.Sophierecuou.Eladeuumaolhadaemvolta,paraversemaisalguém

ouvira os pensamentos do pássaro. No entanto, o restante dos Nuncasimplesmenteolhavaimpaciente,umavezqueelaprecisavaterminarparaqueelesobtivessemsuasclassificações.

Sophievirou-separaoGanso.Vocêconsegueouvirmeuspensamentos?Elessãobemruidosos,respondeuoGanso.Equantoaosoutros?Não.Sóvocê.PorqueeusoudoBem?Sophiesorriu.Euposso lhedaroquevocêquer,disseoGanso.Posso fazê-losverque

vocêéumaprincesa.Umovoperfeito,eelesacolocarãocomseupríncipe.Sophie caiu de joelhos.Por favor! Farei tudo o que quiser. Apenasme

ajude.Opássarosorriu.Fecheseusolhosefaçaumpedido.Tomada de alívio, Sophie fechou seus olhos. Naquele momento

radiante,eladesejouTedros,seulindopríncipeperfeito,quepoderiafazê-lafeliz...

Elasubitamente ficou imaginandoseAgathadiriaaelequeelaseramamigas.Elatorciaparaquenão.

Osoutrosarfavamemvoltadela.Sophieabriuosolhos,eviuaspenasdoGanso ficandocinzentas.Seusolhosescureceram,passandodeazuisanegros.Seusorrisoternodesapareceu.

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E,decididamente,nãosurgiunenhumovo.“Oqueaconteceu?”,Sophievirou-se.“Oqueissosignifica?”Cástor parecia petrificado. “Significa que ele prefere abrir mão do

própriopoderaterqueajudarvocê.”Um “1” explodiuem labaredasvermelhas acimada cabeçadeSophie,

comoumacoroadiabólica.“Éacoisamaisperversaqueeujápresenciei”,disseCástor,baixinho.Perplexa, Sophieobservouseuscolegasde turmaagruparem-secomo

peixinhosassustados– todos, excetoHester,deolhos faiscantes, comosetivesse acabadode encontrar sua rival. Atrás dela, Beezle tremia, emumcantoescuro.

“BruxaMor!”,eledeuumgritinhoagudo.“Não,não,não!”,Sophiegritou.“NadadeBruxaMor!”Beezle,porém,assentiucomdeterminação.“GrandeBruxaMor!”Sophievirou-sedevoltaparaoGanso.Oquefoiqueeufiz?EntãooGanso, cinzacomoaneblina,olhouparaelacomosenuncaa

tivessevistonavida,esoltouomaiscomumdosgrasnidos.

Da Torre dos Sinos, o grasnido ecoou pelo fosso, adentrando a torreprateadaquedividiaosdoisladosdabaía.Umasilhuetasurgiunajanelaeolhouparabaixo,paraoseuimpério.

Dezenasdenúmerosenfumaçados–algunscoloridos,doBem,eoutrosescurosesombrios,doMal–,saíamdasduasescolas,deslizandoacimadaágua,eflutuavamatésuajanelacomobalõesaovento.Enquantocadaumdeles passava, seus dedos passeavampela fumaça, o que lhe dava poderpara ver quais classificações pertenciam a quem, e como haviam sidoobtidas.Ele revisoudezenasdenúmeros, até chegar aoqueprocurava: onúmero “1” vermelho cor de fogo, que revelava sua história em umatorrentedeimagens.

UmGansoDourado jogou fora seupoderporumaluno?Somenteumpoderiateressetalento.Sóumpoderiasertãopuro.

Oquecausariaodesequilíbrio.Arrepiado, o Diretor da Escola voltou à sua torre, e esperou por sua

chegada.

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“Maldições&ArmadilhasMortais”eraministradaemumacâmaratãofria que gelava os ossos e tinha paredes, mesas e cadeiras feitascompletamentedegelo.Sophieachouqueestavavendocorposenterradossobochãocongelado.

“Quefriiiiio”,disseHort,tremendo.“Está mais quente do que na Sala de Condenação”, respondeu Lady

Lesso.Uivosdedorecoavamdamasmorra,abaixodospésdeles.“Ag-go-raestoumes-sentindomaisaque-ci-cido”,Hortgaguejou,como

rostoazulado.“O frio endurecerá suas veias”, disse Lady Lesso. “Que precisarão de

endurecimento, se uma Leitora está obtendo o primeiro lugar nosdesafios.” Ela passou pelas fileiras de alunos trêmulos, com sua trançanegra chicoteando o vestido roxo de ombreiras pontudas, e seu saltoagulhadeaçoestalandonogelo.

“Esta não é uma escola que aceita crueldades não autorizadas. Ferirsemmotivofazdevocêumbesta,enãoumvilão.Não,nossamissãorequerfocoecautela.Nestadisciplina,cadaumdevocêsaprenderáaidentificaroSemprequeatrapalhaocaminhoparaoseuobjetivo.Oquesefortaleceráàmedidaquevocêenfraquece.Eleestá lá,meusNunca,emalgum lugardaFloresta...seuNêmesis.Quandochegarahoracerta,cadaumdevocêsvaiencontrá-loedestruí-lo.Esseéocaminhoparaasualiberdade.”

Um grito ecoou na Sala de Condenação, e Lady Lesso sorriu. “Suasoutras disciplinas podem até ser verdadeiras demonstrações deincompetência,masnãoesta.Nãohaverádesafios,atéqueeuvejaquesãodignosdeles.”

Sophienãoouviranadadaquilo.ElasóconseguiaouvirograsnidodoGanso ecoando em sua cabeça. Tremendo de frio, ela lutava contra aslágrimas.ElahaviatentadotudoparaentrarnoBem:fugir,lutar,implorar,trocar,desejar...Oquemaisrestava?ElaimaginouAgathasentadaemsuasaulas, em seu assento, em sua escola, e enrubesceu.E elapensavaqueasduasfossemamigas!

“SeuNêmesis é seu arqui-inimigo”, disse Lady Lesso, com seus olhosroxosfaiscando.“Suaoutrametade.Suaalmaaoinverso.SeucalcanhardeAquiles.”

Sophieobrigava-seaprestaratenção.Afinal,aliestavaumachancedeaprender os segredos de seu inimigo. Isso talvez a salvasse quando

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chegasseaoBem.“VocêschegarãoaoconhecimentodeseusNêmesisatravésdesonhos”,

prosseguiuLadyLesso,comasveiaspulsandosobsuapeleesticada.“Elesassombrarãoseusono,noiteapósnoite,atéquevocêsnãovejamnadaalémde seu rosto. Sonhos comNêmesis farão seu coração gelar e seu sangueferver. Vocês cerrarão os dentes e arrancarão os cabelos. Porque seusNêmesissãoasomatóriadetodooseuódio.Asomatóriadeseusmedos.”

Lady Lesso deslizou as unhas vermelhas compridas pela carteira deHort. “Sóquandoelesestiveremmortoséquevocêssesentirãosaciados.Sóquandoestiveremmortosvocêssesentirãolivres.MatemseusNêmesis,eNuncaMaislhesdaráasboas-vindasparaaglóriaeterna!”

Aturmadeurisadinhasdeempolgação.“É claro que, dada a história desta escola, aqueles portões não se

abrirãotãocedo”,elamurmurou.“ComoencontramosnossosNêmesis?”,perguntouDot.“Quemosescolhe?”,perguntouHester.“Serãodenossaturma?”,perguntouRavan.“Essas perguntas são prematuras. Somente vilões excepcionais são

abençoados com sonhos sobre seus Nêmesis” disse Lady Lesso. “Não,primeiro, vocês devem perguntar-se por que os presunçosos, imbecis einsípidosdoBemganhamtodasascompetiçõesnestaescola–ecomovocêsmudarão isso.” Ela olhoude esguelhapara Sophie, como se dissesse que,gostandoounão,aLeitorabondosadecor-de-rosatalvezfossesuamaioresperança.

Assim que os lobos uivaram, sinalizando o final da aula, Sophiedisparouda salade gelo e subiu correndo as escadas, até encontrarumavarandinhajuntoaumcorredor.Naprivacidadedaneblina,eladebruçou-senamuretaúmidadatorredoMal,e finalmentesepermitiuchorar.Elanãose importavaseestragassesuamaquiagem,ousealguémavisse.Elanunca tinha se sentido tão sozinha e assustada. Detestava aquele lugarhorrível,enãoaguentavamais.

Sophie ficou olhando a Escola doBem, com suas torres cintilandodooutroladodabaía.Pelaprimeiravez,elalhepareceuforadealcance.

Almoço!Tedrosestaria lá! Seupríncipe radiante, suaúltimaesperança!Afinal,

nãoeraissooquepríncipesfaziam?Salvarprincesasquandotudopareciaperdido?

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Com o coração cheio de esperança, ela limpou suas lágrimas.Apenaschegueatempodoalmoço.

Ao sair emdisparadaparao SalãodoMal, para a auladeHistóriadaVilania, Sophie notou muitos Nunca aglomerados lá fora. Dot a viu, eagarrouseubraço.“Elescancelaramasaulas!Ninguémdizomotivo.”

“O almoço será enviado aos seus quartos!”, retumbou o lobo branco,enquanto seus colegas lobos estalavam seus chicotes e conduziam osalunosàssuastorres.

O coração de Sophie murchou. “Mas, o queacont...”

De repente, um cheiro de fumaça penetroupelo salão, vindo de todas as direções. Sophiepassouporentreamultidãoqueaempurravaatéuma janela de pedras, onde um grupo de alunosobservava, em silêncio, perplexo. Ela seguiu oolhardeles,paraooutroladodabaía.

UmatorredoBemestavapegandofogo.Dot engasgou. “Quem poderia ter feito algo

tão...”“Brilhante”,disseHester,pasma.Bem,Agathatinhaarespostaparaaquilo.

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8Peixesdodesejo

Umahoraantes,Tedroshaviadecididonadarumpouco.A essa altura, a classificação das duas primeiras turmas já estava

pregada na porta da Sala de Embelezamento, mostrando o príncipe eBeatrixemparelhadosemprimeirolugar,eonomedeAgathatãoembaixona lista, que umapilha de cocô de rato o escondia. O interior da Sala deEmbelezamentodasmeninaslembravaumspamedieval,comtrêspiscinasaromáticas de banho (“Quente”, “Frio” e “Na medida”), uma sauna daPequena Vendedora de Fósforos, três estações de maquiagem da BelaAdormecida,umcantodepedicurecomotemadaCinderela,eumchuveiroem cachoeira construído em uma lagoa da Pequena Sereia. A Sala deEmbelezamentodosmeninoseramais focadaemcondicionamento físico,comumaacademiadeMidas,umasaladebronzeamento,umginásiocompesosnórdicos,umaarenaparalutanalama,umapiscinadeáguasalgada,eumasériedebanhosturcos.

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Depois da aula de Cuidados Pessoais e Cavalheirismo, TedrosaproveitouointervaloantesdaEsgrimaparatestarapiscina.Contudo,nahoraemquenadousuaúltimavolta,elenotouBeatrix–eassetemeninasque agora a seguiam incessantemente – espiando, de olhos arregalados,pelasfrestasdaportademadeira.

Tedros estava habituado a ser observado por meninas, mas quandoencontrariaumaqueenxergassenelemaisdoquesuaaparência?QuevissenelemaisdoqueofilhodoReiArthur?Queseimportassecomsuasideias,esperanças e medos? Ainda assim, ali estava ele, exibindo-sepropositalmente,enquantoseenxugavacomatoalha,paraqueasgarotaspudessemterumavisãoperfeita.Suamãeestavacerta.Elepodia fingiroquantoquisesse,maseraigualzinhoaopai,nascoisasboasenasruins.

Comumsuspiro,eleabriuaportaparacumprimentarseufãclube,comascalçasjustaspingandoeocisnereluzindoemseupeitonu.Elas,porém,já tinham partido, vítimas da patrulha das fadas. Tedros sentiu umapontadadedecepção,virou-separasairetrombouemalgoquederrubounochão.

“Estoumolhada. De novo.” Agatha franziu o rosto e olhou para cima.“Vocêdeviaolharporondeand...”

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EraogarotoquepovoavaopensamentodeSophie.Omeninoquehaviaarrebatadoocoraçãodela.Queroubarasuaúnicaamiga.

“EusouTedros”,eledisse,estendendoamão.Agatha não o cumprimentou. Ela estava terrivelmente perdida, e

precisava de ajuda, mas esse Tedros era o inimigo. Ela levantou-se elançou-lheumolharassassino,passandodiretoporele.Foiquandonotou,alémdetudooque jádetestavanele,queele tinhacheirodemenino.Elaandoudepressacomoumraioatéofimdocorredor,batendoasbotinasnovidroe,comumúltimoolharvenenoso,agarrouamaçanetadaporta.

Estavatrancada.“Époraqui.”Tedrosapontouparaaescadaatrásdele.Agatha passou por ele bufando, segurando o nariz, prendendo a

respiração.“Prazeremconhecê-la!”,opríncipegritou.Eleouviu-a fungar comaversãoantesdedescerosdegraus, lançando

sombraspelocaminho.Tedros fez uma careta. As garotas o adoravam. Sempre o adoraram.

Contudo,aquelameninaesquisitaolhou-ocomoseelenãofossenada.Poruminstante,elesentiusuaconfiançaoscilar,depoislembrou-sedoqueseupailhedisseraumavez.

Osmelhoresvilõesfazem-noduvidar.Tedrosachavaquepodiaenfrentarqualquermonstro,qualquerbruxa,

qualquer força que oMal pudesse trazer. Aquela garota, no entanto, eradiferente.Aquelagarotaeraassustadora.

Opavorpercorreusuaespinha.Então,porqueelaestáemminhaescola?

As aulas de Comunicação Animal, ministradas pela Princesa Uma,aconteciam às margens da Baía do Meio do Caminho. Pela terceira veznaquele dia, Agatha chegou para a aula e descobriu que era só parameninas.Certamente,aEscoladoMalnãovianecessidadededecidiroqueera uma habilidade para “meninos” ou para “meninas”. Ali, contudo, nastorres do Bem, os meninos saíam para lutar com espadas enquanto asmeninastinhamqueaprenderlatidoscaninosepiosdecorujas.Nãoeradeadmirar-sequeasprincesas fossemtão impotentesnoscontosde fadas,elapensou. Se tudo o que podiam fazer era sorrir,manter a postura ereta e

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falar com esquilos, então que escolha tinham além de esperar que umgarotoviessesalvá-las?

A Princesa Uma parecia excessivamente jovem para ser professora.Aninhada em um belo gramado, iluminado por detrás pelo brilho de umlago,elaestavasentadaereta,comasmãoscruzadassobreovestidorosa.Ela tinha cabelos negros que iam até a cintura, pele morena, olhosamendoados e lábios vermelhos que formavam um pequeno O. Quandofinalmente falou, soltou uma risadinha boba e sussurrada, mas nãoconseguiu chegar ao final da frase. Dizia algumas palavras e parava paraouvirumaraposaouumpombodistante,erespondiacomseuprópriouivoou gorjeio. Quando percebeu que a turma inteira a olhava, ela cobriu orostocomasmãos.

“Ops!”,disse.“Tenhoamigosdemais!”Agatha não conseguiu identificar se ela estava nervosa ou se era

simplesmenteumaidiota.“O Mal tem muitas armas”, disse a Princesa Uma, finalmente

aquietando-se. “Venenos, pragas, maldições, maus-olhados, capangas emagianegra,muitonegra.Masvocêstêmosanimais!”

Agathariucomdeboche.Quandoestivessediantedeumcapangaqueempunhasse um machado, ela se asseguraria de levar uma borboleta. Ajulgarpelaexpressãodasoutras,nãoeraaúnicaquenãoseconvencera.APrincesaUmanotou.Aprofessorasoltouumassobioagudo,eumpunhadode latidos, uivos e rugidos irromperam da Floresta atrás da escola. Asmeninastaparamosouvidos,chocadas.

“Estãovendo?”,Umariu.“Todososanimaispodemfalarcomvocês,sesouberem falar com eles. Alguns até lembram-se de quando eramhumanos!”

Com um arrepio, Agatha pensou nos animais empalhados da galeria.Eramtodosex-alunos,domesmomodoqueelas.

“Eu sei que todas querem ser princesas”, disse Uma “Mas as quetiverembaixapontuaçãonãodarãoboasprincesas.Vocêsacabariamsendoalvejadas, esfaqueadas ou comidas, e isso não é muito útil. Entretanto,comoumaraposaauxiliar,umpardalespiãoouumporcoamistoso,talvezencontremumfinalmuitomaisfeliz!”

Ela deu um chiado entre dentes e, como se combinado, uma lontrasurgiunamargemdolago,equilibrandonofocinhoumlivrodecontosdefadascomjoiascravejadas.“Vocêspodemfazercompanhiaaumadonzela

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presa,ouguiá-laatéum local seguro”,disseUma,estendendoasmãos.Alontranervosabatiaofocinhonolivroparaencontrarapáginacerta...

“Oupodemajudara fazerumvestidodebaile”,disseUma,olhandoacriatura agitada. “Ou talvez entreguem uma mensagem importante ou –aham!” A lontra havia encontrado a página, deslizado o livro de volta àsmãosdela,edesabadopeloestresse.

“Vocêspodematésalvarumavida”,disseUma,segurandoumapinturadeumaprincesaamedrontadaenquantoumveadoespetavaumfeiticeiro.Aprincesaeraigualzinhaaela.

“Certavezumanimalsalvouaminhavidae,emcompensação,recebeuofinalmaisfelizdetodos.”

Agathaobservouosolharesdedesconfiançadasmeninasampliando-seaté transformarem-se em adoração. Ela não era simplesmente umaprofessora.Eraumaprincesaemcarneeosso.

“Portanto, se quiserem ser como eu, vocês precisam se sair bem nodesafiodehoje!”,disseacelebridaderecém-revelada,reunindoasmeninasno lago. Agatha sentiu-se estremecer, apesar do sol reconfortante deoutono. Se ela ficasse em último lugar dessa vez, ela nunca mais veriaSophie, nema sua casa. Ao seguir asmeninas até amargem, sentindo-seenjoada,AgathanotouolivrodeUmaabertonagrama.

“Animais adoram ajudar princesas, por muitos motivos!”, disse aPrincesa Uma, parando na beirada da água. “Porque cantamos belascanções, damos-lhes abrigo nas florestas assustadoras, porque apenasdesejamsertãolindoseadoradoscomo...”

“Espere.”Uma e as meninas viraram-se. Agatha segurou o livro de histórias,

aberto na última página – uma pintura do veado sendo dilacerado pormonstrosenquantoaprincesafugia.

“Comoissopodeserumfinalfeliz?”“Se você não for bom o suficiente para ser uma princesa, pode ter a

honrademorrerporuma,éclaro”,Umasorriu,comoseAgathalogofosseaprenderaquelalição.

Agatha olhou para as outras, incrédula, mas todas assentiam comocarneirinhos.Nãoimportavaseapenasumterçodelassegraduassemcomoprincesas. Cadaumaestava convencidadeque se tornariaprincesa.Não,aquelesanimaisempalhados,criaturasamontoadasnomuseu,nãohaviamsidomeninasiguaisaelas.Eramapenasanimais.EscravosdoBemMaior.

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“Masseosanimaisvãonosajudar,primeironóstemosquedizeraelesoquequeremos!”disseUma,ajoelhando-sediantedoreluzente lagoazul.“Portanto,odesafiodehojeé...”,elagirouodedonaáguaemilpeixinhosvieramàsuperfície,brancoscomoneve.

“Peixesdodesejo!”,Umadisse,radiante.“Elesvãofundoemsuaalmaeencontram seumaior desejo! (Muito útil se você perder a fala, e precisadizeraumpríncipeparabeijá-la.)Agora, sóprecisamcolocarseusdedosnaágua,eospeixes lerãosuasalmas.Ganhaameninaque tiverodesejomaisforteemaisclaro!”

Agathaficouimaginandooqueasalmasdaquelasmeninasdesejavam.Profundidade,talvez.

Millicent foi primeiro. Ela colocou o dedo na água, fechou os olhos...Quando ela os abriu, os peixes tinham ficado de cores diferentes, eolhavam-na,confusos.

“Oqueaconteceu?”,perguntouMillicent.“Mentenebulosa”,Umasuspirou.Depois Kika, a menina adorável que dera o batom de presente para

Agatha,colocouodedonaágua.Ospeixesficaramvermelhos,alaranjadosecordepêssego,ecomeçaramaformaralgumtipodeimagem.

O que as Boas almas almejam? Pensou Agatha, observando os peixesencaixando-se em seus lugares. Paz em seus reinos? Saúde para suasfamílias?AdestruiçãodoMal?

Emvezdisso,ospeixesdesenharamummenino.“Tristan!”,disseKika,reconhecendoseuscabelosclaros.“Eupegueisua

rosanasboas-vindas.”Agathagemeu.Eladeveriasaber.EntãoReenamergulhouodedo,eospeixesmudaramdecor,formando

omosaicodeummeninodeolhoscinzentos,colocandoumaflechaemseuarco.

“Chaddick”,Reenacorou.“TorredaHonra,quartodez.”Os peixes de Giselle desenharam omoreno Nicholas, Flavia desejava

Oliver, os peixes de Sahara pintaramBastian, companheiro de quarto deOliver... No início, Agatha achou aquilo tolo, mas agora estava ficandoassustador.EraporissoqueasalmasdoBemansiavam?Meninosquenemconheciam?Baseadasemquê?

“Amoràprimeiravista”,Umacorou.“Éacoisamaislindadomundo!”

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Agatha teve ânsias de vômito. Quem neste mundo poderia amargarotos?Matadoresembonecadoseinúteis,queachavamqueomundolhespertencia. Ela pensou em Tedros, e suas bochechas arderam. Ódio àprimeiravista.Nisso,sim,davaparaacreditar.

Com os peixes exaustos por terem desenhado tantos queixos bemtalhados,Beatrixforneceu-lhesograndeclímax,projetandonosPeixesdoDesejoumavisãoespetaculardoarco-írisdeumcasamentodecontosdefadascomTedros,comcastelo,coroasefogosdeartifício.Osolhosdetodasasmeninasficarammolhadosde lágrimas,ouporqueacenaera linda,ouporqueelassabiamquejamaispoderiamcompetir.

“Agora você deve caçá-lo, Beatrix!”, disse Uma. “Você precisa fazerdesseTedrosasuamissão!Suaobsessão!Porquequandoumaverdadeiraprincesaquerverdadeiramentealgo...”Elagirouosdedosnolago...

“Seus amigos unem-se por você...” Os peixes adquiriam um tomradiantederosa...

“Lutamporvocê...”Ospeixesseaglomeraram...“Etornamseusdesejosrealidade...”Umaenfiouobraçonaáguaetirou-

o.Ospeixeshaviamsetransformadonomaiordesejodesuaalma.“Oqueé?”,perguntouReena,confusa.“Umamala”,sussurrouaPrincesaUma,eabraçou-ajuntoaopeito.Ela olhou para as vinte meninas confusas. “Ah. Devo dar-lhes suas

avaliações?”“Maselaaindanãofoi!”,disseBeatrix,apontandoparaAgatha.Agatha

terialhedadoumasurra,masnãohaviaameaçanavozdeBeatrix.Aquelameninanãoestavaperturbadaporqueumlagocheiodepeixesacabaradetransformar-seemumamala.Emvezdisso,preocupava-seporqueAgathanãotiverasuavez.Nofimdascontas,elatalveznãofossetãomáassim.

“AssimReenapodeficarcomoquartodelaquandoelaforreprovada”,Beatrixsorriu.

Agathareconsiderou.“Oh,céus.Restauma?”,disseUma,olhandoparaAgatha.Elaolhoupara

olagosemPeixesdoDesejo,depoisparasuapreciosamalarosa.“Sempreacontece”, ela lamentou. Suspirando, ela jogou amala de volta no lago, eobservou-aafundarevoltaràsuperfícienaformademilpeixesbrancos.

Agathadebruçou-sesobreaáguaeviuospeixesencararem-na,comosolhos enfraquecidos. Por um instante, eles haviam encontrado o paraísodentro da mala. Então lá estavam novamente, gênios roubados da

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segurança de sua lâmpada. Não lhes importava se a vida dela estava emjogo.Sóqueriamserdeixadosempaz.Agathatevepenadeles.

O meu é fácil, ela pensou. Eu só não quero fracassar. Só isso. Nãofracassar.

Elaenfiouodedonaágua.Ospeixescomeçaramatremercomotulipasaovento.Agathaouviaos

desejosrelutantesemsuacabeça...Não fracassar... emcasanacama...não fracassar... Sophie segura...Não

fracassar...Tedrosmorto...Ospeixesficaramazuis,depoisamarelos,depoisvermelhos.Osdesejos

foramvarridosparadentrodeumciclone.Novosrostos...omesmorosto...cabelos louros...detestocabelos louros!...

maisamigos...nenhumamigo...“Não está apenas nebulosa”, murmurou a Princesa Uma. “Está

completamenteconfusa!”Os peixes, vermelhos cor de sangue, começaram a tremer, como se

fossem explodir. Alarmada, Agatha tentou tirar o dedo, mas a águasegurou-acomosefosseumpunhofechado.

“Masque...”Ospeixesficarampretoscomoanoite,evoaramatéAgathacomoímãs

para o metal, aglomerando-se em sua mão e formando uma massatremulante. As meninas fugiram da margem, horrorizadas; Uma ficouestática, em choque. Agatha tentou freneticamente arrancar a mão dali,massuacabeçaexplodiadedor...

CasaEscolaMãePaiBemMalMeninosMeninasSempreNunca...SegurandoamãodeAgatha,ospeixessacudiamcadavezmaisfortee

mais depressa, até que não era mais possível distinguir uns dos outros.Seus olhos saltavam como botões, suas barbatanas batiam até sedespedaçarem, suas barrigas inchavam-se em veias e vasos, até que elessoltarammilhõesdegritostorturados.Agathasentiusuacabeçadividir-seemduas...

Fracasso Vitória Verdade Mentiras Perdido Encontrado Forte FracoAmigoInimigo

Os peixes incharam formando umamassa negra comoumbalão, quesubiaporsuamão.Agathasacudia-separasoltarodedo,atéqueouviuseuossoquebrar-se,egritoudeagonia,enquantoospeixessugavamseubraçointeiroparadentrodocasulonegro.

Page 112: Escola do bem e do mal

“Socorro!Alguémmeajude!”Ocasuloelevou-seatéseurosto,sufocandoseusgritos.Comumberro

agudoeruidoso,abolhamortalengoliu-a.Agathadebatia-separarespirar,chutavatentandosair,masadoremsuacabeçaforçava-aemumaposiçãofetal.

ÓdioAmorPuniçãoRecompensaCaçaCaçadorViverMorrerMatarBeijarTomarGritandoemvingança,ocasulonegrosugava-amais,comoumtúmulo

gelatinoso, sufocandoseusúltimossuspiros, sugandocadaúltimagotadevida,atéquenãohavianadamaispara...

Doar.Osgritospararam.Ocasuloafastou-se.Agathacaiuparatrás,emchoque.Emseusbraçoshaviaumamenina.Denomáximo12ou13anos,coma

pele morena e os cabelos escuros cacheados. Ela remexeu-se, abriu osolhos,esorriuparaAgatha,comoseelafosseumavelhaamiga.

“Cemanosevocêfoiaprimeiraadesejarmelibertar.”ElaacariciouorostodeAgatha.

“Obrigada.”Ela fechouosolhos, e seu corpo ficoumolenosbraçosdeAgatha.De

pedacinho em pedacinho, a menina começou a reluzir em um douradoquente,enumaexplosãode luzbrancaeladissipou-seemraiossolares,edesapareceu.

Agathaficouolhandoparaolago,completamentesempeixes,eouvindoabatidafracadeseucoração.Eracomoseassuasentranhastivessemsidosurradasetorcidas.Elaergueuodedo,queestavacurado,comonovo.“É...tudoissofoi...”Elarespiroufundoevirou-se.

“NORMAL?”A turma inteira havia desaparecido por trás das árvores, incluindo a

PrincesaUma,cujaexpressãorespondiaàsuapergunta.Gorjeios ruidosos vinhamdo alto. Agatha olhou para cima, para uma

pombinhaamistosaaquemsuaprofessoracumprimentaramaiscedo.Noentanto,oschamadosdapombanãoerammaisamistosos,esimselvagensefrenéticos.LádaFlorestaSemFimvinhaumrugidoderaposa,guturaleperturbado. Então, ouviram-semais uivos e gemidos de toda parte, masnãocomoasboas-vindasdeantes.Agoraosanimaisestavamem frenesi.Elesgritavamcadavezmaisalto,cadavezmaisfebris...

Page 113: Escola do bem e do mal

“O que está acontecendo?”, gritou Agatha, com as mãos sobre osouvidos.

AssimqueviuorostodaPrincesaUma,elasoube.Elesqueremomesmo.Antes que Agatha pudesse mexer-se, o estampido começou a vir de

todasasdireções.Esquilos,ratos,cães,toupeiras,veados,pássaros,felinos,coelhos, a lontra atrapalhada – cada animal do território escolar, cadaanimalque conseguia espremer-sepelosportões, disparavaemdireçãoàsuasalvadora...

Faça-noshumanos!Elesexigiam.Agathaficoubranca.Desdequandoelapodiaentenderanimais?Salve-nos,Princesa!Elesgritavam.Desdequandoelapodiaentenderanimaisdelirantes?“Oqueeufaço?”,Agathagritou.Umaolhourapidamenteparaaquelesanimais,seusfantochesfiéis,seus

amigosdopeito...“CORRA!”PelaprimeiravezalguémnaquelaescoladeuaAgathaumconselhoque

lhe foi útil. Ela disparou para as torres, enquanto as aves bicavam suasmãos,os ratosagarravam-seàs suasbotinas, eos sapospulavamemseuvestido.Abanandoaturba,elasubiuacolina.Então,protegendoacabeça,fugiu de porcos, falcões, lebres.Mas assim que avistou as portas com oscisnesbrancos,umalcesaiucorrendodasárvoresesaltou–elaabaixou-see o alce caiu, espetando-se nos cisnes. Agatha disparou pelo salão dasescadariasdevidro,passandoporPólux,comsuaspatasdebode,quedeuumaolhadaparaoataqueviolentoquevinhaatrásdela.

“Masquediabo...”“Umaajudinha!”,elaberrou...“NÃOSEMEXA!”,Póluxgritou...Agatha,porém,jáestavasubindoaescadadaHonra.Quandoelaolhou

pra trás,viuPóluxenxotandoosbichos,àesquerdaeàdireita,antesquemil borboletas irrompessem pela claraboia, derrubando sua cabeça daspernasdebode,edeixandoahordaparapersegui-laescadaacima.

“NASTORRES,NÃO!”,gritouacabeçadePólux,enquantorolavaportaafora...

Contudo,Agathapassou comoum raiopelos corredores e entrounassalasdeauladoRefúgiodeJoãoeMaria.Enquantomeninoseprofessores

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lidavamcomporcos-espinhos(inapropriadamente),emeninasaosberrossubiamnascarteirasdesaltoalto(muitoinapropriadamente),elatentavaescapardorebuliço,masosanimaissimplesmenteabocanhavamosdocesecontinuavam a perseguição. Ainda assim, ela conseguiu ganhar distânciasuficiente para subir correndo a escada, deslizar pela porta de vidrojateado,efechá-lacomumchuteantesqueaprimeiradoninhapassasse.

Agathacurvou-sesobasombradassebesimponentesdoReiArthur.Abrisa glacial do telhado penetrou em seus braços nus. Ela não durariamuitotempoaliemcima.Enquantofixavaosolhosnaporta,esperandoqueumprofessorouumaninfaviessesalvá-la,elaviualgorefletidonela.

Agathavirou-seeviuumasilhuetacorpulentaemmeioànévoasolar.Respiroualiviada.Aomenosporumavez,estavagrataporummenino,ecorreuemdireçãoaoseupríncipesemrosto...

Eladeuumsaltopara trás.A gárgula chifruda irrompeunaneblinaearrebentouasportascomumaboladefogo.Agathaafundou-separaevitaruma segunda bomba incendiária que ateou fogo ao nicho que abrigava acena de casamento de Arthur com Guinevere. Ela tentou rastejar para onichoseguinte,masagárgulasimplesmentequeimou-osumaum,atéqueahistória do rei transformou-se em uma tempestade de cinzas. Presa emmeio às chamas, Agatha olhou para cima, para o demônio que ardia emchamas,enquantoeleaprendiadebruçosnochão, comseupégélidodepedra.Destaveznãohaviacomofugirdele.Elasentiu-sefraquejarefechouosolhos.

Nadaaconteceu.Ela abriu os olhos e encontrou a gárgula ajoelhada à sua frente, tão

pertoquepôdeveros reflexosemseusolhosvermelhos.Reflexosdeumgarotinhoassustado.

“Vocêqueraminhaajuda?”,sussurrou.Agárgulapiscoudevolta,comlágrimasdeesperança.“Mas...mas...eunãoseicomofiz”,gaguejou.“Foi...umacidente.”Agárgulaolhouemseusolhos,eviuqueelaestavadizendoaverdade.

Eladesabounochão,espalhandocinzasàsuavolta.Olhandoparaomonstro,apenasoutracriançaperdida,Agathapensou

emtodasascriaturasdestemundo.Elasnãoseguiamordensporqueeramleais.Nãoajudavamprincesasporqueeramamáveis.Faziam issoporque,algumdiatalvez,alealdadeeoamorfossemretribuídoscomumasegundachancedevoltaremaserhumanos.Somenteatravésdeumcontodefadas

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elaspoderiamencontrarocaminhodevolta.Aosseuseusimperfeitos.Àssuas vidas sem histórias. Agora ela também era um desses animais,procurandoumasaída.

Agathaabaixou-seepegouamãodagárgula.“Eugostariadepoderajudá-la”,disse.“Gostariadepoderajudartodos

nósairparacasa.”Agárguladeitouacabeçaemseucolo.Enquantooincêndiodosanimais

empalhados rodeava-as, ummonstroeumagarota choravam,nosbraçosumdooutro.

EntãoAgathasentiuseutoquepétreosuavizar-se.A gárgula deu um pulo para trás, em choque. Sua casca e sua pedra

racharam-se... suas garras suavizaram-se, transformando-se em mãos...seusolhosiluminaram-secominocência.Perplexa,Agathacorreuparaele,esquivando-se das chamas, no momento em que o rosto do monstrocomeçouaderreter,transformando-senorostodeummenininho.Comumsuspirodealegria,elaestendeuosbraçosparaele...

Eumaespadaespetouseucoração.Agárgula imediatamentevoltouaserdepedra,esoltouumgritopelatraição.

Agathavirou-se,horrorizada.Tedros saltou por uma parede de fogo para cima do crânio chifrudo,

empunhandoaExcalibur.“Espere!”,elagritou...Opríncipe,noentanto,estavaolhandoparaas lembrançasdeseupai,

emchamas.“Monstroimundoeperverso!”,eledisse,engasgado...“Não!”Tedroslançouaespadanopescoçodagárgula,edecepousuacabeça.“Eleeraummenino!Ummenininho!”,Agathagritou.“EleeradoBem!”Tedrospuloubempertodo rostodela. “Agora eu sei quevocêéuma

bruxa.”Eladeu-lheumsoconoolho.Antesquepudesse socarooutro, fadas,

loboseprofessoresdasduasescolasirromperamnatorre,bematempodeverumaondafuriosabaternotelhadoemchamas,apartandoosinimigos.

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9Oshowdetalentoscemporcento

Sophie tinha certeza de que Beatrix tinha provocado o fogo parachamar a atenção de Tedros. Sem dúvida, ele a tinha salvo da torre emchamasebeijado-a,enquantooBemqueimava,eelesjáhaviammarcadoadatadocasamento.Sophieinventouessateoriaporqueissoeraoquetinhaplanejado fazer no almoço. Em vez disso, as aulas foram canceladastambémnodiaseguinte,deixando-anoquarto,àmercêdetrêsassassinas.

Olhavaavasilhadeferronacama,comummingauempapadoepédeporco.Depoisde trêsdiasde total inanição, sabiaqueprecisava comeroalmoçopavorosomandadopelaescola,masaquiloerapiorquepavoroso.Aquiloeracomidadecamponeses.Elaarremessouopratopelajanela.

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“Você sabe onde eu poderia encontrar pepinos neste lugar?”, disseSophie,virando-se.

Hester fezumacara feiapara ela, dooutro ladodoquarto. “OGanso.Comofezaquilo?”

“Pela última vez, Hester, eu não sei”, disse Sophie, com a barrigaroncando. “Ele prometeu trocar-me de escola, mas mentiu. Talvez tenhaficado doido depois de colocar tantos ovos. Você conhece umahorta poraqui,comalfafaougrama,ou...”

“Vocêfaloucomele?”,disparouHester,comabocacheiadepédeporcolimoso.

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“Bem, não exatamente”, disse Sophie, nauseada. “Mas eu podia ouvirseus pensamentos. Diferentemente de vocês, princesas podem falar comanimais.”

“Masnãoouvirseuspensamentos”,disseDot,lambendoumgrudequeparecia ter sabor de chocolate. “Para isso, sua alma tem de ser cem porcentopura.”

“Pronto!SoucemporcentoBoa”,disseSophie,aliviada.“OucemporcentoMá”,respondeuHester.“Dependeseacreditamosem

você,ounosstymphs,nosuniformes,noGanso,enaquelaondamonstra.”Sophie ficouolhandoparaelae começouadebochar. “Cempor cento

Má?Eu?Issoéabsurdo!Maluquice!Issoé...”“Impressionante”, disse Anadil. “Até Hester já poupou um ou dois

ratos.”“E nós todas achando que você era uma incompetente”, Hester disse,

olhando Sophie com escárnio. “E você é apenas um lobo em pele decordeiro.”

Sophietentoupararderir,masnãoconseguia.“Aposto que ela tem um Talento Especial que vai arrasar com os

nossos”,disseDot,mastigandoalgoquepareciaumpezinhodechocolate.“Não entendo”, Sophie disse, com sarcasmo. “De onde vem todo esse

chocolate?”“O que é?”, Anadil sussurrou. “Qual é o seu talento? Visão noturna?

Invisibilidade?Telepatia?Garrasvenenosas?”“Nãomeimportaoqueé”,rosnouHester. “Elanãopodesuperarmeu

talento.Nãoimportaquãovilãelaseja.”AgoraSophieriacomtantaforça,queestavachorando.“Escute aqui”, Hester estava furiosa, fechando os punhos ao lado do

prato.“Estaéminhaescola.”“Podeficarcomsuamíseraescola!”,disseSophie.“EusouCapitãdaTurma!”rugiuHester.“Eunãoduvido!”“EnãovaiterLeitoranenhumaatrapalhandomeucaminho!”“Seráquetodososvilõessãoengraçadosassim?”HestersoltouumcacarejoiradoearremessouseupratoemSophie,que

se abaixou bem na hora e viu-o espatifar-se no pôster com as palavrasProcura-senaparede,arrancandoacabeçadeRobin.Sophieparouderir.EladeuumaespiadaporcimadacamachamuscadaparaverHester,com

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suasilhuetadiantedaportaaberta,negracomoamorte.Porumsegundo,Sophieachouquesuatatuagemtinhasemexido.

“Fiqueesperta,bruxa”,vociferouHester,batendoaporta.Sophieolhouparabaixo,paraseusdedostrêmulos.“Enósaquiachandoqueelaseriareprovada!”,disseDot,portrásdela.

Agathasabiaqueseriabemruim,seelestivessemdeixadoqueumloboalevasse.

Depoisdoincêndio,ficoutrancadaemseuquartopordoisdias,tendopermissãopara sair apenaspara ir aobanheiroe receberas refeiçõesdelegumescrusesucodeameixadas fadascarrancudas.Finalmente,apósoalmoçodoterceirodia,olobobrancoveioealevou.Cravandoasgarrasnamanga de seu vestido rosa puxou, passando pelos murais do salão dasescadarias, pelos Sempre e pelos professores furiosos, que nemconseguiamolhá-lanosolhos.

Agatha lutou contra as lágrimas. Ela já possuía duas notas dereprovação.Incitarumestampidoanimaleatearfogonaescolarenderam-lhea terceira.Tudooque tinhaa fazerera fingirqueeraBoaporalgunsdias, mas nem isso ela conseguia. Como pôde pensar que duraria ali?Beleza.Pureza.Virtude.SeeraaquilooBem,entãoelaeracemporcentodoMal. Agora seria punida. E Agatha sabia o bastante sobre punições decontosdefadas–desmembrar,estripar,ferveremóleoquente,escalpelarpessoasvivas–parasaberqueseufimenvolveriasangueedor.

Oloboarrastou-apelaTorredaCaridade,epassouporumpica-pauquebicavaanovatabuletadeavaliaçõesnaportadaSaladeEmbelezamento.

“VamosatéoDiretordaEscola?”,perguntouAgatha.Olobobufou.Elearrastou-aatéasalanofimdocorredorebateuuma

vez.“Entre”,disseumavozbaixa,dedentro.Agathaolhounosolhosdolobo.“Eunãoqueromorrer.”Pelaprimeiravez,seuolhardedebocheabrandou-se.“Eutambémnãoqueria.”Eleabriuaportaeempurrou-aparadentro.

Aparentemente,oincêndiohaviasidofinalmentecontrolado,porqueasaulas foramretomadasapósoalmoçodoterceirodia,eSophieviu-seem

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uma salade aulaúmida ebolorenta, cujamatéria eraTalentosEspeciais.Contudo, ela mal podia focar sua atenção em qualquer coisa, com suabarriga roncando. Hester lançava-lhe seus olhares assassinos, e Dotcochichava com outros Nunca sobre a companheira de quarto “cem porcento do Mal”. Tinha dado tudo errado. Ela havia começado a semanatentandoprovarqueeraumaprincesa.AgoraestavamtodosconvencidosdequeelaseriaaCapitãdoMal.

A aula de Talentos Especiais era ministrada pela professora SheebaSheeks, uma mulher rechonchuda e com furúnculo nas duas bochechas.“Todovilãotemumtalento!”,elagritou,comsuavozcantarolada,andandode um lado para o outro, com um traje apertado de veludo vermelho eombreiras pontudas. “Mas nós temos que transformar seu arbusto emárvore!”

Comodesafiododia,cadaNuncatinhaquemostrarumtalentoúnicoàturma.Quantomaispotentefosseotalento,maisaltaseriaaavaliaçãodoaluno.Noentanto,oscincoprimeirosnãoapresentaramnada,eVexficouchoramingando,dizendoquenemconheciaseutalento.

“É issoquevocêvaidizeraoDiretordaEscola,noCirco?”,perguntou,num estrondo, a professora Sheeks. “‘Não conheçomeu talento’, ou ‘nãotenho talento’, ou ‘nãogostodomeu talento’, ou ‘quero trocarde talentocomaRainhadaFrescura?’”

“Elameenganouatéofinzinho”,disseDot.“Todo ano, oMal perde o Circo de Talentos!”, Sheeba gritou. “O Bem

cantaumacanção,oubalançaumaespada,ou limpaos traseiros,evocêsnão conseguem arranjar nadamelhor? Não têm orgulho? Vocês não têmvergonha?Chega!Nãomeinteressasetransformamhomensempedras,ouhomensemcocô!EscutemSheeba,eserãoonúmeroum!”

Vinteparesdeolhosencaravam-na.“Queméopróximopirralho?”,eladisse,bemalto.

As lastimáveis demonstrações prosseguiram. Mona, que tinha a peleverde,fezseuslábiosreluzirememvermelho.(“PorquetodopríncipetemmedodeárvoredeNatal”,gemeuSheeba.)Anadilfezseusratoscresceremumcentímetro.Hort feznascerumpelo em seupeito,Arachne fez saltarseuúnicoolho,Ravanarrotoufumaça,ebemnahoraemqueaprofessoraestavatotalmentefarta,Dottocouacarteiraetransformou-aemchocolate.

“Mistériosolucionado”,Sophiemaravilhou-se.

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“Nuncaviumfestivaltãograndedeinutilidadesemtodaaminhavida”,Sheebadisse.

Hestereraapróxima.EncarandoSophie,elapegouamesacomasduasmãos,apertando-acadavezcommaisforça,atéquecadaveiadelaestufou-sesobsuapelevermelha.

“Setransformaemmelancia”,Sophiebocejou.“Muitoespecial,defato.”Então algomoveu-se no pescoço de Hester, e a turma congelou. Sua

tatuagem mexeu-se novamente, como uma pintura que ganha vida. Odemôniodecrâniovermelhoabriuumadasasas,depoisaoutra,virousuacabeça chifruda para Sophie, e abriu seus olhos rasgados e vermelhos. OcoraçãodeSophiedisparou.

“Eulhedisseparaficaresperta”,Hestersorriu.O demônio saltou da pele e disparou na direção de Sophie, lançando

labaredasvermelhasemsuacabeça.Estarrecida,elacaiuparatrásquandotentoudesviar-se,derrubandoumaprateleiradelivrosnochão.Afera,dotamanho de um sapato, lançou-lhe um raio que ateou fogo em seuuniforme,eSophierolounochãoparaapagaraschamas.“SOCOOORRO!”

“Useseutalento,sualouraincompetente!”,Sheebagritou,sacudindoosquadris.

“Eladeveriacantar”,palpitouDot.“Matariatodosnasala.”Hester ordenou a seu demônio um segundo ataque, só para vê-lo

emaranhar-se em uma teia de aranha do candelabro. Sophie engatinhoupor trás da última fileira, e vislumbrou um livro caído, Enciclopédia devilões,erapidamentefolheouaspáginas.Banshee,Beanighe,Berserker...

“Sophie,andelogo!”,Hortgritou.Sophievirou-seeviuaferaaladairromperdateiadearanha,enquanto

os olhos de Hester faiscavam, percorrendo a sala. Ela folheavadesesperadamente.Morcegosdacripta,ciclopes...demônios!

Dezpáginasemletrasmiúdas.Demôniossãoseressobrenaturaisqueseapresentamemumaquantidadeimpressionantedeformas,todoscomforçasefraquezas...

Sophievirou-se.Odemônioestavaacincopalmosdedistância...“Seutalento!”,rugiuSheeba.Sophiearremessouo livronodemônioeerrou.Comumsorriso letal,

ele segurou um raio, como um punhal. Sheeba saltou para interferir, eAnadilafeztropeçar.Dandoumgritoagudo,odemôniomirouorostode

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Sophie. Contudo, ao lançar o raio, Sophie subitamente lembrou-se de umtalentoquetodasasmeninasboastinham...

Amigos.Elavoltou-separaajanelaesoltouumassobiomaravilhoso,embusca

deumanimalbondosoqueviessesalvarsuavida...Vespasnegrasentrarampelajanela,eenxamearamodemônio.Hesterdeuumsaltoparatrás,comosetivessesidoapunhalada.OsolhosdeSophiearregalaram-sedeterror.Elaassobiounovamente,

masagoramorcegosentraram,cravandoosdentesnodemônio,enquantoasvespascontinuavama ferroá-lo.Odemônioencolheu-senochãocomoumamariposaqueimada. Sentadaemseu lugar,Hester foi ficando comapelebrancaepegajosa,semsangue.

Alarmada,Sophieassobiouaindamaisalto,masentãovieramnuvensdeabelhasegafanhotos,cercandoacriaturaespumante,enquantoHesterentravaemconvulsãoviolenta.

No canto, Sophie estava paralisada, enquanto os vilões gritavam,afastandoosbichosdodemôniocomlivrosecadeiras,masoenxameeraimpiedoso e atacava brutalmente, até que Hester deu seus últimossuspiros.

Sophiejogou-sesobreodemônioenfiandoasmãosnoenxame...“PAREM!”O enxame parou totalmente. Como crianças que receberam uma

bronca, eles afastaram-se obedientemente, e saíram pela janela em umanuvemescura.

Gemendo,odemônioferidoesticouasgarrasparaHester,edespencoudevoltaemseupescoço.Hesterengasgouetossiumuco,depoisdequasemorrer.Elaficouboquiaberta,olhandoSophie,tomadademedo.

Sophieaproximou-separaajudá-la.“Nãotiveaintenção...euqueriaumpássaro,ouum...”Hesterencolheu-secomseutoque.

“Princesas chamamanimais!”, Sophiegritou,no silêncio. “EusouBoa!CemporcentoBoa!”

“Obrigada,Belzebu!”Sophievoltou-separaaprofessora.“Parece uma princesa! Age como uma princesa! Mas é uma bruxa”,

Sheeba disse, cambaleando para ficar empé. “Guardemminhas palavras,suasinúteis!EssavaiganharaCoroadoCirco!”

Page 123: Escola do bem e do mal

Pela segunda vez seguida em dois desafios, Sophie viu a avaliaçãomáxima,emfumaçavermelha,pairandoacimadesuacabeça.

Empânico,elavirou-separaapelarparaascolegasdeturma,maselasjá não a olhavam com desprezo ou deboche. Elas olhavam-na com umaexpressãodiferente.

Respeito.SeulugarcomoVilãNúmeroUmficavamaisgarantidoacadaminuto.

Deperto,aprofessoraClarissaDovey,comseucoquegrisalhoerostorosado,pareciaaindamaisafável,ecomumardeavó.Agathanãopoderiadesejarumacarrascamelhor.

“Eupreferiria queoDiretordaEscola tratassedessas coisas”, disse aprofessoraDovey,folheandopapéissobumpesodecristalemformatodeabóbora. “Mas todos nós sabemos como ele é a respeito de suaprivacidade.”

Finalmente, ela olhou para cima, para Agatha. Ela não mais pareceuafável.

“Tenhouma escola repleta de alunos aterrorizados, dois dias de aulapara repor, quinhentos animais cujas memórias precisam ser apagadas,umaaladesalasdeaulaquefoicomida,umrelicárioreduzidoacinzas,euma gárgula decapitada enterradadebaixo de tudo isso. E você sabeporquê?”

Agatha não conseguia fazer com que as palavras saíssem de suagarganta.

“Porque você desobedeceu a uma simples ordem de Pólux”, disse aprofessora Dovey. “E isso quase custou vidas.” Ela lançou um olhar queconstrangeuAgathaevoltouaosseuspapéis.

Agatha olhou pela janela, para as margens do lago onde os Sempreestavamterminandooalmoçode frangoassadocommostarda,espinafre,crepes de queijo gruyère e taças de cidra demaçã. Ela podia ver Tedrosrepresentando a cena dos animais empalhados para uma plateiaenfeitiçada,mostrandoseuolhoroxocomoumamedalhadehonra.

“Possopelomenosmedespedirdaminhaamiga?”,disseAgatha,comosolhosenchendo-sedelágrimas.Elavirou-separaaprofessoraDovey.

“Antesquevocês...mematem?”“Issonãoseránecessário.”

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“Maseuprecisovê-la!”A professora Dovey olhou para ela. “Agatha, você foi avaliada em

primeiro lugar por sua atuação em Comunicação Animal, e muitolegitimamente.Somenteumtalentoraroconseguefazerumdesejotornar-se realidade. E embora haja diferentes percepções do que aconteceuexatamentenotelhado,devoacrescentarquequalquerpupilodestaescolaquearriscasseavidaparaajudarumagárgula...”Osolhosdelabrilharame,por um momento, também o cisne prateado em seu vestido. “Bem, issosugereBondadealémdequalquermedida.”

Agathaficouolhandoparaela,semconseguirfalarnada.“Massevocêdesobedeceroutraordemdiretadeumprofessor,Agatha,

eulhegarantoqueseráreprovada.Entendido?”Agathaconcordou,aliviada.Elaouviurisosláforaevirou-se,vendooscolegasdeTedroschutarem

um boneco feito de travesseiros, pernas de gravetos, olhos de carvão eespinhospretoscomocabelos.Umaflechasubitamenteespetousuacabeça,lançando penas para todos os lados. Uma segunda flecha atravessou seucoração.

Osmeninos pararam de rir e viraram-se. Do outro lado do gramado,Tedrosjogouseuarconochão,esaiuandando.

“Quanto à sua amiga, ela está indo muito bem onde está”, disse aprofessoraDovey,folheandooutrospapéis.“Masvocêpoderáperguntaraelapessoalmente.Elaestaráemsuapróximaaula.”

Agatha não estava ouvindo. Seus olhos ainda estavam na boneca deolhosmortos,sangrandopenasaovento.

Abonecaqueeraigualzinhaaela.

Page 125: Escola do bem e do mal

10Gruporuim

“Quem mais está em nosso grupo?” Agatha perguntou a Sophie,rompendoatensão.

Sophie não respondeu. Na verdade, ela agia como se Agatha nemestivesseali.

Aúltimaauladodia,SobrevivendoaContosdeFadas,eraaúnicaquemisturavaalunosdoBemedoMal.DepoisqueaprofessoraDoveyordenouque os meninos Sempre fossem ao setor de Armamentos para devolversuasarmaspessoais–únicamaneiradeacalmarLadyLesso,furiosaporterperdido uma gárgula para a espada de Tedros – as duas escolasapresentaram-senosportõesdaFlorestaAzul,ondeasfadasdividiram-nasem Grupos Florestais, com oito Sempre e oito Nunca em cada grupo.Enquantooutrosalunosencontravamseuslíderes(umogroparaoGrupo2,umcentauroparaoGrupo8,umaninfalírioparaoGrupo12),AgathaeSophie foramasprimeirasachegardebaixodeumabandeira,estampadacomum3vermelho-sangue.

Page 126: Escola do bem e do mal

AgathatinhatantoadizeraSophiesobresorrisos,peixeseincêndios,e,mais do que tudo, sobre aquele filho nojento do Rei Arthur, mas Sophienemolhavaparaela.

“Nãopodemossimplesmenteirpracasa?”,implorouAgatha.“Por que você não vai pra casa, antes que seja reprovada, ou acabe

virando uma toupeira?” Sophie estava enfurecida. “Você está na minhaescola.”

“Entãoporqueelesnãonosdeixamtrocar?”Sophievirou-separaela.“Porvocê...porquenós...”“Precisamosirparacasa”,Agathaencarava-a.Sophieesboçouseusorrisomaisbondoso.“Cedooutarde,elesverãoo

queécerto.”

Page 127: Escola do bem e do mal

“Eudiriaquecedo”,umavozfalou.Elas viraram-se e viramTedros, de camisa chamuscada e como olho

inchado,azuleroxo.“Sevocêestáansiosoporalgoparamatar,quetalmatar-sedessavez?”,

disparouAgatha.“Um‘obrigada’jáseriasuficiente”,Tedrosdisparoudevolta.“Arrisquei

minhavidaparamataraquelagárgula.”“Vocêmatouumacriançainocente!”,Agathagritou.“Eusalveivocêdamortecontratodoinstintoerazão!”,rugiuTedros.Sophieficouolhandoosdois,boquiaberta.“Vocêsseconhecem?”Agatha virou-se para ela. “Você acha que ele é seu príncipe? Ele é

apenasumsacodeventoquenãoconsegueencontrarnadaprafazeralémdeficarsemostrandoporaícommetadedocorponu,eenfiaronarizondenãodeve!”

“Ela só está zangada porque me deve a sua vida”, Tedros bocejou,coçando o peito. Ele sorriu para Sophie. “Então, você acha que sou seupríncipe?”

Sophie corou delicadamente, da forma como havia ensaiado antes daaula.

“Eusabiaqueeraumerro,noeventodeboas-vindas”,disseopríncipe,estudando-a com olhos azuis inquietos. “Uma menina como você nãodeveriaestarnempertodoMal.”Elevirou-separaAgathacomumacareta.“Eumabruxacomovocênãodeveriaestarnempertodealguémcomoela.”

Agathadeuumpassonadireçãodele. “Emprimeiro lugar,estabruxaporacasoéamigadela.Emsegundo,porquevocênãovaibrincarcomosseusamigosantesqueeufaçaseusdoisolhoscombinarem?”

Tedros riu com tanta força que teve de se segurar no portão. “Umaprincesaamigadeumabruxa!Issosiméumcontodefadas.”

Agatha franziu o rosto para Sophie, esperando que ela a defendesse.Sophieengoliuemseco,evirou-separaTedros.

“Bem, é engraçado você dizer isso, porque uma princesa certamentenãopodeseramigadeumabruxa,claro,masissonãodependedotipodebruxa?Querdizer,qualéexatamenteadefiniçãodeumabruxa...”

AgoraTedrosfranziaorostoparaela.“É...querdizer,oqueestoutentandodizeréque...”SophiedesviouoolhardeTedrosparaAgatha,deAgathaparaTedros...ElaentrounafrentedeAgatha,epegouamãodeTedros.

Page 128: Escola do bem e do mal

“MeunomeéSophie,eeugostodoseuhematoma.”Agathacruzouosbraços.“Ora, ora”, disse Tedros, olhando nos olhos verdes provocantes de

Sophie.“Comoéquevocêestásobrevivendonaquelelugar?”“Porqueeusabiaquevocêmesalvaria”,disseSophie,ofegante.Agathatossiuparalembrá-losdequeelaaindaestavaali.“Vocêsópodeestarbrincando”,disseumavozfemininaatrásdeles.Elesviraram-seeviramBeatrix,debaixodomaldito“3”,juntocomDot,

Hort, Ravan, Millicent e o restante de seu Grupo Florestal. Se alguémmapeasse todos os olhares maldosos lançados naquele momento, oresultadofinalseassemelhariaaumpratodeespaguete.

“Humm”,disseumavozvindadebaixo.Elesolharamparabaixoeviramumgnomodeummetrodealturaem

umburaconochão,franzindoorosto,comumapeleenrugadaemarrom,umcasacoverdeacinturadoeumchapéularanjapontudo.

“Gruporuim”,elemurmurou.Resmungandoruidosamente,Yuba,ognomo,saiudesuatoca,abriuo

portãocomseubastãobranco,e levouosalunosparadentrodaFlorestaAzul.

Por alguns momentos, todos se esqueceram de seus rancores edeslumbraram-secomomaravilhosomundoazuladoemvoltadeles.Cadaárvore,florefolhadegramacintilavaemumtomdiferentedeazul.Raiosdelgados de sol brilhavam por entre coberturas de folhas, iluminandotroncos azul-turquesa e flores azul-marinho. Alces alimentavam-se dearbustosazuiscelestes,corvoserouxinóispiavamemurtigascordesafira,esquilos e coelhos perambulavam por entre roseiras azul-cobalto, atéjuntarem-se a cegonhas que bebiam água de um lago azul-ultramarino.Nenhumanimalpareciaarisco,ouminimamenteincomodadopelopasseiodosalunos.EmboraSophieeAgathasempretivessemassociadoflorestasaperigoeescuridão,essainspirava-lhesapazeavida.Pelomenosatéveremumbandodeossudospássarosstymphquedormiamemseusninhosazuis.

“Eles deixam esses pássaros circular perto dos alunos?”, perguntouSophie.

“Eles dormem durante o dia. São totalmente inofensivos”, Dotsussurroudevolta.“Amenosqueumvilãoosdesperte.”

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Enquantoseusalunososeguiam,YubaprosseguiacontandoahistóriadaFlorestaAzul,comsuavozfalhadaerouca.Eraumavezumtempoemquenãohavia aulasmistasnaEscola doBemedoMal. Emvezdisso, osalunosgraduavam-sediretode suasescolaspara treinarnaFlorestaSemFim. Antes de poderem engajar-se em uma batalha, porém, os alunos doBem e do Mal inevitavelmente tornavam-se presas de javalis famintos,duendesembuscadealimento,aranhasmal-humoradas,e,ocasionalmente,datulipacarnívora.

“Nós tínhamos descartado o óbvio”, disse Yuba. “Um aluno não podesobreviveremseucontodefadassenãosobreviveràfloresta.”

EntãoaescolacriouaFlorestaAzul,comoterritóriodetreinamento.Afolhagem azulada, sua marca registrada, surgiu de encantamentos deproteçãoquemantinhamosintrusosdoladodefora,enquantolembravamaos alunos de que isso era apenas uma imitação de uma floresta maistraiçoeira.

Quão traiçoeira era amata verdadeira, os alunos puderam sentir emprimeira mão, quando Yuba deixou-os passar pelos Portões do Norte.Embora ainda houvesse luz do sol no início da noite de outono, a mataescuraedensarepelia-acomoumescudo.Eraumaflorestadenoiteeterna,comcadapedacinhodeverdeenegrecidopelasombra.Àmedidaqueseusolhosforamajustando-seàescuridão,osalunospuderamverumcaminhodeterraporentreasárvores,comoumalinhadavidaquevaisumindonapalma da mão de um velho. Dos dois lados do caminho, vinhasestrangulavamasárvoresemtouceirasgrossas,portanto,quasenãohaviavegetaçãorasteiraentreelas.Oquerestaradosoloda florestahaviasidoenterradosobespinhosretorcidos,galhospontiagudoseteiasenfileiradas.Nada disso, porém, amedrontava os alunos tanto quanto os sons quevinham da escuridão além da trilha. Gemidos e uivos ecoavam dasentranhas da floresta, enquanto chiados e rosnados acrescentavam umaharmoniademoníaca.

Então os alunos começaram a ver o que estava produzindo os sons.Pares de olhos observavam-nos das profundezas cor de ônix – olhosvermelhoseamarelos,endiabrados,piscando,sumindo,depoisressurgindomaispertodoqueantes.Osruídosterríveisiamficandomaisaltos,osolhosdemoníacos multiplicavam-se, a vegetação rasteira estalava com vida, ebem na hora que os alunos viram os contornos sorrateiros surgindo naneblina...

Page 130: Escola do bem e do mal

“Poraqui”,Yubachamou-os.Todos dispararam dos portões e seguiram o gnomo rumo a uma

clareiraazul,semsequerolharparatrás.Antigamente,SobrevivendoaContosdeFadaseraumadisciplinacomo

qualquer outra, Yuba explicou, em cima de um toco de árvore azul-turquesa,eosalunoseramclassificadosde1a16paracadadesafio.Agora,no entanto, havia algo mais em jogo: duas vezes por ano, cada um dosquinze grupos mandava seus melhores alunos Sempre e Nunca paracompetir na Prova dos Contos. Yuba não disse mais sobre aquelacompetição misteriosa, exceto que os vencedores receberiam cincoclassificações extras de primeiro lugar. Os alunos em seu grupoentreolharam-se, pensando a mesma coisa. Quem ganhasse a Prova dosContoscertamenteseriaCapitãodaTurma.

“AgorahácincoregrasqueseparamoBemdoMal”,disseognomo,eescreveu-asnoar,comsuavaretadefumaça.

1.OMalataca.OBemdefende.2.OMalpune.OBemperdoa.3.OMalmachuca.OBemajuda.4.OMaltoma.OBemdá.5.OMalodeia.OBemama.

“Contantoqueobedeçamàsregrasdeseulado,vocêstêmasmelhoreschances possíveis de sobreviver em seu conto de fadas”, disse Yuba, aogruporeunidonagramaazul-marinho. “Claroqueessasregrasdevemvircomnaturalidade.Vocês foramescolhidosporsuasescolas,precisamenteporqueasdemonstramnonívelmaisalto!”

Sophiequeriagritar.Ajudar?Dar?Amar?Issoerasuavida!Issoerasuaalma!

“MasprimeirovocêsprecisamaprenderareconheceroBemeoMal”,disseYuba.“Nafloresta,asaparênciasfrequentementeenganam.ABrancade Neve quase pereceu, porque achou que uma velha era bondosa.Chapeuzinho Vermelho se viu na barriga de um lobo por não saber adiferençaentreumfamiliareuminimigo.AtéaBelatevedificuldadeparadistinguir entre uma besta horrenda e um príncipe nobre. Tudo isso foisofrimentodesnecessário.PoisnãoimportaquãobemdisfarçadosoBeme

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oMalestejam,elessemprepodemseridentificados.Vocêsprecisamolharatentamente.Eprecisamlembrar-sedasregras.”

Para o desafio da turma, Yuba anunciou que cada aluno tinha quedistinguir entre um Sempre e um Nunca disfarçados, observando o seucomportamento. Quem identificasse corretamente o aluno do Bem e oalunodoMalnotempomaiscurto,receberiaaprimeiracolocação.

“Eu nunca pratiquei nenhuma dessas regras do Mal”, Sophiemurmurou, ao ladodeTedros. “Se eles aomenos soubessemde todas asminhasboasações!”

Beatrixvirou-se“OsNuncanãodeveriamfalarcomosSempre.”“SemprenãodeveriamchamarosSempredeNunca”,Sophieretorquiu.Beatrixpareceuconfusa,enquantoTedrosconteveumsorriso.“Vocêprecisaprovarqueelestrocaramvocêeabruxa”,elesussurrou

para Sophie, depois que Beatrix virou-se de novo. “Ganhe o desafio e eumesmo irei até a professoraDovey. Se a gárgula não a convenceu, isso aconvencerá.”

“Vocêfariaisso...pormim?”,disseSophie,deolhosarregalados.Tedros tocou sua túnica preta. “Não posso flertar com você vestindo

isso,posso?”Sophiequeimariaouniformealimesmo,sepudesse.Hortofereceu-separairprimeiro.Assimqueeleamarrouavendanos

olhos, Yuba espetou seu bastão em Millicent e Ravan, que magicamentegiraramemseusuniformesrosaepreto,ficandocadavezmenores,atéquedeslizaramparaforadeles,comoduascobrasidênticas.

Horttirouavenda.“Então?”,perguntouYuba.“Pareceamesmacoisapramim”,disseHort.“Teste-os!”,Yubaralhou.“Useasregras!”“Eunemmelembrodasregras”,disseHort.“Próximo”,disseognomo.Para a vez deDot, ele transformouBeatrix eHort emunicórnios. No

entanto, depois umunicórnio começou a copiar o outro, e vice-versa, atéqueamboscirculavamfazendomímicasidênticas.Dotcoçouacabeça.

“Regraum!OMalataca!OBemdefende!”,rugiuYuba.“Quemcomeçou,Dot?”

“Ah!Podemoscomeçardenovo?”“Nãoéapenasruim”,resmungouYuba.“Péssimo!”

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Ele fixou os olhos, vendo a lista de nomes. “Quem gostaria de serdisfarçadoparaTedros?”

TodasasgarotasSempreergueramasmãos.“Vocêaindanão foi”,disseYuba, apontandoparaSophie. “Nemvocê”,

disseeleaAgatha.“Minha avó poderia acertar essa”, murmurou Tedros, apertando sua

venda.Agatha foimarchandodianteda turmae ficouao ladodeSophie,que

coravafeitoumanoiva.“Agatha,elenãose importacomaescolaemqueestou,oucomacor

dosmeusolhosoudomeuuniforme”,Sophiedisse,efusiva. “Elevêquemeusou.”

“Vocênemoconhece!”Sophiecorou.“Vocênãoestá...felizpormim?”“Elenãosabenadadevocê!”,Agathadisparoudevolta.“Elesóvêsua

aparência!”“Pela primeira vez naminha vida eu sinto que alguémme entende”,

Sophiesuspirou.Amágoa apertou a garganta de Agatha. “Mas e quanto... quer dizer...

vocêdisse...”Sophie olhou nos olhos dela. “Você tem sido uma amiga muito boa,

Agatha.Masnósestaremosemescolasdiferentes,nãoé?”Agathasevirou.“Pronto, Tedros! Vai!” Yuba sacudiu a vareta e as duas garotas

explodiram de suas roupas, transformando-se em duendes magrinhos efedorentos.

Tedrostirouavendaedeuumsaltoparatrás,tampandoonariz.Sophieenlaçou as garras verdes e bateu os cílios para ele. Com as palavras deSophielatejandoemsuacabeça,Agathaamuou-seedesistiu.

“Pareceóbviodemais”,disseTedros,olhandoaduendepaqueradora.Sophieparoudebateroscílios,confusa.“E aquela bruxa émais habilidosa do que você pode imaginar”, disse

Tedros,olhandoasduasduendes.Agatharevirouosolhos.Essemeninotinhaocérebrodeumamendoim.“Sintacomocoração,nãocomamente!”,Yubagritouparaopríncipe.Fazendo uma careta, Tedros fechou os olhos. Por um instante, o

príncipe hesitou. Contudo, depois, ele sentiu-se fortemente inclinado na

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direçãodeumadasduendes.Sophieengasgou.Nãoeraela.TedrosestendeuamãoetocouorostoúmidoeverrugosodeAgatha.

“EssaéSophie.”Eleabriuosolhos.“Essaéaprincesa.”AgathaficouolhandoparaSophie,emudecida.“Espere.Euestoucerto”,disseTedros.“Nãoé?”Poruminstante,tudoficouemsilêncio.SophieatacouAgatha.“VOCÊESTRAGATUDO!”Para todas as outraspessoas, isso saiu comoum somembolado, algo

como“GUBBOUUMIERUAAH”,masAgathaentendeuperfeitamente.“Está vendo como ele é imbecil? Ele nem consegue nos distinguir!”,

Agathagritou.“Você o enganou!”, Sophie deu um gritinho agudo. “Damesma forma

queenganouopássaroeaondae...”Tedrosdeuumsoconoolhodela.“DeixeaSophieempaz!”,elegritou.Sophieolhou-o,boquiaberta.Seupríncipeacabaradelhedarumsoco.

SeupríncipeaconfundiracomAgatha.Comopoderiaprovarquemelaera?“Usemasregras!”,Yubagritoudecimadeumtronco.Entendendosubitamente,Sophiedeuumsaltoparacima,demodoque

seucorpocalombudoepintadoficouacimadeTedros,eelaacariciouseupeitocomsuamãoverdegordurosa.“MeuqueridoTedros.Euoperdooportermeatacado.Sóqueroajudar você,meupríncipe,adarumahistóriaanósdois, quenos leve, demãosdadas, aoamor, fazendo-nos felizesparasempre.”

Entretanto, tudo o que Tedros ouvia era uma torrente de palavrasemboladas,entãoelepisounopédeSophieecorreuemdireçãoaAgatha,debraços estendidos. “Nãopossoacreditarquevocê tenha feito amizadecom...”

Agathadeu-lheumajoelhadanavirilha.“Agoraeuestouconfuso”,Tedrosrespirouofeganteedesmoronou.Gemendodedor,eleesticouopescoçoeviuSophieempurrarAgatha

paradentrodeumamoitademirtilo,AgatharevidarebateremSophiecomumesquilo,easduasduendesverdesiremdeláparacá,batendoumanaoutra,comocriançasagitadaspeloexcessodeaçúcar.

“Eununcaireiparacasacomvocê!”,gritouSophie.“Ooooh,Ooooh!Casecomigo,Tedros!”,Agathaestrilou.

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“Pelomenoseuvoumecasar!”A briga foi aumentando, e chegou a um clímax terrível, com Sophie

batendoemAgathacomumaabobrinhaazul,Agathasentando-senacabeçadeSophie,eaturmafazendoapostas,alegremente,sobrequemeraquem...

“VáparaGavaldonsozinha!”,Sophiegritou.“Melhorsozinhadoquecomumafalsa!”,berrouAgatha.“Saiadaminhavida!”“Foivocêquementrounaminha!”Mancando,Tedrosentrounomeiodasduas...“Chega!”Foi omomento errado. As duas duendes voltaram-se para o príncipe

dandorugidosderomperostímpanos,echutaram-nocomtantaforçaqueelecaiuporcimadosGrupos2,6e10,eaterrissouemummontedecocôdeporco.

Ocouroverdedasmeninasencolheu,asescamasforamsuavizando-see transformando-se empele, seus corpos surgiramem roupashumanas...Lentamente, Sophie e Agatha viraram-se, e encontraram o grupo inteiroolhandoparaelas.

“Bomfinal”,disseHort.“Guardeseuveredito”,disseYuba.“PoisquandooBemageMal,eoMal

éincompetente,easregrassãoinfringidasatortoeadireito,atéquenemeupossaentenderqueméquem...bem,sóháumfinal,defato.”

Dois pares de sapatos de ferro surgiram magicamente nos pés dasmeninas.

“Credo.Sãohorrendos”,Sophiefranziuorosto.Entãoossapatosforamesquentandoatéescaldaremcomobrasas.“Fogo!Pésemfogo!”,gritouAgatha,pulandodeumladoparaoutro.“Façaparar!”,gritouSophie,dançandodedor.Àdistância,oslobosuivavamparaanunciarofinaldaaula.“Aturmaestádispensada”,disseYuba,esaiuandando.“Equantoanós?”,gritouAgatha,puxandoassolasquequeimavam...“Infelizmente, as punições de contos de fadas têmmente própria”, o

gnomogritoudevolta.“Terminaráquandoaliçãoforaprendida.”Aturmaseguiu-odevoltaemdireçãoaosportõesdaescola,deixando

Sophie e Agatha dançando com os sapatos amaldiçoados. Tedros passoumancandopelasmeninaspunidas,cobertodelimoecocô.Elelançou-lhes,igualmente,olharesrepulsivos.

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“Agoraeuvejoporquevocêsduassãoamigas.”Conforme o príncipe seguiu pelo mato, as meninas viram Beatrix

seguindoaoseulado.“EusabiaqueambaseramdoMal”,eladisse,quandoelesdesapareceramportrásdoscarvalhos.

“Isso...é...culpa...sua!”,SophiegritouparaAgatha,dançandoemagonia.“Porfavor...faça...parar”,disseAgatha.Ossapatos,porém,nãomostravampiedade.Acadaminutoelesficavam

maisquentes, até que asduasmeninasnão conseguiamnemgritar.Nemmesmo os animais conseguiam assistir a tanto sofrimento, e ficaramdistantes.

Atardetransformou-seemcrepúsculo,depoiscaiuanoite,eelasaindadançavamfeitomalucas,girando,suando,dedoredesespero.Aqueimaçãoardiaemseusossos,ofogotornou-seseusangue,eelaslogodesejaramqueaquelesofrimentoterminasseaqualquercusto.Amortesabiaquandoerachamada. Todavia, quando as duas meninas renderam-se às suas mãoscruéis,raiosdesol irromperamnaescuridão,bateramemseuspés–eossapatosesfriaram.

Asmeninasdesmoronaramdetantotormento.“Prontaparairparacasa?”,Agathadisse,ofegante.Sophieolhouparaela,brancacomoumfantasma.“Acheiquevocênuncafosseperguntar.”

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11AcharadadoDiretordaEscola

Enquanto as duas escolas dormiam, duas cabeças surgiram nasuperfíciedofossonegro.SophieeAgathaespiavamatorrefinaeprateadaque dividia o lago e o lodo. Longe demais para nadar. Alta demais paraescalar.Umciclonedefadasguardavaopináculo,enquantoumexércitodelobosarmadoscombestaspregavaplacasdemadeiraaoredordabase.

“Evocêtemcertezadequeeleestáláemcima?”perguntouSophie.“Euovi.”“Eleprecisanosajudar!Nãopossovoltarparaaquelelugar!”“Bom, nós simplesmente imploramos por piedade até que ele nos

mandepracasa.”“Comoseissofossefuncionar”,Sophiebufou.“Deixe-ocomigo.”

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As meninas tinham passado duas horas matutando sobre todas aspossibilidades de fuga. Agatha achava que elas tinham que ir escondidasparaaflorestaeencontrarocaminhodevoltaaGavaldon.Sophie,porém,frisou quemesmoque conseguissempassar pelas serpentes do portão, epor outras armadilhas estúpidas, elas simplesmente acabariam perdidas.(“DevehaverumbommotivoparaqueonomesejaFlorestaSemFim.”)Emvez disso, ela propôs que procurassem vassouras, tapetes mágicos ouqualquer outra coisa nos armários da escola que pudesse fazer com quesobrevoassemafloresta.

“Eparaquedireçãovoaríamos?”,perguntouAgatha.Asduasdescartaramoutrasopções:deixarumrastrodefarelosdepão

(issonuncadavacerto);procurarumcaçador,ouumanãogentil (Agathanão confiava em estranhos); fazer um pedido para uma fada madrinha

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(Sophienãoconfiavaemmulheresgordas);atéque, finalmente,sórestouuma.

Contudo, agora, olhando para cima, para a fortaleza do Diretor daEscola,elastinhamperdidotodaaesperança.

“Nuncachegaremosláemcima”,Sophiesuspirou.Agathaouviuumgrasnidoàdistância.“Afasteessepensamento.”Poucotempodepois,elasestavamdevoltaàFlorestaAzul,cobertasde

lodo, observando um ninho de imensos ovos negros, por detrás de umarbusto. Na frente do ninho, cinco pássaros stymphs, esqueléticos,dormiamnagramaíndigo,manchadapelosanguedeumbodecomidopelametade.

Sophie fez uma cara feia. “Estou de volta onde comecei, coberta degrudefedorento,esóDeussabequantasmoscascomedorasdecarnee...oqueestáfazendo?”

“Assimqueelesatacarem,nósmontamos.”“Assimqueelesoquê?”Então,Agathajáestavanapontadospés,indoemdireçãoaosovos.“Ossapatosqueimaramseusmiolos!”,sussurrouSophie.Enquanto Agatha se aproximava do ninho, ela teve uma visão mais

próximadosstymphsadormecidos,deseusdentesafiados,desuasgarrasretorcidas e seus rabos pontudos, que arrancavam carne de ossos.Duvidando,repentinamente,deseuplano,Agatharecuou,tropeçouemumgalho,ecaiuemcimadapernadeumbode,provocandoumestaloruidoso.Osstymphsabriramosolhos.Ocoraçãodeladisparou.

Amenosqueumvilãoosdesperte.Ovestidorosanãoosenganaria.Agathaencarouosdemôniosquedespertavam.Elanãopodiadesistir

agora!NãodepoisdefazerSophiequerervoltarparacasa!Elaavançouemdireçãoaoninho,roubouumovoepartiuparaoataque...

“Nãopossoolhar,nãopossoolhar...”,Sophiesussurrava,espiandoporentreosdedos,esperandoversangueemembrosvoando.

Os pássaros, no entanto, cruéis, farejavam Agatha como se fossemcachorrinhosembuscadeleite.

“Aaah!Issofazcócegas!”,eladeuumgritinho.Sophiecruzouosbraços.Recostando-separatrás,Agathaentregouoovoaela.“Suavez.”

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“Ora, por favor, se eles gostam de você, vão querer casar comigo.Animais veneram princesas”, disse Sophie, desfilando em direção aospássaros...

Osstymphssoltaramumgritodeguerraeavançaram.“Socooorro!”, Sophie jogou o ovo para Agatha, mas os stymphs

continuaramaperseguirSophie,quecorriaemcírculoscomoumalunática,comcincostymphsatrásdela,comoemumaperseguiçãomaluca,atéquetodos esqueceram-se de quem estava perseguindo quem, e os pássarostrombaramunsnosoutros,tontos.

“Estávendo,euosenganei”,Sophiedisse,radiante.Umstymphmordeuseutraseiro.“Aaaaiiiii!”,Sophiecorreuatéaárvore

mais próxima. Contudo, ela não sabia subir em árvores, então jogoufrutinhasnoolhodaave,porémelanãotinhaolho,easfrutinhasentraramdiretopeloburacodoolhoecaíramnochão.

Agathaficouolhando,perplexa.“Agatha,eleestávindo!”O stymph avançou na direção de Sophie, até parar bem perto e ver

Agathaemsuascostas.“Subalogo,sualerda!”,elagritouparaSophie.“Semumacela?”,Sophiedebochou.“Vaifazerbolhas.”Ostymphavançounadireçãodela.Agathadeuumapancadanacabeça

deleeergueuSophiepelacintura,jogando-anascostasdopássaro.“Segure firme!”, Agatha gritou. O pássaro movia-se violentamente

enquantovoava,dandocambalhotassobreabaíaparaatirá-lasparaforadesuas costas. Mais quatro stymphs surgiram de árvores azuis em umacaçada assassina; Agatha chutava-os nas pernas, enquanto Sophieagarrava-se a ela para salvar sua preciosa vida “Esse é o pior plano detodossss!”Ouvindoosgrasnidosegritos,asfadaseoslobosolharamparaocéu,vendoasintrusasdesapareceremnaneblina.

“Lá está a torre!”, gritou Agatha, avistando o pináculo em meio àneblina.Aflechadeumlobopassouzunindoentreascostelasdostymph,quase partindo Sophie ao meio. As fadas irromperam pela neblina,lançando teias douradas de suas bocas, e o stymph afundou-se para sedesviardelas,girandoparaseesquivardeumanovachuvadeflechasdoslobos. Dessa vez, nenhuma das duas conseguiu se segurar, e caíram dascostasdobicho.

“Nãããão!”,gritouAgatha...

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Sophie segurou o último osso do rabo do stymph. Agatha pegou apontinha do sapato de cristal de Sophie... “Nós vamos morrer!”, berrouSophie.

“Apenassegure!”,gritouAgatha.“Minhasmãosestãosuando!”“Nósvamosmorrer!”Ostymphaproximou-sedaparededatorre.Masbemnahoraemque

ele ia bater o rabo para esmagá-las, Agatha viu uma janela iluminadaatravésdaneblina.

“Agora!”,gritouAgatha.Dessavez,Sophieouviu.Redesdouradasforamlançadasdetodasasdireções,eostymphsoltou

um grito impotente. Então, enquanto as fadas viam-nomergulhar para amorte,elasentreolhavam-securiosas.

Nãohavianinguémemsuagarupa.

A colisão da aterrissagempela janela deixou o ladodireito inteiro deSophie com hematomas e o pulso de Agatha cortado. A dor, porém,significavaqueelasaindaestavamvivas.Adorsignificavaqueaindahaviaesperançade chegaremcasa.Numcorodegemidos, elas cambalearameficaramempé.Então,Sophieviuopiorestrago.

“Meu sapato!” Ela segurou o salto de vidro que agora era só umtoquinho. “Era uma peça única”, lamentou ela. Agatha ignorou-a, e foimancandoatéumacâmaracinzentaeescura,mal iluminadapela luzqueentravapelajanela.

“Olá?”,Agathagritou.Osecosmorreramsemresposta.As meninas adentraram mais pela sala sombria. Prateleiras de livro

feitasdepedracobriamparedesdetijoloscinzentos,abarrotadasdochãoaotetoporcapascoloridas.Sophietirouapoeiradeumaprateleiraeleuasletrasprateadaselegantesnas lombadasdemadeirado livro:Rapunzel,Oossocantador,Apolegarzinha,Oreisapo,CapitãoO’Rushes,Osseiscisnes...Todas ashistóriasqueas criançasdeGavaldon costumavamdevorar.Elaolhou paraAgatha, que fazia amesmadescoberta, do outro lado da sala.Elasestavamnabibliotecadetodososcontosdefadasquejáhaviamsidoescritos.

AgathaabriuABelaeaFera,eviuqueestavaescritocomamesmaletraeleganteda lombada, ilustradocompinturasvibrantescomoasquehavia

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nosaguãodasduasescolas.EntãoelaabiuOssapatinhosvermelhos,PeledeAsnoeArainhadaneve,edescobriuquetambémhaviamsidoescritospelamesmaletramajestosa.

“Agatha?”AgathaseguiuoolhardeSophieatéapartemaisescuradasala.Através

dasombra,elapôdeidentificarumamesadepedrabrancajuntoàparede.Havia algo pairando sobre ela: um longo e fino punhal, que flutuavamagicamenteemplenoar.

Agatha correu os dedos pela superfície suave damesa, e pensou emtodasaslápidesvaziasatrásdesuacasa,esperandoporcorpos.OsolhosdeSophie estavam fixos na faca flutuante, sinistramente imóvel, algunspalmosacimadapedrabranca.

Foiquandoelaviuquenãoeraumpunhal.“Éumacaneta”,eladisse,baixinho.Era feita de puro aço, e tinha o formato de uma agulha de tricô,

letalmente afiada em ambas as pontas. Um dos lados da caneta estavagravadocomumaescritaprofundaqueiadeumapontaàoutra.

Subitamente, a caneta refletiu o sol, e lançou raios dourados quecegavamemtodasasdireções.Agathadesviou-sedoclarão.Quandoolhounovamente,Sophieestavasubindonamesa.

“Sophie,não!”Sophie caminhou em direção à caneta, de olhos arregalados, e corpo

rígido.Omundoaoseuredordissipou-seemumborrãocinzento.Sóoquepermanecia era a caneta tremulante e afiada, as palavras estranhasrefletindoemseusolhospetrificados.Emalgumlugar,lánofundo,elasabiaoquesignificavam.Elaestendeuamãoparapegaraponta.

“Não!”,gritouAgatha.ApeledeSophietocouoaçogélido,eosangueestavaprestesapingar...Agatha voou pra cima dela, e as duas garotas desabaram na mesa.

SophiesaiudeseutranseeolhouparaAgatha,desconfiada.“Estouemumamesa.Comvocê.”

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“Vocêestavaprestesatocá-la!”,gritouAgatha.“Ahn?Porqueeutocariauma...”Os olhos dela desviaram-se para a caneta, que já não estava mais

imóvel.Elabalançava,aumcentímetrodosrostosdelas,apontandoparaomeiodasduas,comsuapontamortalmenteafiada,comosedecidissequemmatarprimeiro.

“Nãosemexa”,disseAgatha,comosdentescerrados.Acanetaflamejava,emvermelhovivo.“Mexa-se!”,elagritou.A caneta avançou, e as duas rolaram para fora da mesa, vendo sua

ponta afiada desviar-se para o lado logo antes de bater na pedra. Umalufada de fumaça preta e um livro surgiram subitamente sobre a mesa,abaixodacaneta,encadernadocommadeiraavermelhada.Acanetaabriuacapanaprimeirapáginaembranco,ecomeçouaescrever:

“Eraumavezduasmeninas.”A mesma caligrafia elegante de todas as outras. Um conto de fadas

novinhoemfolha.SophieeAgathaficaramolhando,aterrorizadas.“Ora,masqueestranho”,disseumavozbondosa.Asmeninasviraram-senovamente.Nãohavianinguémali.“Osalunosdaminhaescolatreinameesforçam-sedurantequatroanos,

aventuram-se na floresta, procuram por seus Nêmesis, lutam batalhascruéis...tudoissoapenaspelaesperançadequeoStorianpossacontarsuahistória.”

Asmeninasolhavamemvolta.Nãohavianinguémnasala.Entãoelasviram suas sombras fundindo-se na parede, formando a sombra que asraptara.Asmeninasviraram-selentamente.

“E aqui começaumahistóriaparaduasnovatasdoprimeiroano,nãoqualificadas, não treinadas, intrusas e desajeitadas”, disse o Diretor daEscola.

Ele usava uma túnica prateada, que cobria seu porte esguio e curvo,escondendomãos e pés. Uma coroa enferrujada repousava no centro deseus cabelos volumosos e assombrosamente brancos. Uma máscaraprateadareluzentecobriacadapedacinhodeseurosto, revelandoapenasseus olhos azuis cintilantes e lábios grossos, que esboçavam um sorrisomalicioso.

“Eledevedesconfiardeumbomfinal.”

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OStorianmergulhounapágina:“Umadelaseralindaeadoráveleaoutraeraumabruxasolitária.”“Eugostodanossahistória”,disseSophie.“Aindanãochegounaparteemqueseupríncipelhedáumsoco”,disse

Agatha.“Vamospracasa”,Sophiedissedemauhumor.ElasolharamparacimaeviramoDiretordaEscolaobservando-as.“Leitores são imprevisíveis, é claro. Alguns resultam em nossos

melhores alunos. A maioria tem sido um grande fracasso.” Ele olhou astorres à distância, virando-se de volta para as meninas. “Mas isso sódemonstraquãoconfusososLeitoressetornaram.”

O coração de Agatha disparou. Essa era a chance delas. Ela deu umsolavancoemSophie.“Vai!”

“Nãoposso!”,sussurrouSophie.“Vocêdissepradeixá-locomvocê!”“Eleévelhodemais!”Agathadeu-lheumacotoveladanascostelas,eSophieretribuiu.“Muitosmembrosdocorpodocentedizemqueeusequestrovocês,que

euosrouboetrago-oscontrasuavontade”,disseoDiretordaEscola.AgathadeuumchuteemSophieparaqueelaseguisseemfrente.“Masaverdadeéqueeuosliberto.”Sophieengoliuemsecoetirouosapatoquebrado.“Vocêsmerecemvidasextraordinárias.”Sophieaproximou-sesorrateiramentedoDiretordaEscola,erguendoo

saltoquebrado.“Vocêsmerecemachancedesaberquemsão.”O Diretor da Escola virou-se para Sophie, com o sapato posicionado

acimadeseucoração.“Nósexigimosnossaliberação!”,Agathagritou.Silêncio.Sophie caiu de joelhos. “Oh, por favor, senhor, nós imploramos por

piedade!”Agathagemeu.“O senhor me trouxe para o Bem”, Sophie soluçava, “mas eles me

colocaramnaEscoladoMal,eagorameuvestidoépretoemeucabeloestásujoemeupríncipemeodeiaeminhascolegasdequartosãoassassinas,e

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nãoháSalasdeEmbelezamentoparaasNuncas,portanto...”,elasoltouumlamentodesoprano,“Euestoufedendo.”Elachoravaporentresuasmãos.

“Então,vocêsgostariamdetrocardeescolas?”,perguntouoDiretordaEscola.

“Nósgostaríamosdeirpracasa”,disseAgatha.Sophieolhouparaele,animada.“Podemostrocardeescola?”ODiretordaEscolasorriu.“Não.”“Entãogostaríamosdeirpracasa”,disseSophie.“Perdidas em uma terra estranha, as meninas queriam ir pra casa”,

anotouoStorian.“Já mandamos alunos para casa, no passado”, o Diretor disse, com a

máscara prateada tremulando. “Por doença, incapacidademental, pedidodeumafamíliainfluente...”

“Entãovocêpodenosmandarpracasa!”,disseAgatha.“Sim,eupoderia”,disseoDiretor,“Sevocêsnãoestivessemnomeiode

umcontodefadas.”Eleolhouparaacanetadooutroladodasala.“Vejam,uma vez que o Storian começa a sua história, receio que precisemoscontinuá-laatéondeelalevá-las.Agora,aquestãoé‘Seráquesuahistóriaaslevaráparacasa?’”

OStorianmergulhounapágina:“Garotasestúpidas!Estavampresaspelaeternidade!”

“Eraoqueeudesconfiava”,disseoDiretor.“Então,nãohácomovoltarpracasa?”,perguntouAgatha,comosolhos

cheiosd’água.“Não,amenosqueessesejaoseufinal”,respondeuoDiretor.“Evoltar

paracasa juntaséum finalbemforçadoparaduasgarotasque lutamemladosopostos,nãoacham?”

“Masnósnãoqueremoslutar!”,disseSophie.“Estamosdomesmolado!”,disseAgatha.“Somosamigas!”,afirmouSophie,pegandoamãodeAgatha.“Amigas!”,oDiretordaEscolaadmirou-se.Agatha pareceu igualmente admirada, sentindo o aperto da mão de

Sophie.“Ora, isso certamentemuda as coisas.” O Diretor andava de um lado

paraooutro, comoumpato trêmulo. “Sabem,umaprincesaeumabruxajamaispodemseramigasemnossomundo.Nãoénatural.Éimpensável.É

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impossível. O que significa que se vocês de fato são amigas... Agatha nãopodeserumaprincesaeSophienãopodeserumabruxa.”

“Exatamente!”,disseSophie.“Porqueeusouaprincesaeelaéabru...”,Agathachutou-a.

“EseAgathanãoéumaprincesaeSophienãoéumabruxa,então,euclaramente entendi errado, e vocês realmente não pertencem ao nossomundo”, ele continuou, caminhando devagar. “No final das contas, talvezsejaverdadeoquetodosdizemameurespeito.”

“QueosenhoréBom?”,disseSophie.“Queestouvelho”,disseoDiretor,suspirandonajanela.Agathanãopodiacontersuaempolgação.“Entãopodemosirparacasa

agora?”“Bem,éumaquestãodelicadaprovartudoisso.”“Maseutentei!”,disseSophie.“Tenteiprovarquenãosouumavilã!”“Eeutenteiprovarquenãosouprincesa!”,disseAgatha.“Ah,masnestemundosóháummeiodeprovarquemvocêé.”O Storian parou sua escrita agitada, sentindoummomento crucial. O

DiretordaEscola lentamentevirou-se.Pelaprimeiravezseusolhosazuisadquiriramumbrilhodeperigo.

“QualéaúnicacoisaqueoMaljamaispoderáter...equeoBemjamaisviverásem?”

Asmeninasentreolharam-se.“Então nós solucionamos sua charada e o senhor... nos manda pra

casa?”,perguntouAgatha,esperançosa.ODiretorafastou-se.“Esperonãovernenhumadasduasnovamente.A

menosquequeiramumfimumtantodepressivoparaasuahistória.”Subitamente,asalacomeçouadesfazer-seemumborrãobranco,como

seacenaestivessesendoapagadadiantedosolhosdelas.“Espere!”,Agathagritou.“Oqueestáfazendo?”Primeirosumiramasestantesdelivros,depoisasparedes...“Não!Nósqueremosirpracasaagora!”,Agathagritou.Eentãooteto,amesa,ochãoaoredordelas...–asduasatiraram-seem

umcantoparaevitarserapagadas...“Comoo encontraremos?! Como respond...”, Agatha abaixou a cabeça,

paraproteger-sedeumclarão.“Vocêestátrapaceando!”Sophie viu o Storian do outro lado da sala, escrevendo furiosamente

paraacompanharo contode fadasdasduas.A caneta sentiuo seuolhar,

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poisaspalavrasquesaíamdoaçosubitamentecomeçaramaescreveremvermelho, e o coração de Sophie voltou a arder com um entendimentosecreto.Amedrontada,elaagarrou-seaAgatha...

“Seu bandido! Seu tirano! Seu velho mascarado!”, Agatha gritou.“Estamosmuitobemsemvocê!Leitoresestãobemsemvocê!Fiqueemsuatorre, com suasmáscaras e canetas, e fique fora da nossa vida! Estámeouvindo?Roubecriançasdeoutrasvilasedeixe-nosempaz.”

A última coisa que elas viram foi o Diretor da Escola virando-se dajanela,sorrindo,emummardebranco.

“Queoutrasvilas?”O chão sumiu debaixo dos pés dasmeninas, e elasmergulharam em

queda livre no nada, com as últimas palavras do Diretor ecoando,misturando-seaoschamadosdoslobosparaaaulamatinal...

Elasacordaram,cegaspeloclarãodosol,mergulhadasemumapoçadesuor.AgathaprocurouporSophie. SophieprocurouporAgatha.Contudo,elasviram-senasprópriascamas,emtorresbemseparadas.

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12Becossemsaída

Amanhãcomeçoudeformamiserávelparaasduasmeninas.Alémdenãoteremdormidoabsolutamentenada,estavamdevoltaemsuasescolastrocadas, para mais um dia de aulas desprezíveis. Pior ainda, nenhumadelas sabia a resposta para a charada do Diretor da Escola, e tampoucopoderiam pensar nisso até a hora do almoço. E como se não bastasse, abrigaquetiveramcomoduendestinhasetornadooassuntodomomentonasduasescolas.

No Enfeiamento, Sophie tentou ignorar todas as ironias e focar-se nalição de Manley sobre o uso apropriado das capas. Isso exigia extremaconcentração,porcausadosolharesvingativosdeHester,edofatodequeas capas poderiam ser usadas para proteção, invisibilidade, disfarce, ouvoo, dependendo de seu tecido e sua textura, e cada tipo exigiaencantamentosdiferentes.Manleyvendouosalunosparaodesafiodaaula,noqual tinhamquecorrerpara identificaro tecidodascapasrecebidasecolocá-lasemuso.

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“Eu não sabia que magia era algo tão complicado”, Hort murmurou,tocandosuacapaparaverseerasedaoucetim.

“Esãoapenascapas”,disseDot,cheirandoasua.“Espereatéfazermososfeitiços!”

Entretanto,sehaviaumacoisaqueSophieconheciabemeramroupas.Ela reconheceu a pele de cobra sob seus dedos, disse mentalmente oencanto e ficou invisível sob sua capa preta. O feito rendeu-lhe outraavaliaçãomáxima,eumolhartãoletaldeHesterqueelaachouquepegariafogo.

Dooutroladodofosso,Agathanãoconseguiadobrarumaesquinasemver Tedros e seus amigos imitando seus saltos de duende, uivando sualinguagememboladaebatendounsnosoutroscomabóboras.Emqualquerlugaraondefosse,Tedrosecompanhiaseguiam-na,zurrandoegrunhindoaplenospulmões,atéqueela finalmentepegouumaabóboraeacertouopeitodeTedros.

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“O único motivo para que isso tenha acontecido é porque você meescolheu.VOCÊMEESCOLHEU,seuassassinotediosoesemcérebro!”

Tedrosengasgou,pasmo,enquantoelasaíatempestuosamente.“Vocêescolheuabruxa?”,perguntouChaddick.Tedros virou-se e viu os meninos encarando-o. “Não, eu... ela me

enganou...eunão...”Elepuxouaespada.“Quemquerlutar?”ComooRefúgiodeJoãoeMariaaindaestavaemruínas,asaulasforam

transferidas para as salas comuns da torre. Agatha seguiu a massa deSemprepelopassadiço,que ligava todasas torresdoBematravésdeumziguezaguedepassagensdevidroscoloridos,bemacimadolago.EnquantoatravessavaporumpassadiçoroxorumoàtorredaCaridade,elaafastou-sedasgarotasfofoqueiraseponderouprofundamentesobreacharadadoDiretor da Escola, até que olhou em volta e viu que estava totalmentesozinha.Depoisdepassarpelalavanderiacheiadebolhasdesabão,ondeasninfas esfregavamos vestidos, de desviar-se das panelas encantadas quefaziam o almoço no Salão de Refeições, e de ficar presa no sanitário dosprofessores, Agatha finalmente seguiu seu rumo para a Câmara daCaridade.Ossofáscor-de-rosajáestavamcheios,enenhumadasmeninasabriuespaçoparaela.Bemnahoraemqueelaiasentar-senochão...

“Sente-seaqui!”Kika,ameninameigadecabeloscurtos,chegouparaolado.Enquanto

as outras riam, Agatha espremeu-se ao lado dela. “Elas vão odiá-la, vocêsabe,não?”,elamurmurou.

“NãoentendocomopodemseachardoBemesertãorudes”,sussurrouKika.

“Talvezporqueeutenhaquaseincendiadoaescola.”“Elas só estão com inveja. Você consegue fazer desejos tornarem-se

realidade.Nenhumadenósconseguefazerissoainda.”“Foiumacaso. Se eupudesse fazerdesejos tornarem-se realidade, eu

estaria em casa, com aminha amiga emeu gato.” Pensar em Reaper fezAgatha procurar outro assunto. “É... como é aquele menino que vocêdesejou?”

“Tristan?”, o rosto de Kikamurchou. “Ele gosta da Beatrix. Todos osmeninosgostamdaBeatrix.”

“Maselelhedeuasuarosa”,disseAgatha,lembrando-sedodesejodela,nolago.

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“Poracidente.EupuleinafrentedaBeatrixparapegá-la”,KikalançouumolharfeioparaBeatrix.“VocêachaqueelemelevaráaoBaile?Todososmeninosnãovãopoderlevaraquelaloba.”

Agathadeuumarisadinha.Depoisfranziuorosto.“QueBaile?”“O Baile da Neve dos Sempre! É na véspera do Natal, e nós todas

precisamosencontrarummeninoparanos levarouseremosreprovadas!Somos classificados como duplas, com base em nossa apresentação,postura e dança. Por que você acha que todas desejamos meninosdiferenteslánolago?Meninassãopráticasdessejeito.Osmeninostodossóqueremamaisbonita.”Kikasorriu.“Emquemvocêestádeolho?”

Antes que Agatha vomitasse, as portas foram escancaradas, e umamulher peituda entrou, usando um turbante vermelho e um lenço quecombinavacomseuvestido,cheiadebasenorosto,lápispretogrossonosolhos,brincosciganosdeargolaepulseirasquetilintavam.

“É...professoraAnêmona?”,Kikaolhou,pasma.“EusouScherezade”,aprofessoraretumbou,falandocomumsotaque

ridículo.“RainhadaPérsia.SultanadosSeteMares.Vejamminhabelezadodeserto.”

Elaarrancouolençoefezumaterríveldançadoventre.“Vejamcomoeuseduzocommeusquadris!”Elapôsovéunorostoepiscoucomoumacoruja. “Vejamcomoeuprovoco commeusolhos!”Ela sacudiuos seios etilintouaspulseirasruidosamente.“VejamcomoeumetornoaSedutoradaMeia-Noite!”

“Estámaisparaumkibedefumado”,murmurouAgatha.Kikariu.O sorriso da professora Anêmona desapareceu, assim como seu

sotaque.“EeuaquipensandoquelhesensinariaasobreviveràsMileUmaNoites – maquiagem pronta para as dunas, vestes árabes, e até umaapropriadaDançadosSeteVéus–,mas talvezeudeva começar comalgomenosdivertido.”Elaapertouoturbante.

“Asfadasalertaram-mequedocesestãodesaparecendodoRefúgiodeJoãoeMaria,mesmoenquantoestásendoconsertado.Comovocêssabem,nossas salas de aula são feitas de doces como um lembrete de todas astentações que vocês enfrentarão além de nossos portões”, os olhos delaestreitaram-se. “Masnóssabemosoqueaconteceàsmeninasquecomemdoce. Uma vez que começam, não conseguem parar. Elas desviam-se docaminho.Tornam-sepresasparaasbruxas.Empanturram-sedeprazeratémorreremobesas,solteirasecobertasdeverrugas.”

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As meninas já estavam escandalizadas de alguém ter sido capaz devandalizara torre,quedirádeumapessoaqueestragasseasilhuetacomdoces. Agatha tentou parecer igualmente escandalizada. Foi quandomarshmallows caíram de seu bolso, seguidos por um pirulito azul, umpedaço de pão de mel e dois tijolos de chocolate. Foram vinte suspirossimultâneos.

“Eu não tive tempo para tomar café!”, Agatha insistiu. “Não comi nanoitepassada!”

Masninguémsecondoeu, incluindoKika,queparecia lamentar-seportersidotãolegalcomela.Culpada,Agathacutucavaocisneemseupeito.

“Vocêvailavaralouçadojantarpelaspróximasduassemanas,Agatha”,disseaprofessora. “Um lembreteútildeumadascoisasqueasprincesaspossuemeasvilãs,não.”

Agathadeuumsalto,ficandoempé.Aresposta!“Umadietaapropriada”,bufouaprofessoraAnêmona.Enquantoaprofessoradivulgavamais segredos sobreabelezaárabe,

Agatha ficou amuada no sofá. Uma aula e seus problemas já tinham semultiplicado.Entreoterrordeumbaileobrigatório,umasemanalavandolouça, e um futuro coberto de verrugas, ela percebeu quão depressaprecisavaresolveracharadadoDiretordaEscola.

“Quetalenvenenarsuacomida?”,bradouHester.“Ela não come”, disse Anadil, andando ao lado dela pelo Salão da

Malícia.“Quetalbatomenvenenado?”“Elesnos trancariamnaSaladaCondenaçãodurantesemanas!”,disse

Dot,andandocomdificuldadeparaacompanharopasso.“Nãome importa como faremos,nemquanto ficaremosencrencadas”,

estrilouHester.“Euqueroaquelacobraforadaqui.”ElaescancarouaportadoQuarto66eencontrouSophieaosprantosna

cama.“Ora,acobraestáchorando”,disseAnadil.“Você está bem, amor?”, perguntou Dot, subitamente com pena da

garotaqueeladeveriamatar.Debulhando-seemlágrimas,Sophiecontoutudooquehaviaacontecido

natorredoDiretordaEscola.

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“...Masagoraháumacharadaeeunãoseiaresposta,eTedrosachaquesou uma bruxa porque eu fico ganhando os desafios, e ninguém entendequeomotivoparaqueeuganheéquesouboaemtudo!”

Hester estava pronta para estrangulá-la bem ali. Então seu rostomudou.

“Essacharada.Sevocêresponder...vocêvaipracasa?”Sophieassentiu.“Enuncamaisteremosquevê-la?”,perguntouAnadil.Sophieassentiu.“Nósvamosrespondê-la”,ascolegasdequartodisseram.“Vão?”,Sophiepiscou.“Sabeoquantovocêquerirpracasa?”,perguntouHester.“Nósdesejamosaindamaisquevocêvá”,disseAnadil.“Bem, pelomenos vocês acreditam emmim”, Sophie franziu o rosto,

limpandoaslágrimas.“Culpadaatéqueseproveinocente”,disseHester.“ÉojeitodosNunca.”“MaseunãocontarianadadissoaumSempre.Elesvãoacharquevocê

édoidadepedra”,disseAnadil.“Foi isso o que eu pensei, mas quem mente sobre infringir tantas

regras?”, disse Dot, fracassando ao tentar transformar seu emblema decisneemchocolate.“Realmente,essepássaroéincorrigível.”

“ComoéoDiretordaEscola?”,HesterperguntouaSophie.“Eleévelho.Muito,muitovelho.”“EvocêrealmenteviuoStorian?”,perguntouAnadil.“Aquelacanetaesquisita?Elaescreviasobrenós,otempotodo.”“Elaoquê?”,disseramastrêsmeninasaomesmotempo.“Masvocêestánaescola!”,disseHester.“Oquepodeacontecernaescolaquesejadignodeumcontodefadas?”,

disseAnadil.“Tenho certeza de que é só um engano como todo o resto”, Sophie

fungou.“Eusóprecisoresolveressacharada,dizeraoDiretorepuf!Estouforadestelugaramaldiçoado.Simples.”

Elaviuasmeninastrocaremolhares.“Nãoé?”“Háduas charadas aqui”, disseAnadil, olhandoHester. “A charadado

DiretordaEscola.”Hestervirou-separaSophie.“Eomotivoparaqueelequeiraquevocêa

resolva.”

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Se havia uma palavra que Agatha detestava mais do que “baile” era“dança”.

“TodaBoagarotatemquedançarnoBaile”,dissePólux,oscilandoempernasdemulanaCâmaradaCoragem.

Agathatentavanãorespirar.Asalacheiravaacouroecolônia,etinhasofás marrons, um tapete com uma cabeça de urso, livros sobre caça emontaria, e uma cabeça de alce que ostentava, obscenamente, galhadasimensas.ElasentiafaltadaEscoladoMaleseufedordecemitério.

Pólux conduzia asmeninas nas danças para oBaile dos Sempre,masAgatha não conseguiu acompanhar nenhuma, pois ele ficava caindo emurmurandoque“Issofariasentidodepoisqueeleconseguisseseucorpode volta”. Depois de tropeçar com o casco no tapete, enroscar-se nasgalhadas e cair de traseiro na lareira, Pólux latiu dizendo que eles “játinhamchegadoaoponto”,efoiatéumgrupodefadasquetocavaviolinos.“Toquemumavoltaitaliana!”

Elas o fizeram, depressa como um raio, com Agatha passando deparceira em parceira, de cintura em cintura, girando cada vez maisdepressa,atévertudocomoumborrão.Seuspéspegavamfogo.Todasasmeninas da sala eram Sophie.Os sapatos! Estavam de volta! “Sophie! Euestouindo!”,gritou...

Derepenteestavanochão.“Há momentos apropriados para desmaiar”, Pólux fez uma cara feia.

“Estenãoéum.”“Eutropecei”,Agatharespondeu.“SuponhamosquevocêdesmaieduranteoBaile!Caos!Massacre!”“Eunãodesmaiei!”“Esqueçaobaile!SeriaumMassacredaMeia-Noite.”Agathaoencarava.“Eu.Não.Desmaio.”QuandoasmeninaschegaramàsmargensdaBaíadoMeiodoCaminho

paraaauladeComunicaçãoAnimal,aprofessoraDoveyestavaesperando.“AprincesaUmaadoeceu.”

AsmeninaslançaramolharesazedosparaAgatha,jáqueseufiascodoPeixedoDesejocertamenteeraomotivo.Semninguémparaacompanhá-laseportersidoavisadatãoemcimadahora,aprofessoraDoveydeu-lhesoperíodo livre. “Alunas comavaliações superiores podemusar a Sala deEmbelezamento. Alunas com avaliações mais baixas devem utilizar essetempopararefletirsobresuamediocridade!”

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Enquanto Beatrix e suas sete subordinadas seguiram faceiras para aSala de Embelezamento para fazer as unhas, a segunda metade dasmeninas apressou-se para assistir ao treino de esgrima, pois osmeninostreinavam sem camisa. Enquanto isso, Agatha foi até a Galeria do Bem,esperandoinspirar-separaresponderàcharada.

Enquantoseusolhospercorriamasesculturas,asvitrineseascriaturasempalhadasacesaspor tochasrosadas, lembrou-sedodecretodoDiretordaEscola,dequeumabruxaeumaprincesajamaispoderiamseramigas.Masporquê?Algoteriaquesurgirentreelas.Issocertamenteseriaacoisamisteriosaqueumaprincesapodiatereumavilãnão.Elapensounoquepodiaser,atéqueseupescoçoficouvermelhoecomeçouapinicar.Enadaderesposta.

Maisumavez,elaviu-seimpelidaairaonichodocanto,queabrigavaaspinturasdosLeitoresdeGavaldon.Agathalembrou-sedaprofessoraDoveyconversando com aquela mulher de maxilares tensos. “Professor Sader”,elashaviamchamadooartista.OmesmoSaderque lecionavaHistóriadeHeroísmo?Essanãoeraasuapróximaaula?

Dessa vez, Agatha passou pelas pinturas lentamente. Ao fazê-lo, elanotou que a paisagem evoluía de umamoldura para a outra: mais lojassurgiam na praça, a igreja mudava de cor, passando de branco paravermelho, doismoinhos surgiam atrás do lago – até que a vila passou aparecer-secomaqueelahaviadeixado.Agoraaindamaisconfusa,passavapelaspinturas,atéqueumadelasafezparar.

Enquantoascriançasliamlivrosdecontosdefadasnaescadadaigreja,o sol iluminava uma menina de casaco roxo e chapéu amarelo comgirassóis.Agathachegouonarizbempertodamenina.Alice?Sópodiaser.A filha do confeiteiro vestia omesmo casaco e chapéu ridículos todos osdias de sua vida até ser sequestrada, oito anos antes. Do outro lado dapintura,umraiodesoliluminavaummeninomagro,depreto,quebatiaemumgatocomumavareta.Rune.Agathalembrava-sedeletentandoarrancarumolhodeReaper,antesdesuamãecolocá-loparacorrercomumcabodevassoura.Runetambémhaviasidolevadonaqueleano.

Ela rapidamente passou à pintura seguinte, na qual muitas criançasfaziamfilanafrentedalojadoSr.Deauville,masosoliluminavasomenteduas: o ousadoBane,mordendo amenina à sua frente, e o quieto e beloGarrick.Osdoismeninoshaviamsidolevadosquatroanosantes.

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Suando, Agatha lentamente virou-se para ver a pintura seguinte.Enquantoalgumas crianças liamnoaltodeumacolina esmeralda, outrasduas sentavam-se mais abaixo, iluminadas, na margem do lago. Umameninadepretoquejogavafósforosacesosnaágua.Umameninaderosaqueenchiabolsascompepinos.

Semar,Agathavoltoucorrendopelocorredor.Emcadapintura,a luzescolhia duas crianças: uma inteligente e justa, a outra estranha ecarrancuda. Agatha recuou do nicho e subiu no lombo de uma vacaempalhada,paraquepudessevertodasaspinturasdeumasóvez,pinturasquelhediziamtrêscoisassobreesseprofessorSader...

Elepodiacircularentreomundorealeomundodoscontosdefadas.ElesabiaporqueascriançaseramtrazidasdeGavaldon.

Eelepodiaajudá-lasavoltarparacasa.Quando as fadas tilintaram, anunciando o início da aula seguinte,

Agatha irrompeu no Teatro das Fábulas e espremeu-se ao lado de Kika,enquanto Tedros e seus meninos jogavam handball diante da fênixesculpidanafrentedopalcodepedra.

“Tristan nem me deu oi”, disse Kika. “Talvez ele ache que tenhoverrugas,agoraquefaleicomvocê...”

“CadêoSader?”,perguntouAgatha.“ProfessorSader”,disseumavoz.Elaergueuosolhoseviuumbeloprofessordecabelosgrisalhos,dando

umsorrisoenigmáticoenquantosubiaparaopalcocomseuternoverde-musgo.Ohomemquehaviasorridopraelanosaguãoenaponte.

OprofessorPirado.Agathasuspirou.Elecertamenteaajudaria,segostavatantodela.“Comovocêssabem,eudouaquartaaulatantoaquiquantonoMal,e

infelizmente não posso estar nos dois lugares ao mesmo tempo. Sendoassim,voualternarassemanasentreasescolas”,disse,ajustandooapoiopara os livros. “Nas semanas emque eu não estiver aqui vocês terão ex-alunosquevirãorelatarsuasaventurasnasFlorestasSemFim.Elesserãoresponsáveis por seus desafios semanais, portanto, por favor, confiram aelesomesmorespeitoqueconferemamim.Finalmente,pelo fatodequesouresponsávelporumnúmerovastodealunos,eumaquantidadevastade histórias, eu não tenho horário fixo, e não responderei às suasperguntas,nemdentronemforadasaladeaula.”

Page 156: Escola do bem e do mal

Agatha tossiu. Como poderia obter respostas se ele não permitiaperguntas?

“Sevocêstiveremperguntas”,disseSader,comosolhoscastanhosfixos,sempiscar,“certamenteencontrarãoasrespostasnotexto,AhistóriadeumalunonaFloresta,ounosoutroslivrosdeminhaautoria,estãodisponíveisnaBibliotecadaVirtude.Agora,horadachamada.Beatrix?”

“Sim.”“Maisumavez,Beatrix.”“Bemaqui”,Beatrixrespondeu.“Obrigado,Beatrix.Kika!”“Presente!”“Novamente,Kika.”“Estouaqui,professorSader!”“Excelente.Reena!”“Sim.”“Novamente?”Agathagemeu.Nesseritmo,elesficariamaliatéomeio-dia.“Tedros!”“Aqui.”“Maisalto,Tedros.”“Minhanossa,eleésurdo?”,Agatharesmungou.“Não,suaboba”,disseKika.“Eleécego.”Agathabufou.“Nãosejaridí...”Osolhosvidrados.Aassociaçãodosnomescomasvozes.Aformacomo

eleseguravaoapoiodelivros.“Massuaspinturas!”,Agathagritou.“ElejáviuGavaldon!Elenosviu!”Foi quando o professor Sader cruzou seu olhar com o dela e sorriu,

comoseparalembrá-ladequeelenuncahaviavistonadamesmo.

“Então, deixe-me esclarecer”, disse Sophie. “Primeiro, havia doisDiretoresnaEscola.Eeleseramirmãos.”

“Gêmeos”,disseHester.“UmBomeumMal”,disseAnadil.Sophie prosseguiu por uma série de murais de mármore lascado,

construídos no Salão do Mal. Coberto por algas esmeralda e ferrugem

Page 157: Escola do bem e do mal

azuladaeiluminadoporchamasesverdeadas,osalãopareciaumacatedralquetivesseficadosubmersapelamaiorpartedesuaexistência.

Elaparouemum,quemostravadoisjovensemumcastelo,mantendoaguardadacanetaencantadaquehaviavistonatorredoDiretordaEscola.Um irmão usava uma túnica negra e o outro, uma túnica branca. Nomosaico rachado, ela podia identificar seus belos rostos idênticos, oscabelos assombrosamente claros, e olhos azuis profundos. Contudo, se orostodoirmãodebrancoeraternoesuave,odoirmãodepretoeragélidoerude.Aindaassim,emambososrostoshaviaalgofamiliar.

“Eessesirmãosdirigiamasduasescolaseprotegiamacanetamágica”,disseSophie.

“OStorian”,Hestercorrigiu.“EoBemganhavametadedotempo,eoMalmetadedotempo?”“Mais ou menos”, respondeu Anadil, dando um caramujo de comida

para seus ratos no bolso. “Minha mãe costumava dizer que se o Bemdisparasse a ganhar, o Mal acharia novos truques, forçando o Bem amelhorarsuadefesaeganharnovamente.”

“Oequilíbriodanatureza”,disseDot,mastigandoumlivroescolarqueelahaviatransformadoemchocolate.

Sophiepassouaomuralseguinte,ondeoirmãodoMaltinhadeixadodeadministrarpacificamenteaoladodoirmãodoBem,paraatacá-locomumaporção de feitiços. “Mas o irmão do Mal achou que pudesse controlar acaneta – é... o Storian – e tornar o Mal invencível. Então, ele reuniu umexércitoparadestruiroirmão,einiciouumaguerra.”

“AGrandeGuerra”,disseHester.“NaqualtodostomaramumladoentreoirmãodoBemeoirmãodoMal.”

“Enaúltimabatalhaentreeles,alguémganhou”,disseSophie,olhandooúltimomural,–ummardeSempreseNuncas,curvadosdiantedoDiretorda Escola mascarado, com o Storian reluzente flutuando acima de suasmãos.“Masninguémsabequem.”

“Aprendeurápido”,Anadilsorriu.“MasentãoaspessoascertamentedevemsaberseeleéoirmãodoBem

oudoMal,não?”,perguntouSophie.“Todosfingemqueéummistério”,disseHester,“mas,desdeaGrande

Guerra,oMalnãoganhaumaúnicahistória.”“MasacanetanãoescrevesóoqueacontecenaFloresta?”,perguntou

Sophie, estudando os símbolos estranhos, no aço do Storian. “Nós não

Page 158: Escola do bem e do mal

controlamosashistórias?”“Epodeacontecerdeumdiatodososvilõesmorrerem?”,Hesterrugiu.

“Aquelacanetaestáforçandonossosdestinos.Aquelacanetaestámatandotodososvilões.AquelacanetaécontroladapeloBem.”

“Storian,amor”,disseDot.“Nãoumacaneta.”Hesterarrancouolivrodesuaboca.“Mas se é paramorrer todas as vezes, por que dar-se ao trabalho de

ensinarosvilões?”,questionouSophie.“ParaquesequerexisteumaEscoladoMal?”

“Tentefazeressaperguntaaumprofessor”,palpitouDot,remexendoabolsaembuscadeumlivromaior.

“Certo, então os vilões não podem mais ganhar”, Sophie bocejou,lixandoasunhascomumcacodemármore.“Oqueissotemavercomigo?”

“OStoriancomeçouseucontodefadas”,Hesterfranziuorosto.“Edaí?”“E por causa de sua escola atual, o Storian acha que você é a vilã

daquelecontodefadas.”“Eeudevoligarparaaopiniãodeumacaneta?”,disseSophie, lixando

asunhasdaoutramão.“Euretirooquedissesobrevocêaprenderrápido”,disseAnadil.“Sevocêéavilãvocêmorre,suaimbecil!”,Hesterrugiu.Sophiequebrouumaunha.“MasoDiretordaEscoladissequeeupodia

irpracasa!”“Outalvezessacharadasejaumaarmadilha.”“EleéBom!Vocêmesmadisse!”“EvocêestánoMal!”,disseHester.“Elenãoestádoseulado.”Sophieficouolhandopraela.AnadileDottinhamamesmaexpressão

risonha.“Euvoumorreraqui?”,Sophiedeuumgritinho,comosolhosenchendo-

sedelágrimas.“Temquehaveralgoqueeupossafazer!”“Resolvaacharada”,sugeriuHester,dandodeombros.“Éaúnicaforma

desaberoqueeleestátramando.Alémdisso,seufinaltemqueacontecerlogo.Sevocêganharmaisumdesafio,eumesmavoumatá-la.”

“Entãomefalearesposta!”,Sophiegritou.“O que uma vilã não tem que uma princesa não pode viver sem?”,

Hesterpensou,coçandoatatuagem.“Animais,talvez?”,disseDot.

Page 159: Escola do bem e do mal

“Vilões podem ter animais como capangas. Só requer uma corrupçãomaisprofunda”,disseAnadil.“Equantoahonra?”

“OMaltemsuaversãoprópriasobrehonra,coragemetodasasoutrascoisasqueoBemachaque inventou”,disseHester. “Nóssó temosnomesmelhoresparaessascoisas.”

“Jásei!”Elasviraram-separaSophie.“Uma festa de aniversário!”, ela disse. “Quem ia querer participar de

umafestadevilão?”AnadileHesterencararam-na.“Éporqueelanãocome”,disseDot.“Océrebroprecisadecomida.”“Então você deve ser a garota mais inteligente do mundo!”, Sophie

rugiu.Dotolhou-a,fulminantemente.“Lembre-sedequeosvilõesmaiscruéis

têmasmortesmaiscruéis.”Sophievirou-separaHester,nervosamente.“SeráqueaLadyLessome

diriaaresposta?”“SeelaacharqueajudaráoMalaganhar.”“Vocêteriaqueseresperta”,disseAnadil.“Esutil”,complementouHester.“Esperteza? Sutileza? Isso é o que eu faço, querida”, disse Sophie,

aliviada.“Essacharadajáestáresolvida.”“Ounão,jáqueestamosquinzeminutosatrasadas”,disseDot.De fato, a única coisamais fria do que a sala de aula gélida de Lady

Lesso foram os olhares que ela lançou às quatro meninas quando estaspassarampelaportaparasentar-seemseuslugares.

“Eu lhes mandaria para a punição, mas eles estão ocupados com osalunosdaminhaúltimaturma.”

Os gritos dos meninos ecoavam abaixo dos pés delas. A sala inteiratremeuaopensarnoqueestavaacontecendonaSaladaCondenação.

“Vejamossenossasatrasadaspodemseredimir”,disseLadyLesso,comossaltosbatendodeformaagourenta.

“Oqueestamosfazendo?”,SophiesussurrouparaHort.“Ela vai nos testar em Punições Famosas”, cochichou Hort. “Se você

acertarumaperguntaganhaumadessas.”Elemostrouumaimensaverrugaadesivagrudadaemseurosto.

Sophieretraiu-se.“Issoéumprêmio?”

Page 160: Escola do bem e do mal

“Hester,vocêpodedizeronomedeumavilãquedestruiuseuNêmesiscomumaMaldiçãodePesadelo?”

“Finola, a comedora de fadas. Finola, a bruxa, assombrava os sonhosdas fadas e as convencia a cortar as próprias asas. Como as fadas nãopodiammaisvoar,Finolaaspegavaecomia,umaporuma.”

Sophie era do tipo que engolia qualquer informação que aparecesse.Ela, porém, nunca tinha ouvido falar de Finola, a comedora de fadas,portanto,Hestercertamentetinhaerrado.

“Correto!Finola,acomedoradefadas!Umadasmaisfamosashistóriasde todas!”, disse Lady Lesso, e colocou uma verruga imensa na mão deHester.

Famosa?Sophieenrugouonariz.Famosaonde?“Anadil, diga o nome de uma vilã que tenha matado sua Nêmesis

usandoumdisfarce!”,disseLadyLesso.“Rex, o urso furioso. Ele vestiu-se de urso porque a princesaAnatole

adoravaursos.Quandoelatentouafagá-lo,elecortou-lheagarganta.”“Umgrandeexemploparatodosnós,Rex,ourso furioso!”,disseLady

Lesso,eplantouumaverruganopescoçodeAnadil.“Seeleestivessevivo,arrancariaaquelesorrisosatisfeitodetodososfrangotesdeClarissa!”

Sophiemordeuolábio.Seráqueelasestavaminventandotudoisso?“Dot.DigaonomedeumavilãquetenhaassassinadosuaNêmesiscom

umtruquedetransformação!”“ARainhadoGelo!Transformouaprincesaemgeloecolocou-anosol

matinal.”“Meu conto favorito!”, Lady Lesso disse, radiante. “Uma história que

viveráparasemprenoscoraçõesde...”Sophieriucomdesdém.“Algoengraçado?”,perguntouLadyLesso.“Nuncaouvifalardenenhumdessesvilões”,disseSophie.HestereAnadilafundaram-seemseusassentos.“Nuncaouviufalardeles?”,LadyLessodebochou.“Essessãoosmaiores

triunfosdoMal!Aglóriaqueinspirafuturosvilões!Quatromeninasemumafonte!Dozeprincesasafogadas!Úrsula,ausurpadora,Abruxade...”

“Tampouco ouvi falar desses”, Sophie suspirou, penteando os cabelosparatrás.“Ládeondeeuvenho,ninguémleriaumahistóriaemqueoMalvence.TodosqueremqueoBemvença,porqueoBemtemumaaparênciamelhor,roupasmaisbonitasemaisamigos.”

Page 161: Escola do bem e do mal

LadyLessoficousempalavras.Sophie virou-se para suas colegas de turma. “Lamento que ninguém

gostedevocês,quevocêsnuncaganhem,equetenhamqueiràescolasemmotivo,maséaverdade.”

Hestercobriuorostocomatúnica.Dot debruçou-se para a frente e sussurrou no ouvido de Sophie. “A

charada,amor.”“Ah, sim”, disse Sophie, toda profissional. “Enquanto tenho a palavra,

aquivaiumpequenoexercíciocerebral.Émuitoimportantequeeuresolvaisso,portanto,qualquerajudaseráprofundamentebem-vinda.Oqueumavilãnãotemqueumaprincesanãopodeviversem?Algumaideia?Sintam-seàvontadeparadizer.Merci,queridas.”

“Eutenhoumaideia”,disseLadyLesso.“Eusabiaqueteria”,Sophiesorriu.“Oqueé?Oqueeutenhoquevocê

nãotem?”Lady Lesso chegou seu rosto junto ao dela. “Nada. Que é o que

ouviremosdevocê,pelorestodenossaaula.”Sophietinhaumapelo,maselenuncachegouasairdesuaboca.Seus

lábiosforamlacrados.“Muitomelhor”,disseLadyLesso,eabençoouSophiecomumaverruga

entreosolhos.Enquanto Sophie tentava abrir os lábios, Lady Lesso alisava

calmamente seu vestido roxo, ignorando as alunas petrificadas ao seuredor.

“Agora, Hort, diga o nome de uma vilã que tenha empregado aArmadilhadaMortedoCorvo.”

Sibilandopelonariz,Sophietentavaabrirabocacomumacaneta,umafivelade cabelo, eumpingentedegeloque furouseus lábios.Resfolegar,uivar,gritar,elatentoudetudomassóencontrousilêncio,pânico,sangue...

EHester,olhando-afuriosamentedaprimeirafileira.“Problemaresolvido,hein?”

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13SaladaCondenação

Agatha não fazia ideia do motivo para o almoço ser uma atividadeconjunta das escolas, já que os Sempre sentavam-se comos Sempre e osNunca sentavam-se com os Nunca, e um grupo fingia que o outro nãoestavaali.

O almoço era realizado na Clareira, em uma área de piqueniquereservada, do lado de fora dos portões da Floresta Azul. Para chegar àClareira,osalunostinhamqueseaventurarportúneisdeárvorescurvos,que iam ficando cada vez mais estreitos até que, um a um, eles eramcuspidos por um tronco oco no gramado esmeralda. Assim que AgathapassoupelotúneldoBem,elaseguiuafiladosSempre,querecebiamcestosdepiqueniquedeninfasdecapuzesvermelhos,enquantoosNuncadotúneldoMalrecebiambaldesenferrujadosdeloboscomuniformesvermelhos.

Agathaencontrouumapequenaáreasombreadanagrama,eenfiouamão em seu cesto, encontrando um lanche com sanduíches de trutadefumada,saladaderabanetes,suflêdemorangoeumfrascodelimonada.Ela afastou quaisquer pensamentos sobre charadas e becos sem saída,enquantoabriaabocasalivanteparaosanduíche...

Page 163: Escola do bem e do mal

Sophie arrancou-o. “Você não sabe o que eu tenho passado”, elachorava,pegandotudo.“Éseu.”Elasoltouumbaldedemingau.

Agathaficouolhandoparaela.“Olhe, eu pedi”, disse Sophie, de boca cheia, entre as mordidas.

“Aparentemente,Nuncasprecisamaprendersobreprivação.Épartedoseutreinamento.Issoestáumadelícia,porsinal.”

Agathaaindaestavaolhando.“O quê?”, disse Sophie. “Estou com sangue nos dentes? Porque achei

quetivessetiradotudo...”PorcimadoombrodeAgatha,elaviuTedroseseusamigosapontando

edebochando.“Ah,não”,Sophiegemeu.“Oquefoiquevocêfezagora?”Agathacontinuouolhandopraela,boquiaberta.“Se for pra você reclamar, pode ficar com o suflê.” Sophie franziu o

rosto.“Porqueaquelagarotaesquisitaestáacenandopramim?”Agatha virou-se e viu Kika, do outro lado da Clareira, acenando e

ostentandonovoscabelosruivos.EstavamexatamentedamesmacorqueosdeTristan.OrostodeAgathaficoubranco.

Page 164: Escola do bem e do mal

“É... você aconhece?”, perguntou Sophie, vendoKika aproximar-se deTristan.

“Somos amigas”, disseAgatha, sinalizandopara queKika se afastassedele.

“Vocêtemumaamiga?”perguntouSophie.Agathavirou-separaela.“Porquevocêficameolhandodessejeito?”,Sophiegritou.“Vocênãoandacomendodoces,nãoé?”“Hã?”, Sophie deu um gritinho, percebendo – sua mão rapidamente

arrancouaverrugadeLessodorosto–“Porquevocênãomedisse?”,elagritou,enquantoTedroseosmeninosmorriamderir.

“Ahhh,nãotemcomoficarpior”,Sophiegemeu.Hortpegouaverrugadescartadaesaiucorrendo.SophieolhouparaAgatha.Agathaabriuumsorriso.“Nãotemgraça!”,Sophiechoramingou.MasAgathaestavarindo,eSophietambém.“Oquevocêachaqueelevaifazercomaquilo?”,Agathadebochou.Sophieparouderir.“Nósprecisamosirpracasa.Agora.”AgathacontouaSophiesobresuastentativas frustradasderesolvera

charada,incluindoobecosemsaídacomoprofessorSader.Antesqueelapudesse sequer perguntar sobre suas pinturas, Sader tinha partido paraencontrar seus alunos do Mal, deixando três porcos idosos lecionandosobreaimportânciadefortalecersuascasas.

“Eleéoúnicoquepodenosajudar”,disseAgatha.“Melhor nos apressarmos. Meus dias estão contados”, disse Sophie,

taciturna, ao relatar tudo o que havia acontecido com suas colegas dequarto,incluindoaprevisãoquefizeramdamaldiçãodeSophie.

“Vocêmorre?Issonãofaznenhumsentido.Vocênãopodeseravilãdahistóriasenóssomosamigas.”

“ÉporissoqueoDiretordaEscoladissequenãopodemosseramigas”,respondeu Sophie. “Alguma coisa tem que surgir entre nós. Algo querespondaàcharada.”

“O que poderia surgir entre nós?”, perguntou Agatha, ainda perdida.“Talveztudoissoestejaligado.Isso,quesóoBemtem,masoMalnão.VocêachaqueéporissoqueoBemsempreganha?”

“OMalcostumavaganhar,segundoLadyLesso,masagora,oBemtemalgoquesuperatudo.”

Page 165: Escola do bem e do mal

“Mas o Diretor nos proibiu de regressar à sua torre. Portanto, arespostaàcharadanãoéumapalavra,ouumacoisa,ouumaideia...”

“Nóstemosquefazeralgo!”“Agoraestamoschegandoaalgumlugar.Primeiro,éalgoquepodenos

jogar uma contra a outra. Segundo, é algo que sempre derrota oMal. E,terceiro,éalgoquepodemosfazerfisicamente...”

Asmeninasvoltaram-seumaparaaoutra. “Já sei”,disseAgatha... “Eutambém”,disseSophie...

“Étãoóbvio.”“Tãoóbvio.”“É...é...”“Sim,é...”“Nãotenhoideia”,disseAgatha.“Nemeu”,suspirouSophie.Dooutroladodocampo,osmeninosSempreentravamlentamenteno

território dasmeninas Sempre. Asmeninas esperavam como flores a sercolhidas,mas Beatrix ganhava todos eles. Enquanto Beatrix flertava comseus pretendentes, Tedros remexia-se no tronco de uma árvore. Até quefinalmente levantou-se,enfiou-sena frentedetodososoutroseconvidouBeatrixparadarumavolta.

“Eledeveriamesalvar”,Sophiechoramingou,vendo-ossair.“Sophie,nós temosa chancedesalvarnossaviladeumamaldiçãode

duzentosanos,desalvarascriançasdeespancamentosefracassos,defugirdelobos,ondasegárgulas,etudomaisnestaescolahorrenda,edeacabarcom uma história que vai matar você. E você está pensando em ummenino?”

“Eu queria meu final feliz, Agatha”, disse Sophie, com as lágrimasbrotando.

“Chegarmosemcasavivasénossofinalfeliz,Sophie.”Sophieconcordou,masseusolhosnuncadeixaramTedros.

“Bem-vindos à aula de Boas Ações”, disse a professora Dovey aosalunos, reunidosnaSaladaPureza. “Agoraestamosatrasadosemrelaçãoàs outras matérias, portanto vamos dispensar as trivialidades habituais.Deixem-me começar dizendo que, ao longo dos anos, tenho visto umadiminuiçãoperturbadoranaestimaporestaaula.”

Page 166: Escola do bem e do mal

“Porqueéapósoalmoço”,TedroscochichounoouvidodeAgatha.“Eporquevocêestáfalandocomigo?”“Sério, que bruxaria você fez comigo pra que eu escolhesse o seu

duende?”Agathanãosevirou.“Vocêfezalgumacoisa”,Tedrosdisse,furioso.“Mediga.”“Não posso contar segredos de bruxa”, disse Agatha, olhando para a

frente.“Eu sabia!”, Tedros viu a professoraDovey olhando-os emostrouum

sorriso convencido. Ela revirou os olhos e prosseguiu. Ele novamenteaproximou-sedeAgatha.“Digaoquefoiemeupessoaladeixaráempaz.”

“Issoincluivocê?”“Apenasmedigaoquefez.”Agatha suspirou. “Eu usei o feitiço da Amarelinha, um poderoso

encantamento das Bruxas Galvadônicas de Reapercat. Elas pertencem auma pequena convenção às margens do rio Callis, e não são apenasespecialistasemfeitiços,mastambémgrandescultivadorasde...”

“Oquevocêfez?”“Bem”, disse Agatha, virando-se para ele “O feitiço da Amarelinha

infiltra-se em seu cérebro como uma praga de sanguessugas. Ele vaiinvadindo cada canto, reproduzindo-se, multiplicando-se, inflamando-se,atéomomentocerto.Edepoisdepenetraremcadacantinhoecadafresta...fssssst!Elesugatodooseuraciocíniointeligenteeodeixaimbecilcomoumjumento.”

Tedrosficouvermelho.“Mais uma coisa. É permanente”, disse Agatha, dando-lhe as costas

outravez.EnquantoTedrosmurmuravasobreenforcamentos,apedrejamentose

outros meios que seu pai usava para punir feiticeiras, Agatha ouvia aprofessoraDoveyjustificaraimportânciadasboasações.

“Cadavezque vocêpraticaumaboa ação com intenção verdadeira, asuaalmaficamaispura.Muitoembora,ultimamente,meusalunosdoBemvenham praticando boas ações como se fossem obrigações, e prefiramcultivar seus egos, sua arrogância e a medida de sua cintura! Deixe-meassegurar-lhesdequenossasequênciadevitóriaspodeacabaraqualquerminuto!”

“NãoseoDiretordaEscolacontrolaroStorian”,disseAgatha.

Page 167: Escola do bem e do mal

“Agatha,oDiretordaEscolanão temnenhumaparticipaçãona formacomo as histórias se desenrolam”, disse a professora Dovey,impacientemente.“ElenãopodecontrolaroStorian.”

“Pramim,elemepareceumuitobomemmagia”,respondeuAgatha.“Perdão?”“Ele consegue dividir-se em sombras. Ele pode fazer uma sala

desaparecer. Pode fazer tudoparecerum sonho, então, certamente, podecontrolarumacaneta...”

“E como você possivelmente saberia de tudo isso?”, suspirou aprofessoraDovey.

AgathaviuTedrosdandoumsorrisoafetado.“Elememostrou”,disseela.O sorriso de Tedros sumiu. A professoraDovey parecia uma chaleira

prontaparaentraremebulição.Osalunosolhavamnervosamenteparaasduas,desviandooolhardeumaàoutra.

Aprofessorasorriu,tensa.“Oh,Agatha,masqueimaginaçãovocêtem!Issolheserviráquandoestiveresperandoquealguémasalvedeumdragãovoraz.Vamostorcerparaqueelechegueatempo.Bem,astrêschavesparaasboasaçõessãocriatividade,viabilidadeeespontaneidade...”

Agathaabriuaboca,masaprofessoraDoveysilenciou-acomumolhar.Sabendo que estava em território perigoso, ela pegou um pergaminho ecomeçouafazeranotaçõesjuntocomosoutros.

AntesdeSobrevivendoaContosdeFadas,osalunosdasduasescolasforamconvocadosparaumareuniãonaClareira.

AssimqueAgathapuloudotúneldeárvores,Kikaagarrou-a...“Tristanmudouocabelo!”

AgathadeuumaolhadaparaTristan,recostadoemumaárvore.Agoraseu cabelo estava louro, caindopor cimadeumolho.Ele a fazia lembraralguém.

“EledissequefezissoporBeatrix!”,choramingouKika,comoscabelosaindahorrendamenteruivos.

AgathaseguiuoolhardeTristanparaBeatrix,queestavatagarelandocom Tedros. Tedros não poderia estar menos entusiasmado, soprando afranjalouraqueestavacaindoemseus...

Agatha tossiu.ElaolhoudevoltaparaTristan,que tambémsopravaafranja loura. Depois para Tedros, que estava com dois botões da camisa

Page 168: Escola do bem e do mal

abertos, com seu T dourado. Depois para Tristan, que tinha aberto doisbotõeseafrouxadoagravatacomoTdourado.

“EseeuforlouracomoaBeatrix?”,disseKika.“SeráqueoTristanvaigostardemim?”

Agatha virou-se. “Você precisa encontrar uma nova paixãoimediatamente.”

“ATENÇÃO.”Elaergueuosolhos,eviutodoocorpodocenteespalhadoentreosdois

túneis,incluindoCástorePólux,cujascabeçashaviamsidorecolocadasemseucorpocanino.

AprofessoraDoveydeuumpassoàfrente.“Houvealguns...”“ANDEMLOGO,SEUSPREGUIÇOSOS!”,Cástorlatiu.OúltimomembrodosNuncaasairdotúnelfoiSophie.Ela lançouum

olhar confuso para Agatha, do outro lado da clareira. Agatha sacudiu osombros.

AprofessoraDoveyabriuabocaparavoltarafalar...“APRESENTANDOCLARISSADOVEY,REITORADAESCOLADOBEM,E

PROFESSORAEMÉRITADEBOASAÇÕES”,disseCástor.“Obrigada,Cástor”,agradeceuaprofessoraDovey.“QUAISQUER INTERRUPÇÕES OU MAU COMPORTAMENTO SERÃO

IMEDIATAMENTEPUNIDOS...”“OBRIGADA,Cástor!”,aprofessoraDoveydeuumgritinhoagudo.Cástorficouolhandoparaaspatas.AprofessoraDoveylimpouagarganta.“Alunos,nósoschamamosaqui

porquehouvealgunsboatosinfelizes...”“Mentiras,éoquechamo”,disseLadyLesso.Agathareconheceunelaa

professoraquehaviaarrancadoapinturadeSader,naGaleriadoBem.“Então,sejamosclaros”,prosseguiuaprofessoraDovey.“Primeiro,não

hámaldiçãonoMal.OMalaindatempoderparaderrotaroBem.”“DesdequeoMalfaçaseudeverdecasa!”,rugiuoprofessorManley.OsNuncamurmuraram,comosenãoacreditassemnissonemporum

segundo.“Segundo, o Diretor da Escola não está do lado de ninguém”, disse a

professoraDovey.“Comosabe?”,gritouRavan.“Por que devemos acreditar em você?”, gritou Hester, enquanto os

Nuncaassobiavam...

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“Porquetemosprovas”,professorSaderdeuumpassoafrente.OsNuncacalaram-se.OsolhosdeAgathaarregalaram-se.Provas?Que

provas?Então, ela notou que Lady Lesso parecia especialmente azeda,

confirmandoqueessasprovasrealmenteexistiam.Seriaaprovaarespostaparaacharada?

“Por fim, mas nem por isso menos importante”, disse a professoraDovey, “a principal responsabilidade do Diretor da Escola é proteger oStorian. Por esse motivo, ele permanece em sua torre-fortaleza. Sendoassim, independentemente de qualquer história que ouçam, deixem-meassegurar-lhes: nenhum aluno jamais viu o Diretor da Escola e nenhumalunojamaisoverá.

OsolharesrecaíramsobreAgatha.“Ah,essaéacontadoradehistórias?”,LadyLessoolhoudeesguelha.“Nãoéhistória!”,Agathadisparou.ElaviuSophiesacudiracabeçapara

dizerqueessaeraumabatalhaperdida.LadyLessosorriu. “Eu lhedareimaisumachancederedimir-se.Você

conheceuoDiretordaEscola?”Agatha olhou para a professora do Mal, com seus olhos roxos

arregaladoscomobolasdegude.DepoisparaoprofessorSader,quesorriacuriosamente para ela. Então, para Sophie, do outro lado da Clareira,fazendomímicasdecolagemdeverrugasezípernaboca...

“Sim.”“Vocêmenteparaumaprofessora?”,atacouLadyLesso.“Nãoémentira!”,gritouumavoz.Todosvoltaram-separaSophie. “Nósduasestivemos lá!Estivemosna

torredele!”“EeuapostoquetambémviramoStorian,não?”,Beatrixdebochou.“Poracaso,vimos,sim!”,Sophierespondeu,paragargalhadageral.“Eeletambémcomeçouseucontodefadas?”“Começou!Elecomeçounossocontodefadas!”“TodosdeemumvivaparaaRainhadosTolos!”,Beatrixproclamou,sob

aclamação.“EntãovocêdeveseraGrandeImperatriz.”Beatrixvirou-separaAgatha,comasmãosnacintura.“Argh.O‘Erro’”,Beatrixgrunhiu.“OBemnuncaestevetãoerrado.”“VocênãoreconheceriaoBemnemsepulasseemvocê!”,Agathagritou.

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BeatrixengasgoutãoaltoqueTedrossoltouumarisada.“NãofalecomBeatrixdessejeito!”,disseumavoz...Agathavirou-seeviuTristan,comseucabelolouro...“Beatrix?”,Agathaexplodiu.“TemcertezadequenãoquerTedros?Ele

adorariacasar-seconsigomesmo!”Tedrosparoudesorrir.Pasmo,eledesviouoolhardeAgatha,Tristan,

Beatrix...EleperdeuapaciênciaedeuumsoconabocadeTristan.Tristansacouaespadacegade treino,Tedros sacoua sua,eeles começaramumduelopúblico.Contudo,TristanvinhaestudandoTedrosnaesgrima,entãoosdoisusavamexatamenteasmesmasinvestidas,asmesmasesquivas,atéqueninguémmaissabiaquemeraquem...

Em vez de intervir, o professor Espada, que dava aula de esgrima,enrolava seu bigode comprido. “Vamos analisar isso minuciosamente naauladeamanhã.”

OsNuncativeramumareaçãoimediata.“LUUUUUUUUTAAAAA!”,rugiuRavan.OsNuncapartirampracimadosSempre,atropelandooslobosatônitos,

e caíram em batalha em meio aos dois duelistas. Os meninos Semprepartirampradentro,incitandoumabrigaépicaquerespingouasmeninasSempre de lama. Agatha não pôde deixar de rir ao ver as meninas dejoelhosnaterra,atéqueBeatrix,imunda,apontoupraela.

“Foielaquemcomeçou!”AsmeninasSempre,aosgritos,partirampracimadeAgatha,quesubiu

em uma árvore. Ali perto, Tedros conseguiu erguer a cabeça acima dosmeninoseverSophiepassarcorrendo.“Socorro!”,elegritou...

Sophie passou direto pela cabeça dele ao correr para ajudar Agatha,queestavasendobombardeadacomseixoslançadosporBeatrix.EntãoelaviuHortderelance.

“Você!Devolvaaminhaverruga!”Hortcorriarapidamenteemvoltadamassaruidosa,comSophieatrás

dele, até que ela chegou perto o suficiente para pegar um galho caído elançar na cabeça dele – ele abaixou-se e o galho bateu no rosto de LadyLesso.

Osalunosficarampetrificados.Lady Lesso tocou seu rosto frio e cortado. Olhando o sangue em sua

mão,elaficousinistramentecalma.SuaunhavermelhaecompridaapontouparaAgatha.

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“Tranquem-naemsuatorre!”UmenxamedefadaspegouAgathaearrastou-a,passandopelosorriso

debochadodeTedros,emdireçãoaotúneldosSempre.“Não,aculpaéminha!”,gritouSophie.“E essa também.” Lady Lesso apontou seu dedo sujo de sangue para

Sophie.“ParaaSaladaCondenação.”AntesqueSophiepudessegritar,umagarracobriu-lheabocaepuxou-

a,passandopeloscolegasdeturmapetrificados,levando-aparaaescuridãodasárvores.

Sophienão conseguiria sobreviver à tortura! Sophienão sobreviveriaaoverdadeiroMal!

Enquanto as fadas levavam-na voando para cima, Agatha derramavalágrimasdepânico,olhandoparabaixo,vendoosprofessoresentraremnovestíbulo.

“Professor Sader!”, ela gritou, agarrando-se ao balaústre. “Precisaacreditarnagente!OStorianachaqueSophieéumavilã!Elevaimatá-la!”

Saderevinteprofessoresolharamparacima,alarmados...“Como o senhor vê nossa vila?”, Agatha gritava, enquanto as fadas

arrastavam-napara longe. “Comovoltamospracasa?Oqueumavilãnãotemqueumaprincesanãopodeviversem?”

Sadersorriu.“Perguntas.Sempreemtrês.”Os professores riram e dispersaram-se. (“Viu o Storian?” Espada

meditou.“Elaéaquelaquecomedoces”,explicouaprofessoraAnêmona.)“Não! Vocês têm que salvá-la!”, Agatha implorava, mas as fadas

arrastaram-naparaseuquartoetrancaram-na.Frenética, ela subiu na cama, passando por pinturas de heróis, e

estendeu o braço em busca do ladrilho quebrado no teto... Mas ele nãoestavamaisquebrado.Alguémohaviaprendidomuitobem.

O sangue fugiu das bochechas de Agatha. Sader era sua únicaesperança, e ele se recusava a responder às suas perguntas. Agora suaúnicaamigamorrerianaquelamasmorra,tudoporqueumacanetamágicaconfundiraumaprincesacomumabruxa.

Entãoalgosurgiuemsuacabeçaemumlampejo.AlgoqueSaderdissenasaladeaula.

Setiveremperguntas...

Page 172: Escola do bem e do mal

Ofegante,Agathaesvaziouseucestodelivrosescolares.

Um lobocinza, estoicoeeficiente, arrastavaSophieporumacorrentecomprida,puxando-aporumacoleiradeferrobemjusta,presaaoredordeseupescoço.Margeando as paredes úmidas do esgoto, ela não conseguialutar contra a coleira; um passo em falso e escorregaria do caminhoestreito, caindo direto no lodo ruidoso. Do outro lado do rio negro epútrido, viudois lobos arrastandoVex, que gemia, vindodadireçãoparaonde estava indo. Seus olhares cruzaram-se e seus olhos estavamvermelhos,repletosdeódio.OquequerquetivesseacontecidonaSaladeCondenação,haviaotornadomaisvilãodoquequandoentrou.

Agatha,Sophiedisseasimesma.Agathavainoslevarparacasa.Elaconteveaslágrimas.FiquevivaporAgatha.Aochegaremaopontocentraldocanaldeesgoto,ondeolodotornava-

seágualimpa,elasentiuaspedrassólidasdaparedetransformarem-seemgradesenferrujadas.Oloboabriuaportacomumchuteeempurrou-aparadentro.

Sophieergueuacabeçaparaocalabouçoescuro,acesoporumaúnicatocha.Paratodososladosqueolhava,sóviaferramentasdepunição:rodasextensoras, coronhas, laços, ganchos, garrotes, armaduras de ferro comtachas,eumacoleçãohorrendadelanças,tacos,porretes,chicotesefacas.Seucoraçãoparou.Eladesviouoolhar...

Doisolhosvermelhosobservavam-nadeumcanto.Lentamente, um lobo preto enorme surgiu da sombra, duas vezes o

tamanhodosoutros.Este,porém, tinhaumcorpohumano, comumpeitopeludo,braçosfortes,panturrilhassalientesepésenormes.Aferaabriuumpergaminhoeleu,comumrosnadoprofundo.

“Você, Sophie de Além da Floresta, foi trazida para a Sala daCondenação pelos seguintes pecados: conspiração para dar falsotestemunho, perturbação de assembleia, tentativa de assassinato de ummembrodocorpodocente...”

“Assassinato!”,Sophiesussurrou...“Incitação de motim público, ultrapassagem de linhas fronteiriças

duranteassembleia,destruiçãodepropriedadedaescola,assédioacolegas,ecrimescontraahumanidade.”

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“Eualegoquesouinocentedetodasasacusações”,Sophiefezumacarafeia.“Principalmentedaúltima.”

AFeraagarrou-lheorostocomasgarras.“Culpada,atéqueseproveocontrário!”

“Solte-me”,Sophiegritou.Elecheirou-anopescoço.“Masquecoisinhaapetitosa!”“Vocêvaimedeixarmarcada!”Para sua surpresa, a Fera soltou-a. “Geralmente, é preciso uma surra

paradescobriropontofraco.”SophieolhouparaaFera,confusa.Elelambeuoslábiosesorriu.Com um grito, ela saiu correndo para a porta – ele jogou-a contra a

paredeeprendeuseusbraçosemganchosacimadesuacabeça.“Solte-me!”A Fera esgueirou-se ao longo da parede, buscando a punição mais

apropriada.“Por favor, o que quer que eu tenha feito, lamento muito!”, Sophie

chorava.“Vilões não aprendem com pedidos de desculpas”, disse a Fera. Ele

olhou para um porrete, por um tempo, depois seguiu em frente. “Vilõesaprendemcomdor.”

“Porfavor!Alguémmeajude!”“Adortorna-osmaisfortes”,disseaFera.Eleacariciouapontadeumalança,depoispendurou-adevolta.“Socorro!”,Sophiegritava.“Adorosfazcrescer.”AFerapegouummachado.OrostodeSophieficoubrancocomoode

umfantasma.Elecaminhouatéela,demachadoempunho,comsuasmãoscarnudas.“Adortorna-osmaus.”Elepegouoscabelosdela.“Não!”,Sophieengasgou.AFeraergueuomachado...“Porfavor!”Alâminadecepouseuscabelos.Sophieficouolhandoseuslindoscachoscompridosedouradosnochão

negro do calabouço, com a boca paralisada, aberta, em silêncio. ElalentamenteergueuorostoaterrorizadoparaorostonegrodaFera.Então,

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seus lábios tremeram, seu corpo pendeu nas correntes e as lágrimasvieram.Elaenterrouacabeçacomoscabeloscurtoseirregularesnopeito,echorouatéseuspunhossangraremnasalgemaseelanãoconseguirmaisrespirar...

Umcadeadoestalou-se.Sophieergueuosolhosvermelhos,eviuaFerasoltá-ladaparede.

“Saia”,elerosnou,ependurouomachado.Quandoelevirou-se,Sophietinhasumido.AFerasaiuandandodacela,eajoelhou-senopontocentralentreolodo

ea água limpa.Enquantoelemergulhavaas correntes ensanguentadas, acorrentezabatiaemambasasdireções,enxaguando-as.Depoisdeesfregarasúltimasmanchasdesangue,eleviuseureflexonolodo...

Contudo,nãoeraodele.AFeravirou-se...Sophieempurrou-o.A Fera debateu-se na água e no lodo, gemendo, tentando alcançar a

beirada. As ondas eram fortes demais. Ela o viu gorgolejar entre seusúltimossuspiroseafundarcomoumapedra.

Sophie passou a mão pelos cabelos, e caminhou em direção à luz,engolindoarepulsaemsuagarganta.

OBemperdoa,diziamasregras.Masasregrasestavamerradas.Tinhamqueestar.Porqueelanãotinhaperdoado.Masnãotinhaperdoadomesmo.

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14Asoluçãodoguardadordacripta

A capa era de seda prateada, e nela o Storian reluzia, preso entre oscisnespretoebranco.

AhistóriadaFlorestavistaporumalunoAUGUSTA.SADER

Agathaabriunaprimeirapágina.“EsselivrorefleteSOMENTEavisãodeseuautor.Ainterpretaçãodahistória,peloprofessorSader,éapenasdele,eocorpo docente não compartilha dela. Cordialmente, Clarissa Dovey & LadyLesso,ReitorasdaEscoladoBemedoMal”.

Agathasentiu-seencorajadapelofatodeosprofessoresreprovaremolivro que estava em suas mãos. Isso deu-lhe esperanças de que nessaspáginas estivesse a resposta para a charada. A diferença entre umaprincesa e uma bruxa... a prova de que o Bem e o Mal estavamequilibrados...Seráqueambaspoderiamseramesmacoisa?

Page 176: Escola do bem e do mal

Ela virou a página para começar, mas não havia palavras. Só haviapadrões de estampas em relevo salpicados nas páginas, feitos porpontinhos nas cores do arco-íris, pequenos como cabeças de alfinete.Agathavirouapágina.Maispontinhos.Elaviroublocosdepáginas.Nadadepalavras.Elamergulhouacabeçanolivro,frustrada.AvozdeSaderecoou:

“Capítuloquatorze:AGrandeGuerra.”Agatha deu um pulo. Diante de seus olhos, uma cena assombrosa e

tridimensionalganhouvidanoaltodapáginadolivro–umdioramavivo,comcoresdiáfanas,comonaspinturasdeSadernagaleria.Elaagachou-separa observar a visão silenciosa, que desfraldava três velhos sábios, combarbasatéo chão, empéna torredoDiretordaEscola, comasmãosemsúplica.Quandooshomensabriramsuasmãos,oStorianreluzentelevitouparaforadelas,pairandoacimadeumaconhecidamesabrancadepedra.AvozdesencarnadadeSadercontinuou:

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“Agora, lembrem-se do capítulo um, no qual o Storian foi colocado naEscola do Bem e do Mal por três videntes da Floresta Sem Fim, queacreditavamseresseoúnicolugarondeeleestariaprotegidodacorrupção...”

Agatha estava pasma de incredulidade. Sader, sendo cego, não tinhacomo escreverHistória. Contudo, ele podia vê-la, e queria omesmoparaseusalunos.Cadavezqueelaviravaumapáginae tocavaopontilhado,ahistória ganhava vida coma narraçãodele. Amaior parte do capítulo 14relatavaoqueSophielhedisseranoalmoço:queaEscolahaviasidoregidapor dois irmãos, um Bom e um Mau, cujo amor recíproco superava sualealdadeaambososlados.Comotempo,porém,oirmãodoMalviuoamordandolugaràtentação,atéquesóviaumobstáculoentreeleeacanetadepoderinfinito...seuprópriosangue.

As mãos de Agatha varriam os pontilhados, observando cenasexaustivasdebatalhasdaGrandeGuerra,alianças,traições,paravercomotudoterminava.Seusdedospararamquandoelaviuumafigurafamiliar,detúnica prateada e máscara, surgindo de umamatança, com o Storian namão:

“Daúltimabatalhaentreo irmãodoMaleo irmãodoBem, surgiuumvencedor não comprometido com nenhum dos lados. Na Grande Trégua, otriunfante Diretor da Escola jurou erguer-se acima do Bem e do Mal, eproteger o equilíbrio pelo tempo que pudesse manter-se vivo. Claro quenenhumdosladosconfiavanovencedor,masnemprecisavam.”

A cena mostrou o irmão moribundo sendo queimado, enquantodesesperadamente erguia as mãos aos céus, soltando um raio de luzprateada...

“Poiso irmãoquemorriausousuasúltimasbrasasdemagiaparacriarumfeitiço finalcontraseu irmãogêmeo:ummeiodeprovarqueoBemeoMal são iguais. Contanto que essa prova permanecesse intacta, então oStorian permaneceria incorruptível, e a floresta em perfeito equilíbrio. Aoqueessaprovaé...”

OcoraçãodeAgathadeuumpulo.“ElapermanecenaEscoladoBemedoMalatéosdiasdehoje.”Acenaficouescura.Elavirouapáginarapidamenteetocouospontilhados.AvozdeSader

estrondou...“Capítuloquinze:ApragadasbaratasdaFloresta”

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Agathaarremessouolivrocontraaparede,depoisosoutros,deixandomarcasnosrostosdoscasaispintados.Quandonãohaviamaisnadaparaatirar,elamergulhouorostonacama.

Porfavor.Ajude-nos.Então,nosilêncio,entreaspreceseaslágrimas,algoveio.Nemfoium

pensamento.Foiumimpulso.Agathaergueuacabeça.Arespostadacharadaestavaolhandoparaela.

Ésóumcortedecabelo,Sophiedisseasimesma,enquantoescalavaummatagaldecentáureas.Ninguémvainemnotar.Eladeslizouporentreduasárvorescobertasdevinca,eentrounaClareiraOeste,aproximando-sedeseugrupoportrás.

ApenasencontreAgathae...O grupo inteiro virou-se de uma só vez.Ninguém riu.NemDot.Nem

Tedros. Nem mesmo Beatrix. Eles ficaram olhando boquiabertos, tãohorrorizadosqueSophienãoconseguiarespirar.

“Comlicença...algonomeuolho...”Elaabaixou-seatrásdeumaroseiraazulada,tentandopuxaroar.Nãoconseguiasuportarmaishumilhações.

“PelomenosagoravocêsepareceumaNunca”,disseTedros,surgindopordetrásdoarbusto.“Assimninguémvaicometeromesmoerroqueeu.”

Sophieficouvermelhacomoumpimentão.“Bem,issoéoqueacontecequandosefazamizadecomumabruxa”,o

príncipefranziuorosto.AgoraSophieestavaroxa.“Olhe, não está assim tão ruim. Pelomenos não tão ruim quanto sua

amiga.”“Com licença”, disse Sophie, roxa como uma berinjela. “Algo emmeu

outroolho...”EladisparouepegouDot,comosefosseumbotesalva-vidas“Ondeestá

Agatha?”Mas Dot ainda estava olhando para o cabelo dela. Sophie limpou a

garganta.“Ah,é...elesaindanãoatrouxeramdeseuquarto”,disseDot.“Quepena

que ela vai perder o Campo Florido. Isso é, se Yuba conseguir chamar ocondutor.” Ela balançou a cabeça mostrando o gnomo, que resmungava,

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remexendoemumpedaçodeterracomumaabóboraazul.OsolhosdeDotrecaíramsobreoscabelosdeSophie.

“Está...legal.”“Porfavor,não”,disseSophie,baixinho.OsolhosdeDotlacrimejaram.“Vocêeratãobonita!”“Vaicrescernovamente”,disseSophie,tentandonãochorar.“Nãosepreocupe”,Dot fungou.“Umdia,alguémmuitoMauvaimatar

aquelemonstro.”Sophieretesou-se.“Todosabordo!”,Yubachamou.Ela virou-se e viu Tedros abrir o topo de uma abóbora azul comum

comosefosseumachaleira,esumirládentro.Sophieestreitouosolhos.“Masquediabos...”Algo espetou seu quadril e ela olhou para baixo. Yuba enfiou em sua

mão um passe para o Campo Florido, e abriu uma tampa de abóbora,revelandoumalagartamagrinhadesmokingdeveludoroxo,comacartolacombinando,flutuandoemumredemoinhodetonspastel.

“Nada de cuspir, espirrar, cantar, fungar, balançar, xingar, estapear,cochilar, ou urinar noCampoFlorido, ele disse, coma vozmais ranzinzaimaginável. “Infrações resultarão na remoção de suas roupas. Todos abordo!”

Sophievoltou-separaYuba.“Espere!Euprecisoencontrarminhaami...”Umavideirasubiuepuxou-aparadentro.Estarrecidademaisparagritar,elamergulhouportonsdeslumbrantes

derosa,azul,amarelo,emaisbrotossurgiramaoseuredor,prendendo-acomocintosdesegurança.Sophieouviuumchiadoevirou-sea tempodeverumagigantescaplantacarnívoraverdeengoli-la.Tevetempodegritarantes que a vinha a lançasse para fora de sua boca e para dentro de umtúneldeneblinaquente,espessa.Elaprendeu-seemalgoqueamantinhaemmovimento, enquanto seuspés e seusbraçosbalançavam livremente.Entãoanévoadissipou-se, e Sophie sedeparou coma coisamaismágicaquejátinhavisto.

Eraumsistemasubterrâneodetransporte,tãograndequantoumavilainteira, feito inteiramente de plantas fluorescentes. Os passageirospenduradosseguravam-seemalçasdevinhas,presasatroncosdeárvoresde cores diferentes, cobertas por flores em tons que combinavam. Essestroncoscomcódigosdecoresentremeavam-seememaranhadoscolossais

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de trilhas. Alguns seguiam paralelos, outros em ângulo perpendicular, ealguns bifurcavam-se em direções distintas, mas todos levavampassageirosprecisamenteaos seusdestinos,naFloresta SemFim. Sophieolhava, em choque, para uma fileira de anões sérios, presos por tirasvermelhasfluorescentes,emumtroncocomosdizeresLINHAROSALINDA.NadireçãoopostaseguiaaLINHAARBÓREA,comumafamíliadeursosqueusavaternosevestidosbempassados,emmeioapassageirosemredesdevinhas.Abismada,Sophieolhouparabaixo,paraaLINHAHIBISCO,eviuorestantedeseugrupobalançando-seemumtroncoazul-elétrico.Contudo,somenteosNuncaestavampresosemarreios.

“O Campo Florido é só para os Sempre”, Dot falou. “Eles têm de nosdeixarentrarporquesomosdaescola.Masaindanãoconfiamemnós.”

Sophie não se importava. Ela ficaria andando no Campo Florido pelorestodesuavida,sepudesse.Alémdoritmoforteecalmanteedosaromasdeliciosos,haviaumaorquestradelagartosparacadalinha:oslagartosdaLINHA TANGERINA tocavam banjos, os da LINHA VIOLETA tocavamcítaras, e os lagartos da linha de Sophie tocavam flautins, acompanhadosporsaposazuis.Paraqueospassageirosnãoficassemcomfome,cadalinhatinhaseuspetiscos,compássarosazuisquerevoavamao longodaLINHAHIBISCOS, oferecendo bolinhos azuis de milho e suco de mirtilo. Pelaprimeira vez, Sophie tinha tudo o que precisava. Relaxando osmúsculos,elaesqueceu-sedosmeninosedasferas,enquantoasvinhaspuxavam-napara cima, em uma roda de vento de luz azul. Seu corpo sentia o vento,depoisoar,depoisa terra,e seusbraçosabriam-separaocéu,enquantoelafloresciadochãocomoumjacintocelestial...

Eelaseviuemumcemitério.Lápides da cor do céu triste varriam as colinas desertas. Colegas de

turmatrêmulossaíamdeumburaconochãoaoseulado.“Ondeest-aaa-mos?”,elagaguejava,porentreosdentesquebatiam.“Jardim do B-bem e do Mal”, disse Dot, tremendo, mordiscando um

lagartodechocolate.“Pramimnãopare-ceejar-ddim”,Sophiebateuosdentes.OcaloraqueceusuapeleassimqueYubaacendeupequenasfogueiras

aoredordogrupo,comsuavaretamágica.Sophieeseuscolegasdeturmasuspiraram.

“Em algumas semanas vocês todos terão permissão para realizarfeitiços”,disseognomoaosalunos,queriamdeempolgação.“Masfeitiços

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nãosãosubstitutosparatécnicasdesobrevivência.Háminhocasquevivempertodetúmulosequevãomantê-losvivosquandooalimentoforescasso.Hojevocêsvãoencontrá-lasecomê-las!”

Sophieapertouseuestômago.“Podem ir! Em duplas!”, disse o gnomo. “A dupla que comer mais

minhocas ganha o desafio!” Os olhos dele desviaram-se para Sophie.“Talveznossaovelhanegrapossaencontrararedenção.”

“Aovelhanegranãoconsegueencontrarnadasemaamiga”,murmurouTedros.

Sophieolhavaabatida,enquantoeleformavaumaduplacomBeatrix.“Vamos”, disse Dot, puxando Sophie para o chão. “Podemos derrotá-

los.”Subitamentemotivada, Sophie começou a procurar no solo com Dot,

cautelosaparamanter-sepertodofogo.“Comosãoasminhocasquevamoscomer?”

“Iguaisàsminhocascomuns”,disseDot.Sophieestavaformulandoumaoutrapergunta,quandonotouasilhueta

deuma figuraàdistância,noaltodacolina.Eraumgiganteenorme, comuma longa barba preta, cabelos em tranças grossas e uma pele azuladacomo a meia-noite. Ele vestia apenas uma tanga marrom e cavava umafileiradecovas.

“Elefaztudosozinho,oGuardadordaCripta”,DotdisseaSophie.“Porissoqueaesperaétãolonga.”

Sophie seguiu os olhos dela até uma fileira de três quilômetros decorpos e caixões, atrás do Guardador da Cripta, que esperavamsepultamento. Ela imediatamente notou a diferença entre os caixõesescuros dos Nunca e os caixões de vidro e ouro dos Sempre. E haviatambémalgunscorpossemcaixões,deixadosnacolinasemproteção,sobreosquaiscirculavamabutres.

“Porqueelenãotemajuda?”,eladisse,nauseada.“Porque ninguém pode interferir com o sistema do Guardador da

Cripta, disseHort, baixinho. “Meupai esperoupor dois anos.”A vozdelefalhou.“ElefoimortopelopróprioPeterPan,omeupai.Mereceumtúmulodecente.”

Agora o grupo inteiro observava o Guardador da Cripta cavar seustúmulos, antes de puxar um livrão de sua cabeleira e estudar uma daspáginas. Então, o gigante escolheu um caixão dourado, com um belo

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príncipedentro,ecolocou-oemumacovavazia.Eleprosseguiupelafiladecorpos que esperavam, escolheu um caixão de cristal, com uma belaprincesa,ecolocou-aaoladodocaixãodopríncipe,namesmacova.

“Anastásia e Jacob. Morreram de fome, durante a lua-de-mel. Mortesque teriam sido evitadas se tivessem prestado atenção à aula”, estrilouYuba.

Resmungando, os alunos voltaram a caçar minhocas, mas SophiemanteveosolhosnoGuardadordaCripta,quevoltouaestudar seu livroantesdeescolherumogrosemcaixãoecolocá-lonacovaseguinte.Voltouao livro e depois colocou uma tumba resplandecente de prata, de umarainha,aoladodeoutraigual,deumrei.

OsolhosdeSophiepercorreramocemitério,eviramomesmopadrãoemtodasascolinasdovale.OsSempreenterradosjuntos,emlápidesiguais–meninoemenina,maridoemulher,príncipeeprincesa,juntosnavidaenamorte.OsNuncaenterradossozinhos.

ParaSempre.Paraísocompartilhado.NuncaMais.Paraísosolitário.Sophiegelou.ElasabiaarespostaparaacharadadoDiretordaEscola.“Talvez devêssemos procurar no Cume Necro”, Yuba suspirou.

“Venham,alunos...”“Medêcobertura”,SophiedisseaDot.Dotvirou-se.“Aondevocê...espere!Nóssomosum...”Mas Sophie estava percorrendo túmulos distantes na direção da

entradadoCampoFlorido.“Time”,disseDot,aborrecida.Poucodepois,naFlorestaAzul,cincostymphsergueramosolhosdeseu

bodeeviramSophiesegurandoumovo.“Vamostentarissonovamente?”

Estavaaliotempotodo,pensouAgathaenquantoolhavaasparedes.AarmaquefaziaoBeminvencívelcontraoMal.Aquiloqueumavilãjamaispoderia ter, mas uma princesa não poderia viver sem. A tarefa quemandariaSophieeelaparacasa.

SeSophieestiverviva.Agatha sentiu outra onda de terror e impotência. Ela não podia

simplesmenteficaralisentadaenquantoSophieestavasendotorturada...

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Gritosecoavamláfora.Elavirou-se,eviuSophieserjogadapelajanelaporumstymphtriturador.

“Amor”,Sophiedisse,ofegante.“Vocêestáviva!Seucabelo”,Agathaengasgou.“Oamoréoqueumvilãojamaispodeter,masumaheroínanãopode

viversem.”“Masoqueeles...vocêestá...”“Estoucerta,ounão?”AgathaviuqueSophienãotinhanenhumaintençãodefalardaSalada

Condenação.“Quase.”Elaapontouparaaspinturasnaparede,comvisõesdeheróise

heroínas,lábioscolados,emabraçosdeclímax.“Beijodoverdadeiroamor”,Sophiedisse.“Seoseuverdadeiroamorbeijá-la,então,vocênãopodeserumavilã”,

disseAgatha.“E se você não conseguir encontrar amor, então, não pode ser uma

princesa”,disseSophie.“E nós vamos pra casa”, Agatha engoliu seco. “Minha metade está

providenciada.Asuanãoétãosimples.”“Ora, por favor. Eu posso fazer qualquer um daqueles repulsivos

meninosNuncaseapaixonarempormim.Apenasmedêcincominutos,umarmáriovazioe...”

“Hásomenteum,Sophie”,disseAgatha,comavozfalhando.“ParatodoSemprehásomenteumverdadeiroamor.”

Sophieolhou-anosolhos.Edesmoronouemsuacama.“Tedros.”Agatha concordou, nauseada.O caminhode casa passava pela pessoa

quepoderiaestragartudo.“Tedrosprecisa...mebeijar?”,disseSophie,olhandoparaonada.“Eelenãopodeserenganado,forçado,nemludibriadoparafazerisso.

Eletemdeteraintenção.”“Mas,como?Eleachaqueeusouumavilã!Elemeodeia!Agatha,eleé

filhodeum rei. Ele é lindo, é perfeito e olhepramim...”, ela agarrou seucabelocurtoesuatúnicalarga.“Eusou...eusou...”

“Aindaéumaprincesa.”Sophieolhouparaela.“Eéaúnicaformadechegarmosemcasa”,disse

Agatha,forçandoumsorriso.“Portanto,nósprecisamosfazercomqueesse

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beijoaconteça.”“Nós?”,disseSophie.“Nós”,confirmouAgatha.Sophiedeu-lheumabraçoapertado.“Nósvamospracasa,Agatha.”Nosbraçosdela,porém,Agathasentiualgodiferente.Algoquelhedizia

queaSaladaCondenaçãohavia tiradomaisde suaamigadoqueapenasseus cabelos. Agatha afastou suas dúvidas, e apertou Sophie com maisforça.

“Umbeijoetudoestaráacabado”,elasussurrou.Enquanto elas se abraçavam em uma torre, em outra o Diretor da

Escola observava o Storian concluir uma pintura magnífica das duasmeninas,umanosbraçosdaoutra.Acanetaacrescentouumúltimofloreiodepalavrasembaixo,fechandoocapítulo.

“Mastodobeijotemseupreço.”

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15Escolhaoseucaixão

SemprequeTedrosestavaestressado,elefaziaexercícios.Portanto,vê-loàsseisdamanhãarremessandopesos, levantandohalterese treinandona piscina da Sala de Embelezamento significava que estava commuitascoisas na cabeça. Era compreensível. Os convites para o Baile da Nevetinhamsidodistribuídosecolocadosembaixodasportasduranteanoite.

Enquanto escalava cordas feitas de cabelos louros trançados, elepraguejavapelofatodequepassariaoNatalemumbaile.Porquetudoarespeito dos Sempre girava em torno de danças formais opressivas? Oproblemacombaileseraqueosmeninostinhamquefazertodootrabalho.Meninaspodiamflertaretramartudooquequisessemmas,nofim,eraomeninoquetinhadefazersuaescolhaetorcerparaqueeladissessesim.Tedros não estava preocupado quanto à menina dizer sim. Estavapreocupadopornãohavernenhumagarotaqueelequisesseconvidar.

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Elenãoconseguialembrar-sedaúltimavezquetinha,defato,gostadodeumamenina.E,noentanto,sempretinhaumaatrásdele,perseguindo-o,afirmandosersuanamorada.Sempreacontecia.Elejuravaqueesqueceriaasgarotas,depoisnotavaumaqueestavaganhandoaatençãodosoutros,dispunha-seaprovarquepodiaganhá-la,ganhava,edescobriaqueelaeraumatolacaçadoradepríncipesqueestiveradeolhoneleotempotodo.AMaldiçãoBeatrix.Não.Haviaumnomemelhorpraisso.

AMaldiçãoGuinevere.Tedros tinha apenas 9 anos quando sua mãe, Guinevere, se mandou

com o cavaleiro Lancelot, abandonando a ele e a seu pai. Ele ouviu oscochichosquevieramaseguir:“Elaencontrouoamor”.Equantoatodasasvezesemqueeladisse“euteamo”aoseupai?Qualamorerareal?

Noite após noite, Tedros observava o pai mergulhar mais fundo namágoaenabebedeira.Amorteveioemumano.Emseusúltimossuspiros,oReiArthursegurouasmãosdofilho.

“Opovoprecisarádeumarainha,Tedros.Nãocometaosmeusenganos.Procureporumagarotaquesejaverdadeiramenteboa.”

Tedrosescalavacadavezmaisaltonastrançasdouradas,comasveiasestufadassobreosmúsculos.

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Nãocometaosmeusenganos.Suamãoescorregoueelecaiudacorda,desmoronandoemumcolchão

macio.Comorostovermelho,olhavaascascatasdecabelos.Todasasgarotasaquieramenganos.Guineveresqueconfundiamamor

combeijos.

AluzdodiabateunotravesseirodeAgatha.Elarevirou-seeviuSophieencurvadasobreaantigacamadeReena.

“Por que você ainda está aqui? Se os lobos te pegarem você iránovamenteparaaSaladaCondenação!Alémdisso,vocêdeveriaestaremcasa,escrevendoaquelepoemaanônimoparaTedr...”

“VocênãomedissequevaihaverumBaile.”Sophieergueuumconvitecintilanteemformatodeflocodeneve,como

nomedeAgathaescritocompérolas.“Ah, quem liga para um baile imbecil?”, gemeu Agatha. “Já teremos

partidohámuitotempo.Agora,assegure-sedequeaquelepoemafalesobrequemeleécomopessoa.Suahonra,suacoragem,suabravu...”

AgoraSophieestavacheirandooconvite.“Sophie, me ouça! Quanto mais nos aproximarmos do Baile, mais

Tedrosvaiprocurarumpar!Quantomaiseleprocurarporumpar,maiselese apaixonará por outra pessoa! Quanto mais se apaixonar por outrapessoa,maisnosdeixaráaquiparamorrermos!Entendeu?”

“Maseuqueroserseupar.”“VOCÊNÃOFOICONVIDADA!”Sophieapertouoslábios.“Sophie,Tedrosprecisabeijá-laagora!Docontrário,nósjamaisiremos

pracasa!”“Honestamente,elesverificamosconvitesemumBaile?”AgathaarrancouoconvitedeSophie.“Comoeusouestúpida.Acheique

vocêquisessecontinuarviva!”“MasnãopossoperderoBaile!”Agathaempurrou-aemdireçãoàporta.“UseoTúneldasÁrvores...”“Salãodemármore,trajescintilantes,bailandosobasestrelas...”“Seumloboapegar,apenasdigaqueestáperdida...”“Umbaile,Agatha!Umbailedeverdade!”Agathaapôsparafora.Sophieficouolhandodecarafeia.

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“Minhascolegasdequartovãomeajudar.Elassãoamigasdeverdade.”ElabateuaportadiantedaexpressãochocadadeAgatha.Dez minutos depois, Hester pisou com força em seus pés, quase

matandooratodeAnadil.“SOCORRO! VOCÊ QUER QUE EU AJUDE UMA NUNCA A BEIJAR UM

SEMPRE! EU PREFIRO ENFIAR MINHA CABEÇA NO TRASEIRO DE UMCAVALO...”

“Sophie,nenhumavilãjamaisencontraoamor”,disseAnadil,torcendoparaquearazãopudessesalvarseusratos.“Procurarporissoétrairnossaprópriaalma...”

“Quer que eu vá pra casa?”, estrilou Sophie, catando folhas do túnel.“Então,ponhaumfeitiçoemTedrosparaqueelemeconvideparaoBaile.”

“O BAILE!”, Hester deu um gritinho. “COMO VOCÊ SABE SOBRE OBAILE?”

“UmavilãemumBaile?”,disseDot.“Umavilãdançandovalsa!”,disseAnadil.“Umavilãfazendoreverências”,disseHester,etodasastrêscaíramna

gargalhada.“EuvouàqueleBaile”,Sophiedisse,furiosa.“Apresentando a Bruxa de Além da Floresta!”, Hester gargalhava, em

meioàslágrimas.Nahoradoalmoçoelanãoestavarindomais.Primeiro,Sophieestavavinteminutosatrasadaparaaaula,depoisde

tentar encontrar uma solução para seu cabelo picotado. Ela disfarçou-ocomfivelas,laços,epentesatédecidir-seporumatiarademargaridas.

“Não está horrendo”, ela suspirou, antes de entrar na aula deEnfeiamentoeveroscabelosdosalunosficandogrisalhoscompoçõesdeasademorcego.Um“1”subitamenteexplodiuacimadesuacabeça.

“Horrenda!”, disse o professor Manley, radiante, olhando os cabelosdela.“Suagrandebelezasefoi.”

Sophieestavaaosprantosaodeixaraaula,masdepoiselaouviuHestergritar. No corredor, Albermarle, um pica-pau zeloso de óculos, estavabicandoeentalhandoonomedeSophielogoabaixododela,noquadrodeclassificaçãodoMal.

“Umpequenofeitiçodeamor,Hester”,Sophie lembrou-ameigamente.“Entãoeupartireiparasempre.”

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Hestersaiubatendoospés,lembrandoasimesmaqueNuncabeijandoSempre era algo que não podia ser incentivado, independentemente dequãoextremasfossemascircunstâncias.

NocomeçodaauladeMaldições,LadyLessoentrounacâmaradegelocomomaxilarmaistensodoqueohabitual.

“Éimpossívelencontrarbonstorturadoreshojeemdia”,elamurmurou.“Doqueelaestáfalando?”,SophiecochichouparaDot.“AFerasumiu!”,Dotcochichoudevolta.Atrásdela,Sophieparecianauseada.Enquanto testava a turma em sonhos com Nêmesis, Lady Lesso

enfurecia-sediantedetodasasrespostaserradas.“MaseuacheiqueumsonhocomoNêmesissignificassequevocêseria

umaVilãProtagonista”,disseHester...“Não,suaimbecil!Sósevocêtiversintomas!UmsonhocomoNêmesis

nãoquerdizernadasemsintomas!”,LadyLessorespondeu.“Dot, que gosto você sente em sua boca durante seu primeiro sonho

comoNêmesis?”“Ogostodoquecomeuantesdeirparaacama?”“Sangue,suaidiota!”,LadyLessoarrastouasunhasnaparededegelo.

“Ah,oqueeudariaparaverumvilãodeverdadenestaescola.UmvilãoquepudessefazeroBemchorar,emvezdessasmoscasdeestrume.”

Quando chegou sua vez, Sophie esperou pelomaior abuso,mas LadyLesso deu-lhe uma verruga por uma resposta certamente incorreta, eafagouseucabelotosadoaopassar.

“Porqueelaestásendotãolegalcomvocê?”,Hesterchiou,atrásdela.Sophie tinha essa mesma pergunta, mas virou-se com um sorriso.

“PorquesouafuturaCapitãdaTurma.Pelotempoqueficaraqui.”HesterpareciaprontaparaquebraropescoçodeSophie. “Feitiçosde

amorsãovilaniavagabunda.Nãofuncionam.”“Tenho certeza de que você vai encontrar um que funcione”, disse

Sophie.“Euestouavisando,Sophie.Issovaiacabarmal.”“Hmm...Quetalpetúniasemtodososquartos?”,Sophiepensou.“Acho

queseráminhaprimeiraproposta,comoCapitãdaTurma.”Naquelanoite,Hesterescreveuparaseusparentespedindofeitiçosde

amor.

Page 190: Escola do bem e do mal

“Écontagioso”,Agathagemia,enquantoasmeninasSemprecirculavampela Clareira mostrando seus convites umas às outras, cada um em umformatodeflocodenevediferente.Aliperto,Tedrosestavaemumjogodeboladegude,e ignorava-as inteiramente. “CadadesafiotinhaavercomabelezadoBaile,etiquetadoBaile,entradanoBaile,históriadoBaile...”

Sophienãoestavaouvindo.Comumbaldedepédeporconamão,elaolhavaansiosamenteparaasmeninasSempre.

“Não”,disseAgatha.“Mas,eseelemeconvidar?”“Sophie,eleprecisabeijarvocêagora!Nãolevá-laaumBaileridículo!”“Ah,Agatha,vocênãoconheceoscontosde fadas?Seeleme levarao

Baile, então ele vai me beijar! Como a Cinderela, à meia-noite! BeijossempreacontecemnoBaile!Eatélá,meucabelojáterácrescido,eeutereiconsertadomeusapatoe...ah,não,ovestido!Vocêpoderoubarumvestidodecetimdeumadasgarotas?Crepe tambémserve.E tule!Montanhas detule!Preferencialmenterosa,maseupossotingir,emboratulenuncafiquemuitobomdepoisdetingido.Talvezagentedevaoptarporchiffon,então.Émuitomaisfácildemanusear.”

Agathapiscou,sempalavras.“Vocêestácerta,eudeveriaconvidá-loprimeiro”,disseSophie,dando

umsalto. “Nadadecara feia,querida.Serámoleza.Vocêvaiver!PrincesaSophieemumBaile!”

“Oqueestá–VOCÊVAIESTRAGARTU...”Sophie,porém,játinhadesfiladoparaoladodosSempre,sentando-se

aoladodeTedros,eestendendoseubalde.“Olá,bonitão.Querumpoucodosmeus...pés?”Tedros errou a jogada com a bola de gude, acertando o olho de

Chaddick.AClareirainteirasilenciou-se.Elevirou-separaela.“Suaamigaestáchamando.”SophieseguiuosolhosdeleatéAgatha,acenandoparachamá-la.“Elasóestáchateada”,Sophiesuspirou.“Vocêestácerto,Tedros.Elae

eusomospróximasdemais.Foiporissoqueeusaínomeiodaaula,ontem.ParadizeraelaqueagoraéhoradeeufazerBonsamigos.”

“ADotdissequevocêfoiemboraporqueestavapassandomal.”Sophietossiu.“Ora,bem,eutiveumleveresfriado...”“Eladissequeeradiarreia.”

Page 191: Escola do bem e do mal

“Diarr...”,Sophieengoliuseco.“VocêconheceaDot.Sempreinventandocoisas.”

“Elanãomeparecementirosa.”“Ah,elaestásemprementindo.Sóparateratenção.Jáqueelaé...você

sabe.”Tedrosergueuassobrancelhas.“Jáqueelaé...”“Gorda.”“Entendo.” Tedros alinhou sua bola de gude. “Engraçado, não é? Ela

entrou em sepulturas vazias para comer minhocas suficientes por vocêsduas sóparaquevocênão fosse reprovada.Dissequevocêé suamelhoramiga.”

“Disse?”, Sophie viu Dot acenando para ela. “Que deprimente.” Elavirou-separaTedros,queestavasepreparandoparajogar.“Vocêselembradequandonosconhecemos,Tedros?EuestavanaFlorestaAzul.Nadadoque aconteceu depois importa, como você ter me dado um soco, ou mechamadodeNunca,outeraterrissadonococô.Oqueimportaéoquevocêsentiuàprimeiravista.Vocêquismesalvar,Tedros.Eaquiestoueu.”

Elacruzouasmãos.“Então,quandovocêestiverpronto.”Tedrosolhouparaela.“Como?”“ParameconvidarparaoBaile”,disseSophie,sorrindo.Orostodopríncipenãomudou.“Eu sei que está ligeiramente cedo, mas uma garota precisa fazer

planos”,Sophiepressionou.Beatrixseintrometeu.“NãohálugarparaNunca.”“Oquê?Háespaçodesobra”,Sophiebufou...Então, Reena empurrou-a, e depois mais seis garotas, e Sophie foi

empurradatotalmenteparaforadocírculo.Elavoltou-separaTedros,paraqueeleadefendesse.

“Será que você pode ir embora?”, ele disse, de olho na bola de gude.“Estáatrapalhandoaminhavisão.”

Agathadeuumsorrisomalicioso, enquantoSophie seguiamarchandonadireçãodela.

“Moleza,hein?”Sophiepassoudiretoporela...“Masquehumildezinha!”,Agathagritou.“Éocabelo!”,Sophiechorava.

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“Nãoéocabelo!”,disseAgatha,enquantoelaspassavampelosportõesdaFlorestaAzul.“Primeirovocêprecisafazercomqueelegostedevocê.Docontrárionósnuncairemospracasa!”

“Deveriaseramoràprimeiravista.Éassimquefuncionanoscontosdefadas!”

“ÉhoradoplanoB.”“Mas por outro lado, ele não disse não”, disse Sophie, esperançosa.

“Talveznãotenhasidotãoruim.”Dotapressou-seatéelas.“Estátodomundodizendoquevocêchamou

Tedrosdementiroso,jogoucocônacaradeleelambeuospésdele!”Sophievirou-separaAgatha.“QualéoplanoB?”Elas chegaramcomo restantedoGrupoFlorestal e encontraramoito

caixõesdevidroaninhadosnagramaturquesa.“Acada semananósvamos repetirodesafioparadiscerniroBemdo

Mal,umavezqueéahabilidademaiscrucialquevocêslevarãoparadentrodaFloresta”,anunciouYuba.“Hoje,nósvamostestarosSempre.Porcausadofascíniocomosenterrosdeontem,acheiquevaleriadar-lhesumgostodeseuprópriosepultamento.”

Com isso, ele fez as garotas Sempre e asNunca entraremem caixõesabertose,comumacenodeseubastão,transformou-asoitoemprincesasidênticas, de cabelos escuros, quadris largos, traseiros arredondadas elábioscarnudos.

“Estouobesa”,Sophieengasgou.“Olhe, essa é sua chance”, disse Agatha, lembrando as palavras da

princesa Uma. “Se Tedros é seu grande desejo, ele será puxado em suadireção!Elesaberáquevocêéseuverdadeiroamor!”

“MasBeatrixtambémodesejará!”“Você precisa desejar com mais força! Foque o que você ama nele!

Foqueoqueotornaseu!”Yubabateuastampasdoscaixõessobreasduasgarotasemisturouos

oito caixões. “Agora, estudem as donzelas cuidadosamente e busquemsinais do Bem”, ele disse aos meninos. “Quando tiverem certeza de queencontraramumaSempre,beijemsuamão, eela revelará suaverdadeiranatureza!”

Os meninos Sempre aventuraram-se cautelosamente em direção aoscaixões.

“Nóstambémqueremosjogar.”

Page 193: Escola do bem e do mal

Yubavirou-seeviuHorteosmeninosNunca.“Hmmm, acho que isso dará às nossas garotas um incentivo para se

comportarem”,disseognomo.Dentro dos caixões, oito princesas rechonchudas retesaram-se,

enquantomeninos doBem e doMal perambulavam ao redor delas.Hortesgueirou-seemumamoitaazuldehortelã,passouporcimadeumgambáearrancoualgumasfolhas.EleviuRavanolhando.

“Oquê?Eugostodofrescor”,disseHort,mastigandoahortelã.“Andemlogoefaçamsuasescolhas!”,Yubavociferou.Emseucaixão,AgathadesejouqueTedrosolhasseprofundamenteno

coraçãodeSophieevissequemelarealmenteera...Em seu caixão, Sophie fechou os olhos, e pensou em tudo que ela

adoravaemseupríncipe...Enquantoisso,Tedrosnãoquerianenhumadaquelasgarotas.Contudo,

nahoraemque iadesistirdodesafio, ele sentiu seusolhosdesviarem-separaoterceirocaixão.Algooatraiunadireçãodaqueladonzela,emboraelativesse amesmaaparênciadas outras.Umbrilho terno, uma centelhadeenergiapulsouentreeles.Sim,haviaalgoali.Algoqueelenãotinhanotadoantes.Umadessasmeninaseramaisdoqueparecia...

“Acabouotempo!”,disseYuba.Agathaouviuumgritodearrepiar,evirou-separaSophie,devoltaem

seucorpo,comoslábioscoladosaosdeHort.Hortsoltou-a.“Ah,eranamão.Oops.”Eleenfiououtrafolhadehortelã

naboca.“Vamoscomeçardenovo?”“SeuGORILA!”,Sophiechutou-o,eelecaiunamoitadehortelã,emcima

do gambá, que levantou o rabo e borrifou-o nos olhos. Hort cambaleou,batendonoscaixões“Estoucego!Estoucego!”,atécairnovamentedentrodo caixãode Sophie, que se fechou, lacrandoo corpodele aodela.Aflita,Sophiebateunovidro,maselenãoabriu.

“Regra número 5: Os Nunca não brincam com amor”, Yuba disse.“Punição apropriada. Agora venham, meninos, vamos ver quem vocêsescolheram.”

Agatha ouviu seu caixão abrindo-se. Ela virou-se e viuTedros erguersuamãoatéseuslábiosmacios.Perplexa,Agathachutou-onopeito.Tedroscaiuparatrás,bateuacabeçanatampadocaixão,eficouamuadonochão.OsmeninosSempreaglomeraram-seaoredordele,eosclonesdeprincesapularam de seus caixões para ajudar, enquanto Yuba providenciava gelo

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para colocarna cabeçadopríncipe.Nomeioda confusão,Agatha saiudeseucaixãoeentrounocaixãoaolado.

Tedroslevantou-se,semintençãodeabrirmãodesuaprincesa.Yubafezumacareta.“Talvezsejamelhorvocêsesentar...”“Euqueroterminar.”Comumsuspiro,Yubaassentiuparaosclones,queentraramdevolta

emseuscaixõesefecharamosolhos.Tedros lembrava-se de que era o terceiro caixão. Ele ergueu o vidro

acimadadonzelaebeijou-lheamão,confiante.Aprincesatransformou-seemBeatrix,quesorriaimperiosamente–Tedrossoltouamãodelacomosefosseumapedraquente.Nocaixãoaolado,Agathasuspiroualiviada.

Os lobos uivaram à distância. Àmedida que a turma seguiu Yuba devoltaàescola,Agathaficouparatrás,comSophie.

“Venha, Agatha”, Yuba chamou. “Essa é a uma lição para Sophieaprender.”

Agatha deu uma olhada para trás, e viu Sophie lacrada com Hort,segurando o nariz enquanto gritava e chutava o vidro. Talvez o gnomoestivessecerto.Amanhã,suaamigaestariaprontaparaouvir.

“Elasobreviverá”,elamurmurou,seguindoosoutros.“ÉsóoHort.”MasHortnãoeraoproblema.OproblemaeraqueSophietinhavistoAgathatrocandodecaixão.

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16Ocupidoficamalandro

Protegendo-se de uma tempestade matinal, Agatha aproximou-se deHester,nafiladoalmoçodosNunca.

“OndeestáSophie?”“Não quer sair do quarto. Perdeu todas as aulas”, disse Hester,

enquanto um lobo jogava uma carne misteriosa em seu balde.“Aparentemente,dividirumcaixãocomHortroubousuavontadedeviver.”

QuandoAgatha chegou à Ponte doMeio do Caminho, cheia de poças,seureflexoaguardava-a,maismelancólicoedesoladodoquedaúltimavez.

“PrecisoverSophie”,disseAgatha,evitandoolhardiretamenteparasimesma.

“Essaéasegundavezqueeleolhoupravocêdaquelejeito.”“Ahn?Segundavezquequemolhoupramim?”“Tedros.”“Ora,Sophienãomeouve.”“Bem,talvezSophienãosejaoverdadeiroamordeTedros.”

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“Elatemqueser”,disseAgatha,subitamentepreocupada.“Nãopodeseroutra pessoa. Só assim voltaremos para casa! Quem mais poderia ser?Beatrix?Reena?Milli...”

“Você.”Agathaergueuosolhos.Seureflexoestavadandoumsorrisohorrendo.Os olhos de Agatha desviaram-se para seus sapatos pesados e

molhados.“Essaéamaiorimbecilidadequeeujáouvi.Primeiro,oamoréalgo inventado em livros de contos de fadas, só paramanter asmeninasocupadas.Segundo,eudetestoTedros.Terceiro, eleachaqueeusouumabruxamalvada,algoque,graçasaomeucomportamentorecente,podeserverdade.Agora,deixe-mepassar.”

Seureflexoparoudesorrir.“Vocêachaquenóssomosumabruxa?”Agatha ficou encarando a si mesma. “Estamos fazendo nossa amiga

ganharseuverdadeiroamorsomenteparatirá-lodela.”Seureflexoinstantaneamenteficoumaisfeio.“DecididamentedoMal”,

disseoreflexo,edesapareceu.A porta do quarto 66 estava destrancada. Agatha encontrou Sophie

encolhidadebaixodascobertaschamuscadas.

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“Euvi!”, Sophie chiou. “Eu o vi escolher você! E eu aqui, preocupadacomBeatrix,quandovocêéafalsatraidora!”

“Olhe, não sei por que Tedros fica me escolhendo”, disse Agatha,espremendoaáguadachuvadoscabelos.

OsolhosdeSophiefulminavam-na.“Euqueroqueeleescolhavocê,suatonta!”,Agathagritou.“Queroquea

genteváparacasa!”Sophieolhouseurostoporumbomtempo.Comumsuspiro,virou-se

paraajanela.“Vocênãosabecomofoi.Aindasintoocheirodeleemtodolugar.Está

emmeunariz,Agatha.Deramumquartosópraeleatéqueofedorpasse.MasquempodedizerondeterminaogambáecomeçaoHort?”

Trêmula,Sophievirou-sedevolta. “Fiz tudooquevocêdisse,Agatha.FoqueitodasascoisasqueadoroemTedros:suapele,seusolhos,asmaçãsdeseurosto...”

“Sophie,issoésóaparência!Tedrosnãosentiráligaçãocomvocêsesógostar dele porque ele é bonito. Em que isso a diferencia das outrasgarotas?”

Sophie franziuo rosto. “Eunãoquispensar em sua coroa, ou em suafortuna,issoéfútil.”

“Penseemquemeleé!Suapersonalidade!Seusvalores!Oqueeleélánofundo!”

“Com licença, eu sei como fazer um garoto me amar”, Sophie bufou,enxotandoaoutra.“Apenasparedearruinarascoisasemedeixefazerdomeujeito.”

Aparentemente,ojeitodeSophieerahumilhar-seaomáximo.No dia seguinte, ela aproximou-se de Tedros na fila do almoço, e os

garotos aglomeraram-se ao seu redor, mastigando folhas de hortelã.Depois,elatentouficarcomopríncipesozinha,emSobrevivendoaContosde Fadas, mas Beatrix ficou grudada nele como uma cola, aproveitandocadaoportunidadeparalembrá-lodequeelehaviaescolhidooseucaixão.

“Tedros,possofalarcomvocê?”,Sophiefinalmentedisse.“Porqueelefalariacomvocê?”,disseBeatrix.“Porquesomosamigos,suamoscainsignificante.”“Amigos!”,disparouTedros. “Eu jávicomovocê trataosseusamigos.

Vocêosusa.Eostrai.Chamadegordos,dementirosos.Agradeçoaoferta,masdispenso.”

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“Atacando. Traindo.Mentindo. Parece que uma de nossasNunca estáutilizandosuasregras”,disseYuba,radiante.

SophieestavatãodesanimadaqueatécomeuumpedaçodochocolatedeDot.

“Nósencontraremosumfeitiçodeamorpravocê,amanhã”,disseDot.“Obrigada, Dot”, Sophie disse, em prantos e de boca cheia. “Isso é

incrível.”“Cocôderato.Dáomelhorchocolate.”Sophieengasgou.“Dequalquerforma,quemvocêchamoudegorda?”,perguntouDot.Ascoisaspioraram.ParaumdesafiodeumasemanaemTreinamento

deCapangaseComunicaçãoAnimal,osalunostiveramquetransportarosassistentes designados para aonde quer que fossem.No começo, as duasescolas explodiram em um caos, com trolls atirando Nuncas por janelas,sátiros roubando lanches de cestos, bebês dragões ateando fogo emcarteiras, e animais batizando os corredores do Bem commontanhas decocô.

“Éumatradição.Umatentativadeuniãonaescola”,disseaprofessoraDoveyaosSempres,comumpregadornonariz.“Pormaismalorganizadoqueseja.”

CástorolhavadecarafeiaparaosNunca,queperambulavampelatorredossinos,tomadaporcapangas.“QUANDOVOCESTIRAREMASCABEÇASDOSTRASEIROS,VÃOPERCEBERQUEMÉOMESTRE!”

Edefato,depoisdetrêsdias,HesterfezseubebêogroaprenderafazercocônaprivadaecuspirnosSempreduranteoalmoço,Tedrosestavacomseulobinhoabanandooraboatrásdele,aserpentedeAnadilfezamizadecomseusratos,eocoelhinho fofinhoebrancodeBeatrix inspirava tantoamorqueelaobatizoudeTeddy. (Tedros chutava-o todavezqueovia.)Até Agatha conseguiu ensinar sua avestruz a roubar doces sem que osprofessoresnotassem.

Sophie,noentanto, viu-se comumcupidogorduchochamadoGrimm,com fartos cabelos pretos, nariz achatado, asas cor-de-rosa e olhos quemudavamde cor de acordo com seu humor. Ela sabia que seu nome eraGrimmporquenoprimeirodiaeleescreveu-oparatodoladonoquarto66comseubatompreferido.Nosegundodia,eleviuAgathapelaprimeiravezno almoço, e seus olhos passaram de verdes para vermelhos. Então, no

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terceiro dia, enquanto Yuba lecionava “Usos dos Poços”, ele começou alançarflechasemAgatha,quepulouatrásdopoçodaFlorestabemnahora.

“MANDEELEPARARCOMESSENEGÓCIO!”,Tedrosgritou,desviandoasflechasdeGrimmparaafontecomsuaespadahábil.

“Grimm!Elaéminhaamiga!”,Sophiegritou.Grimmguardouseuarcocomardeculpado.Noquartodia,elepassoutodasasaulasdeSophiededentescerrados,

nocanto,eraspandoasunhasnaparede.LadyLesso lançou-lheumolharcurioso. “Sabe,deolharparaeleéde

pensarque...”ElaolhouparaSophie,depoisafastouopensamento.“Deixapralá.Apenasdê-lheumpouquinhodeleiteeeleficarámaisdócil.”

O leite funcionou no quinto dia. No sexto, Grimm começou a flecharAgatha novamente. Sophie tentou tudo o que pôde para acalmá-lo: elacantoucantigasdeninar,deuaeleomelhorchocolatedeDot,atédeixouqueficasseemsuacamaenquantoeladormianochão,masdessaveznadaodeteve.

“Oqueeufaço?”,SophiechoramingouparaLadyLesso,depoisdaaula.“Algunscapangasficammalandros”,LadyLessosuspirou.Éumriscoda

vilania.Masgeralmenteéporque...”“Porquê?”“Ah,eutenhocertezadequeeleseacalmará.Elessempreseacalmam.”Contudo,nosétimodia,GrimmcomeçouavoaratrásdeAgathadurante

o almoço, esquivando-se de ser pego pelos alunos e lobos, até que odemônio de Hester finalmente dominou-o. Agatha olhava fixamente paraSophie,portrásdeumaárvore.

“Talvezvocêofaçalembraralguém,não?”,Sophielamuriou.Noentanto,nemodemôniodeHesterconseguiucontrolarGrimmpor

muito tempo, e no dia seguinte suas flechas vieram com pontas de fogo.Depoisqueumadessasatingiusuaorelha,Agathafinalmentechegouaoseulimite.Lembrando-sedaúltimaliçãodeYuba,elaatraiuocupidomalandroaté a Floresta Azul durante o almoço, e escondeu-se no poço de pedra.Quando Grimmmergulhou alegremente para encontrá-la, ela o atingiu enocauteoucomsuabotina.

“Achei que elemataria você”, disse Sophie chorando, depois que elaslacraramafontecomumarocha.

“Eu sei me cuidar”, disse Agatha. “Olhe, o Baile é emmenos de doismeses e as coisas com Tedros estão piorando. Precisamos tentar um

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novo...”“Ele émeu príncipe”, Sophie retesou-se. “E eu mesma vou lidar com

ele.”Agatha não se deu ao trabalho de discutir. Quando Sophie estivesse

prontaelaouviria.

EnquantoasduasescolassaíramcomCástoreUmaparasoltaremseuscapangasdevoltanaFlorestaAzul,SophieescapouatéaBibliotecadoMal.

Foinecessáriousartodaasuaforçadevontadeparanãosaircorrendonoinstanteemqueentrou.Oandardecimadabibliotecaeracomooandarde uma biblioteca comum depois de uma inundação, um incêndio, e umtufão. As prateleiras enferrujadas eram inclinadas em ângulos estranhos,com milhares de livros caídos por todo o chão. As paredes eramesverdeadas pelomofo, o tapetemarrom era úmido e pegajoso, e a salacheiravaaumamisturadefumaçaeleiteazedo.

Atrásdeumacarteira,nocanto,ficavaumsapogelatinosofumandoumcharuto,ecarimbandolivrosumapósooutroantesdejogá-losnochão.

“Assuntodeinteresse”,elecoaxou.“Feitiçosdeamor”,disseSophie,tentandonãorespirar.Osapoapontouparaumaprateleiranocanto.Sórestavamtrês livros

ali:

Espinhos,nãorosas:Porqueoamoréumamaldição,deBaronDraculO guia dos Nunca para acabar com o verdadeiro amor, de Dr.Walter

BartoliFeitiços&poçõesdeamorinfalíveis,deGlindaGooch

Sophie abriu o terceiro e percorreu a lista de feitiços até encontrar“Feitiço53:Abruxariadoamorverdadeiro”.

Elaarrancouafolhaesaiucorrendoantesquedesmaiassepelofedor.Dot, Hester e Anadil ficaram debruçadas sobre a folha durante o

almoço.“Umavezqueogarotoestiversobessefeitiçoelevaiapaixonar-sepor você instantaneamente, e fará tudo o que você pedir”, Anadil leu.“Funcionaespecialmentebemcompropostasdecasamentoeconvitesparabailes.”

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“Tudoo que você tema fazer émisturar a poçãoprescrita formandouma bala, e atirar no coração de seu verdadeiro amor!”, Sophie leu,empolgada.

“Nãovaidarcerto”,disseHester.“Vocêsóestázangadaporquefuieuqueencontrei.”Hesterarrancouummontedecartasdesuabolsa.“‘QueridaHester,não

conheçonenhumfeitiçodeamorquedêcerto.’‘QueridaHester,feitiçosdeamor são notoriamente problemáticos.’ ‘QueridaHester, feitiços de amorsão perigosos. Se você usar um feitiço ruim poderá lesar alguém parasempre’...”

“É‘infalível’!”,disseDot.“Quemdisse?GlindaGOOCH?”“Eudigoquevaleumatentativa,seissosignificarquenãoteremosmais

que falar sobre bailes e beijos”, disse Anadil, com seus olhos vermelhosestudandoareceita.“Coraçãodemorcego,magnetita,ossodegato...Todosessesingredientessãocomuns.Ah.Nósprecisamosdeumagotado‘aroma’deTedros.”

“Comovamosconseguirisso?”,disseDot.“SeumNuncaaproxima-sedeumSempreoslobosjávempracimadenós!PrecisamosdeumSemprequefaçaisso.”

Agathasentou-seformandoummontecor-de-rosa.“Oqueeuperdi?”Sophiesóconseguiudizercincopalavras.“Não!Nadade feitiços!Nadade bruxarias.Nadade truques!”, Agatha

ralhou.“Temqueseramorverdadeiro!”“Mas olhe!”, Sophie segurou a página e a pintura do príncipe e da

princesa beijando-se no baile. A legenda: “O ÚNICO SUBSTITUTOAUTÊNTICOPARAOVERDADEIROAMOR!”.

Agatha amassou a página e jogou-a no balde de Sophie. “Não queromaisouvirfalarnisso.”

Sophiepassouorestodoalmoçoremexendoemseupãocomqueijo.Dois dias depois, Hester sentiu um puxão no meio da noite. Ela

remexeu-seeviuSophieempéacimadela,fungandoumagravataazulcomumTdourado.

“Quecheirodecéu!Tenhocertezadequehásuficienteaqui.”Por um instante Hester pareceu confusa. Depois, suas bochechas

inflaram,prontasparaexplodir...

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“Que tal umCoral de Vilões?”, disse Sophie. “Acho que essa pode serminhasegundapropostacomoCapitãdaTurma.”

Hester ficou acordada a noite inteira, misturando os ingredientes.Usandoastigelasdebarrodamãe,elamisturoutudoatéformarumapoçãorosaespumada.Entãoeladestilouapoçãodeamoremumgáscintilante,edespejou-oemumabalacomformatodecoraçãoforjadanofogodalareira.

“Só espero que ele nãomorra”, rugiuHester, entregando a bala paraSophie.

Sophiepraticousuapontariapordoisdias,atésaberqueestavapronta.ElaesperouatéaauladeSobrevivendoaContosdeFadas,quandoYubaeseugrupoestavamescalandoárvoresparaestudarFloraFlorestal.QuandoTedros esticou a mão para pegar um galho, ela percebeu que era a suachance,ecolocouabalanoestilingue...

“Vocêémeu”,sussurrouSophie.O coração rosado disparou do estilingue e voou direto para o cisne

prateadonocoraçãodeTedros,ficandovermelhocarmim,ericocheteandocomoumaborrachaatébaterdevoltanela,quesoltouumgritoviolento.Ogrupointeirovirou-separaolhar,emchoque.

AtúnicapretadeSophieestavacomumborrãogigante,comumaletraFimensaemvermelho-sangue.

“F,porFalhar,descumprindoasregras.”Yubaolhoufurioso,decimadeumaárvore.“NadadefeitiçosatédepoisdoDesbloqueio.”

Beatrixpegounochãoumpedaçodabalaemformatodecoração,quese quebrou. “Um feitiço de amor? Você tentou um feitiço de amor emTedros?”

A turma caiu na gargalhada. Sophie voltou-se para Tedros, que nãopoderia estar mais enfurecido. Ao seu lado, Agatha tinha a mesmaexpressão.Sophiecobriuorostoesaiucorrendo,comochoroecoandopelafloresta.

“Todososanosumpilantra tentaalgumacoisa.Noentanto,mesmoopilantramaispatético sabequenãohá atalhosparao amor”, disseYuba.“Vamos começar com feitiços apropriados na semana que vem, eu lhesgaranto. Por hora, vamos às samambaias! Como podemos saber se umasamambaiaéumNuncadisfarçado...”

Agathanãoseguiuogrupoatéocampodesamambaias.Recostadaemumcarvalho,ficouolhandoospedaçosemformadecoraçãonagrama,tãoestilhaçadosquantoseusonhodeirparacasa.

Page 203: Escola do bem e do mal

Hester voltou do jantar e encontrou Sophie esparramada na cama,mergulhadaemlágrimas.

Sophieergueuosolhos,comoFemsuatúnicaagoraaindamaisvivo.“Nãosai.Eutenteidetudo.”

Hester jogou a bolsa de Sophie no chão. “Estamos praticando nossostalentosnosalãocomunitário.Fiqueàvontadeparaparticipar.”Elaabriuaportaeparou.

“Euteavisei.”Sophiedeuumpulocomabatidadaporta.Ela não conseguiu dormir a noite inteira, apavorada com a ideia de

vestiroFparaoalmoçododiaseguinte.Finalmente,elaconseguiucochilar,eaoacordarviuquetodasassuascolegasdequarto já tinhamidotomarcafé.

Agathaestavasentadanabeiradadesuacama,catandofolhassecasdovestidorosa.

“Dessavezumlobomeviu,maseuodespisteinotúnel.”Eladeuumaolhadaparacima,paraoespelhodouradonaparede.“Ficoubonitoaqui.”

“Obrigadaportrazer”,disseSophie.“Meuquartoficamaisfelizsemele.”Silênciotenso.“Desculpe,Agatha.”“Sophie, estou do seu lado. Nós temos que trabalhar juntas se

quisermossairdaquivivas.”“Ofeitiçoeranossaúnicaesperança”,disseSophie,baixinho.“Sophie,nósnãopodemosdesistir!Precisamosirpracasa!”Sophie encarou o espelho, com os olhosmolhados. “O que aconteceu

comigo,Agatha?”“Você quer ir ao baile sem ganhar seu príncipe. Quer seu beijo sem

fazerotrabalhoduro.Olhe,tivequelavarlouçadepoisdojantarasemanainteira,eenquanto fazia issoaproveitavapara ler.”Agatha tirouum livrodo vestido – Ganhando seu príncipe, de Emma Anêmona – e começou afolhearaspáginasquetinhamarcado.

“Segundooquedizaqui,ganharoverdadeiroamoréodesafiomáximo.Emtodocontodefadaspodeparecerqueéamoràprimeiravista,mashásempreumahabilidadepordetrás.”

“Maseujá...”

Page 204: Escola do bem e do mal

“Caleabocaeescute.Tudoseresumeatrêscoisas.Trêscoisasqueumagarotaprecisafazerparaganharseupríncipedecontosdefadas.Primeiro,você precisa ‘ostentar seus pontos fortes’. Segundo, precisa falar atravésdas ações, não das palavras. E terceiro, precisa mostrar que tem outrospretendentes.Sevocêsimplesmentefizeressastrêscoisas,efizerbem,nóstemosumachan...”

Sophieergueuamão.“Oquê?”“Não posso ostentar nada neste saco de batatas, não posso agir com

aqueladiabanaminhacara,enãotenhopretendentes,excetoummeninocomaparênciaecheiroderato!Olhepramim,Agatha!EutenhoumFnopeito,meucabeloparececabelodemenino,estoucombolsasembaixodosolhos, meus lábios estão secos, e ontem eu encontrei um cravo no meunariz!”

“Ecomovocêvaimudarisso?”,Agatharetrucou.Sophie abaixou a cabeça. A letra horrenda lançava sombras em suas

mãos.“Diga-meoquefazer,Agatha.Estououvindo.”“Mostreaelequemvocêé”,disseAgatha,abrandandoavoz.Elaolhoufundonosolhosdaamiga.“MostreaeleaverdadeiraSophie.”SophieviuaféardendoradiantenosorrisodeAgatha.Então,virando-

separaoespelho,elaconseguiudarumsorrisomalicioso...umsorrisoquecombinava com o de um pequeno cupido cruel, preso na escuridão,esperandopacientementeparasersolto.

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17Aroupanovadaimperatriz

A notícia do fracasso do feitiço de amor de Sophie espalhou-se pelasduasescolas,eatéametadedamanhãtodosesperavamansiososparadaruma olhada no F escarlate. Entretanto, quando Sophie faltou a todas asaulas matinais, ficou claro que ela estava envergonhada demais paramostrarorosto.

“Vocês tinham que ouvir os nomes que Tedros usou para xingá-la.”BeatrixdisseàsmeninasSempre,noalmoço.

Sentada em ummonte de folhas de outono, Agatha desligou-se de simesmaeolhouparaTedroseosmeninosSemprequejogavamrugby,comoscisnesprateadosreluzindonossuéteresazuisdetricô.DooutroladodaClareira, Nunca evitavam atividades em grupo, e a maioria sentou-sesozinha.Hesterergueuosolhosdo livroFeitiçosparasofrimento,e leuosolhosdeAgatha,dandoumasacudidadeombros,comoseoparadeirodeSophiefosseamenordesuaspreocupações.

“Eudisseaele,ora,Teddykins,nãoéculpadela”,Beatrixtagarelavaemvozalta.“Apobregarotaachaqueéumadenós.Devemossentirpenadealguémtãopatéti...”

Osolhosdelaarregalaram-se.Agathaviuomotivo.

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SophieentroudesfilandonaClareira,comatúnicapretarepaginadaetransformadaemumvestidinhotomaraquecaia,comoFbrilhandoemseupeito, em lantejoulas vermelho cor de diabo. Ela tinha cortado o cabelolouro aindamais curto e penteado para baixo em um estilo Chanel. Seurosto estava pintado com pó branco, como o de uma gueixa, com cíliosrosa-choqueelábioscarmim,eseussapatosdevidronãoestavamapenasconsertados,mas aindamais altos. O vestido extremamente curto exibiasuaspernaslongaseclaras.Dasombraelaentrounosol,ea luzexplodiuemsuapele salpicadadepurpurina,banhando-a comumbrilhocelestial.Sophie passou direto por Hester, que deixou cair o livro, passou pelosmeninosSempre,quedeixaramcairabola,eseguiudiretoatéHort.

“Vamosalmoçar”,disseela,levando-ocomoaumrefém.DooutroladodocampoaespadadeTedroscaiudesuabainha.EleviuBeatrixolhando,ecolocou-adevolta.

DuranteSobrevivendoaContosdeFadas,SophieignorouosermãodeYubasobre“deixarrastrosúteis”epassouaaulainteiradepapocomHort,eenchendoseubaldedeNuncacomraízeseervasdaFlorestaAzul.

“Oqueestáfazendo?”,estrilouAgatha.

Page 207: Escola do bem e do mal

“Dá pra acreditar, Agatha querida? Eles têm beterraba, casco desalgueiro,madeiradelimoeiroetudoomaisdequeeuprecisoparafazerminhasvelhaspoçõesecremes!Logovoltareiasermeuverdadeiroeu!”

“Nãoeraessa‘verdadeiraSophie’queeutinhaemmente.”“Perdão? Estou apenas seguindo as suas regras. Ostentando meus

recursos,quesãomuitos,comovocêpodever.Falandoatravésdeações–eudisseumapalavraaTedros?Não.Nãodisse.Enãonosesqueçamosdaparte sobre exibir os pretendentes. Você sabe o que é necessário parasobreviver a um almoço comHort? Para ficar fungando aquele roedor acada vez que vejo Tedros olhando? Eucalipto, Agatha. Eu anestesio meunarizcomeucalipto.Mas,nofimdascontas,vocêestavacerta.”

“Escute,vocênãoentend...euestava?”“Você me fez lembrar o que era importante.” Sophie assentiu para

TedroseosmeninosSempreolhandoparaela,dooutroladodogramado.“Não importa se você é umaNunca, Sempre, ou seja o que for.No fim, omaisjustodetodoséquemganha.”Elapassoubrilhonoslábioseestalou-os como emumbeijo. “Você vai ver. Antes do fimda semana ele vaimeconvidarparaoBaile,evocêvaiganharseubeijoprecioso.Portanto,chegadenegatividade,querida,issomedádordecabeça.Agora,ondeestáaqueleinútil do Hort? Eu disse a ele para ficar sempre do meu lado!” Ela saiuandando,deixandoAgathasempalavras.

Na Escola doMal, os Nunca passaram todo o jantar aborrecidos porsaberqueteriamumanoiteinteiradeestudospelafrente.Comasaulasdefeitiçoprogramadasparacomeçar,os testesdosprofessoreserammenosbaseadosem talentoemaisem tediosas revisões. Sóparaodia seguinte,eles tinham que memorizar oitenta esquemas de assassinato para oprimeirodesafiodeLadyLesso,comandosdeGigantesparaCapangaseomapadoCampoFlorido,paraoexamedegeografiadeSader.

“Comoelevaicorrigir?”,disseHester.“Elenempodever!”Na hora do toque de recolher, Hester, Dot e Anadil saíram do salão

comunitáriocheiasdelivrosempilhados,masquandochegaramaoquarto,descobriramqueelehaviasidotransformadoemumlaboratório.Dúziasdepoçõesde coresbrilhantesborbulhavamsobrechamasacesas; frascosdecremes, sabonetes e tinturas estavam espalhados pelas prateleiras; umabagunçadefolhassecas,ervasefloresforravaastrêscamas...enocentrodetudoestavaSophie,porbaixodeumamontanhadelantejoulas, laçosetecidos,testandosuasmisturasempedaçosdepeles.

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“MeuDeus,elaéumabruxa”,sussurrouAnadil.SophieergueuoexemplardeOlivrodereceitasparaboaaparência.“Eu

roubeideumaSemprenahoradoalmoço.”“Vocênãodeveriaestarestudandoparaosdesafios?”,perguntouDot.“Belezaéumtrabalhodetempointegral”,Sophiesuspirou,besuntando-

secomumbálsamoverde.“EvocêseperguntaporqueasSempresãolentas”,disseHester.“Sophie está de volta, queridas. E ela está só começando”, cantarolou

Sophie.“Agora,omeudesafioéoamor.”E, de fato, embora Sophie tivesse ficado quase no último lugar em

praticamente todos os desafios do dia seguinte, ela classificou-se emprimeiro lugar em Atenção quando chegou para o almoço, com seuuniformepreto remodelado emumvestido soltodeslumbrante emestiloegípcio, e comumdecotenas costas enfeitado comorquídeas azuis. Seussaltosestavamumcentímetromaisaltos,seurostoreluziaembronze,suasombra era de um tomprovocante de violeta azulada, seus lábios de umdeliciosotomcarmim,eoFreluzentenafrentedeseuvestidoestavaagoracompletamenteornamentadocomlantejoulasedizia“FdeFabulosa”.

“Issonãopodeserpermitido”,Beatrixresmungava,diantedosmeninosbabões.

Contudo,Sophieinsistiacomosprofessoresqueelaestava,sim,usandoseuuniforme,enquantooslobosferozespareciamtãoadmiradosquantoosmeninos.DotjuravaqueumdelestinhaatépiscadoparaSophieenquantoenchiaseubalde,noalmoço.

“Elaestádebochandodavilania!”,Hesterdisse,furiosa.“Deviamtrancá-lanaSaladaCondenaçãopermanentemente.”

“AFeraaindaestádesaparecida”,Anadilbocejou.“Oqueaassombroudevetersidobemruim.”

No dia seguinte, Sophie novamente tirou notas baixas em todos osdesafiose,noentanto,dealgumaformaconseguiuevitarserreprovadanaescola. Embora ela fosse claramente a pior, a cada vez que via a 19ªcolocaçãoemlugarda20ª,eladiziaaoscolegasdeturmaimpressionados:“Eusousimplesmenteadoráveldemaisparaserreprovada”.

DuranteosGruposFlorestais,SophieignorouosermãodeYubasobre“SobrevivendoaEspantalhos”eficouocupadaescrevendoemseucaderno,enquantoAgathaolhavaseuvestidotipobaby-doll,deumrosa-pirulitoeaslantejoulasdizendo“FdeFarra”.

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“DigaalgumacoisaquecomececomF”,sussurrouSophie.“Euestoutentandoouvirevocêtambémdeveria,jáqueficaremosaqui

eternamente.”“Quetal‘Fabulosa’?Ou‘Fantástica’?Ou‘Feliz’?”“Ou‘Fútil’!Eleaindanemfaloucomvocê!”“Fde‘Fé’”,disseSophie.“Queacheiquevocêaindativesseemmim.”Agathapassouorestodaaularesmungandoparasimesma.MasSophiequasea fezbotar fé,nodia seguinte,quandochegoucom

umcorpetequemostravaabarriga,minissaiabufanteeumpenteadotodoespetado, com os saltos tingidos de rosa-choque. Os meninos Semprepassaramoalmoçoolhandopraelaenquantocomiam.Noentanto,mesmoque Sophie visse Tedros dando espiadas sorrateiras para suas pernas,cerrando os dentes a cada vez que ela passava, suando quando ela seaproximava...eleaindanãofalavacomela.

“Nãoéobastante”, disseAgatha, cercando-a, depoisda auladeYuba.“Vocêprecisaderecursosmelhores.”

Sophieolhouparabaixo,parasimesma.“Achoquemeusrecursossãobemsuficientes.”

“Recursosmaisprofundos, sua idiota!Algo interior! Comocompaixão,caridadeougentileza!”

Sophiepiscou.“Àsvezes,vocêfaztantosentido,Agatha.EleprecisaveroquantoeusouBoa.”

“Enfimelavoltouàrazão”,Agathasuspirou.“Agora,apresse-se.SeeleconvidaroutrapessoaparaoBailenósnuncairemospracasa!”

Agatha propôs que Sophie deixasse poemas com rimas espertas, oupresentessecretosparaTedros,querevelassemprofundidadeeraciocínio,estratégiascomprovadaseverdadeiras,ambasdescritasemGanhandoseupríncipe.Sophieouvia,assentindoatudoisso,deformaquequandoAgathachegouparaoalmoçonodiaseguinteesperavalerumprimeirorascunhoouverso,ouinspecionarumpresentefeitoàmão.Emvezdisso,elachegoue viu um grupo de vinte garotas Nunca aglomeradas em um canto daClareira.

“Oqueestáhavendoali?”,AgathaperguntouaHestereAnadil,ambasestudandonasombradeumaárvore.

“Eladissequefoiideiasua”,Hesterdisse,comosolhosnolivro.“Má ideia”, disse Anadil. “Tão má que nós não queremos falar com

você.”

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Confusa,Agathavirou-separaaaglomeração.Umavoz familiarecoounomeio...

“Fabuloso,queridas!Apenasumpouquinhomenosdecreme!”OpeitodeAgathaapertou-se.Elaabriucaminhoemmeioaoenxamede

garotasNuncaatéchegaraomeio,equasemorreudesusto.Sophieestavasentadaemumtocodeárvore,comumavisopintadoe

penduradoemumgalhoacimadela:

Ao seu redor as garotas Nunca passavam um creme pegajoso debeterrabaemsuasespinhaseverrugas.

“Agora lembrem-se, meninas. Só porque vocês são horríveis nãosignificaquenãopodemficarapresentáveis”,disseSophie.

“Amanhãeuvoutrazerminhascolegasdequarto”,sussurrouArachne,paraMona,depeleverde.

Agathaestavaboquiaberta,pasma.Então,elaviualguémseafastando.“Dot?”

Dotvirou-setimidamente,cobertadecremevermelho.“Ah!Olá!Eusóestava,vocêsabe,acheiquedeveriadarumachecada... vocêsabe,ver se,poracaso...”Elaolhouparaospés.“NãoconteàHester.”

AgathanãofaziaideiadecomoissopoderiateralgumacoisaavercomganharoamordeTedros.Depois,porém,quandoelatentoucercarSophie,três garotas Nunca enfiaram-se em sua frente para perguntar a Sophiesobrecomocolherasmelhoresbeterrabas.Agathanãotevechancedefalarcom ela na hora do Grupos Florestais, porque Yuba separou Sempre eNunca.

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“Vocês precisam habituar-se a ver uns aos outros como inimigos! AprimeiraProvadeHistóriaéemtrêssemanas!”,disseognomo.“EparaaProvavocêsprecisarãodealgunsfeitiçosbásicos.Claroquenãoexisteumamaneiraúnicade fazermagia.Alguns feitiçosexigemvisualização, algunsencantamentos,outros, floreios,batidasdepés,varinhasmágicas,códigosnuméricos,ouatéparceiros!Noentanto,háumaregracomumatodos osfeitiços.”

Do bolso, ele tirou uma chave prateada brilhante, com um formatoligeiramenteparecidocomodeumcisne.

“Sempre,mãodireita,porfavor.”OsSempreentreolharam-seconfusoseestenderamasmãos.“Humm.Vocêprimeiro.”Agatha franziu o rosto quando ele pegou a mão dela, depois seu

segundodedo.“Espere...oquevocêvai...”Yuba prendeu sua chave de cisnemagicamente na ponta do dedo de

Agatha–apeleficoutransparenteeocisnemergulhounotecido,nasveias,nosangueegrudouemseuosso.Ognomovirouoarcoeseuossogirou,fazendo um círculo completo, de forma indolor. A ponta de seu dedoreluziu em um tom vivo de laranja por apenas um instante e depoisapagou-se,quandoYubaretirouachave.Desnorteada,Agathaolhavaparaseu dedo, enquanto Yuba desbloqueava o resto dos Sempre, depois osNunca, incluindo Sophie, que mal ergueu os olhos do caderno em queescrevia.

“Amagiasegueosentimento.Essaénossaúnicaregra”,disseognomo,quando terminou. “Quandoseudedo reluzir, significaquevocêacumulousentimentosuficiente,propósitosuficientepararealizarumfeitiço.Vocêsópodefazermagiaquandotiverprofundanecessidadeedesejo!”

Osalunosfixaramosolhosemseusdedos,sentindoeacumulandocomtodaforça,elogoaspontasdeseusdedoscomeçaramapiscaremumacorímparparacadapessoa.

“Porém, como uma varinha mágica, o brilho do dedo é como umaferramentade treinamento!”, Yubaalertou. “NaFloresta, vocêsparecerãouns patetas se acenderem-se a cada vez que fizerem um encanto. Nósbloquearemos seu brilho novamente quando demonstrarem queadquiriramcontrole.”ElefezumacarafeiaparaHort,quebatiainutilmenteodedonaspedras,tentandofazeralgoacontecer.“Sedemonstrarem.”

Ognomovirou-sedevoltaparaogrupo.

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“Noprimeiroanovocêssóaprenderãotrêstiposdefeitiço:ControledaÁgua, Manipulação do Clima e Mogrificação, tanto para plantas, quantopara animais. Hoje nós vamos começar pelo último”, ele disse, para suaplateia empolgada. “Um simples feitiço de visualização, mas altamenteeficaz para escapar de inimigos. Agora, já que suas roupas não servirãomais após vocês semogrificarem, émais fácil se não estiverem vestindonada.”

Osalunospararamdetagarelar.“Mas imagino que todos continuaremos vestidos”, disse Yuba. “Quem

querirprimeiro?”Todos ergueram as mãos, exceto duas pessoas. Agatha, que agora

rezavamaisdoquenuncaparaqueSophie tivesseumplanopara irparacasa. E Sophie, que estava ocupada demais escrevendo sua próximapalestra (“Banho não é somente uma palavra de cinco letras”) para ligarparaaquilo.

Noterceirodiaemseutoco,SophiejátinhafeitocomquetrintagarotasNunca recém-banhadas participassem de sua palestra “Diga não aomonótono”.

“Agora, o professor Manley diz que um Nunca tem que ser horrível.Essa feiura representa singularidade, poder, liberdade! Então essa é aminha pergunta ao professor Manley. Como espera que nos sintamossingulares, poderosas, livres... com isso?” ela esbravejou, sacudindo astúnicaspretascomosefossemumabandeirainimiga.Aaclamaçãofoitãoruidosa que do outro lado da Clareira a caneta de Beatrix escorregou,estragandooseudesenhodovestidodebaile.

“ÉaqueladoentementaldaSophie”,esbravejouBeatrix.“Ainda procurando um acompanhante para o Baile?”, murmurou

Tedros,mirandoapontariaparaarremessarapróximaferradura.“Pior.AgoraelaestátentandoconvencerasNuncadequeelasnãosão

umasfracassadas.”Tedroserrouoarremesso,surpreso.AgathanemtentouverSophiedepoisdoalmoço,comasgarotasNunca

aglomerando-seaoseuredorembuscadedicasdeestilo.Elatambémnãotentounooutrodia,quandocomeçouderepenteumaqueimaimprovisadade calçados depois da palestra de Sophie “Abandonem as botinas!”, e os

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lobos corriam de um lado para o outro dando chicotadas para que osalunos voltassem à torre. E ela certamente não tentou no dia seguinte,quandotodasasgarotasNuncaapareceramparaapalestradeSophiesobre“Boa forma para barangas”, exceto por Hester e Anadil, que cercaramAgathadepoisdoalmoço.

“Essaideiaestáficandocadavezmaisasquerosa”,disseAnadil.“Tantoquenósnãosomosmaisamigas.”

“Meninos,bailes,beijos–é tudoproblemaseu,agora”, rosnouHester,comodemônioremexendo-seemseupescoço.“Contantoquenãomexamcom a minha vitória como Capitã, não dou a mínima para o que vocêsfazem.Sacou?”

No dia seguinte, Agatha escondeu-se no Túnel das Árvores, esperoupelosomdesaltosaltossobreasfolhassecas,eatacouSophie,voandoemcima dela. “O que vai ser, hoje? Cremes de cutícula? Branqueadoresdentais?Maisexercíciosabdominais?”

“Sequiser falarcomigopodeesperarna fila, juntocomtodomundo!”,Sophiegritou.

“‘Maquiagens malevolentes’, ‘Preto é o novo preto’, ‘Ioga para vilãs’!Vocêquermorreraqui?”

“Você disse para mostrar a ele algo mais profundo. Isso não écompaixão? Não é bondade e sabedoria? Estou ajudando a quem nãoconsegueseajudar!”

“Desculpe,SantaTeresa,masoobjetivoaquiéTedros.Comoissoestáchegandoaalgumarealização?”

“Realização. Mas que palavra vaga. Mas eu consideraria isso umarealização,vocênão?”

AgathaseguiuoolhardeSophieparaforadotúnel.AmultidãodiantedeseutocoerademaisdecemNunca.Sóhaviaum,aofundo,quenãosepareciacomosrestantes.

Umgarotodecabeloslourosesuéterderugbyazul.AgathasoltouSophie,chocada.“Você deveria vir”, Sophie gritou, ao sair rebolando do túnel. “Hoje é

sobrecabelossecosedanificados.”Na frentedo toco,ArachneencaravaTedroscomseuúnicoolho. “Por

queoPríncipeRostinhoBonitoestáaqui?”“É, volte para o seu lado, garoto Sempre”, ralhou Mona, atirando

pedaçosdecascasdeárvorenele.

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MaisgarotasNuncacomeçaramahostilizá-loeTedrosrecuou,ansioso.Elenãoestavaacostumadoanãofazersucesso.Masassimquesaiu,sendovaiado...

“Nósdamosboas-vindasa todos”, Sophie advertiu, ao seguirpara seutoco.

Naquelasemana,Tedrosvoltoutodososdias.EledisseaosseuscolegasquesóqueriaveroqueSophieestavavestindo,mashaviaalgomais.Acadanovo dia ele observava, enquanto ela ensinava os pobres vilões aconsertaremsuasposturas,manteremcontatovisualepronunciarmelhoras palavras. Ele observava garotos Nunca que inicialmente ficavamamuados nos cantos começando a pedir conselhos a Sophie quanto adormirmelhor,disfarçaroodorcorporalecontrolarseustemperamentos.No começo, os lobos bocejavam durante essas assembleias, mas Tedrospodeverqueelescomeçavamaouvi-laàmedidaquecadavezmaisemaisNunca apareciam para as palestras. Logo os vilões começaram a debatersuas receitas durante o jantar e ao longo de chás nas salas comuns. Elescomeçaramasentar-sejuntosnoalmoço,defenderunsaosoutrosnaaula,e pararam de fazer piadas sobre a maré de azar. Pela primeira vez emduzentosanosoMalsentiaesperança.Tudoissoporcausadeumagarota.

Atéofinaldasemana,Tedrostinhaumlugarnaprimeirafila.“Está dando certo! Não posso acreditar!”, disse Agatha, enquanto

caminhavacomSophiepeloTúneldasÁrvores.“Talvezeledigaqueteama!Elepodeatébeijá-lanessasemana!Nósvamosparacasa!Qualéoassuntodeamanhã?”

“‘Engolindosuaspalavras’”,disseSophie,rebolandoadiante.Naqueledia,duranteoalmoço,Agathaficounafilaparapegarumcesto

dealcachofrasetartinesdeoliva,sonhandocomaacolhidadeheroínasqueela e Sophie receberiam quando voltassem para casa. Gavaldon ergueriaestátuasdasduasnapraça,fariamusicaissobreavidadelas,eensinariaascrianças nas escolas sobre as duas garotas que as salvaramdamaldição.Suamãe teriamilnovospacientes,Reaper teria trutas frescas tododia, eelateriasuasfotosnopergaminhodacidade,equalquerumquejátivesseseatrevidoadebochardelaagorarastejaria...

“Masquepiada.”Agatha virou-se para Beatrix que estava observando os Nunca

aglomerarem-seemvoltadeSophie,quevestiaumreveladorsáripretoe

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botasdepelecomsaltosfinos,parasuapalestrasobre“Comoseramelhoremtudo(comoeu!)”.

“Comoseelafosseamelhor”,fungouBeatrix.“AchoqueelaéamelhorNuncaqueeujávi”,disseumavozatrásdela.Beatrixvirou-separaTedros.“Agoraelaé,Teddy?Eeuachoqueissoé

tudoumgrandecontodefadas.”Tedrosseguiuosolhosdelaaoquadrodeclassificação,sobaluzsuave

do sol, nos portões da Floresta Azul. No quadro dos Nunca, o nome deSophieestavanofim,comburacosperfuradosporpássaros.Número120,dos120.

“Paraserprecisa,ocontoéAroupanovadaimperatriz”,disseBeatrix,esaiuandando.

TedrosnãofoiverSophienaqueledia.Espalhou-seoboatodequeeletinha achado triste ver os Nunca depositando suas esperanças na “piorgarotadaescola”.

Nodiaseguinte,Sophieapareceunotocodeserto.Aplacademadeiratinhasidodesfigurada.

“Eu lhe disse para ficar esperta!”, Agatha gritou, enquanto elasesperavam,sobumachuvatorrencial,depoisdaauladeYuba,paraqueoslobosabrissemosportões.

“Entreacosturadenovostrajes,asmisturasdenovasmaquiagenseapreparação de novas palestras, não posso me preocupar com aulas!”,Sophie chorava, embaixo de um guarda-chuva preto. “Tenho que pensarnosmeusfãs!”

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“Dos quais, agora, não resta nenhum!”, Agatha berrou. Ela podia verHesterdandoumsorrisosarcástico,nomeiodoGrupo6.“Trêsavaliaçõesem último lugar e você será reprovada, Sophie! Não sei como vocêsobreviveutantotempo!”

“Eles nãome deixam ser reprovada! Não importa quanto eume saiamal!Porqueachaquepareideestudar?”

Agatha tentou entender o sentido de tudo isso, mas não conseguiaconcentrar-seemnada,comapontadeseudedoardendo.DesdequeYubadestravara-o,elereluziasemprequeelaestavazangada,comoseestivesseimpacienteparafazerumfeitiço.

“Mas como você conseguiu todas aquelas avaliações altas antes?”, elaperguntou,escondendoamãonobolso.

“Isso foi antesdenos fazerem ler.Querdizer, eupareçome importaremcomoenvenenarumpente, furarosolhosdeumsapo,oucomodizer‘Possoatravessarsuaponte’na línguadostrolls?Aquiestoueu, tentandomelhorar esses vilões, e você querendo que eu memorize a receita parasopa de criança commacarrão? Agatha, você sabia que para ferver umacriança precisa primeiro embrulhá-la em papel de pergaminho? Docontrárionãoficarácozidaapropriadamenteetalvezacordeemsuapanela.Éissoquevocêquerqueeuaprenda?Comomachucarematar?Comoserumabruxa?”

“Ouça,vocêtemquerecuperarorespeito...”“Atravésdomalintencional?Não.Nãovaidar.”“Então estamos condenadas”, Agatha vociferou. Sophie suspirou

zangadaeafastou-se.Subitamentesuaexpressãomudou.“Masque...”Ela ficouboquiabertaquandoviuoquadroclassificatóriodosSempre

presoaoportão.

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“Mas...você...vocêé...você!”,Sophiegritou.“Eu faço meu dever de casa!”, Agatha rugiu. “Não quero aprender

chamados de pombos nempraticar desmaios ou costurar lencinhos,masfaçooqueforprecisoparaquepossamosirpracasa!”

Sophie,porém,nãoestavaouvindo.Umsorrisotravessosurgiuemseurosto.

Agathacruzouosbraços.“Semchance.Primeiro,osprofessoresvãonospegar.”

“VocêvaiadorarmeudeverdecasadeMaldições,temtudoavercomenganarpríncipes–evocêdetestagarotos!”

“Segundo,suascolegasdequartovãodelatá-la...”“E você vai adorar meu trabalho de casa de Enfeiamento! Estamos

aprendendoaassustarcrianças–evocêdetestacrianças!”“SeTedrosdescobrir,nósestamosmortas...”“E olhe o seu dedo! Ele acende quando você está aborrecida! Eu não

consigofazerisso!”“Époracaso!”“Pareceatémaisacesoagora!Vocênasceuparaserumavil...”Agathabateuopé.“NÃOVAMOSTRAPACEAR!”Sophieficouemsilêncio.OslobosdestrancaramosportõesdaFloresta

Azul,eosalunosentrarampelostúneis.NemSophienemAgathamexeram-se.“MinhascolegasdequartodizemquesoucemporcentodoMal”,disse

Sophie,baixinho.“Masvocêsabeaverdade.Eunãoseicomosermá.Nemmesmoumporcento.Portanto,nãomepeçaparaircontraminhaprópriaalma,Agatha.Eunãoposso.”Avozdelafalhou.“Simplesmentenãoposso.”

Ela deixou Agatha debaixo do guarda-chuva. Enquanto Sophie sejuntava àmassa, a tempestade lavava o brilhode seus cabelos, tirando apurpurinadesuapeleatéqueAgathanãoconseguiamaisdistingui-ladasoutrasvilãs.Aculpainvadiu-a,fazendoseudedoqueimar,brilhantecomoosol.ElanãotinhacontadoaverdadeaSophie.Elatinhatidoamesmaideia,de fazer o trabalho de casa de Sophie,mas afastou-a. Não por temer serflagrada.

Elatinhamedodegostar.Degostarcemporcento.

Page 218: Escola do bem e do mal

NaquelanoiteSophietevepesadelos.Tedrosbeijandoduendes,Agathasaindodeumpoço, rastejandocomasasdecupido.OdemôniodeHesterperseguindo-apelasgaleriasdeesgoto,atéqueaFeradespertavadaáguaescura, com asmãos ávidas e ensanguentadas, e Sophie passava por elacorrendo e trancando-se na Sala da Condenação. Havia, no entanto, umnovotorturadoresperando.Seupai,comumamáscaradelobo.

Sophieacordouemsobressalto.Suas colegas de quarto dormiam profundamente. Ela suspirou,

aninhadaemseutravesseiro–edeitou-sebruscamente.Haviaumabarataemseunariz.Elacomeçouagritar...“Soueu!”,abaratachiou.Sophiefechouosolhos.Acorde,acorde,acorde.Elaabriuosolhos.Elaaindaestavaali.“Qualéomeumuffinpredileto?”,elamurmurou.“De mirtilo, sem farinha”, disse a barata. “Mais alguma pergunta

imbecil?”Sophie tirou o inseto de seu nariz. Ele tinha os mesmos olhos

arregaladosebochechasfundas.“Comoassim...”“Mogrificação.Estamosestudandoissoháduassemanas.Encontre-me

nosalãocomunitário.”Agatha,abarata,encarava-aenquantoseguiaatéaporta.“Etragaseuslivros.”

Page 219: Escola do bem e do mal

18Abarataearaposa

“Imagineseomeubrilharnumtomverde,oumarrom,oualgoassim?”,Sophie bocejou, coçando as pernas. Tudo na Sala Comunitária daMalíciaerafeitodeumtecidodelinhocrugrosseiro–opiso,osmóveis,ascortinas– como uma câmara de tortura por coceira. “Não vou fazer isso se nãocombinarcomasminhasroupas.”

“Apenas foque o sentimento!”, a barata esbravejou, no ombro dela.“Comoraiva.Tentearaiva.”

Sophiefechouosolhos.“Estáacendendo?”“Não.Emquevocêestápensando?”“Nacomidadaqui.”

Page 220: Escola do bem e do mal

“Raiva de verdade, sua tonta! A magia vem de sentimentosverdadeiros!”

OrostodeSophiecontorceu-sepeloesforço.“Commaisprofundidade!Nadaestáacontecendo!”OrostodeSophieficousinistro,eapontadeseudedopiscouemrosa-

choque.“Isso! Você está conseguindo!”, Agatha deu umpulo, empolgada. “Em

quevocêestápensando!”“Em como sua voz é irritante”, disse Sophie, abrindo os olhos. “Devo

pensaremvocêtodasasvezes?”Duranteasemanaseguinte,aSalaComunitáriadaMalíciatransformou-

seemumaescolanoturnaparabaratas.Ofeitiçodemogrificaçãosóduravatrês horas, entãoAgatha tratou Sophie comouma escrava, obrigando-a afazercomqueseudedoreluzissecommais intensidade,paranublarumasala e inundar um piso, para distinguir um salgueiro-adormecido de umsalgueiro-chorão,eatéparadizeralgumaspalavrasnalínguadosgigantes.AavaliaçãodeSophieimediatamentesubiu,porém,noquartodiaaslongasnoitesjácausavamefeito.

“Minhapeleparecetãocinzenta”,disseSophie.“E você ainda está na 68ª posição, portanto, preste atenção!”,

repreendeu a barata em seu livro, com o cisne reluzindo. “A Praga deWoodsidecomeçouquandoRumpelstiltskincomeçouapisartãofortequeochãorachou...”

“Oqueafezmudardeideia?Quantoameajudar?”“E do chão, um milhão de insetos venenosos saíram rastejando,

infestando a Floresta, fazendo com que muitos Nunca e Sempreadoecessem”, disseAgatha, ignorando-a. “Eles até precisaram fechar estaescola,poisosinsetoseramaltamentecontagiosos...”

Sophieesparramou-senovamentenosofá.“Comovocêsabetudoisso?”“Porqueenquantovocêseolhaemespelhos,euleioVenenosepragas!”Sophiesuspirou.“Entãoelesfecharamaescoladeinsetos.Então,oque

aconte...”“Épracáquevocêtemescapado?”Sophievirou-seeviuHesternaporta,depijamapreto, acompanhada

porAnadileDot.“Deverdecasa”,Sophiebocejou,erguendoolivro.“Precisodeluz.”“Desdequandovocêligaparaodeverdecasa?”,Hesterzomboudela

Page 221: Escola do bem e do mal

“Achei que a beleza fosse uma ‘tarefa de tempo integral’”, Anadilimitou-a.

“Ficar no quarto com vocês é uma inspiração e tanto”, disse Sophie,sorrindo.“Emefazquererseramelhorvilãqueeupossaser.”

Hester olhou-a por um longo tempo. Comum rosnado, ela virou-se edeixouasoutrassaírem.

Sophiesuspirou,soprandoAgathapraforadosofá.“Elaestáaprontandoalguma”,asgarotasouviramHesterresmungar.“Ou elamudou!”, palpitou Dot, balançando-se atrás dela. “Havia uma

barataemseulivroeelanemnotou!”Atéasextanoitedeestudos,aavaliaçãodeSophiejátinhasubidopara

a55ªposição.Acadadia,porém,elasepareciamaiscomumzumbi,comapelebrancadeaspectodoentio,olhosvidradoseolheirasfundas.Emvezdeumbelotrajenovoouumchapéu,agoraelaandavadecabelosujoevestidoamassado,deixandoumrastrodeanotaçõesdeestudospelatorreinteira,comosefossemfarelosdepão.

“Talvezsejamelhorvocêdormirumpouco”,Tedros lhedisse,naauladeYuba,“Gastronomiadeinsetos”.

“Estouocupadademaistentandonãosera‘piorgarotadaescola’”,disseSophie,enquantofaziaanotações.

“Geralmente, há insetos disponíveis quando não há minhocas”, disseYuba,segurandoumabarataviva.

“Veja, vocênãopodeesperarquealguém lhedêouvidosquandoestáclassificadaabaixodeHort”,sussurrouTedros.

“Quando eu estiver em primeiro lugar você vai me pedir para lheperdoar.”

“Se você chegar ao primeiro lugar, podeme pedir o que quiser”, elebufou.

Sophievoltou-separaele.“Euvoufazervocêcumpririsso.”“Seaindaestiveracordada.”“Primeiro removam essas partes não comestíveis”, disse Yuba,

arrancandoacabeçadabarata.Agatha estremeceu e escondeu-se atrás de um arbusto pelo resto da

aula. E, naquela noite, ela quase explodiu quando Sophie lhe disse o quehaviaacontecidocomTedros.

“Osmeninos Sempre nunca deixamde cumprir suas promessas!”, eladisse, saltitando em pernas de baratas. “É o Código Principesco de

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Cavalheirismo. Agora você só precisa chegar ao primeiro lugar, e ele vaiconvidá-laparao...Sophie?”

Sophierespondeucomumronco.No décimo dia da “Faculdade de Baratas”, Sophie estava somente no

40ºlugar,esuasolheirasestavamtãoescurasqueelapareciaumguaxinim.Então,nodiaseguinte,caiunovamenteparao65ºlugar,quandocochilouduranteo testedeSonhossobreNêmesis,deLesso,depoisdeadormecerdurante o Treinamento de Capangas, derrubando Beezle do palanque, eapósperderavozemTalentosEspeciais,caindoaindamaisdeposição.

“Seu talentoestáprogredindo”,SheebadisseaAnadil,queconseguirafazer seus ratos crescerem cinco centímetros. Então ele virou-se paraSophie.“EeuquepenseiquevocêfosseanossaGrandeEsperança.”

AtéofimdasemanaSophievoltaraaserapiorvilãdaescola.“Estoudoente”,disseAgatha,tossindocomamãonaboca.AprofessoraDoveynãoergueuosolhosdopergaminhoabertoemsua

mesa. “Chá de gengibre e duas fatias de toranja. Repita isso a cada duashoras.”

“Eutenteiisso”,disseAgatha,aumentandoovolumedesuatosse.“Agoranãoéhoradeperderaulas,Agatha”,disseaprofessoraDovey,

empilhandopapéissobospesosreluzentesemformadeabóboras. “FaltamenosdeummêsparaoBaile,equeroassegurar-medequenossaalunaclassificadaemquartolugarestejapreparadaparaanoitemaisimportantedesuajuventude!VocêtemalgummeninoSempreemmente?”

Agatha explodiu em tosse. A professora Dovey olhou para cima,alarmada.

“Pareceuma...praga”,Agathaespirrou.AprofessoraDoveyficoubranca.Fechada em quarentena em seu quarto, Agatha, a barata, agora

acompanhavaSophieatodasassuasaulas.PresaatrásdaorelhadeSophie,elasussurrou-lheemseuouvidoqualeraoprimeirosinaldeumSonhodeNêmesis(resposta:sentirgostodesangue),guiou-anasnegociaçõescomoGigante Gelado durante a aula de Capangas, e disse-lhe quais eram oscorvosdoBemequaiseramosdoMalduranteaauladeGrupoFlorestaldeYuba. No segundo dia, ela ajudou Sophie a perder um dente noEnfeiamento,aencontrarasrespostascorrespondentesduranteaprovadeSader (Lalkies: têm falamansa;Harpias: são comedoras de crianças), e adeterminar qual dos pés de feijão de Yuba era venenoso, qual era

Page 223: Escola do bem e do mal

comestível e qual era a Dot disfarçada. Houvemomentos complicados, éclaro. Ela quase foi parar debaixo da botina de Hester, sobreviveu porpoucoaummorcegoquepassousobrevoando,equasetransformou-senelamesma em Talentos Especiais, antes de encontrar um armário devassouras,nomomentoexato.

Nofinaldoterceirodia,AgathamaltinhaolhadoseudeverdecasadoBem, e passava todo o seu tempo livre aprendendo feitiços do Mal.Enquanto suas colegas de turma esforçavam-se para fazer o dedopiscar,elaconseguiamanteroseuacesoaopensarsobreascoisasqueadeixavamzangada:escola,espelhos,meninos...Depoiserasóumaquestãodeseguirumareceitaprecisade feitiço,ederepenteconseguia fazermagia.Coisassimples, nada além de brincar com a água e o clima,mas, ainda assim –magiadeverdade!

Elateriasedeixadoparalisarpelaincredulidade,pelaimpossibilidade,setudonãolhechegassecomtantanaturalidade.Enquantoosoutrosnãoconseguiamnemgerarumagaroa,Agathaformavanuvensdetemporalemseuquartoeencharcavaosmuraisodiososdaparedecomraiose chuva.Nosintervalos,davaumaescapadaatéobanheiroeexperimentavanovosFeitiços para sofrimento – a Praga do Apagão, para escurecertemporariamente o céu, o Feitiço do Mar Bravo, para erguer uma ondagigante... O tempo voava quando ela estudava o Mal, tão abundante depoderepossibilidadesqueelanuncaficavaentediada.

Umanoite,enquantoesperavaquePóluxentregasseseudeverdecasadoBem,Agathaassobiavaenquantorabiscava...

“Oque,nessemundo,significaisso?”Elavoltou-separaPólux,naporta,comacabeçaemumcorpodelebre,

olhandoparaseudesenho.“É... sou eu, nomeu casamento. Está vendo, este émeupríncipe.” Ela

amassouafolhaetossiu.“Algumdeverdecasa?”Depois de repreendê-la por ter baixado na classificação dos Sempre,

explicando cada dever três vezes, e censurá-lamandando que cobrisse abocaquandotossisse,Póluxfinalmentedeixou-asozinha.Agathasuspirou.Então seu olho captou o desenho amassado de si mesma voando pelaschamas,eelaviuoqueestiveradesenhando.

ONuncaMais.OparaísodoMal.“Nósprecisamosirpracasa”,elamurmurou.

Page 224: Escola do bem e do mal

Atéofimdasemana,AgathatinhaconduzidoSophieporumasequênciamagníficadevitóriasemtodasassuasmatérias,incluindoasSintonizaçõesExperimentais de Yuba. Nessa aula, havia duelos preparatórios para aProva de História, e Sophie derrotou cada pessoa de seu grupo usandofeitiçosaprovados,comoparalisarRavancomumraio,congelaros lábiosdeBeatrixantesqueelapudessepedirajudaaosanimais,ou liquefazeraespadadetreinamentodeTedros.

“Tem gente que anda fazendo o dever de casa”, disse Tedros,impaciente. Escondida embaixo da gola de Sophie, Agatha corou deorgulho.

“Anteserapurasorte.Issoédiferente”,HesterpegouAnadilpelobraço,enquanto elas almoçavam um punhado de línguas chamuscadas de vaca.“Comoseráqueelaestáfazendoisso?”

“Éobomevelhotrabalhoduro”,disseSophie,aopassardesfilandocommaquiagemcintilante,cabelosvermelhoscorderubi,eumquimonopretobordadocompedrasquediziam“FdeFocada”.

HestereAnadilengasgaramcomaslínguas.Nofinaldaterceirasemana,Sophiejáestavanaquintacolocação,esuas

palestrasdohoráriodealmoçotinhamsidoretomadas,apedidos.Assim como sua moda de túnicas pretas, ainda mais ousadas e

extravagantes do que antes, e um desfile animado de recortes deplumagens, corpetesde rededepescador, peles falsasdemacaco, burcasenfeitadascomlantejoulas,terninhosdecouro,perucasempoadaseatéumbustiêfeitodemalhadearmadura...

“Elaestátrapaceando”,Beatrix chiava,paraqualquerumqueouvisse.“Éalgumafadamadrinhamalandra,ouumencantoparadominarotempo.Ninguémtemtempoparafazertudoisso!”

Contudo,Sophietinhatempoparadesenharummacacãodecetimquecombinava com uma touca de freira, um vestido salpicado de conchas, esapatosquecombinavamcomcadanovovisual.Tinha tempodederrotarHesternodesafio “EnfeiamentodoSalãodeBaile”,escreverumaredaçãosobre “Lobos versus homens-lobos” e preparar suas palestras sobre“Sucessoperverso”,“Horrendoéonovolindo”e“Preparando-separafazeromal”.Elatinhatempodeserumagarotaquepersonificava,sozinha,umdesfile de modas inteiro, de ser uma grande agitadora, uma palestranterebelde... e ainda lutar com Anadil e ganhar o segundo lugar naclassificação.

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Dessavez,BeatrixnãotevecomoimpedirqueTedroscaíssedeamoresporSophie.Entretanto,Tedrostentava,valentemente,deterasimesmo.

ElaéumaNunca!Edaí,queébonita?Ouinteligente?Oucriativaegentilegenerosae...

Tedrosrespiroufundo.OsSemprenãogostamdosNunca.Vocêsóestáconfuso.Elesentiu-sealiviadoquandoYubalançououtrodesafio“DoBemoudo

Mal”.Dessavez,ognomotransformoutodasasmeninasemabóborasazuiseescondeu-asemumapartedensadafloresta.

ApenasencontreumaSempre,Tedrosrepreendiaasimesmo.EncontreumaSempre,eesqueça-sedela.

“Essa é do Bem!”, gritou Hort, tirando uma concha azul. Nadaaconteceu.Osoutrosmeninosnãoconseguiamdistinguiradiferençaentreasabóboras,ecomeçaramadiscutirosméritosdecadauma.

“Issonãoéumtrabalhoemgrupo!”,Yubagritou.SegurandoavinhaazuldeSophie,Agatha-barataobservava,enquanto

os meninos dividiam-se. Tedros seguiu a oeste, em direção à MataTurquesa,eparou.Elelentamentevirou-separaaabóboradeSophie.

“Eleestávindo”,disseAgatha.“Comosabe?”,Sophiesussurrou.“Porquefoidessejeitoqueelemeolhou.”Tedroscaminhouatéumaabóbora.“Essa.EssaéumaSempre.”Yubafranziuorosto.“Primeiro,olheatentamente...”Tedros ignorou-o, tocouacascaazulenumaexplosãodepurpurinaa

abóbora transformou-se em Sophie. Um número “16” surgiu em fumaçaverde, acima da cabeça do príncipe, e um “1” preto, acima da cabeça deSophie.

“Somente os melhores Maus conseguem se disfarçar de Bons”,comentouYubae,comumacenodeseubastãoapagou,definitivamente,oFdovestidodeSophie.

“Equantoavocê,filhodeArthur,sugiroqueestudesuasregras.Vamostorcerparaquenãocometaequívocostãoterríveisquandoforpravaler.”

Tedrostentouparecerenvergonhado.“Nãoconseguimosencontrarnenhuma!”,umavozgritou.Yuba virou-se, e viu todos os meninos com classificações baixas

pairando sobre suas cabeças. “Deveria tê-las marcado”, ele suspirou, eseguiubalançando-sepelamata,cutucandoabóborasparaversegritavam.

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Depoisqueognomosefoi,Tedrospermitiu-sesorrir.Comoelepoderiadizer a umprofessor quenão se importava comas regras?Regras que ohaviam levadoàquelahorrendaAgathaduasvezes?Pelaprimeiravez, eletinhaencontradoumameninaquetinhatudooqueelequeria.Umagarotaquenãoeraumerro.

“Eudiriaquevocêmedeveumapergunta,filhodeArthur.”Tedrosvirou-seeviuSophiemostrandoomesmosorriso.Eleseguiuos

olhosdela até o quadrode avaliaçãodosNunca, acimada Floresta, ondeAlbermarletinhaentalhadoonomedelabemnoalto,comseubico.

Nodiaseguinte,elaencontrouumbilheteemseubaldedecomida.

“Oquesignificaisso?”,elacochichoucomabaratanapalmadesuamão.“Significaquevamosparacasaestanoite!”,Agathacomemorou,comas

anteninhasbatendotãodepressaqueSophiedeixou-acair.

AbarataandavadeumladoparaoutronopisodeaniagemmofadodoSalãoComunitáriodaMalícia,deolhonorelógio,enquantoeleprosseguiacom seu tique-taque, rumo à meia-noite. Finalmente ela ouviu a portaabrir-seeviuSophieentrarusandoumsedutortubinhopreto,realçadoporlongas luvas pretas, penteado colmeia, um delicado colar de pérolas eóculosescuros.Agathaquaseestragouseuprópriodisfarce.

“Primeiro, eu lhe disse para ser pontual. Segundo, não se arrumedemais...”

“Olhe esses óculos. Não são chiques? Protegem os olhos do sol. Vocêsabe, agora as garotas, os Sempre, me dão uma porção de coisasescondidas,pérolas, joias,maquiagem,roupas.Primeiroacheique fossemboasações,depoispercebiquenão,elasapenasgostamdeversuascoisasemalguémmaiscarismáticoeglamoroso.Sóqueétudotãovagabundoquemedáalergia.”

AantenadeAgathaenrolou-se.“Apenas...apenastranqueaporta!”Sophiefechouaporta.Elaouviuumestrondoevirou-se,vendoAgatha

comorostovermelhoeocorpopálidoenvoltoemumacortinadesacodeaniagem.

“Uhmm...devotererradoaocalcularotempo...”,Agathabalbuciou.

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Sophieolhou-adecimaabaixo.“Prefirovocêcomobarata.”“Temquehaverumjeitodeconseguirnovasroupasquandosevoltada

transformação”, Agatha resmungou, encolhendo-se mais. Então, ela viuSophie remexendo no bilhete de Tedros. “Agora ouça, não faça nada deimbecilquandoencontrá-loestanoite.Apenasganheobeijoe...”

“Meupríncipeveiopormim”,Sophiecantarolou,cheirandoopapel.“Eagora,eleémeuparasempre.Tudograçasavocê,Agatha.”Elaolhouparacima,amorosamente,eviuaexpressãodaamiga.“Oquê?”

“Vocêdissepara‘sempre’.”“Euquisdizerestanoite.Eleémeuestanoite.”Ambasficaramemsilêncio.“Seremos heroínas quando voltarmos a Gavaldon, Sophie”, Agatha

disse, baixinho. “Você terá fama e riqueza, e qualquer garoto que queira.VocêlerásobreTedrosemlivrosdecontosdefadaspelorestodesuavida.Teráalembrançadequeumdiaelefoiseu.”

Sophieconcordou,comumsorrisodoloroso.“Etereimeucemitérioemeugato”,murmurouAgatha.“Algumdia,vocêencontraráoamor,Agatha.”Agathasacudiuacabeça. “VocêouviuoqueoDiretordaEscoladisse,

Sophie.Umavilãcomoeujamaisencontraráoamor.”“Eletambémdissequenãopodíamosseramigas.”AgathaolhounosolhoslindoselúcidosdeSophie.Então,elaviuorelógioedeuumsalto,ficandoempé.“Tirearoupa!”“Tiraroquê?”“Rápido,nósvamosperdê-lo!”“Desculpe,maseuestoucoladanessevest...”“AGORA!”Alguns minutos depois, Agatha estava sentada ao lado da roupa de

Sophie,comacabeçaapoiadanasmãos.“Vocêtemquefazerissocomconvicção!”“Estou nua atrás de um sofá horrível. Não consigo fazer nada com

convicção,muitomenosfazermeudedoacenderemetransformaremumroedor.Nãopodemosescolherumanimalmaisatraente?”

“Vocêestáacincominutosdeperderseubeijo!Apenasimagine-senocorpodobicho!”

“Emvezdisso,quetalumpássaro?Temmaisavercomigo.”

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AgathapegouosóculosdeSophie,esmagou-oscomabotinaejogou-osporcimadosofá.

“Querqueeufaçaomesmocomaspérolas?”TUM.“Deucerto?”,disseavozdeSophie.“Nãoestouvendovocê...”disseAgatha,girando.“Peloquepercebo,você

setransformouemumasalamandra!”“Estoubemaqui.”Agathavirou-seeficousemar.“Mas...mas...vocêestá...”“Mais eu”, disse Sophie, euma raposaarrebatadora, felpudae cor-de-

rosa surgiu, com seu pelo reluzente, olhos verdes encantadores, lábiosvermelhos suculentos, e uma cauda magenta. Ela prendeu o colar depérolasaopescoço,eficouadmirando-seemumpedaçodevidroquebrado.“Elevaimebeijar,querida?”

Agathaolhava,hipnotizada.SophieolhouparaAgathanoespelho.“Vocêestámedeixandonervosa.”“Os lobos não irão incomodá-la”, Agatha balbuciou, enquanto

destrancavaaporta.“Elesachamqueraposassãoportadorasdedoenças,ealém disso, eles são daltônicos. Apenasmantenha o peito junto ao chão,paraqueelesnãovejamocis...”

“Agatha.”“Oquê?Vocêvaiperdê-lo...”“Podevircomigo?”Agathavirou-se.Sophiedelicadamentepassouoraboemvoltadamãodaamiga.“Somos

umadupla”,eladisse.Agathatevedelembrarasimesmadequenãotinhatempoparachorar.

Sophie, a raposa, seguiu silenciosamente pela Floresta Azul, passoupelos salgueiros com fadas adormecidas e guardas-lobos, que recuaramdelacomosefosseumaserpente.ElaseguiupelassamambaiasazuladasecarvalhosretorcidosdaMataTurquesa,atéchegaraotopodaponte,comvistaparaumriachoiluminadopelalua.

“Eunãoovejo”,Sophiesussurrouparaabarataaninhadanopelorosaemseupescoço.

“Seubilhetediziaqueeleestariaaqui!”

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“TalvezHestereAnadiltenhamnospregadoumapeça...”“Comquemvocêestáfalando?”Doisolhosazuisreluziramnaescuridão,dooutroladodaponte.Sophiecongelou.“Digaalgo!”,Agatharalhouemseuouvido.Sophienãoconseguia.“Falocomigomesma,quandoestounervosa”,Agathasussurrou.“Falo comigo mesma, quando estou nervosa”, Sophie disse,

rapidamente.Uma raposa azul-marinho saiu da sombra, com o cisne reluzindo no

peitoestufado.“Acheiquesomenteasprincesasficassemnervosas.Nãoamelhorvilã

daescola.”Sophieolhavaparaaraposa.TinhaosmúsculostorneadosdeTedros,e

seusorrisomeiopresunçoso.“Só os melhores Bons conseguem se disfarçar de Maus”, Agatha

interferiu.“Principalmentequandoháumamorpeloquallutar.”“SóosmelhoresBonsconseguemsedisfarçardeMaus”,disseSophie.

“Principalmentequandoháumamorpeloquallutar.”“Entãofoimesmoumerrootempotodo?”,disseTedros,contornando-a

lentamente.Sophiebuscavapalavras...“Eutivequeagirdosdoisladosparasobreviver”,Agathaacudiu.“Eutivequeagirdosdoisladosparasobreviver”,Sophierepetiu.ElaouviuospassosdeTedros,queparou.“Agora,segundooCódigodo

Príncipe,eutenhoumapromessaacumprir.”Seupelotocavaopelodela.“Oquegostariaqueeulheperguntasse?”

OcoraçãodeSophieparounagarganta.“Agoravocêvêquemeusou?”,disseAgatha.“Agoravocêvêquemeusou?”,repetiuSophie,ofegante.Tedrosficouquieto.Ele ergueu o queixo dela, com a pata morna. “Você sabe que isso

causaráumareviravoltanasduasescolas?”Sophieencaravaosolhosdele,hipnotizada.“Eusei”,sussurrouabarata.“Eusei”,dissearaposa.“Sabequeninguémvaiaceitá-lacomominhaprincesa?”,disseTedros.

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“Sei.”“Sei.”“Sabequepassaráorestodavidatentandoprovarqueéboa?”“Eusei”,disseAgatha.“Eusei”,disseSophie.Tedrosaproximou-se,eosdoisencostaramseuspeitosumnooutro.“Evocêsabequevoubeijá-laagora?”Asduasmeninassuspiraramaomesmotempo.A água reluzente do riacho iluminou a face das duas raposas, azul e

rosa, eAgatha fechouosolhos edisse adeusa essemundodepesadelos.SophiefechouosolhosesentiuohálitomornoedocedeTedros,oslábiosdeleencostadosaosseus...

“Masémelhoresperarmos”,disseSophie,recuando.OsolhosesbugalhadosdeAgathaabriram-se.“Sim.Claro.Obviamente”,Tedrosgaguejou.“Eu,ahn,vouacompanhá-la

atéseutúnel.”Enquanto eles caminhavam silenciosamente de volta, o rabo rosa de

Sophie enlaçou-se com o dele. Tedros olhou para ela e deu um sorriso.Agathaobservavatudo,vermelhaderaiva.Equandoopríncipefinalmentedesapareceuemseutúnel,elaapareceunonarizdeSophie.

“Oqueestáfazendo?”Sophienãorespondeu.“Porquenãoobeijou?”Sophienãodissenada.Agatha mergulhou suas antenas no nariz de Sophie. “Você precisa

correratrásdele!Vá,agora!Nãopodemosirpracasa,amenosquevocêssebeijem...”

SophieespanouAgathadeseurostoedesapareceunotúnelescuro.Retorcendo-seemmeioàsfolhassecas,Agathafinalmenteentendeu.Nãohouvebeijoporquejamaishaveria.Sophienãotinhaintençãodequeelasvoltassemparacasa.Jamais.

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19Eutenhoumpríncipe

Aolongodosanos,ocorpodocentedaEscoladoBemedoMaljátinhavistomuitascoisas.

Viram alunos que eram patéticos no primeiro ano terminarem maisricos do que reis. Viram alunos que eram brilhantes até o terceiro anoterminarem como pombos ou vespas. Viram trotes, protestos e motins,beijos,jurasecançõesdeamorimprovisadas.

Contudo,nuncatinhamvistoumSempreeumaNuncademãosdadasna hora do almoço. “Tem certeza de que você não terá problemas?”,perguntouSophie,notandoosolharesdassacadas.

“Se você é boa o suficiente para mim, é boa o suficiente para essesbastardos”,disseTedros,puxando-aadiante.

“Imagino que eles terão que se acostumar”, suspirou Sophie. “Nãoqueroproblemasnobaile.”

AmãodeTedrostensionou-sesegurandoadela.Sophieficouvermelhadevergonha.

Page 232: Escola do bem e do mal

“Ah,depoisdeontemànoite,eusópresumi...”“Osmeninos Sempre fazemum juramento de não convidar nenhuma

garotaantesdoCircodeTalentos”,disseTedros,puxandoagola.“EspadadissequeétradiçãoesperaratéaCoroaçãodoCirco,navésperadoBaile.”

“Navéspera!”,Sophieengasgou.“Mascomofazemosparacombinarascoreseplanejarnossaentrada...”

“É por isso que fazemos o juramento.” Tedros pegou seu cesto desanduíches de carneiro, cuscuz de açafrão e mousse de amêndoas,entregues por uma ninfa de cabelos verdes. “Um cesto para a moça,também.”

Aninfa ignorou Sophie e estendeuum cesto para o próximo Sempre.Tedrospegouaalça.

“Eudisseumparaamoça.”Aninfasegurouocestocommaisforça.“Carneiroédifícildedigerir,dequalquerforma”,disseSophie.Masopríncipe ficousegurando,atéqueaninfaentregouocestocom

umgemido.Tedrosentregou-oaSophie.“Comovocêdisse,émelhorqueseacostumem.”

Osolhosdelaarregalaram-se.“Vocêvai...melevar?”“Vocêficatãobonitaquandoqueralgumacoisa.”

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Sophietocou-o.“Prometa”,eladisse,semfôlego.“Prometaquevocêmelevaráaobaile.”

Tedros olhou para baixo, para as mãos macias dela, segurando oscadarçosdacamisadele.

“Tudobem”, finalmente suspirou. “Euprometo.Mas conte aqualquerpessoaeeucolocoumacobranoseucorpete.”

Com um gritinho, Sophie jogou-se nos braços dele. Ela finalmentepoderiaplanejarseuvestido.

Comisso,oSemprenúmero1eaNuncanúmero1,inimigosdecorpoealmanoslivrosdecontosdefadas,sentaram-sedemãosdadasembaixodeum carvalho. Tedros de repente notou todos os Sempre o encarando,perplexos por sua deslealdade. Sophie viu alguns Nunca, a quem tinhapalestradodurantesemanassobreoorgulhodovilão,olhando-afixamente,traídos.

Tensos,elaeTedrosmorderamseussanduíchesaomesmotempo.“A bruxa ainda está contagiosa?”, perguntou Tedros, rapidamente. “É

seuprimeirodiadevoltaàescola.”SophiedeuumaolhadaparaAgatha,encostadaaumaárvore,olhando

diretamentepraela.“É...nósnãoestamosnosfalandomuito,realmente.”“Ela é uma sanguessuga, não é? Acha que a inteligência dela

complementaasuabeleza.Malsabeelaquevocêtemtudoissojunto.”Sophieengoliuemseco.“Éverdade.”“Uma coisa é certa. Não voumais escolher aquela bruxa em nenhum

desafio.”“Comosabedisso?”“Porque agora que encontrei minha princesa não vou largá-la mais”,

disseopríncipe,olhandonosolhosdela.Sophiesentiu-sesubitamentetriste.“Mesmoqueissosignifiqueesperar

umavidainteiraporumbeijo?”,disse,quaseparasimesma.“Mesmo que signifique esperar uma vida por um beijo.” Tedros

respondeu,pegandoamãodela.Depois,ergueuacabeça.“Imaginoqueissosejaumaperguntahipotética.”

Sophie riu e deitou a cabeça no ombro dele, a tempo de esconder aslágrimas. Um dia, ela lhe explicaria. Quando o amor deles estivessesuficientementeforte.

Page 234: Escola do bem e do mal

Nassacadasdasduasescolas,ocorpodocenteobservavaospombinhosaconchegando-sesobosol.ProfessoresdoBemedoMaltrocaramolharessinistros,eseguiramparasuassalas.

Sentada na sombra fria, Agatha tampouco fez movimentos súbitos.Assimcomoosprofessores,elasabiaqueesseromanceestavacondenado.Haviaalgonocaminhodeles.AlgodequeSophietinhaseesquecido.

AlgochamadoProvadosContos.

“VencerumaProvadosContoséumadasmaioreshonrasnaEscoladoBemedoMal”,declarouPólux,comacabeçadevoltaaoladodacabeçadeCástor, no imenso corpo de cão. Com os quinze líderes dos GruposFlorestaisatrásdeles,Póluxolhouparaosalunosreunidosapósocafédamanhã,noTeatrodasFábulas.

“Uma vez por ano, nósmandamos nossosmelhores Sempre e Nuncapara dentro da Floresta Azul por uma noite, para ver quem dura até demanhã. Para vencer, o aluno precisa sobreviver tanto às armadilhasmortaisdoDiretordaEscola,quantoaosataquesdoladooposto.OúltimoSempreeoúltimoNuncaqueestiveremempépelamanhãsãodeclaradosvencedores, e lhes são dadas cinco avaliações adicionais de primeiracolocação.”Póluxergueuofocinho.“Comovocêssabem,oBemvenceuosúltimosduzentostestes.”

O pessoal do Bem começou uma torcida “O BEM DOMINA! O BEMDOMINA!...”

“SÃO IMBECIS, ARROGANTES E TOLOS!”, esbravejou Cástor, e osSempresecalaram.

“Daqui a uma semana, cada Grupo Florestal mandará seus melhoresSempreeNuncaparaaProva”,dissePólux.“Masantesdeanunciarmososcompetidores,deixem-nosrevisarrapidamenteasregras.”

“Ouvi dizer que Beatrix tirou primeiro lugar em Boas Ações ontem”,Chaddick cochichou para Tedros. “Aquela garota Nunca está teamolecendo?”

“Pois tente remendar a asa de uma pomba com a minha força”,respondeuTedros.Então,seurostosuavizou-se.“Osgarotosestãomesmomeodiando?”

“NãodáprasemetercomumaNunca, companheiro”,disseChaddick,com seus cinzentos olhos sérios. “Mesmo se ela é a garota mais bonita,

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inteligenteetalentosadaescola.”As dúvidas fizeram Tedros afundar-se em seu assento... ele

rapidamentelevantou-se.“PossoprovarqueelaédoBem!PossorevelarissonaProva!”“BeatrixouAgathapodemcairnoseugrupo”,disseChaddick.O peito de Tedros apertou-se. Ele viu Sophie olhando-o radiante, do

banco do Mal. O futuro dos dois dependia da aprovação dele na Prova.Comopoderiafalharcomela?

“Segundo as regras, podehavermais de umvencedor emumaProvadosContos”,dissePólux.“Noentanto,osquedurarematéoamanhecertêmquedividiraavaliaçãodeprimeiro lugar.Dessa forma,édeseu interesseeliminar seus rivais. Naturalmente, oDiretor da Escola prefere umúnicovencedor, e vai elaborar o maior número possível de obstáculos paragarantirisso.”

“Pelo resto da semana, todas as aulas serão dedicadas à preparaçãodessesquinzeSempreequinzeNuncaparaanoiteque terãonaFlorestaAzul”, o cão prosseguiu, enquanto os alunos comentavam sobre quemseriamesses.“Osdesafiosrealizadosdentrodesalaserãorestritosapenasaessescompetidores.Osquetiveremaspiorespontuaçõesnasemanavãoprimeiro para a Prova, enquanto os que tiverem a melhor colocaçãoingressarão bem mais tarde. Claro que isso é uma vantagem imensa.Quantomenos tempo vocês passarem na Prova dos Contosmais chanceterãodesairvivos.”

Osalunospararamdefalar.Póluxpercebeuoquehaviaditoeforçouoriso.“Émaneiradefalar.Nenhumalunomorreemumteste.Queridículo!”Cástortossiu.“Mas,equantoa...”“A competição é totalmente segura”, disse Pólux, sorrindo para os

garotos.“Cadaumdevocêsreceberáumabandeiraderendição.Casovocêsse encontrem em perigo mortal, deitem-se no chão e serão resgatadosilesos da Floresta Azul. Vocês aprenderãomais sobre as regras em suasinúmeras aulas, portanto eu agora cedo o palco aos líderes dos GruposFlorestais, que anunciarão os competidores do Julgamento destatemporada.

Umapequeníssimaninfadelírio,comumvestidocordeesmeralda,deuum passo à frente. “Do Grupo 9, Reena representará o Bem, e VexrepresentaráoMal!”

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Reena fez uma reverência em resposta aos aplausos dos Sempre,enquanto os Nunca murmuravam que Vex, que tinha orelhas pontudas,tevesortedecairemumgrupofraco.

UmogrodesignouTristaneArachne,deumolho só,paraoGrupo7,seguidosdeoutroslíderesqueindicaramomorenoNicholaseAnadilparaogrupo4,KikaeMona,depeleverde,parao12,GiselleeHesterparao6...

Otempotodo,SophieficouolhandoparaTedros,sonhandocomavidacomo sua rainha. (Será que Camelot tem armários suficientes? Espelhos?Pepinos?)Então,Yubaapresentou-se.SophieolhouparaTedroseBeatrix,ambosansiandopelaspalavrasdognomo.Por favor,deixequeelederroteessabrancaazeda,elarezava...

“DoGrupo3,TedrosrepresentaráoBem”,disseYuba.Elasuspiroualiviada.“ESophierepresentaráoMal.”Sophie coçou as orelhas. Ela certamente tinha ouvidomal. Então, ela

ouviuosrisosdebochados.“Imagino que esse seja o problema de namorar uma vilã”, disse

Chaddick.“Ésóamorebeijos,atéquevocêtenhaquematá-la.”Tedros ignorou-o, e focou seu plano para provar que Sophie era do

Bem.GraçasaDeusseupaiestavamorto,pensouele,suandoembicas.Oqueestavaprestesafazerpartiriaocoraçãodele.

Os Sempre saíram pelas portas do lado esquerdo, os Nunca, pelasportas do lado direito, para seguirem rumo à trilha do Mal, e Sophiepermaneceu sentada, chocada, em um banco do mal. Uma sombraaproximou-sedela.

“Tudooquepedifoiquevocêficasseforadomeucaminho...”ArespiraçãodeHestergelouapartedetrásdopescoçodeSophie.“Eaquiestávocê,avilãnúmeroum,caçoandodetodosnós.Bem,você

se esqueceu de que a história de uma vilã não tem final feliz, querida.Então, deixe-me lembrá-la de como termina. Primeiro você. Depois seupríncipe.Mortos.”

Lábios gélidos passarampela orelha de Sophie. “E isso não é só umamaneiradefalar.”

Sophievirou-separatrás.Nãohavianinguémali.Eladeuumsalto,ficouempé, trombou emTedros, gritou – e caiu nos braços dele. “Ela vai nosmatar,você,depoiseu,oueu,depoisvocê–nãomelembrodaordem–e

Page 237: Escola do bem e do mal

vocêéumSempre,eeusouumaNunca,eagoranóslutamosumcontraooutro...”

“Oulutamosumcomooutro.”Sophiepiscou.“Nós...mesmo?”“Todossaberãoquevocêéboaseeuaproteger”,disseTedros, ainda

suando um pouco. “Somente uma verdadeira princesa pode ganhar aproteçãodeumpríncipe.”

“Mas...elesvãoperseguirvocê!TodosachamquesoudoMal!”“Não se nós ganharmos”, disse Tedros, sorrindo. “Eles terão que

transformá-laemumaSempre.”Sophiesacudiuacabeçaeabraçou-ofortemente.“Vocêémeupríncipe.

Deverdade.”“Agora vá ganhar seus desafios, para que possamos entrar no

Julgamentoaomesmotempo.Vocênãopodeestarládentrosemmim.”Sophieficoubranca.“Mas...mas...”“Mas,oquê?VocêédelongeamelhorNunca.”“Eusei,éque...”Tedros ergueu seu queixo, forçando-a a olhar em seus olhos azuis

cristalinos.“Primeiracolocaçãoemtodososdesafios.Combinado?”Sophieconcordou,semconvicção.“Somosumadupla”,disseTedros,fazendocovinhasaosorrir,roçandoo

rostodelaumaúltimavezantesdesairpelaportadosSempre.Sophie foi arrastando-se pelo palco até a porta dos Nunca, e parou.

Virou-selentamente.Agathaestavasentadanosbancoscor-de-rosa,totalmentesozinha.“Eulhedissequemeulugareraaqui,querida”,Sophiesuspirou.“Você

simplesmentenãoouviu.”Agathanãodissenada.“TalvezoDiretordaEscoladeixevocêvoltarpracasasozinha”,Sophie

disse,amansandoavoz.Agathanãosemexeu.“Vocêprecisafazeralgunsamigos,Agatha”,Sophiesorriugentilmente.

“Agoraeutenhoumpríncipe.”Agathasóolhouemseusolhos.Sophieparoudesorrir.“Eutenhoumpríncipe.”Elabateuaportaviolentamenteatrásdesi.

Page 238: Escola do bem e do mal

Na aula de Enfeiamento, Manley pediu que os quinze competidoresNunca elaborassem um disfarce que afugentasse um Sempre “à primeiravista”.ApoçãodeHesterfezseucorpointeiroirromperemespinhos.AdeAnadil deixou sua pele tão fina que era possível ver todas as suas veias.Enquantoisso,Sophieesmagavagirinosparaficarnovamentecomherpes,mas,emvezdisso,poralgummotivo,surgiunelaumchifreemespiraleumrabodecavalo.

“Pois o que é mais assustador para uma princesa do que umunicórnio?”,rosnouManley.

Na aula de Capangas, os Nunca classificados tiveram que domar umGigantedeFogo,umgrandalhãode trêsmetros,depele laranjaecabelosem labaredas. Sophie tentou ler seus pensamentos, mas todos os seuspensamentos eram na língua de Gigante. Por sorte ela lembrou-se dealgumaspalavrasemGigante,queAgathalheensinara.

GIGANTEDEFOGO:Eporqueeunãodeveriamatá-la?SOPHIE:Euconheçoessecavalo.GIGANTEDEFOGO:Nãoestouvendocavalonenhum!SOPHIE:Étãograndequantosuacueca.

CástorinterviuantesqueoGiganteacomesse.EntãoLadyLessopediuqueosNuncaselecionadoscitassemumfeitiço

quesópudesseserdesfeitoporquemotivessefeito.“Respostas?”Tremendo,osNuncaergueramtabuletasentalhadasemgelo:

HESTER:PetrificaçãoANADIL:PetrificaçãoARACHNE:PetrificaçãoSOPHIE:FeitiçoEspecial

“Quem dera o amor fosse a resposta para tudo”, disse Lady Lesso,entregandoaSophieoutrapontuaçãomínima.

“Oqueaconteceu?”,Tedroscensurou-aenquantoaempurravapelafiladosSempre.

“Ésóumcomeçoruim...”

Page 239: Escola do bem e do mal

“Sophie,vocênãopodeestarnaquelaFlorestasemmim!”ElaseguiuosolhosdeleatéascarasfeiasdosSempre.Quandochegara

Prova,todoselesvãoquerervingança.“Apenasfaçaoqueestavafazendoantes!”,Tedrosimplorou.Sophiecerrouosdentesenquantocaminhavadevoltaaoseuquarto.Se

AgathapodiasedarbemnaEscoladoBem,então,elapodiasedarbemali!Sim,elaferveriaolhosdesapo,aprenderiaalínguadeGigante,cozinhariauma criança se fosse preciso! (Ou, pelo menos, supervisionaria.) Nada aimpediriadealcançaro felizesparasempre!Elaestufouopeito, irrompeuportaadentroecongelou.

Suacamatinhadesaparecido.Oespelhotinhasidoquebrado.E acima dela estavam todas as suas antigas roupas, mutiladas e

penduradasemforcas,comocadáveresdecapitados.Emsuacama,AnadilergueuosolhosdolivroMatandobelasgarotas,e

HesterergueuosolhosdoseuMatandogarotasaindamaisbelas.Sophieapressou-seatéoescritóriodoúltimoandar.“Minhascolegasde

quartoqueremmematar!”LadyLessosorriu,desuamesa.“Esseéoespíritodacoisa.”Aportafechou-semagicamentenacaradeSophie.Sophie acovardou-se no corredor escuro. Na semana anterior era a

garotamais popular da escola! E agora não conseguia nemvoltar ao seuquarto?

Ela limpou os olhos. Não importava, não émesmo? Logomudaria deescola,etudoissoficariapratrás.Tinhaogarotoquetodasqueriam.Tinhao seu príncipe! Duas bruxas imbecis não eram páreo para o amorverdadeiro!

Vozesecoaramdecima.Elaabaixou-senasombra...“Hester disse que quem matar Sophie durante a Prova será sua

ajudante de capitã no ano que vem”, disse Arachne, ao descer a escada.“Mastemquepareceracidental,ouseremosexpulsas.”

“TemosquesuperaraAnadilparapoderfazerisso!”,disseMona,comapeleverdecorando.“Imaginemseelamatá-laantesdaProva!”

“Hesterdissedurante aProva.AtéVexeBrone sabemdisso.Vocês jáouviramoplanodelesparamatá-la?ElesvasculharamolagodoBemparaencontrarosovosrestantes.Aquelagarotajáera!”

“Não posso acreditar que ficamos ouvindo as palestras daquelatraidora”, Mona disse, irada. “Quandomenos esperássemos ela nos faria

Page 240: Escola do bem e do mal

usarcor-de-rosaebeijarosSempre!”“Ela humilhou todos nós, e agora terá que pagar”, disse Arachne,

estreitandoseuúnicoolho.“Somosquatorze.Elaéumasó.Osnúmerosnãoestãoaseufavor.”

Asrisadasecoarampelaescadaúmida.Sophienãosaiudoescuro.Nãoeramapenassuascolegasdequarto.A

escolainteiraaqueriamorta.Agoranãohavianenhumlugarseguro.Nenhumlugar,exceto...NofinaldeumcorredorvelhoeescuroaportadoQuarto34abriuuma

fresta,apósaterceirabatida.Duaspupilasnegrasespiaram.“Olá,bonitão”,Sophiecantarolou.“Nemtente–vocêéamantedeumpríncipe,éumafalsa,uma...”Sophietampouonariz,passoudiretoporHort,etrancou-oforadeseu

novoquarto.Hortbateue choramingoudo ladode foradurantevinteminutos, até

quefinalmenteSophiedeixou-oentrar.“Vocêpodemeajudaraestudaratéahorado toquede recolher”, ela

disse,borrifandooquartocomlavanda.“Masnadadedormiraqui.”“Essequartoémeu!”,Hortfezbico,estateladonochãocomseupijama

pretoestampadocomsapinhosverdesdecarafeia.“Bem,euestouaqui,nãoestou?Emeninosemeninasnãopodemser

colegas de quarto, portanto, esse não pode ser seu quarto”, disse Sophie,deitando-senacamadele.

“Masondeeuvouficar?”“OuvidizerqueoSalãoComunitáriodaMalíciaébemconfortável.”IgnorandoosresmungosdeHort,Sophiemergulhounostravesseirose

segurouumavelaparalerasanotaçõesqueeletinhafeitonaaula.Elatinhaque ganhar todos os desafios no dia seguinte. Sua única chance desobreviver à Prova era entrar com Tedros e esconder-se atrás de seuescudootempotodo.

“Parahumilharum inimigo, transformá-lonumagalinha:Bantapareodirosti?”,elaestreitouosolhos.“Issoestácerto?”

“Sophie,comovocêsabequenãoéumavilã?”,Hortbocejou,curvadonochãoqueimado.

“Eumeolhonoespelho.Hort,suacaligrafiaépodre.”“Quandomeolhonoespelho,pareçoumvilão.”“Issoprovavelmentesignificaquevocêéumvilão.”

Page 241: Escola do bem e do mal

“Meu pai disse que vilões não podem amar, independentemente dequalquercoisa.Queéantinaturalerepulsivo.”

Sophie identificou algumas palavras rabiscadas. “Para congelar umSempre,esfriesuaprópriaalma...”

“Portanto,eudecididamentenãopossoamar”,disseHort.“Torne-a mais fria do que achou que seria possível... Depois, diga as

palavras...”“Masseeupudesseamar,amariavocê.”Sophievirou-se.Hortestavaroncandobaixinho,nochão,comotraseiro

paracima,mostrandoossaposzangados.“Hort,vocênãopodedormiraqui”,eladisse.Hortencolheu-semais.Sophiearrancouascobertasefoimarchandoatéele...“Tomeisso,PeterPan”,dizia,baixinho.Sophieficouolhandoenquantoeletremiaesuava,encolhidoformando

umabolinha.Elavoltouàscobertasbolorentas.Comavelaacesatentouestudar,mas

asfungadasdeleembalaram-naemumtransee,derepente,erademanhã.O segundo dia foi como o primeiro, com Sophie ganhandomais três

últimasposições,sendoaterceiraemCapangas,quandoelanãoconseguiufazerodedoacenderatempodedesarmarumtrollfedorento.

Ela pôde ver as veias saltando no pescoço de Tedros enquanto ele apuxavapelafiladoalmoço,tampandoonariz.

“Eudevoperderdepropósito,ouvocêquerentrarnoTestetrêshorasmaiscedo?”

“Estoutentandoomáximopossível...”“ASophiequeeuconheçonãotenta,elavence!”Elescomeramemsilêncio.“Ondeestáafadamadrinhadelaagora?”,SophieouviuBeatrixdizer.Do outro lado do campo, Agatha fazia seu dever de casa com Kika,

viradadecostasparaeles.No dia seguinte, os desafiantes passaram as duas primeiras aulas

experimentandoosuniformesdaProva:túnicasazul-escurasfeitasdeumatelasedosadearame,ecapasdelãcomcapuzebrocadovermelho.Comotrintaalunosusariamasmesmascapas,seriaimpossíveldistinguirSempredeNunca,issosefossepossívelsequerenxergarascapasazuisnaFlorestaAzul. Quando o assunto era roupas, Sophie geralmente era toda ouvidos.

Page 242: Escola do bem e do mal

Hoje,porém,elaestavacomacabeçamergulhadanasanotaçõesdeHort.AauladeLadyLessoseriaaseguir,eelaprecisavatiraroprimeirolugar.

“Um vilãomata por um propósito: destruir seu Nêmesis. Aquele queficamais forte quando você enfraquece. Só quando ele estámorto é quevocêsesentesaciado”,disseaprofessoradepelerepuxada,batendoosaltopelocorredor.“Éclaroque,comoapenasosmelhoresNuncaterãosonhoscomNêmesis,amaioriadevocêspassaráavidainteirasemtiraravidadeninguém. Considerem-se sortudos. Matar exige a mais pura Maldade.Nenhumdevocêsjáépuroosuficienteparamatar.”

Sophieouviumurmúriosemsuadireção.“MascomoaProvadosContoséumexercício inofensivo”, LadyLesso

sorriu pra ela, “por que não fazermos a preparação com meu desafiopreferido...”

Elafezsurgirumaprincesafantasma,comcachoscastanhos,bochechasrosadaseosorrisomaisdocequeodeumbebê.

“ExercíciodeAssassinato.Quemmatá-ladaformamaiscruel,ganha.”“Finalmente,algoútil”,disseHester,deolhoemSophie.Embora a câmara estivessemais fria do que nunca, a pele de Sophie

brilhavadetantosuor.Comoaprincesaestavatrancadaatrásdeumaportaedesconfiadade

estranhos,osNuncaemtreinamentotinhamquesercriativosparamatá-la.Monaenfeiou-see, fingindosermascate,ofertouumbatomenvenenadoàprincesa.DepoisqueLadyLessomaterializououtradonzela,Anadilbateuem sua porta, e deixou um buquê de flores carnívoras do lado de fora.Hestertransformou-seemumlindoesquilo,eofertouumbalãocintilanteàsuavítima.

“Oh,obrigada!”,disseaprincesa, radiante,enquantoobalãopuxava-acada vez mais para o alto, na direção dos filetes afiados de gelo quependiamdoteto.

Sophieficoudeolhosfechadosduranteamaiorpartedotempo.“Queméopróximo?”,disseLadyLesso,prendendoumanovaprincesa

atrásdaporta.“Ah,sim.Você.”ElatamboriloucomsuasunhascompridasevermelhasnacarteiradeSophie.Tsc,tsc,tsc.

Sophiesentia-seenjoada.Assassinato?Mesmosendoumfantasma,elanãopodiaassassin...

O rosto da Fera morrendo surgiu em sua mente, e ela ficou branca.Aquilofoidiferente!EleeradoMal!Qualquerpríncipeteriafeitoomesmo!

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“Peloqueparece,outrofracasso”,disseLadyLesso,sarcástica.Olhandoparaela,SophiepensouemTedrosperdendoafénela.Pensou

emquatorze vilões convencidos de serempuros o suficiente paramatar.Pensouemseufinalfelizescapando...

ASophiequeeuamonãotenta...Apertando os maxilares, ela irrompeu pela porta, passou pela

professorasurpresa,comodedoreluzindoemrosa...ParaprenderumSemprenogelo...Elabateunaporta.Esfriesuaprópriaalma...Aportaabriu-se,ealuzdeseudedodiminuiu.Era seupróprio rosto olhandopara ela, porém comos longos cachos

lourosqueelatinhaantesdaFera.Paravenceressedesafioelatinhaquematar...asimesma.

SophieviuLadyLessosorrindo,debochada,nocanto.“Possoajudar?”,perguntouaprincesaSophie.Apenasumfantasma.Sophiecerrouosdentesesentiuseudedoarder

maisumavez.“Vocêpareceumaestranha”,disseaprincesa,corando.Maisfriodoquevocêachoupossível...Sophieapontouodedoacesoparaela.“Minhamãemedisseparanuncafalarcomestranhos”,disseaprincesa,

nervosa.Diga!A ponta do dedo de Sophie piscou – ela não conseguia encontrar as

palavras...“Euprecisoir.Minhamãeestáchamando.”Mate-a!Mate-a,agora!“Tchau”,disseaprincesa,fechandoaporta...“BANTAPAREODIROSTI!”Puf! A princesa transformou-se em uma galinha. Sophie pegou-a nos

braços, estilhaçou a janela congelada comuma cadeira e soltou a ave nocéu.

“Voe,Sophie.Vocêestálivre!”Agalinhatentouvoar,depoispercebeuquenãoconseguia,edespencou

rumoàmorte.“Pelaprimeiravez,sintopenadeumanimal”,disseLadyLesso.

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Outra15ªposiçãocuspidanorostodeSophie.

TalvezaúnicacoisaqueSophiegostassenaEscoladoMalfosseofatodequehaviamuitoslugaresparachorar.Elaenfiou-seatrásdeumarcoemruínasecaiuemprantos.ComopoderiaencararTedros?

“InsistimosparaquetireSophiedaProva.”SophiereconheceuavozroucadoprofessorManley.Elasaiudetrásdo

arcoeespioupeloburacodafechadura,olhandoasaladeaulapútrida.Noentanto,ascadeirasquehabitualmenteeramocupadasporvilõesestavamagora repletas pelos professores das duas escolas. A professora Doveypresidia a reunião, do púlpito de caveira de dragão, que ela ornamentoucomumpesodepapelemformadeabóbora.

“OsNuncaplanejammatá-la,Clarissa”,concluiuocarecaeespinhentoManley.

“Bilious, nós temos medidas seguras para impedir a morte de umaluno.”

“Vamostorcerparaquesejammaissegurasdoqueháquatroanos”,eledisparoudevolta.

“AchoquetodosconcordamosqueamortedeGarrickfoiumacidente!”,disseaprofessoraDovey.

Houveumsilêncioagourentonasala.Nocorredor,Sophiepodiaouviraprópriarespiraçãoofegante.

GarrickdeGavaldon.LevadocomBane.Banehaviasidoreprovado.Garrickhaviamorrido.Ocoraçãodelaestavadisparado,apertadojuntoàscostelas.Irmosvivaspracasaénossofinalfeliz.Agathasempreestiveracerta.“HáoutromotivoparaqueSophiesejaretiradadaProva”,disseCástor,

seriamente.“AsfadasdisseramqueelaeogarotoSempreplanejamatuarcomoumadupla.”

“Comoumadupla?”,aprofessoraDoveyficouboquiaberta.“UmSempreeumaNunca?”

“Imagineseelesganhassem?”,oprofessorSheeksdeuumgritoagudo.“ImagineseissoseespalhassepelaFloresta?”

“Portanto,ouelamorre,oudestróiaescola”,lamentouManley,ecuspiunochão.

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“Clarissa,essaéumadecisãofácil”,disseLadyLesso.“Masnãoháprecedentesquejustifiquemremoverumalunoqualificado

deumaProva!”,protestouaprofessoraDovey.“Qualificada! Ela foi reprovada em todos os desafios desta semana!”,

disseManley.“Ogarotoconvenceu-adequeelaédoBem!”“Talvez ela esteja apenas sentindo a pressão da Prova”, opinou a

princesaUma,alimentandoumacodornaemseuombro...“Ouelaenganouatodosnós,fazendo-nospensarqueelafosseamaior

esperança do Mal!”, disse o professor Sheeks. “Ela deveria ter sidoreprovadaantesdaProva!”

“Entãoporquenãofoi?”,perguntouaprofessoraAnêmona.“Todas as vezes em que tentamos reprová-la outro aluno ficava em

últimolugar”,disseManley.“Alguémimpediu-adeserreprovada!”OsprofessoresdoMalvociferaramconcordando,furiosos.“Faz total sentido”, disse a professora Dovey, de cima. “Então algum

intrometido misterioso, que ninguém nunca viu, entra em sua torre einterfereemsuasavaliações.”

“Você descreve o Diretor da Escola muito bem, Clarissa”, disse LadyLesso.

“Nãosejaridícula,LadyLesso.PorqueoDiretordaEscolainterferirianaavaliaçãodeumaluno?”

“Porquenãohánadaqueeleadorariamaisdoquevero‘melhor’alunodoMal ganharpor trásdoescudodoBem”, rosnouLadyLesso comseusolhosvioleta,piscandofreneticamente.“Umaalunaqueatéeu, tolamente,achei que tivesse esperança. Mas se Sophie ganhar com aquele príncipepatético,eunãoficareiolhando,Clarissa.NãovoupermitirqueoDiretordaEscola, nem você, nem suas bestas arrogantes destruam o trabalho deminhavida.Agora,ouçam-me.DeixemaSophiecompetirnaquelaProvaeestarãoarriscandomaisdoqueapenasavidadela.Estãoarriscando-seaumaguerra.”

Asalaficouemsilênciomortal.AprofessoraDovey limpouagarganta. “Talvezelapossacompetirno

anoquevem...”Sophierelaxou,aliviada.“VocêserendeaoMal!”,disseoProfessorEspada.“Sóparaprotegeragarota...”,disseDovey,baixinho...“MasogarotoSempreaindavaiamá-la!”,alertouAnêmona.

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“UmasemananaSaladaCondenaçãoconsertaráisso”,disseLadyLesso.“AindanãoconseguiencontraraquelaFera”,disseSheeba...“Entãoarranjeumanova!”,rosnouLadyLesso.“Quetalumavotação?”,palpitouUma.“VOTAÇÃO É COISA DE MARICAS!”, rugiu Cástor, e os professores

fizeramumrebuliço.AcodornadeUmabombardeouosprofessoresdoMalcomcocô,Cástortentoucomê-laePóluxfezofavordeperdernovamentesua cabeça, até que alguém assobiou com autoridade. Todos viraram-separaohomemempé,nocantodasalaqueimada.

“Essaescolatemuma,eapenasumamissão”,disseoprofessorSader.“ProtegeroequilíbrioentreoBemeoMal.SeaparticipaçãodeSophienaProva perturbar esse equilíbrio, então ela deve ser desqualificadaimediatamente. Para nossa sorte, a prova desse equilíbrio está diante deseusolhos.”

Todososolharesdesviaram-se. Sophie tentouveroqueelesestavamolhando,depoispercebeuquetodosolhavamemdireçõesdiferentes.

“Todos concordam que o equilíbrio está intacto?”, perguntou oProfessorSader.

Ninguémdiscutiu.“Então,SophiecompetiránaProvadosContos,enãotemosmaisnadaa

discutir.”Sophieengoliuumgrito.“Sempretãosensato,August”,disseLadyLesso, levantando-se.“Ainda

bemqueosfracassosdagarotagarantiramqueelapassaráamaiorpartedaProvasemomeninoparaprotegê-la.Vamostorcerparaqueelamorratãobrutalmentequeninguématreva-searepetirseuserros.Somenteentãoa história dela terminará comomerece. Talvez até de forma apropriadaparaumapintura.”

Elasaiudasala,eosprofessoresdoMalaseguiram.Enquanto os professores do Bem saíam, murmurando uns com os

outros, em pares, a professora Dovey e o professor Sader saíram porúltimo. Eles caminhavam em silêncio, a echarpe dela batendo no ternoverdedele.

“Eseelamorrer,August?”,perguntouClarissa.“Eseelaviver?”,disseSader.Clarissaparou.“Vocêaindaacreditaqueéverdade?”

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“Acredito.AssimcomoacreditoqueéverdadequeoStoriancomeçouseucontodefadas.”

“Masissoéimpossível...éumaloucura...é...”,Clarissaficouhorrorizada.“Foiporissoquevocêinterferiu?”

“Aocontrário,eunãointerferi”,disseSader.“Nossodeverédeixarqueahistóriasigaseucurso...”

“Não!Oquevocê...”,amãodaprofessoraDoveyfoiatésuaboca...“Foipor isso que você enviou uma menina para arriscar sua vida? Por queacreditaemsuafalsaprofecia?”

“Hámuitomaisemjogoaquidoqueavidadeumagarota,Clarissa.”“Ela é só uma menina! Uma menina inocente!”, a professora Dovey

engasgou, com lágrimas furiosas brotando de seus olhos. “O sangue delaestáemsuasmãos!”

Quandoelasumiu,chorandoescadaabaixo,osolhosdoprofessorSaderenevoaram-sepelasdúvidas.

ElenãoconseguiaverSophieagachadaaoseulado,tentandoparardetremer.

EmmeioàsfolhasdaClareira,Kikaembrulhou-semelhoremseuxaleelambeusuaespigademilhoapimentada.

“Então,eupergunteiatodasasgarotasseelasdiriamsimaTristan,etodasdisseramquenão!Portanto,issosignificaqueeletemqueconvidaramim! É claro que ele poderia ir sozinho,mas se ummenino vai ao bailesozinhoelesórecebemetadedaavaliação,eTristangostadeusaraSaladeEmbelezamento,portantoeledecididamentevaimeconvidar.Bem,Tristanpoderiaconvidarvocê,masvocêdisseaeleparasecasarcomTedros,entãoeunãoachoqueelegostedevocê.Nãopossoacreditarquevocêtenhaditoaquilo.Comosepríncipespudessemcasarunscomosoutros.Então,oquenósfaríamos?”

Agatha mordeu sua espiga para fazê-la calar-se. Do outro lado daClareira ela viu Sophie e Tedros discutindo vorazmente, na entrada dotúnel de árvores. Parecia que Sophie estava tentando desculpar-se eabraçá-lo–talvezatébeijá-lo–,masTedrosaafastava.

“Vocêestámeouvindo?”Agatha voltou-se para ela. “Espere. Então, se uma garota não for

convidadaparaoBaileelaéreprovada,esofreumapuniçãopiordoquea

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morte.MasumgarotoquenãovaiaoBaile recebemeiaavaliação?Masémuitojusto,hein?”

“Porque é a verdade”, disse Kika. “Um menino pode escolher ficarsozinho, se quiser. Mas se uma garota acaba sozinha... ela talvez sejamorta.”

Agathaengoliuemseco.“Issoéridículo...”Algocaiuemseucesto.Agatha ergueu os olhos e cruzou com o olhar de Sophie, enquanto

Tedrosarrastava-aparaafiladosSempre.EnquantoKikaprosseguiafalando,Agathatirouumalindarosadeseu

cesto, e viu que era feita de saco de aniagem. Com o maior cuidado eladesfezaflornocolodovestido.

Obilhetetinhaapenastrêspalavras.Precisodevocê.

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20Segredosementiras

Abaratadisparouporbaixodaportadoquarto66, equasepuloudesuacasca.Elaficouboquiaberta,olhandoovidroquebrado,osvestidoscomnós,eastrêsbruxasdormindo–esaiudepressaantesquealguémavisse.

Contudo,umadelasviu,sim,abarata.Eocisneemsuabarriga.

Remexendo as antenas de um lado para o outro, Agatha seguiu operfumedeSophiepelaescadaeoscorredoresúmidos(quasesucumbindoa uma furtiva barata macho no caminho), até encontrar o salãocomunitário.AprimeiracoisaqueviuládentrofoiHort,semcamisa,comorostoretorcidoevermelho,comose fosseumgarotinho fazendo forçanaprivada.Comumúltimogemido,eleolhouparabaixo,paraseupeito,eviudoispelosnovinhosemfolha.

“É!Queroverquetalentopodesuperarisso!”

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No sofá ao lado, Sophiemergulhava o nariz em Invocaçõesde feitiçosparaidiotas.

Elaouviudoisruídosdeinsetoeergueuosolhos,aflita.Hortestufouopeitoepiscou.Elavirou-se,horrorizada,depoisviurabiscosdebatomnochão,atrásdosofá.

SophiedesprezavaosbanheirosdoMal,mas,pelomenos,eramsegurosparaencontros.OsNuncapareciamterfobiadebanheiros,eevitavam-nostotalmente(elanãotinhaideiadoquelhescausavaessemedo,oudeonde

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elesfaziamsuasnecessidades,maspreferianãopensararespeito).Aportarangeu,eelaentrounaescuraceladeferro.Haviaduastochasnaparedeenferrujada, alongando as sombras dos cubículos. Enquanto seguia até oúltimo,viualguémnu,porentreasfrestas.

“Roupa?”Sophiepassou-asporbaixodaportadacabine.AportaseabriueAgathasaiucomopijamadesaposdeHort,debraços

cruzados.“Eunãotenhomaisnada!”,Sophielamuriou.“Minhascolegasdequarto

acabaramcomtodaaminharoupa!”“Ninguémgostadevocêultimamente”,Agatharespondeu,escondendo

odedoaceso.“Porqueserá?”“Olhe, desculpe-me! Eu não podia simplesmente ir pra casa! Logo

quandofinalmenteconseguimeupríncipe!”“Você?Vocêarranjouseupríncipe?”“Bem,amaiorpartefuieu...”“Vocêdissequequeriairpracasa.Dissequeéramosumadupla!Foipor

issoqueteajudei!”“Nóssomosumadupla,Agatha!Todaprincesaprecisadeumaauxiliar!”“Auxiliar!Auxiliar!”,Agathaberrou.“Ora,entãovamosvercomonossa

heroínasesaisozinha!”Elaafastou-se.Sophiepegou-apelobraço.“Eutenteibeijá-lo!Masagora

eleduvidademim!”“Mesolte...”“Euprecisodasuaajuda...”“Enãovouteajudar”,Agathadisse, livrando-sedelacomcotoveladas.

“Vocêéumamentirosa,umacovardeeumafraude.”“Entãoporquevocêveio?”,disseSophie,comosolhoscheiosdeágua.“Cuidado.Lágrimasdecrocodilodãorugasdecrocodilo”,Agathadisse,

daporta,debochando.“Porfavor.Eufareiqualquercoisa!”,Sophiedebulhava-seemlágrimas...Agatha virou-se. “Jure que você vai beijá-lo na primeira chance que

tiver.Jureporsuavida.”“Eujuro!”,Sophiegritou.“Euqueroirpracasa!Nãoqueroqueelesme

matem!”Agathaficouolhandopraela.“Ahn?”

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Sophie contou-lhe, histericamente, gestos e vozes incluídos, sobre areuniãodosprofessores,osdesafiosfracassados,eabrigacomTedros.

“Estamos chegando bem perto do fim, Sophie”, disse Agatha, agorabrancacomoumfantasma.“Alguémsempremorrenofinaldeumcontodefadas!”

“Oquevocêquerqueeufaçaagora?”,Sophiedeuumgritoagudo.“GanheaProva,ebeijeTedrosnoinstanteemqueganhar.”“Maseunãovouconseguirsobreviver!TenhotrêshorassemoTedros

parameproteger!”“Vocênãoestarásozinha”,Agatharesmungou.“Não?”“Vocêterásuafadamadrinhabarata,embaixodesuagola,paratirá-la

dosproblemas.Sóquedessavez,sevocênãobeijaropríncipenahora,vouamaldiçoá-lacomtodasaspragasdoMalqueconheçoatéquevocêofaça!”

Sophiepassouseusbraçosemvoltadela. “Ah,Agatha,souumaamigaterrível,mastereiavidainteirapararecompensá-la.”

Passosecoaramnocorredor. “Vá!”,Agathasussurrou. “Preciso fazeramogrificação!”

Sophie deu-lhe um último abraço, radiante de alívio, saiusorrateiramente do banheiro e voltou à proteção de Hort. Um minutodepois,umabaratasaiuatrás,edisparouparaaescada.

Nenhumadasduasnotouuma tatuagemvermelhaacesapor entre assombras.

Tradicionalmente,nãohaviaaulasnavésperadaProva.Emvezdisso,os15Sempreeos15Nuncaclassificadosganhavamumtempoparafazerum reconhecimentodaFlorestaAzul. Então, enquantoos alunosquenãotinhamsidoescolhidostrabalhavamseustalentoscircenses,SophieseguiuTedrospelosportões,cientedogeloentreeles.

Emboraosoutrosterrenostivessemcaídopresasdeumalentamorteoutonal, a Floresta Azul reluzia, mais viçosa do que nunca, sob o sol domeio-dia. Por toda a semana os alunos tinham tentado arrancar de seusprofessores quais seriam os obstáculos que os desafiantes enfrentariam,maselesafirmavamnãosaber.ODiretordaEscolaelaboravaaProvaemsegredo,dandoaosprofessoressomenteopoderdeprotegerasbordasdo

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terreno.Osprofessoresnãopodiamsequerassistir àcompetição,poiselelançavaumvéudefeitiçossobreaFlorestaazulportodaanoite.

“O Diretor da Escola proíbe nossa interferência”, a professora Doveymurmurou para a turma, claramente perturbada. “Ele prefere que asProvas simulem os perigos da Floresta, além da razão e daresponsabilidade.”

Quando, porém, os competidores aglomeraram-se Floresta adentroatrás de Sophie e Tedros, nenhum deles podia acreditar que dali a umanoite esse lindo lugar se transformaria em um corredor polonês. Juntos,SempreeNuncapassaramporlindassamambaias,virampequenosgambásnopinheiral,oRiachoAzulrepletodetrutas,atéselembraremdequeeraminimigos,esedividirem.

TedrospassouporSophie.“Siga-me.”“Euvousozinha”,dissebaixinho.“Nãomereciganharsuaproteção.”Tedros voltou-se. “Beatrix disse que você trapaceou para obter um

primeirolugar.Issoéverdade?”“Claroquenão!”“Entãoporquevocêfracassounosdesafiospré-Prova?”AslágrimasbrotaramdosolhosdeSophie.“Euqueriaprovarquepodia

sobreviversemvocê.Paraquevocêseorgulhassedemim.”Tedrosficouolhandopraela.“Você...perdeudepropósito?”Elaassentiu.“Vocêémaluca!”,eleexplodiu.“OsNunca...elesvãomatá-la!”“VocêarriscariaavidaparaprovarqueeusoudoBem”,Sophiefungava.

“Tambémestoudispostaalutarporvocê.”PoruminstantepareceuqueTedrosiabaternela.Entãooruborsumiu

de seu rosto, e ele tomou-a nos braços. “Quando eu passar por aquelesportões,prometaquevocêestarálá.”

“Euprometo”,Sophiechorou.“Porvocê,euprometo.”Tedros olhou em seus olhos. Sophie fez um beicinho, com os lábios

perfeitamentepintadoscomgloss...“Vocêestácerta,vocêdevemesmoseguirsozinha”,disseseupríncipe,

recuando. “Você precisa sentir-se confiante sem mim. Principalmentedepoisdeperdertantosdesafios.”

“Mas...mas...”“FiquelongedosNunca,estábem?”

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EleapertouamãodelaedisparouparaalcançarosgarotosSemprenaplantaçãodeabóboras.AvozafiadadeChaddickecoou.“Aindaéumavilã,companheiro.Nãoganharátratamentoespecialdenossaparte...”

SophienãoouviuarespostadeTedros.Ela ficousozinha,embaixodeumaárvoreazuldevisco.

“Aindaestamosaqui”,eladisse.“Talvez se você tivesse repetido asminhas falas como eu as ditei!”, a

baratarespondeu,embaixodesuagola.“Três horas sozinha não é tão ruim”, Sophie suspirou. “Quer dizer,

Nuncanãopodemusarfeitiçosnãoautorizados.Tudooquepodemosfazeré iniciaruma tempestade, ounos transformarembichospreguiça.Oqueelespoderiamfazercontramim?”

Algo passou raspandopela cabeça dela. Elamoveu-se rapidamente, eviu um entalhe no tronco do carvalho, exatamente onde ela estava. OendiabradoVexestavaemumgalhoacimadela, comumavara afiadanamão.

“Eusóestavacuriosoparasaberasuaaltura”,disseVex.Obalofo e carecaBroneveiopor trásdo carvalho, e checou amarca.

“Sim,elavaicaber.”Sophieficouolhandoparaosdois,boquiaberta.“Como eu disse”, Vex falou, remexendo as orelhas pontudas. “Apenas

curioso.”“Voumorrer!”,Sophiechorou,enquantofugiadaFloresta.“Nãocomigoaqui”,disseAgatha,comasantenasencolhidas.“Eusupero

todoselesemsuasaulas,evousuperá-losnovamenteamanhã.Concentre-seapenasemconseguirobei...”Algobateuraspandosobreacabeçadela.

“Masquediab...”Agathaolhouparabaixo,paraumabaratamortanagrama.Maisquatro

aterrissaramaoladodela.SophieeAgathaolharamparacima,eviramumanévoarosaemanando

das torres do Mal. Insetos mortos estavam chovendo das sacadas, paradentrodaClareira.

“Oqueestáhavendo?”,disseSophie.“Extermínio”,disseumavoz.Sophievoltou-seeviuHester,queestavadebraçoscruzadosjuntoaos

portões da Floresta. “Aparentemente elas estão perambulando por nossa

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escola à noite. Não podemos correr o risco de uma praga, é claro.Principalmentedepoisquesuaamigaficoudoente.”

HesterpegouumdosinsetosquecaiunoombrodeSophie.“Alémdisso,éumbom lembreteparaqualquercoisaqueestejaonde

nãodevesseestar,nãoacha?”Ela lambeu a barata e voltou à Floresta, esmigalhando as folhas com

seuspés.Sophierespiroufundo.“Vocêachaqueelasabequevocêéumabarata?”“Claroquesabe,suaidiota!”VozesdeNuncaaproximaram-sedaFloresta.“Vá!”,Agathasussurrou,descendopelapernadeSophie.“Nãopodemos

nosencontrarmais!”“Espere!ComovousobreviveràProv...”Contudo,Agatha tinhadesaparecidopelo túneldoBem,abandonando

Sophieàprópriasorte.

Comoas fadas faziamas inspeçõesdotoquederecolherpartindodosandares mais baixos, Agatha teve o tempo exato para escapar pelopassadiçoeatravessarparaatorredaCoragem.OquartodeSader,assimcomo os de todos os professores, era anexo ao seu escritório. Se elaarrombasseocadeadopoderiasurpreendê-loemsuacama.Nãoimportavaseoimbecilnãoquisesseresponderàssuasperguntas.Elaoamarrarianacama,sefossepreciso.

Agathasabiaqueeraumplanoterrível,masqueescolhaelatinha?Elanãopodia entrar escondidanaProvaagora, e Sophie jamais sobreviveriasozinhaportrêshoras.Sadereraaúltimaesperançadeiremparacasa.

A escada conduzia diretamente ao seu escritório, a porta solitária nosexto piso da Coragem. Havia uma série de bolinhas azuis pairando nomármore.Agathapassouosdedosnelas.

“Nenhumalunoéautorizadonesteandar”,ecoouavozdeSader.“Volteaoseuquartoimediatamente”.

Agathapegouamaçanetaeapontouseudedoacesoparaatranca...Aportaabriuumafresta,sozinha.Sadernãoestavaládentro,masnãofaziatempoqueelehaviasaído.Os

lençóis de seu quarto estavam remexidos, o chá em sua mesa estavamorno...Agathapercorreu furtivamenteoescritório,vendoasprateleiras,

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ascadeiraseochãocobertosporlivros.Amesaestavaenterradasobtrêspalmos de livros, mas havia alguns abertos em uma pilha, com linhasressaltadaspormarcadoreseestrelasprateadasnasmargens.Elapassouamãoemumadessas linhasmarcadas,eumacenanebulosaexplodiuparaforadolivro,comumaagudavozdemulher:

“Umfantasmanãopodedescansaratéquetenharealizadoseupropósito.Paraissoeleprecisausarocorpodeumvidente.”

Agatha viu um fantasmamagricela trombar para dentro do corpo deum homem barbado antes que a névoa voltasse para a página em umredemoinho.Elatocouaslinhasestreladasdolivroseguinte:

“Um espírito pode durar somente alguns segundos no corpo de umvidente,atéqueambossejamdestruídos.”

Diante de seus olhos, dois corpos flutuantes fundiram-se, depoisdesintegraram-sefeitopó.

Elacorreuosdedospormaislinhasestreladas.“Somenteosvidentesmaisfortespodemabrigarumespírito...”“Amaioriadosvidentesmorreantesqueofantasmapossa...”Agathafezumacareta.Oqueeraessaobsessãocomvidentes...Ocoraçãodelaparou.Profecia,disseramosprofessores.SeráqueSaderpodiaverofuturo?Seráqueelepodiaverseelaschegariamemcasa?“Agatha!”AprofessoraDoveyestavaboquiaberta,naporta.“OalarmedeSader...

acheiquefosseumabarata...umaaluna!Foradacamadepoisdotoquederecolher!”

Agathapassoupor ela emdireçãoà escada. “Duas semanas limpandobanheiros!”,aprofessoragritou.

Agathaolhoupara tráseviuaprofessoraDoveypassandoamãonoslivrosde Sader e franzindoo rosto. Ela pegouAgatha olhando, e bateu aportamagicamente.

Naquelanoite,asduasgarotassonharamcomseuslares.Sophie sonhou que estava fugindo deHester emmeio a uma neblina

rosa.ElatentavagritaronomedeAgatha,masumabaratasaíadesuaboca.Finalmente,elaencontrouumpoçodepedra,nadouatéofundoeseviuem

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Gavaldon. Ela sentiu braços fortes, e seu pai carregou-a para casa, quecheiravaacarneeleite.Elaprecisavairaobanheiro,maselealevouparaacozinha, onde havia um porco pendurado em um gancho. Uma mulhertamborilava unhas vermelhas na bancada. Tac, tac, tac. “Mãe?”, Sophiegritou.Antesqueamulherpudessevirar-se, seupaideu-lheumbeijodeboanoite,abriuofornoejogou-aládentro.

Sophie acordou com um solavanco tão forte que bateu a cabeça naparedeedesmaiou.

AgathasonhouqueGavaldonestavaemchamas.Umatrilhadevestidosnegros em chamas levava a GravesHill, e quando ela chegou ao topo dacolina,encontrouumasepulturaemvezdasuacasa.Elaouviusons ládedentro, e começou a cavar, ouvindo vozes, agoramais próximas, até queacordoueviuquevinhamdaportaaolado...

“Vocêdissequeeraimportante!”,Tedrosrugiu.“AsNuncadizemqueelatrapaceiacomAgatha!”,disseBeatrix.“SophienãoéamigadeAgatha!Agathaéumabruxa...”“Asduassão!Agathatransforma-seembarataparasoprarasrespostas

noouvidodela!”“Umabarata?Vocênãoestásósendomesquinhacomseusciúmes,está

completamentemaluca!”“Asduassãovilãs,Teddy,elasestãousandovocê!”“ÉvocêqueestádandoouvidosaosNunca!SabeporqueSophieperdeu

seusdesafios?Elaqueriamemanteremsegurança!Seissoéservilã,então,oquevocêé...”

Comobarulhodoventoremexendoascortinas,Agathanãopôdeouviro restante, mas logo a porta bateu e Tedros foi embora. Agatha tentouvoltar adormir,maspegou-se encarandoa flor cor-de-rosadepapelquetremulavaemsuamesinhadecabeceirademármore,comoumarosaemumtúmulo.

Eladeuumgrito,tomadaporumaideia.Todososquartosdocorredorpareciamescuros,excetoosdosSempre

selecionados, que ficaram acordados até o amanhecer para preparar-separa a noite seguinte. Com seu traje de renda, Agatha foi, descalça e naspontasdospés,atéaescadadevidrorosa,comosolhosgrudadosnoalto,atentaparafadasouprofessores.

Cinco andares abaixo, Tedros observava-a pelo vão da escada,subitamenteimaginandoseBeatrixnãoteriaditoaverdade.

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Deixandoasbotas láembaixo,eleseguiuAgathapelopassadiço,atéoquarto andar da torre da Honra, totalmente ocupado pela Biblioteca daVirtude.Agachado,comsuasmeias trêsquartospretas,eleespioueaviudesaparecer na imensidão de livros de dois andares, mantidosimpecavelmente por uma tartaruga, que dormia profundamente sobre oimenso livrodenotasdabiblioteca, coma caneta tinteironamão.AssimqueAgathaencontrouoqueprecisava, saiu sorrateiramente,passoupeloréptil e pelo príncipe, que não conseguiu ver o livro em suas mãos. Eladiminuiuospassosnopassadiçoazulado,elogosumiu.

Tedroscerrouosdentes.Queplanosassassinosabruxateria?SeráqueSophie estava participando e planejando traí-lo? Será que as duas vilãsainda eram amigas? O príncipe ficou em pé, com o coração disparado –entãoeleouviuumsomestranhoeraspado.

Aovirar-se,viuapenadacanetaterminardeescrevermagicamentenodiário da tartaruga, e voltar à mão da criatura que roncava. Fixando osolhoseleaproximou-separaveroregistro.

Tedrosfungou.Repreendendoasimesmoporduvidardesuaprincesa,elefoipegarsuasbotas.

AsregrasdaProvadosContoserampoucaseprecisas.Noinstanteemqueosolsepusesse,osdoisprimeirosdesafiadoresadentrariamaFlorestaAzul. A cada quinze minutos mais dois ingressariam, segundo suascolocaçõesanterioresàProva,atéqueoúltimoparentrasse,maisdetrêshoras após o primeiro. Uma vez lá dentro, os Nunca poderiam atacar osSemprecomseustalentosequalquerfeitiçoaprendidoemaula,enquantoosNuncapoderiamdefender-secomarmasecontrafeitiçosaprovados.AsinvocaçõesdoDiretordaEscolaassombrariamaambos.Nãohaviaoutrasregras.

Eradeverdodesafiadorreconheceroperigomortalesoltarseulençoencantado; no instante em que tocasse o solo ele seria seguramenteremovidodaProva.Diantedoprimeirovislumbredoraiardosol,osuivosdos lobos anunciariam o fim, e quem passasse pelos portões seria

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declarado vencedor. Nunca tinha havido mais de um. Com muitafrequência,nãohavianemmesmoum.

Oinvernochegouemummomentocapcioso,soprandoventosglaciaisna Clareira, bemno instante em que os desafiadores entraram. Cada umdos garotos Sempre carregavaumapipa azul em formatode escudo, quecombinava com a capa azul-marinho e uma única arma; amaioria haviaescolhidoarcose flechas(instruídospeloprofessorEspadaaassustaremlugar de ferir), embora Chaddick e Tedros tivessem optado por espadaspesadas de treinamento. Ali perto, as meninas Sempre ensaiavamsilenciosamente seus chamados de animais, e tentavam parecer tãoindefesasquantopossívelparaqueosmeninosasprotegessem.

Dooutro ladodocampo,osNuncaclassificadosagachavam-se juntoaárvoressecas,vestidoscomsuascapas,olhandoosalunosquenão foramescolhidos aglomerados dentro dos túneis. Os Sempre não designadosestavamprontosparaumafestadepijamas,comtravesseiros,cobertores,cestos de tortas de espinafre, crepes de frango, pimentões recheados,pudime jarrosdesucodecereja.Enquanto isso,osNuncanãonomeadospairavamporpertodeseu túnel,dechinelosegorros,prontospara fugirdiantedoprimeirosinaldehumilhaçãodesuaequipe.

Enquanto os lobos distribuíam os lenços encantados – brancos paraSempre e vermelhos para Nunca –, Cástor e Pólux alinhavam oscompetidores pela ordem de entrada. Por terem obtido as piorescolocaçõesnosdesafiospré-Prova,SophieeKikaentrariamexatamenteaopôrdosol.BroneeTristanentrariamquinzeminutosdepois,seguidosporVexeReena,eosparesprosseguiramatéHestereTedros,queentrariamporúltimo.

Nofinaldafila,opríncipepegouseulençobrancocomolobo.“Nãovouprecisardisso”,murmurouele,enfiandoolençonabota.Na frente da fila, Sophie segurava seu lenço com força, pronta para

soltá-lonoinstanteemqueentrasse.Eladesejouterprestadomaisatençãodurante as provas de roupa. Sua túnica estava larga no decote, a capaarrastava-seno chão, e o capuz azul caía tanto em seu rostoquepareciaqueelanemtinhacabe...

Comoelapodiapensaremroupas!Frenética,olhavaamultidão.AindanenhumsinaldeAgatha.

“Ouvimosboatosdequealunosnãoqualificados talvez tentementrarescondidos na Prova”, disse Pólux, ao lado de Cástor, uma sombra

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imponente com duas cabeças, na luzminguante. “Este ano nós tomamosprecauçõesextras.”

Emprincípio,Sophieachouqueeleestivessesereferindoaoslobosqueguardavam cada centímetro do portão. Mas depois Cástor acendeu umatocha,eelaviuqueosportõesnãoerammaisfeitosdeouro–eramfeitosdeimensasaranhaspretasevermelhas,magicamenteentremeadas,ecomseusferrõesemposição.

Seucoraçãomurchou.ComoAgathapoderiaentraragora?“Sealguémtrapacear,merecemorrer.”Elavirou-se.“Eeunãodescartonenhumdaquelesvilões”,disseTedros,comorosto

dourado rubro pelo frio. Ele pegou amão dela, ainda segurando o lenço.“Vocênãopode,Sophie.Nãopodesoltá-lo.”

SemaajudadeAgatha,Sophieapenasassentiu,impotente.“Quandonosjuntarmoselesfarãoqualquercoisaparatirarumdenós–

Sempre, Nunca, e também o Diretor da Escola”, disse seu príncipe. “Nósprecisamos proteger um ao outro. Preciso que você proteja minharetaguarda.”

Sophieassentiu.“Vocênãotemnadaadizer?”“Umbeijodeboasorte?”,eladisse,esganiçada.“Nafrentedaescolainteira?”,Tedrosdeuumsorriso.“Éumaideia.”Sophieascendeueprojetouoslábios,aliviada.“Umbemcomprido”,ela

suspirou.“Sóparagarantir.”“Ah,eulhedareiumbemcomprido”,sorriu.“Quandoganharmos.Antes

decarregá-ladiretoparaoCastelodoBem.”Sophieengasgou.“Mas...mas...imaginesenósnão...”Tedrospuxoudelicadamenteasedavermelhadeseusdedostrêmulos.“SomosdoBem,Sophie”,disse,enfiandoolençonofundodobolsodo

casacodela.“EoBemsemprevence.”Enosolhosdele,deumlímpidoazul,SophieviuHesterrefletidaatrás

dela,comocapuzabaixadosobreorosto,aprópriafiguradaMorte.Num instante, os lobos empurraram-na, junto com Kika, para lados

opostos do Portão Norte. Aranhas peludas sibilaram em seu rosto, e elaperdeuoar.Empânico,desviouosolhosparaatorredoDiretordaEscola,altaneira,acimadaFloresta.Comosúltimosraiosdesol,elapôdeversuasilhueta observando da janela. Sophie virou-se rapidamente para que

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Agathaasalvasse,massóviuocéuescurecendoacimadaFloresta.DatorredoDiretordaEscolaveioumjorrodecentelhasprateadasquecobriramaFloresta,comoumanévoaembaçada...

“OPRIMEIROPARESTÁPRONTO!”,Cástorrugiu.“Não...espere!...”PatasagarraramSophieportráselançaram-naemdireçãodasaranhas.

Centenasdepinçaspeludascutucavamsuapeleenquantoelagritava.Comumestalo,elaspararamdesemexermagicamente,deixando-asozinhanaentradadaFloresta,iluminadapelastochas.Oslobosuivaram.Asaranhaslacraramaretaguarda.

AProvahaviacomeçado.

Page 262: Escola do bem e do mal

21ProvadosContos

Aterrorizada,Sophievirou-separairemdireçãoaKika.Elastinhamdeficarjuntas.

Mas Kika disparava em direção ao leste, aos Campos de Mirtilo,espiandoparatercertezadequeSophienãoaseguia.

SophieseguiurapidamentepelatrilhaoesterumoaoRiachoAzul,ondeela poderia esconder-se sob a ponte. Ela imaginou que a Floresta estariaumbreu,efezHortensinar-lheumfeitiçodefogoduranteocafédamanhã.Contudo, naquela noite as árvores estavam fluorescentes, comumbrilhoazulado, e a floresta reluzia em um tom ártico. Embora o efeito fosseagourento,elarespiroualiviada.Umatochaflamejanteatransformariaemalvofácil.

Page 263: Escola do bem e do mal

À medida que adentrava o campo de samambaias, Sophie sentiafolhagens azul-neon passando por seu pescoço. Seu corpo relaxou. Elahaviaimaginadoumcercoininterruptodehorrores.Noentanto,aFlorestaestavamaiscalmadoquejamaisvira.Nadadeanimaisespreitando-a.Nadade corujas agourentas.Apenasela, emumpradoetéreo, eodedilhardaslâminasdevento,comoascordasdeumaharpa.

Enquantocaminhavacomdificuldadeporentreassamambaiasdesuaaltura, pensava em Agatha. Será que alguma professora teria flagrado-aenquantotramavaumplano?SeráqueHesterteriainterceptado-a?

OsuordeSophiepinicavatodooseucorpo.OuseráqueAgathaficoucommedodemeajudar?

Page 264: Escola do bem e do mal

Pois se ela ganhasse junto com Tedros, ninguém poderia negar-lhe atroca de escolas. Poderia governar o Bem como sua Capitã beneficente.Poderiaterseupríncipeparasempreeumavidaderainha.Sophiecerrouosdentes.Seaomenosnãotivessefeitoaquelapromessasobrevoltarpracasa!SeaomenosconseguisseganharestaProvasozinha,então,nãoteriaquecumprirapromessa!

Ela parou de repente.Mas eu posso! Olhe pramim! Estou indomuitobem...

Um grito ecoou pela floresta. Centelhas brancas espalharam-se pelocéu.Kikahaviaserendido.

As pernas de Sophie amoleceram. Quanto tempo levaria para que oagressor de Kika a encontrasse? O que ela estava pensando? Ela nãopoderiadurarali!Elapegouseulençonobolso,emvermelhovivoe...

CRAC!Algocaiudoaltoeaterrissouaosseuspés.Elaolhouparabaixoeviuumrolodepergaminhoenvoltoporumatiradetecido.

Otecidobrilhava,cheiodesapinhoszangados.Sophieolhouparacimaeviuumapombabrancanoaltodasárvores.A

pombatentouvoarparabaixo...CRAC!Umabarreiradelabaredasexplodianocéuquandoelasequerse

aproximavadasárvores.Aescolanãotinhadeixadobrechas.Sophieabriurapidamenteopergaminhochamuscado...

Page 265: Escola do bem e do mal

Sophie encurvou-se, aliviada.Uma tulipa!Ninguéma encontraria!Ah,comoelapôdeduvidardeAgatha?AdoceelealAgatha!Culpada,Sophiefezuma bola com o lenço vermelho, enfiou-o de volta no bolso e seguiu apomba.

ParachegaraoJardimdeTulipaspelatrilhaelateriaqueatravessaraMata Turquesa, depois o Campo de Abóboras, e finalmente o Bosque doSalgueiro Adormecido. Enquanto seguia Agatha, distanciando-se dassamambaiaseadentrandoamatafechada,folhasfluorescentesacendiamatrilha com uma sombria luz azulada. Sophie podia ver cada arranhão emarca nos troncos, incluindo o rasgo que Vex tinha feito quando mirouacimadesuacabeça.

Ovento soprou subitamente, e as folhas cintilaramsobrea trilha.ElanãoconseguiaenxergarAgathaporentreotopodasárvores.Sophieouviasonsabafados–humanos?animais?–,porém,nãoparavaparadescobrir.Ogrito de Kika ainda retumbava em sua cabeça, e ela disparou pela trilhapuxando sua capa, que arrastava-se pelo chão. Tropeçando em raízes etocos, abaixava-sediantede galhosperfurantes epulavapara escapardetentáculosde folhasazuis, atéquevislumbrouasabóboraseumapombaimpaciente,nomeiodedoistroncosreluzentes...

Haviaalguémentreelas.Umagarotinhadecapavermelhaecapuz.“Comlicença?”,Sophiedisse.“Euprecisopassar.”A estranha de vermelho olhou para cima. Não era, em absoluto, uma

criança.Elatinhaolhosazuisenevoadoseumblushrosadonasbochechasenrugadas e manchadas, e seus cabelos grisalhos e volumosos estavampresosemduasmarias-chiquinhas.

Sophiefranziuorosto.Elaodiavavelhas.“Eudissequeprecisopassar.”Amulhernãodissenada.Sophiemarchouemsuadireção.“Vocêésurda?”A velha deixou cair a capa, revelando o corpo inchado e sujo de um

falcão.Sophierecuou,ouvindoumgrasnidodequasefurarostímpanos,evirou-se rapidamente, vendo mais duas mulheres-pássaro vindo em suadireção.

Harpias.Agathalheensinara.Têmfalamansa?Andamàscegas?Entãoelaviuasgarrasretorcidas,afiadascomolâminas.Comedorasdecrianças.

Page 266: Escola do bem e do mal

Elasavançavamcomgritosterríveis,eSophieabaixou-sesobumaasa,enquantoosmonstrosguinchavamemergulhavamatrásdela,comascarashorrendas contorcidas pela cólera. Ela corria pelos arbustos para seesconder, mas cada canto da mata estava iluminado de azul. As harpiasavançavamnoseupescoçoetentavammexeremseubolso,tocandoasedavermelha–opédeSophieseprendeuemsuacapa,rasgando-a,eelacaiuemumamoita.Garras cravaram-se em suas costas e ela gritou enquantoera erguida do chão, debatendo-se, tentando pegar o lenço. As harpiasabriramosbicosnafrentedorostodela...

Amataficouescura.Gritos agudos de confusão – garras soltaram-na e ela despencou na

terra.Naescuridão,elaremexeugravetos,atéquesuasmãosencontraramum tronco, e ela se escondeu atrás dele. Dava para ouvir as garrasbuscandoaterracegamente,eosgemidosfuriososseaproximando.Sophiedeu um salto para trás e bateu em uma rocha, soltando um grito. Osmonstrosouviram-naeavançaramemdireçãoàsuacabeça...

Amataacendeu-senovamente.As harpias ergueram seus bicos e viram Agatha, a pomba, pairando

acimadelas,comapontadaasareluzindoemlaranja.Agathaergueuaasae a mata acendeu-se. Apagava e acendia, apagava e acendia, até que asharpias entenderam, e voaram em direção a Agatha, que arrulhavaassustadoramente,paradaondeestava...

“Voe!”, Sophie gritou, mas Agatha debatia-se, como se tivesse seesquecido de como voar. Monstros gêmeos avançaram na direção dapombaindefesa,voandomaisaltoemaisdepressa,atéterem-naaoalcancedesuasgarras...

Labaredasexplodiramdooutroladodabarreira,comumestalidocruel,eelescaíram,comaspenaseocorpocarbonizados.

A última harpia grasnia junto aos dois corpos flamejantes. Elalentamenteolhouparacima.Agathasorriaeerguiasuaasaacesa.Amataacendeu-se.Omonstrosevirou...

Sophieesmagousuacabeçacomumapedra.NosilênciodaFloresta,elaarfavaesangrava,sozinhanochão,comas

pernastrêmulassobacapa.Sophieolhouparaocéu.“Euquerotrocardelugar!”

Page 267: Escola do bem e do mal

Apomba, contudo, já estavanametadedo caminhoparaoCampodeAbóboras. Sophie não pôde fazer nada exceto segui-la, segurandofirmementeolençoemseubolso.

Do outro lado do campo silencioso, as abóboras brilhavam,fluorescentes, emmil tons de azul. Sophie entrou na trilha de terra queserpenteava entre as orbes acesas,murmurando para simesma que elaseramapenasabóboras,equenenhumDiretordeEscolapoderiatorná-lasassustadoras.Elaapressou-se,paraacompanharAgatha...

Silhuetasescurassurgiramnatrilha.Duaspessoasàsuafrente.“Olá?”,Sophiechamou.Elasnãosemexeram.Comocoraçãodisparado,aproximou-se.Haviamaisdoquedois.Pelo

menosdez.“Oquevocêsquerem!”,gritou.Nadaderesposta.Ela chegou mais perto. Elas tinham mais de dois metros de altura,

corposespigados,rostosdecaveiraemãostortasfeitasde...Palha.Espantalhos.Sophiesuspirou.Os espantalhos perfilavam os dois lados da trilha, dezenas deles,

formando cruzes de madeira, protegendo as abóboras com os braçosestendidos. De trás, as abóboras reluzentes iluminaram seus perfis,revelando camisas marrons esfarrapadas, cabeças carecas de saco deaniagemechapéuspretosdebruxa.Enquantocaminhavalentamenteentreeles,Sophieviuseusrostosterríveis–olhosdeaniagemrecortada,focinhosirregularesdeporcos,ecosturadossorrisoslascivos.Assustada,elaseguiuemfrente,deolhonocaminho.

“Ajude-me...”Elacongelou.Avozvinhadoespantalhoaoseulado.Umavozqueela

conhecia.Nãopodeser,pensouSophie.Elaprosseguiu.“Ajude-me,Sophie...”Agoranãohaviadúvida.Sophieforçou-seaseguiremfrente.Minhamãeestámorta.“Estouaquidentro...”,disseavozatrásdela,fracadeagonia.OsolhosdeSophieencheram-sedelágrimas.Elaestámorta.

Page 268: Escola do bem e do mal

“Estoupresa...”Sophievirou-se.Oespantalhonãoeramaisumespantalho.Umhomemqueelaconheciaaolhava,dacruzdemadeira.Sobochapéu

preto,seusolhoseramcinzentosesempupilas.Emvezdemãoseletinhadoisganchosdependurarcarne.

Sophieficoupálida.“Pai...?”Eleestalouopescoçoedesprendeu-secuidadosamentedesuacruz.Sophierecuou,trombandodiretamenteemoutroespantalho.Também

eraseupai,despregando-sedesuacruz.Sophievirou-serapidamente,eviuque todos os espantalhos eram seu pai, descendo de suas estacas ecaminhandoemsuadireção,comosganchosdependurarcarnereluzindosobafrialuzazulada.

“Pai...soueu...”Eles continuaram vindo. Sophie recuou até uma cruz... “Sou eu...

Sophie.”Bem adiante, a pomba olhou para trás e viu Sophie acovardando-se,

gritando enquanto os espantalhos permaneciamparados tranquilamente,aindanaslateraisdatrilha.Agathaarrulhou...

Sophie tropeçou em uma abóbora e caiu. Ela voltou-se e viu, váriasvezes,orostoimpiedosodeseupai.“Pai,porfavor!”

Osespantalhosergueramseusganchos.OcoraçãodeSophieparou...elaengasgou, dando seu último suspiro, e fechou os olhos para o açodilacerante...

Água.Águafrescaecristalina.Seusolhosabriram-sediantedeumatempestade.O caminho estava deserto. Espantalhos em cruzes despedaçavam-se

sobachuva.Pairandoacimada tempestade,Agathamoveua asaquebrilhava, e a

chuvaparou.Sophie encolheu-se no caminho inundado. “Não posso... não posso

sobreviveraisso...”Uivosàdistância.Osolhosdelaarregalaram-se.OparseguintehaviaadentradoaFloresta.Alarmada, a pomba deu um gorjeio para ela, e voou em direção ao

BosquedosSalgueiros.

Page 269: Escola do bem e do mal

Tremendo,Sophieseguiucambaleando,impressionadaporumcoraçãotãoassombradoaindacontinuarbatendo.

AtrilhaestreitaecompridaqueatravessavaosSalgueirosAdormecidosestendia-secolinaabaixo,assimSophiepodiaverobrilhofantasmagóricodoJardimdeTulipas,queficavaaopédovale.Sómaisumúltimoimpulsoeela estaria segura entre as flores. Porum instante, seperguntouporqueAgathanãoa transformaraemumaárvore,ouuma folhadecapim,pertodos portões – então, lembrou-se que Yuba lhes ensinara a identificarárvoresencantadas,equeocapimseriapisoteadoatéofimdanoite.Não,Agatha tinha escolhido bem. Uma tulipa emmeio amilhares. Ela estariaseguraatéoamanhecer.

EnquantoSophiepassavasorrateiramenteporentreossalgueiros,seusolhos buscavam a próxima ameaça. No entanto, as árvores cor de safiramantinham sentinela ao longo da trilha, com seus galhos compridosreluzindocomolustres.Àmedidaqueseguia,asfolhascaíamsobreelaemumritmolentoebelo,comomiçangascaindodepulseiras.

Temalgumacoisaaqui.Nãoseiluda.Os lobos uivaram novamente junto aos portões, e seu estômago

apertou-se.Agora havia pelo menos outros quatro na Floresta: Brone, Tristan...

depois,quem?Porqueelanãodecorouaordem!Ela tinhaquechegaràstulipas antes que a encontrassem! Sophie saiu em disparada, seguindo apombaquevinhaemcima.Elanãonotouquequantomaisdepressaseguia,mais depressa as folhas dos salgueiros caíam, banhando-a com suspeitoscometasdeluz.

Então,suacabeçaficoupesada,suaspernasficaramfracas...Não...Banhadadefolhas,desacelerouatéseguirmancandoecambaleando.SalgueirosAdormecidos...Voandoacimadela,Agathaolhouparatrásegritou.Sophiearrastava-separaa frente,sentindoocheirodastulipas...Mais

algunspassos...Eladesmoronouadezpalmosdasflores.Agatha moveu sua asa acesa, emitindo uma explosão de centelhas.

Sophienãosemexeu.Agatha tentou feitiçosdechuva,granizo,neve,masnadadereação.Frenética,grasnouacançãoprediletadeSophie,umaodeàprincesaeaoscasamentos...

Page 270: Escola do bem e do mal

OsolhosdeSophieentreabriram-se.Eufórica,apombacontinuouarrulhando,maisdesafinadaacadanota...Agathaengasgou.Capuzesazuis.Doisnamata,doisnoCampodeAbóboras,maisdoispertodosportões.

Nãodavaprasaberquemeram,masestavamtodosparalisados,tentandocuidadosamente discernir a origem da canção que tinham acabado deouvir.

Entãoelescomeçaramacorreremdireçãoàstulipas.AgathaolhouparaSophie,estateladanaterra...depois,paraoscapuzes

azuisquevinhamparamatá-la...Nochão,Sophiecravouasunhasnaterraerastejoualgunscentímetros

paraafrente.Percebendo sua fuga, os salgueiros desfolharam-se mais depressa,

paralisandoseusmúsculos.Agathadebatia-se,impotente,comseubicodepombaalternando-seentreSophieeseuscaçadores.

Ofegante,gemendo,Sophiearrastou-sepeloúltimopedaçodoterrenodos salgueiros e a terra sob ela transformou-se em pétalas. Exultante,desmoronou nas imensas flores azuis, inalando seu aroma, revivendoinstantaneamente.Elaenfiouumbotãodetulipanaboca,pegouobilhetedeAgathanobolso,seudedoreluziuemrosa...

“FLORADORAFLEUR...”Elacongelou.DooutroladodoJardimdeTulipas,BroneeVexsorriamparaela,com

doispeixinhosbrancosdebatendo-seemsuasmãos.“Éassimquevocêsvãomematar?”,Sophiefungou.“Peixes?”“PeixesdoDesejo”,corrigiuBrone,comopeixeenegrecendonasmãos

deles.“EnósdesejamosserCapitãesCapangas”,Vexriu,debochado.Osgarotoslançaramospeixesnoar–instantaneamenteelesinflaram,

chegandoaotamanhodocorpodeSophie,emergulharamemdireçãoaela,batendodentesdepiranha...

Petrificada,Sophiefechouosolhos,sentiuseudedoarder...Puf! Sua raposa rosa espantou os peixões, que caíram no chão como

bolas,quicando.Sophiefugiupassandoentreeles,comaspatasderrapandonastulipas...

Page 271: Escola do bem e do mal

Maisdepressa!Vocêprecisa irmaisdepressa! Seudedoreluzia,prontoparaajudar.Leopardo!Leão!Tigre!

Puf!Elasetransformouemumjavalilentoerosa,quegingavaesoltavapuns.Sophiegemeu,horrorizada.Ospeixesdesviaram-sedeumaárvoreevierampara cimadela. Ela estendeu seu casco reluzente e concentrou-semais...

Puf! Passou por entre eles, como uma gazela rosa, e ouviu os peixescolidindo-se.

Sophie foi mancando até uma clareira, ofegante. Uivos de lobosecoavam baixinho, vindos do portão, provocando arrepios em seu pelo.Maisinimigosacaminho.

Seus imensosolhos verdespercorriamo céu àprocuradeAgatha. Sóhaviaestrelaspiscandoparaela.

Ela olhou de novo para baixo e tomou um susto. Do outro lado daclareira,TristaneChaddickestavamsoboluar.Comumaexpressãogélida,Tristanposicionouumaflechaemseuarco.Chaddickpuxousuaespada.

Sophievirou-separacorrer...Reena impediu sua fuga.Aprincesaárabeassobiou, edois cães-lobos

douradossurgiramatrásdela,mostrandodentesafiados.Sophievoltou-seeviuArachnesaindodasárvorescomodedoaceso.

MaisdoisgarotosSemprecolocaramflechasemseusarcos.Com as pernas tremendo, a gazela rosa de Sophie estava cercada,

esperandoqueapombabrancaasalvasse.“Agora!”,Chaddickgritou...Osmeninosdispararamasflechas,Arachnepôsodedoemristeedois

cães investiramcontraela,enquantoelaesticavaapatarosae fechavaosolhos...

Flechas e palavrões voarampor cimade sua cabeçade cobra. Sophiechiou,aliviada,esquivando-separaasegurançadasárvores...atéqueumasombrapairousobreela.

Ocão-lobodeReenapulouepegou-acomaboca.Furiosa,Sophiesentiuseuchocalhodecobraardernumtomrosa...Umtraseirodeelefanteesmagouacabeçadocão,enquantoSophiesaía

da clareiranumestampido, com sua trombabramindode terror. FlechasdosgarotosSemprebatiamnasancasimensaseelaencolheu-senagrama,de tanta dor. Sophie deu uma olhada pra trás e viu dez assassinos

Page 272: Escola do bem e do mal

encapuzados e dois peixes dentuços vindo em sua direção.Irremediavelmentecercada,elaergueuatrombareluzentedeelefante...

Palavrões,flechas,espadas,peixes,passarampelaspenasdoperiquito-namoradodeSophie,queerguia-senoar...

Grasnandoemtriunfo,elavoavacadavezmaisalto,foradoalcancedasflechas.Entãoviuobrilhodechamasnabarreira.Sophierecuou,assustada,e sentiu algo enlaçar-se em sua asa. Uma chicotada de água lançava-a,lentamente,nadireçãodeumafiguraencapuzada,noRiachoAzul.

Sophie gritou por ajuda, porém mais chicotadas enroscaram-na,puxando-aporentreosgalhosatéseucapturador,quelançavaaágua,doriacho, com um dedo verde reluzente. Lentamente os filetes de águalevaramoperiquito-namoradodeSophieatésuasmãospálidas,enquantoasombrapuxavaseucapuz.

“Você teria sidoumagrandebruxa, Sophie”, disseAnadil, acariciandoseubico.“Atémelhordoqueeu.”

Opássaroolhouparacima,comolhossuplicantes.OsdedosdeAnadil esmagavam seupescocinho.Opássarodebatia-se

tentando respirar, mas Anadil apertava com mais força, e os olhos deSophie escureceram. Ela sabia que a última coisa que veria seria umaestrela cadente de fogo, que caía majestosa pelo céu, vindo direto nadireçãodabruxa,prestesaquebrarseupescoço...

Num lampejo, uma pomba em chamas roubou Sophie das mãos deAnadil,comsuasasasdefogo,esubiupelocéugélido.

Enquantoasflechasirrompiampelotopodasárvores,Agathaestendeuapontareluzentedesuaasaetransformou-asemmargaridasaovento.Elavoou pelo tempo que conseguiu, pegando fogo, com Sophie agarrada aosseuspés,depoismergulhouemumvaledepinheiros,eelascaíramnochão,rolandoumaporcimadaoutra,apagandoaschamas.

Choramingando, Agatha relutava para fazer reluzir a sua asachamuscada.Aluzpiscou–elaeSophieinstantaneamentetransformaram-se em humanas, ambas paralisadas de dor. Sophie deu uma olhada nosbraços nus de Agatha, marcados por queimaduras. Antes que pudessegritar,osolhosdeAgathaarregalaram-se,eelafezumcírculoemvoltadasduascomapontadeseudedolaranjabrilhante...“FloradoraPinscoria!”

Ambastransformaram-seemesqueléticosarbustosazulados.AnadilirrompeunovalecomArachne.Elasolharamocampodeserto.“Eulhedissequeelasaterrissaramnasabóboras”,disseArachne.

Page 273: Escola do bem e do mal

“Entãovánafrente”,disseAnadil.“Qualdenósvaimatá-la?”,disseArachne,virando-se...Anadilfezsurgirumraio,deixando-aboquiaberta.Elaarrancouolenço

vermelho do bolso de Arachne e jogou-o no chão. Centelhas vermelhasvoarampeloar,eArachnedesapareceu.

“Eu”,disseAnadil.Estreitando os olhos vermelhos, deu uma última longa olhada ao seu

redor.“Nick,euaviporaqui!”,disseChaddick,aliperto.Anadilsorriucruelmenteeseguiunadireçãodele.Novaleescuroesilencioso,doisarbustostremiam,ladoalado.Anoitetinhaapenascomeçado.

Do lado de fora dos portões dourados, os Sempre e os Nuncaselecionados esperavam que o nome de Sophie sumisse do quadro depontuação,comojáocorreracomodeKikaedeArachne.Contudo,ashoraspassavamemaisnomes sumiam–Nicholas,Mona,Tristan,Vex, Tarquin,Reena, Giselle, Brone, Chaddick, Anadil – e o de Sophie teimava empermanecer.

Será que Sophie e Tedros tinham se unido? O que essa vitóriarepresentaria?Umpríncipeeumabruxa...juntos?

Conforme as horas passavam, o Bem e o Mal trocavam olhares naClareira...primeiro,ameaçados...depois,curiosos...então,esperançosos...e,de repente, estavam aproximando-se uns dos outros, compartilhandocobertores,crepesesucodecereja.OMalachavaquehaviacorrompidooBem,eoBemachavaquetinhailuminadooMal,masnãoimportava.

Pois os dois lados logo tornaram-se um só, aclamando a revoluçãoPríncipe-Bruxa.

Nofriovaledospinheiros,doisarbustosesperavam.Esperavam no silêncio interrompido pelos gritos. Esperavam através

dos sons de colegas de classe lutando contra inimigos e contra amigostraidores.Esperavamenquantoalgocapturavaumalunoapósooutro,comruídos raivosos no Riacho. Esperavam enquanto trolls babões passavamcorrendo, empunhando martelos ensanguentados. Esperavam enquantocentelhas vermelhas e brancas pintavam o céu, até que apenas quatrocompetidorespermaneceram.

Page 274: Escola do bem e do mal

EntãoaFlorestaAzulcaiunosilêncioporumlongotempo.Afomedoíaemseusestômagos.Ofriocobriasuasfolhascomageada.

Osonoatacavaseussentidos.Masasduasplantascontinuaramenraizadasaté que o céu começou a ficar azul. Sophie segurava sua respiração,ansiandopeloraiardosol...

Então,Tedrosentroumancandonovale.Eleestavasemcapa,semespada,somentecomseuescudobrutalmente

marcado.Suatúnicaestavaemfarrapos,ocisneprateadoemseupeitonureluziaemmeioaosvergõeseaosangue.Opríncipeolhouparaocéuqueclareava. Ele encolheu-se junto a um pinheiro esquelético, fungandobaixinho.

“Corpadora volvera”, sussurrouAgatha. “Esse é o contrafeitiço. Vá atéele!”

“Quandoosolnascer”,Sophiesussurrouemresposta.“Eleprecisasaberquevocêestábem!”“Elesaberáemmaisalgunsminutos.”Tedrosdeuumsalto,ficandoempé.“Quemestáaí?”Os olhos dele desviaram-se para os arbustos de Agatha e Sophie.

Alguémsaiudassombras.Tedrosrecuouatéaárvore.“Ondeestásuabruxa?”,chiouHester,ilesa,usandoumacapalimpa.“Segura”,disseTedros,rouco.“Ah,entendo”,Hesterriucomsarcasmo.“Asuaduplajáera.”O príncipe ficou tenso. “Ela sabe que também estou seguro. Do

contrário,estariaaqui,paralutarcomigo.”“Vocêtemcertezadisso?”,disseHester,comosolhosnegrosfaiscando.“Isso é o que nos torna do Bem, Hester. Nós confiamos. Nós

protegemos.Nósamamos.Oquevocêstêm?”Hestersorriu.“Isca.”Ela estendeu a ponta do seu dedo, que reluzia em vermelho, e a

tatuagemdesprendeu-sedeseupescoço, inchando-secomsangue.Tedrosrecuou, chocado, enquantoodemôniodela entupia-sede sangue, ficandocada vez mais saturado, prestes a explodir. Sibilando um encantamento,Hesterficoucinza,esuapeleperdeutodaacor.Elamergulhounochão,emagonia,euivouemfúria,comoseestivessedespedaçandoaprópriaalma.Entãoaspartesdocorpododemôniodesprenderam-seumasdasoutras...cabeça,doisbraços,duaspernas.

Page 275: Escola do bem e do mal

Cincopedaçosseparados,todosvivos.Tedrosficoubrancocomoaneve.Oscincopedaçosdodemôniopartiramparacimadele,transformados

empunhaisemvezderaiosdefogo.Eledeucacetadasnacabeçaenapernaperfurantescomseuescudo,masumbraçocravouopunhalemsuacoxa.Comumgrito,eleinterceptouobraço,tirouafacadapernaesegurou-senaúnicaárvoredovale...

OarbustodeAgathabateunodeSophie.“Ajude-o!”“Paraacabaremcincopedaços?”,Sophieretrucou.“Eleprecisadevocê!”“Eleprecisaqueeufiqueemsegurança!”Umaperna de demônio lançou uma faca na cabeça do príncipe, e ele

pulou,bemnahora,paraumgalhomaisalto.Osoutrosquatromembrospartiramparacimadelecomospunhaiserguidos...

Encurralado,eleolhouparaHester, fracaeajoelhada,direcionandoosfragmentos do demônio, com o dedo aceso. Os olhos de Tedrosarregalaram-se,avistandoalgoentreasfolhas.

Sedavermelha.Nabotadela.Os fragmentos arremessaram cinco facas, todas apontando para seus

órgãos.Nahoraemqueperfuraramsuacamisa,elesaiudepertodaárvoreecaiuemcimadeseupulso,provocandoumruídohorrendo.

Hesteroviurastejandoemsuadireção.Elagiravaodedoloucamente,trazendo as partes do demônio com novas facas. Tedros encarou-a,enquantorastejavaemsuadireção.Olhandocomescárnio,Hesterergueuodedo, e os membros do demônio voltaram para matá-lo. Dessa vez nãohaveriaerro.Elarugiu,easfacasapontaramparabaixo–opríncipepulouparapegar-lheabota...

Hester abriu a boca, aterrorizada, quando Tedros prendeu seu lençovermelho no chão. As facas caíram no solo e as partes do demôniodesapareceram.EntãoHestertambémsumiu,comolhosarregalados.

Tedrosdespencoudecostas.Ofegante,estreitouosolhosparaocéucorderosa.Osolvinhachegando.

“Sophie”,elechamou.Elerespiroufundo.“SOPHIE!”As folhas de Agathamurcharam de alívio. Então ela viu as folhas de

Sophieafofando-se.

Page 276: Escola do bem e do mal

“Oquevocêestá...Vá,suatola!”“Agatha,eunãotenhoroupa.”“Pelomenosgriteparaqueelesaiba...”,Agathaparou.Nochão,umbraçodedemônionãotinhasumidointeiramente.Estava

remexendo-seemplenoar,forçando-seaficar.Entãoelearrastou-sepelagramaepegouumafaca.“Sophie...Sophie,vá...”“Osolvainasceraqualquerminuto...”“Sophie,vá!”OarbustodeSophievirou-seeviuafacaerguer-seacimadoombrode

Tedros.Elaengasgouetampouosolhos...Alâminamergulhou.Tedrosviu,tardedemais,quandoelaatingiuseu

coração.Um escudo esmagou o braço no chão. Com um grito, o membro do

demôniomurchouedesapareceu.Confuso, Tedros olhava para o corte raso em seu peito, e a faca

ensanguentadano centrode seu tórax.Estupefato, olhoupara cimae viuAgatha,cobrindooprópriocorpocomoescudodele.

“Aindanãoconseguidominarbemapartedaroupa”,elamurmurou.Tedrosdeuumsaltoeficouempé,chocado.“Mas...vocênemestáno...o

quevocê...”Ele viu um arbusto tremulando atrás dela. Tedros estendeu a ponta

douradadeseudedoreluzente–“Corpodoravolvera!”, Sophie caiupara afrenteeescondeuocorpoatrásdeumarbusto...

“Agatha,precisoderoupas!Teddy,vocêpodesevirar?”Tedros sacudiu a cabeça. “Mas a biblioteca... aquele livro... Você

trapaceoumesmo!”“Teddy,nóstivemosquefazê-lo...Agatha,socorro!”AgathaapontouseudedoqueimadoparaSophie,paraembrulhá-laem

vinhas,masTedrosdetevesuamão.“Vocêdissequelutariacomigo!”,gritou,comosolhosfixosemSophie,

atrásdoarbusto.“Vocêdissequemedariacobertura!”“Eusabiaquevocêficariabem...Agatha,porfavor...”“Vocêmentiu!”,disse,comavoz falhando.“Tudooquevocêdisseera

mentira!Vocêestavameusando!”“Isso não é verdade, Tedros! Nenhuma princesa arriscaria a própria

vida!Nemmesmooseumaisverdadeiroamor...”

Page 277: Escola do bem e do mal

O rosto de Tedros brilhava de tão enrubescido. “Então por que ela ofez?”

Sophie seguiu os olhos do príncipe para Agatha, toda marcada dequeimaduras.

Agatha viu os olhos de Sophie arregalarem-se lentamente, como sedescobrisse uma faca fincada em suas costas. Quando, porém, Agathatentousedefender,a luzdosol irrompeunovale,ebanhouseucorpodedourado.

Os lobos uivaram nos portões. Sons de crianças e passos explodirampelaFloresta.

“Elesconseguiram!”“Elesvenceram!”“SophieeTedrosvenceram!”Todoscorriamparadentrodovale.Empânico,Agathaacendeuodedo

esuapombavoouparalonge,bemquandoosalunosficaramàvista...“SempreeNunca!”,gritouum.“BruxaePríncipe!”,gritououtro.“VivaSophieeTed...”AFlorestaficouquieta.Deuma árvore, Agatha olhoupara baixo, para os Sempre e osNunca

não escolhidos que chegavam, depois para os competidores eliminados,magicamentecuradoselimpos,todosparalisados,aocaptaremacena.

Sophie acovardada atrás de umamoita. Tedros olhando-a fixamente,comosolhosemfogo.

Eelessouberamquejamaishaveriapaz.SempreeNuncaafastaram-se,comoeternosinimigos.Nenhum dos lados pôde ouvir a gargalhada vinda da torre, meio

sombreada,governandotodoseles.

Page 278: Escola do bem e do mal

22SonhoscomoNêmesis

“Vocêviumeupijama?”,HortchoramingavadoladodeforadaportadeSophie.“Aquelequetemossapinhos?”

Embrulhadanoslençóisdele,Sophieolhavaparaajanelaqueelahavialacradocomumcobertorpreto.

“Foimeu pai quem fez pramim”, Hort fungava. “Não consigo dormirsemele.”

NoentantoSophiesóolhavaparaajanelapreta,comosehouvessealgonaescuridãoquesóelapudessever.

Hort trouxemingau de cevada, ovos cozidos e legumes grelhados doSalão de Jantar, porém, ela não atendeu às suas batidas. Durante dias,Sophie só ficou deitada como um cadáver, esperando que seu príncipe

Page 279: Escola do bem e do mal

viesse.Logo,os seusolhos ficaramembaçados.Elanãosabiaquediaera.Não sabia se era noite ou dia. Ela não sabia se estava dormindo ouacordada.

Em algummomento, emmeio a essa névoa horrível, veio o primeirosonho.

Filetesempretoebranco,eentão,elasentiugostodesangue.Elaolhoupara cima, para uma tempestade de vermelho fervente. Ela tentava seesconder,mas estava presa a umamesa branca de pedra, amarrada porespinhosvioleta,seucorpotatuadocomescritasestranhasqueela jáviramas não se lembrava onde. Três bruxas velhas surgiram ao seu ladocantandoe tracejandoaescritaemsuapele,comdedos tortos.Asbruxascantavam cada vezmais depressa, até que uma faca de aço, longa e finacomoumaagulhadetricô,surgiunoar,acimadeseucorpo.Elatentousesoltar, mas era tarde demais. A faca caiu vingativa, a dor invadiu suabarrigaealgonasceudentrodela.Umasementebrancaepura,depoisumamassaleitosa,maior,maior,atéqueelaviuoqueera...Umrosto...umrostoembaçadodemaisparaver...

“Mate-meagora”,disseavoz.Sophiedeuumsolavanco,acordando.Agathaestavasentadanabeiradadesuacama,embrulhadanoslençóis

manchadosdeHort.“Querdizer,eunemquerosaberquemanchassãoessas.”Sophienãoolhoupraela.“Ora, vamos.Vocêpodepegar emprestadoomeuprendedordenariz

para a aula de Yuba.” Agatha ficou em pé, iluminada por um pequenoburaconajanela.“Terceirodiade‘Conheçaococôdeseuanimal’!”

Osilênciotensoseestendia.Agatha jogou-sena cama. “Oqueeudeveria ter feito, Sophie?Eunão

podiadeixá-lomorrer.”“Nãoécerto”,disseSophie,quasequeparasimesma.“Vocêeeu...isso

nãoestácerto.”Agathaaproximou-se.“Eusóqueroomelhorpravocê...”“Não”,disseSophie,deformatãoduraqueAgatharecuou.“Eusóqueriaqueagentefossepracasa!”“Nósnãovamospracasa.Vocêjáprovidenciouisso.”“Vocêachaqueeuquisisso?”,disseAgatha,aflita.“Porquevocêestáaqui?”

Page 280: Escola do bem e do mal

“Porque eu queria ver como você estava. Eu fiquei preocupada comvocê!”

“Não.Porquevocêestáaqui?”,disseSophie,olhandoparaajanela.“Naminhaescola.Nomeucontodefadas.”

“Porquetenteisalvá-la,Sophie!Tenteisalvarvocêdamaldição!”“Então, por que você está sempre amaldiçoando a mim e ao meu

príncipe?”Agathafezumacarafeia.“Nãoéculpaminha.”“Euachoque,nofundo,vocênãoquerqueeuencontreoamor,Agatha”,

disseSophie,comavozcalma.“Oquê?Claroque...”“Achoquevocêmequersópravocê.”Agathasentiuocorpointeiroenrijecer.“Issoé...”Elaengoliuemseco.

“Issoéumaimbecilidade.”“ODiretordaEscolaestavacerto”,disseSophie,aindasemolharpara

ela.“Umaprincesanãopodeseramigadeumabruxa.”“Masnóssomosamigas”,Agathagaguejou.“Vocêéaúnicaamigaquejá

tive!”“Você sabe por que umaprincesa não pode ser amiga de umabruxa,

Agatha?”, Sophie lentamentevirou-separa ela. “Porqueumabruxanuncatemseuprópriocontodefadas.Umabruxatemqueestragarumcontodefadasparaficarfeliz.”

Agathalutoucontraaslágrimas.“Maseunão...nãosouumabruxa...”“ENTÃOTENHASUAPRÓPRIAVIDA!”,Sophieberrou.Ela ficou olhando a pomba fugir pelo rasgo da janela preta, depois

voltouparadebaixodoslençóis,atétodaaluzsumir.

Naquela noite, Sophie teve seu segundo sonho. Estava correndo pelafloresta,mais faminta do que jamais estivera, até que encontrouumalcecomumrostohumano,omesmorostoleitosoeembaçadoqueelavirananoite anterior. Ela olhou mais atentamente, para ver de quem era, masagorao rostodoalceeraumespelhoeelaviu seu reflexonele.Contudo,nãoeraoseureflexo.

EraoreflexodaFera.Sophieacordousuandofrio,comosanguefervendoemsuasveias.

Page 281: Escola do bem e do mal

Doladodeforadoquarto34,Hortestavaencolhido,decueca,lendoAdádivadasolidãoàluzdevelas.

Abriu-se uma fresta na porta, atrás dele. “O que todo mundo estáfalandodemim?”

Hort ficou tenso como se tivesse visto um fantasma. Ele virou-se, deolhosarregalados.

“Euquerosaber”,disseSophie.Ela foi até ele, no corredor escuro, com as juntas estalando. Nem se

lembravaháquantotemponãoficavaempé.“Nãoestouvendonada”,disse,procurandoobrilhodocisnenopeito

dele.“Ondeestávocê?”“Aqui.”UmatochafoiacesaeelapôdeverHort.Cambaleouparatrás.Cada centímetro da parede atrás dele estava coberta com pôsteres,

banners,grafites–PARABÉNS,CAPITÃ!VENCEDORADAPROVA!LEITORAAORESGATE! – acompanhados de desenhos de Sempre sofrendomortesterríveis. Abaixo da parede, buquês de flores carnívoras cobriam o chão,commensagensescritasàmão,entreosdentesafiadosdasflores:

Sophiepareciaconfusa.“Nãoentendo...”“TedrosdissequevocêousouparaganharaProva!”,disseHort.“Lady

Lessobatizouissode‘ArmadilhaSophie’...dissequevocêenganouatéaela!Os professores estão dizendo que você é amelhor Capitã doMal que jáexistiu.Olhe!”

Sophieseguiuosolhosdeleatéumafileiradecaixasverdes,emmeioaosbuquês,embrulhadascomlaçosvermelhos.

Elaabriuaprimeiraeencontrouumcartãoquedizia:

Page 282: Escola do bem e do mal

ESPERO QUE VOCÊ SE LEMBRE DE COMO USAR ISSO. PROFESSORMANLEY

Embaixo,haviaumacapapretadepeledecobra.Nas caixas seguintes, Cástor lhe deu uma codornamorta, Lady Lesso

deixou uma flor entalhada em gelo, e Sadermandou sua capa da Prova,perguntandoseelapoderiagentilmentedoá-laàExposiçãodoMal.

“Quetruquedegênio”,Hortfranziuorosto,experimentandoacapa.“Seesconder como uma planta, esperar até que Tedros e Hester sobrassem,depois atacar e derrotarHester, enquantoTedros estava ferido.Mas, porquevocênãoacaboucomTedros?Todosestãoperguntando,maselenãodiznada.Eudissequefoiporqueosolnasceu.”

HortviuaexpressãodeSophieeseusorrisodesapareceu.“Foiumtruque,nãofoi?”OsolhosdeSophieseencheramde lágrimas.Elacomeçouasacudira

cabeça...Entretanto,haviamaisalgumacoisanaparedeàsuafrente.Umarosanegra,comumbilheteespetadonosespinhos,pingandotinta.Sophiepegouobilhetenasmãos.

“Sophie?Dequemé?”Comocoraçãoaospulos,Sophiesentiuocheirodosespinhosnegrose

amargos,envoltosporumperfumequeelaconheciatãobem.Entãoeraessaasuarecompensapeloamor.Ela amassou a rosa com amão, cuspindo as palavras de Tedros com

sangue.

“Issofarácomquevocêsesintamelhor.”No quarto 66, Anadil servia um caldo turvo e amarelado de seu

caldeirão em uma tigela, respingando todo o chão. Seus ratosimediatamente surgiram, agora vinte centímetros mais altos, mordendo,

Page 283: Escola do bem e do mal

engalfinhando-se para ver quem ganhava as primeiras lambidas dosrespingos.

“Seutalentoestávindoàtona”,Hesterdisse.Anadilsentou-senabeiradadacamadeHester,coma tigela. “Apenas

algunsgoles.”Hestersóconseguiutomarum,depoiscaiupratrás.“Eunãodeveriaterexperimentadoisso”,resmungou.“Elaéboademais.

Éumabruxaduasvezesmelhorqueeu...”“Shhh,nãoforçaabarra.”“Maselaoama”,disseDot,encolhidaemsuacama.“Ela pensa que ama”, disse Hester. “Assim como todas nós um dia

pensamos.”OsolhosdeDotarregalaram-se.“Por favor,Dot.VocêachaqueelaéaúnicaNuncaque jáseenvolveu

comamor?”“Hester,chega”,Anadilpressionou.“Não, vamos falar a verdade”, disse Hester, esforçando-se para se

sentar. “Todas nós já sentimos vibrações vergonhosas. Todas nós játivemosfraquezas.”

“Masessessentimentossãoerrados”,disseAnadil.“Nãoimportaquãofortessejam.”

“Éporissoqueesseéespecial”,disseHester.“Elaquasenosconvenceudequeelesestavamcertos.”

Oquartocaiuemsilêncio.“Entãooqueacontececomela,agora?”,perguntouDot.Hestersuspirou.“Amesmacoisaqueaconteceucomtodasnós.”Dessavez,osilênciofoirompidoporestalidosdistantes,emumritmo

lentoeameaçador.Astrêsgarotasesticaramopescoçoemdireçãoàporta,enquantoosestalosficavammaisaltos,cruéiselímpidos,comochicotadas.Osestalos tomaramocorredor,edepoispassarampeloquarto,que ficouemsilêncio.

Dotsoltouumpum,aliviada.A porta escancarou-se e as garotas gritaram – Dot caiu da cama, de

barriga...Um vento soprou os vestidos pendurados depois da tocha, acima da

porta,lançandocentelhasdeluznorostodeumasombra.

Page 284: Escola do bem e do mal

Oscabelosreluziam,espetadosealisados,pretoscomoosolhoselábiosborrados.Apelebrancadefantasmacontrastavacomoesmaltepreto,capapreta,eroupadecouropreta.

Sophie entrou no quarto, fincando o chão com suas botas pretas desaltoalto.

Hestersorriuparaela.“Bem-vindaaolar.”Dochão,Dotdesviavaoolharnervosodeumaparaoutra. “Masonde

vamosencontrarumanovacama?”Trêsparesdeolhoscruzaramcomosdela.Ela nem teve tempo para juntar seus petiscos. No corredor escuro e

úmido,Dotbatianaportadeferro,nosilênciodobanimento.Contudo,nãoadiantou.

Trêsbruxasfizeramumcovil,eeletinhaumnovodono.

Os Semprenem comemoraramquandoTedros recebeu seudistintivodeCapitão.Comopoderiam,seSophieohaviafeitodetolo?

“OMalestádevolta!”,gabavam-seosNunca.“OMaltemumaRainha!”EntãoosSemprelembraram-sedequeelestinhamalgoqueosNunca

nãotinham.Algoqueprovavaqueeramsuperiores.UmBaile.EaRainhanãoestavaconvidada.A primeira neve cobriu a Clareira com pedras de gelo que

bombardeavam os baldes dos Nunca, fazendo ruídos altos. Enquantotentavampegarqueijomofadocomseusdedoscongelados,eles lançavamolharescortantesparaasgarotasSempre,queperambulavamdelápracásem a menor preocupação com o clima. Como o Baile seria dali a duassemanas,asgarotasprecisavamcuidardospreparativos,poisosmeninosse recusavama convidá-lasantesdoCirco.Reena,porexemplo, esperavaqueChaddickaconvidasse,entãoelatingiuovestidodouniformeantigodamãe de modo que combinasse as cores com os olhos dele, de tomacinzentado. E se Chaddick convidasse Ava (ela flagrara-o olhando oretratodeBrancadeNevecomaresdecobiça,portanto,talvezelegostassedegarotasmaisclaras),entãoNicholastalvezaconvidasse,enessecasoelatrocariadevestidopelodeGiselle,queerabranco,paracombinarmelhorcomapelebronzeadadele.EseNicholasnãoaconvidasse...

Page 285: Escola do bem e do mal

“Minha mãe diz que Bondade é fazer com que as pessoas se sintamqueridas, mesmo quando você não as quer de modo nenhum”, suspiroupara Beatrix, que parecia entediada. Com Sophie fora da jogada, Beatrixsabia que Tedros era seu par. Não que ele tivesse confirmado isso. Opríncipe vinha ignorando a todos desde a Prova, carrancudo como umNunca. Agora Beatrix sentia seu astral infectá-la, enquanto o observavalançarflechasnaárvoresobaqualeleeSophiecostumavamsentar-se.

Tedros abriumais buracos no coração entalhado na árvore,mas nãoficou satisfeito. Após alguns dias de provocações, seus colegas tinhamtentadoanimá-lo.QuemseimportavaseelecompartilhavasuapremiaçãocomumagarotaNunca?Quemse importavaseelaoenrolouao longodocaminho?Aindaassim,eleganharaumaprovabrutal,eduraramaisdoquetodoselesládentro.Tedros,porém,sóviavergonhanaquilo,poisagoraelenão tinha nada demelhor do que seu pai. Um escravo dos erros de seucoração.

EeleaindanãotinhaditoaninguémsobreAgatha.Sabiaqueelaestavasurpresa comaquilo, pois ela retraía-se sempreque ele falavana saladeaula, como se esperasse que ele fosse expô-la a qualquer momento. Noentanto,emboraumasemanaanteseleadorariavê-lapunida,agorasentia-seconfuso.Porqueelaarriscaraavidaparasalvá-lo?Seráqueelaestavadizendo a verdade sobre aquela gárgula? Será que aquela bruxa poderiaser...Boa?

Elepensounelapercorrendooscorredorescomosolhosdesconfiadosdeuminseto...

Umabarata.FoiissooqueBeatrixdisse.Então, Agatha estivera ali, o tempo todo, ajudando Sophie a subir na

pontuação? Ela só podia ter se escondido no vestido ou no cabelo deSophie,sussurrandoasrespostaselançandoosfeitiços...Contudo,comoelafizera-oescolherSophienodesafiodaabóbora?

Tedrossentiu-seenjoado.Umgoblinescolhidoentredois...Umaprincesacujocaixãoderrubou-o...

Umabarataescondidaemumaabóbora...ElenuncahaviaescolhidoSophie.ElehaviaescolhidoAgathatodasasvezes.Tedrosvirou-se,horrorizado,procurandoporela,masnãoviuAgatha

emnenhumlugardaClareira.Precisava ficar longedaquelagarota.Tinhadedizeraelaqueficasselongedele.Precisavacessartudoaquilo...

Page 286: Escola do bem e do mal

Umpunhadodegranizoatingiucomoumbeijogeladoseurosto.Cegopela água,Tedrosviu sombrasvindoemsuadireção, limpouosolhos... ebaixouseuarco.

Sophie, Anadil e Hester andavam no mesmo passo, idênticas, comcabelosemaquiagenspretosecarrancasnegrasdecoração.Comumsibilarconjunto, afugentaram as garotas Sempre, que saíram em disparada,deixandoapenasTedroseosgarotosSempreassustados,espalhadosatrásdele. Anadil e Hester ficaram atrás de Sophie, que se aproximou paraencararseupríncipe.

Filetesdegelocaíamdocéu,entreeles.“Vocêachaqueeufingi”,disseSophie,olhandoparaelecomseusolhos

verdes.“Achaquenuncaameivocê.”Tedros tentou conter seu coração disparado. De alguma forma ela

estavamaisbonitadoquenunca.“Você não pode trapacear em seu caminho para o amor, Sophie”, ele

disse.“Meucoraçãonuncaquisvocê.”“Ah,euviasescolhasdeseucoração”,Sophieriudebochada,imitando

osolhosesbugalhadosdeAgatha,eacaretaqueerasuamarcaregistrada.Tedroscorou.“Possoexplicarisso...”“Deixe-meadivinhar.Seucoraçãoécego.”“Não,eleapenasescolhequalquerumamenosvocê.”Sophieriu.Numlampejo,elaavançou,eTedrossacouaespada,como

fizeramtodososseuscompanheirosatrásdele.Sophiedeuumsorrisofraco.“Olheoqueaconteceu,Tedros.Vocêestá

commedodoseuverdadeiroamor.”“Volteparaoseulado!”,opríncipegritou.“Eu esperei por você”, disse Sophie, com a voz falhando. “Achei que

vocêviessemebuscar.”“Oquê?Porqueeuiriabuscarvocê?”Sophieficouolhandoparaele.“Porquevocêmefezumapromessa”,ela

disse.Mostrando os dentes, Tedros encarou-a. “Não lhe fiz promessa

nenhuma.”Sophieencarou-o,perplexa.Eabaixouseuolhar.“Entendo.”Seusolhosergueram-selentamente.“Então,sereioquevocêquiserqueeuseja.”

Page 287: Escola do bem e do mal

Elaestendeuseudedoacesoeasespadasdosmeninostransformaram-seemserpentes.Enquantotodosfugiam,Tedroschutavaterranascobras,que sibilavam.Ele virou-se rapidamente e viu Sophie limpar as lágrimas,depoispuxarsuacapaesairapressada.

Hestercorreuparaalcançá-la–“Sente-semelhor?”“Eudeiaeleumachance”,disseSophie,caminhandomaisdepressa.“Agoravocêsestãoquites.Acabou.”Hestertranquilizou-a.“Não.Nãoatéqueelecumprasuapromessa.”“Promessa?Quepromessa?”No entanto, Sophie já tinha corrido na frente, entrando no túnel.

Enquantodisparavaporentreosgalhosretorcidos,sentiualguémolhando-a.Porentreas lágrimaseasárvores,nãodavapraverorostonasacada,apenas uma imagem branca embaçada. Seu estômago apertou-se... elaencontrouumvãonasfolhas...

Orosto,porém,tinhasumido...comosefosseumsonho.

Na manhã seguinte, todos os pisos da Escola do Bem estavamescorregadios e cobertos de banha. Na outra manhã, os garotos Sempregritaramapósvestiremseuscasacos,queestavamrepletosdepódemico.Na terceira manhã, os professores encontraram cuecas emolduradas nolugar do retrato de Bela Adormecida nas Lendas do Obelisco, os ladostrocadosnoTeatrodeFábulaseassalasdeauladedocecobertasporumagosmaverdeefedorenta.

Comoas fadasnãoconseguirampegarosvândalosemação,Tedroseseus colegas formaram uma guarda noturna, que patrulhava corredoresdesdeoanoiteceratéoamanhecer.Aindaassim,oscriminososfugiamdacaptura,eatéofimdasemanaosbandidosjáhaviamenchidoapiscinadaSala de Embelezamento com arraias, entortado os espelhos do corredorpara provocar quem passasse, soltado pombos excessivamentealimentados no Salão de Jantar, e lançado feitiços nos sanitários do Bemparaqueexplodissemquandoosalunossesentassem.

Enfurecida,aprofessoraDoveyinsistiaparaqueSophiefosselevadaàjustiça,masLadyLessodissequeeraaltamenteimprovávelqueumaalunaconseguisseprejudicarumaescolainteirasemajuda.

Elaestavacerta.

Page 288: Escola do bem e do mal

“Jánãoestámaissendolegal”,disseAnadil,depoisdojantar,noquarto66.“Hestereeuqueremosparar.”

“Vocêjáobtevesuavingança”,disseHester.“Deixe-opralá.”“Acheiquevocêsduasfossemvilãs”,disseSophie,desuacama,comos

olhoscoladosemSumam,pesadelos.“Vilões têmpropósitos”, estrilouHester. “Oqueestamos fazendoé só

bandidagem.”“Nesta noite nós vamos colocar sífilis nas cuecas dos garotos”, disse

Sophie,virandoapágina.“Encontreumfeitiçopraisso.”“O que você quer, Sophie?”, perguntou Hester. “Pelo que estamos

lutando?”Sophie ergueu os olhos. “Vocês vão ajudar ou devo entregar todo

mundo?”Empoucotempo,Tedros jáestavacomtodosossessentameninosna

guardanoturna,mas Sophie aumentouos ataques.Naprimeiranoite, elafezHestereAnadilprepararemumapoçãoparatransformarolagodoBemem pântano do Mal, forçando a onda mágica a migrar para o esgoto. Amistura deixou-as com as mãos queimadas, mas Sophie fez com quevoltassemaoamanhecerparaimpregnartodososlençóisdosSemprecompiolhos. Em pouco tempo, as meninas atacavam com tanta frequência –colocando sanguessugas no ponche dos Sempre, soltando gafanhotosdurante uma palestra de Uma, mandando um touro invadir o treino deesgrima, enfeitiçando as escadas para que berrassem palavrões a cadadegrau–quemetadedosprofessoresdoBemcancelou suas aulas, Póluxcambaleavaempatasdecarneiro,caindoemsuasprópriasarmadilhas,eosSempresósesentiamseguroscirculandoembandos.

A professora Dovey escancarou a porta do escritório de Lady Lesso.“Aquelabruxatemqueserreprovada!”

“NãohámeiosparaqueumNuncaentre emsuaescola,muitomenosparaqueataquediaenoite”,LadyLessodisseantesdebocejar.“Peloquesabemos,issoécoisadeumSempretrapaceiro.”

“UmSempre!Meusalunosganharamtodasascompetiçõesnestaescoladuranteduzentosanos!”

“Até agora.” Lady Lesso sorriu. “E não tenho planos de abrirmão deminhamelhoraluna,semprovas.”

Enquanto a professora Dovey mandava cartas não respondidas aoDiretor da Escola, Lady Lesso observava, cautelosamente, que Sophie

Page 289: Escola do bem e do mal

distanciava-secadavezmaisdesuascolegasdequarto, jánão tremiaemsua saladeaulagélida, eprofanavaonomedeTedrosnas capasde seuslivros.

“Estásesentindobem,Sophie?”,perguntouLadyLesso,bloqueandoaportadegelo,depoisdaaula.

“Sim, obrigada”, respondeu Sophie, desconfortável. “Preciso irandando...”

“EntresuavitóriacomoCapitãdaTurma,suasnovaspeçasdemoda,esuasatividadesnoturnas...éumbocadodecoisasparaassimilar.”

“Não sei a que atividades você está se referindo”, disse Sophie,passandodeladoporela.

“Vocêtemtidosonhosestranhos,Sophie?”Sophieparou,aturdida.“Quetiposdesonhosseriamestranhos?”“Sonhoszangados.Sonhosquevãopiorandoacadanoite”,disseLady

Lesso,atrásdela.“Vocêsentirásealgoestivernascendoemsuaalma.Umrosto,talvez.”

O estômago de Sophie contraiu-se. Os sonhos terríveis persistiam, etodosterminavamcomorostoleitosoeembaçado.Nósúltimosdias,filetesvermelhossurgiamaoredordorosto,comoseeleestivessecontornadodesangue. Contudo, ela não conseguia reconhecê-lo. Ela só sabia quedespertavamaiszangadaacadadia.

Sophievirou-se.“É...oqueumsonhodessessignificaria?”“Quevocêéumagarotaespecial,Sophie”,disseLadyLesso.“Alguémde

quemtodosdevemosnosorgulhar.”“Ah.É...talvezeutenhatidoumoudois...”“Sonhos com Nêmesis”, disse Lady Lesso, com seus olhos violeta

cintilando.“VocêtemtidosonhoscomNêmesis.”Sophieficouolhandoparaela.“Mas...mas...”“Não há nada comque se preocupar, querida.Não até que surjamos

sintomas.”“Sintomas?Quesintomas?Oqueacontecesehouversintomas?”“EntãovocêfinalmenteveráorostodeseuNêmesis.Aquelequevaise

fortalecerenquantovocêenfraquece”,LadyLessorespondeu,calmamente.“Aquelequevocêprecisadestruirparaquepossaviver.”

Sophieficoubranca.“M-mas...issoéimpossível!”“É?AchoqueestábemclaroqueméseuNêmesis.”

Page 290: Escola do bem e do mal

“Oquê?Eunãotenhoninguémque...”Sophieperdeuofôlego.“Tedros?Maseuoamo!Foipor issoquefiz tudoaquilo!Paratê-lode

volta...”LadyLessoapenassorriu.“Euestavacomraiva!”,Sophiegritou.“Nãotiveaintenção...nãoquero

machucá-lo!Nãoqueromachucarninguém!Nãosouumavilã!”“Sabe,nãoimportaoquesomos,Sophie.”LadyLessochegoutãopertoquesóprecisousussurrar.“Éoquefazemos.”As pupilas dela percorreram o rosto de Sophie. “Mas eu receio que

aindanãohajasintomas”,suspirou,efoiparasuamesa.“Fecheaportaaosair.”

Sophiesaiudepressademaisparasedaraotrabalho.

Naquelanoite,SophienãoatacouosSempre.Deixe-opralá,eladisseasimesma,comotravesseironacabeça.Deixe

Tedrospralá.Eladisseissorepetidamente,atéapagaroencontrocomLadyLessode

suamemória.Enquantoaspalavrasembalavam-naparadormir,sentiaasvibraçõesdeseuantigoeu.Amanhãelaseriaamorosa.Amanhãperdoaria.AmanhãvoltariaaserBoa.

Entãooutrosonhoveio.Elacorriaporentreespelhosquerefletiamseurostorisonho,cabelos

louroscompridos,umlindovestidorosa.AtravésdoúltimoespelhohaviaumaportaabertaondeTedrosaguardavaporela,comaresderei,vestindoseutrajeazuldegala,debaixodopináculodeCamelot.Elacorriaecorriapara ele, mas não conseguia aproximar-se, até que arbustos mortais eafiados, inflados com a cor roxa, começaram a serpentear rumo ao seuverdadeiro amor. Frenética, passou pela última porta para salvá-lo,perdendo um salto de vidro, lançando-se em seus braços... o príncipedissolveu-seemumborrãoleitosoevermelhoejogou-aaosespinhos.

Sophie despertou enfurecida e esqueceu-se completamente da suadecisãodedeixá-lodelado.

“Estamos no meio da noite! Você disse que tinha acabado!”, Anadildisse,furiosa,seguindo-arumoaotúnel...

Page 291: Escola do bem e do mal

“Não podemos continuar a fazer essas coisas sem propósito”, disseHester,indignada.

“Eutenhoumpropósito”,disseSophie,virando-se.“Estãomeouvindo?Eutenhoumpropósito.”

No dia seguinte, os Sempre chegaram para o almoço e encontraramtodasasárvoresdoseu ladoderrubadas.Todas,excetoaquelasobaqualSophieeTedroscostumavamsentar-se,agoraentalhadaváriasvezescomumaúnicapalavra.

MENTIROSO.Perplexos, os lobos e as ninfas chamaramosprofessores e formaram

imediatamente uma barreira entre as duas metades da Clareira. Tedrosdisparoucomoumraioatéafronteira,entredoislobos.

“Pare.Agora.”TodosseguiramosolhosdeleatéSophie,sentadaserenamentejuntoa

umaárvorecobertadeneve,doladodosNunca.“Ouoquevocêvaifazer?”,eladesdenhou.“Vaimepegar?”“Agoravocêrealmentesoacomoumavilã”,Tedroscaçoou.“Cuidado,Teddy.OquedirãoquandodançarmosnoBaile?”“Certo,agoravocêficoumaluca...”“E eu aqui pensando que você fosse um príncipe”, disse Sophie,

caminhando emdireção a ele. “Porque você prometeume levar aoBaile,exatamentenestelugar.Eumpríncipejamaisquebraumapromessa.”

Ouviam-sesussurrosdeambososladosdaClareira.Tedrospareciaterlevadoumchutenoestômago.

“Afinal,umpríncipequequebrasuapromessa”,Sophieencarou-oentredoislobos,“éumvilão.”

Tedrosnãoconseguiafalar.Seurostoqueimava.“Mas você não é um vilão e nem eu”, disse Sophie, com os olhos

culpados.“Portanto,tudooquetemafazerémantersuapromessa,enóspodemosvoltarasernósmesmos.TedroseSophie.Príncipeeprincesa.”

Com um sorriso hesitante ela estendeu amão para ele, por entre oslobos.

“OBemparaSempre.”AClareiracaiuemsilênciomortal.“EujamaisalevareiaoBaile”,Tedrosvociferou.“Jamais.”Sophierecolheuamão.

Page 292: Escola do bem e do mal

“Ora, então”, ela disse baixinho. “Agora todos sabem quem é oresponsávelpelosataques.”

TedrossentiuosolhosacusadoresdosSempreencarando-ofixamente.Envergonhado,saiudaClareira,enquantoSophieolhava-o,comocoraçãonagarganta,lutandocontraoímpetodechamá-lodevolta.

“Issotemavercomumbaile?”,disseumavoz.Sophievirou-se,eviuHestereAnadil,olhandofuriosas.“Issotemavercomoqueécerto”,eladisse.“Vocêestáporsuaconta”,Hesterrosnou,eAnadilfoiatrásdela.Sophie ficou ali, cercada por todos, estarrecidos: alunos, professores,

lobosefadas,ouvindosuarespiraçãoofegante.Elalentamenteolhouparacima.

Tedros encarava-a, de cima, do castelo de vidro. Sob o sol fraco, seurostoclarotinhaumreflexovermelho.

OolhardeSophiecruzoucomodele,oqueendureceuseucoração.Eleretribuiriaseuamor.Tinhaderetribuir.Porque ela o destruiria se ele se atrevesse a amar qualquer outra

pessoa.

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23Magianoespelho

Enterrada debaixo de travesseiros rendados, Agatha ouvia o eco dequatropalavrasterríveis.

TENHASUAPRÓPRIAVIDA.Que vida? Antes de Sophie, tudo de que ela podia se lembrar era

escuridão e dor. Sophie fizera com que ela se sentisse necessária. SemSophie,elaeraumaaberração,umnada,um...

Agatha sentiu um aperto no estômago. Uma bruxa nunca tem seuprópriocontodefadas.

SemSophie,elaeraumabruxa.

Page 294: Escola do bem e do mal

Duranteseisdias,Agathaficoufechadaemsuatorre,ouvindoosgritosde Sempres aterrorizados pelos novos ataques. Todas as atividadesconjuntas da escola haviam sido canceladas indefinidamente, incluindo oalmoço e os Grupos Florestais. Será que tudo aquilo era culpa sua? Asbruxasnãodeixavamoscontosde fadasemfrangalhos?Àmedidaqueosgritosdeforatornavam-semaisapavorados,suaculpaaumentavamais.

Entãoosataquespararam.Reunidos em salas comunitárias, os Sempre prenderam a respiração.

Entretanto, quando o sábado e o domingo se foram, Agatha soube que atempestadetinhapassado.Aqualquermomento,Sophieviriadesculpar-se.Olhando para a lua pintada de rosa, Agatha abraçava seu travesseiro erezava.Aamizadedelassobreviveriaaisso.

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As fadas tilintaramdo ladode foradaporta,eelaviuumbilhetequehavia sido jogado por baixo. Com o coração disparado, pulou da cama epegouopapel,comasmãossuando...

Agatha gemeu e afundou-se em seus lençóis cor-de-rosa. Quando,porém, cedeu ao sono, ela começou a ouvir palavras... baile... propósito...feliz...Elasvagueavamnaescuridão,ecoandomaisprofundamente,atéqueforamplantadasemsuaalma,comosementesmágicas.

Ravanfoinaspontasdospésatéoquarto66,eoscisnesdeseisNuncastrêmulosreluziamnaescuridãoatrásdele.

“Seosataquespararam,talvezelaestejamorta”,disseVex.“Talvezvilõesnãofaçammaldadeaosdomingos”,disseBrone.“Ou,talvez,Sophietenhasuperadoseumalditopríncipe!”,disseRavan.“Ninguémnuncasuperaoamor”,disseHort,cabisbaixo,seguindocom

seumacacãosujo.“Mesmoqueeleroubeseuquartoeseupijama.”“Sophie nem deveria ter se permitido amar!”, Ravan respondeu. “Da

primeiravezqueeudisseaomeupaiquegostavadeumagarota,elemelambuzoudemelemetrancouemumaceladeursos,parapassaranoite.Desdeentão,nuncamaisgosteidenenhuma.”

“Daprimeiravezqueeudisseàminhamãequegostavadealguém,elame assou no forno por uma hora”, concordou Mona, com a pele verdeempalidecendo.“Agoranuncapensoemmeninos.”

“Daprimeiravezquegosteideumgaroto,meupaiomatou.”

Page 296: Escola do bem e do mal

O grupo parou e ficou olhando para Arachne. “Talvez Sophie tenhasimplesmentetidomauspais”,eladisse.

Assentindosolenemente,osNuncaseguiramaoquarto66,escondidosnas sombras.Na expectativa, cada umencontrouumpedacinhoda portaondeencostaroouvido.

Masnãoouviramnada.“Notrês”,Ravanfezmímicacomaboca.Elesrecuaram,preparando-se

paraarrombaraporta.“Um...dois...”“Bebaisso.”Era a voz de Anadil, lá dentro. Os Nunca encostaram novamente os

ouvidosnaporta.“Estão...me...matando...”,disseSophie,comavozfraca.Sonsdevômito.“Elaestácomfebre,Hester.”“LadyLessodisse...Sonhos...Nêmes...”“Nãosãonada,Sophie”,disseavozdeHester.“Agoravádormir.”“Seráqueeu...estarei...melhor...para...oBaile?Tedros...prometeu...”“Fecheseusolhos,querida.”“Ossonhos...virão...”,Sophiechoramingou.“Shhh,estamosaqui”,disseHester.Fez-sesilêncioládentro,masRavaneosNuncanãosemexeram.Então

elesouviramvozesmaispróximasàporta.“Sonhos de rostos, febre alta, obsessão... A Lady Lesso está certa!”,

Anadilsussurrou.“TedroséoNêmesisdela!”“EntãoelaconheceumesmooDiretordaEscola!”,Hestercochichoude

volta.“Elaestádentrodeumcontodefadasdeverdade!”“Então é bom que esta escola inteira fique alerta, Hester. Contos de

fadasdeverdadesignificamguerra!”“Ana, nós precisamos fazer com que Tedros e Sophie voltem, agora!

Antesquesurjamquaisquersintomas!”“Mascomo?”“Seutalento”,sussurrouHester.“Masnãopodemoscontaraninguém!

Seissoescapar,nossasvidasestarãoemris...”Avozdelaparou.Ravansinalizouparaosoutros.Aportafoiescancarada.Hesterolhouláfora,estreitandoosolhos.Entretanto,ocorredorestavavazio.

Page 297: Escola do bem e do mal

Nasegunda-feirademanhã,Agathaacordoucomumforteímpetodeiràaula.

Marchando ao redor do quarto, ela enfiou seu avental amarrotado ecatou fiapos de seu cabelo oleoso. Quantos dias poderia esperar? Sophienãoqueriasedesculpar?Sophienãoqueriasersuaamiga?ElaamassouarosadepapeldeSophieejogou-apelajanela...

Eupossoterminhaprópriavida!Ela procurou mais alguma coisa para jogar, depois viu o papel

amassadoembaixodosdedosdeseuspés.“Umbailepodesersuamelhorchance...”Agathapegouopapele leunovamenteobilhetedaprofessoraDovey,

comosolhosfaiscando.Éisso!Obaileera,sim,asuachance!Elasóprecisavadeumdaquelesgarotosvisearrogantesparalevá-la!

EntãoSophieengoliriasuaspalavras!Enfiouospéscalejadosemsuasbotinasedesceuosdegraus,acordando

atorreinteira.Tinha cinco dias para encontrar um par para o Baile da Neve dos

Sempre.Cincodiasparaprovarquenãoeraumabruxa.A semana do Baile começou bizarra, quando a professora Anêmona

surgiu, dez minutos atrasada, usando um vestido de plumas de gansoescandalosamentecurto,comumameia-calçaroxa,cintas-ligascintilanteseumacoroaquepoderiaserumcandelabrodecabeçaparabaixo.

“Observem o que é elegância de Baile”, disse, afagando suas plumas.“Ainda bem que os meninos não podem me convidar para o Baile, oumuitasdevocêsperderiamseuspríncipes!”

Elaanalisouosolharesdosalunos.“Sim,nãoédivino?EufuiinformadapelaImperatrizVaisillaqueissoestáarrasandoemPutsi.”

“Putsi?OndeficaPutsi?”,perguntouKika.“Lardemuitoscisneszangados”,disseBeatrix.Agathafurou-secomumacanetaparanãorir.“Como seus pretendentes preferem esperar até o Circo de Talentos

paraconvidá-las,euaconselho-asalevarosdesafiosdestasemanaasério”,disseaprofessoraAnêmona. “Umdesempenhoexcepcionalmentebomoufracopodemmuitobemfazerummeninomudardeideia!”

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“ImaginoqueTedrosdeve,mesmo,terprometidolevarSophieaoBaile,não?”, Reena cochichou para Beatrix. “Príncipes não podem quebrarpromessassemquealgoterrívelaconteça!”

“Algumaspromessassãofeitasparaserquebradas”,respondeuBeatrix.“MassealguémtentarestragaraminhanoitecomTedros,eujuroquenãovaisobreviveraobaile.”

“ÉclaroquenemtodasserãoconvidadasparaoBailedaNeve”,alertoua professora Anêmona. “A cada ano uma garota aflita sobra, pois osmeninos preferem recebermeia avaliação do que ter que levá-la. E essagarota,quenãoconsegueencontrarummenino,mesmonascircunstânciasmaispropícias...bem,elasópodeserumabruxa,nãoé?”

Agatha sentiu todos os olhares recaindo sobre ela.Reprovada se umgarotonãoaconvidasse?

Agoraencontrarumpareraumaquestãodevidaoumorte.“Paraodesafiodehojevocêsdevemtentarverquemseráseuparpara

o Baile!”, declarou a professora. “Somente quando puderem enxergarclaramenteo rostodeumgaroto em suasmentes, vocês saberãoque eletambémaquer.Agorajuntem-seàpessoaqueestáaoseuladoealternem-se fazendo os convites. Quando for sua vez de aceitar, feche os olhos evejamdequeméorostoquesurge...”

Agathavirou-separaMillicent,queestavadefrenteparaasuamesa,epareciaprontaparavomitar.

“Querida, é... Agatha... vocêseriaminhaprincesaparaoBaile?”, ela disse,semar,depois teveumaânsiadevômito tão ruidosaqueAgathadeuumpulo.

Ora,aquemelaqueriaenganar?Olhouparabaixo,paraseusmembrosossudos, suapelepastosa e asunhas todas roídas.Que garoto escolheriaconvidá-la para o Baile? À medida que a esperança foi se esvaindo, elaolhou para as garotas, fechando os olhos, eufóricas, sonhando com osrostosdeseuspríncipes...

“Aperguntarequerumsimouumnão”,gemeuMillicent.Comumsuspiro,Agathafechouosolhosetentouimaginarorostode

seu príncipe. No entanto, tudo o que conseguia ouvir eram os garotosbrigandoparanãoserseupar...

“Nãosobrouninguémpravocê,querida...”“Maseuacheiquetodososgarotostivessemqueir,professoraDovey...”“Bem,oúltimosematouparanãoterquelevarvocê.”

Page 299: Escola do bem e do mal

Gargalhadasde fantasmaecoaramemseusouvidos.Agathacerrouosdentes.

Eunãosouumabruxa.Asvozesdosmeninosabrandaram-se.Eunãosouumabruxa.Asvozessumiramnaescuridão.Masnãohavianadanolugardeles.Nadaemqueacreditar.Nãosou!Nãosouumabruxa!Nada.Algo.Umasilhuetaclaraesemrostosurgiunaescuridão.Ele curvou-se à sua frente, apoiado em um dos joelhos... pegou sua

mão...“Estásesentindobem?”Ela abriu os olhos. A professora Anêmona a encarava. Assim como o

restantedaturma.“É...achoquesim.”“Masvocê...você...sorriu!Umsorrisodeverdade!”Agathaengoliu.“Sorri?”“Você foi enfeitiçada?”, a professora deu um gritinho. “Isso é um dos

ataquesdosNunca...”“Não...querdizer...foiumacidente...”“Masminhaquerida!Foilindo!”Agathaachouquesairia flutuandodacadeira.Elanãoeraumabruxa!

Nãoeraumaaberração!Elasentiuseusorrisovoltar,maior,maisradiantedoqueantes.

“Se ao menos o restante também fosse”, a professora Anêmonasuspirou.

OsorrisodeAgathadesfigurou-seemsuaconfortávelcareta.Desanimada,fracassouemseusdoisdesafiosseguintes,comPóluxque

chamou sua postura de “nefasta” e Uma que suspirou que já tinha vistobichos-preguiçacommaischarme.

Emburrada em seu banco, antes da aula de História, Agatha ficouimaginandoseoprofessorSaderpoderiarealmentepreverseufuturo.SeráqueelaencontrariaumparparaoBailedaNeve?OuSophieestavacertaquantoaelaserumabruxa?Elaseriareprovadaemorreriaali,sozinha?

Page 300: Escola do bem e do mal

O problema era que não havia meio de perguntar qualquer coisa aSader,mesmoqueelefosseumvidente.Alémdisso,paraabordaroassunto,ela teriaqueadmitirque tinha invadido seuescritório.Nãoera amelhorformadeganharaconfiançadeumprofessor.

No fim,não importava,porqueSadernemapareceu.Ele tinhaoptadoporpassarasemanalecionandonaEscoladoMal,alegandoqueasaulasdeHistória não poderiam competir com as distrações de um Baile. Em suaausência,cedeuoensinode“Costumes&TradiçõesdeBaile”aumaganguede irmãs de meia-idade, desgrenhadas e com trajes mofados. As DozePrincesas Dançarinas, de um famoso conto de fadas, que tinhamconquistado seus príncipes em um baile da corte. Antes que pudessemrevelar como fizeram exatamente para ser acompanhadas por essespríncipes, porém, as doze matronas começaram a discutir, corrigindo-semutuamente na versão de suas histórias, e depois a gritar umas com asoutras.

Agathafechouosolhosedesligou-sedelas.Independentementedoquea professora Anêmona dissera, ela havia visto o rosto de alguém.Embaçado,enevoado...masreal.Alguémquequeriaconvidá-laparaoBaile.

Elacontraiuomaxilar.Eunãosouumabruxa.Lentamente, a silhueta surgiu na escuridão, dessa vezmais próxima,

mais clara do que antes. Ele abaixou-se diante dela, apoiado em um dosjoelhos,ergueuseurostoàluz...

Umgritoafezdespertar.No palco, as doze irmãs estavam gritando e engalfinhando-se, como

gorilas.“Comoessasaípodemserprincesas?”,gritouBeatrix.“Issoéoqueacontecedepoisquevocê se casa”,disseGiselle. “Minha

mãeparouderasparaspernas.”“Aminhanãocabemaisemseusvestidosantigos”,disseMillicent.“Aminhanãousamaquiagem”,disseAva.“A minha come queijo”, suspirou Reena. Beatrix parecia que ia

desfalecer.“Bem,seminhaesposatentarqualquerdessascoisas,elapodeirmorar

comas bruxas”, disse Chaddick, comendoumapernade peru. “Em todasaquelaspinturasdefelizesparasempre,ninguémvêprincesashorríveis.”

ElenotouAgathasentadaeretaaoseulado.“Ah.Semquererofender.”

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NahoradoalmoçoAgathajáhaviaabandonadoporcompletoaideiadearranjar umpar, e queria voltar rastejando para Sophie. No entanto, ela,HestereAnadilnãoestavamemnenhum lugar (nemDot,porsinal),eosNuncapareciamcuriosamentecaladosdooutroladodaClareira.Enquantoisso,elaescutavaasgarotasSemprerindo,ouvindoChaddickrecontarsuahistóriaagruposdiferentes,comafrase“Semquererofender”parecendomais ofensiva a cada vez. E o que é pior, Tedros lançava-lhe olharesestranhosentreumeoutroarremessodeferraduras(eumespecialmenteesquisito,depoisqueeladeixoucairatigeladeensopadodebeterrabanocolo).

Kika sentou-se ao seu lado. “Não fique aborrecida, não pode serverdade.”

“Oquê?”“Onegóciodosdoisgarotos.”“Quenegóciodosdoisgarotos?”“Você sabe, que eles todos fizeramumpactoparadoismeninos irem

juntos,emvezdeconvidarvocê.”Agathaencarou-a.“Ah,não!”,Kikagritouesaiucorrendo.Na aula deBoasAções, a professoraDoveydeu-lhes um teste escrito

sobrecomodeveriamlidarcomdificuldadesmoraisnoBaile.Porexemplo:

1.Sevocê foraoBailecomalguémquenãosejasuaprimeiraopção,massua primeira opção, por quem você está loucamente apaixonada,convidá-laparadançar,você:

A)Gentilmente informaque,seelequisessedançarcomvocê,deveriatê-laconvidadoparaoBaile.

B)Dançacomele,massóumadançaderitmorápido.C)Dáumperdidonoseupareficacomaprimeiraopção.D)Perguntaaoseuparseeleseimportaria.

AgatharespondeuD.Embaixo,elaescreveu:“Amenos que ninguém jamais a convidasse para o Baile,muitomenos

paradançar.Portanto,essaperguntanãoseaplica.”

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2. Ao chegar ao Baile, você nota que o hálito de sua amiga está com umcheiro insuportável de alho e truta. No entanto, sua amiga está indocom a pessoa que você havia torcido para lhe convidar para o Baile.Você:

A)Informasuaamiga,deumavez,sobreocheiropodre.B)Nãodiznada,jáqueéculpadesuaamigaestarfedendo.C)Nãodiznadaporquevaigostardevê-laconstrangida.D)Oferece-lheumpedaçodedoce,semmencionarohálito.

AgatharespondeuA.Elaacrescentou,“Porque,pelomenos,omauhálitoétemporário.Afeiuraéeterna”.

3.Umapombinhafilhote,comaasaquebrada,entranoSalãodoBem,cainapistadedançaduranteaúltimavalsaeestácorrendograndeperigodeseresmagada.Você:

A)Gritaeinterrompeadança.B)Terminadedançaredepoissocorreapombinha.C) Chuta a pombinha pra fora da pista, para dançar em segurança,

depoissocorreapombinha.D) Abandona a dança e salva a pomba, mesmo que isso signifique

deixarseuparceiroconstrangido.

AgatharespondeuaD.“Meuparceiroéimaginário.Tenhocertezadequeelenãovaiseimportar”.

Elarespondeuàsoutras27perguntasdentrodomesmoespírito.Emsuamesafeitadebombons,aprofessoraDoveycorrigiaostestese

colocava-os sob um peso de papel em formato de abóbora, com umaexpressãocadavezmaismelancólica.

“Exatamenteoqueeutemia”,disse,zangada,devolvendoostestesaosalunos. “Suas respostas são vãs, vagas e, às vezes, simplesmentedesprezíveis! Não admira que aquela menina Sophie tenha feito todosvocêsdetolos!”

Page 303: Escola do bem e do mal

“Osataquesacabaram,não?”,murmurouTedros.“Não,graçasavocê!”,vociferouaprofessoraDovey,atirandoumteste

tingido de vermelho para ele. “Uma Nunca ganha uma Prova, tumultuanossaescola–enenhumSempreconseguepegá-la?NãotemninguémBomosuficienteparaderrubarumaaluna?”

Elaatirouostestesaolongodeumafileira.“Devolembrar-lhesdequeoCirco de Talentos é em quatro dias? E que quem vencer o Circo terá oTeatrodeFábulastransferidoparasuaescola?VocêsqueremqueoTeatrováparaoMal?QueremcaminharacanhadosatéoMalpelorestodoano?”

Ninguémconseguiaencará-la.“ParaseremBons,vocêstêmquedemonstrar-seBons,Sempre”,alertou

aprofessoraDovey.“Defender.Perdoar.Ajudar.Amar.Essassãoasnossasregras.Masésuaopçãosegui-las.”

Enquanto ela repassava os testes, condenando cada resposta errada,Agathaempurrouoseu.Masentão,elanotoualgoescritonocanto:

Quando as fadas tilintaram anunciando o fim da aula, a professoraDovey enxotou todos os Sempre, fechou a porta de doce de abóbora etrancou-a. Ela virou-se e viu Agatha sentada em suamesa, comendo umbombom.

“Então,seeuseguirasregras”,disseAgatha,mastigandoruidosamente,“Nãosereiumabruxa.”

AprofessoraDoveyviuumnovoburacoemsuamesa. “Somenteumaalmaverdadeiramenteboasobreviveaessasregras,sim.”

“EsemeurostofordoMal?”,disseAgatha.“Ora,Agatha,nãosejaridí...”“EsemeurostofordoMal?”Aprofessoraseretraiudiantedeseutom.“Estoulongedecasa,perdiminhaúnicaamiga,todosaquimedetestam,

etudooqueeuqueroéencontraralgumtipode finalfeliz”,disseAgatha,vermelha.“Masvocênãopodenemmedizeraverdade.MeufinalnãotemavercomoBemqueeufaça,oucomoqueestádentrodemim.Temaver

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com a minha aparência.” Cuspe voou de sua boca. “Eu nunca tive umachance.”

Por um bom tempo, a professora Dovey apenas olhou para a porta.Então, sentou-se na mesa, ao lado de Agatha, arrancou um pedaço debombomemordeu-o,provocandoumesguichoadocicado.

“OquevocêachoudeBeatrixdaprimeiravezqueaviu?”Agathaencaravaodocenamãodaprofessora.“Agatha?”“Eunãosei.Elaera linda”,disseAgatha, lamentosapor lembrar-seda

apresentaçãorepletadepunsqueelashaviamtido.“Eagora?”“Elaérevoltante.”“Elaficoumenosbonita?”“Não,mas...”“Então,elaébonitaounão?”“Sim,àprimeiravista...”“Então,abelezasóduraumolhar?”“Não,sevocêforumapessoadoBem...”“Então,sevocênãoforumaBoapessoa...”“Então,éserBomqueimporta?Acheiquefosseaaparência.”Agathaabriuaboca.Nãosaiunada.“A beleza só pode lutar com a verdade até aí, Agatha. Você e Beatrix

compartilhammaisdoquevocêimagina.”“Ótimo. Posso ser sua animal escrava”, disse Agatha, mordendo seu

doce.AprofessoraDoveylevantou-se.“Agatha,oquevocêvêquandoseolha

noespelho?”“Nãomeolhoemespelhos.”“Porquê?”“Porquecavalosebruxasnãoficamporaíolhandoseusreflexos!”“Oquevocê temever?”,perguntouaprofessoraDovey, recostando-se

pertodaportadedocesemformatodeabóbora.“Nãotenhomedodeespelhos”,fungouAgatha.“Entãoolheparaeste.”Eladeuumaolhadaparacimaeviuquenaportapróximaàprofessora

Doveyhaviaagoraumespelholisoepolido.Eladesviou-se.“Belotruque.Estáemseulivro?”

Page 305: Escola do bem e do mal

“Olhe-senoespelho,Agatha”,disseaprofessoraDovey,calmamente.“Isso é tolice.” Agatha saltou da mesa e passou pela professora,

cabisbaixa, para evitar seu reflexo. Ela não conseguiu encontrar amaçaneta...

“Deixe-mesair!”Elaarranhouaporta,fechandoosolhostodasasvezesemquesevia.

“Sevocêseolharnoespelho,podesair.”Agathaesforçou-separafazerseudedoacender,“Deixe-me...sair!”“Então,olhe-senoespelho.”“DEIXE-MESAIR,SENÃO...”“Apenasumaolhada...”Agatha chutou com sua botina o vidro. Com um tremor, o espelho

estilhaçou-se,eelaseprotegeudobrilhoedopócintilante.Quandooruídopareceusilenciar,elaergueulentamenteacabeça.

Umnovoespelhoaencarava.“Faça-osumir”,elaimplorou,escondendoorosto.“Apenastente,Agatha.”“Nãoposso.”“Porquê?”“Porqueeusouhorrível!”“Esevocêfossebonita?”“Olhepramim”,Agathagemeu.“Suponhaquefosse.”“Mas...”“Imaginequevocêfossecomoasmeninasnoslivrosdecontosdefadas,

Agatha.”“Eunãoleioaquelelixo”,Agatharetrucou,furiosa.“Vocênãoestariaaquisenãolesse.”Agatharetesou-se.“Vocêoslê,exatamentecomoasuaamiga,querida”,disseaprofessora

Dovey.“Aquestãoé,porquê?”Agathanãodissenadaporumbomtempo.“Seeufossebonita?”,elaperguntou,baixinho.“Sim,querida.”Agathaolhouparacima,comosolhosbrilhando.“Euseriafeliz.”

Page 306: Escola do bem e do mal

“Isso é estranho”, disse a professora, voltando à mesa. “Isso foiexatamenteoqueElladeMaidenvalemedisse...”

“Bem,trêsvivasparaElladeMaidenvale!”,Agathadisse,emburrada.“Eu lhe fizumavisitaquandodescobriqueeladesejava iraumBaile,

masnão sabia como.Tudoque elaprecisava eradeumnovo rosto eumbelopardesapatos.”

“Não vejo como isso pode ter algo a ver...”, os olhos de Agathaarregalaram-se.“Ella...Cinderela?”

“Nem foi meu melhor trabalho, embora bem notório”, disse suaprofessora, afagando um peso de papel. “Sabe, vendem desses pesos emMaidenvale.Naverdade,nãoseparecenemumpoucocomacarruagemdeElla.”

Agathacambaleouparatrás.“Mas...masissosignificaquevocêé...”“A fadamadrinhamais desejada da Floresta SemFim. Ao seu dispor,

querida.”Agathasentiusuacabeçagirar.Elarecostou-senaporta.“Euaalertei,quandovocêsalvouagárgula,Agatha”,disseaprofessora

Dovey. “Você tem um talento poderoso. Bom o suficiente para dominarqualquerMal.Bomosuficienteparaencontrar seu final feliz,mesmoquetenhaseperdidonocaminho!Tudooquevocêprecisaestádentrodevocê,Agatha.Eagora,maisdoquenunca,nósprecisamosbotar issopara fora.Masseéabelezaqueaestádetendo,querida...”

Elasuspirou.“Bem,issoémuitofácildeprovidenciar,não?”Enfiandoamãoemseuvestidoverde,tirouumavarinhadecerejeira.“Agora,fecheosolhosefaçaumpedido.”Agathapiscou,para ter certezadequeestavaacordada.Os contosde

fadas semprepuniamgarotas feias. Contosde fadasnunca realizavamosdesejosdegarotasquenãoerambonitas.

“Qualquerpedido?”,perguntou,comavozfalhando.“Qualquerpedido”,respondeuafadamadrinha.“Eeutenhoquefalaremvozalta?”“Nãoleiopensamentos,querida.”Agathaolhouparaela,porentreas lágrimas. “Masé... eununcadisse

issoaninguém...”“Entãojáestánahora.”Tremendo,Agathaolhouavarinhaemsuamãoefechouosolhos.Será

queissoestavamesmoacontecendo?

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“Eudesejo...”Elanãoconseguiarespirar.“Ser...vocêsabe...é...”“Amágicarespondeàconvicção,receio”,disseaprofessoraDovey.Agathapuxouoar.Ela só conseguiapensaremSophie. Sophieolhandodiretamentepara

elacomoseelafosseumcachorro.TENHASUAPRÓPRIAVIDA!Seu coração subitamenteardeude raiva.Comosdentes cerrados, ela

fechouospunhos,ergueuacabeçae,comumgrito...“Eudesejoserbonita!”Ummovimentodevarinhaeumestaloterrível.Agathaabriuosolhos.A professora Dovey franziu o rosto para a varinha quebrada em sua

mão.“Um pouco ambicioso, esse pedido. Teremos que fazer isso à moda

antiga.”Eladeuumassobioensurdecedor,eseisninfasdepelerosada,comdois

metrosdealturaecabelosdacordoarco-íris,entrarampelajanelaemumafileiraorganizada.

Agathadefendeu-sedoespelho.“Esperem...esperemaí...”“Elasserãogentis.Comopuderem.”Agatha conseguiu dar um último grito antes que as ninfas caíssem

sobreelacomoursos.AprofessoraDoveyprotegeuosolhosdomassacre.“Elasrealmentesãomuitoaltas.”

Os olhos de Agatha piscaram e abriram-se, na sombra. Sentia-sedolorida e estranha, como se tivesse dormido durante dias. Mal pôdeperceberseucorpocompletamentevestido,desmoronadoemumacadeiraverde,asamarrassoltas...

EstavanaSaladeArrumação.Asninfastinhampartido.Agatha deu um pulo da cadeira. As piscinas de banho estavam todas

espumantes e cheias. A estação demaquiagem de Rosa Vermelha, à suafrente,estavaperfiladacomcentenasdefrascosabertosdeceras,cremes,

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tinturasemáscaras.Napiahavialâminasusadas,tesouras,pinças.Nochão,estavammontesdecabeloscortados.

Agathapegouumpouco.Eramlouros.Espelho.Ela olhou ao redor,mas a outra estação com cadeira e espelho tinha

sumido. Ela tocou freneticamente nos seus cabelos, na sua pele. Tudoparecia mais macio, mais liso. Ela tocou seus lábios, seu nariz, até seuqueixo.Tudopareciamaisdelicado.

“Tudooqueelaprecisavaeradeumnovorosto.”Eladespencoudevoltanacadeira.Elasconseguiram.Fizeramoimpossível!Elaeranormal!Não,nãoeraapenasnormal.Ela

erabonita!Eraadorável!Elaera...Linda!Finalmentepoderiaviver!Finalmentepoderiaserfeliz!Cochilandoemseuninhonoaltodaporta,Albermarlesoltouumronco

ruidosoquandoaportafoiaberta.“Tenhaumaboa-noite,Albermarle!”Albermarleabriuumdeseusolhosumpouquinhoportrásdosóculos.

“Tenhaumaboa-noite,Aga...oh,minhanossa!”OsorrisodeAgathasóaumentavaenquantoelasubiaosdegrausparao

primeiroandar.Precisava chegar até o espelhodouradodo Salão de Jantar (ela tinha

memorizadoalocalizaçãodetodososespelhosafimdeevitá-los).Agathasentia-sealegrementeleve.Seráquereconheceriaasimesma?

Ela ouviu suspiros e viu Reena e Millicent observando-a com olhosarregalados,debaixo,atravésdovãodaescadaemespiral.

“OláReena!”,disseAgatha,radiante.“Olá,Millicent!”As duas garotas estavam perplexas demais para acenar de volta.

Enquantoentravafaceiranosalãodasescadarias,Agathasentiuquesorriaaindamais.

SubindoatéoObeliscodasLendas,ChaddickeNicholasobservavamosretratosdasgarotasSempredopassado.

“Rapunzelera4,namelhordashipóteses”,disseChaddick,penduradoemumtijolo,comosefosseumalpinista.“MasessaMartineera9.”

“Penaqueterminoucomoumcavalo”,disseNicholas.

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“EspereatéquecoloquemAgathanaparede.Elavaiacabarcomoum...”“Oquê?Vouacabarcomooquê?”Chaddickvirou-separaAgatha.Eleficouboquiaberto.“Umagata?”,Agathasorriu.“Eupareçotercomidoasualíngua?”“Oooh”,disseNicholas,eChaddickchutou-oparaforadopilar.Agoracomumsorriso tão largoqueatédoía,Agatha foidesfilando,e

subiuaescadadaCoragem,nadireçãodoSalãodeJantar.Elapassoupelosarcosazuis,eseguiuparaasportasduplasdouradas,prontaparaenfrentaroespelhoalidentro,prontaparasentiroqueSophiesentiraavidatoda...masnahoraemqueesticouamão,asportasabriram-se.

“Comlicença...”Agathaouviusuavozantesdevê-lo.Lentamenteergueuoolhar,como

coraçãodisparado.Tedrosaencarava,parecendotãoconfusoqueelaachouquetinha,de

algumaforma,petrificado-ocomalgumfeitiçodomal.Eletossiu,comosetentasseencontraravoz.“É...Oi.”“Oi”,disseAgatha,sorrindotolamente.Silêncio.“Oquetevenojantar?”,elaperguntou,deumjeitomaistoloainda.“Pato”,disse,eavozsaiuaguda.Eletossiunovamente.“Desculpe,équevocêestá...estátão...”Agathasubitamentesentiualgoestranho.Issoaassustou.“Eusei...nãopareçoeu...”,eladeixouescapar,esaiuandando.Entrourapidamenteemumcorredoreparouembaixodamoldurade

um quadro. O que eles fizeram? Teriam trocado a sua alma quando lhederamumnovorosto?Teriamsubstituídoseucoraçãoquando lhederamumnovocorpo?Porqueaspalmasdesuasmãosestavamencharcadas?Porque seu estômago estava trêmulo?Onde estavao insultoque ela sempretrazianapontadalínguaparaTedros?Oquenestemundopoderiafazê-lasorrirparaumgaroto?Eladetestavagarotos!Sempredetestougarotos!Elanãosorririaparaumnemameaçadaporumaespad...

Agathapercebeuondeestava.Oretratosoboqualelaestavanãoeraumretrato.Suandodepavor, ficoudiantedoespelhogigantedohall,prontapara

verumaestranha.Agathafechouosolhos,chocada.

Page 310: Escola do bem e do mal

Elaabriu-osnovamente.Masasbanheirasdesaisdebanho...osfrascos...ocabelolouro...Encolheu-sejuntoàparede,empânico.Opedido...avarinhadecondão...Tudoissofaziapartedaastúciadesuafadamadrinha.PoisasninfasnãotinhamfeitoabsolutamentenadacomAgatha.Ela deu uma olhada em seu cabelo preto e oleoso, seus olhos

esbugalhados,ecaiunochão,horrorizada.Aindasouhorrível!Aindasouumabruxa!Espere.EquantoaAlbermarle?EquantoaReena,Chaddick...Tedros?Elestambémeramespelhos,não?Espelhosquelhediziamqueelanão

eramaishorrível.Agathalentamentelevantou-se,olhandoseureflexo.Pelaprimeiravez

emsuavidaelanãosedesvioudele.Abelezasópodelutarcomaverdadeatéaí,Agatha.Durantetodosessesanos,elahaviaacreditadoseroquecorrespondiaà

suaaparência.Umabruxadecoraçãoescuro.Noscorredores,porém,elahaviaacreditadoemalgodiferente.Porum

instanteelahavialibertadoseucoração,edeixadoaluzentrar.Agathadelicadamentetocouseurostonoespelho,radiantepordentro.Umrostoqueninguémreconhecia,porestartãofeliz.Agoranãohaveriamaisvolta.Osfarelosdepãodatrilhaescuratinham

desaparecido. Em vez disso, ela possuía a verdade para guiá-la. Umaverdademaiordoquequalquermágica.

Eusemprefuilinda.Agathacaiuemprantos,emumchoropurificador,semjamaispararde

sorrir.Elanãoouviuosgritosdealguém,àdistância,aindaacordandodeseus

piorespesadelos.

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24Esperançanobanheiro

OsalunosdaEscoladoBemedoMal achavamquemagia significavafeitiços. Agatha, porém, tinha descoberto algo mais poderoso em umsorriso.

Emtodolugaraondeia,elanotavaolhares,queixoscaídos,esussurrosperplexos, como se tivesse evocado a feitiçaria mais profunda que osprofessoresjátinhamvisto.Atéqueumdia,acaminhodasaulasmatinais,Agathaviuque tambémhaviasidoenfeitiçada,pois,pelaprimeiravez, seviucheiadeexpectativaparaasaulas.

Asoutrasmudançasforamigualmenteastutas.Elanotouquenãosentiamais ânsias por causa do cheiro de seu uniforme. Não detestava lavar orostonemse importavadegastarumminutoescovandoo cabelo. Ficava

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tãoenvolvidanosensaiosdedançaparaoBailequelevavasustosquandooslobosuivavam,anunciandootérminodaaula.E,emvezdedebochardeseu dever de casa do Bem, como fazia antes, agora lia os trabalhosdesignadosecontinuavalendo,arrebatadapelashistóriasdeheroínasqueerammaisespertasdoquebruxasletais,vingavamasmortesdeseuspais,e sacrificavam seus corpos, sua liberdade e até sua vida pelo verdadeiroamor.

Fechando seu livro, Agatha olhou emdireção à FlorestaAzul, com asfadas decorando-a com luzes para o Baile. Era lindo, realmente, o que oBem podia fazer. Ela não seria capaz de admitir isso algumas semanasatrás. Agora, porém, enquanto estava deitada na cama, sob a luz daluminária, pensava em seu quarto, em Gavaldon, e não conseguia selembrardecomoeraocheiro.Subitamente,nãoconseguialembrardacordosolhosdeReaper...dosomdavozdesuamãe...

E, de repente, faltavam apenas dois dias para o Baile. O Circo deTalentosaconteceriananoiteseguinte,ePóluxpassoupelassalasdeaulacomacabeçapresaaocascodeumatartarugacadavérica,paraanunciarasregras.

“Atenção, atenção, atenção! Por ordem do Diretor da Escola deIluminaçãoparaoBemeEncantamentoeEdificaçãonoMa...”

“Andelogocomisso!”,disseaprofessoraAnêmona.Pólux explicou, abatido, que o Circo era uma competição de talentos

entre o Bem e o Mal, na qual os dez melhores Sempre e Nuncaapresentariam, um de cada vez, seus talentos no palco. No final dacompetição,ovencedorreceberiaaCoroadoCirco,eoTeatrodeFábulasseriaautomaticamentetransferidoparaasuaescola.

“É claro que oTeatronão é transferidohá séculos”, Pólux fungou. “Aessaaltura,estáfirmementeestabelecido.”

“Masqueméojuiz?”,perguntouBeatrix.“ODiretordaEscola.Embora,éclaro,vocêsnãovãovê-lo”,bufouPólux.

“Quanto à vestimenta, sugiro que usem roupas de cores humildes emodest...”

AprofessoraAnêmonachutouacabeçadeleparaforadaporta.“Chega!Os convites serão feitos amanhã, e a única coisa em que vocês têm quepensarénorostodeseupríncipe!”

Enquanto a professora circulava pela sala, Agatha observava asmeninas aceitando os convites, de olhos fechados, narizes enrugados de

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tantaconcentração,enquantoPóluxgemia,láfora.Seuestômagoapertou-se.Comsuapontuação,eladecididamenteconseguiriaentrarnaequipedo

Circo! Um show de talentos? Ela não tinha talentos! Quem a convidaria,uma vez que se humilhasse diante da escola inteira! E se ninguém aconvidasse...

“Então,vocêéumabruxaevaifracassar”,Millicentalembrara,quandoaindanãoconseguiaverumrosto.

Agatha passou a aula de Uma inteira com os olhos fechados, mas oúnico vislumbre que teve foi de uma silhueta turva que se desintegravatoda vez que ela se aproximava. Voltou cabisbaixa para o castelo,desanimada,enotoualgumasalunasempolvorosanasaladasescadas.ElaparouaoladodeKika.

“Oqueestáhaven...”Elarespirou fundo.OVpintadocomanjosquehavianaparedeagora

estavadesfigurado,comtraçosviolentosemvermelho...

“Oqueissoquerdizer?”,perguntouAgatha.“QueSophievainosatacarnovamente”,respondeuumavoz.Agathavirou-seeviuTedros,decamisaazulsemmangas,brilhandode

suordepoisdotreinodeesgrima.Elesubitamentepareceuconstrangido.“É...desculpe...precisodeumbanho.”Inquieta, Agatha colou os olhos na parede. “Achei que os ataques

haviamacabado.”“Destavez,voupegá-la”,disseTedros,olhandoaparedeao ladodela.

“Elaéumveneno,aquelagarota.”“Elaestámagoada,Tedros.Achaquevocêfezumapromessa.”“Nãoéumapromessa,seéfeitasobcircunstânciasfalsas.Elameusou

paraganharaProva,eusouvocêtambém.”“Vocênãosabenadasobreela”,disseAgatha.“Elaaindaoama.Eainda

éminhaamiga.”“Uau,vocêdeveterumaalmamelhordoqueaminha,porquenãoseio

quevocêenxerganela.Eusóvejoumabruxamanipuladora.”

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“Entãoolhecommaisatenção.”Tedrosvirou-se.“Ouolhoparaoutrapessoa.”Agathavoltouasentir-seenjoada.“Estouatrasada”,disse,seguindoatéaescada...“Históriaéparacá.”“Banheiro”,respondeu.“Masessaéatorredosmeninos!”“Euprefirobanheiros...demeninos...”Ela abaixou-se por trás de uma escultura de um tritão seminu,

buscando ar.O que está acontecendo comigo! Por que ela não conseguiarespirarpertodele?Porquesesentiaenjoadaacadavezqueeleolhavapraela?Eporqueagoraeleaolhavacomoseelafosseuma...menina?Agathaconteveumgrito.

ElaprecisavaimpediroataquedeSophie.SeSophieseretratasse,seelaimplorassepeloperdãodeTedros,ainda

haviaesperançasdequeeleaaceitassedevolta!Esseeraofinalfelizparaestecontodefadas!Entãonãohaveriamaisolharesestranhos,nemenjoos,nemmaistemoresdeperderocontroledeseuprópriocoração.

Comalunoseprofessoresaglomerando-sejuntoàparededesfigurada,Agatha saiu correndo até a Coleção de Empalhados de Merlin, onde osnichos finalmente tinhamvoltadoà suaantiga glória, depoisdo incêndio.Elacorreuatéaúltimaesculturado jovemArthur,aninhadoemum lago,seus braços musculosos arrancando a espada de uma rocha. Entretanto,agora ela não via Arthur, mas seu filho, piscando para ela. Agatha ficouvermelhadepavoremergulhounaáguagélida.

“Deixe-me passar!”, ela vociferou, correndo até seu reflexo, na Ponte.“PrecisodeterSophieantesqueela...”Seusolhosarregalaram-se.“Espere.Ondeestoueu?”

Uma princesa encantadora olhava-a de volta, com cabelos escurosdespenteados, ummagnífico vestido azul com delicadas folhas douradas,umpingentederubinopescoçoeumatiaradeorquídeasazuis.

Agatha sentiu uma pontada de culpa no estômago. Ela reconheceuaquelesorriso.

“Sophie?”“OBemficacomoBem,OMalficacomoMal,Volteprasuatorre,antesquevocêsedêseriamentemal”.

Page 315: Escola do bem e do mal

“Bem, agora sou decididamente do Mal, portanto, deixe-me passar”,Agathaordenou.

“Eporquê?”,perguntouaprincesa. “Porquevocêainda insistenessecortedecabelo?”

“Porqueeutenhopensadoemseupríncipe!”“Jánãoerasemtempo.”“Bom,então,deixe-mepassar...Oquê?”,Agathafezumacarafeia.“Mas

issoéMal!Sophie,eleéseuverdadeiroamor!”Aprincesasorriu.“Eualerteivocê,daúltimavez.”“Oquê?Quemalertouquando...”Então,Agathalembrou-sedaúltimavezqueestiveraali.Eleéseu.Seusolhosarregalaram-se.“Masissosignifica...quevocêé...”“DecididamentedoBem. Agora, seme dá licença, nós temos umBaile

paraoqualnospreparar.”E com isso a princesa Agatha desapareceu diante de seu reflexo,

deixandoabarreiraintacta.

“É...Esseéseusextopedaço”,disseKika,olhandoAgathaespetaroutropedaçodetortadecereja.

Agatha ignorou-a e enfiou o pedaço na boca, engolindo a culpa. Elacontaria para Sophie. Sim, ela diria tudo a Sophie e Sophie ririahistericamente,eacolocariaemseulugar.Ela,umaprincesa?Tedros,seuverdadeiroamor?

“Vocêvaicomersuasobremesa?”,perguntouAgatha,debocacheia.“E eu que achei que você estivesse progredindo”, suspirou Kika,

entregandoopedaço.Enquanto devorava, Agatha voltou a pensar em um modo de entrar

escondidanaEscoladoMal.Duranteosprimeirosataques,osprofessoreshaviam cercado asTorresdoBemcomencantos antimogrificação, já queimaginaramqueSophieestava invadindona formadeumamariposa,umsapoouumlírio.Sophie,porém,aindatinhaencontradoumjeitodeentrarnoBem.

Portanto, temdehaveroutra rota, pensouAgatha. Sempensar, se viusaindo do Salão de Jantar para ir ao lugar aonde sempre ia quandoprecisavaderespostas.

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AgathaimediatamentenotouumnovoacréscimonaGaleriadoBem.Atúnica ensanguentada usada por Tedros na Prova tinha ganhado umavitrineprópria,eabaixodelaestavaescritoPROVADOSÉCULO,aoladodeumbreverelatodaaliançacondenadaentreTedroseSophie.Elapodiaverdezenas de digitais no vidro, sem dúvida marcas das meninas que ocobiçavam.Começandoaenjoar,AgathadisparouatéaexposiçãodaEscoladeHistória,ondehaviadúziasdemapasquemostravamosacréscimosdenovas torres ao longo dos anos. Tentou estudá-los à procura de umapassagem escondida, mas logo seus olhos embaçaram-se, e ela se viuseguindoparaonichoconhecido,nocanto.

Passoudiretamentepor todas aspinturasdosLeitores, até chegarnaquemostravaSophieeelaenvoltasporumhaloàbeiradeumlago.Seusolhos lacrimejaram com a visão das duas juntas, era uma vez, duasmelhores amigas. Lá no alto da torre do Diretor da Escola o Storianescreveriaofinal.Aquedistânciaeleaslevariadaquelacostabanhadapelosol?

Olhouapinturadolado,aúltimadafileira.Avisãosombriadecriançasjogandoseuslivrosdecontosdefadasemumafogueira,enquantochamasenuvensdefumaçadevoravamaflorestaemvoltadelas.

AProfeciadoLeitor,disseraLadyLesso.SeriaesseofuturodeGavaldon?Suastêmporaslatejavam,tentandodarsentidoatudoaquilo.Quemse

importava se crianças queimavam livros? Por que Gavaldon era tãoimportantepara Sader e oDiretordaEscola?Equanto a todas as outrasvilas?

“Queoutrasvilas?”HámuitoelahaviadescartadoaspalavrasdoDiretor,comoumaideia

incompleta.Omundoerafeitodevilascomoadela,emalgumlugaralémdasflorestasdeGavaldon.Então,porqueelasnãoestavamnessagaleria?Porquesuascriançasnãoeramlevadas?

Enquantoseupescoçopinicava,seufocovoltava-separaasnuvensdefumaça que cercavam as crianças da pintura, pois agora ela via que nãoeramnuvens.

Eramsombras.Enormes e negras. Saindo sorrateiramente da Floresta e entrando na

vila.Enãopareciamhumanas.

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Subitamente, sua própria sombra na parede estava crescendo,entortando.Agathavoltou-se,horrorizada...

“ProfessorSader”,suspirou.“Receio que eu não seja um pintor muito bom, Agatha”, ele disse,

segurando uma maleta que combinava com seu terno de trevos. “Asreaçõesaosmeusnovosacréscimosforamumtantopobres.”

“Masoquesãoessassombras?”“Pensei emverificar depois quedescobri alguns espinhos faltandona

ExposiçãodoMal.Àsvezes,osvilõesagemexatamentecomovocêespera”,elesuspirou,eseguiurumoàporta.

“Espere! Por que essa é sua última pintura?”, pressionou Agatha. “ÉassimqueterminaocontodefadasparamimeparaSophie?”

O Professor Sader virou-se de volta. “Sabe, Agatha, videntessimplesmente não podem responder às perguntas. De fato, se eu fosseresponderàsuapergunta,envelheceriadezanosnahora,comopunição.Épor isso que tantos videntes parecem tão velhos. São necessários algunsequívocos para que se aprenda a não respondê-las. Ainda bem que eumesmosócometium.”

Elesorriuefoisaindonovamente.“MasprecisosaberseTedroséoverdadeiroamordeSophie!”,Agatha

gritou.“Diga-meseelevaibeijá-la!”“Você aprendeu alguma coisa com a galeria, Agatha?”, disse Sader,

virando-se.Agatha olhou os animais empalhados em volta dele. “Que o senhor

gostadeseusalunosbemempalhados?”Elenãosorriu.“Nemtodoheróialcançaaglória.Masosqueconseguem

têmalgoemcomum.”Aparentemente,elequeriaqueelaadivinhasseoqueera.

“Elesmatamvilões?”,disse.“Nadadeperguntas.”“Elesmatamvilões.”“Pense com mais profundidade, Agatha. O que liga nossos maiores

heróis?”Elaseguiuseuolharvidradoatéosestandartesazuisquependiamdo

teto, cadaumcelebravaumherói icônico.BrancadeNeveemseucaixão,Cinderelacolocandoosapatinhodecristal, Joãomatandoogigante,Mariaempurrandoabruxanoforno...

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“Elesencontramafelicidade”,disse,semgraça.“Ora,bem.Eutenhocoisasafazer.”“Espere...”Agathaconcentrou-senasfaixase fixouamente.Maisprofundamente.

Abaixodasuperfície,oqueessesheróistinhamemcomum?Verdade,todoscompartilhavam beleza, bondade, triunfo, mas onde haviam começado?BrancadeNevevivianasombradamadrasta.Cinderelaeraempregadadeduasirmãspostiças.AmãedeJoãodiziaqueeleeraumimbecil.OspaisdeMariaaabandonaramàprópriasortenafloresta...

Nãoeramosfinaisqueelestinhamemcomum.Eramoscomeços.“Elesconfiavamemseusinimigos”,Agathadisseaoprofessor.“Sim, seus contos de fadas todos começaram quando eles nem

esperavam”,disse Sader, como cisnedouradobrilhandonobolsode seublazer.“Depoisdeformarem-seemnossaescolaelesforamparaaFloresta,esperando batalhas épicas commonstros emagos,mas descobriramqueseus contos de fadas desvendavam-se em suas próprias casas. Nãopercebiamqueosvilõessãoaquelesmaispróximosdenós.Nãonotavamque para encontrar um final feliz um herói precisa primeiro olhar bemdebaixodeseunariz.”

“Então,Sophietemqueolhardebaixodeseunariz”,Agathaestrilou,aosairandando.“Éesseoseuconselho.”

“EunãoestavafalandodeSophie.”Agathaficouolhandopraele,sempalavras.“Diga-lhes que não há motivo para pressa”, disse, da porta. “Eu já

encontreiumasubstituição.”Aportafechou-seatrásdele.“Espere!”,Agathacorreu,escancarandoaporta.“Vocêestáindoaalgum

lu...”MasoprofessorSadernãoestavanocorredor.Elaentroucorrendono

salãodas escadarias,mas ele tambémnão estava ali. Seuprofessor tinhasimplesmentedesaparecido.

Agathaficouempé,entreasquatroescadas,comumnónoestômago.Algumacoisanãobatia.Algolhediziaqueelaestavaentendendotodaessahistória da maneira errada. E, então, ouvia palavras ecoando em suacabeça,exigindosuaatenção.

Debaixodoseunariz.

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Foiquandoelaviu.AtrilhadepedaçosdechocolatesubindoaescadadaHonra.Ospedacinhosdechocolateserpenteavamparacimaportrêslancesde

escada de vidro azul, passavam pelo mosaico de conchas do chão dodormitórioeparavamsubitamentediantedobanheirodosmeninos.

Agathacolouoouvidonaporta incrustadadepérolasedeuumsaltoparatrásquandodoisgarotosSempresaíramdoquartoemfrente.

“Desculpe...”,gaguejou.“Eusóestou...é...”“Essaéaquegostadobanheirodosmeninos”,elaouviu,enquantoeles

passavam.Comumsuspiro,Agathaempurrouaporta.Os sanitários do prédio da Honra pareciam mais mausoléus do que

banheiros, com seus pisos de mármore, frisos de tritões lutando comserpentesmarinhas,mictóriosqueesguichavamáguaazul-royalecabinesdemarfimmaciço,cadaumacomvasossanitáriosebanheirasazul-safira.Seobanheirodasmeninas Sempre cheirava aperfume, ali ela sentiaumaromadepelelimpacomumtoquedesuor.Seguindoorastrodechocolateao longodosvasosebanheirasazuis,elapegou-se imaginandoqualdelasTedrostinhaacabadodeusar...Ficouvermelhadevergonha.Desdequandovocêpensaemgarotos!Desdequandovocêpensaembanheiras!Vocêperdeucompletamente...

Umafungada.Naúltimacabine.“Olá?”,chamou.Nadaderesposta.Elabateunaporta.“Comlicença”,respondeuumavozgrave,obviamentefalsa.“Dot,abraaporta.”Depoisdeumlongosilêncioaportafoidestrancada.AsroupasdeDot,

seucabelo,ocubículo,tudoestavasalpicadocompedacinhosdechocolate,comose ela tivesse tentado transformarpapelhigiênicoemumalimentosustentávelesótivesseconseguidofazerumabagunça.

“Achei que Sophie fosse minha amiga!”, balbuciou. “Mas depois elapegoumeuquartoeminhasamigas,eagoraeunãotenhoparaondeir!”

“Entãovocêestávivendoemumbanheirodemeninos?”“Não posso contar aos Nunca que elas me expulsaram!”, Dot

choramingou, assoandoonariz namanga. “Elesme atormentariamaindamaisdoquefazem!”

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“Mastemdehaveralgumoutrolugar...”“TenteientrarescondidanoSalãodeJantardevocês,masumafadame

mordeuantesqueeuconseguisseescapar!”Agathafezumacareta,sabendoexatamentequaleraafada.“Dot,sealguémencontrá-laaquivãolhereprovar!”“Émelhor ser reprovada do que ser uma vilã sem-teto, sem amigos”,

disseDot, aos prantos. “O que Sophie acharia se alguém fizesse isso comela? O que acharia se você ficasse com o príncipe dela? Ninguém jamaispoderiasertãoperverso!”

Agathaengoliu emseco. “Eu sópreciso falar comela”, disse, nervosa.“Vouajudá-laaconseguirTedrosdevolta,estábem?Vouconsertar tudo,Dot.Euprometo.”

OchorodeDotfoiabrandando,transformando-seemfungadas.“Amigosdeverdadepodemconsertarascoisas,porpiorquepareçam”,

Agathainsistiu.“AtébruxascomoHestereAnadil?”,choramingouDot.Agathatocouseuombro.“Atébruxas.”Lentamente,Dotergueuosolhos. “SeiqueSophiedizquevocêéuma

bruxa,masvocêjamaisseencaixariaemnossaescola.”Agatha sentiu náuseas novamente. “Queria saber como foi que você

conseguiuchegar aqui?”, franziu o rosto, catando farelos de chocolate docabelodeDot.“Nãohámaiscomoatravessarparaasduasescolas.”

“Claroquehá.ComoachaqueSophieatacoutodasaquelasnoites?”AgathadeuumpuxãonocabelodeDot,surpresa.

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25Sintomas

OrioquerugiaatravésdastubulaçõespercorriaolongotúneldoBemparaoMal,interrompidosomentepelaSaladaCondenação,queficavanoponto central entre as duas escolas. Por muito tempo, a Fera haviaguardadoopontocentral,noqualaágualímpidadolagotransformava-senolodoturbulentodofosso.Noentanto,nasduasúltimassemanas,Sophietinha passado despercebida, e sem dúvida voltaria esta noite, comoprometido.AúnicaesperançadeAgathaeradetê-laantesqueatravessasseparavoltaraoBem.

ÀmedidaqueAgathaagarrava-seàsparedesdotúneleaproximava-sedaSaladeCondenação,seupeitofoificandoapertado.Sophiejamaisfalara

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sobre sua punição ali. Será que a Fera havia deixado cicatrizes invisíveisnela?Seráqueelaateriamachucadodemaneirasqueninguémsabia?

“Espereatéqueestejamapontodematá-lo.”Agathagirouacabeçanadireçãodofimdotúnel.“Tedrostemquepensarquevocêosalvoudamorte”,avozdeAnadil

ecoou.Transpirando no vestido, Agatha seguiu abrindo caminho junto à

parededatubulação,atéqueviutrêssombrasagachadasnafrentedagradeenferrujadadocalabouço.

“Todos os Sempre pensarão que foi um ataque de Anadil, não seu”,disse Hester, com a voz ressoando acima do barulho do rio. “Tedros vaipensarquevocêosalvou.Vaiacharquevocêsalvousuavida.”

“Eentãoelevaimeamar?”,perguntouaterceirasombra.Agathacambaleouparatrás,surpresa.Hestervirou-serapidamente.“Quemestáaí?”Agatha saiu da sombra – Hester e Anadil pularam, ficando em pé. A

terceirasombravirou-selentamente.Sob a luz fraca, Sophie parecia pálida, abatida e bem mais magra.

“Minhaquerida,queridaAgatha.”Agatha ficou com a boca seca. “O que está acontecendo?”, perguntou,

comagargantaseca.“Estamosajudandoumpríncipeacumprirsuapromessa.”“Armandoumataque?”“Mostrandoaelequantoeuoamo”,respondeuSophie.Da Sala da Condenação veio um clamor de guinchos e grunhidos

ruidosos.Agathavirou-se.“Oquefoiisso?”Sophiesorriu.“AnadilvemensaiandoparaoCircodeTalentos.”Agathadeuumpuloàfrenteparaveroquehavianacela,masHester

impediu-a. Por cimade seu ombro avistou três focinhos pretos enormes,sobressaindosobreagrade,mostrandodentesafiadoscomolâminas.Elesestavamfarejandoalgoforadeseualcance.

AgravatadeumSemprecomumTbordado.“Nãoenxergamdireito,pobrezinhos”,suspirouSophie.“Captamoalvo

peloolfato.”Agathaficoubranca.“Masissoéde...édeTedros...”“Voupararantesquelhecausemalgumdano,éclaro.Ésópradarum

bomsustonele.”

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“Mas...mas...imagineseatacaremoutraspessoas!”“Nãofoiissooquevocêdissequequeria?Queeuencontrasseoamor?”,

disse Sophie, sem piscar. “Infelizmente essa é realmente amaneiramaissegura,depoisdetudooqueaconteceu.”

Agathanãoconseguiafalar.“Sentisuafalta,Agatha”,disseSophie,baixinho.“Deverdade.”Ela inclinou a cabeça. “Ainda assim é estranho. A Agatha que eu

conheçoadorariaumsalãocheiodepríncipesmortos.”Outrogemidoviolentovindodocalabouço.Agathacorreuparaaporta,

masAnadilpegou-aeprendeu-acontraaparede...“Sophie,vocênãopodefazerisso!”,Agathaimplorava,lutandoparase

soltar. “Você temquepedirqueele aperdoe!É aúnica formadeacertartudooutravez!”

Sophiearregalouosolhos, surpresa.Elaestreitou lentamenteoolhar.“Aproxime-se,Agatha.”

Agathalivrou-sedeAnadiledeuumpasso,sobaluzdatochaquevinhadaSaladeCondenação.

“Sophie,porfavormeouça...”“Vocêparece...diferente.”“O jantar dos Sempre já está quase terminando, Sophie”, pressionou

Anadil,incitandogemidosimpacientesnacela.“Sophie, você pode se desculpar com Tedros no Circo”, disse Agatha,

elevando a voz acima das outras. “Quando você estiver no palco! EntãotodosverãoquevocêédoBem!”

“AchoqueprefiroaAgathaantiga”,disseSophie,perscrutandoorostodela.

“Sophie,nãovoudeixarvocêatacaraminhaescola...”“Sua escola!”, Sophie soltou um grito tão alto e agudo que Agatha se

retraiu.“Entãoagoraéasuaescola,é?”Elaapontouparaolododepoisdopontocentral.“Vocêestádizendoqueaquelaéaminhaescola?”

“Não, claro que não...”, Agatha gaguejou. “Tedros vai perceber isso,Sophie!Elequeralguémemquempossaconfiar!”

“Eagoravocêsabeoqueomeupríncipequer?”“Queroquevocêoconsigadevolta!”“Sabe, não acho que esse visual combina com você, Agatha”, disse

Sophie,dandoumpassonadireçãodela.Agatharecuou.“Sophie,euestoudoseulado...”

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“Não,receioquenãocombinecomvocêdejeitonenhum.”Agathaescorregouecaiu,aterrissandoaumcentímetrodoriobravio.

Rastejou para a frente e ficou paralisada de terror. Assim comoAnadil eHester.

AFeraencarava-asdevolta,seutoscocorponegroenredadopelolodo,juntoàparededorio,comosolhosmortospontilhadosdesangue.

AgathalentamenteergueuacabeçaeviuSophieolhandoparaaFera.“OBemnuncaquerferir,Agatha.Mas,àsvezes,oamorsignificapunir

vilõesqueficamemnossocaminho.”Uivosecoaramdecima.“Acabouojantar”,Anadilengasgou.HestertirouosolhosdaFera.“Agora,Ana!Solte-osagora!”Empânico,Anadilestendeuodedoacesoparaexplodiraportadacela.“Preciso alertá-lo”, Agatha disse, esforçando-se para ficar empé,mas

umaforçaaderrubou.Elaolhouparacima,confusa.Hesterimobilizou-asobreopontocentral

da ponte. “Não está entendendo?”, ela chiou em seu ouvido. “Tedros é oNêmesisdela!SeossintomasdeSophiecomeçarem,nadaimpediráqueelaomate!Estamossalvandoavidadele!”

“Não...issoédoMal...”,disseAgatha.“IssoédoMal!”Sophieaproximou-seefitou-anochão,pertodabeirada,entreolodoe

olago.“Seja delicada, Hester. Apenas ajude-a a voltar para sua verdadeira

escola...”Agatha ouviu a fechadura e viu as sombras das criaturas gigantescas

grunhindonoportão...“Porfavor,Sophie...nãofaçaisso...”OolhardeSophiecruzoucomodelaeabrandou-se.“Nãosepreocupe,Agatha.Dessavez,eutereimeufinalfeliz.”Seurostoficougélido.“Porquevocênãoestaráláparaestragá-lo.”Hester empurrou Agatha dentro do lodo que jorrava. Arrastada em

direçãoaoMal,elaengasgavaecuspia,tentandoemvãoabrirosolhosqueardiam. Mas bem na hora em que o fosso puxou-a para a correnteza,estendeu asmãos cegamente, encontrou uma pele fria – e puxou Sophieparadentro.

As duas garotasmergulharam para o fundo da escuridão turbulenta.Aterrorizada,AgathaempurrouSophieparalonge,eseguiuemdireçãoao

Page 325: Escola do bem e do mal

pontocentraleàágualimpaàsuafrente.Eladeuumaolhadapratráseviuumasilhuetadistante,debatendo-seeafundandonolodo.Sophienãosabianadar.Perdendooar,AgathaoscilouentreaágualimpaeSophie,edeuummergulho.Comseuúltimo lampejodear,agarrouSophiepelacinturaeapuxouparaasuperfície.Suascabeçasvieramà tonasobreo lodo, jábemadiantenatubulaçãodoMal...

“Socorro...”,Sophiebalbuciou.“Segure-se em mim”, Agatha gritou, puxando-a contra a sujeira que

jorrava. Engasgando, sem ar, ela debatia-se em direção à parede, mas opesodeSophieimpedia-adealcançá-la.Ouelaasoltavaouarriscava-seaircontraacorrente.

“Nãomedeixemorrer”,Sophieimplorou.Agatha agarrou-a com mais força e deu um impulso em direção à

parede.Elanãoconseguiualcançá-la,eolodobateucontraelas,separando-as.Submersa,elaesticouamãoàprocuradeSophie,massóencontrouseusaltodevidro,eviuaamigasendopuxada,afogando-senaescuridão.

Derepente,ganchosprateadosagarraram-nas...Atônitas, as duas garotas olharam para trás, e viram uma onda

brilhante impulsionando-as pra fora do lodo em direção à água azul elímpida.Quandoaondaergueu-se,elasperceberamquepodiamrespirar,erenderam-se às últimas baforadas de ar em suas bochechas ofegantes. Àmedidaquefixavamsuavisão,AgathaviuorostodeSophieficandotriste,depois assustado, como se tivesse acordado de um pesadelo terrível. E,justamente quando a onda encantada puxou-as em cristas separadas,prestesa lançá-lasdevoltaasuasescolas,osolhosdeAgathaabriram-secompletamente.

Uma sombra familiar avançava na direção delas, preta e encurvada.AntesqueAgathapudessegritar,asombragolpeou-asparadentrodaonda,desalojando as meninas. Ela pegou-as com seus dedos delgados e asarrastouparalongedoscastelos,emdireçãoàsmargensexternasdolago.AgathaviuSophiedebatendo-separasedefenderejuntou-seaelaemsualuta.Tendoapanhadodevolta,asombraperdeusuapegada,masquandoSophie lançou-senadireçãodeAgatha,asombrapegou-apelosquadrisejogou-a para fora da água com uma força aterrorizante. Engasgando deterror,Agathatentouseafastarnadando,masasombraavançouepuxou-aparaafrente,atirando-aviolentamente,porbaixodaágua,emdireçãoaumarrecifederochas.Elafechouosolhoserezouporumamorteinstantânea

Page 326: Escola do bem e do mal

na hora exata em que o Diretor da Escola agarrou-a e tirou-a do lago,lançando-anoarfriodanoite.

Agathabateunochãotãoviolentamentequetevecertezadequehaviadesmaiado.Dealgumaformaelaaguentoufirmeportemposuficienteparaabrirosolhoseverárvoresgigantescasenvoltasporespinhosvioleta.EladeviaestaremalgumlugardoterritóriodoBem.Agathatentousentar-semas seu corpo explodia de dor, e ela desmoronou de volta na terramolhada.PorqueoDiretordaEscolaatacouaonda?Comoelepôdeatirá-laalisemexplicação?Suacabeçalatejavaderaivaeconfusão.ElacontariaàprofessoraDoveyoqueacontecera...exigiriarespostas...

Primeiro,porém,precisavavoltarparaaescola.Agathaergueuacabeça.Elasóconseguiaenxergarasárvoresenormes,

com guirlandas roxas de arbustos espinhosos. Ela devia estar perto docampode floresondeelaeasgarotasSemprechegaram,noprimeirodia.Mas, onde estava o lago? Ela olhou para trás e viu um brilho refletir-seentre os galhos. Transbordando de alívio, rastejou para a frente,contraindo-sededor,atéestarpertoosuficienteparaver.

Seuqueixocaiu.Não era o lago. Eram os portões de lanças douradas, com a placa:

“INVASORES SERÃOMORTOS”. A Escola doBem reluzia atrás deles, comseuspináculosacesosemrosaeazul.

Agathanãoestavanoterritórioescolar.ElaestavanaFloresta.“Agatha!”,Sophiegritou,aliperto.Agathaficoupálida.ODiretordaEscolatinhalibertado-as.Elasentiuumaondadealívio,edepoispontadasdemedo.Tudooque

ela sempre quis foi voltar para casa com Sophie. Contudo, o que tinhaacontecidonastubulaçõesdeixara-aaterrorizada.

“Agatha?Ondeestávocê?”Agatha não fez nenhum som. Será que ela deveria encontrá-la? Ou

deveriafugirparacasasozinha?Seu coração batia mais depressa. Entretanto, como poderia partir

agora?Quandofinalmentesentiaquepertenciaàquelelugar?“Agatha!Soueu!”

Page 327: Escola do bem e do mal

AdornavozdeSophietirou-adeseutranse.Oqueaconteceucomigo?Sophie estava certa. Ela havia começado a acreditar que essa era sua

escola, seu contode fadas.Havia até começado a torcerparaqueo rostoqueelaestavasemprevendotalvezfossede...

Ninguémpoderiasertãoperversa,disseDot.Agathaficouvermelhapelaculpa.“Sophie,estouindo!”,elagritou.Sophienãorespondeu.Subitamenteansiosa,Agathaarrastou-separaa

frente,emdireçãoaoúltimochamado,comseucisnereluzindonoescuro.Algofezcócegasemsuaperna.

Ela deu uma olhada para baixo e viu uma vinha de espinhos violetasubindo por seu quadril. Chutou,mas viu-a enroscando sua outra perna.Deuumsolavancopratrás,masduasvinhasprenderamseusbraços,duasprenderam seus pés, e foram multiplicando-se até prenderem cadacentímetro de seu corpo. Agatha sacudia-se tentando se livrar, mas osespinhosprendiam-nano chão como a um carneiro prontopara o abate.Então veio uma vinha mais grossa, escura, serpenteando e subindomalignamente por seu peito. Ela parou a um centímetro de seu rosto eolhou-acomsualançaroxa.Comcalmaelarecuouemergulhounadireçãodeseucisne.

Oaçorasgouavinha,braçosmornospuxaramAgathaparacima...“Agarre-se em mim!”, gritou Tedros, arrancando as vinhas com sua

espadadetreino.Confusa, Agatha agarrou-se ao peito dele, enquanto ele enfrentava as

chicotadasdosespinhoscomgemidosdedor.LogoeleobteveocontroleepuxouAgathadaFlorestaemdireçãoaosportõesde lança,quereluziramem reconhecimento e abriram-se,mostrando o caminho estreito para osdoisSempre.Depoisqueosportõessefecharam,AgathaolhouparaTedros,mancando, todo arranhado e ensanguentado, com a camisa azul emfarrapos.

“Tive a sensaçãodeque Sophie estava entrandopela Floresta”, disse,ofegante, puxando-a com seus braços cortados, antes que ela pudesseprotestar. “Então a professora Dovey me deu permissão para trazeralgumasfadaseficaràespreitanosportõesexternos.Eudeveriasaberquevocêestariaaquitentandopegá-la.”

Agathaolhavaparaelecomoumaboba.

Page 328: Escola do bem e do mal

“Que ideia tola para uma princesa, enfrentar bruxas sozinha”, disseTedros,comosuorpingandosobreovestidorosadela.

“Ondeestáela?”,perguntouAgatha,comavozrouca.“Elaestásegura?”“Tambémnãoéumaboaideiaprincesaspreocuparem-secombruxas”,

disse Tedros, segurando-a pela cintura. A barriga dela explodiu em milborboletas.

“Ponha-menochão”,eladisse.“Maisideiasruinsparaumaprincesa.”“Ponha-menochão!”TedrosobedeceueAgatharecuou.“Nãosouumaprincesa!”,elarepreendeu-o,arrumandosuagola.“Sevocêestádizendo”,disseopríncipe,olhandoparabaixo.Agathaolhouparaasprópriaspernascortadas,escorrendosangue.Ela

viuosangueficandoembaçado...Tedrossorriu.“Um...dois...três...”Eladesmaiounosbraçosdele.“Decididamenteumaprincesa”,eledisse.Tedroscarregou-aemdireçãoaseisfadasdistantes,quebrincavamno

lago,eparouderepente.Nogramadomorto,Sophieergueuosolhos,comatúnicapretaensanguentada.

“Agatha?”“Você!”,Tedrosdisse,furioso.Sophieimpediuocaminhodele,estendendoosbraços.“Dê-me.Eufico

comela.”“Issoéculpasua!”,Tedrosvociferou,segurandoAgathacommaisforça.“Ela salvou minha vida”, Sophie disse, sussurrando. “Ela é minha

amiga.”“Umaprincesanãopodeseramigadeumabruxa!”Sophie ficou furiosa e seudedo acendeu em rosa.Tedrospercebeu, e

seu dedo instantaneamente reluziu em dourado, em riste, para sedefender...

OdeSophiefoilentamenteenfraquecendo.Quaseseapagou.“Nãoseioqueaconteceucomigo”,sussurrou,aslágrimasbrotando.“Nemtente”,Tedrosrosnou.“Éaquelaescola”,eladizia,aosprantos.“Aescolamemodificou.”“Saiadomeucaminho!”“Porfavor...medêumachance!”

Page 329: Escola do bem e do mal

“Saia!””Deixe-memostrar-lhequesoudoBem!”“Euavisei”,disse,partindoparacimadela...“Tedros,desculpe-me!”Sophiegritou,maseleapenasempurrou-apara

olado,eseguiuemfrente.“OBemperdoa”,umavozsussurrou.Tedros parou. Ele olhou para baixo, para Agatha, fraca, junto ao seu

peito.“Vocêprometeuaela,Tedros”,disseAgatha,baixinho.Eleaolhava,perplexo.“Oquê?Oquevocêestádizen...”“Leve-adevoltaaocastelo”,disseAgatha.“Mostreatodosqueelaésua

princesaparaoBaile.”“Maselaé...elaé...”“Minhaamiga”,disseAgatha,cruzandocomoolharchocadodeSophie.AcabeçadeTedrosviravadeumaparaaoutra.“Não!Agatha,ouça-me...”“Cumprasuapalavra,Tedros”,disseAgatha.“Vocêtemdecumprir.”“Nãoposso...”,elesuplicou...“Perdoe.”Agathaolhounofundodosolhosdele.“Pormim.”AvozdeTedrosfalhou,eeleperdeuofervor.“Vá”,disseAgatha,soltando-sedele.“Euvoltareicomasfadas.”Infeliz, Tedros tirou o restante dos trapos de sua camisa azul e

embrulhou-os ao redor dos ombros trêmulos dela. Ele abriu a boca parabrigar...

“Vá”,eladisse.Tedrosnãoconseguiaolharparaelaedesviou-se,zangado–suaperna

cortadabambeou.Sophiedeuumsaltoàfrenteecolocouoombroembaixodobraçodele,segurando-opelopeito.Oprínciperetraiu-sedeseutoque.

“Porfavor,Teddy”,Sophiesussurrou,emmeioàslágrimasdevergonha.“Prometoquevoumudar.”

Tedros afastou-a, esforçando-se para ficar em pé, mas então ele viuAgathaatrásdeSophie,eseuolharofezlembrar-sedesuapromessa.

Tedros tentou lutar consigo mesmo... tentou dizer a si mesmo quepromessas podiam ser quebradas...mas ele sabia a verdade. Ele relaxou,juntoaopeitodeSophie.

Surpresa,Sophieajudou-oaseguiremfrente,temendodizerqualquerpalavra.TedrosolhoudevoltaparaAgatha,quepareciaaliviada,eseguia

Page 330: Escola do bem e do mal

atrásdeles,sozinha.Resignado,opríncipesuspirou,eseguiucambaleandoparaafrente,sobobraçodeSophie.

Sophie puxou-o em direção ao lago, com toda a sua força, ofegante,fungando.AospouquinhoselasentiuTedrosrender-seaoseuapoio.Comum rápido olhar para ele, ela sorriu, por entre as lágrimas, com seudelicadorostoarrependido.Finalmente,opríncipeconseguiuretribuircomumsorrisorancoroso.

A meia-lua escondeu-se atrás das nuvens, banhando-os com sua luzpurificadora. Quando ele e Sophie chegaram ao lago com seus corposentrelaçados,Tedrosolhouparabaixo,paraasombradosdois,empassosperfeitamentesincronizados,parasuasbotasaoladodossapatosdevidrodela,eviuseureflexoensanguentadonaágualimpa,aoladodoreflexodeuma...bruxavelhahorrenda.

Tedros virou-se, horrorizado, mas ali só estava a bela Sophie,conduzindo-obondosamenteaoBem.Eleolhoudenovoparaolago,masaáguaficaraenevoada.Apeledelearrepiou-se.

“Nãoposso...”,engasgou,soltando-se...“Teddy?”,Sophiesuspirou.Elecambaleouparatrás,eapoiouAgatha,queficoumuitosurpresa.Sophieficoubranca.“Teddy,oquefoiqueeufiz...”“Fique longe de nós!”, disse, segurandoAgatha junto ao peito. “Fique

longedenósdois!”“Nós?”,Sophiegritou.“Tedros,espere”,Agathaimplorou.“Equanto...”“DeixequeelaencontreseucaminhoparaoMal”,vociferouopríncipe,

erguendoseudedoacesoparachamarasfadas.Sophie encolheu-se, chocada. Agatha olhou para trás, dos braços de

Tedros,vermelha,querendosedesculpar.Masorostodaamiganãotinhanadadeperdão.Emvezdissoeleinchava-se,comraivaeódioferozes...

“OLHEPARAELA!”Oecoressooupelolago.Agathaficoupálida.“ELAÉUMABRUXA!”,Sophiegritou.Tedros virou-se lentamente, perfurando-a com o olhar. “Olhe mais

atentamente.”Sophiefitou-os,horrorizada,enquantoasfadasrevoavamaoredordos

Sempre.NosbraçosdeTedros,Agathatinhaamesmaexpressão.

Page 331: Escola do bem e do mal

Poisagoraelaviaqueasduassempreestiveramnaescolacerta.EnquantoSophieviaas fadasvoaremcomAgathaeseupríncipepara

longe,elamanteve-separalisadaàsmargensdolago,ofegante,sozinhanaescuridão. Seus músculos retraíram-se de tensão, depois seus dedoscurvaram-se em punhos fechados e estalados. Seu sangue fervia,esquentando-secadavezmais,seucorpoardiaemfogo,equandoelaachouque irromperiaemchamas–umadoragudaperfurouseuqueixo.Sophielevouamãoatéele.

Haviaalgoali.Elapassouseusdedosnolocal,tentandoentender,atéquesentiugotas

que caíamem seusbraços. Eladeuumpassopara trás, enquanto a ondaerguia-seládoalto,cobrindo-adesombra...

Sophieatravessouajaneladoquarto66envoltaemummontedelodo.HestereAnadilpularamdacama.“Nósprocuramosporvocêportoda

parte...ondevocêestava...”Levandoamãoaorosto,Sophiepassouporelasrastejando,atéoúltimo

cacodeespelhorestantenaparede,eparoubruscamente.Haviaumaverrugapretaeimensaemseuqueixo.Sophiecutucou-afreneticamente,puxando-a–depoisviusuascolegas

dequartopeloreflexo,ambasbrancascomolençóis.“Sintomas”,sussurraram.Encharcada,pingando,tremendo,Sophiesubiucorrendoasescadas,até

oescritóriodoúltimoandar,earrombouatrancacomseudedoaceso.LadyLesso veio bruscamente de seu quarto, de camisola, de dedo em riste.Sophieinstantaneamentelevitoudochão,sufocada,tentandorespirar.

LadyLessobaixouamão, calmamente, trazendoSophieaochão.Comosolhosarregalados, foinadireçãodeSophie,epegouseurosto trêmulonasmãos,comsuasunhasvermelhasafiadas.

“Bem a tempo para o Circo”, ela disse, com os dedos acalentando averrugapreta.“OsSemprequesepreparemparaumasurpresa.”

Sophiedebatia-se,embuscadepalavras...“Àsvezes,nossoscapangasnosconhecemmelhordoquenósmesmos”,

disseLadyLesso,maravilhada.Sophiesacudiuacabeça,sementender.Os lábios de sua professora roçaram sua orelha. “Ele está esperando

porvocê.”

Page 332: Escola do bem e do mal

Quandoastochasdoscastelosseapagaram,somenteumaluagrávidapermaneceu, iluminando uma sombra que cortava a Floresta Azul.Encobertaemsuacapapretadepeledecobra,Sophieseguiapisandofortepor entre as samambaias e os carvalhos, tremendo descontroladamente.Quando chegou no imenso poço de pedra, jogou seu corpo violenta erepetidamentecontraapedraquebloqueavaaentrada,até fazê-laceder.Entrando no balde, desceu até as profundezas do poço, penetrando naescuridão,atéqueumpedacinhodeluailuminouofundo.

Junto àparede leitosa e lisa,Grimmesperava, comasbochechas e asasas enegrecidas pela sujeira. As paredes à sua volta estavam recobertascommilharesdedesenhosdomesmorosto.Umrostoentalhadoembatomvermelho-sangue.Umrostoqueelanãotinhaconseguidodecifraremseussonhos.Masali,nacaladadanoite,seuNêmesistinhaumnome.

EnãoeraTedros.

Page 333: Escola do bem e do mal

26OCircodeTalentos

“Para o escritório da professora Dovey”, Tedros ordenou às fadas,enquantoeleeAgathadeixavamumrastrodesanguepelocéu.

“Paraomeuquarto”,Agathaordenouàsfadinhasqueatransportavam.“Masvocêestáferida!”,disseTedros,tremendo...“Se contarmos a alguém o que aconteceu, as coisas vão ficar ainda

pioresdoquejáestão”,disseAgatha.Asfadassepararam-nos.“Espere!”,Tedrosgritou...“Não diga a ninguém!”, Agatha respondeu, seguindo em direção aos

pináculoscor-de-rosa.“VocêestaránoCirco?”,Tedrosperguntou,voltandoaoazul...MasAgathanãorespondeu,enquantoeleesuasfadasiamsumindoaté

viraremluzinhascintilantes.

Page 334: Escola do bem e do mal

Enquantosuasprópriasfadaserguiam-serumoaocéuescuro,elaolhouparaatorreprateada,nasombraacimadaenseada,sentindo-sedeprimidae entorpecida.ODiretordaEscola tinha alertado asduas. Ele tinha vistoquemelaseram.

Ela embrulhou-se na camisa ensanguentada de Tedros, com as fadasvoandomaisemaisaltoatravésdoventocortante.Contudo,àmedidaqueAgathaolhavaparacimaeviaas janelasacesaspor lanternas,esilhuetasenfeitando-separaanoitedaspropostas,aculpaeochoqueforamardendodentrodelaetransformando-seemraiva.

Osvilõessãoosmaispróximosdenós.Vilõessobomantodemelhoresamigos.Ah,sim,elaestarianoCirco.PorqueSaderestavacerto.EssecontodefadasnuncatinhasidodeSophie.Eleeraseu.

“Então,nofimdascontas,nãohouveataque?”,perguntouaprofessoraAnêmona,tomandoumgoledesuasidrafervente.

Empé,juntoàjaneladeseuescritório,aprofessoraDoveyolhavaparaa torre do Diretor da Escola, de um vermelho polido, no sol poente. “OprofessorEspadadissequeosmeninosnãoencontraramnada.Enquantoisso, Tedros passoumetade da noite vasculhando o terreno inutilmente.Talvez essa tenha sido a tática de Sophie. Roubar o sono dos nossosmelhoresparticipantes.”

“As meninas também quase não dormiram”, disse a professoraAnêmona, limpandoa sidraderramadanocisnede sua túnicadepelodecamelo.“Vamostorcerparaqueestejamcomumaaparênciadecenteparaaspropostas.”

“O que ele tem tanto medo que vejamos?”, perguntou a professoraDovey, olhando para a água. “Qual é o sentido de preparamos os alunosparaessasprovassenãopodemosestarláparaapoiá-los?”

“Porquenãoestaremosláparaapoiá-losnaFloresta,Clarissa.”AprofessoraDoveydesviou-sedajanela.“É por isso que ele nos proíbe de interferir”, disse a professora

Anêmona.“Nãoimportaquãocruéisascriançassejamumascomasoutras,nadapodeprepará-lasparaacrueldadequesuashistóriaspodemter.”

Page 335: Escola do bem e do mal

AprofessoraDoveyficouquietaporuminstante.“Émelhorquevocêvá,querida”,eladisse,finalmente.AprofessoraAnêmonaolhouparaopôrdosoledeuumsalto.“Minha

nossa! Você quase fica presa aqui comigo a noite inteira! Obrigada pelasidra.”Elaseguiuatéaporta...

“Emma.”AprofessoraAnêmonaolhouparatrás.“Elamedámedo”,disseaprofessoraDovey.“Aquelagarota.”“Seusalunosestãoprontos,Clarissa.”A professora Dovey conseguiu dar um sorriso e assentiu. “Em breve

ouviremosseusgritosdevitória,não?”Emmajogouumbeijoefechouaportaaosair.AprofessoraDoveyficouobservandoosolnohorizonte.Quandoocéu

ficou escuro, ela ouviu o estalo do trinco. Foi rapidamente até a porta epuxou-a... então tentou explodi-la com sua varinha, atirar nela com seudedo,masjáestavalacradaporumamagiamaisfortedoqueadela.

Elacontorceuorostodenervoso,depoisrelaxoulentamente.“Eles estarão seguros”, suspirou, arrastando-se até o quarto. “Eles

sempreestão.”

NodiaanterioraoBaile,àsoitohorasdanoite,osalunosentraramnoTeatrodeFábulaseviramqueelehaviasidointeiramenteencantadoparaa ocasião. Um candelabro com dez velas em formato de cisnes pairavasobrecadaladodoteatro.AsvelasproduziamchamasbrancasnoladodoBem, e azul-escuras no lado do Mal. Entre os lustres, a Coroa do Circoflutuava,todafeitaemaço,brilhandosobaluzdaschamas,comsuassetepontasafiadasesperandopelovencedordanoite.

As garotas Sempre chegaramprimeiro, preparadaspara receber suaspropostasparaoBaile,comvestidosdenoitecoloridosesorrisosnervosos.Enquanto entravam pelas portas do lado esquerdo, ostentandobandeirinhascomcisnesbrancosefaixascomosescritosEQUIPEDOBEM!,flores de vidro borrifavam-nas com fragrâncias e ornamentos de cristalganhavamvida.

“Saudações, bela donzela, poderá o seu talento render-nos a Coroa?”,diziaumpríncipede cristal, enquanto lutava comumdragãoqueexpeliaumanévoaescaldante.

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“Ouçodizerqueatalmenina,Sophie,émesmoformidável.Vocêpodederrotá-la?”, perguntava umaprincesa de cristal ao ladodele, sobre umarocadefiarquereluzia.

“Nãoconseguientrarparaaequipe”,admitiuKika.“Sempre alguém é deixado para trás”, disse o príncipe, cravando a

espadanodragão.Pelas portas do lado direito, os ruidosos Nunca atiravam-se para

dentro, agitando cartazes horríveis com os rabiscos EQUIPE DO MAL!,enquantoHortbalançavaumabandeiracomumcisnepretocomtamanhaavidez que quebrou as estalactites do teto, fazendo com que os Nuncasaíssem em debandada para se proteger. Quando correu para pegar umlugar, Hort viu as marcas chamuscadas na parede contorcerem-se eformarem sombras de monstros que comiam camponeses e bruxas quecozinhavamcrianças.Osfrisosdosbancosganharamvida,comospríncipesentalhados em madeira gritando, enquanto os vilões atrás delesapunhalavam-nos,lançandofluidospretosparatodososlados.

“Quem fez tudo isso?”, ele perguntou, com os olhos arregalados,salpicadosdepreto.

“ODiretordaEscola”,disseRavan, tapandoosouvidospor causadosgritos.“Nãoédeadmirarqueelenãodeixeosprofessoresentrarem.”

Enquanto isso, à medida que os últimos Nunca e Sempre chegavam,acompanhados por lobos e fadas, eles também sentiam a empolgação deum salão sem adultos. Tedros era o único que parecia inabalado. Foi oúltimoapassar,mancando,usandocalçascremeeumacamisaazul-royal,cujas tirasdesamarradasdeixavamàmostraocorteemseupeito.Comorosto salpicado por arranhões raivosos, ele examinou os bancos dosSempre à procura de alguém, depois sentou-se sozinho, amuado peladecepção.

Ao vê-lo, Hester ficou tensa. “Onde está Sophie?”, perguntou paraAnadil,ignorandoosolharesdeDot,nofimdobanco.

“ElanãovoltoudasaladeLesso!”,Anadilcochichou.“SeráqueLessoacurou?”“Outalvezossintomastenhampiorado!ImagineseelaatacarTedros?”“Maselenãotemnenhumsintoma,Ana”,disseHester,olhandoparao

príncipe.“Quandocomeçamossintomasdeumvilão,seuNêmesisficamaisforte!”

Contudo,sentadoemseubanco,Tedrossópareciafracoeabatido.

Page 337: Escola do bem e do mal

Anadilficouboquiaberta.“MasseelenãoéoNêmesisdeSophie,entãoquemé?”

Atrás delas, as portas do lado dos Sempre abriram-se, e a mais belaprincesajávistaportodosentroudeslizandopeloTeatro.

Elausavaumvestidoazul-marinhoquecintilava,comdelicadasfolhasdouradas, e uma longa cauda de veludo que arrastava-se pelo corredor.Seus cabelos brilhantes, cor de ébano, estavam presos bem no alto, comumatiaradeorquídeasazuis.Deseupescoçopendiaumpingentederubi,quecontrastavacomsuapeleclara,assimcomoosanguecomaneve.Nosolhosescuroselausavaumasombradourada,enoslábiosumbrilhorosa.

“Estámeio tarde para novos alunos”, disse Tedros, com um olhar decobiça.

“Elanãoénova”,disseChaddick,aoseulado.Tedros seguiu o olhar dele até as botinas pretas com as pontinhas

aparecendoporbaixodovestido,eengasgou.Com um sorriso dissimulado, Agatha passou por Beatrix, que estava

petrificada,pelosmeninosquebabavam,epelasmeninasque,subitamente,temiampor seusparesnoBaile, e sentou-se ao ladodeKika, cujosolhosestavamquasepulandodorosto.

“Magianegra?”,Kikaperguntou,olhandoderelance.“SaladeEmbelezamento”,sussurrouAgatha,avistandoolugarvaziode

Sophie.ElaviuqueTedrostambémperceberaaausênciadela.Eleolhoudevolta,eseusimensosolhosazuiscruzaramcomosdela.

Do outro lado do corredor, Hester e Anadil ficaram brancas,compreendendotudo.

“Bem-vindosaoCircodeTalentos.”Todos os alunos olharam para cima e viram o lobo branco no palco,

com uma fada que flutuava ao seu lado. “As apresentações dessa noiteconsistirão de vinte duelos feitos por ordem de classificação”, rugiu. “OSemprequefoiavaliadoemdécimolugarapresentaráseutalento,seguidode umNunca com amesma colocação. O Diretor da Escola consagrará ovencedorepuniráoperdedorpublicamente.”

OsalunosexaminaramoTeatroavidamente,buscandoporele.Olobofungoueprosseguiu.

“Nós prosseguiremos com o nono par, depois com o oitavo, atéchegarmos ao par que obteve o primeiro lugar nas avaliações. Ao finaldestanoite,aquelequeforavaliadopeloDiretordaEscolacomootalento

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mais expressivo será o ganhador da Coroa do Circo, e sua escola terá oTeatrodeFábulasnoanoquevem.”

O Bem entoou: “JÁ GANHOU!! JÁ GANHOU!!”, enquanto os Nuncaacrescentavam:“ACABOU!!ACABOU!!”.

“Sóporquenãoháprofessoresaquinãosignificaquevocêspodemagirfeito animais”, rugiu o lobo, com a fada tilintando em acordo. “Não meimportoseprecisarbateremumaouduasprincesasparasairdaquimaisdepressa.”

AsgarotasSempreseguraramarespiração.“Se tiverem perguntas, guardem-nas para vocês. Se precisarem ir ao

banheiro, façam nas calças”, rugiu o lobo. “Porque as portas estãotrancadas,eoCircocomeçaagora.”

AgathaeTedrossuspiraramdealívio.HestereAnadiltambém.Porque, de todas as atuações que veriam naquela noite, Sophie não

estariaemnenhuma.

Os Sempre ganharamas quatro primeiras disputas, deixandopara osNunca as punições do Diretor da Escola. Brone começou a soluçarborboletas,Arachneperseguiacegamenteseuúnicoolho,quequicavapeloteatro inteiro, Vex viu suas orelhas pontudas aumentarem até ficar dotamanho de orelhas de elefante, todos sendo vítimas do juiz invisível doCirco,quepareciadeleitar-seempuniroMal.

Vendo outra vela do Mal sendo apagada, Agatha sentiu-se mal. Sófaltavamtrêsrodadasparaasuavez.

“Qualéoseutalento?”,Kikacutucou-a.“Usarmaquiagemconta?”,perguntouAgatha,poucoàvontade,notando

queosgarotosSempreaindaestavamlhelançandoolharessorrateirosdeadmiração.

“Não importa como olhem pra você, Agatha! Nenhum príncipe vaiproporaalguémqueperdeparaoMal!”

Agatha retesou-se. Suamente ficou embaçada commil coisas,mas sóumaimportava.Porqueseninguémaconvidasse...

Vocêéreprovada.Comarespiraçãoacelerada,Agathavirou-separaopalco.Elaprecisava

deumtalentoagora.

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“ApresentandooNuncaRavan!”,anunciouolobo,eafênixentalhadanafrentedopalcobrilhouemtomverde.

Com sua cabeleira oleosa e suas grandes pupilas pretas, Ravan olhouparabaixoeviuosSemprebocejando,prontosparaoutramaldiçãotoscaou para mais um monólogo vilanesco. Ele acenou para seus colegas debeliche,quepuxarambateriasdesobosbancosetocaram,paralhedaroritmo.Ravancomeçouapulardeumpéparaooutro,depoisacrescentouposesangularescomosbraços,eantesqueosNuncapercebessem,umdeseusmelhoresvilõesestava...

“Dançando?”,disseHester,espantada.Asbatidasaceleraram-se,ospulosdeRavan ficarammais ruidosos, e

seusolhostornaram-severmelhosemalevolentes.“Umvilãodeolhosvermelhos”,murmurouTedros.“Inovador.”De repente, ouviu-se um estalo bem alto. Primeiramente, todos

acharamqueosomestivessevindodospésdeRavan,edepoisviramquevinha de sua cabeça, pois ao lado dela surgiu uma segunda. Ele bateunovamenteospés, euma terceira cabeçaapareceu,depois, umaquarta euma quinta, até que dez cabeças rosnavam, equilibrando-se em seupescoço, formando uma fileira horripilante. Os tambores cessaram, asbatidasdepéschegaramaoauge,Ravansaltoudopalcoecaiuagachado,comaspernasabertas,mostrandodez línguase irrompendoemruidosaschamas.

OsNuncaficaramempé,aplaudindoefusivamente.“Quem pode superar isso?”, gritou Ravan, agora com apenas uma

cabeça,enquantoafumaçadissipava-se.Agatha notou que os guardas-lobos do Mal não pareciam

impressionados. Em vez disso, eram as fadas que zuniam empolgadas.Talvezelestenhamfeitoumaapostapeloplacarfinal,imaginou,voltandoapensaremsuacarênciadetalentos.OsNuncaestavamficandomelhoresacada apresentação, e ao contrário dos Sempre, que tinham ganhado atéagora,elanãoconheciatruquescomlaçosouespadas,nemsabiaencantarserpentes.ComopoderiaprovarqueeradoBem?

AgathaviuTedrosolhandoparaelanovamente,esentiuumapertopordentro que lhe tirou o fôlego. O tempo todo ela pensara que voltar paracasa com Sophie era o seu final feliz,mas não era. Seu final feliz era ali,naquelemundomágico.Comseupríncipe.

Elahaviapercorridoumlongocaminhodesdeseucemitério.

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Agoratinhasuaprópriahistória.Suaprópriavida.OsolhosdeTedrosfixaram-senosdela,brilhandoesperançosos,como

senãohouvessemaisninguémnomundo.Ele é seu, o reflexo dela prometera, vestido damesma forma que ela

estavavestidaagora.ElahaviaidoàSaladeEmbelezamentotorcendoparasentir-seigualàquelaprincesaqueretribuíraseusorrisonaPonte.

Então por que não estava sorrindo? Por que ainda estava pensandoem...

Sophie?Tedrossorriuradiantee,comasmãosemconchaaoladodaboca,fez

mímicacomoslábiosdizendoQualéoseutalento?Agathasentiuumnónabarriga.Estavachegandoasuavez.“Apresentando o Sempre Chaddick!”, anunciou o lobo branco, com a

fênixreluzindoemdourado.Os Nunca atacaram Chaddick com vaias emãos cheias demingau. A

decoração do lado do Mal também entrou em cena, com as marcasqueimadas da parede mostrando-o surrado, queimado, decapitado,enquanto os vilões esculpidos nos bancos lançavam-lhe lascas e seiva demadeira. Chaddick, com seus braços louros e peludos cruzados sobre opeito,encaravatudocomumsorrisotranquilo.Entãoelesacouseuarcoedisparou uma flecha na direção dos bancos. Ela ricocheteou, passandopelasorelhasepescoçosdosNunca, fezummovimentodebumerangueetingiu as marcas chamuscadas nas paredes de vermelho, antes de baternovamenteemcadaentalhe,espetando-osumaum,atéqueelesgemeramemcoroecaíramemumsilênciomortal.

Outravelaapagou-senolustredoMal.OsorrisodeRavandesapareceu.Nomesmoinstante,foiiçadoaoarpor

umaforçainvisível.Umnarizdeporcosurgiuemseurosto,umrabosurgiuemseutraseiro,ecaiunocorredorcomumruidosooinc.

“GanhamosSempre”,olobosorriu.Que estranho, pensou Agatha. Por que ele quer que seu próprio lado

perca?O coração de Agatha agitou-se. Ela não conseguia concentrar-se com

suamenteoscilandoentreSophieeTedros,entreaempolgaçãoeaculpa.Talento...Penseemumtalento...ElanãopodiafazerMogrificação,jáqueoscontrafeitiçosdosprofessoresestavamativos,nempodiafazerseusfeitiçospreferidos,poiseramtodosdoMal.

Page 341: Escola do bem e do mal

“Vouapenaschamarumpássaro,oualgoassim”,murmurou,tentandolembrar-sedasliçõesdeUma.

“É... como o pássaro vai entrar?”, perguntou Kika, apontando para asportastrancadas.

Agathaquebrousuaunharecém-pintada.Com seus talentos ainda trancados na Sala da Condenação, Anadil

tentou fazer um feitiço para destrancar as portas, mas descobriu que amagiaerafortedemaisparaserrompidae,comopunição,foiatacadaporumacolôniadepercevejos.Então,HorttomouopalcoparaseuconfrontocomBeatrix.DesdeaProva,vinhasubindoemsuasavaliaçõesnatentativade buscar uma chance no Circo, o que, ele garantia, faria com que fossefinalmente respeitado.Agora,porém,usavaamaiorpartede seusquatrominutos no palco gemendo e espirrando, tentando fazer brotar pelos emseupeito.

“Euvourespeitá-loseelesesentar”,disseHester,enquantoosNuncavaiavam.

Contudo, assim que o tempo se esgotou, Hort soltou um grunhidoviolento e estalou o pescoço. Gemeu e seu peito inchou. Berrou e suasbochechas estufaram-se. Contorceu-se, agitou-se bruscamente, deusolavancos,ecomumgritoprimal,explodiuparaforadesuaroupa.

Todosrecostaram-seemsuascadeiras,emchoque.Hort olhou com escárnio para baixo, com seus imensos músculos

cobertos de pelos marrons e seu focinho de dentes afiados, molhado ecomprido.

“Eleéum...lobisomem?”,sussurrouAnadil.“Umhomem-lobo”,disseHester,afastandoospensamentosdocadáver

daFera.“Temmaiscontroledoqueumlobisomem.”“Estãovendo?”,Hort,olobo,rosnavaparatodos.“Estãovendo?”Subitamentesuaexpressãomudou,ecomumpuf! flatulentomurchou

devoltaparao seu corpoesqueléticoe sempelos, abaixando-seatrásdopalcoparasecobrir.

“Euretiroapartedocontrole”,disseHester.Aindaassim,oMalachouquetinhaganhado,atéqueBeatrixentrouno

palco, usando um vestido campestre cor de pêssego, segurando umcoelhinho branco e cantando uma música tão doce que logo todos osSemprecantavamjunto:

Page 342: Escola do bem e do mal

EupossosermáEagircombaixezaOquenãoquerdizer,queeunãochegueàgrandeza...

MasfuisemprefielElhedisseaverdadeSouquemsempreotratoucombondade

NãosereisuaamigapormomentosvãosNemjurareiamorcausandodecepção,Tedros,seráquenãomereçoasuamão?

“ElesnãoserãoperfeitosnoBaile?”,KikasuspirouparaAgatha.EaoverTedrosacompanhandoacantoria,entretidoporumadevoção

tãosincera,Agatha tambémtevequesorrir.Emalgumlugar, láno fundo,Beatrix tinha uma ponta de bondade. Só era preciso um talento parademonstrar.

Agatha piscou e viu Tedros sorrindo diretamente para ela, como seestivesse confiante de que ela arranjaria um talentomuito superior. UmtalentodignodofilhodeCamelot.EraamesmaexpressãoqueeleumdiamostraraaSophie.

Antesqueelafalhassecomele.“NuncaHesterversusSempreAgatha!”,disseolobobranco,depoisque

Hortfoipunidocomagulhasdeporco-espinho.Agathamurchou.Seutempohaviaseesgotado.“Sem Sophie, Hester é nossa última esperança”, Brone soluçou,

espalhandoumnovopunhadodeborboletas.“Elanãopareceachar”,disseVex,comsuasorelhasdeelefante,vendo

Hestercabisbaixaaosubiraopalco.Eleslogoviramomotivo,poisquandoHestersoltouseudemônioelesó

conseguiulançarumpequenoraioantesdevoltaresumiremseupescoço.Elatossiudolorosamente,segurandoocoração,comoseoesforçoativesseesgotado.

SeHesterdesistiusemsequerlutar,seuscolegasdeequipenãotinhamamesma intenção. Como todos os vilões, quando a derrota assomou-se,eles simplesmentemudaram as regras. E quando Agatha subiu ao palco,

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tentando freneticamente pensar em um talento, ela ouviu sussurros...“Faça!Faça!”,eentão,avozdeDot...“Não!”

Ela virou-se a tempo de ver os meninos reunidos sobre um livrovermelhode feitiços.Vexergueuseudedoacesoemvermelho,gritouumencantamento,eAgathaficourígidaedespencouinconsciente.

OúnicosomnoTeatroeraumaestalactitequelentamenterachava-senoteto.

Elacaiu.TedrosagarrouVexpelasorelhasdeabano.BronepegouTedrospelo

colarinho, jogou-odeencontroaumlustre,eosalunosesquivavam-sedevelas que caíam, incendiandoos corredores.Os garotos Sempre saltaramnosbancosdosNunca,enquantoosNuncaacendiamelançavamborboletasmortasqueestavamembaixodobancodeBrone.

Agatha lentamentevoltouasi,nopalco,eolhouparaaplateia,vendoNunca e Sempre arremessando sapatosunsnosoutrospelo corredor emchamas,combotinas,botasesapatosvoandopelafumaçacomosefossemmísseis.

Ondeestãoosguardas?Através da névoa ela vislumbrou lobos batendo em Nunca, e fadas

bombardeando Sempre de cima, alimentando as chamas com seu pómágico. Agatha esfregou os olhos e olhou novamente. Lobos e fadasestavampiorandoabriga?

Entãoviuummenino-fadaemespecial,quemordia todasasmeninasbonitasqueencontrava.

“Eunãoqueromorrer.”“Eutambémnãoqueria”,disseolobobranco.Emumflash,Agathaentendeu.Elaacendeuseudedoemriste,eumruídodechicotadaecoouemum

relâmpagopelocorredor,fazendotodospararem,assustados.“Sentem-se”,elaordenou.Ninguém desobedeceu, incluindo lobos e fadas, que se esgueiraram

pelocorredor,envergonhados.Agathaobservoucuidadosamenteosguardasdeambasasescolas.“Nós achamos que sabemos de que lado estamos”, disse, no teatro

silencioso.“Achamosquesabemosquemsomos.SeparamosavidaentreoBemeoMal,obeloeofeio,aprincesaeabruxa,ocertoeoerrado.”

Elaolhouparaopequenomenino-fadamordedor.

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“Maseseexistiremcoisasnomeio?”Omenino-fadaolhouparaela,comaslágrimasminando.Façaumpedido,pensou.Aterrorizado,omenino-fadasacudiuacabeça.Vocêsóprecisafazerumpedido,Agathapediu.Omenino-fadaderramoulágrimas,lutandocontrasimesmo...Então, assimcomoacontecera comospeixese comagárgula,Agatha

começouaouvirseuspensamentos.Mostreaeles...veioumavozqueelaconhecia.Mostreaelesaverdade...Agathasorriupraele,tristemente.Pedidoconcedido.Elaestendeuamãoeumaluzazulfantasmagóricairrompeunoaltodos

corposdoslobosefadas,quecongelaram-se,completamenteimóveis.Chocados,osalunosestreitaramosolhosparaosespíritoshumanosque

flutuavamemluzazul,acimadoscorposcongelados.Algunsdosespíritoseramdaidadedeles,amaioriaeradevelhossábios,mastodosusavamosmesmos uniformes escolares – somente os que estavam com a roupa doBem flutuavam acima dos corpos dos lobos, e os que estavam com ouniformedoMalpairavamacimadasfadas.

Emudecidos,osalunosviraram-separaAgatha,embuscadeexplicação.AgathaergueuosolhosparaocarecaBane,derobepreto,queflutuava

acima do corpo domenino-fada. Omenino quemordia belas garotas emGavaldon, agora alguns anos mais velho, com as bochechas murchas emanchadasdelágrimas.

“Sevocêfracassar,torna-seescravodooutrolado”,disseAgatha.“EssaéapuniçãodoDiretordaEscola.”

Ela fitou um idoso de cabelos grisalhos acima do lobo branco,acalmandooespíritodeumamenina,acimadeumafada.

“Punição eterna para uma alma impura”, disse Agatha, enquanto agarota chorava nos braços do velho. “Ele acha que isso consertará essesmausalunos.Colocá-losnaescolaerradavaiensinar-lhesumalição.Éissooqueestemundonosensina.Quesópodemosestaremumaescola,enãonaoutra.Masissonosdeixaumapergunta...”

Ela olhou para o outro lado, para os fantasmas, todos assustados eimpotentescomoBane.

“Issoéverdade?”

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Amãodelaperdeua estabilidade.Os fantasmasderamum lampejo epularamdevoltaemseuscorposdefadaelobo,quevoltaramàvida.

“Euos livrariaa todos, sepudesse,masamagiadeleé fortedemais”,disseAgatha,comavozfalhando.“Eusóqueriaquemeutalentotivesseumfinalmelhor.”

Enquanto descia os degraus, cabisbaixa, ela ouviu fungadas, e olhouparacima,vendolobos,fadasealunosdeambososladossecandoosolhos.

Agatha sentou-se ao lado de Kika, cujamaquiagem tinha ficado todaborradaderosaeazul.“Eucostumavadetestaresseslobos”,choramingou.“Agoraqueroabraçá-los.”

Do outro lado do corredor, Agatha viu Hester sorrir por entre aslágrimas.“Issomefazpensardequeladoestou”,disseHester,suavemente.

AnonaveladoMalapagou-se,acimadela.Com um suspiro infeliz, Hester levantou-se, e instantaneamente um

óleopretoescaldantecomeçouajorrardoteto.Elafechouosolhosbemnahoraemqueeleaatingiu...

Mastudooqueeleacertouforampelos.Hester virou-se e viu três lobos protegendo-a com seus corpos,

suportandooóleofervente.Arquejandodedor,olhavamfuriosamenteparacima,informandoaoDiretordaEscolaquejátinhampresenciadopuniçõessuficientes.

Noteatrosilencioso,todosentreolhavam-se,comoseasregrasdojogotivessemsubitamentemudado.

“Está vendo, ele tem que ser Bom”, Kika sussurrou para Agatha. “SefossedoMal,eleosteriamatado!”

“Duelofinaaaal”,disseolobobranco,pressentindosuasorte.“ANuncaSophieversusoSempreTedros.ComSophieausente,prosseguiremoscomTedros.”

“Não.”Tedroslevantou-se.“OCircoacabaagora.JápresenciamosumBemque

nãopodeserigualado.”Elecurvou-separaAgatha.“Nãohádúvidasquantoàvencedora.”Agatha encontrou seus olhos azul-claros. Pela primeira vez, ela não

pensouemSophie.Os dois lados olharam para cima, para a Coroa reluzente, esperando

paraabençoaroveredictodopríncipe.Emvezdisso,ouviu-seumabatidamuitoalta.

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27Promessasnãocumpridas

Noprimeiromomento,ninguémsoubeaocertodeondevinhaabatida.Entretanto,logoveiooutra,maisruidosa.Alguémestavaàsportasdos

Nunca.“OCircoestáfechado!”,rugiuolobo.Maisduasbatidas.“Achei que os professores estivessem trancados em seus quartos”,

sussurrouAgatha.“Entãonãoéumprofessor,obviamente”,sussurrouKika,comosolhos

coladosemTristan.OolhardeAgathacruzoucomodeHester,dooutroladodocorredor.

Assustadas, as duas garotas viraram-se para trás, na direção das portas,quetremiamcomasbatidas.

“Vocênãoterápermissãoparaentrar!”,esbravejouolobo.Asbatidascessaram.Agathasuspirou.Entãoasportasrangeram,abrindo-sevagarosaemagicamente.

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Umafiguraencobertaporumcapuzpretoesgueirou-sepeloTeatrodasFábulas. Centenas de olhos observaram-na deslizar pelo corredor empassossilenciosos,comumacapadepeledecobraarrastando-seportrás,comoumvéudenoiva.Lentaesilenciosamente,asombrapretasubiuatéopalco,eficouempéabaixodaCoroadoCirco,comasescamasdapeledecobrareluzindosobaluzdaschamaseoqueixocoladoaopeito,comoummorcego.

Asportasbateram,fechando-se.Dedosclarosdeslizaramparaforadacapaepuxaramocapuzparatrás.Sophie ficou olhando para baixo, para a sua plateia, com seu nariz e

queixomarcadosporverrugas.Mechasbrancasentremeavamseuscabelospintados de preto. Seus olhos cor de esmeralda eram agora de um cinzaturvo,suapeleestavatãofinaqueerapossívelenxergarsuasveias.

Lentamenteelaobservouamultidão,assimilandoosrostosassustadoscomumsorrisodeescárnio.EntãoelaviuAgatha,emsuarealeza,deazul,eperdeuosorriso.Sophieencarou-a,comaspupilascinzentasenevoadasdepavor.

“Vejoquetemosumanovaprincesa”,disse,baixinho.“Bonita,não?”

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Agatha encarou-a também, já não sentindomais pena nem desejo deagradar.

“Masolhemmaisatentamente, crianças, evejamavampiraqueelaé,vindo sugar nossas almas”, Sophie disse, debochada. “Já que ela não temuma.”

Porbaixodovestido,Agathatremeu,masresistiuaoolharfulminante,atéqueSophiesubitamentevirou-separaTedrosesorriu.

“Meu querido Teddy! Que bom vê-lo aqui. Acredito que ainda temosnossacompetiçãoparaterminar.”

“OCircoacabou”,Tedrosvociferou.“Umavencedorajáfoicoroada.”“Entendo”,disseSophie.“Entãooqueéaquilo?”Elaapontouseudedoossudoparaoar,etodosolharamparacima,para

aCoroapendurada,aindacompletamenteintacta.“Issoéruim”,HesterdisseaAnadil.“Issoémuitoruim.”Tedroslevantou-se,dooutroladodocorredor.“Apenasváembora”,rugiuparaSophie.“Antesquefaçapapeldetola.”Sophiesorriu.“Commedo,é?”Tedrosestufouopeito,tentandoseconter.SentiaosolhosdosSempre

sobreele,comosentiunaClareira,quandoSophieexpôssuapromessa.“Mostre-nos,Teddy”,Sophiedisse,comdoçura.“Mostre-mealgoqueeu

nãopossaigualar.”Tedroscerrouosdentes,lutandocomseuorgulho.Vex subitamente notou um estandarte queimado no chão, escrito

EQUIPEDOMAL.Seusolhoscintilaramdeesperança.“MOSTRA!”,elegritou,edeuumsocoemBrone,queaderiu.“MOSTRA!

MOSTRA!”Numímpetodetentararrebataravitóriadasgarrasdaderrota,osNuncaentraramnocoro.“MOSTRA!MOSTRA!”

“Não!Parem!”,Hestergritou,conformeelaeAnadilviraram...Os vilões rosnaram para elas como se fossem traidoras, e as duas

bruxasrapidamenteingressaramnocanto.Contudo, enquanto a torcida dos Nunca tomava vulto, Tedros

mantinha-seimóvel.OsSempreremexiam-seemseuslugares,impacientesparaqueseuCapitãoaceitasseodesafio.Todos,excetoAgatha,quefechouosolhos.

Nãofaçaisso.Issoéoqueelaquer.Rugidosecoavampeloar.OsolhosdeAgatharapidamenteseabriram...Tedrosestavaatravessandorumoaopalco.

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“Não!”,elagritou,masosvivasdeambososladosabafaramseugrito.SeparadadeTedrospordoismetros,Sophiesorriadeliciosamente,eo

príncipeaencarava,furioso.Nenhumdosdoisdisseumapalavra,enquantoosNuncagritavam“ÉDOMAL!ÉDOMAL!ÉDOMAL”,eosSempre,“ÉDOBEM! ÉDOBEM! ÉDOBEM!”. Trovões ressoaram a distância, e os vivasaumentaram,engolindoobarulhoda tempestade.OsmúsculosdeTedroscontraíram-se,asmaçãsdeseurostosalientaram-se,eosorrisodeSophiesealargou.Agathatremiacommaisforça,commedo,olhandoosorrisodeSophie,agoraprovocador,debochado,atéqueopríncipe finalmente ficouvermelho de fúria, como dedo reluzindo emdourado, e quando pareceuqueeleatacaria...

Elecaiudejoelhos.Osalãosilenciou,emchoque.OsNuncavibraram,vitoriosos.Agathaficoubranca.Com um suspiro de pesar, Sophie caminhou em direção ao príncipe

ajoelhado. Ela tocou delicadamente em seus cabelos louros e fitou seusolhosazuisamedrontados.

“Finalmenteestoufazendoomeudeverdecasa,Teddy.Querver?”Tedrosretesou-se.“Aindaéaminhavez.”Ele desembainhou a espada e Sophie recuou. Entretanto, em vez de

golpeá-la,Tedrosagachou-seemumdosjoelhos,virou-separaocorredor,empunhouaespadaemdireçãoàmultidão...

“AgathadeAlémdaFloresta.”Elebaixouaespada.“QuerserminhaprincesaparaoBaile?”Sophiecongelou.OsNuncapararamdevibrar.Nosilênciomortal,Agathatentourespirar.EntãoviuorostodeSophie,

ochoquesefundindoàdor.Fitandoosolhosfundoseassustadosdaamiga,Agathacaiunavelhacovadaescuridãoedadúvida...

Atéqueumgarotoatrouxedevolta.Umgarotoapoiadoemumdos joelhos,olhandoparaelado jeitoque

olharaatravésdegoblins,caixõeseabóboras.Umgarotoqueaescolheramuitoantesqueosdoissoubessem.Umgarotoqueagorapediaqueelaoescolhesse.Agathaolhoudevoltaparaseupríncipe.“Sim.”“Não!”,gritouBeatrix,ficandoempé.

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Chaddickcaiudejoelhosàsuafrente.“Beatrix,vocêquerserminhaprincesaparaoBaile?”Umaum,osgarotosSempreforamcaindodejoelhos.“Reena,vocêquerserminhaprincesaparaoBaile?”,disseNicholas.“Giselle,querserminhaprincesaparaoBaile?”,disseTarquin.“Ava,querserminhaprincesaparaoBaile?”Os meninos ajoelharam-se em um ritmo glorioso, com as mãos

estendidas. Cadamenina ouviu seunome, cadamenina suspirou, até quesobrousomenteumasemninguémparaamar.AslágrimascegaramKikaeelalimpou-as,sabendoquefracassaria–masentãoviuTristanàsuafrente,sobreumdosjoelhos.

“QuerserminhaprincesaparaoBaile?”“Sim!”,Kikagritou.“Sim!”,disseReena.“Sim!”,disseGiselle.PeloTeatroemanavamondasdeêxtase–“Sim!”“Sim!”“Sim!”–atéque

o mar de amor envolveu até mesmo Beatrix, que esboçou seu melhorsorrisoepegouamãodeChaddick.“Sim!”

Assistindoatudopeloscorredores,osNuncacomeçaramamudarsuasfeições. Seus rostos carrancudos foram tornando-se lamentosos, e seusolhospassaramaexpressarmágoa.Hort,Ravan,AnadileatéHester...Comose eles tambémdesejassem ter essa alegria. Como se tambémquisessemsentir-se tão queridos. O ímpeto de luta ficara pra trás, perdido para oscoraçõespartidos,eosvilõesficaramemsilêncio,serpentessemveneno.

Umacobra,porém,aindasemantinhaempé.Dopalco,osolhosdeSophienuncadeixaramAgatha,enquantoTedros

envolvia-a em seus braços. Suas pupilas escureceram-se como brasas decarvão. Seu corpo estremeceu de suor. Suas unhas negras arrancaramsangue de seus punhos fechados. Das profundezas de sua alma, o ódiojorroufeitolava,revivendoocânticodeseucoração.Comosolhosfixosnocasalfeliz,Sophieergueuasmãos,ecantouaplenospulmões.Acimadela,estalactitesnegrasmetamorfosearam-seembicos afiados comonavalhas,grasnando,gritando,ganhandovida.

Deumasóvez,corvosirromperamdoteto,atacandotudooquehaviaàsuafrente.

Todos abaixaram-se em busca de proteção, tapando os ouvidosenquantoSophieberravaumaoitavamaisalto.Asfadasvoaramemdireção

Page 351: Escola do bem e do mal

a Sophie, mas os corvos engoliram todas exceto uma, que quase nãoconseguiu escapar por uma rachadura na parede. Com as patas nosouvidos,oslobosficaramigualmenteexpostosaospássaros,quecortavamsuasgargantasemumavelocidade impiedosa.O lobobrancoabraçouumlobomarrom,lutandocomoscorvos,enquantoseufocinhosangrava,masobandoarrastouambosparatrásdopalcoeacaboucoma luta.Quandoasavesmergulharamparafazeromesmocomosalunos...

Sophieparoudecantareoscorvosdesintegraram-seemplenoar.Gemendo de dor, todos viraram-se lentamente para a vilã no palco.

Contudo,Sophienãoestavaolhandoparaeles.Sempres e Nuncas seguiram o olhar dela até a Coroa do Circo, que

balançavanoar, finalmentedespertadaparao julgamento.Elaagitava-se,decimaparabaixo,pairandoentreoBemeoMal,deumladoparaoutro,de um lado para o outro, até que, leve como uma pluma, rodopiou comdecisão...epousousuavementesobreacabeçadeSophie.

Elaesboçouumsorrisoforçado.“Nãoseesqueçamdoprêmio.”Agatha viu borrões brancos apagaremmagicamente o palco atrás de

Sophie.Borrõesqueelajátinhavistoantes...“CORRAM!”,elagritou.Asmanchas brancas apagaram as paredes, espalhando-se na direção

doscorredores,enquantoosalunosgritavamefugiamparaasportas,tardedemais...

O Teatro de Fábulas desapareceu emum clarão branco, expelindo asduasescolasparaosalãodaescadariadoBem.OsSempreseespremeramna escadaria cor-de-rosa e os Nunca na azul. Enquanto raios e trovõesestilhaçavamasvidraças,Hestereosvilõesfugiram,subindoasescadasdaHonraedaCoragem.Noentanto,assimquechegouaosegundopatamar,Hesterescorregounovidroecaiupelalateral.Penduradanocorrimãoporumadasmãos,elaavistouDotpassandoporela...

“Dot!Dot,socorro!”“Lamento”, Dot fungou, seguindo em frente. “Só ajudo colegas de

quarto.”“Dot,porfavor!”“Eu moro em um banheiro! Vocês são amigas más e tiranas, e me

deixamconstrangidadeserumavi...”“DOT!”DotpegouamãodeHesterbemnahoraemqueelaescorregou.

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Os Sempre não tiveram tanta sorte. Enquanto rastejavamfreneticamente, subindo a Pureza e a Caridade, Sophie soltou uma notaagudíssima, e as duas escadas de vidro explodiram, fazendo os belosgarotos e garotas esborracharem-se no mármore. Sophie cantou umaoitavaacima.Ovestíbulotremeusobseuspés,rachou-secomogelofino,epartiu-seemumacentenadepedaços.Atordoados,osSemprecaíramunssobre os outros e cambalearam em direção às fendas abertas. Elestentaramagarrarpedaçosquebradosdemármoreecacosdasescadas,masos desníveis acentuados no chão eram muito íngremes, e entre gritosangustianteselesdespencaramdasbeiradas.Quandolançavam-senovazio,suasmãosencontravambordasdemármorequebrado.OsSempreusavamsuas últimas forças e aguentavam firmes, com os pés sacudindo naescuridãomortalabaixodeles.

“Agatha!”, Tedros gritou, pulando sobre desfiladeiros e abismosencharcadospelachuva,ficandocadavezmaisaflito.

“Agatha,ondeestávocê?”Do outro lado da sala, no alto de uma janela estilhaçada, duasmãos

clarasagarravam-seaumaparedequebrada.“Agatha!Estouindo!’Ele seguiu por cima de crateras de rochas, subiu por pedaços

quebrados de escadas, indo cada vez mais alto. Com um salto elemergulhoudo alto do penhasco, passoupelo vidro e agarrou-a pelo ladooposto...

Sophieolhouparacima,encarando-o.Tedros recuou, horrorizado, e se viu na beira do precipício, com os

Sempregritandoporajudaabaixodeles.“Então, sepríncipes salvamprincesas, agora eumepergunto...”, disse

Sophie, com a Coroa do Circo cintilando em seu cabelo encharcado dechuva.“Quemsalvaopríncipe?”

“Você prometeu...”, Tedros gaguejou, procurando escapar. “Vocêprometeumudar!”

“Prometi?”,Sophiecoçouacabeça. “Bem,nósdois fizemospromessasquenãocumprimos.”Comumgritoelasoltousuanotamaisaguda.

Opríncipeencolheu-se,dejoelhos.Vendo-oseretorcerdedor,Sophiecantouaindamaisalto.Paralisado,Tedrossentiuseunarizsangrareseusouvidos zunirem. Sophie lentamente achegou-se a ele e pousouumdedo

Page 353: Escola do bem e do mal

em seus lábios trêmulos. Então, ela sorriu para os olhos azuis chocadosdele,eentoousuanotamortal...

Agatha lançou-a contra a janela aberta, fazendo sua coroa voartempestadeadentro.

Ensanguentadoefraco,Tedrostentouajudá-la,masAgathaencarou-o.“Salveosoutros!”

“Mas...”“Agora!”,Agathagritou,prendendoSophiemaisaltocontraajanela.Comtodasuaforça,Tedrossaltoudopenhascoparasalvarseuscolegas

deturma.Ouvindoosgritosquevinhamdebaixo,AgathadesviouoolhardeSophie,para tercertezadequeeleestavaseguro.Sophierapidamentedeu-lheumchute,eAgathabateudecaranoparapeitodajanela.

Elacambaleouparalevantar-se,comonarizsangrando.“LadyLessoestavacerta”,disseSophie, ficandoempéparaencará-la.

“Você se fortalece quando eu enfraqueço. Você ganha quando eu perco.VocêéminhaNêmesis,Agatha.”

Sophiecaminhouemdireçãoaela.“Sabecomoeusei?”Seurostonublou-sedetristeza.“Porqueeusósereifelizquandovocêestivermorta.”Agatha recuou em direção à janela, tentando fazer seu dedo trêmulo

acender.

Quatro andares acima, Hester, Anadil e Dot irromperam peloscorredoresdaHonra,comosgritosetrovõesecoandoabaixodelas.

“ACoroadoCircofoientregue!”,Hestergritava,escancarandoasportasdosprofessores.“Ondeestãoeles?”Elavirouaesquinaemumcorredoredescobriu.

A professora Anêmona, a professora Dovey e o professor Espadaestavamcongeladosemplenacorrida,debocasabertas,comosetivessemsidoemboscadosporumfeitiçonahoraexataemquecorriamparaosalãodasescadarias.

“Hester...”HesterseguiuosolhosdeAnadilparaforadajaneladohall.NaPonte

doMeiodoCaminho,umraioiluminouLadyLesso,oprofessorSheekseoprofessorManley,congeladoscomasmesmasexpressõesestarrecidas.

Page 354: Escola do bem e do mal

“Podemos descongelá-los?”, perguntou Dot, empalidecendo. “É só umFeitiçodeSusto.”

“Não é um Feitiço de Susto”, Anadil deu um tapinha na pele daprofessoraDovey,queproduziuumsomocoefino.

“Petrificação”,disseHester, lembrando-sedaauladeLesso. “Sóquemlançouofeitiçopoderetirá-lo.”

“Mas,quem?”,Dotdeuumgritinho.“Alguém que não quer que os professores interfiram”, disse Anadil,

olhandoparaatorreprateadaacimadabaía.Dottremeu.“Masisso...issosignifica...”“Estamospornossaconta”,disseHester.

Sobatempestade,emumailhademármoreerguidaacimadovestíbulodemolido,AgathaenfrentavaSophie,sozinha.

“Nós não precisamos ser inimigas, Sophie”, implorou ela, tentandoacenderodedoatrásdascostas.

“Você me fez ficar assim”, disse Sophie ofegante, com as lágrimasbrilhando.“Vocêpegoutudooqueerameu.”

AgathaviuTedroseosSemprerastejandopelosescombros,tremendodedoremedo.PorentreosflashesderaioselaviuosNuncaassistindo-os,dastorresdooutroladodabaía,tremendo,comasmesmasexpressões.OcoraçãodeAgathamartelava.Agoratudodependiadela.

“Nós podemos encontrar a felicidade aqui”, ela implorou, sentindo odedoesquentar-seatrásdela.“Nósduaspodemosencontrarumfinalfeliz.”

“Aqui?”,Sophiesorriuligeiramente.“Oqueaconteceucomsuaurgênciadeirpracasa,Agatha?”

Agathagaguejouembuscadeumaresposta.“Ah, entendo”, disse Sophie, sorrindo mais abertamente “Agora você

temumbaileparair.Agoravocêtemumpríncipe.”“Eusóqueriaquefôssemosamigas,Sophie”,disseAgatha,comosolhos

repletosdelágrimas.“Issofoioquesemprequis.”Sophie ficou gélida. “Você nunca quis ser minha amiga, Agatha. Você

queriaqueeufosseahorrenda.”Emumpassedemágica,apeledeseurostoficouaindamaisenrugada.O dedo de Agatha apagou-se pelo choque. “Sophie, é você quem está

fazendoissoconsigomesma!”

Page 355: Escola do bem e do mal

“Você queria que eu fosse a do Mal.” Sophie fervia, as mãoscontorcendo-seemgarras.

“Vocêpode serdoBem, Sophie!”,Agatha gritou,maso trovão abafousuavoz.

“Vocêqueriaqueeufosseabruxa”,disseSophie,comosolhosrepletosdeveiasvermelhas.

“Nãoéverdade!”,Agathaapoiou-secontraajanela...“Bem,queridinha”,disseSophie,comumdentefaltando.“Seudesejofoi

concedido.”“Não!”Com um único empurrão, Sophie jogou Agatha para dentro da

tempestade. Agatha mergulhou em direção à Ponte, para a morteinstantânea...Tedrosgritou...

Um pequeno menino-fada lançou-se sob ela e pegou-a com todas assuas forças. Ao deitá-la com segurança na rocha encharcada, BaneagradeceusilenciosamenteàAgathadeGavaldonpor todooBemqueelahaviafeito.Então,aomesmotempoemqueelavoltouarespirar,elesoltouseuúltimosuspiro,emorreunapalmadamãodela,abertaemolhada.

Quando um trovão iluminou a torre, Sophie olhou para baixo e viuAgatha, cujo rosto estava branco de choque. Do outro lado da baía, osNunca encaravam-na, profundamente apavorados. Ela virou-se e viuTedroseosSempreamontoadosemcantos láembaixo,enquantoHester,AnadileDotobservavamtudodaescada,boquiabertas.

Comseucoraçãofazendoecoaotrovão,Sophiepegouumcacodevidroedesmanchouachuva.

Seuscabelosencharcadosestavamagoracompletamentebrancos.Seurostoestavamanchadoecheiodeverrugaspretas.Seusolhostornaram-senegroscomoosdeumcorvo.

Elaencarouovidroestilhaçado,paralisadadepânico.Então, enquanto Sophie olhava-se no espelho, seu pânico foi

lentamente se dissipando, e seu rosto demonstrou um estranho alívio,comosefinalmenteelapudesseenxergaralémdeseureflexo,vendooquehaviapordentro.

Seuslábiosapodrecidosesboçaramumsorriso,seguidodeumarisadalibertadora...ruidosa,maisalta...

Sophie jogou o vidro no chão, depois a cabeça para trás, e deu umagargalhada horrenda, que prometia oMal. UmMal puro demais para ser

Page 356: Escola do bem e do mal

desafiado.Então, de repente, seus olhos desviaram-se para baixo, para Agatha.

Comumgritomonstruoso de alerta envolveu-se em sua capa de pele decobraedesapareceupelanoiteadentro.

Page 357: Escola do bem e do mal

28AbruxadeAlémdaFloresta

“Quandocoisasterríveisacontecem,minhamãesemprediz‘encontreolado bom’”, falou Hester, ofegante, passando rapidamente por Cástor eBeezle,petrificadosnoSalãodaMalícia.

“Quandocoisasterríveisacontecem,meupaisemprediz‘coma’”,disseDot,arfando,virandonocorredoratrásdela.AmbastrombaramcomMonaeArachne...

“Oqueestáacontecendo!”,Monagritou...“Vãoparaosseusquartos!”,Hesterberrou.“Nãosaiam.”MonaeArachneentraramcorrendoetrancaramaporta.HestereDotdesceramrapidamenteaescadaeviramHort,RavaneVex

subindo.“Vãoparaseusquartos!”,Dotgritou.“Nãosaiam!”OsgarotosolharamparaDot,depoisparaHester.“Agora!”,Hesterberrou,eelessaíramcorrendo.“Suponhamos que eu seja uma capanga?”, disse Dot, fazendo bico.

“Entãonãoestaremosnamesmaturmanoanoquevem!”“Seéqueaindasobraráalgodaescola!”,Hesterfalou.Elaspassaramcorrendopelosalãodasescadarias,berrandoparaque

osassustadosNuncafossemparaseusquartos.“Eu consigo pensar emuma coisa boa”, disseDot. “Nada de dever de

casa!”Hesterparousubitamente,deolhosarregalados.“Dot,nósnãoestamos

preparadasparaumabruxadeverdade.Somosdoprimeiroano!”“ÉSophie”,disseDot.“Amesmagarotaquegostadeperfumeedecor-

de-rosa.Sóprecisamosacalmá-la.”Hester abriuumsorriso. “Sabe, às vezesnósnão lhedamoso crédito

quevocêmerece.”“Venha”, Dot corou, seguindo adiante. “Talvez Anadil a tenha

encontrado.”

Page 358: Escola do bem e do mal

DepoisdeevacuarorestantedohalldaMalícia, as duas garotas seguirammancando, exaustas, até o quarto 66, eencontraram sua colega de quartorecostadaemlençóisamontoados.

“Estão todos trancados em seusquartos”, disse Dot, abanando a túnicaparaserefrescar.

Limpando o suor, Hester franziu orosto para Anadil. “Você pelo menosprocurouporSophie?”

“Não precisei”, Anadil bocejou. “Elaestávindopracá.”

“Pra cá?”, Hester fungou. “E comonestemundovocêpoderiasaberdisso?”

Anadil puxou os lençóis, revelandoGrimm,presoeamordaçado.

“Porqueelemedisse.”

NaEscoladoBem,ChaddickeTedrosmantiveram guarda do lado de fora doSalão Comunitário da Coragem, com ascamisas rasgadas e ensanguentadas.Dentro do refúgio cheio e mofado, asgarotas cochilavam nos braços de seuspares do Baile, enquanto Beatrix e Reenasocorriam os meninos feridos compomadaseataduras.Quandoosolnasceuelastambémestavamdormindo.

SóAgathanãoseatreveuadescansar.Encolhida em uma poltrona de pele dezebra,elapensavanameninaqueumdiahavialhetrazidosucodepepinoecookies de farinha integral, que a levava para dar passeios e lheconfidenciavaseussonhos.

Essameninase foi.Emseu lugarhaviaumabruxaqueacaçariaatéamorte.

Page 359: Escola do bem e do mal

Ela olhou pela janela, vendo a ponte pouco iluminada, com osprofessores petrificados, uma onda mágica congelada abaixo deles. Nãohouve acidentes, nenhumgrande erro. Tudo isso fazia parte do planodoDiretordaEscola.ElequeriasuasduasLeitorasemguerra.

Masdequeladoeleestava?Quandoosolbanhouasala,Agathamanteveosolhosabertos,àespera

dopróximopassodeSophie.

Noquarto66,amanhãchegouepassou.Assimcomoatarde.“Vocês não teriam nenhum petisco, teriam?”, Dot perguntou, de sua

cama. Hester e Anadil encararam-na, com Grimm amordaçado, rosnandoentreelas.

“Équenãocomonadadesdeontemenãoconsigomaiscomerchocolatedesde que vocês me obrigaram a morar em um banheiro, porque ochocolatemefazlembrarde...”

HesterarrancouamordaçadeGrimm.“OndeestáSophie.”“Vem”,Grimmdisse,zangado.“Quando?”,disseHester.“Espera”,disseGrimm.“Oquê?”“Grimmvem.Grimmespera.”HesterolhouparaAnadil.“Éporissoquenósestamosaqui?”Umachavegirounafechaduraeastrêsgarotasesconderam-sedebaixo

dascamas.“Grimm?”Sophieentrou,tirouacapapretaependurou-anoganchodaporta.“Ondeestávocê?”Elapercorreuoquartocoçandoacabeça,comunhassujaseafiadas.Embaixodascamas,Hester,DoteAnadilengasgaramquandotufosde

cabelosbrancoscaíram.Sophie virou-se e viu o montinho mover-se embaixo das cobertas.

“Grimm?”Elasorrateiramenteseguiuatéacama...As três garotas atacaram-na por trás. “Pegue seus punhos!”, gritou

Hester, amarrando as pernas de Sophie à cabeceira da cama com lençóisqueimados.Anadil segurouospunhosdeSophie acimade sua cabeça, ao

Page 360: Escola do bem e do mal

ladodeGrimm,enquantoDotdeuumgolpenacabeçadocupidocomumtravesseiro,parafazer-seútil.

“Talvez vocês tenham esquecido”, Sophie falou, com a voz arrastada,“maseuestoudoladodevocês.”

“Agoraestamostodasdomesmolado”,Hesterchiou.“Contravocê.”“Admirointençõestãomeigas,Hester,masoBemnãoestádoseulado.”Sobaluz,HesternotouorostodeSophietodoenrugado.“Você vai apodrecer aqui até descobrirmos como descongelar os

professores”,disseHester,escondendoasmãostrêmulas.“Apenas saibamque eu perdoo todas vocês”, Sophie suspirou. “Antes

mesmoquetenhamquepedir.”“Nãovamospedir”,disseHester,afastandoAnadileDot.Anadilpegoua

capadeSophienogancho...“Vocêsvoltarãopormim.”Elas viraram-se para Sophie, que sorriu, revelando mais dentes

faltando.“Vocêsverão.”Hesterestremeceuefechouaportaatrásdelas.Aportaabriu-seeDotdeuumaespiadaládentro.“Você,poracaso,não

teriaalgumpetisco?”Hesterpuxou-aebateuaporta.Grimmimediatamentemastigouesoltousuamordaça,cuspindo-a.“Bomgaroto”,disseSophieafagando-o,enquantoeleroíasuasamarras.

“Vocêsesaiumuitobemmantendo-asaqui.”Elaabriuseuarmárioetirousuacaixadecosturaecaixasdetecidoe

linha.“Tenhoandadomuitoocupada,Grimm.Eaindatenhomais trabalhoa

fazer.”CRAC!Sophievirou-separaaporta.CRAC!CRAC!Láfora,Anadilpregavatábuas,trancaseparafusosnaporta,enquanto

Hester e Dot bloqueavam-na com estátuas e bancos do corredor. HesterpegouosNuncaespiandoforadeseusquartos.

“FIQUEMAÍDENTRO!”,elarugiu,easportassefecharam.“Eumesintohorrível”,disseDot.“Elaénossacolegadequarto!”

Page 361: Escola do bem e do mal

“O que quer que seja aquilo, não é a nossa colega de quarto”, disseHester.

Lá dentro, Sophie cantarolava junto com as marteladas, com umaagulha costurandomagicamente sob seu dedo aceso. “Elas simplesmenteterão que desfazer isso”, suspirou, lembrando-se da última vez em quealguémhaviatrancado-aemseuquarto.

“Todoaqueletrabalhopornada.”

Atéocomeçodanoite,osSempreficarammaisinquietosecomeçarama aventurar-se em grupos para tomar banho. Então eles seguiram, numamassa vigilante, até o Salão de Jantar, onde as panelas encantadas dacozinha continuavam a cozinhar, apesar das ninfas petrificadas em voltadelas.Elesencherampratosdegansoaocurry,saladadelentilhaesorbetdepistache,ecomeramemmesasredondas,emsilêncio.

Sentadanamesaprincipal,Agatha tentava cruzar seuolhar comodeTedros,mas ele apenas comia sua coxa de frango, arrasado. Ela nunca oviracomumaaparênciatãocansada;eleestavacommarcasroxassobosolhos, com o rosto pálido e com uma pequena marca no maxilar. Era oúnicoquenãotinhatomadobanho.

Osilênciocontinuouatéquetodostinhamquaseterminadoosorbet.“É...nãoseisevocêsabe,mas,e...oSalãodoBem?”,disseKika.“Ainda

está...tudobem.”Centoedezenovecabeçasergueram-se.Kika segurou o sorbet diante do rosto suado. “Então nós ainda

poderíamos,sequiséssemos,ternosso...vocêssabem...”Elaengoliuemseco.“Baile.”Todosencararam-na.“Ounão”,murmurouKika.Seuscolegasdeturmavoltaramaosorbet.Depoisdeummomento,Millicentpousouacolher.“Sebemquepassamosmesmotodoessetemponospreparando.”“Eaindatemosduashorasparanosaprontar”,disseGiselle.Reenaficoubranca.“Étemposuficiente?”“Eupossoprovidenciaramúsica!”,disseTristan.“Euchecoosalão!”,disseTarquin.

Page 362: Escola do bem e do mal

“Todomundosearrumando!”,Beatrixgritoue,comumviva,amultidãolargouascolhereselevantou-se.

“Deixem-me entender direito”, a voz de Agatha interrompeu-os. “Asfadaseoslobosestãomortos,osprofessoresestãoenfeitiçados,metadedaescolaestáemruínas,háumaassassinaàsolta...evocêsqueremfazerumbaile?”

“Nãopodemoscederaumabruxa!”,Chaddickdisparou.“Nãopodemosdesistirdenossosvestidos!”,Reenamurmurou.Osoutrosconcordaram,zangados...“Osprofessoresficariamorgulhosos!”“OBemnuncaserendeaoMal!”“ElaquerestragarnossoBaile!”“Todomundocaleaboca.”A sala caiu em silêncio. Os Sempre viraram-se para Tedros, ainda

sentado.“Agathaestácerta.Agoranãopodemosterumbaile.”Seus colegas de classe amuaram-se, assentindo. Agatha suspirou

aliviada.“Primeironósencontramosabruxaeamatamos”,Tedrosrosnou.Agathafechouospunhos,enquantoosSempreexplodiamemclamores.

“Matemabruxa!Matemabruxa!”“Acham que ela está esperando por nós?”, Agatha gritou, subindo em

uma cadeira. “Acham que podem entrar tranquilamente no Mal e matarumabruxadeverdade?”

Oscânticoscessaram.“O que você quer dizer com uma ‘bruxa de verdade’?”, Beatrix

perguntou,encarando-a.Kika empalideceu, compreendendo. “O Storian está realmente

escrevendoseucontodefadas,nãoé?”Agathaassentiu,etodosnasalaremexeram-se,nervosos.“Não sabemos quem controla esses contos de fadas”, disse. “Não

sabemos se o Diretor da Escola é do Bem ou doMal. Não sabemos se aFlorestaaindaestáequilibrada.TudooquesabemoséqueSophiemequermorta e vaimatar qualquer umque estiver em seu caminho. Então achoquedevemosvoltaraosalãodaCoragem,eesperar.”

Todos os olhos desviaram-se para Tedros, depois de franzirem osrostosparaela.

Page 363: Escola do bem e do mal

“Bem, sou o Capitão desta escola”, respondeu, “e digo que devemosatacar.”

Osolhosdesviaram-sedeleparasuaprincesa.“Tedros,vocêconfiaemmim?”,disseAgatha,suavemente,olhandopra

ele.O silênciopesou, enquanto aperguntapairavano ar, comTedros em

brasa,soboolhardela.O príncipe desviou o olhar. “Vamos voltar ao salão da Coragem”,

murmurou.EnquantoosSempreobedeciamàsuaordeme limpavamseuspratos,

Agathatocou-lhenoombro.“Vocêfezacoisacert...”“Vou tomar um banho”, disse. “Quero ficar bonito para nossa noite,

escondendo-noscomomenininhas!”Agatha deixou-o sair na frente, zangado. Enquanto Tedros marchava

paraforadosalão,Beatrixencontrou-onaporta.“VamosentrarescondidosnoMal,Teddy!Mataremosabruxajuntos!”

“Façaoquelhefoidito”,Tedrosdisse,enquantopassavaporela.Beatrixobservou-osair,comasbochechasemfogo.Depois de algunsminutos, enquanto os Sempre voltavam cabisbaixos

para suaprisãono saguãodoprédiodaCoragem, ela foi escondidaatéoseuquarto,noqualumcoelhinhobrancoe famintoesperava,pulandodeumladoparaooutro.

“Você vai ganhar seu jantar, Teddy”, disse, pegando-o no colo. “Mas,primeiro,teráquefazerpormerecer.”

Hesteracordounocasteloescuro,comorelógiodocampanáriosoandooitobadaladas.Aindacomorostobabado,elaafastouo livroReversãodefeitiços, que estava colado em sua bochecha, e olhou para Dot e Anadil,recostadas uma na outra, atrás dos móveis que bloqueavam a porta doquarto.Numsalto,Hesterlevantoueolhouparaelas.

Aportadoquarto66nãohaviasidomexida.Elasuspiroualiviada...depoisengasgou.Algoestavasemovendonofimdocorredor.Ela passou pelamassa demóveis e seguiu, pé ante pé, na direção da

escada. Quando se aproximou, viu três figuras curvadas subindo osdegraus.Umminutodepois,maisduasentraramsilenciosamente.

Hester esperou atrás da balaustrada, até que viu mais sombras.Acendeuatochadaescada...

Page 364: Escola do bem e do mal

Mona,Arachne,VexeBroneolharamparaela.“Porquenãoestãoemseusquartos?”,Hestergritou.“Nósviemosparaajudarvocê!”,disseMona.“Queremoslutar!”,disseVex.“Oquê?Oqueestão...”Então,Hesterviuoqueestavanasmãosdeles.Anadil estava sonhando com tubulações, e Dot com feijões, quando

ambassentiramsocosnoestômago.“Olhem!”,Hester seguravaumcartãopreto, combrilhos verdes, e um

fantasmagóricomanuscritoembranco.

“É um poema bonitinho, mas não vale a pena nos acordar por isso”,disseDot,aindagrogue.“Quevingançaéessa?”

“Nãohávingança!”,gritouHester.“Entãoporquevocêescreveu?”,disseAnadil.“Nãoescrevi,suasidiotas!”As duas garotas olharam pra ela. E instantaneamente apressaram-se

atéaescada.“Comofoiqueelasaiu?”,disseAnadil,pulandodoisdegrausporvez.“Elafezissoantesdevir!”,Hestergritouemresposta,ouvindoorelógio

anunciaroitoemeiadanoite.“Ela é muito boa em trotes”, Dot disse, ofegante, tropeçando pela

escada.“Oqueachaqueserásuavingança?”

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“Maiscorvos?”,disseAnadil.“Nuvensenvenenadas?”,disseHester.“Bombascolocadassobasduasescolasparaexplodiremexatamenteao

mesmotempo?”,disseDot.Hesterficoubranca.“Imaginesetodosestiveremmortos!”Elas dispararam pelo salão das escadarias, passaram pela Sala de

Refeições,pelaExposiçãodoMal,eseguiramatéasportascomentalhesdecaveirascobertosdeteiasdearanhasnosfundosdaescola.Arremessandoo convite preto para longe, Hester abriu as portas e as três garotasentraramnoSalãodoMal,preparadasparaomassacre...

Dot deu uma olhada e desmaiou. As outras duas não conseguiamrespirar.

“Issoéavingança?”,disseHester,comaslágrimasescorrendo.Doladodeforadohall,Teddy,ocoelho,saiudetrásdaescada,efoiaté

o cartão queHester havia jogado. Ele o pegou e prendeu nos dentinhos,cautelosoparanãoborraroglitter.Então,pensandoemperaseameixaseoutrosdeleites,saiupulandodevoltaparaencontrarsuaama.

Amuada junto à parede do Salão Comunitário da Coragem, Agathatentavamanterosolhosabertos,maselesficavamcadavezmaispesados,atéqueelacaiupara tráse foi salvaporalguém.EstreitouosolhoseviuTedros ajoelhando-se, usando uma camiseta de baixo, corado, aindamolhadoapósobanho.

“Durma”,disse.“Agoraeuestouaqui.”“Seiqueestáchateadocomigo...”“Shhh”,eledisse,segurando-acommaisforça.“Chegadediscussão.”Comumsorrisoculpado,Agathaentregou-seaosbraços fortesdele,e

fechouosolhos.Asportasdosalãocomunitárioforamescancaradas.“Teddy!”Beatrix irrompeu, acordando os Sempre. Tedros olhou para cima,

irritado.“Eles estão vindo!”, Beatrix gritou, atirando-lhe o cartão, enquanto

Agathasentava-se,aindaemseusbraços.“Estãovindoparanosmatar!”Tedros leu o texto fantasmagórico escrito em letras brancas, com as

veiasretesando-seemseupescoço.“Eusabia!”Agathatentouverporcimadeseuombro,maseleficouempé...

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“ATENÇÃO!”TodososSempresentaram-se.“Nesteexatomomentoosvilõesestãoplanejandoumavingançacontra

nossaescola”,Tedrosproclamou,porentregritos. “AgoratodososNuncaaliaram-seaSophie.NossaúnicaesperançaéatacaraEscoladoMalantesqueelesvenhamatrásdenós.Vamosinvadiràsnovehoras!”

Agathaficouparalisadapelochoque.“Preparem-separaaguerra!”,Tedrosrugiu,escancarandoasportas.“Guerra!”,Chaddickgritou,juntandoosSempreatrásdele.“Preparem-se

paraaguerra!”Confusa,Agathapegouocartãocaído.Aolê-lo,seusolhosbrilharam...“Não!Nãoataquem!”Elasaiucorrendodasalacomunitária–umpésurgiuemseucaminho.

Agathabateunaparedeedesmaiou.“Opa”,disseBeatrix,queesgueirou-seatrásdosoutros.

Agathadespertou,sentindoumaterríveldordecabeça,eencontrouohalltotalmentedeserto.

Gemendodedor, ela seguiu as pegadas até aTorre daHonra, depoisdesceupeloRefúgiodeJoãoeMaria,eouviuossonsagourentosdeespadasnarocha.

Ela deu uma espiada para dentro da sala e viu os garotos afiandolâminasdeverdade,flechas,machadosecorrentesquehaviamroubadodasaladearmamentos.

“Quantoóleofervendo?”,umdelesperguntou.“O suficiente para cegar a todos!”, gritou outro, batendo a espada na

rocha.Na saladepirulitos,Reena cortavaosvestidosdasmeninasparaque

ficassem mais práticos para o combate, enquanto Beatrix armava cadagarotacomumsacodepedrasedardospontudos.

“Masosmeninostreinamparaaguerranaaula”,umameninagemeu.“Nósnemaprendemosalutar!”,disseoutra.“Você gostaria de ser escrava dos vilões?”, Beatrix disparou de volta.

“Ser obrigada a cozinhar crianças, comer corações de princesas e bebersanguedecavalo...”

“Evestirpreto?”,Reenagritou.

Page 367: Escola do bem e do mal

Asgarotasengoliramemseco.“Entãoaprendamdepressa”,disseBeatrix.Na sala demarshmallows, Kika e Giselle acendiam dúzias de tochas,

enquanto na de balas de goma Nicholas e um grupo de meninospreparavamumaríete.

Agatha encontrouTedros na última sala, comChaddick e dois outrosmeninos curvados sobre a mesa de amêndoas confeitadas da professoraDovey,olhandoummapadesenhadoàmão.

“ComosabequeaíqueficaoSalãodoMal?”,perguntouChaddick.“É sóumpalpite”,disseopríncipe. “Agathaéquem jáestevenaquela

escola amaldiçoada, mas não consigo encontrá-la. Diga a Beatrix paraprocurá-laoutravez.”

“Eulhepoupareiotrabalho.”Osmeninosvoltaram-separaAgatha.“Precisamosdesuaajuda”,disseTedros,sorrindo.“Não vou ajudar um Capitão a conduzir seu exército para o túmulo”,

disseAgatha.Tedrosficouvermelhodesurpresa.“Agatha,elesvãonosmatar!”“AgoraoBemvemnosmatar”, eladisse, segurandoocartãopreto. “O

Malnãovainosatacar!ASophiequerquevocêataque!”“Pelaprimeiravezaquelabruxaeeu concordamosemalgumacoisa”,

disseTedros.“Agora,vocêestácomigoounão?”“Nãovoudeixarquevocêvá.”“Eusouohomemaqui,nãovocê!”“Entãoajacomoum!”Orelógiobateunovehoras.Enquantoasbadaladasressoavam,osmeninosdesviavamosolhosde

TedrosparaAgatha.Aúltimabadaladacessou.Nosilêncio,AgathaviuadúvidanosolhosdeTedrosesoubequehavia

vencido.Ela sorriudelicadamentee estendeu suamãoparapegar adele,mas Tedros recuou. Ficando cada vez mais vermelho, ele gritou,“ATACAMOSAGORA!”,eosrugidosexplodirampelocorredor.

Enquantoseustrêstenentesseguiramparaconduzirastropas,Tedrospegouomapaesaiupelaporta.

Agatha se atirou na frente dele. Antes que ela pudesse falar, eleagarrou-apelacintura.

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“Agatha,vocêconfiaemmim?”,perguntou,ofegante.Elasuspirouirritada.“Éclaro,mas...”“Bom.”Elebateuaportaebarrou-acomumaflecha.“Lamento”, disse, pela fresta da porta. “Mas sou seu príncipe e vou

protegê-la.”“Tedros!”,Agathabateunaportadedoces.“Tedros,elavaimatartodos

vocês!”Atravésdafresta,porém,elaoviuliderandooexércitodoBemrumoà

guerra, munido com tochas, armas, um aríete e um cântico sedento desangue:“Matemabruxa!Matemabruxa!”.Nocorredoracesopelaschamas,suassombrasdistorceram-senoreflexodaparede,ficandoescurasetortasatédespareceremmagicamente.

O pânico gelou o sangue deAgatha. Ela precisava chegar à Escola doMal antes de Tedros e seu exército. Contudo, o que poderia fazer parasalvá-los?

SomentequandoseuNêmesisestivermortovocêsesentirásaciado,LadyLessodissera.

As lágrimas brotaram nos olhos de Agatha, a tristeza pela decisão játomada.

ElaseentregariaaSophie,eninguémmaismorreria.Deixarqueabruxaganhasse.Eraoúnicofinalfelizquerestava.Comumgritoprimitivo,elasocouechutouaporta,depoisbateunela

comamesadebalas,masodocenãoquebrava.Arrastoucadeirascontraaparededeglacê,bateuopénopisodemelado...massóhaviaumaformadesairdessasala.Pingandodesuor,Agathaolhoupelajanela.

Sua botina preta encontrou o beiral, enquanto ela montava noparapeitocomseuvestidoazul.Oventogélidodanoitebateuemseurosto,eelapuxouaoutraperna,agarrando-seaumavinhadeluzesdouradasqueas fadas tinham pendurado na torre para o Baile. Com um puxãodesesperado,balançou-senocumeestreitoegirouocorpo.

Ela estava tão alta, acima da Ponte do Meio do Caminho, que osprofessores congelados abaixo dela pareciam besouros. O vento brutalbateu em suas orelhas fazendo-a estremecer e quase escorregar. Pelapassagemdevidro,podiaver as tochas inundandoaTorredaHonra, emdireçãoaoTúneldasÁrvores.AgathasótinhaalgunsminutosantesqueoBemirrompessediretamentenasmãosdoMal.

Page 369: Escola do bem e do mal

Comseuspunhosmachucados,Agathapuxouasluzesparacima,eviuque estavam amarradas com força. Estreitou os olhos para as vinhasentremeadaseacesaspelas fadas,descendopela torre,eviuumcaminhoquealevariaatéaPonte.

Porfavor,sejaforteosuficiente,rezou.Elaagarrouavinha,puloudabeirada,eouviuumestalo.Seucorpocaiu

noar,bateunabeiradadevidroe,assimqueelaserecuperoudochoque,algo passou voando e aterrissou a um centímetro de seu rosto. Agathaagarrou-se àquilo, antes que a vinha desmoronasse, depois viu que erauma...

Flecha.Penduradana flecha,olhouparatrásemchoque,bematempodever

outraflechapassarraspandoporsuaoutrabochecha.Maisflechasvieramvoando da escuridão, mirando nela. À medida que as ponteiras de açoerravamoalvorepetidamente,Agathafechouosolhoseesperoupeladordaflechadamortal.

Osarremessospararam.Agatha abriu os olhos. As flechas haviam formado uma escada

desordenadaquedesciaportodaaparededatorre.Elanãoquestionouquemestavatentandomatá-la,nemogolpedesorte

queteve.Apenasdesceupelasflechasomaisdepressaquepôde,seguindoparaaPontedoMeiodoCaminho,passandopelosprofessorespetrificados,com as mãos estendidas para proteger-se de uma barreira que nuncasurgiu.EnquantooexércitodeTedroschegavaàClareiraeencontravaostúneisdoBemedoMalmagicamenteentrelaçadoseintransponíveis,bemlonge,Agathaatravessavaeadentravacomsegurançaatocadosvilões.

Bemacimadela,najaneladaMalícia,Grimmguardouseuarco.“Esemdanificarumfiodecabelodela”,disseSophie,afagando-o.“Por

maisqueadorassefazê-lo.”Grimmresmungouobediente,enquantoSophieolhavaparaoexército

deTedrosmarchandoaoredordofossoedepoisparaAgatha,láembaixo,desaparecendodentrodoterritóriodoMal,totalmentesozinha.

“Agoranãovaidemorar”,disse.Ela afastou os tufos de cabelos brancos da mesa e continuou

costurando:umatitereira,manejandoalegrementesuasmarionetes.

Page 370: Escola do bem e do mal

Agathaimaginouqueseriacapturadanoinstanteemqueadentrasseaescola do Mal. Enquanto, porém, seguia sorrateiramente pelo vestíbulocheiodegoteiras,viuquenãohaviaguardas,nemarmadilhas,nemindíciosdeguerra.Haviaumsilêncioperturbadornaescola, excetoporportasdeferro que rangiam quando eram abertas e fechadas, atrás do salão daescadaria. Espiou pelas portas e viu o Teatro de Fábulas, imaculado erestaurado,comapenasumadiferença.No localondeantes ficavaa fênixressurgindodascinzas,bemnafrentedopalcodepedra,haviaagoraumanovacena...

Umabruxaaosberros,cercadadecorvos.Estremecendo,AgathasubiuosdegrausemdireçãoaoSalãodoMal.Noentanto,carosNunca,nósvamosnosvingar...O que Sophie obrigaria os Nunca a fazer contra ela? Ela pensou nos

piores vilões que já havia visto nos contos de fadas. Iriam petrificá-la?Desfilariammostrandosuacabeçadecapitada?Iriampicá-laparafazerumatorta?

Emboraestivessefazendoumfriodecongelarosossos,Agathasentiuseurostotranspirarquandodobrouaesquinaemumcorredor.

Fariam com que rolasse em um barril de pregos? Arrancariam seucoração?Encheriamsuabarrigadepedras?

Osuormisturava-seàslágrimas,enquantoelaolhavaparabaixo,paracentenasdepegadas...

Iamqueimá-la?Apedrejá-la?Esfaqueá-la?Ela saiu emdisparada, seguindo rumoà tortura e àmorte, desejando

quealgumdiaelaeSophieseencontrassememummundodiferente,ummundo sem dor e, com um grito de terror, jogou-se contra as portasentalhadascomcaveiras...

Eficousemar.OSalãodoMalhaviasidotransformadoemummagníficosalãodebaile

ereluziacomlantejoulasverdes,balõespretos,milharesdevelasdechamaverde,eumcandelabroquegiravaelançavafachosdeluzesverdeadanosmurais das paredes. Ao redor de uma escultura imensa de gelo, de duasserpentes entremeadas, Hort e Dot, cambaleantes, dançavam uma valsa,Anadil tinha os braços ao redor de Vex, Brone tentava não pisar no péverdedeMona,eHestereRavangingavamecochichavam,enquantomaisduplasdevilõesdançavamaoredordeles.OscompanheirosdequartodeRavan acompanhavam a música com violinos de bambu, e mais pares

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entravamnapistadedança,desajeitados,acanhados,porémradiantesdefelicidade,dançandosobumafaixadecorada:

Agathacomeçouachorar.Amúsicaparou.Ela esfregou os olhos e viu os Nunca olhando pra ela. Os casais se

desfizeram.Osrostoscoraramdevergonha.“Oqueelaestáfazendoaqui?”,vociferouVex.“ElavaicontaraosSempre!”,disseMona.“Peguem-na!”,gritouArachne.“Eucuidodisso”,disseumavoz.Hesterpassoupelaaglomeração.Agatharecuou.“Ouça,Hester...”“Essaéumafestadevilões,Agatha”,disseHester,seguindonadireção

dela.“Evocênãoéumavilã.”Agathaencolheu-secontraaparede.“Espere...não...”“Receio que haja apenas uma coisa a fazer”, disse Hester, com uma

sombrasurgindoacimadela.Agathaprotegeuorosto.“Morrer?”“Ficar”,disseHester.Agathaencarou-a.AssimcomoosNunca.Vexapontou.“Mas...maselaé...”“Bem-vinda como minha convidada”, disse Hester. “Ao contrário do

BailedaNeve,oSemBailenãotemregras.”Agathasacudiuacabeça,encontrando lágrimas,em lugardepalavras.

Hestertocouseuombro.“FoiassimqueencontramosoSalão”,disse,comavozfalhando.“Acho

queelaqueriaquetivéssemosoqueelanãopôdeter.Talvezsejasuaformadepedirperdão.”

Agathacaiuemprantos.“Eutambémpeçoperdão...”“Eu a joguei no esgoto”,Hester fungou. “Todosnós cometemos erros.

Masnósvamosconsertá-los,nãovamos?Asduasescolas,juntas.”Agathachoravatantoqueseucorposacudia.Hesterficoutensa.“Oqueé?”

Page 372: Escola do bem e do mal

“Eutentei”,Agathachorava.“Eutenteiimpedi-los.”“Impedirquem...”“MATEMOSVILÕES!QUEMORRAMOSNUNCA!”Hestervirou-selentamente.“MATEMOSVILÕES!QUEMORRAMOSNUNCA!”OsNuncaseguiramemmassaatéasjanelaseolharamparaaescuridão.

Aopédacolinaíngreme,oexércitodoBemmarchava,contornandoofosso,comasarmasreluzindosobaluzdastochas.

O brilho nos rostos dos vilões desapareceu, e eles se encolheram. Oventosoproupelasjanelaseapagouasvelas,deixandoosalãoescuroefrio.

“Então,vocêveioparanosalertar.Eseupríncipevemparanosmatar”,disseHester,olhandoaturbafuriosa.“Eéesseoamor.”

“Vocêsnãoprecisamlutarcontraeles”,Agathapressionou.“Deixemquevejamoqueeuvi.”

Hester virou-se, com os olhos em fogo. “E deixar que riam de nós?Deixar que nos lembrem de quem somos? Horrendos. Indignos.Perdedores.”

“Vocêsnãosãoisso!”No entanto, Hester havia voltado a ser a garota perigosa que um dia

Agathaconhecera.“Vocênãosabenadasobrenós”,rosnou.“Somos todos iguais, Hester!”, Agatha suplicou. “Deixe que vejam a

verdade.Éoúnicojeito!”“Sim”,Hesterdisse,baixinho. “Sóháumjeito.”Elamostrouosdentes.

“Soltemabruxa!”“Não!”,Agathagritou.“Éissooqueelaquer!”Hesterdebochou.“Elembremànossaprincesaoqueacontecequando

belasdonzelassemetemondenãosãochamadas.”Agathagritou,enquantoassombrasdosvilõesencobriam-na.

Bem acima deles, em uma torre podre, uma multidão de cinquentaNuncas empurrava os últimos móveis para o lado, e arrancava o últimopregoparaabriroquarto66.Comumrugidoselvagemelesderrubaramaporta,erecuaram,emchoque.

Umabruxahorrendaeenrugadaolhavaparaeles,comumlindovestidode baile cor-de-rosa. Ela esfregou a cabeça careca emostrou as gengivaspretas.

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“Deixem-me adivinhar”, Sophie sorriu. “Nossa festa tem convidadosinesperados.”

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29Obelomal

Agatha abriu os olhos e sentiu o choque de um frio glacial. Estavadeitadadebarrigapracima,lacradadentrodeumcaixãodevidro.Dúziasde silhuetas embaçadas pairavam sobre ela. Em pânico, ela tentou selevantar,masseucorpoestavacongelado.

Nãoeravidro.Eragelo.Ela tentou puxar mais ar, mas engasgou. Seus olhos arregalaram-se,

suasbochechasficaramroxas...Então,assombrasescurassesepararam,eumvultorosasurgiu.Comalíngua,Agatha,quasesemrespiração,limpouacrosta de gelo. Sophie, careca e grotesca, sorria para ela, de cima,empunhando um machado da Sala de Maldição. Sophie olhou pra elaatravésdogelo,correuosdedosporsobreorostosepultadodeAgatha...eergueuomachado.

Page 375: Escola do bem e do mal

Emalgumlugar,Hestergritou.O machado quebrou o gelo e estilhaçou a tumba, parando a um

milímetrodorostodeAgatha.Elacaiunochãomolhado,ofegante,tentandorespirar.

“Congelarumapobreprincesa?”,Sophiesuspirou.“Issonãosãomodosdetratarumaconvidada,Hester.”

“As flechas... eravocê...”,Agathagaguejou, rastejandopara trás. “Vocêmetrouxe...paramematar...”

“Matarvocê?”,Sophiepareceumagoada.“Achaquepossomatá-la?”Dooutro ladodasala,AgathaviuHester,AnadileDot juntas,olhando

estupidamente para a ex-colega de quarto, agora uma bruxa careca emurcha.

“Averdadeéquequeromachucá-la,Agatha”,disseSophie,derretendoomachadocomodedoaceso.“Massimplesmentenãoposso.”

Elaobservouseurostorefletidoemumbalão.“Meucomportamentodeontemànoitefoiruim.”

“Ruim?”,Agathatossiu.“Vocêmeempurrouparaforadeumajanela!”“Vocênãoteriafeitoomesmo?”,perguntouSophie,espiandoovestido

azuldebailedeAgathapelobalão.“Seeutomassetudooqueéseu?”Sophievirou-se,ovestidorosacintilando. “Masesseéo seucontode

fadas,Agatha.Então,ounósoconcluímoscomoinimigasoucomoamigas.”“A-amigas?”,Agathagaguejou.“O Diretor da Escola disse que era impossível. E talvez nós duas

tenhamosachadoqueeleestavacerto”,disseSophie,comapeletrincandoaoredordasverrugas.“Mascomoelepoderianosentender?”

Agatharetraiu-se,comaversão.Sophie assentiu. “Agora sou horrenda”, disse, com a vozmacia. “Mas

possoserfelizaqui,Agatha.Estamosondedevemosestar.VocêédoBemeeusoudoMal.”

Osolhosdelapercorreramosalãodecorado.“MasoMalpodeserbonito,nãopode?”A luz das tochas banhava as janelas. “Sophie, os Sempre estão nos

portões!”,Anadilgritou,olhandoparafora.“Vingança”,disseAgatha,tremendo.“Vocêdissequequeriavingança.”“DequeoutromodoeuatrairiaoBematéaqui,Agatha?”,Sophiedisse,

triste. “De que outra forma mostraria a todos eles que tudo o quequeríamoseraumBailesónosso?”

Page 376: Escola do bem e do mal

“Sophie, eles estão chegando!”, Dot gritou. Lá embaixo, os Sempresacudiamasportasdocastelo.

“Mas, agora, nós vamos acabar com tudo isso, não vamos?”, disseSophie,tirandoamãoretorcidadobolsodovestido.

OsolhosdeAgathaarregalaram-se.Haviaalgoemsuamão.“ELAESTÁLÁEMCIMA!”,osSemprehaviaminvadido.“Agatha”,disseSophie,aproximando-sedela,depunhofechado.“MATEMABRUXA!”,gritaramosSempre,irrompendoescadaacima.Sophieestendeuopunhomanchado.“Minhaamiga...minhaNêmesis...”Agatharetraiu-se.Sophieabriuapalmadamão...Ecaiusobreumjoelho.“Vocêdançariacomigo?”Agathaperdeuoar.BUM!OsSemprederrubaramasportasdosalão.“Sophie,oquevocêestáfazendo?”,Hestergritou.SophieestendeuamãomurchaparaAgatha.“Nósvamosmostraraelesqueacabou.”Asportasabriram-se.“Umadança,porfavor”,Sophiepediu.“Sophie,elesvãomatartodosnós!”,Hestergritou.Sophiecontinuoucomamãoestendida.“Umadançaparaumfinalfeliz,

Agatha.”Paralisada, Agatha olhou para ela, enquanto a tranca da porta era

estilhaçada.As verrugas de Sophie brilhavam com as lágrimas. “Uma dança, para

salvaraminhavida.”“Notrês!”,Tedrosrugiu,ládefora...Sophie ergueu o olhar para Agatha, com olhos de carvão. “Sou eu,

Agatha.Nãoconsegueenxergar?”Tremendo,Agathasondavaseurostohorrendo.“Um!”“Agatha,porfavor...”Agatharecuouumpasso,aterrorizada.“Porfavor...”Sophieimplorava,comorostoficandomaisrachado.“Não

medeixemorrercomovilã.”Agathaencolheu-se,afastando-sedela.“VocêédoMal...”

Page 377: Escola do bem e do mal

“EoBemperdoa.”Agathagelou.“VocênãoédoBem?”,Sophieperguntou,ofegante.“Dois!”Comumsuspiro,Agathapegousuamão.Sophiepassouseusbraçosossudosemvoltadelaepuxou-aparauma

valsapelosalão.AosinalfrenéticodeHester,oscolegasdequartodeRavaniniciaramumavacilantecançãodeamor.

“Você é do Bem”, Sophie disse, ofegante, com a cabeça no ombro deAgatha.

“Não vou deixar que a machuquem”, sussurrou Agatha, abraçandoSophie.

Sophietocouseurosto.“Eugostariadepoderdizeromesmo.”Agathaolhoupraela.Sophiesorriusinistramente.“Três!”Tedros irrompeu pelas portas, no comando de sua turba, e com um

gritobestialergueuaespadaacimadascostasdeSophie...“Morteàbru...”Entãoeleenxergoumelhoracenadavalsa.Sophie voltou-se para ele, com Agatha nos braços. Tedros baixou a

espada.“Pobre Teddy!”, disse Sophie, silenciando a música. “Toda vez que

encontrasuaprincesa,acabadescobrindoqueelaéumabruxa.”TedrosolhouparaAgatha,perplexo.“Vocêestácom...ela?”“Ela está mentindo!”, Agatha gritou, se debatendo para livrar-se de

Sophie...“Como acha que ela sobreviveu à queda? Por que acha que tentou

impedir seu ataque?”, disse Sophie, abraçando-a com mais força. “Sim,Teddy,receioqueseuparparaoBailetambémsejaomeu.”

Tedros seguiu os olhos de Sophie para a faixa acima do salão. OsSempreempalideceramportrásdele.

“Nãodêouvidosaela!”,Agathagritou.“Éumaarmadilha!”“Agatha,está tudobem,querida.Vocêpodedizeraele”,disseSophie.

Virou-separaTedros,desesperada.“Elaqueriaesperaratéquetivesseumaespadaemseupescoço.”

TedrosolhouparaAgatha,comosolhosarregalados.

Page 378: Escola do bem e do mal

“Nãoéverdade!”,gritou.“Eutenhoprovas!”Elavirou-se.“Hester!Dot!Digamaeles!”

Mas Hester, Dot e o restante dos Nunca olhavam para o exército doBem,empunhandoarmasmortaisparaummassacre.HesterolhoudevoltaparaAgathaenãodissenada.

Agathaviuobrilhonosolhosdeseupríncipeseapagar.Atrásdele,osSemprearmadosdesviavamseusolharesdeSophieparaela.

“Não!Esperem!”, soltou-seecaiunosbraçosdeTedros. “Vocêprecisaacreditaremmim!Estoudoseulado!”

“Realmente!”,Sophiedisse.“Entãocomofoiqueseupríncipetrancou-aemumatorreevocêestáemoutra?”

Agatha sentiu os braços de Tedros enrijecerem. Ela olhou para o seurostoempalidecido.

“Responda”,eledisse.“Euvimparaajudarvocê...desciescalando...”“Escalando!”,Sophiegargalhou.“Desceuescalandoaquelatorre!”TedrosseguiuseusolhosatéospináculosaltíssimosdoBem.“Haviaflechas...”,Agathagaguejou.“Nãoseiporqueelaestátãoacanhada”,disseSophie,coçandoacabeça.

“Elaarquitetoucadapasso.Os trotesnoBem,seuencontronaFloresta,oataqueaoCirco... foi tudopartedoplanodemestredeAgathapara fazercom que você pensasse que ela era do Bem. Ah, exceto esse sorrisoadorável.Issofoimagianegra.”

Agathanãoconseguiarespirar.“Somente osmelhores vilões conseguem se disfarçar de bons”, disse

Sophie,olhandoparaela.“Agathaéatémelhordoqueeu.”Comosolhosarregalados,Tedrosafastou-sedeAgatha.“Princesas não questionariam aminha autoridade”, ele disse, ficando

vermelho.“Teddy,espere”,Agathasuplicou.“Princesasnãoquestionariamsesouhomem.”“Olheoqueelaestáfazendocomvocê...”“Eu sabia que você era uma bruxa”, disse, com a voz falhando. “Eu

sempresoube.”“Vocênãoconfiaemmim?”,Agathachorava.“Minhamãefezamesmaperguntaaomeupai”,disseTedros, lutando

contraaslágrimas.“Masnãovoucometeromesmoengano.”

Page 379: Escola do bem e do mal

Osolhosdeledesviaram-separaaExcalibur,entreeleeela.Opríncipesaltou para pegar a espada,masAgatha pegou-a primeiro e ficou empé,empunhando-a.OsSemprepuxaramasarmas,horrorizados.

“Estávendo?”,Sophiesorriu.“Espadanagarganta.”Agathaolhouparaela,depoisparaTedros,queolhavaparasuaprópria

espadaapontadaparaoseurosto.Elasoltou-a.“Não!Eusóestava...eunãoquis...”

Tedrosinchou-sedeódio.“Preparem-separaatacar!”Agatharecuou.“Tedros,ouça-me!”TedrospegouoarcodeChaddick...“Tedros,espere...”“Soupiordoquemeupai.”Tedrosolhou-a,osolhosbrilhando.“Porque

euaindaaamo.”Elepuxouumaflecha,mirandoocoraçãodela.“Não!”,Agathaberrou...“Fogo!”Os Sempre lançaram pedras, dardos e óleo nos Nunca indefesos,

enquantoTedrossoltavasuaflechaemdireçãoaAgatha...Sophiepiscouodedoaceso,bemno instanteemquea flechaespetou

peito dela. Todas as armas transformaram-se em margaridas e foramflutuandoatéochão.

OsNunca,acuados,olharamparacima,espantadosporestaremvivos.Encolhidanomeiodeles,Agathavirou-selentamente.

“Aprendiissocomminhaprincesafavorita”,Sophiedisse,baixinho.Agathaencolheu-senochão,aosprantos.Tedrosdesviouoolhardeumaparaoutra,comoterrortomandoseu

rosto.Sophiedeuumagargalhadadiabólica.“Vocênuncafoimuitobomnessesdesafios,nãoé,Teddy?”“Não!”,Tedroscaiudejoelhos,agarrouAgathaemprantos,segurando-a

nosbraços.Elaoafastou.“Esse sim é um grande final. O príncipe tenta matar sua princesa”,

Sophie deleitou-se. Pegou amargarida destinada ao coração de Agatha echeirou-a,extasiada.“AsorteéqueoMalestavaaquiparasalvarodia.”

Dochão,Tedrosolhavapraela,comocoraçãopartido.“E isso, é claro, nos leva à seguinte pergunta...”, Sophie lambeu seus

lábiospodres.

Page 380: Escola do bem e do mal

“OqueacontecequandooMalficaBom?”Dessavez,quandoelasorriu,Tedrosviuseusdentesbrancosreluzindo.

Elerecuou,emchoque.Diantedeseusolhos,asverrugasdeSophiesumiramemumpassede

mágica, e suas rugas profundas suavizaram-se, até que sua pele clara depêssegovoltouàjuventude.Cabelosbrotaramdeseucrâniobrilhante,emuma cascata de cachos louros, e seus lábios tornaram-se carnudos ecintilantes.Agathaespiouvagarosamentepor entre seusdedos, vendoosolhos de Sophie recuperarem seu brilho verde-esmeralda, seu corpomurchorenascer,atéqueagrandevilãpairouacimadela,comseuvestidodebailecor-de-rosa,maisradianteearrebatadoradoquenunca.

“Saiam... Saiam agora...”, Agatha alertou, mas os Sempre estavamparalisados,olhandoparaalémdeSophie.

Recuando,Agathavirou-se.Hesterolhoudevoltaparaela,agoracomumvestidorosa.Seuscabelos

finos afloraram magicamente em longas tranças grossas, seu rostoamarelado ganhou plenitude, sua tatuagem recuperou um tommagníficodevermelho.Ao seu lado,o cabelobrancodeAnadil ficoucastanho, seusolhos vermelhos tornaram-se verde-água, e o corpo redondo de Dotganhoucurvasacentuadas.Hortobservouseumaxilarficarquadrado,umfurinhosurgiremseuqueixo,eseuuniformepretotransformar-seemumcasaco azul de Sempre. Ravan viu sua pele oleosa clarear-se, Bronelevantousuacamisaeviumúsculosdefinidos,Arachnepassouosdedosporseus dois novos olhos, Mona tocou sua pele macia de marfim... até quetodos em volta eram vilões transformados, usando uniformes do Bem,olhandounsparaosoutros.

SophiesorriuparaAgatha.“EulhedissequeoMalpodiaserbonito,nãodisse?”

“Bateremretirada!”,Tedrosgritou,recuandocomseuexército.“Ainda não terminamos, Teddy”, Sophie bradou. “Você e seu exército

invadiram um Baile. Você e seu exército atacaram uma escola indefesa.Você e seu exército tentarammatar pobres alunos que, bem aqui, nestasala,tentavamdesfrutardanoitemaisfelizdavidadeles.Oquenoslevaaoutrapergunta...”

“Recuemagora!”,Tedrosgritou...“OqueacontecequandooBemsetornaMal?”GritosexplodiramatrásdeTedros.

Page 381: Escola do bem e do mal

Agatha virou-se e viu Beatrix berrar de dor quando suas costasencurvaram-sedandoumestalo. Seus cabelos ficarambrancos, seu rostoencheu-sedemarcascomoodeumavelha,eseuvestidorosadesfigurou-seemumatúnicapreta,quecobriuseusossossecos.

Atrásdela,ostrajesdetodososSemprelentamentetransformaram-senos jalecospretosdoMal. Chaddickviu tachaspontiagudas surgiremportodooseucorpo,Millicentsoluçouaoversuapeletornar-severde,Reenagritou, coçando sua pele coberta de escaras, e Nicholas cambaleou,corcundaecomumolhosó.Umaum,osSemprequehaviamatacadososvilõesforamficandohorríveis,Agathasendoaúnicaimuneàpunição...atéque,finalmente,SophieolhoucommalíciaparaTedros,careca,esquelético,comcicatrizeshorríveis,àfrentedeseuexércitodevilões.

“Salveopríncipe!”,elagargalhou.OsbelosNuncaapontaramparaoshorrorososSempreejuntaram-sea

ela em um coro triunfante de risos, aniquilando todo um legado dederrotas.

Agatha pegou a espada caída e apontou-a para Sophie. “Sua guerra écomigo!Deixe-osempaz!”

“Comtodacerteza,querida”,Sophiesorriu.“Asportasestãoabertas.”OsrepulsivosSempreirromperamemdireçãoàsportas.Todos,exceto

omurchoeesqueléticoTedros,queagorabloqueavaocaminho.“Porfavor,Teddy.Acabecomessaguerra”,Agathapediu.“Nãopossodeixarvocê”,oprínciperesmungou.Agathaolhouemseusolhostristesebrutais.“Destavezvocêteráqueconfiaremmim.”Tedrossacudiuacabeça,envergonhadodemaisparabrigar...“Recuar!”,disse,engasgado,parasuaescola.“Recuaragora!”Comumgritoangustiado, ele conduziuosmonstruososSemprepelas

portas,quebateramemsuascaras.“Vocêsdevemrealmenteaprenderasregras”,Sophiesuspirou.Tedroseseuexércitoviraram-se,tremendo.“O Mal ataca, o Bem defende”, disse Sophie. “Vocês atacaram...” Ela

sorriu.“Agoranósdefendemos.”Elacantoutrêsnotasagudas.Derepente,Agathaouviugrunhidoscada

vezmaisaltosláforaearregalouosolhosquandoreconheceuoqueemitiuobarulho...

“CORRAM!”,elagritou.

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As portas escancararam-se e três ratazanas colossais chocaram-secontraoexércitoparalisadodeTedros,comGrimmnocomando.Osratos,guinchandoechiando,grandescomocavalos,atiraramosSemprecontraaparede,derrubaram-nosescadaabaixo,arremessaram-nospelasjanelasdevidro em direção ao fosso. Antes que os garotos da Coragem pudessemsacar suas espadas, os ratos pisotearam-nos, como a soldadinhos debrinquedo.

“E eu que achei que meus talentos passariam despercebidos aqui”,Anadil disse para Dot, atônita. Um dardo de espinho passou voando porentre as duas. As meninas viraram-se e viram Tedros e os horrendosSemprepegandosuasarmasfreneticamente.

“Fogo!”,Tedrosrugiu.Dotabaixou-separaevitarumachuvadeflechas,aqueosbelosNunca

responderam com feitiços, e as duas escolas entraram em combate, comarmas e encantamentos. Enquanto dardos voavam, espadas irradiavamraiosededosdeambososladosacendiamemcores,osratossoltaram-sedas rédeas de Grimm, lançando Ava ao lustre e dando umamordida nascostas de Nicholas. Grimm rapidamente voou e perseguiu Agatha pelocorredor,comflechasdepontasemchamas.Elasaltoudetrásdeumpilar,apontandooseudedoacesobemnahoraemqueelelançouumaflecha.Aflechatransformou-seemumaarmadilhaparamoscasepegoubemnamãodeGrimm,queberrou.Agathavirou-seeviuashorrendasBeatrix,ReenaeMillicenttremendoaoseulado.

“Sevocêpodetransformarflechasemflores”,disseBeatrix, lacrimosa,“tambémpodenosfazerbonitasoutravez?”

Agatha ignorou-a e olhou por trás do pilar, vendo o massacre. Osfeitiços coloridos eram lançados dos dois lados, cobrindo o chão comcorpos aturdidos. Junto à janela, dois ratos encurralaram Tedros e seuscompanheiros,mostrandodentessuperafiados.

Agathavirou-separaasmeninas.“Nóstemosqueajudá-los!”“Nãofazsentido”,Millicentchoramingou.“Olhepranós”,disseReena.“Nãotemosnadapeloquelutar”,Beatrixfungou.“Vocês têm que lutar pelo Bem!”, Agatha gritou, enquanto os ratos

devoravamasarmasdosgarotos.“Nãoimportaqualsejaasuaaparência!”“Pravocêéfácildizer”,disseBeatrix.“Vocêaindaébonita.”

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“NossastorresnãosãoBelezaeGraça!”,Agatharalhou.“SãoCoragemeHonra!IssoéqueéoBem,suascovardesestúpidas!”

Elas ficaram boquiabertas, enquanto Agatha entrava na batalha,tentando salvar os meninos dos ratos. Algo bateu violentamente nela,lançando-acontraaparede.

Confusa, Agatha olhou para cima e viu Sophiemontada nomaior detodososratos,vindonovamenteemsuadireção.Agathatentouencontrarumfeitiço,maseratardedemais...

Beatrix pulou na frente do rato e estendeu amão.Magicamente umachuvairrompeudoteto,encharcandoochão.OratoescorregouepassouaatacarosNunca,eSophiecaiunochão.

“Outra coisa boa no Bem”, Beatrix sorriu para Agatha, com Reena eMillicentaoseulado.“Nósprecisamosumasdasoutras.”

Sophie olhou para cima e viu os Sempre encontrando coragem parareagirebaternosNuncaderrubados.Chaddickusouastachasdeseucorpopara espetar um rato no coração, Tedros puxou outro pelo rabo eapunhalou-o no pescoço, enquanto os Sempre amarravam osNunca comsuastúnicaspretasecintos...

Subitamente, suas própriasmãos e pés estavammagicamente presosporvinhas.

“Vocêseesquecedequeestamosemumcontodefadas”,disseumavozatrásdela.

Relutante,Sophievirou-seeviuAgatha,acimadela,comodedoaceso.“Nofim,oBemsemprevence”,disseAgatha.Sophierelaxouocorpopresopelasamarras.“Eassimé”,eladisse,olhandodevoltaparaAgatha.EntãoAgathaviuquenãoestavaolhandoparaela.Olhavamaisalém,

para o último mural da parede: na pintura, uma multidão ajoelhava-sediante do Storian, que reluzia como uma estrela nasmãos doDiretor daEscola.

UmsorrisomaldososurgiunorostodeSophie.“Amenosqueeumesmaescrevaofinal.”

Elaestendeuodedoacesoeaspoçasdechuvaafundaram-senomesmoinstante,derrubandoAgathaeosdoisexércitos.Osalunosremexiam-senaágua,tentandomanteracabeçaacimadasuperfície,masaáguasubiamais,chegandoquaseaoteto,atéquetodosestavamprestesaseafogar.Comasbochechas inchadas e ficando roxos, eles viraram-se para Sophie, que

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bloqueava a janela arrebentada com seu corpo. Ela riu com malícia eescorregoupeloburaco.

Ainundaçãoexplodiupelajanela,eduzentosalunoscaíramdatorreemcascata, penetrando no ar gelado da meia-noite e esborrachando-se nofosso.

Aguerrarecomeçouautomaticamente,nolodopútrido.Comosrostoseroupascobertasporele,porém,osalunosnãopodiamverunsaosoutrossobaluzfracadamadrugada.HesterempurrouorostodeAnadilnolodo,achandoque fosseumaSempre,Beatrixdeuum soco emReena achandoque era uma Nunca, Chaddick sufocou o que estava mais perto – queacaboudescobrindoserTedros,quereagiucravandoosdentesnopescoçodocompanheiro.Comasregrasinfringidasdeformatãoviolenta,osalunoscomeçaramamudar de rosa para preto, de pretopara azul, de horríveispara bonitos, de bonitos para feios, até que ninguémmais fazia amenorideiadequemeradoBemequemeradoMal.

Nenhumdosinimigosnotouque,aolonge,nabaía,umagarotaderosaescalavaa torredoDiretordaEscola, tijolopor tijolo,erguendo-secomaajuda das flechas de Grimm. E que, bem abaixo, um príncipe subia atrásdela, com a silhueta aparente sob o luar. Observandomais atentamente,via-seumpríncipedecabelosnegrosedeterminaçãodeaçodesviando-sedasflechasdeumcupido,vestindoalgoazul...

Umatúnica!Olhandomaisdeperto,elenãoera,demodonenhum,umpríncipe.

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30Nuncamais

Agarrando-seà janeladetijolosprateados,Sophiecerrouosdentes.OBemsemprevence.

Sua punidora estava certa. Enquanto o Diretor da Escola vivesse,enquantooStorianestivessenasmãosdele,elajamaisteriasuavingança.SóhaviaummeiodearruinarofinalfelizdeAgatha.

Destruirtantoacanetaquantooseuprotetor.Dando um berro, Sophie entrou na torre do Diretor da Escola e

estendeuseudedoaceso...Eeleperdeualuz.Ogabinetedepedrasestavavazioebrilhavacomcentenasdevelasde

chamasvermelhas,enfileiradasemestanteseprateleirasdelivros.Pétalasderosasvermelhascobriamochãosobseuspés.Umdedilhadosuaveemumaharpafantasmatocavaumacançãodelicada.

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Sophie fezumacareta.Tinha ido láparaumaguerra e encontrouumcasamento.OBemeraaindamaispatéticodoqueelahaviapensado.

EntãoviuoStorian.Dooutroladodasalaelepairava,desprotegido,sobreocontodefadas

delaedeAgatha,namesadepedrasobasombra.Emmeioàspétalasquecaíameàsvelasquebrilhavam,Sophieseguiu

emdireçãoàcanetaafiadaemortal.Quandoseaproximou,omanuscritoardeu em brasas contra o aço. Com os olhos queimando e a respiraçãoacelerada, ela estendeu o braço para pegá-la, mas a caneta deu umsolavancoecortouseudedo.Sophierecuouemchoque.

Uma única gota de seu sangue pingou no Storian, preenchendo ossulcos dos símbolos gravados na caneta, antes de escorrer até sua pontaletal.Vivacomanovatinta,acanetaardeuemvermelhovivoemergulhouno livro furiosamente, virando as páginas. Todo o seu conto de fadasdesenrolou-sediantede seus olhos, empinturasdeslumbrantes e flashesdepalavras:elavendoTedrosnacerimôniadeboas-vindas,acovardando-

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sedeseupríncipenaProva,testemunhandoquandoeleconvidouAgatha,atraindo o exército do Bem para a guerra, até mesmo escalando aquelatorre pelas flechas – até que o Storian encontrou uma página nova ederramouaescritaemsangueemumaúnicatacada.Acorricapreencheuapáginamagicamente,eSophieviuumapinturaconhecidatomandoforma,alimesmonatorreondeestavaagora.Resplandecente,emumtrajerosa,apinturadelamesmaolhavanosolhosdeumestranho,alto,magro,noaugedesuajuventudeebeleza.

Sophie tocou o rosto dele na página... olhos azuis cintilantes, pele demármore,cabelosincrivelmentelouros.

Nãoeraumestranho.HaviasonhadocomelenasuaúltimanoiteemGavaldon.Opríncipeque

haviaescolhidoentreoutros cem,nobailedeumcastelo.Aqueleque lhedavaasensaçãodefelizesparasempre.

“Todosessesanosesperei”,disseumavozterna.Ela virou-se e viu oDiretor da Escola,mascarado, deslizando em sua

direção,dooutroladodasala,comumacoroaenferrujadaetortasobreoscabelos brancos. Lentamente seu corpo foi endireitando-se da posturacurva,atéficaraltoeereto.Entãoeletirouamáscara,revelandoumapeledealabastro,maçãsdorostoesculpidaseolhosazuis.

AspernasdeSophiebambearam.Eleeraopríncipedesuapintura.“Vocêé...jo-jovem...”“Isso tudo foi um teste, Sophie”, disse o Diretor da Escola. “Um teste

paraencontrarmeuverdadeiroamor.”“Seuverdadeiro...eu?”,Sophiegaguejou.“MasvocêédoBemeeusou

doMal!”ODiretordaEscolasorriu.“Talveznósdevamoscomeçardaí.”

Penduradabemacimadopontocentralentreo fossoeo lago,Agathasubiapelasflechasespetadasnostijolosprateados,esquivando-sedenovosarremessos,comGrimmvoandoaoredordopináculodoDiretordaEscola.Enquanto o cupido colocava outra flecha em seu arco, ela saltou para aflechadecima,masestaquebrou-seemsuamão.Girouacabeçaparacima.Grimmmostrouosdentesamarelosdetubarão,mirandooutraflechabemnorostodela...

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Eleretesou-secomoumpássaroconfuso,despencandodocéu,rumoàságuasescurasdebaixodela.

Quando virou-se, ela viu o dedo vermelho de Hester apagando-se,apontadoemsuadireção,eseucorpopresoporcorrentesdelodoescuro.Sobo luar ela podia ver o rosto deHester, cheio de arrependimentoporrefutar a chance de acabar com aquela guerra. Em volta dela, os Sempretinham assumido o controle da batalha. Os vilões se esforçavam parasoltar-sede suas amarras, comsua feiura restabelecida, enquantoquatrogarotosSempreprendiamolobisomemdeHortcomsocosechutes.

Agathasentiuaúltimaflechalascar-sedebaixodesuamão.“Socorro...”,eladisse,sacudindoaspernas.Aflechaquebrou-se.Econgelou-se,presaemsuamão.Agatha virou-se e viu o brilho verde do dedo de Anadil à distância,

apontadoparaaflechacongelada.Então, o tijolo prateado seguinte ficoumarrom escuro, acima de sua

cabeça. Agatha sentiu o cheiro gostoso da doçura e esticou a mão paraalcançarochocolate.Aoimpulsionar-separacima,olhouparaooutroladodabaía.

AluzazuladadeDotbrilhavaorgulhosamente.Quandootijoloseguintetransformou-seemchocolate,Agathaestendeu

amãoparacima,sorrindo.Pareciaqueasbruxastinhammudadodelado.

“Eusempreestivelá”,disseoDiretordaEscola,eseubelorostobrilhousobosprimeirosraiosdesol.“LevandoAgathaatévocênanoiteemqueasequestrei. Garantindo que você não fracassasse em seu primeiro dia deaula.Abrindo asportasdoCirco.Dando-lheuma charada cuja resposta atrariaatémim...Euinterferiemseucontodefadasporquesabiacomoeletinhaqueterminar.”

“Masissosignificaquevocêé...”,Sophieseatrapalhou.“VocêédoMal?”“Eu gostavamuitodomeu irmão”, disse oDiretordaEscola, olhando

tensoparaaguerradasescolas.“NósrecebemosaguardadoStorianpelaeternidade, porque nosso laço superava nossas almas, que secontrapunham. Enquanto protegêssemos um ao outro, poderíamoscontinuarimortaisebelos,oBemeoMal,emperfeitoequilíbrio.Cadaumtãodignoepoderosoquantoooutro.”

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Elevirou-se.“MasoMalnãopodeexistirsenãosozinho.”“Entãovocêmatouseupróprioirmão?”,disseSophie.“Assim como você tentou matar sua querida amiga e seu amado

príncipe”, o Diretor da Escola sorriu. “Porém, por mais que eu tentassecontrolaroStorian...oBememergiatriunfanteacadanovahistória.”

Eleafagouossímbolosnasuperfíciedacaneta.“PorqueháalgomaiordoqueomaispuroMal,Sophie.Algoqueeuevocênãopodemoster.”

FinalmenteSophieentendeu.Seufogoesfriou-se,transformando-seemmágoa.

“Amor”,eladisse,baixinho.“Por isso é que o Bem ganha todas as histórias”, disse o Diretor da

Escola.“Eleslutamumpelooutro.Nóssópodemoslutarpornósmesmos.Minhaúnica esperança era encontrar algomais forte, algoquenosdesseumachance.EubusqueitodososvidentesdaFloresta,atéqueumdelesmedeu uma resposta. O que me disse que o que eu precisava viria de ummundoalém donosso.Entãoeubusquei, por todosesses anos, cautelosopara manter o equilíbrio, enquanto meu corpo e minha esperançaenfraqueciam... até que você finalmente veio. Aquela que pode mudar oequilíbrio para sempre. A única que émais poderosa do que o amor doBem.”

Eletocouafacedela.“OamordoMal.”Sophienãoconseguiarespirar,sentindoosdedosfrígidosemsuapele.OslábiosdoDiretoresboçaramumsorriso.“Sadersabiaquevocêviria.

Um coração tão sombrio quanto o meu. Um Mal cuja beleza poderiarestauraraminha.”Elepassouasmãosemvoltada cinturadela. “SenósnosunirmosparaselarolaçodoMal,senósnoscasarmoscomopropósitodeferir,destruir,punir...entãovocêeeufinalmenteteremosalgoporquelutar.”

OhálitodoDiretorgelouseuouvido.“Paranuncamais.”Olhandoparaele,Sophiefinalmenteentendeu.Eletinhaamesmafrieza

maligna dela, a mesma dor ardendo raivosamente em seus olhos. Muitoantes de Tedros, sua alma já conhecia seu verdadeiro parceiro. Não umcavaleiro brilhante que lutasse pelo Bem.Não alguémdoBem, com todacerteza.

Todos esses anos ela tinha tentado ser outra pessoa. Tinha cometidomuitoserrosaolongodocaminho,mas,finalmente,tinhachegadoemcasa.

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“Umbeijo”,sussurrouoDiretordaEscola.“Umbeijoparanuncamais.”As lágrimas escorriam pelo rosto de Sophie. Depois de tudo por que

passou,teriaseufinalfeliz.Elarendeu-seaoabraçodoDiretordaEscola,queaenvolveuemseus

braços.Elepuxou-aparadar-lheseubeijodecontodefadas,eSophieolhoucarinhosamenteparaopríncipedeseussonhos.

Ocontornodeseurosto,porém,começouarachar.Sua carne chamuscada revelou-se por baixo da pele luminosa. Atrás

dele, as rosas caídas transformaram-se em vermes, e as velas vermelhasiluminaram sombras infernais. Lá fora, o céu da manhã nublou-se,adquirindo um tom assombroso de verde, e o castelo do Bem enegreceucomopedra.QuandooslábiospútridosdoDiretortocaramosdela,Sophiesentiusuavisãoembaçar,suasveiasqueimarem-secomoácidoeseucorpoapodrecercomoodele.Comsuapeledeteriorando-se,olhounosolhosdeseupríncipe,implorandoparasentiramor,oamorqueoslivrosdecontosdefadashaviamprometido,oamorquedurariaumaeternidade...

Noentanto,tudooqueencontroufoiódio.Devoradaporumbeijo,finalmenteviuquejamaisencontrariaoamor,

nestavidaounapróxima.ElaeradoMal,sempredoMal,ejamaishaveriafelicidade ou paz. Enquanto seu coração estilhaçava-se pela tristeza, elacediaàescuridãosemlutar,sóparaouvirumecodemorteemalgumlugarmaisprofundoqueaalma.

Nãoéoquesomos,Sophie.Éoquefazemos.Sophie soltou-sedoabraçodoDiretordaEscola, e ele recostou-sena

mesa de pedra, lançando o Storian e o livro de encontro à parede. NoStorian caído, ela teve um vislumbre de seu rosto, com uma metadeapodrecida,completamentedividido,datestaaoqueixo.Semar,correuatéajanela,masnãohaviacaminhoparadesceratorre.

Através da nevoa sinistra e verde, viu a costa ao longe. As armas, osfeitiçoseosdoisladostinhamsumido.Olodotransbordava,comoscorposenegrecidos, os jovens socando qualquer coisa em sua vista, batendo osrostos na lama, arranhando pele e puxando cabelo, contorcendo-se epedindoclemência.Sophieficouolhandoaguerraqueelahaviacomeçado,vendooBemeoMallutaremporabsolutamentenada.

“Oquefoiqueeufiz?”,elasuspirou.Virou-seeviuoDiretorremexendo-senochão.

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“Porfavor”,Sophieimplorou.“EuqueroserdoBem!”ODiretordaEscolalevantouosolhosvermelhos,apelemurchandoem

voltadeseusorrisofino.“VocênuncapoderáserdoBem,Sophie.Porissovocêéminha.”Ele arrastou-se lentamente na direção dela. Aterrorizada, Sophie

encolheu-secontraajanela,enquantoeletentavaalcançá-lacomsuasmãosapodrecidas...

Braços macios e ternos de um anjo envolveram-na por trás,subitamente,puxando-aparafora,rumoaocéunoturno.

“Prendaarespiração!”,Agathagritou,enquantoelascaíam...Abraçando-sefortemente,asduasgarotascaíramdecaranaáguafria.

Olagoglacialamorteceucadacentímetrodapeledelas,porém,elasnãosesoltaram. Os corpos entremeados mergulharam na profundeza ártica, elutaramparasubiremdireçãoàluzdocéu.Entretanto,quandosuasmãosseergueramembuscadear,Agathaviuumasombraescuravindodiretoaoencontrodelas.Comumgritosilencioso,estendeuseudedoaceso,eumaonda gigante se ergueu, levando-as para longe do Diretor da Escola, elançando-asnaestérilcostadoMal.

Agathaforçou-seaficardejoelhosnofossoeouviuosgritosdeguerraem volta delas, as crianças encharcadas de lodo, sem rostos ou nomes,batendoumasnasoutrascomoferas.

Entãoumcorpoergueu-sedolodo,àdistância.“Sophie?”,eladisse,rouca.OlimoescorreueAgathamergulhouparaamargem,horrorizada.Ela olhou para trás e viu o velho Diretor, decomposto, vindo

calmamenteemsuadireção,comoStoriannamão.Semfôlego,elapassoupor cima de dorsos que combatiam e seguiu até a margem, com mãosnegras e oleosas arranhando seu rosto e o lodo afundando-a como areiamovediça. Agatha virou-se e viu o Diretor deslocando-se sem ser notadopelos alunos em guerra. Engasgando com a sujeira, ela impeliu-se paracimadamassanegraesubiunagramamorta,impulsionando-separaficarempéecorrer...

O Diretor da Escola estava parado à sua frente, com a carnedesintegrando-seemseucrânionu.

“Eu esperava mais de uma Leitora, Agatha”, disse. “Você certamentesabeoqueacontececomaquelesquecontrariamoamor.”

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Agatha corou,querendobrigar. “Você jamais a terá.Nãoenquantoeuestiverviva.”

OsolhosazuisdoDiretorencheram-sedesangue.“Eassimestavaescrito.”EleergueuoStoriancomoumpunhaleavançounadireçãodeAgatha,

soltandoumgritoensurdecedor.Encurralada,Agathafechouosolhos...Umcorpocolidiucomoseuealevouaochão.Agathaabriuosolhos.Sophie estava deitada ao seu lado, com o Storian cravado em seu

coração.ODiretorsoltouumgritodechoque.Aguerraemvoltadelescessou.Osalunosensanguentadosviraram-se,emumsilêncioatônito,eviram

seumalevolente líder,apodrecido,paralisadosobreocorpodabruxaquetinhasalvadoavidadeumaprincesa.Ocorpodeumdosseus.

Mergulhadosemlodo,osrostosdosSempreedosNuncadissolveram-seemfacesde terroredevergonha.Eleshaviamtraídounsaosoutroseperdidoparaoverdadeiroinimigo.Numavingançatola,tinhamentregadooequilíbrioquelhesforaconfiadoparaproteger.Noentanto,quandoseusolhosencontraramoDiretordaEscola,seusjovensrostosendureceram-secomdeterminação.Deuma sóvez, os cisnesprateadosnosuniformesdoBem e do Mal tornaram-se tão brancos que quase chegavam a cegar eganharamvida,grasnandoebatendoasasas.

Os pequenos pássaros rumaram livres para o céu crepuscular,tornando-sesilhuetasdistantes.OrostodoDiretordaEscolaempalideceuao olhar para cima e ver um fantasma luminoso, um rosto familiar, decabeloscordeneve,facedemarfimeternosolhosazuis...

“Você é umespírito, irmão”, oDiretor fez uma careta. “Vocênão tempodersemumcorpo.”

“Ainda”,disseavoz.Ele virou-se e viu o professor Sader sair mancando da floresta,

passando pelos portões da escola, ensanguentado pelos espinhos.Tremendo,Saderolhouparacima,paraofantasmanocéu.

“Porfavor.”Docéu,oirmãodoBemmergulhouepenetrounocorpoávidodeSader.

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Sader estremeceu, arregalou seus olhos cor de mel e depois caiu dejoelhos,comosolhosfechados.

Lentamenteabriuosolhos,deumazulcintilante.O Diretor da Escola recuou, surpreso. A pele dos braços de Sader

suavizou-seemplumasbrancas,descartandooternoverde.Aterrorizado,oDiretor transformou-se em uma sombra e fugiu pela grama seca, emdireção ao lago. Contudo, Sader voou pelo ar, atrás dele, agora com seusbraços humanos transformados em imensas asas brancas de cisne, emergulhou na mata, pegando a sombra com o bico. Com um grasnidoagudo, ele rasgou-o, fazendo cair uma chuva de penas negras sobre ocampodebatalhaabaixodeles.

Docéu,Saderolhouparabaixo,paraSophie,nosbraçosdeAgatha,aslágrimasbrotandoemseusimensosolhosdemel,aprimeiraeúltimacoisaque ele veria. Então, depois de seu sacrifício cumprido, ele desfez-se emumanévoadouradaesumiu.

Os professores vieram correndodos castelos, libertados do feitiço doDiretor. A professora Dovey parou de repente, depois vieram os outros,atrásdela.OqueixodeLadyLessotremia,enquantoClarissaseguravasuamão. A professora Anêmona, o professor Sheeks, o professor Manley, aprincesaUma,todostinhamamesmaexpressãoassustadaeimpotente.AtéCástor e Pólux não estavam diferentes. Todos abaixaram a cabeça compesar,sabendoqueestavamatrasadosdemais,atémesmoparaaclemênciadamagia.

Diantedeles, as crianças se reuniramemvoltadeSophie,quemorrianosbraçosdeAgatha.Agathatentou,emvão,conteroferimento,emmeioàslágrimas.

Tedrosparouao ladodelas. “Deixe-meajudar”,disse,pegandoSophienosbraços.

“Não...”,Sophiegemeu.“Agatha.”Sempalavras,Tedrosdeixou-anosbraçosdesuaprincesa.Agatha apertou Sophie junto ao peito, asmãos encharcadas com seu

sangue.“Agoravocêestásegura”,Agathadisse,baixinho.“Eunão...queroser...doMal”,Sophiesussurrou,porentreaslágrimas.“Você não é do Mal, Sophie”, respondeu Agatha, tocando seu rosto

decomposto.“Vocêéhumana.”Sophiedeuumsorrisofraco.“Sóseeutivervocê.”

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Seusolhospiscaramcomvida.“Não...aindanão...”,Sophierelutou...“Sophie!Sophie,porfavor!”,Agathachorava.“Agatha...”,Sophiedavaseuúltimosuspiro.“Euteamo.”“Espere!”,Agathagritou.O vento gélido apagou as últimas tochas, e o castelo do Bem,

enegrecido,desapareceuportrásdanévoaescura.Chorando,tremendo,AgathabeijouoslábiosfriosdeSophie.Penas pretas tremeram no chãomorto, por entre os pés dos jovens.

Enquanto eles olhavam, horrorizados, Agatha pousou a mão no coraçãosilencioso de Sophie e chorou no silêncio terrível. Ao lado de seus doiscorpos, o cinzento Storian, coberto de sangue, finalmente concluíra seutrabalho.

Enquantoosprofessores tomavamosalunosnosbraços,Agatha ficouabraçada ao corpo, sabendo que precisava soltá-la. Contudo, ela nãoconseguia.ComorostomolhadopelosanguedeSophie,elaouviaochoroaumentandoàsuavolta,oventobatendonolago,suarespiraçãoofegantemurchandojuntoaocadáver.

Eabatidadeumcoração.AcorvoltouaoslábiosdeSophie.Obrilhoaqueceusuapele.Osanguesumiudeseupeito.Suapelerestaurou-se,lindaeíntegra,e,retomandoofôlego,seusolhos

verde-esmeraldaabriram-se.“Sophie?”,Agathasussurrou.Sophietocouseurostoesorriu.“Quemprecisadepríncipesemnossocontodefadas?”Osolexplodiuemmeioànévoa,cobrindoosdoiscastelosdedourado.

Enquantoogramadoaoredordelesesverdeava-se,oStorianganhavavidanovamente, voltando à sua torre no céu. Do outro lado da margem, astúnicas dos alunos, pretas, cor-de-rosa e azuis, fundiram-se nummesmotomdeprata,dissolvendoadivisãoentreelesdeumavezportodas.

Entretanto, enquanto alunos e professores jubilosos aproximavam-sedas duas, elas subitamente se retraíram. Sophie e Agatha começaram atremer,eempoucossegundosseuscorpostornaram-setranslúcidos.Elasolharamumaparaaoutra,pois,aovento,asduasouviramoqueosoutros

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não podiam ouvir, as badaladas do relógio da cidade, cada vez maispróximas...

OsolhosdeSophiecintilaram.“Umaprincesaeumabruxa...”“Amigas”,Agathasussurrou.Ela virou-se para Tedros. Com um grito, seu príncipe veio em sua

direção...“Espere!”Aluzesvaiu-sepelosdedosdele.Eelasseforam.

FIM