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283 Olhar de professor, Ponta Grossa, 9(2): 283-298, 2006. ESCOLA NOVA E JOHN DEWEY NA ARGUMENTAÇÃO DE AUTORES CATÓLICOS NEW SCHOOL AND JOHN DEWEY IN THE CATHOLIC AUTHORS SPEECH Marcus Vinicius da CUNHA * Viviane da COSTA ** Resumo: O presente artigo versa sobre o discurso veiculado por seis obras de autores vinculados ao pensamento católico, publicadas no Brasil entre 1930 e 1960, as quais contêm argumentos críticos às propostas da Escola Nova e às concepções filosóficas, sociais e pedagógicas de John Dewey. O objetivo é elucidar as técnicas argumentativas utilizadas pelos autores, tomando por base a metodologia de análise oriunda de Chaïm Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca, em Tratado da argumentação: a nova retórica , e de Stephen Toulmin, em Os usos do argumento. Palavras-chave: Discurso educacional católico. Escola nova. John Dewey. Análise retó- rica. Abstract: The present study analyses the educational speech through six works of catholic authors published in Brazil between 1930’s and 60’s during a time where the representatives of the Catholicism disputed with the liberals the dominion of the educational field. It shows the arguments of the catholic intellectuals in relation to the new pedagogical purposes and in particular of John Dewey´s philosophical, social and pedagogic principles. It aim is to show the strategic speech used by the authors to persuade the readers to practice the Catholic Pedagogy making sure, that way, the dominance of catholic ideas. This methodology is rhetorical analysis, based upon the works of the Chaïm Perelman and Lucie Olbrechts-Tyteca, Traité de L´argumentation, and Stephen Toulmin, The uses of arguments. Keywords: Catholic educational speech. New school. John Dewey. Rhetorical analysis. * Doutor em Educação pela USP, pesquisador do CNPq e professor da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto - USP. [email protected] ** Mestre em Educação pela UNESP e doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação Escolar da Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara - UNESP. Bolsista CAPES. [email protected]

ESCOLA NOVA E JOHN DEWEY NA ARGUMENTAÇÃO DE AUTORES CATÓLICOS

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ESCOLA NOVA E JOHN DEWEY NA ARGUMENTAÇÃODE AUTORES CATÓLICOS

NEW SCHOOL AND JOHN DEWEY IN THECATHOLIC AUTHORS SPEECH

Marcus Vinicius da CUNHA*

Viviane da COSTA**

Resumo: O presente artigo versa sobre o discurso veiculado por seis obras de autoresvinculados ao pensamento católico, publicadas no Brasil entre 1930 e 1960, as quaiscontêm argumentos críticos às propostas da Escola Nova e às concepções filosóficas,sociais e pedagógicas de John Dewey. O objetivo é elucidar as técnicas argumentativasutilizadas pelos autores, tomando por base a metodologia de análise oriunda de ChaïmPerelman e Lucie Olbrechts-Tyteca, em Tratado da argumentação: a nova retórica , ede Stephen Toulmin, em Os usos do argumento.

Palavras-chave: Discurso educacional católico. Escola nova. John Dewey. Análise retó-rica.

Abstract: The present study analyses the educational speech through six works ofcatholic authors published in Brazil between 1930’s and 60’s during a time where therepresentatives of the Catholicism disputed with the liberals the dominion of theeducational field. It shows the arguments of the catholic intellectuals in relation to thenew pedagogical purposes and in particular of John Dewey´s philosophical, social andpedagogic principles. It aim is to show the strategic speech used by the authors topersuade the readers to practice the Catholic Pedagogy making sure, that way, thedominance of catholic ideas. This methodology is rhetorical analysis, based upon theworks of the Chaïm Perelman and Lucie Olbrechts-Tyteca, Traité de L´argumentation,and Stephen Toulmin, The uses of arguments.

Keywords: Catholic educational speech. New school. John Dewey. Rhetorical analysis.

* Doutor em Educação pela USP, pesquisador do CNPq e professor da Faculdade de Filosofia,Ciências e Letras de Ribeirão Preto - USP. [email protected]** Mestre em Educação pela UNESP e doutoranda do Programa de Pós-Graduação emEducação Escolar da Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara - UNESP. BolsistaCAPES. [email protected]

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A historiografia geralmente apre-senta a educação brasileira nos anosde 1930 como marcada pelas disputastravadas entre católicos e liberais, fe-nômeno que se estendeu até a déca-da de 1950, pelo menos (CURY, 1988;BUFFA, 1979). Ambos os grupos pro-punham reformas educacionais sob aótica da nacionalidade, mas, para osintelectuais católicos, esse objetivosó poderia ser alcançado por meio deseus princípios religiosos (CARVA-LHO, 1998). Em busca do controle daeducação, efetivaram uma ampla cam-panha de divulgação de suas idéias ede suas políticas, abordando tambémdeterminados aspectos do pensamen-to de seus rivais (CARVALHO, 1994).

Considerando esse contexto, empesquisa anterior (CUNHA; COSTA,2002) analisamos as matérias publi-cadas no periódico católico A Ordem,

entre os anos de 1930 e 1934, com oobjetivo de verificar a maneira pelaqual foram apresentadas ao profes-sorado as concepções educacionaisrenovadoras e, particularmente, opensamento filosófico e educacionalde John Dewey, pensador norte-ame-ricano, que exerceu poderosa influên-cia no ideário dos liberais. Além deconcepções marcadamente políticase doutrinárias, A Ordem trazia posi-cionamentos relativos às ciências, emgeral, e à psicologia, em particular, naárea da educação. A crítica mais cor-rente, nesse aspecto, incidia sobre obehaviorismo, teoria psicológica su-

postamente adotada pelos escola-novistas, a qual, quando aplicada emassociação com as idéias deweyanas,resultaria na condução da humanida-de ao comunismo.

Tendo como pressuposto que oideário da Escola Nova foi definidono confronto com os argumentos crí-ticos dos católicos, em outro estudo(COSTA, 2005) buscamos aprofundara análise, tomando como objeto seisobras vinculadas ao pensamento ca-tólico e voltadas para a formação doprofessorado, originalmente publi-cadas no Brasil nas décadas de 30, 40e 50. São elas: Ensaio da filosofia

pedagógica, de Frans De Hovre(1969); Rumos da educação, deJacques Maritain (1966); Noções de

história da educação, de TheobaldoMiranda Santos (1951); A filosofia

contemporânea, de Leonardo VanAcker (1981); A favor ou contra a

educação nova?, de Suzanne MarieDurand (1956) e Filosofia da educa-

ção, de John D. Redden e Francis A.Ryan (1973)1.

A metodologia da referida pesqui-sa consistiu em analisar o discursoveiculado nessas obras e agrupar osargumentos que consideramos recor-rentes, de maneira a obter formulaçõesgerais que traduzissem o pensamen-to dos vários autores. Mediante esserecurso, foi possível obter enuncia-dos que se encadeiam, dando forma aargumentos que são comuns em pra-ticamente todas as obras, tomadas em

1 As datas indicadas referem-se às edições que utilizamos para realizar a pesquisa.

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conjunto, no que diz respeito às pro-postas escolanovistas e, sobretudo,ao pensamento de John Dewey.

No presente trabalho, tomaremoscomo ponto de partida esses enun-ciados, na qualidade de formaçõesdiscursivas genéricas, uma vez que oespaço disponível não permitirá a ex-posição detalhada das idéias particu-lares de cada autor. Assim formaliza-dos, os argumentos serão analisadospor meio dos referenciais teórico-metodológicos propostos por ChaïmPerelman e Lucie Olbrechts-Tyteca(2002), em Tratado da argumentação,e por Stephen Toulmin (2001), em Os

usos do argumento, no intuito de com-preender as estratégias discursivasempregadas pelos autores para per-suadir seus leitores e encaminhá-losa práticas educacionais em consonân-cia com os preceitos que considera-vam corretos.

1 O ARGUMENTO ENTIMEMÁ-TICO

Um dos principais temas das obrasanalisadas é o da oposição entre a fi-losofia católica e a filosofia naturalis-ta, bem como de suas respectivas con-seqüências na educação. Para os au-tores, somente a filosofia católica écapaz de nortear a educação em bus-ca do ideal democrático, razão pelaqual apresentam seus posiciona-mentos filosóficos como os únicosdotados de princípios condutores dademocracia.

A filosofia naturalista, por sua vez,

é tida como permeada por princípiosequivocados, tanto no âmbito das ci-ências quanto da educação, do quesão exemplares as propostas da Es-cola Nova. O naturalismo é visto comosustentado pela noção de que a ver-dade não é eterna nem imutável, ca-bendo exclusivamente à experiência eà razão julgar o verdadeiro e o falso.Assim, por substituir a verdade oni-potente e absoluta pela idéia de natu-reza, o naturalismo comporta noçõescéticas e relativistas.

No que tange à educação, os au-tores entendem que as novas peda-gogias são advindas da filosofia na-turalista, do que decorrem determina-das conseqüências sociais. Sua prin-cipal crítica a seus adversários é cen-trada no laicismo: a ausência de prin-cípios religiosos no currículo escolaracarreta a formação de uma socieda-de totalitária e comunista.

O argumento expresso pelos vári-os autores é, invariavelmente, o se-guinte: a filosofia que sustenta oescolanovismo diverge dos princípi-os católicos; tudo o que diverge dosprincípios católicos incide em erro. Omesmo raciocínio vale para indicar osméritos da educação tradicional, tidacomo certa porque converge com avisão católica, pois tudo o que seguea visão católica é certo. Articulado naforma silogística, em que, de duas pre-missas, uma maior e outra menor, seobtém uma conclusão, esses argu-mentos podem ser assim apresenta-dos:

Premissa maior – tudo o que dis-

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corda da filosofia católica é errado.Premissa menor – o naturalismo e

a pedagogia nova discordam da filo-sofia católica.

Conclusão – então, o naturalismoe a pedagogia nova são errados.

ePremissa maior – tudo o que con-

corda com a filosofia católica é certo.Premissa menor – a pedagogia tra-

dicional concorda com a filosofia ca-tólica.

Conclusão – então, a pedagogiatradicional é certa.

Nos livros pesquisados, as pre-missas menores e os enunciados con-clusivos estão claramente expressos,mas o mesmo não se dá com as pre-missas maiores, que são as que, defato, sustentam a conclusão dos raci-ocínios contrários ao naturalismo e aoescolanovismo, bem como a infe-rência favorável à pedagogia tradici-onal. Argumentos desse tipo são de-nominados entimemas, pois se basei-am nas características de um determi-nado auditório – neste caso, os leito-res – sem precisar de maiores recur-sos de persuasão.

Construídos com base nos valo-res e nas práticas próprias de um au-ditório, os entimemas são demonstra-

ções cujas premissas não precisam serenunciadas para favorecer a aceita-ção da conclusão, uma vez que o ora-dor se apresenta como dotado de va-lores que os ouvintes reconhecemcomo reais e verdadeiros (WOLFF,1993). Perelman e Olbrechts-Tyteca(2002) chamam os argumentos enti-memáticos de quase-lógicos, pois ex-traem sua força persuasiva da aproxi-mação com raciocínios compartilha-dos pelo auditório.

2 A PETIÇÃO DE PRINCÍPIO

Todos os silogismos podem serexpressos na forma ampliada propos-ta por Toulmin (2001), segundo a qualas premissas menores são “dados”(D) que se apresentam sobre os obje-tos particulares, a respeito dos quaisse deseja concluir alguma coisa; aspremissas maiores são “garantias”(W), enunciados teóricos e doutriná-rios que permitem firmar os enuncia-dos conclusivos. (C). Uma vez que aspremissas maiores (W) não têm cará-ter empírico, mas sim hipotético, ne-cessitam de “apoios” (B) factuais ouargumentativos, os quais geralmenteestão implícitos no discurso.

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Quadro 1 - Layout do argumento dos autores católicos.

Nos silogismos sobre o natura-lismo e a pedagogia nova, acima apre-sentados, os “dados” (D) correspon-dem às proposições “o naturalismo ea pedagogia nova discordam da fi-losofia católica” e “a pedagogia tra-dicional concorda com a filosofia ca-tólica”; as garantias (W) são “todosos princípios que discordam da fi-losofia católica são errados” e “tudoo que concorda com a filosofia cató-lica é certo”. São estas últimas quepermitem enunciar as conclusões (C)“o naturalismo e a pedagogia novasão errados” e “a pedagogia tradi-cional é certa”. Em suma, (W) é o quegarante (C), mas para que essa “ga-rantia” seja válida é preciso haver al-gum tipo de “apoio” (B) pertencen-te ao campo em que opera o argumen-to.

No discurso expresso nas obrascatólicas analisadas, esse “apoio”não se faz presente, pois todas as dis-tinções estabelecidas entre o certo eo errado repousam exclusivamente naafirmação das garantias (W). Essemodo de argumentar é chamado “pe-tição de princípio” (COPI, 1978, p. 84),

uma falácia em que a verdade que sequer demonstrar, isto é, a conclusãodo raciocínio, é adotada como premis-sa do próprio raciocínio. Seja no ter-reno da filosofia, seja no da pedago-gia, a base dos julgamentos emitidospelos autores analisados é a aceita-ção dos princípios católicos, o que éafirmado sem necessidade de discus-são, pois se trata de algo supostamen-te aceito pelo auditório, uma vez queos livros tinham como público-alvoos adeptos do catolicismo.

Uma proposição que aparece comcerta freqüência nos autores confir-ma o uso da petição de princípio: “apedagogia nova pode ser aceita, emparte ou no todo, desde que dela se-jam expurgadas as afirmações quecontrariam os princípios católicos”.Isto quer dizer que uma mesma idéia,ora apresentada como incoerente einaceitável, pode ser dada como váli-da e enriquecedora, desde que se tor-ne concordante com a premissa maiorque estabelece o valor dos princípioscatólicos.

No terreno da retórica, quando umargumento é regido pela petição de

Dado (D) ggggg Conclusão (C)

2

Garantia (W)

Apoio (B)

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princípio, o que está em jogo não é averdade, mas sim a adesão do auditó-rio à determinada tese. O emprego dapetição de princípio, segundo expli-cam Perelman e Olbrechts-Tyteca(2002, p. 127), supõe a adesão préviado interlocutor ao que o orador pre-tende transmitir. No caso em pauta, éisso que garante o sucesso do dis-curso dos católicos, pois os autoreselaboram argumentos pautando-senas crenças de seus leitores, isto é,na crença inabalável em Deus. Consi-derando tratar-se de um auditório for-mado por educadores católicos, a ên-fase na premissa maior “tudo o quediscorda da filosofia católica é erra-do” torna possível concluir pelo erroda pedagogia nova, que, por seroriunda do naturalismo, diverge dosprincípios dados como certos.

3 A EXCEÇÃO À GARANTIA

A apresentação do enunciado “apedagogia nova pode ser aceita me-diante determinadas condições” per-mite que os autores argumentem so-bre a possibilidade de acolher algu-mas técnicas da Escola Nova, sem searriscarem a ver desqualificadas assuas críticas a esta mesma pedago-gia. Essa ligeira mudança na aprecia-ção dos adversários é possível devi-do à apresentação de certas “condi-ções de exceção ou refutação da ga-rantia” (TOULMIN, 2001, p.145),esquematicamente indicadas por (R),as quais permitem que a mesma pre-missa – a maior, já aceita pelo auditó-rio – sustente uma conclusão diferen-te da anteriormente formulada. Quan-do um enunciado (R) é inserido nodiscurso, o orador fornece subsídiospara que o auditório renuncie a deter-minado enunciado conclusivo, semprejuízo do raciocínio.

Quadro 2 - Layout do argumento dos autores católicos, incluindo a exceção.

Dado (D) ggggg Conclusão (C)

2 2

Garantia (W) Exceção (R)

Apoio (B)

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Assim, temos: (D) “a pedagogianova discorda dos princípios católi-cos”; uma vez que (W) “tudo o quediscorda dos princípios católicos éerrado”, então (C) “a pedagogia novaé errada”; a menos que (R) renuncieao que a faz incidir em erro, ou seja, “amenos que se identifique com os prin-cípios católicos”. Sob essa condição,mas apenas sob essa condição, oenunciado conclusivo pode ser rejei-tado.

Tal estratégia argumentativa éextremamente relevante, no momentohistórico em que os livros foram pu-blicados, uma vez que as novasmetodologias de ensino propostaspela Escola Nova eram veiculadascomo dispondo de amplo respaldocientífico. A intenção da Igreja era re-conquistar o domínio sobre a educa-ção, mas não podia ser reconhecidapelo professorado como inteiramentecontrária aos progressos científicosda modernidade. Por isso, os intelec-tuais católicos deviam admitir quedeterminadas inovações moderni-zantes defendidas pelos escolano-vistas mereciam respeito, desde quenão comprometessem a filosofia ca-tólica.

O problema, então, consiste emexpor a aludida concordância, semque isto aparente incoerência com oraciocínio anteriormente desenvolvi-do. A solução encontra-se justamen-te na estratégia de manter a afirmaçãoque desqualifica as novas pedagogi-as e, ao mesmo tempo, salva essasmesmas pedagogias por meio do

enunciado de exceção. Desse modo,admite-se que os novos métodos pe-dagógicos são aceitáveis apenas en-quanto técnicas, sob a orientaçãohegemônica de finalidades contidasna filosofia católica. Alguns autoreschegam mesmo a dizer que essas téc-nicas, na verdade, foram originalmen-te elaboradas por membros da Igrejae, só mais tarde, adotadas por peda-gogos laicos.

4 O ARGUMENTO DE PRESTÍGIO

Nesta mesma linha de pensamen-to que visa a não desconsiderar a im-portância dos avanços científicos, osautores destacam que a filosofia ca-tólica, bem como a sua pedagogia,também desfrutam do apoio da ciên-cia. Essa argumentação é necessáriapara evitar a impressão de haver even-tuais incompatibilidades entre os prin-cípios filosóficos católicos e os pro-dutos da modernidade trazidos pelaciência, cujo valor dificilmente pode-ria ser negado.

Esse argumento difere sensivel-mente dos anteriores porque não to-ma como ponto de partida um auditó-rio particular formado por católicos,mas parece dirigido a leitores que nãocompartilham incondicionalmente dapremissa “tudo e só o que resulta docatolicismo está certo”. Para se faze-rem persuasivos perante esse auditó-rio, os católicos precisam desfazer aaludida incompatibilidade entre ciên-cia e religião, trazendo então à bailapensadores de reconhecida relevân-

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cia na era contemporânea, os quaissão mostrados como sendo emisso-res de opiniões concordantes com avisão católica.

Trata-se da técnica do “argumen-to de prestígio”, a qual, segundoPerelman e Olbrechts-Tyteca (2002, p.348), consiste em apresentar “atos oujuízos de uma pessoa ou de um grupode pessoas como meio de prova a fa-vor de uma tese”. Por meio da exibi-ção de pensadores contemporâneosprestigiados nas áreas da filosofia eda educação, os autores buscam sus-tentar suas afirmações na esfera deconceituada intelectualidade, pois afigura de pessoas reconhecidas nocampo em que o auditório se localiza,e que, por sua vez, compartilha dosmesmos princípios, atribui valor aosargumentos por eles mesmos pronun-ciados.

5 A OMISSÃO DE APOIOSFACTUAIS

No que diz respeito especificamen-te a John Dewey, os autores o identi-ficam como pertencente à correntedenominada pragmatismo, a qual, se-gundo analisam, deriva do naturalis-mo e é constituída por princípios ina-ceitáveis para qualquer adepto docatolicismo. O motivo dessa rejeiçãoé que se trata de um pensamento quenão considera valores eternos e ab-solutos, pregando a inexistência deconceitos fixos e verdades eternas,considerando todas as coisas comodotadas de uma natureza mutável, prá-

tica e material. No campo educacio-nal, os pragmatistas, particularmenteos deweyanos, são apresentadoscomo defensores de uma educaçãoexclusivamente voltada para os benssociais e coletivos, âmbito no qualtudo é relativo. Alguns dos autorespesquisados enfatizam que esse modode pensar favorece francamente a im-plantação de uma sociedade socialis-ta.

O raciocínio dos autores é o mes-mo já analisado acima, composto poruma premissa maior, “tudo o que dis-corda da filosofia católica é errado”;uma premissa menor, “o pragmatismoe a pedagogia nova discordam da fi-losofia católica”; e uma conclusão,“logo, o pragmatismo e a pedagogiaestão errados”. Trata-se, igualmente,de uma formulação entimemática, pornão enunciar a premissa maior, e tam-bém de uma petição de princípio, umavez que a conclusão está contida emuma das premissas. Como já foi mos-trado, a premissa maior, que atua como“garantia” da afirmação conclusiva,não é alicerçada em nenhum “apoio”factual ou argumentativo, sustentan-do-se tão-somente nas disposiçõesdo auditório.

Esta análise pode ser ampliada,tomando agora a premissa menor, “opragmatismo e a pedagogia nova dis-cordam da filosofia católica”, comoconclusão de outro raciocínio, assimformulado, segundo o modelo deToulmin (2001), apresentado acima:

(D) o pragmatismo e a pedagogianova apresentam a característica X;

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(W) tudo o que apresenta a carac-terística X é discordante da filosofiacatólica;

(C) então, o pragmatismo e a pe-dagogia nova discordam da filosofiacatólica.

No discurso dos autores pes-quisados, podemos identificar os se-guintes enunciados representativosde X: “o pragmatismo é uma filosofiada ação que despreza as coisas espi-rituais”; “assim como o socialismo, opragmatismo privilegia as exigênciassociais em detrimento dos valores in-dividuais”; “ambos, pragmatismo esocialismo, são nocivos à democra-cia e favoráveis ao estatismo”; “osprincípios educacionais renovadoresconduzem a humanidade à negaçãoda existência de Deus e à anarquiasocial”. Em suma, são discordantesdo catolicismo as filosofias que des-prezam as coisas espirituais e valori-zam as coisas materiais, em detrimen-to do indivíduo e da democracia, be-neficiando o estatismo e a desordemsocial.

A “garantia” (W), entretanto, re-quer um “apoio” (B), a ser formuladocomo segue: “porque a filosofia cató-lica possui o atributo Y, que é discor-dante de X”. Por oposição a X, pode-mos intuir que Y define a filosofia ca-tólica com os seguintes qualificativos:zelo pelas coisas espirituais, sem pri-vilegiar os valores sociais em detri-mento dos individuais, posicionando-se favoravelmente à democracia e con-trariamente a práticas estatizantes edesordenadoras da sociedade.

O discurso dos autores afirmaisso, mas apenas implicitamente, poisomite a exposição de fatos ou argu-mentos que comprovem o “apoio” da“garantia”. Esses fatos poderiam serbuscados na história das relaçõesentre a Igreja e seus fiéis, bem comocom o poder político em diferentesépocas, por exemplo. A Igreja poderiaser mostrada como uma instituiçãosocial que, ao longo de sua existên-cia, sempre reivindicou e sustentou,por meio do ensino religioso e outrosinstrumentos, o bom equilíbrio entreindivíduo e sociedade, favorecendoa democracia e contrariando iniciati-va, políticas estatizantes e anárquicas.

O recurso argumentativo que po-deria ser apresentado é o da exem-plificação por meio de situações con-cretas que dessem plausibilidade ao“apoio”. De acordo com Perelman eOlbrechts-Tyteca (2002, p. 399-400),o exemplo é uma técnica que visa afundamentar alguma estrutura do realque se quer legitimar, posicionando-se o orador frente a valores e concep-ções próprios de seu auditório, toman-do o cuidado de não deixar a audiên-cia perceber ou imaginar a existênciade conflito entre as informações vei-culadas e a realidade.

Assim, ao mesmo tempo em quepode viabilizar generalizações a favorde uma tese, essa técnica pode seralvo de rejeição. Ainda segundoPerelman e Olbrechts-Tyteca (2002, p.402), a recusa do exemplo, “seja por-que é contrário à verdade histórica,seja porque é possível opor razões

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convincentes à generalização propos-ta”, pode enfraquecer a adesão pre-tendida, comprometendo a credibi-lidade do orador. A omissão de apoi-os factuais pelos autores que anali-samos pode ter fundamento no dese-jo de evitar esse risco.

6 AS DEFINIÇÕES E A INÉRCIA DOAUDITÓRIO

Um recurso discursivo emprega-do de maneira recorrente pelos auto-res é a inserção de definições. Deacordo com Perelman e Olbrechts-Tyteca (2002, p. 241), as definições orapodem ser justificadas com a ajudade argumentos, ora podem elas mes-mas configurar-se como tal. No dis-curso dos autores, o termo “pragma-tismo” é definido como “filosofia daação”, princípio filosófico que pregaa “substituição da inteligência pelaação”; que “tem a utilidade como úni-co critério para determinar a verdade”;que “permeia a descrença nos valo-res eternos e absolutos da fé cristã”.O termo “experimentalismo”, por suavez, também associado a John Dewey,recebe os seguintes significados:“ajustamento do indivíduo à socieda-de em mudança” e “habituação da cri-ança a práticas sociais disponíveis nasociedade”.

Essas definições, que fazem partedos atributos X inaceitáveis para oscatólicos, são expostas de tal modoque tornam desnecessária a explana-ção de Y, que são os qualificativos docatolicismo. Isto se dá porque as de-

finições atuam, por si, como recursosargumentativos, permitindo que o ora-dor estruture em seus ouvintes ele-mentos interpretativos condizentescom seu objetivo. Percebe-se aqui aperspicácia dos autores ante seus lei-tores, pois mostram saber que, paracada auditório, “existe um conjuntode coisas admitidas que têm, todas, apossibilidade de influenciar-lhes asreações” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2002, p. 131), constituindoum sistema de referência que servede sustentáculo para as argumenta-ções. Por isso, articulam sua estraté-gia argumentativa recorrendo às cren-ças e às estruturas de pensamento deseus leitores, supostamente adeptosda filosofia católica.

Toda argumentação supõe umaescolha prévia das melhores premis-sas e dos dados a serem apresenta-dos, bem como uma avaliação das téc-nicas mais eficientes para enunciarraciocínios. Quando assim procede,o orador pode contar com a “inérciapsíquica e social” de seus interlo-cutores, considerando “que a atitudeadotada anteriormente pelo auditório– opinião expressa, conduta preferi-da – continuará, no futuro, seja pordesejo e coerência, seja em virtude daforça do hábito” (PERELMAN;OLBRECHTS-TYTECA, 2002, p. 119).

O que denominamos atributo Y naargumentação dos autores analisadosé composto pelos valores inerentes àcultura católica, ou seja, atitudes, prá-ticas e concepções vivenciadas nopassado, ou mesmo no presente, pe-

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los destinatários da mensagem. Essesvalores, quando reverenciados peloorador, tendem a fundamentar as con-cepções filosóficas e educacionaisdas teses apresentadas como legíti-mas, mesmo na ausência de apoiosfactuais ou argumentativos, comoseriam os exemplos, conforme vistoacima.

7 A SUPERESTIMAÇÃO DE ARGU-MENTOS

As críticas dos autores a JohnDewey tomam eixo em sua vinculaçãoà corrente filosófica do pragmatismo,mostrada como discordante da filo-sofia católica e oriunda do naturalis-mo, nos moldes acima indicados. Esseraciocínio torna-se uma plataforma desustentação para uma série de outrospredicativos acerca do pensamentodeweyano, como “experimentalismo”,“behaviorismo”, “darwinismo”, “co-munismo” e “ceticismo”. Em geral, odiscurso dos autores não faz mais doque uma breve caracterização dessesatributos, limitando-se a mostrar cadaum deles como igualmente decorren-tes da visão naturalista e, portantocontrários aos posicionamentos ca-tólicos fundamentados na crença emvalores imutáveis.

O “experimentalismo”, por exem-plo, é definido ora como sinônimo deverificação de pressupostos científi-cos e filosóficos, tendo a pretensãode analisar empiricamente postuladosfilosóficos, até mesmo os da religião,a fim de desqualificá-los; e ora como

conjunto de práticas sociais coloca-das em ação por determinados gru-pos para promover a mudança da so-ciedade. De qualquer modo, o expe-rimentalismo é caracterizado comouma “filosofia da mudança” que fun-de princípios do naturalismo, doevolucionismo e do behaviorismo,com conseqüências políticas contrá-rias à democracia e favoráveis ao co-munismo. Trata-se, para os autores,de uma filosofia com nítida coloraçãocética, uma vez que renega todos osfins e valores que não sejam de natu-reza experimental e social, apregoan-do que a verdade só pode ser legiti-mada por meio de experimentos e com-provações científicas, o que exclui areligiosidade como critério de verda-de.

Não é preciso mostrar, opera no-vamente aqui a mesma premissa mai-or, a título de “garantia” de todos es-ses raciocínios, qual seja, o enuncia-do “todos os princípios discordantesdo catolicismo são equivocados”.Conforme já foi comentado acima, talproposição se apresenta de modoentimemático no discurso dos auto-res analisados, constituindo uma pe-tição de princípio que visa a funda-mentar uma só e mesma crítica, quesurge de maneira recorrente, centradana tese de que Dewey não comparti-lha da filosofia católica, estando, poreste motivo, errado.

Os autores afirmam que o próprioDewey, em algumas de suas obras,deixa explícita sua vinculação aoexperimentalismo, ao behaviorismo e

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ao darwinismo. Tais obras, porém, sãomencionadas apenas de passagem,sem maiores análises, ficando a con-firmação dos aludidos vínculos e adefinição de cada um dos referidostermos alicerçadas somente nas de-clarações dos autores, ou seja, noprestígio que desfrutam perante seuauditório. Segundo Perelman eOlbrechts-Tyteca (2002, p. 201), essemodo de argumentar conta com a téc-nica das “figuras de comunhão”, aqual lança mão de referências comunsa uma cultura, uma tradição ou a umpassado, para afiançar determinadasasserções.

Nesse raciocínio, apresenta-setambém a estratégia da “super-esti-mação” de argumentos (PERELMAN;OLBRECHTS-TYTECA, 2002, p. 529),que consiste em “estender os acor-dos particulares” já estabelecidos como auditório, “sem que o interlocutortenha dado sua adesão explícita”, demaneira a levar uma conclusão a ser“mais certa do que é”. Essa técnica,bem como a anteriormente menciona-da, permite que os autores, ao alega-rem que Dewey nega a verdade abso-luta e os princípios dogmáticos daIgreja, consigam sustentar que o expe-rimentalismo, o behaviorismo e odarwinismo compõem o mesmo qua-dro de equívocos do filósofo.

Em conjunto, essas técnicas con-sistem em associar uma afirmação de-monstrada a uma série de afirmaçõesnão-demonstradas, com o objetivo deobter, para estas, o assentimento doauditório. Mediante um julgamento

prévio em benefício de suas teses, osautores conseguem obter o veredictoque almejam a respeito de enuncia-dos sobre os quais a audiência aindanão tem opinião formada, contandocertamente com a “inércia psíquica esocial” de seus leitores.

8 O ARGUMENTO DA DIREÇÃO

Nesse tipo de discurso, está pre-sente também uma técnica chamada“argumento da direção”, a qual, se-gundo Perelman e Olbrechts-Tyteca(2002, p. 326), permite que uma mes-ma alegação sirva como sinalizaçãopreventiva contra outras. É o que fa-zem os autores quando afirmam que afilosofia pragmatista, por ser contrá-ria à crença em Deus, é também céticae, portanto, contrária à democracia.Regidos pela premissa de que “so-mente uma filosofia que considere aexistência de Deus é certa”, a qual éacompanhada por “todas as filosofi-as que não consideram a existênciade Deus são incorretas”, os autoresconstroem no auditório uma disposi-ção para considerar que tudo o queesteja associado ao pragmatismo sejavisto como erro.

No discurso dos autores analisa-dos, é assim que se elaboram os juízosacerca dos ideais educacionais daEscola Nova e de John Dewey, e tam-bém sobre as suas repercussões naordem social. Noções de natureza fi-losófica são entrelaçadas com tesessociológicas e pedagógicas, asso-ciando o que consideram ser o experi-

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mentalismo no campo científico como experimentalismo no âmbito social,por exemplo, daí passando à noçãode ceticismo, que aparece como umavisão de mundo que afeta todos oscampos envolvidos. A totalidade dosqualificativos se tornam imediatamen-te negativos, desde que se compre-enda e acate a base de todos eles, queé sempre a mesma: a ausência de sen-timentos religiosos.

O emprego desse tipo de estraté-gia discursiva visa a impedir que oleitor vislumbre a possibilidade de ar-ticular “condições de exceção ou re-futação” das conclusões.

Tomemos, como exemplo, o se-guinte raciocínio, formulado com baseno modelo de Toulmin, já exposto aci-ma:

(D) a filosofia deweyana não tomaa existência de Deus como critério deverdade;

(W) tomar Deus como critério deverdade permite atingir o ideal demo-crático;

(C) então, a filosofia de Dewey nãopermite atingir o ideal democrático;

(R) a menos que outras concep-ções de verdade permitam atingir ademocracia.

Se articulada, a condição (R) lan-çaria dúvida sobre (C), retirando suaforça conclusiva. Nota-se que a in-tenção dos autores não é essa, pois oque pretendem é que o auditório sejalevado a acatar a idéia de que Dewey,chamado “filósofo da democracia”,elabora teorias que impedem o idealdemocrático. O intuito é que essa idéia

seja aceita mesmo sem a apresenta-ção de argumentos específicos acer-ca do que pretende demonstrar.

9 O “CERTAMENTE” AO INVÉSDO “POSSIVELMENTE”

Segundo Toulmin (2001, p. 145), aalegação conclusiva de um argumen-to se faz acompanhar por “qualifi-cadores modais” (Q), cuja função éindicar a “força” com que se pode fa-zer a passagem do “dado” (D) à “con-clusão” (C), por intermédio da “ga-rantia” (W). Assim, de determinadaspremissas podemos concluir que “cer-tamente” decorre um determinadoenunciado conclusivo, como pode-mos afirmar que a proposição final édelas “possivelmente” derivada. Aescolha do qualificador modal depen-de dos “dados” apresentados e tam-bém da argumentação que sustenta a“garantia”, pois esta sempre possuium caráter hipotético.

Vejamos, por exemplo, o seguinteraciocínio:

(D) a filosofia deweyana não acei-ta Deus como critério de verdade;

(W) se a rejeição a Deus como cri-tério de verdade impede a democra-cia;

(Q) então, possivelmente,(C) a filosofia deweyana é contrá-

ria à democracia.Nesse caso, a alegação (C) é “pos-

sível” porque depende de uma pre-missa garantidora (W) que pode nãoser verdadeira, ou seja, que será con-siderada verdadeira apenas na medi-

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da em que se fizer acompanhar de cer-tos argumentos ou fatos, o que, comojá vimos, se denomina “apoio” (B).

Segundo Toulmin, poucos são osargumentos cuja conclusão pode serindiscutivelmente acompanhada peloqualificador “certamente”, pois namaioria das vezes a “garantia” autori-za um passo meramente provisóriodos “dados” à alegação conclusiva,uma passagem que só se dá “sob cer-tas condições, com exceções ou qua-lificações”, tornando-se então maisadequado recorrer a qualificadoresmodais como “provavelmente” ou“presumivelmente”.

Nos autores aqui analisados, to-dos os raciocínios que dizem respeitoà Escola Nova e às concepçõesdeweyanas deveriam cercar-se dessacautela argumentativa, uma vez quesuas premissas carecem de explana-ção racional. Para ficar no exemplodado acima, a “garantia” (W) de quea ausência de um critério de verdadepautado em Deus impede a democra-cia, é um caso de premissa que requerdeterminados “apoios” para se tornarplausível. Mas, por contarem com asdisposições favoráveis de seu audi-tório, os autores parecem considerardesnecessário empregar o referidoqualificador modal, enunciando entãoum discurso que tem implícito o ad-vérbio “certamente” nas conclusõesque apresentam.

10 A DISSOCIAÇÃO DE NOÇÕES

Por fim, destacamos que o discur-

so dos autores analisados exibe umaoutra técnica discursiva que visa afavorecer a persuasão, denominada“dissociação de noções”(PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2002, p. 473). Trata-se dedesenvolver o raciocínio por meio deconceitos opostos entre si, os quaissão analisados por meio de um “parfilosófico” que tem a forma “termo I –termo II”, cujo exemplo emblemáticoé “aparência – realidade”. O primeirotermo é sempre submetido ao segun-do, o qual opera como critério de jul-gamento; evidenciando, nesse caso,que a “realidade” se sobrepõe a tudoo que seja identificado como “aparên-cia”, termo que fica então associadoà ilusão ou erro.

Os autores empregam vários con-ceitos colocados em oposição unsaos outros, como “pragmatismo x ca-tolicismo”, “pedagogia tradicional xpedagogia nova” e “ceticismo xdogmatismo”. O par filosófico querege o discurso dos autores acercadessas oposições é “contingência –estabilidade”, pois tudo o que é rela-tivo ao movimento do mundo e à trans-formação da sociedade, como perti-nente à variabilidade e à instabilida-de, em suma, como fazendo alusão aoreino da contingência, é julgado infe-rior, menos efetivo e menos certo doque os conceitos que remetem à or-dem, ao que é fixo e estável.

O par “contingência – estabilida-de” representa, no discurso dos au-tores, a superioridade da própria filo-sofia católica, bem como da pedago-

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gia nela inspirada, expressão da ver-dade absoluta que, por definição, éimutável e intocada pelo erro. Os vá-rios predicativos atribuídos à EscolaNova e a Dewey, vistos acima, sãoassociados a um modo de ver o mun-do, a sociedade e a educação que ex-prime consideração pelo que se trans-forma, pelo que se pode alterar medi-ante debate e participação, razão pelaqual vão de encontro a dogmas. Sen-do assim, contribuem para levar aoerro a humanidade e, em particular, oseducadores.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As análises desenvolvidas nestetrabalho acerca do discurso dos au-tores católicos sobre a Escola Nova eo pensamento deweyano constituemuma tentativa de pôr em prática asconcepções teórico-metodológicasdesenvolvidas no Grupo de Pesquisa“Retórica e Argumentação na Peda-gogia”, as quais se fundamentam nasformulações originárias de ChaïmPerelman e Stephen Toulmin, anteri-ormente indicadas. Trata-se de ummodelo de investigação ainda em de-senvolvimento, a ser implementadopor outras contribuições oriundas dafilosofia, em especial das que se filiama uma nova interpretação do pensa-mento de Aristóteles, no âmbito domovimento iniciado na primeira meta-de do século XX.

Com este artigo, especificamente,esperamos ter contribuído para au-mentar a compreensão do debate ha-

vido em torno do escolanovismo e dasidéias de Dewey, cujas repercussõesainda hoje se fazem sentir, inclusiveno Brasil. No que diz respeito à pers-pectiva de análise aqui adotada, cabedestacar que seu objetivo não é ou-tro senão elucidar as estratégias argu-mentativas empregadas em obrasdedicadas a debater temáticas educa-cionais. Consideramos que trabalhoscomo este podem auxiliar os leitoresdessas obras a perceberem as técni-cas discursivas que são utilizadascom o intuito de obter adesões a te-ses veiculadas no campo da educa-ção.

Não incluímos entre nossas me-tas a emissão de juízos de valor sobreos discursos analisados, mas preten-demos, sim, mostrar que na forma dosraciocínios estão contidos fundamen-tos filosóficos e pretensões políticas,compondo um amplo quadro argu-mentativo. Nossa expectativa é queos leitores dos textos educacionais,os educadores e, especialmente, osestudantes tomem conhecimento dasestratégias argumentativas a que sãosubmetidos, para que se tornem cadavez mais qualificados para participarativamente nos debates sobre a edu-cação no mundo contemporâneo.

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Encaminhado em: 23/06/06

Aceito em:06/10/06