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COMPLEXO DE ENSINO RENATO SARAIVA PRISCILA OLIVEIRA INÁCIO ESCRAVIDÃO MODERNA: CONFIGURAÇÃO E ENFRENTAMENTO Santos/SP Março/2018

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COMPLEXO DE ENSINO RENATO SARAIVA

PRISCILA OLIVEIRA INÁCIO

ESCRAVIDÃO MODERNA: CONFIGURAÇÃO E

ENFRENTAMENTO

Santos/SP

Março/2018

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COMPLEXO DE ENSINO RENATO SARAIVA

PRISCILA OLIVEIRA INÁCIO

ESCRAVIDÃO MODERNA: CONFIGURAÇÃO E ENFRENTAMENTO

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Complexo de Ensino Renato Saraiva como exigência parcial para obtenção do título de Pós-Graduada em Direito Material e Processual do Trabalho. Orientador (a): Professores Tutores Mariana Corcini e Felipe Macedo

Santos/SP

Março/2018

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PRISCILA OLIVEIRA INÁCIO

ESCRAVIDÃO MODERNA: CONFIGURAÇÃO E ENFRENTAMENTO

Data da aprovação: ___/___/___ Banca Examinadora:

Prof. Prof.

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“Ninguém será mantido em escravidão ou

servidão, a escravidão e o tráfico de

escravos serão proibidos em todas as

suas formas”. (Artigo IV da Declaração

Universal dos Direitos Humanos)

“A escravatura humana atingiu o seu

ponto culminante na nossa época sob a

forma do trabalho livremente assalariado”.

(George Bernard Shaw)

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AGRADECIMENTOS

Primeiramente ao Mestre, meu Deus, que me proporcionou condições para

concluir mais este desafio, trazendo-me renovo cada dia, não permitindo desfalecer

minhas mãos. A Ele toda honra e glória.

À minha família, em especial meu filho, avó e mãe, por serem minha maior

motivação mesmo sem saber, bem como pela compreensão de minhas ausências,

que não foram poucas. De nada valeria a pena se não fosse por vocês.

Aos professores do curso, em especial Otávio Calvet, Adriana Calvo e

Rodolfo Pamplona Filho, por dividirem com amor seus saberes, preocupados não só

em ministrar a boa formação técnica, mas, sobretudo, com o construir de uma

consciência crítica sobre as relações humanas que permeiam a ciência do Direito do

Trabalho.

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RESUMO

INÁCIO, Priscila Oliveira. Escravidão Moderna: Configuração e Enfrentamento.

Santos, 2018. Trabalho de Conclusão do Curso de Direito – Complexo de Ensino

Renato Saraiva.

O objetivo deste estudo foi analisar as nuances do trabalho em condições análogas à escravidão, sua configuração na perspectiva de ilícito trabalhista e penal, assim como os instrumentos de enfrentamento adotados pelo Estado brasileiro. Foram realizadas pesquisas bibliográficas em doutrinas e artigos, bem como dados coletados em observatório de estudo, compilados pelo Ministério Público do Trabalho. No primeiro capítulo foram abordadas as nuances do princípio da dignidade da pessoa humana e o panorama histórico e evolução do processo de abolição da escravidão no Brasil e no mundo, incluindo sua previsão em diplomas internacionais e Constituição Federal de 1988. O segundo capítulo traz um diagnóstico da prestação estatal no enfrentamento da problemática, incluindo as políticas públicas preventivas e repressivas vigentes e seu nível de efetividade no combate ao tratamento desumano e degradante dispensado às relações trabalhistas que adotam mão de obra análoga à escravidão. No terceiro capítulo foi abordada a questão da escravidão moderna nos setores industriais de maior incidência de sua prática, com um recorte local e análise de situações concretas de comum ocorrências nas fiscalizações dos Grupos de Fiscalização Móveis, integrados por membros do Ministério Público do Trabalho, Auditores-Fiscais do Ministério do Trabalho e outros órgãos e agentes atuantes no combate da exploração ilícita de mão de obra. Outrossim, aborda-se a questão da responsabilização dos infratores responsáveis pela submissão de trabalhadores a condições precárias, degradantes e indignas para atender os anseios de uma lógica de mercado perversa e predatória, que supervaloriza a livre iniciativa e suprime o valor social do trabalho. O quarto e derradeiro capítulo traz apontamentos acerca do retrocesso social na política de enfrentamento da temática, consubstanciada na tentativa governamental de reduzir o alcance do conceito legal de trabalho escravo, assim como limitar a divulgação do Cadastro de Empregadores que tenham submetido trabalhadores a condições análogas à de escravo, a chamada “Lista Suja”. Por fim, conclui-se que a política de enfrentamento às mais variadas facetas da escravidão moderna não concretiza o primado da Organização Internacional do Trabalho, segundo o qual, trabalho não é mercadoria, assim como o postulado da dignidade da pessoa humana, constitucionalmente previsto e teoricamente assegurado.

PALAVRAS CHAVE: Escravidão moderna. Configuração. Política de enfrentamento.

Trabalho decente. Dignidade da Pessoa Humana.

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LISTA DE SIGLAS

CF - Constituição Federal

CIDH – Comissão Interamericana de Direitos Humanos

CLT – Consolidação das Leis do Trabalho

CONAETE - Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo

Corte IDH – Corte Interamericana de Direitos Humanos

CP – Código Penal

DPU - Defensoria Pública da União

EC – Emenda Constitucional

MPF – Ministério Público Federal

MPT – Ministério Público do Trabalho

OEA – Organização dos Estados Americanos

OIT – Organização Internacional do Trabalho

ONU – Organização das Nações Unidas

RFB - República Federativa do Brasil

STF – Supremo Tribunal Federal

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 11

1. O DIREITO DE LIBERDADE E AUTODETERMINAÇÃO ................................. 15

1.1 A Dignidade da Pessoa Humana como Fundamento do Direito Humano da

liberdade e Igualdade ................................................................................................ 15

1.2 Panorama Histórico e Aspectos Gerais do Processo de Abolição da Escravidão

no Contexto Internacional e Interno .......................................................................... 18

1.2.1 Normativos Internacionais de Combate ao Trabalho em Condições Análogas à

Escravidão ................................................................................................................. 19

1.2.2 Normativos Internos de Combate ao Trabalho em Condições Análogas à

Escravidão ................................................................................................................. 31

1.3 Disciplina jurídica do trabalho em condições análogas à escravidão no Brasil. .. 31

2. DA ATUAÇÃO DE ÓRGÃOS ESTATAIS AUTÔNOMOS E GOVERNAMENTAIS

NO COMBATE A TODAS AS FORMAS DE ESCRAVIDÃO MODERNA ................ 49

2.1 Da Atuação do Ministério Público do Trabalho .................................................... 49

2.2 Da Atuação do Ministério do Trabalho e Emprego .............................................. 53

2.3 Da Atuação da Defensoria Pública da União ...................................................... 56

3. DA RESPONSABILIZAÇAO DOS INFRATORES ................................................ 60

3.1 Do intuito de desresponsabilização com a fragmentação da produção por meio

das cadeias produtivas .............................................................................................. 60

3.2 Cadeias produtivas no meio ambiente de trabalho rural ..................................... 63

3.3 Cadeias produtivas no meio ambiente de trabalho urbano ................................. 70

3.3.1 Trabalho análogo ao de escravo no setor têxtil ................................................ 70

3.3.2 Trabalho análogo ao de escravo na construção civil ........................................ 73

3.3.3 Outras hipóteses de configuração do trabalho em condições análogas à

escravidão no meio urbano ....................................................................................... 74

3.4 Teorias de Responsabilização do Principal Beneficiário da Produção nas

Cadeias Produtivas ................................................................................................... 82

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3.4.1 Teoria da Cegueira Deliberada ........................................................................ 82

3.4.2 Teoria da Subordinação Integrativa ................................................................. 86

3.4.3 Teoria do Ajenidad ........................................................................................... 90

3.4.4 Teoria da Internalização das Externalidades Negativas ................................... 92

4. DO RETROCESSO SOCIAL NA CONFIGURAÇÃO DO CRIME DE REDUÇÃO À

CONDIÇÃO ANÁLOGA A DE ESCRAVO ................................................................ 94

4.1 Da Edição da Portaria nº 1.129/2017 do Ministério do Trabalho e Emprego ...... 94

4.2 Da condenação do Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no

Caso Fazenda Brasil Verde....................................................................................... 97

CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................... 102

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ....................................................................... 104

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INTRODUÇÃO

Dentre os direitos mais fundamentais do ser humano, a liberdade é valor

central, tendo sido erigida a direito fundamental de primeira geração com escopo de

complementariedade da vida, assim concebida como o primeiro bem maior.

Como cediço, os direitos civis e políticos foram proclamados no século XVIII,

em meio ao cenário impactante da Revolução Industrial, importante fonte material

econômica para o surgimento do Direito do Trabalho.

Idealizada sob o ponto de vista constitucionalista liberal, a liberdade, ao lado

dos demais direitos individuais, são direitos subjetivos oponíveis ao Estado e exigem

deste uma postura negativista, traduzida na garantia a qualquer indivíduo de fazer

ou deixar de fazer algo desde que não proibido por lei.

Nesta perspectiva há um dever de respeito do Estado perante os cidadãos,

exigindo-se daquele uma postura de abstenção em relação a certos direitos, o que

deve ser observado, inclusive, nas relações estabelecidas entre particulares.

Pode-se assim dizer, que os direitos humanos de primeira geração se

baseiam numa clara demarcação entre Estado e não-Estado, fundamentada no

contratualismo de inspiração individualista1.

Se por um lado, esse contexto de extrema liberdade foi de excepcional

importância para superação do Estado absolutista e um ponto de avanço na

evolução dos direitos humanos, criou-se, noutra quadra, ambiente livre e favorável

para exploração do homem sobre o homem, sem limites para relações sociais

abusivas, nelas incluída as relações de trabalho e emprego.

Superada a escravidão em sua acepção originária, surgem novas relações

interpessoais, que a despeito de dotadas de liberdade para formulação de pactos,

podem configurar-se em si mesmas como opressoras, como a que mundo assistiu

no contexto da Revolução Industrial, marcada pela sujeição de trabalhadores a

condições degradantes e insalubres, jornadas exaustivas, sem remuneração justa e

satisfatória.

Nessa conjuntura, o status negativo do Estado é questionado, trazendo-se a

baila a rediscussão de seu papel enquanto agente garantidor dos direitos

fundamentais. Busca-se um novo estágio de efetivação de tais direitos, de modo que

1 - Celso Lafer apud Sílvio Beltramelli Neto, Direitos Humanos, 4ª Ed.2017, p.101, Ed. Jus Podivm.

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o Poder Público é instado a conferir ao indivíduo prestações que efetivamente

atendam os reclames da classe operária e promovam igualdade substancial aos

excluídos da participação no sistema de bem-estar social.

Essa nova concepção estabelece como diretriz que o ser humano é livre, e,

portanto, não mais sujeito a relações servis e de escravidão e, ainda, que é dever do

Estado atuar positivamente em seu favor. Muito embora, sejam os direitos sociais

também de cunho subjetivo, consubstanciam-se em um direito de crédito e um dever

de promoção.

A conjunção dos valores liberdade e igualdade, mundialmente consagrados,

são vetores interpretativos suficientemente aptos a rechaçar qualquer forma de

superexploração e coisificação do ser humano em qualquer relação social,

sobretudo, para finalidade de obtenção de lucro e multiplicação da riqueza.

Neste sentido, a OIT – Organização Internacional do Trabalho, fundada no

princípio da paz universal e permanente como instrumento de concretização e

universalização dos ideais de justiça social e proteção do ser humano trabalhador,

adota como Princípio Fundamental do Direito Internacional do Trabalho, o postulado

de que o Trabalho não é uma Mercadoria, promovendo diversos tratados

internacionais de direitos humanos alusivos à vedação à escravidão.

Sem embargo do panorama mundial de sedimentação jusfilosófica sobre o

direito universal ao trabalho digno no Estado Democrático de Direito, a Constituição

da República Federativa do Brasil de 1988, consagra como direitos fundamentais a

liberdade e igualdade (art.5º, caput e I), com base no eixo central dos direitos do

homem, a proteção da dignidade da pessoa humana, (art. 1º, III).

Especificamente no âmbito laboral, a proteção constitucional está a revelar a

reprovação a qualquer tratamento que venha suprimir do indivíduo a concepção do

trabalho como fonte de realização dos mínimos existenciais de forma digna.

Rechaça-se assim, todas as formas contemporâneas de escravidão, norma

imperativa tanto no Direito Internacional, como no ordenamento jurídico pátrio.

Nisso, de bom alvitre ressaltar que a escravidão moderna deixou de ser

compreendida apenas como a restrição da liberdade e apropriação do oprimido pela

classe dominante, fruto de uma herança cultural. A concepção hollywoodiana que

relaciona o trabalho escravo ao cárcere, algemas, chicotes e à figura desumana e

atroz do patrão, já não mais corresponde com exatidão às modernas formas de

dominação.

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Com efeito, o sistema de acumulação capitalista se reinventa a cada ciclo

para alcançar seu escopo de alta lucratividade a baixos custos. Novos mecanismos

de exploração do trabalhador se reinventam constantemente, de maneira a incluir o

homem como instrumental de um modo de produção voraz, predatório, não

realizador do valor social do trabalho.

Nessa perspectiva moderna de abrangência do trabalho escravo, normativos

internacionais e internos proíbem a escravidão sob todas as suas formas,

desautorizando-se, portanto, a coisificação e mercantilização do homem em

qualquer de suas vertentes.

Hodiernamente o esforço da sociedade deve ater-se ao combate da

escravidão contemporânea, inserida no contexto de uma atividade econômica

organizada, mediante a exploração de mão de obra de determinado grupo

socialmente vulnerável, subjugado à condição de objeto de propriedade do

empregador, e não apenas, associada à ideia da escravidão invariavelmente negra,

violenta e cativa.

A liberdade e igualdade como qualidade intrínseca do ser humano, sua

correlação com a organização da força de trabalho no sistema capitalista de

produção e a configuração e combate às modernas formas de escravidão são objeto

do presente estudo, que se desenvolve na perspectiva de relacionar os direitos

inerentes à qualidade de ser humano por si só, com as respostas políticos-estatais

entabuladas no enfrentamento da questão social da escravidão moderna.

O comprometimento estatal do direito fundamental em pauta, a rigor,

ultrapassa a ideia de provimento material. O trabalho digno, ínsito à vida humana

digna, é base para o desenvolvimento pessoal e moral do homem, cujo fim último é

realizar seus anseios no plano material e espiritual, refletindo sua carga simbólica de

autonomia e afirmação pessoal e social.

É dever do Estado e da sociedade repudiar qualquer forma de escravidão, há

tempos já concebida como contrária ao desenvolvimento da humanidade. Apoiado

nessa ideia, já no final do século XVIII, Immanuel Kant afirmou que o ser humano é

o único ser dotado de razão (que lhe permite ter vontade, poder de escolha) e existe

como um fim em si mesmo e não como meio para servir à vontade de outrem. 2

2 - SÍLVIO, Beltramelli Neto, Direitos Humanos, 4ª Ed.2017, p.101, Ed. Jus Podivm.

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A definição do filósofo é fundamento para concepção de pessoa humana

como todo ente que, dotado de razão, é um fim em si mesmo, por ser

intrinsecamente livre para tomar decisões segundo seus próprios valores.

O desenvolvimento da noção de dignidade da pessoa humana assenta-se na

ideia de que, na essência, todo ser humano é livre e goza dos mesmos direitos

básicos, de modo a concluir que a dignidade do homem guarda indissociável

proximidade com a liberdade e a igualdade, valores constitucionalmente

assegurados, já suficientes para o repúdio ao trabalho escravo.

Contudo, não obstante o elogiável status constitucional, a positivação da

norma não basta por si só. O direito ao trabalho em condições dignas requer

primazia estatal por meio do implemento de efetivas políticas de Estado dissociadas

de estratégias de governo.

Dada a direta correlação das formas de escravidão moderna com a violação

da vida e saúde, a reprodução da força de trabalho sob o viés meramente mercantil

deve ser combatida com absoluta prioridade, pois não há falar na construção de

uma sociedade livre, justa e solidária quando se permite passivamente que seres

humanos subsistam em condições indignas de trabalho.

Ainda que evidente que o acesso ao trabalho se encontra submetido à

estrutura de uma sociedade capitalista, que alija diversas parcelas da sociedade dos

seus direitos mais fundamentais, há que se proporcionar no plano fático a garantia

do trabalho decente, em atendimento ao princípio nuclear da dignidade da pessoa

humana e aos reclames da comunidade internacional.

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1. O DIREITO DE LIBERDADE E AUTODETERMINAÇÃO

1.1 A Dignidade da Pessoa Humana como Fundamento do Direito Humano da liberdade e Igualdade

A compreensão dos institutos do Direito, em qualquer de seus ramos, seja ele

Público ou Privado, requer uma análise geral do desenvolvimento histórico-cultural

destes. Nessa esteira, o método histórico acaba servindo como meio interpretativo e

de entendimento acerca da origem e desenvolvimento das normas jurídicas e

institutos vigentes no ordenamento.

Desde os primórdios da humanidade, uma das principais preocupações do

ser humano é proteger a si mesmo e sua família de toda sorte de indigências e

infortúnios a que se encontra exposto.

Em busca dessa proteção, o ser humano historicamente sempre empreendeu

estratégias para alcançar a plena liberdade, assim concebida como o estado natural

de estar livre de limitações e coações em todas as circunstâncias consideradas

éticas e lícitas em determinado ordenamento jurídico, escrito ou costumeiro.

Liberdade e igualdade são, outrossim, direitos humanos inerentes à natureza

e evolução do próprio homem, seja em seu estágio mais primitivo ou em dada

sociedade contemporânea, que concretizam a dignidade da pessoa humana, núcleo

axiológico dos direitos do homem, fundamento singular para todos os direitos

humanos.

Nesse passo, convém relevar que, a despeito do processo histórico de

racionalização do conceito de dignidade da pessoa humana, esta não se afastou do

seu núcleo essencial no sentido de entender como pessoa humana, todo ente que,

dotado de razão, é um fim em si mesmo, por ser intrinsecamente livre para tomar

decisões segundo seus próprios valores3, e do reconhecimento fundamental da

dignidade e liberdade de todos os seres humanos, concebida esta como a opção

pelo modo de viver, tomar decisões e agir, conforme sua própria racionalidade e

desígnios.

Para Imanuel Kant, a dignidade do homem é contrária à sua coisificação, não

podendo, portanto, ser tratado como objeto nem por ele mesmo. Nisso, inclusive,

3 NETO, Sílvio Beltramelli. Direitos Humanos, 4ª Ed. Bahia: Jus Podivm, 2017, p. 35.

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repousa as características da irrenunciabilidade, indisponibilidade ou inalienabilidade

enquanto características dos direitos humanos.

Para o mencionado autor,

“O homem, e, duma maneira geral, todo o ser racional, existe como um fim em si mesmo, não como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade. Pelo contrário, em todas as suas ações, tanto nas que se dirigem a ele mesmo como nas que se dirigem a outros seres racionais, ele tem sempre de ser considerado simultaneamente como um fim. Portanto, o valor de todos os objetos que possamos adquirir pelas nossas ações é sempre condicional. Os seres cuja existência depende não em verdade da nossa vontade, mas da natureza, tem contudo, se são seres irracionais, apenas um valor relativo como meios e por isso se chama coisas, ao passo, que os seres racionais se chamam pessoas, porque a sua natureza os distingue já como fins em si mesmos, quer dizer, como algo que não poder ser empregado como simples meio e que, por conseguinte, limita nessa medida todo o arbítrio (e é um objeto de respeito).4”

Não obstante inexistir uma única concepção de dignidade da pessoa humana,

a Kantiana afigura-se a mais reproduzida. No ordenamento jurídico brasileiro,

partindo desta mesma premissa, Ingo Wolfgand Sarlet, anota que:

(...) “temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existentes mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos”5

Com base nisso, conclui-se que os direitos humanos liberdade e igualdade no

âmbito das relações de trabalho têm como base e escopo teleológico a noção de

dignidade da pessoa humana, considerada esta como diretriz pré-jurídica,

traduzindo-se em verdadeiro dado da vida, inato à condição humana. A salvaguarda

do Direito apenas a promove e tutela seus atributos essenciais.

A referida promoção e proteção dos bens jurídicos essenciais aos indivíduos

afigura-se, contudo, de essencial importância no sentido de efetivar a dignidade da

4 SARLET, Ingo Wolfagang apud NETO, Sílvio Beltramelli. Direitos Humanos, 4ª Ed. Bahia: Jus Podivm, 2017, p. 33. 5 SARLET, Ingo Wolfagang apud NETO, Sílvio Beltramelli. Direitos Humanos, 4ª Ed. Bahia: Jus Podivm, 2017, p. 60.

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pessoa, por meio de arcabouço jurídico capaz de viabilizar efetivas respostas as

situações concretas de afronta aos atributos essenciais da dignidade da pessoa

humana, seja agressão à integridade física e moral do ser humano trabalhador, seja

pelo favorecimento do tratamento desigual.

Nesta perspectiva jurídica, de rigor conceber a dignidade da pessoa sob duplo

enfoque: multidimensional, vez que contempla inúmeros atributos inerentes ao ser

humano, como liberdade, igualdade, integridade física e psíquica e individual,

porque é traço distintivo de todo e qualquer indivíduo, onde quer que se encontre,

ainda que adequado às nuances culturais, sempre com o escopo de assegurar o

conceito de mínimo ético irredutível6, explanado pela Professora Flávia Piovesan,

dentro da perspectiva de multiculturalismo e direitos humanos.

A importância da salvaguarda da dignidade da pessoa humana por meio de

prescrições normativas de comportamento pode ser traduzida pela noção jurídica

conceituada por Ingo W. Sarlet. Neste sentido:

“O que se percebe em última análise, é que onde não houver respeito pela vida e pela integridade física e moral do ser humano, onde as condições mínimas para uma existência digna não forem asseguradas, onde não houver limitação do poder, enfim, onde a liberdade e a autonomia, a igualdade (em direitos e dignidade) e os direitos fundamentais não forem reconhecidos e minimamente assegurados, não haverá espaço para a dignidade da pessoa humana e esta (a pessoa), por sua vez, poderá não passar de mero objeto de arbítrio e injustiças.”7

Nessa toada, é de bom alvitre reafirmar que a proteção do direito à dignidade

da pessoa humana é tarefa atribuída a toda sociedade, em maior ou menor medida.

A empreitada inclui a participação de toda a sociedade, pois a história mostra que a

afronta massificada a direitos humanos é sistematicamente empreendida pela ação

do Estado, mas, também, e, sobretudo, dada a pertinência ao presente estudo, as

relações entre particulares, pessoa física ou jurídica, consubstanciada na eficácia

horizontal dos direitos humanos.

Ainda que não imprescindível ao reconhecimento da dignidade do homem, a

cogência das normas jurídicas sob a temática espelha a afirmação história de 6 PIOVESAN, Flávia apud NETO, Sílvio Beltramelli. Direitos Humanos, 4ª Ed. Bahia: Jus Podivm, 2017, p. 51. 7 SARLET, Ingo Wolfagang apud NETO, Sílvio Beltramelli. Direitos Humanos, 4ª Ed. Bahia: Jus Podivm, 2017, p. 51.

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valores morais mínimos de toda a humanidade. De acordo com Silvio Beltramelli

Neto, essa positivação,

(...) “se justifica ante a verificação da brutal e insustentável violência contra esses valores. Nessa linha, acredita-se que, especialmente a partir da metade do século XX, a salvaguarda da dignidade da pessoa humana, a despeito de ser o viés mediato de toda a prescrição normativa de comportamentos, passou a inspirar e embasar, de modo direto, explícito e enfático, um conjunto de normas jurídicas que se enunciam exclusivamente em função dessa mesma salvaguarda”.8

Na seara da proteção da liberdade e igualdade correlacionadas com a

escravidão contemporânea, essa realidade é aferível por meio de instrumentos

normativos estabelecidos no ordenamento jurídico interno e internacional, conforme

adiante se constata.

1.2 Panorama Histórico e Aspectos Gerais do Processo de Abolição da

Escravidão no Contexto Internacional e Interno

Não obstante não ser objetivo desse trabalho expor exaustivamente as bases

históricas dos direitos humanos relacionados a liberdade e isonomia nas relações

sociais, em especial, as contratuais trabalhistas, em apertada síntese far-se-á um

breve relato da trajetória histórica de afirmação desses bens jurídicos essenciais à

vida.

De início, desnecessário salientar que a proibição à escravidão é norma

imperativa exaltada tanto no Direito Internacional, como no ordenamento jurídico

brasileiro.

8 NETO, Sílvio Beltramelli. Direitos Humanos, 4ª Ed. Bahia: Jus Podivm, 2017, p. 19.

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1.2.1 Normativos Internacionais de Combate ao Trabalho em Condições

Análogas à Escravidão

Diversos são os diplomas internacionais que enunciam o direito universal ao

trabalho livre, seguro e digno. Ilustrativamente, de notar a relevância político-jurídica

de importantes documentos, como os adiante mencionados.

Declaração Universal dos Direitos do Homem de 19489: documento

normativo nuclear, base de todo o atual sistema internacional de proteção dos

direitos humanos. Proíbe a escravidão e a servidão (art.4º), assim como a sujeição à

tortura, tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante (art. 5º).

Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos de 196610: é expresso

em determinar que ninguém será submetido à escravidão (art.8º, 1); à servidão

(art.8º, 2) e a trabalhos forçados ou obrigatórios (art.8º, 3).

Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de

196611: os Estados Membros pactuantes reconhecem o direito de toda pessoa de

gozar de condições de trabalho justas e favoráveis, o que inclui uma remuneração

justa; segurança e higiene; isonomia para as promoções; descanso, lazer e limitação

de jornada (art.7º, “a” a “d”, respectivamente).

Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969 (Pacto de San José

da Costa Rica)12: estabelece proibição à escravidão, servidão e o trabalho forçado

(art.6º, 1 e 2); garante direito à liberdade e segurança pessoais (art.7º, 1); e respeito

à honra e reconhecimento da dignidade de toda pessoa (art.11, 1).

9 NAÇÕES UNIDAS DO BRASIL. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível em: <http://www.onu.org.br/img/2014/09/DUDH.pdf>. Acesso em: 26/12/2017. 10 PLANALTO. Decreto nº 592, de 1992. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d0592.htm>. Acesso em: 26/12/2017. 11 PLANALTO. Decreto nº 591, de 1992. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d0591.htm>. Acesso em: 26/12/2017. 12 PLANALTO. Convenção Americana de Direitos Humanos. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/anexo/and678-92.pdf>. Acesso em: 26/12/2017.

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20

As normas internacionais trabalhistas realizam direitos de segunda dimensão

na clássica divisão doutrinária de evolução dos direitos humanos, vez que objetivam

garantir direitos sociais aos trabalhadores.

A par dos normativos esparsos emanados de diversos órgãos internacionais,

consoante ilustrativamente supracitados, de rigor ressaltar a importância da

Organização Internacional do Trabalho, OIT, na efetivação dos direitos do ser

humano trabalhador.

Em apertada síntese, a OIT constituiu-se em 1919 por meio do Tratado de

Versalhes no âmbito da Liga das Nações, que pretendeu, sem sucesso, instituir um

ambiente de paz mundial e por fim à Primeira Guerra Mundial. Inexitosa no seu

desiderato, a Liga foi substituída pela Organização das Nações Unidas, sistema até

então vigente, que contempla diversas Organizações Internacionais com finalidades

específicas, a exemplo da própria OIT, que a despeito de preceder a ONU, criada

apenas em 1945, passou a integrar esta Organização.

Desde então, a Organização Internacional do Trabalho (OIT), é a agência das

Nações Unidas que tem por missão promover oportunidades de acesso ao trabalho

decente e produtivo, em condições de liberdade, equidade, segurança e dignidade.

O Trabalho Decente, conceito formalizado pela OIT em 1999, sintetiza os

objetivos da Organização, sendo considerado condição fundamental para a

superação da pobreza, redução das desigualdades sociais, garantia da

governabilidade democrática e o desenvolvimento sustentável.

Ainda, é o Trabalho Decente o ponto de convergência dos quatro objetivos

estratégicos da OIT, assim expressos na Declaração da OIT sobre os Princípios e

Direitos Fundamentais no Trabalho de 1998, definidos como normas de jus

cogens, de observância obrigatória pelos Membros da Organização,

independentemente de ratificação13.

De acordo com art. 2, da mencionada Declaração, todos os Estados Membros

têm o compromisso derivado do fato de pertencerem à Organização de respeitar,

promover e tornar realidade, de boa fé e de conformidade com a Constituição, os

princípios relativos aos direitos fundamentais que são objeto dessas convenções,

isto é: (a) liberdade sindical e reconhecimento efetivo do direito de negociação

coletiva; (b) eliminação de todas as formas de trabalho forçado ou obrigatório;

13 ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Conheça a OIT. Disponível em: <http://www.ilo.org/brasilia/conheca-a-oit/lang--pt/index.htm>. Acesso em: 16/12/2017.

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(c) abolição efetiva do trabalho infantil; e (d) eliminação de todas as formas de

discriminação em matéria de emprego e ocupação.

Nesta esteira, sendo a eliminação de todas as formas de trabalho forçado ou

obrigatória, norma imperativa, que de tamanha amplitude e importância, prescinde

de ratificação, é, sobremaneira, importante fonte normativa para o enfrentamento da

questão da escravidão moderna.

Ademais, ainda no âmbito da OIT, é princípio que norteia a atuação da

Organização, enunciado no preâmbulo de sua Constituição, o conceito de Justiça

Social, assim compreendido como direito social realizador da paz social e elevação

do patamar mínimo civilizatório da classe trabalhadora.

Dada a relevância do teor do preâmbulo, destaca-se doravante parcialmente

seu conteúdo:

"Considerando que a paz para ser universal e duradoura deve assentar sobre a justiça social; Considerando que existem condições de trabalho que implicam, para grande número de indivíduos, miséria e privações, e que o descontentamento que daí decorre põe em perigo a paz e a harmonia universais, e considerando que é urgente melhorar essas condições no que se refere, por exemplo, à regulamentação das horas de trabalho, à fixação de uma duração máxima do dia e da semana de trabalho, ao recrutamento da mão-de-obra, à luta contra o desemprego, à garantia de um salário que assegure condições de existência convenientes, à proteção dos trabalhadores contra as moléstias graves ou profissionais e os acidentes do trabalho, à proteção das crianças, dos adolescentes e das mulheres, às pensões de velhice e de invalidez, à defesa dos interesses dos trabalhadores empregados no estrangeiro, à afirmação do princípio "para igual trabalho, mesmo salário", à afirmação do princípio de liberdade sindical, à organização do ensino profissional e técnico, e outras medidas análogas; Considerando que a não adoção por qualquer nação de um regime de trabalho realmente humano cria obstáculos aos esforços das outras nações desejosas de melhorar a sorte dos trabalhadores nos seus próprios territórios. (...)”. Texto original sem grifos.

De notar neste contexto que a criação da OIT pautou-se em fundamentos

humanitários para equilibrar a industrialização crescente na Europa, pautada em um

modo de produção capitalista, voltado para acumulação de riquezas pelos

proprietários dos meios de produção ao alvedrio da massa operária, que

protagonizou o aprofundamento das desigualdades sociais, experimentando

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condições sociais de extrema vulnerabilidade, consubstanciadas na chamada

questão social do século XIX.

Na perspectiva mercantil de busca de maiores lucros e menores custos,

aceleração da produção em larga escala e exploração do trabalhador, tudo pautado

na liberdade contratual, a OIT, fundada no princípio da paz universal e permanente,

estabeleceu através de seus instrumentos, normas protetivas sociais universais para

os trabalhadores, capazes de equilibrar a dicotomia capital/trabalho, que submetia a

classe trabalhadora à condição social de precariedade, incluindo jornadas

exaustivas, ausência de remuneração mínima e meio ambiente insalubre.

Com o fim de concretizar o conceito de justiça social e universalizar a

proteção do trabalhador, a OIT adota os Princípios Fundamentais do Direito

Internacional do Trabalho, dos quais merece destaque para os fins do presente

trabalho, o postulado de que O Trabalho não é uma Mercadoria.

Com base nessa premissa, Gabriela Neves Delgado preceitua que:

“Não há como se concretizar o direito à vida digna se o homem não for livre e tiver acesso ao direito fundamental ao trabalho também digno. Da mesma forma, não há possibilidade real do exercício do trabalho digno se não houver verdadeira preservação do direito fundamental à vida humana digna.”14

A noção de objetificação do homem, contrária à sua dignidade, coaduna com

o conceito de trabalho escravo, que desde a Idade Média está associado à

submissão de uma pessoa à outra, partindo da concepção de propriedade do

sujeito, concebido desde então, como uma mercadoria.

O princípio da negação do trabalho como mercadoria rechaça a coisificação

do trabalhador no processo produtivo, pautada na perspectiva liberal, que privilegia a

compreensão da vida social apenas no sentido de concentração da riqueza.

A rigor, há que se reconhecer e efetivar o valor social do trabalho como meio

de subsistência atrelado ao processo de produção e reprodução da vida social, sem

que isso se resuma apenas à sua satisfação da vida material. Neste sentido, Marilda

V. Iamamoto, com escoro na teoria Marxista, afirma-se que:

14 DELGADO, Gabriela Neves. Direito Fundamental ao Trabalho Digno. São Paulo: LTr, 2006, p. 211.

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“(...) O primeiro pressuposto de toda existência humana e, portanto, de toda a história, é que os homens devem estar em condições de viver para poder fazer história.”15

Nessa toada, continua a autora afirmando que,

(...) “Quando se fala em produção/reprodução da vida social não se abrange apenas a dimensão econômica – frequentemente reduzida a uma ótica economicista -, mas a reprodução social de indivíduos, grupos e classes sociais. Relações sociais estas que envolvem poder, sendo relações de luta e confronto entre classes e segmentos sociais, que têm no Estado uma expressão condensada da trama do poder vigente na sociedade”. 16

É significar, portanto, que o primado do trabalho, pautado no conceito de

trabalho decente; a eliminação de todas as formas de trabalho forçado ou obrigatório

e o rechaço a todas as formas de escravidão contemporânea, deve compreender-se

apartado de uma relação de compra e venda que inclui o ser humano trabalhador na

engrenagem do processo de produção industrial como uma peça da organização

empresarial, facilmente manejável para atendimento dos interesses mercadológicos

e anseios da sociedade capitalista.

A rigor, a análise da não mercantilização do labor humano está intimamente

relacionada com o valor social do trabalho. Partindo desta concepção, no âmbito da

doutrina social da Igreja, vale destacar a Encíclica Mater et Magistra, de João XXIII,

de 1961, no que expressa:

18. Dizem respeito, primeiramente, ao trabalho que deve ser considerado, em teoria e na prática, não mercadoria, mas um modo de expressão direta da pessoa humana. Para a grande maioria dos homens, o trabalho é a única fonte dos meios de subsistência. Por isso, a sua remuneração não pode deixar-se à mercê do jogo automático das leis do mercado; pelo contrário, deve ser estabelecida segundo as normas da justiça e da equidade, que, em caso contrário, ficariam profundamente lesadas, ainda mesmo que o contrato de trabalho fosse livremente ajustado por ambas as partes” (original sem grifos).17

15 MARX, K. e ENGELS, F. A apud IAMAMOTO, M. O Serviço Social na Contemporaneidade: Trabalho e Formação Profissional. 9ª Ed. São Paulo: Cortez, 2005, p. 26. 16 IAMAMOTO, M. O Serviço Social na Contemporaneidade: Trabalho e Formação Profissional. 9ª Ed. São Paulo: Cortez, 2005, p. 26. 17 VATICANO. Carta Encíclica Mater Et Magistra. Disponível em: https://w2.vatican.va/content/john-xxiii/pt/encyclicals/documents/hf_j-xxiii_enc_15051961_mater.html>. Acesso em: 26/12/2017.

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Retomando a produção normativa estabelecida pela OIT, não obstante o firme

empenho da Organização em estabelecer politicamente as bases da cidadania

social no mundo do trabalho por meio dos já mencionados instrumentos normativos,

também é função da Organização a criação de normas internacionais do trabalho

sob a forma de Convenções e Recomendações. Tais documentos são formulados

na Conferência Internacional do Trabalho, seu órgão máximo de representação,

responsável pela definição das diretrizes da política social da OIT.

Conforme preleciona Maurício Godinho Delgado18, Convenções são espécies

de tratados com conteúdo obrigacional, normativo e programático, aprovados por

entidade internacional, a que aderem voluntariamente seus membros.

Por sua vez, as recomendações são diplomas programáticos enunciativos,

cujo objetivo é o aperfeiçoamento normativo do conteúdo das Convenções

pactuadas pelos Membros da Organização. São, outrossim, direcionamentos no

sentido de orientar as políticas e práticas nacionais. Ao contrário das convenções,

tanto as recomendações como as declarações, são instrumentos não imperativos,

podendo constituir-se, contudo, em importantes fontes materiais, vez que

desempenham importante papel político e cultural de induzir os Estados a

aperfeiçoar sua legislação interna.

No campo da produção normativa atinente ao combate ao emprego de mão

de obra em condições semelhantes à escravidão, a OIT estabeleceu diversos

instrumentos. No intento de abolir do plano fático tal prática, já que a escravidão ou

situação análoga há muito fora extirpada do ordenamento jurídico, a Organização

formulou diversos tratados acerca da matéria, com destaque para os seguintes:

Convenção para Abolição da Escravatura (1926): Instituída internamente

pelo Decreto 58.563/6619, que Promulga o documento emendado pelo Protocolo de

1953 e a Convenção Suplementar sobre a Abolição da Escravatura de 1956.

Dos termos convencionados na Convenção de 1926, destaca-se o art.1º, que

define o conceito de escravidão como estado ou condição de um indivíduo sobre o

qual se exercem, total ou parcialmente, os atributos do direito de propriedade.

18 DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 14ª Ed. São Paulo: LTR, 201, p.157 e 158. 19 SENADO FEDERAL. Decreto nº 58.563, de 1966. Disponível em: <http://legis.senado.leg.br/legislacao/ListaTextoSigen.action?norma=481163&id=14236686&idBinario=15756635&mime=application/rtf>. Acesso em: 18/12/2017.

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25

Da definição, o que se extrai, de imediato, conforme ensina Tiago Muniz

Cavalcanti20, é que a sobredita definição reproduz a essência da escravidão, a

saber, a coisificação do ser humano, omitindo qualquer referência à restrição da

liberdade. Corrobora tal evidência o fato de a própria Convenção diferenciar

“escravidão” de “trabalho forçado ou obrigatório”, entendendo que este pode se

configurar naquele.

De rigor mencionar ainda, a cooperação das Nações para alcance da

supressão da escravidão e do tráfico de escravos (art.4º) e a exceção à proibição do

trabalho forçado ou obrigatório para fins públicos (art.5º, §1º).

Convenção Suplementar sobre a Abolição da Escravatura, do Tráfico de

Escravos e das Instituições e Práticas Análogas à Escravatura (1956): trata-se

do primeiro documento a utilizar a expressão “prática análoga à escravatura”, já

difundida no consenso mundial de que a escravidão no sentido estrito era episódica,

não mais regulamentada pelos países21.

O instrumento suplementar à Convenção sobredita, por seu turno, enumera

em seus dispositivos diversas práticas de trabalho forçado que devem ser

combatidas de forma contínua e progressiva, como a servidão por dívidas (situação

de submissão pessoal relacionada à terra); o tráfico de escravos e a proteção à

liberdade pessoal da mulher, criança e adolescente.

De notar que o documento em comento estabelece distinção entre escravidão

e servidão, definindo a primeira condição como o estado ou a condição de um

indivíduo sobre o qual se exercem todos ou parte dos poderes atribuídos ao direito

de propriedade, e “escravo” é o indivíduo em tal estado ou condição, ao passo que

“Pessoa de condição servil” é a que se encontra no estado ou condição que resulta

de algumas das instituições ou práticas definidas como escravidão.

Convenção 29 – Trabalho Forçado ou Obrigatório: em vigor no plano

internacional desde 1932, foi aprovada pelo Decreto Legislativo nº24, de 1956,

20 CAVALCANTI, Thiago Muniz. Estudos Aprofundados Ministério Público do Trabalho. Vol.3. Bahia. Ed. JusPodivm, 2017, O Trabalho Escravo entre a Arte e a Realidade: a Necessária Superação da Perspectiva Hollywoodiana, p. 242. 21 CAVALHEIRO, Ruy Fernando Gomes Leme. Procurador do Trabalho. Mestre e Especialista em Direito. Especialista em Filosofia e História da Ciência. Curso Ênfase, regular 2017. Aulas 41 e 42.

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ratificada em 25 de abril de 1957, promulgada pelo Decreto nº 41.721, de 25 de

junho de 1957, vigente no plano interno a partir de 25 de abril de 1958.22

Traduz-se no compromisso assumido pelos Estados Membros de suprimir o

emprego do trabalho forçado ou obrigatório sob todas as suas formas no mais curto

prazo possível (art.1º,1)23, admitindo-se transitoriamente seu emprego

exclusivamente para fins públicos (art.1º,2).

Foi a primeira Convenção da OIT a abordar a proibição do trabalho forçado.

No contexto de sua criação diversos países adotavam a escravidão com autorização

prevista em lei.

A convenção conceitua trabalho forçado ou obrigatório como “todo trabalho

ou serviço exigido de um indivíduo sob ameaça de qualquer penalidade e para o

qual ele não se ofereceu de espontânea vontade” (art.2º, 1). Exclui, entretanto,

dessa definição o serviço militar obrigatório legalmente instituído; as obrigações

cívicas; condenações judiciárias em favor de pessoa jurídica de direito público; força

maior; pequenos trabalhos comunitários (art.2º, 2, “a” a “e”, respectivamente).

No mesmo sentido da Convenção sobre a Escravatura de 1926, desvincula-

se a noção de escravidão da estrita restrição da liberdade. Na mesma linha do

mencionado documento distingue-se a escravidão do trabalho forçado ou

obrigatório, compreendendo-se este como o desempenhado em oposição ao

trabalho voluntário, aqui concebido como aquele para o qual se tenha oferecido

espontaneamente (art.13).

A Convenção 29 reflete o compromisso da OIT em eliminar o trabalho

forçado, consubstanciado não apenas em grave violação de direito humano, mas

também, em importante fator de acentuação de pobreza e entrave ao

desenvolvimento econômico.

Convenção 105 – Abolição do Trabalho Forçado: em vigor inicialmente no

plano internacional em 17 de janeiro de 1959, aprovada pelo Decreto Legislativo

nº20, de 1965, ratificada em 18 de junho de 1965, promulgada pelo Decreto nº

22 CHAGAS, Gustavo Luís Teixeira. MIESSA, Élisson. Legislação de Direito Internacional do Trabalho e Proteção Internacional dos Direitos Humanos. 4ª ed. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 45. 23 PLANALTO. Decreto nº 41.721, de 1957. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/antigos/d41721.htm#convencao29>. Acesso em: 18/12/2017.

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58.822, de 14 de junho de 1966 e vigente no ordenamento interno a partir de 18 de

junho de 196624.

Trata-se de mais um instrumento do arcabouço normativo internacional de

combate à escravidão contemporânea. Qualquer membro que a ratifica assume o

compromisso de suprimir completa e imediatamente o trabalho forçado ou

obrigatório, e a não recorrer ao mesmo sob forma alguma, seja como medida

coerção; educação política; sanção por opção política ou opção ideológica; mão de

obra com finalidade econômica; disciplina de trabalho; punição por participação em

greves; ou ainda, como forma de discriminação racial, social, nacional ou religiosa

(ar.1º, caput, “a” a “e”)25.

A intenção do documento é assegurar a liberdade de contratação e a não

submissão de trabalhadores a condições indignas assentadas em relação de

propriedade do ser humano trabalhador.

Tanto a Convenção 29, como a 105, da Organização Internacional do

Trabalho integram a Declaração da OIT relativa aos Princípios e Direitos

Fundamentais no Trabalho de 1998.

Conforme oportunamente mencionado, a observância das Convenções

fundamentais, oito no total, independem de ratificação, sendo dotadas de cogência e

imperatividade pelo simples fato de os Estados pertencerem à Organização.

A inclusão desses normativos internacionais no seleto rol de Convenções

Fundamentais reafirma o compromisso da ordem internacional no combate e

eliminação de todas as formas de escravidão moderna, face o relevante grau de

aviltamento à dignidade da pessoa humana que decorre de tais práticas de gestão

empresarial.

Protocolo Adicional à Convenção da ONU contra o Crime Organizado

Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de

Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças, de 2000 (“Protocolo de Palermo”):

aprovado pelo Decreto Legislativo nº231, de 2003, em vigor no âmbito interno desde

28/02/2004, internalizado pelo Decreto nº5.017, de 2004, define tráfico de pessoas

como “o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento

24 CHAGAS, Gustavo Luís Teixeira. MIESSA, Élisson. Legislação de Direito Internacional do Trabalho e Proteção Internacional dos Direitos Humanos. 4ª ed. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 132. 25 PLANALTO. Decreto nº 58.822, de 1966. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1950-1969/d58822.htm>. Acesso em: 18/12/2017.

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de pessoas, recorrendo à ameaça ou uso da força ou a outras formas de coação, ao

rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade

ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento

de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração. A

exploração incluirá, no mínimo, a exploração da prostituição de outrem ou outras

formas de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, escravatura ou

práticas similares à escravatura, a servidão ou a remoção de órgãos”.26 (original

sem grifos).

Importante, ainda, trazer a baila que, nos termos do Protocolo, a sujeição a

quaisquer das mencionadas condições independe do consentimento dada pela

vítima (art.3, “b”).

Adaptando-se às mais variadas formas de contratações modernas ilícitas, a

OIT relativiza a questão do oferecimento espontâneo. Neste sentido,

“É da posição da Organização considerar que o consentimento inicial do trabalhador pode ser tido como irrelevante quando a fraude e o engano foram meios utilizados para sua obtenção. Isso faz muito sentido já que são inúmeros os casos em que as vítimas entram em situações que aparentemente são regulares, porém depois descobrem que foram envolvidas em uma situação de trabalho forçado, pois não se encontram livres para abandoná-los em razão de coerção de natureza jurídica, física ou psicológica (OIT, 2009)”.27

Convenção 182 – Proibição das Piores Formas de Trabalho Infantil e a

Ação Imediata para sua Eliminação: em vigor no plano internacional em 17 de

junho de 1999, no ordenamento interno foi aprovada pelo Decreto Legislativo nº178,

de 1999 e ratificada em 02 de fevereiro de 2000. Foi promulgada pelo Decreto

nº3.597, de 12 de setembro de 2000, vigorando para o Brasil em 02de fevereiro de

200028.

A Convenção representa um marco legal na proteção dos direitos de crianças

e adolescentes, ao determinar, em caráter de urgência, a adoção de medidas

26 PLANALTO. Decreto nº 5.017, de 2004. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/decreto/d5017.htm>. Acesso em: 26/12/2017. 27 CAVALCANTI, Thiago Muniz. Estudos Aprofundados Ministério Público do Trabalho. Vol.3. Bahia. Ed. JusPodivm, 2017, O Trabalho Escravo entre a Arte e a Realidade: a Necessária Superação da Perspectiva Hollywoodiana, p. 243. 28 CHAGAS, Gustavo Luís Teixeira. MIESSA, Élisson. Legislação de Direito Internacional do Trabalho e Proteção Internacional dos Direitos Humanos. 4ª ed. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 291.

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imediatas e eficazes para proibição e eliminação das piores formas de trabalho

infantil.

O instrumento normativo elenca algumas práticas consideradas como piores

formas de trabalho, merecendo ênfase para o desenvolvimento desta monografia, o

exercício de todas as formas de escravidão ou práticas análogas a ela, destacando-

se ilustrativamente, a venda e tráfico de crianças, a servidão por dívidas e a

condição de servo, e o trabalho forçado ou obrigatório, inclusive o recrutamento

forçado ou obrigatório de crianças para serem utilizadas em conflitos armados

(art.3º, “a”).

Ao lado do costume internacional e princípios gerais do direito, as convenções

internacionais (tratados ou pactos), são fontes formais primárias do Direito,

traduzindo-se em diretrizes normativas obrigatórias voltadas à disciplina de relações

sociais cujo objeto é a forma de utilização do labor humano.

Sem embargo da relevância jurídica das fontes formais, na sociedade

moderna o que se busca é o abandono de interpretações meramente reducionistas

pautadas em um ordenamento jurídico meramente formal, notadamente incabível

em se tratando da disciplina de direitos humanos.

Neste sentido, Cançado Trindade defende uma profunda adequação no modo

estático tradicional de enxergar-se o assunto das fontes formais. Para o autor, o

“direito internacional contemporâneo apresenta-se multifacetado, vasto e complexo,

não sendo crível seu entendimento dissociado de seu substratum, apartado,

portanto, de suas fontes materiais”.29

A concepção mais moderna no plano do direito internacional vai além da

forma e busca despertar uma consciência jurídica universal, que privilegia a moral e

os valores como condutores de um objetivo de realização da justiça.

Quanto à incorporação das normas internacionais de direitos humanos, após

cenário controverso e inúmeras decisões sobre o tema, tais normais consolidaram-

se com o status de normas supralegais, isto é, situadas abaixo da Constituição

Federal, porém superiores ao ordenamento infraconstitucional (tese da

supralegalidade). Estabeleceu-se, em verdade, um patamar intermediário para as

normas de tal envergadura, permitindo-se, dessa maneira, o que se convencionou

denominar “controle de convencionalidade”.

29 CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. A humanização do direito internacional. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p.79 a 96.

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Com efeito, no plano interno e internacional, aprecia-se a compatibilidade

entre a norma nacional e as normas internacionais de direitos humanos, sobretudo

as convenções internacionais.

Paralelamente, firmou-se no âmbito do ordenamento pátrio a tese da

constitucionalidade dos tratados de direitos humanos, em decorrência da

promulgação da Emenda Constitucional 45/04, que inseriu o §3º ao art.5º, da

Constituição Federal de 1988.

Inovou a EC em estabelecer que os tratados internacionais de direitos

humanos aprovados com o quórum diferenciado de três quintos, em dois turnos de

votação em cada Casa do Congresso Nacional (mesmo quórum para as EC), terão

equivalência de emendas constitucionais.

A despeito da polêmica doutrinária que se travou com a alteração legislativa,

eis que se admitiu a interpretação de que os tratados internacionais de direitos

humanos poderão ter ou não status constitucionais. A rigor, as normas não inseridas

de acordo com esse procedimento especial permanecem com o status anterior de

normas supralegais, inserindo-se nesse patamar as normas internacionais que

regem as relações de trabalho, dada sua inegável natureza de direitos humanos.

Sendo assim, independentemente da forma de internalização, as normas

internacionais de direitos humanos integram-se ao ordenamento jurídico nacional

com eficácia imediata (art. 5º, §§1º e 2º, da CF/88) e conotação de ordem pública,

aplicáveis imediatamente às relações jurídicas nacionais, inclusive aos contratos de

trabalho, tão logo incorporadas pelo ordenamento interno.

Assim, com assento nesses mandamentos universais, proíbe-se e criminaliza-

se o emprego de todas as formas contemporâneas de escravidão, agregando-se ao

ordenamento jurídico interno os conceitos de escravidão estabelecidos pela ordem

internacional, mediante a ratificação dos respectivos tratados pelo Brasil (art.5º, §2º,

CF), bem como em razão das disposições da própria legislação doméstica, que

repudia todas as formas de escravidão moderna ao consagrar como fundamentos de

sua Lei Maior, a dignidade da pessoa humana e o valor social do trabalho.

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1.2.2 Normativos Internos de Combate ao Trabalho em Condições Análogas à

Escravidão

O sistema internacional dos direitos humanos pauta-se na sólida premissa da

subsidiariedade, que no plano interno alicerça-se em bases fundamentais da

República Federativa do Brasil, a saber: a soberania estatal, estabelecida como seu

fundamento (art.1º, I), e a autodeterminação dos povos, princípio regente da RFB

em suas relações internacionais (art.4º, III).

Consoante ensinamentos de Sílvio Beltramelli Neto,

Segundo o pressuposto da subsidiariedade, é dever primário dos Estados, seu âmbito doméstico, adotar as providências de proteção e promoção dos direitos humanos e, em caso de violação, proporcionar a reparação dos danos decorrentes, tal como contemplado no direito internacional, entendido em sentido lato (tratados, costume internacional, princípios gerais e demais fontes formais e materiais)30.

Assim, o sistema construiu-se de forma a privilegiar a atuação endógena dos

Estados, inclusive com a necessidade de esgotamento dos recursos internos antes

do acionamento das esferas universais. Somente na hipótese de o Estado falhar no

seu mister de proteção dos direitos humanos, sujeitar-se-á aos documentos

vinculantes dos órgãos internacionais, os quais procederão exame de

compatibilidade entre a norma nacional e as diretrizes internacionais regentes da

matéria (controle de convencionalidade).

1.3 Disciplina jurídica do trabalho em condições análogas à escravidão no Brasil

Quanto à produção normativa interna, o ordenamento jurídico brasileiro

repudia a escravidão sob todas as suas formas, rejeitando, portanto, a coisificação e

mercantilização do homem.

30 NETO, Sílvio Beltramelli. Direitos Humanos, 4ª Ed. Bahia: Jus Podivm, 2017, p. 255.

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32

A primeira norma que convergiu neste sentido no cenário pátrio, foi a Lei

Áurea, diploma legal assinado em 13 de maio de 1888, que formalmente extinguiu a

escravatura no Brasil, resultado de longo e gradual processo de abolição.

No âmbito das relações contratuais modernas, o ato de privar alguém de sua

liberdade e dignidade, é repudiado pela ordem constitucional vigente, a qual

abarca em sua proteção diversos bens jurídicos.

Conforme exaustivamente abordado no decorrer do presente trabalho, a

vedação a todas as formas de escravidão moderna encontra-se ancorada em

normas de mais alta envergadura da Constituição Federal de 1988.

A dignidade da pessoa humana (art.1º,III, CF) e os valores sociais do trabalho

(art.1º,IV, CF), são fundamentos da RFB, a representar o que a Carta Política

consagra como núcleo axiológico, base fundante para todo o ordenamento jurídico.

A Constituição Federal garante isonomia a todos sem distinção de qualquer

natureza (art.5º, caput). Ademais, o direito ao trabalho é elevado a direito social

(art.6º, CF), além de o art.7º dedicar-se integralmente em seus incisos à proteção ao

trabalho, representando patamar mínimo de direitos dos trabalhadores e cláusula de

vedação ao retrocesso social.

No título dedicado a Ordem Social, definiu-se constitucionalmente o primado

do trabalho como sua base, e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais (art.193,

CF).

O trabalho decente é, outrossim, fator determinante da ordem econômica.

Neste diapasão, o art.170, da Lei Maior, determina que esta (a ordem econômica)

funda-se na valorização do trabalho humano e na livre-iniciativa, cuja finalidade é

assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social.

Não obstante, ainda com escoro na Constituição da República, há expressa

proibição de trabalhos forçados, consoante norma estampada no art.5º, III, que

determina que “ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou

degradante”. Inserto neste mesmo rol de direitos e garantias fundamentais, o inciso

XIII, dispõe acerca da liberdade de exercício profissional. Nos termos do dispositivo,

“é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as

qualificações profissionais que a lei estabelecer”.

Por derradeiro, o inciso XLVII, alínea “c”, do mesmo art.5º, veda a adoção de

pena de trabalhos forçados, que, não obstante encontrar-se topograficamente

estabelecido na seara de repressão criminal, seu status de princípio fundamental

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33

permite o efeito integrativo da norma constitucional, destacando-se, neste sentido,

os princípios hermenêuticos da Unidade da Constituição, Concordância Prática (ou

Harmonização); Efeito Integrador (ou Eficácia Integradora); e Interpretação

Conforme da Constituição.

Especificamente no âmbito da legislação trabalhista não há expressa

menção de proibição ao trabalho forçado ou afim, contudo, é possível depreender da

norma consolidada inúmeras regras de proteção ao exercício do trabalho em

condições que garantam a integridade física, psíquica e moral dos trabalhadores,

além da contraprestação justa e favorável.

Neste sentido, os artigos 154 a 159, consubstanciam as normas gerais de

segurança e medicina do trabalho, com destaque para o art. 158, p.ú, “b”, que

disciplina o uso dos equipamentos de proteção individual fornecidos pela empresa.

Os artigos 66 a 72 e 129 a 145, aduzem sobre os períodos de descanso

remunerados. Aqui, releva mencionar a recente alteração promovida pela Lei 13.467

de 13 de julho de 2017, a chamada Reforma Trabalhista, que modificou o art. 71,

§4º, da CLT, para o fim de determinar o pagamento do intervalo intrajornada mínimo

referente apenas ao período suprimido, com acréscimo de 50% (cinquenta por

cento), sobre o valor da remuneração da hora normal de trabalho.

Com a alteração legislativa, padece de revisão a Súmula 437, item I, do C.

Tribunal Superior do Trabalho, que determina o pagamento total do período

correspondente e não apenas o suprimido, de modo a efetivar medida de maior

proteção ao trabalhador pelo desincentivo da supressão ou redução do intervalo

pelo empregador.

Demais disso, a Consolidação das Leis do Trabalho, com a finalidade de

prevenir e punir eventuais violadores de normas protetivas mínimas nas relações de

emprego, estabelece multa ao empregador que mantiver empregado não registrado:

(arts. 47 e 55); multa ao empregador que infringir qualquer dispositivo concernente

ao salário mínimo (art. 120); multa ao empregador que violar as condições de

estabelecidas no tocante à jornada de trabalho (art. 75); e penalidade para as

infrações relativas às férias anuais remuneradas (art. 153).

É na esfera penal, porém, que se encontra a regulamentação específica da

prática de “redução à condição análoga à de escravo”, consoante art.149, do Código

Penal. O crime é de ação múltipla ou plurinuclear e abrange diversas condutas

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típicas, afastando definitivamente de seu enquadramento jurídico, única e tão

somente a simples conduta de aprisionamento físico.

Desde o advento da Lei 10.803 de 11 de dezembro de 2003, que modificou

o art.149, do Código Penal Brasileiro, instituído pelo Decreto Lei nº2.848, de 1940,

enquadram-se no gênero trabalho em condições análogas à de escravo não apenas

a submissão a trabalhos forçado, com restrição da liberdade de ir e vir, mas ainda,

outras espécies, notadamente, jornada exaustiva; trabalho em condições

degradantes; servidão por dívida; cerceamento do uso de qualquer meio de

transporte por parte do trabalhador, ou por qualquer outro meio com o fim de retê-lo

no local de trabalho; a vigilância ostensiva no local de trabalho ou a posse de

documentos ou objetos pessoais do trabalhador por parte do empregador ou seu

preposto, com o fim de retê-lo no local de trabalho.

De notar, que a odiosa prática de submissão à escravidão moderna, a partir

do aperfeiçoamento legislativo, aparta-se da visão limitada e restritiva da escravidão,

contextualizando-a na ordem jurídica como “um mal atual, lesivo à dignidade

humana, perpetrado através de meios ardis não necessariamente violentos em face

do socialmente oprimido, independentemente de raça, cor, etnia, religião ou

origem”31.

A rigor, amplia-se o espectro de alcance e interpretação do dispositivo

normativo, de sorte que se consolida a defensável diretriz de que o cerceamento da

liberdade do trabalhador pode resultar de fatores isolados ou da conjugação de

diversos elementos, assim como referido em publicação da OIT, 2010, a seguir

mencionada32:

Servidão por dívida: quando os trabalhadores são aliciados, as suas famílias recebem um adiantamento do pagamento, junto a promessas de um bom salário, normalmente acordado por quantidade de trabalho realizado (ex. por hectare desmatado). Entretanto, ao chegarem ao local, os trabalhadores percebem que a realidade é outra. Eles são obrigados a pagar um preço superfaturado pelo alojamento, mesmo que em condições

31 CAVALCANTI, Thiago Muniz. Estudos Aprofundados Ministério Público do Trabalho. Vol.3. Bahia. Ed. JusPodivm, 2017, O Trabalho Escravo entre a Arte e a Realidade: a Necessária Superação da Perspectiva Hollywoodiana, p. 244. 32 ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. As boas práticas da inspeção do trabalho no Brasil: a erradicação do trabalho análogo ao de escravo. Disponível em: <http://www.oitbrasil.org.br/sites/default/files/topic/labour_inspection/pub/trabalho_escravo_inspecao_279.pdf>. Acesso em: 12/03/2018.

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desumanas, e pela alimentação, mesmo que inadequada, além dos custos do transporte e dos instrumentos de trabalho. Os trabalhadores geralmente não recebem uma especificação das despesas pelas quais devem pagar, e nem mesmo tem conhecimento de quanto ainda devem. Esta prática é conhecida como ‘política do barracão’ ou ‘truck system’. Ainda que a imputação da dívida seja fraudulenta, muitos trabalhadores são moralmente coagidos a saudá-la; Retenção de documentos: os documentos dos trabalhadores frequentemente são retidos durante o período da prestação do serviço; Isolamento físico: em grande parte dos casos, o local de trabalho é de difícil acesso e distante de núcleos urbanos, o que dificulta a fuga do trabalhador; Vigilância ostensiva: em alguns casos há presença de guardas armados que ameaçam os trabalhadores e aplicam punições físicas. As condições degradantes, por sua vez, são caracterizadas por uma combinação dos seguintes elementos: Alojamento: os trabalhadores são comumente alojados em barracas precárias de lona ou de folhas de palmeiras no meio da mata, expostos a uma série de riscos; Susceptibilidade a doenças: principalmente na fronteira agrícola, onde se encontra o maior foco de trabalho análogo ao de escravo, há um alto índice de doenças tropicais, como a malária e a febre amarela, além de elevada incidência de outras doenças menos comuns em outras regiões, como a tuberculose. Quando ficam doentes, muitos trabalhadores não recebem atendimento médico; Condições de saneamento: este item se refere tanto à precariedade das condições sanitárias (ausência de instalações sanitárias, por exemplo), quanto ao não fornecimento de água potável. Alimentação: insuficiente para atender às necessidades calóricas dos trabalhadores, e em condições inadequadas de conservação. Remuneração inadequada e salários atrasados: mesmo quando não há escravidão por dívida, caso no qual os trabalhadores não recebem salário em espécie, é comum receberem menos do que o acordado, terem seus salários retidos ou pagos com atraso; Maus tratos e violência: são comuns os relatos de humilhação pública, ameaças e até violência física contra os trabalhadores;

Destaque-se, por oportuno, que a alteração legislativa em tela representa um

avanço na proteção do ser humano trabalhador, materializando-se como norma

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36

paradigma e inovadora não só no ordenamento pátrio, como também na

comunidade internacional, superando os tipos consagrados pela OIT, ONU e OEA

em suas declarações e convenções.

A consagração do dispositivo penal é consequência de sua avançada sintonia

com a moderna concepção de trabalho escravo pautada na noção de escravidão

contemporânea como um conceito dinâmico, que se altera de acordo com os povos,

os tempos e suas conjunturas sociais, econômicas e políticas.

O tipo previsto no art.149 do Código Penal brasileiro, preserva a ideia

relacional e não estática de condição análoga à escravidão, o que pressupõe cotejar

as condições existenciais do trabalhador sujeito a tais condições com uma pessoa

livre, em dado contexto histórico.

Com base nessa concepção, a norma penal em comento efetiva o

entendimento concebido no plano internacional de proteção de direitos humanos, no

sentido de desvincular a noção de escravidão de mero aprisionamento físico. Mais

que essa condição física, a escravidão contemporânea está relacionada, outrossim,

com a degradância, indignidade e a coisificação da pessoa.

Bem por isso, a norma é consagrada com louvor na comunidade

internacional, pois amplia o escopo de configuração da sujeição à condição análoga

à escravidão, ao encontro do consenso que se estatuiu no sentido de que “a

escravidão moderna, ou trabalho análogo à escravidão, significa coisificar o ser

humano em uma relação de trabalho, retirando dele sua dignidade por meio da

privação de liberdade, do endividamento, da coação, da submissão à jornada

extenuante ou a condições de trabalho que firam direitos humanos básicos do

trabalhador”33.

No particular, pertinente mencionar a conjuntura político-social de introdução

da mencionada Lei 10.803/2003, que modificou o art.149, do Código Penal:

No ano de 1994, o Estado brasileiro foi denunciado pelas Organizações não

Governamentais Américas Watch e Centro pela Justiça e o Direito Internacional

(CEJIL) na Corte Interamericana de Direitos Humanos, por graves violações de

direitos humanos, no paradigmático Caso José Pereira, vítima de trabalho escravo,

na Zona Sul do Estado do Pará.

33 CAVALHEIRO, Ruy Fernando Gomes Leme. Procurador do Trabalho. Mestre e Especialista em Direito. Especialista em Filosofia e História da Ciência. Curso Ênfase, regular 2017. Aulas 41 e 42.

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37

De acordo com o relatório nº 95/03, do caso 11.289 da Comissão

Interamericana de Direitos Humanos34, as referidas peticionárias sustentaram que o

Brasil violou os artigos I (direito à vida, à liberdade, à segurança e integridade

pessoal), XIV (direito ao trabalho e a uma justa remuneração) e XXV (direito à

proteção contra a detenção arbitrária) da Declaração Americana sobre Direitos e

Obrigações do Homem (doravante denominada a Declaração); e os artigos 6

(proibição de escravidão e servidão); 8 (garantias judiciais) e 25 (proteção Judicial),

em conjunção com o artigo 1(1), da Convenção Americana sobre Direitos Humanos

(doravante denominada a Convenção).

Aduziu-se na ocasião, que José Pereira, à época com 17 (dezessete) anos de

idade, foi gravemente ferido, e que outro trabalhador rural foi morto quando ambos

tentaram escapar, em 1989, da Fazenda “Espírito Santo”, para onde tinham sido

atraídos com falsas promessas sobre condições de trabalho, e terminaram sendo

submetidos a trabalhos forçados, sem liberdade para sair e sob condições

desumanas e ilegais, situação que sofreram juntamente com 60 outros

trabalhadores dessa fazenda.

Ainda de acordo com o relatório, as peticionárias advogaram que os fatos

denunciados constituem um exemplo da falta de proteção e garantias do Estado

brasileiro, ao não responder adequadamente as denúncias sobre essas práticas

que, segundo elas, eram comuns nessa região, e permitir, de fato, sua persistência.

Alegou-se também desinteresse e ineficácia nas investigações e nos processos

referentes aos assassinos e os responsáveis pela exploração trabalhista.

Em 24 de fevereiro de 1999, a Comissão aprovou um relatório, no qual

declarou o caso admissível e, no mérito, concluiu que o Estado brasileiro era

responsável por violações à Declaração Americana sobre os Deveres e Direitos do

Homem, e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Neste relatório, a

Comissão efetuou recomendações pertinentes ao Estado.

Em 24 de março de 1999, o mencionado relatório foi enviado ao Brasil, com

um prazo de dois meses para que este cumprisse com as respectivas

recomendações formuladas pela CIDH.

34 COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Relatório nº 95/03. Caso 11.289 – Solução amistosa José Pereira. Disponível em: <https://cidh.oas.org/annualrep/2003port/Brasil.11289.htm>. Acesso em: 06/01/2018.

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38

Em 18 de setembro de 2003, as peticionárias e o Estado brasileiro assinaram

um acordo de solução amistosa, no qual o Estado reconheceu a responsabilidade

internacional e estabeleceu uma série de compromissos relacionados com o

julgamento e punição dos responsáveis. Entre os ajustes, se estabeleceu medidas

pecuniárias de reparação, medidas de prevenção, modificações legislativas,

medidas de fiscalização e punição ao trabalho escravo, e medidas de

conscientização contra o trabalho escravo.

Já à época da denúncia, as peticionarias sustentaram que o caso José

Pereira e de seus companheiros não se tratava de caso isolado. Apontaram que no

biênio 1992-93 (anos imediatamente anteriores à denúncia), a Comissão Pastoral da

Terra (CPT), Organização de direitos humanos da Igreja Católica, registrou 37 casos

de fazendas onde imperava o trabalho em condições de escravidão, que afetavam

31.426 trabalhadores.

Nos termos da denúncia, trabalhadores agrícolas sazonais estão mais

suscetíveis a tais condições de trabalho. Geralmente são recrutados atraídos por

promessas fraudulentas, transportados para fazendas distantes de seu lugar de

residência, retidos contra sua vontade mediante violência e endividamento e

obrigados a trabalhar em condições desumanas. Muitos destes trabalhadores são

agricultores pobres e analfabetos ou “sem terra”, provenientes dos Estados do

Nordeste do Brasil, onde as possibilidades de trabalho são mínimas.

Entre os métodos utilizados apontados no relatório, para privar-lhes

efetivamente a liberdade, lança-se mão da violência pura e simples, mediante um

esquema de endividamento resultante de verdadeira armadilha. Apenas após

chegarem às fazendas constatam que as promessas pré-contratuais são falsas e

que as condições de trabalho não correspondem ao acordado. Além disso, são

informados da condição de devedores pelos gastos efetuados com transporte,

comida e habitação, tanto durante a viagem quanto no seu lugar de trabalho.

Quando descobrem o ardil, já é tarde, pois não podem deixar a fazenda nem deixar

de trabalhar, até que paguem suas “dívidas”. Denunciou-se ameaças de morte aos

que investissem na tentativa de fuga, relatando-se casos de trabalhadores que

trabalhavam sob a mira de pistoleiros armados, sem contar com a estratégica

localização das fazendas, distantes de qualquer tipo de transporte para dificultar

fugas e denúncias.

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39

Destacou-se na denúncia a impunidade e cumplicidade do Estado, visto que

apesar de estar aumentando à época as situações de trabalho escravo e as

correspondentes denúncias, nenhum agente de contratação, capataz ou proprietário

de fazendas havia sido condenado apesar da violência extrema que caracterizou

essas violações. Alegaram as peticionantes que era muito comum que os

trabalhadores que tentavam escapar fossem assassinados ou agredidos, e citaram

vários exemplos.

Considerando que o caso José Pereira é ilustrativo de prática mais geral de

trabalho “escravo” ante a omissão estatal em promover garantias judiciais e

segurança no trabalho, o acordo de solução amistosa celebrado em 18 de setembro

de 2003 entre o Estado brasileiro, representado pela Secretaria Especial de Direitos

Humanos da Presidência da República, e as peticionárias, representadas pelo

“Centro pela Justiça e o Direito Internacional/Brasil, e pela Comissão Pastoral da

Terra, impulsionou o Brasil a enfrentar com maior empenho a temática do trabalho

escravo contemporâneo no contexto doméstico.

Outrossim, já partir da denúncia do Estado brasileiro, em 1994, na Corte

Interamericana de Direitos Humanos, verificou-se inovações nas práticas de

enfrentamento no país, adotando-se mecanismos internos legais e administrativos

para prevenção e combate da redução do ser humano trabalhador à condição

análoga à escravidão. Senão vejamos alguns:

Grupo Especial Móvel de Fiscalização do Ministério do Trabalho e

Emprego (GEFM): criado em 1995, o objetivo do Ministério do Trabalho e Emprego

através desse instrumento, é erradicar o trabalho escravo e degradante, por meio de

ações fiscais coordenadas pela Secretaria de Inspeção do Trabalho, nos focos

previamente mapeados. A inspeção do trabalho visa regularizar os vínculos

empregatícios dos trabalhadores encontrados e demais consectários e libertá-los da

condição de escravidão35.

A operação precursora sob a responsabilidade do GEFM foi realizada no

período de 15 a 19 de maio de 1995, em carvoarias do estado do Mato Grosso do

Sul, nos municípios de Ribas do Rio Pardo, Água Clara e Brasilândia. Atuaram

35 MINISTÉRIO DO TRABALHO. Combate ao Trabalho em Condições Análogas às de Escravo. Disponível em: <http://trabalho.gov.br/fiscalizacao-combate-trabalho-escravo>. Acesso em: 13/01/2018.

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nessa operação auditores fiscais do trabalho, procuradores do Ministério Público do

Trabalho e um rerepresentante da Comissão Pastoral da Terra do estado do Mato

Grosso do Sul. Constatou-se por ocasião da atuação Grupo:

(...) A título de exemplo, tem-se que os trabalhadores laboravam sem o devido registro; sem o fornecimento de alojamentos, sendo obrigados a manter moradia em "barracos de lona; sem instalações sanitárias, fazendo as necessidades básicas de excreção no mato, ao redor do acampamento; sem água potável". Em decorrência dessa constatação, foram lavrados 81 autos de infração e expedidas notificações para que os empregadores autuados regularizassem as situações dos trabalhadores36. Original sem destaque.

A constituição do GEFM no combate à degradância e indignidade nas

relações de trabalho representou um avanço nas políticas públicas afetas à matéria,

considerando-se especialmente que no contexto em que se estabeleceu (1995), a

noção de trabalho escravo era limitada à impossibilidade física de locomoção com

escoro na originária redação do art.149, do Código Penal.

O dispositivo supra não incluía em seus núcleos o trabalho forçado, jornada

exaustiva, condições degradantes e restrição de locomoção em razão de dívida

contraída com o empregador ou preposto, como formas de "trabalho escravo",

noções introduzidas no ordenamento somente em 2003, com o advento da Lei

10.803/2003, conforme oportunamente explanado.

Promulgação da Lei 9.777/98 que alterou o art.203 do Código Penal: a

inovação legislativa agravou o preceito secundário do tipo penal “Frustrar, mediante

fraude ou violência, direito assegurado pela legislação do trabalho”, capitulado nos

Crimes contra a Organização do Trabalho, atribuindo pena de “detenção de um ano

a dois anos, e multa, além da pena correspondente à violência”.

Ademais, acrescentou os §§1º e 2º no dispositivo, nestes termos:

(...) § 1º Na mesma pena incorre quem:

I - obriga ou coage alguém a usar mercadorias de determinado estabelecimento, para impossibilitar o desligamento do serviço em virtude de dívida;

36 LYRA, Alexandre Rodrigo T. da C. O enfrentamento do trabalho em condição análoga à de escravo. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142014000200015>. Acesso em: 20/01/2018.

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II - impede alguém de se desligar de serviços de qualquer

natureza, mediante coação ou por meio da retenção de seus documentos pessoais ou contratuais. § 2º A pena é aumentada de um sexto a um terço se a vítima é menor de dezoito anos, idosa, gestante, indígena ou portadora de deficiência física ou mental.

Proposta de Emenda Constitucional 438 do Trabalho Escravo (2001):

apresentada pelo Senado Federal em 01 de novembro de 2001, foi transformada na

Emenda Constitucional 81 de 05 de junho de 2014 e conferiu nova redação ao

art.243 da Constituição Federal, que dispõe sobre a expropriação de imóveis onde

forem localizados a exploração de trabalho escravo, na forma da lei.

Nos termos do aludido dispositivo constitucional:

(...) “as propriedades rurais e urbanas de qualquer região do País onde forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas ou a exploração de trabalho escravo na forma da lei serão expropriadas e destinadas à reforma agrária e a programas de habitação popular, sem qualquer indenização ao proprietário e sem prejuízo de outras sanções previstas em lei, observado, no que couber, o disposto no art. 5º. Parágrafo único. Todo e qualquer bem de valor econômico apreendido em decorrência do tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e da exploração de trabalho escravo será confiscado e reverterá a fundo especial com destinação específica, na forma da lei”.

O fundamento para alteração constitucional assenta-se na função social da

propriedade, direito fundamental do Estado Democrático de Direito, nos termos do

art. 5º, XXIII, da CF/88.

Com base nessa premissa, a propriedade privada não pode ser utilizada

como instrumento de opressão e submissão de pessoas para aumentar

competitividade e obtenção de lucro.

O trabalho em condições análogas à escravidão é, como exaustivamente

exposto, grave violação de direitos humanos, e o confisco da propriedade onde

ocorre esse crime é medida que concorre para o combate de todas as formas de

escravidão de sua configuração.

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Segundo dados do Portal do Ministério Público do Trabalho37, a constatação

de trabalho forçado em propriedade fiscalizada e o consequente desvirtuamento da

função social da propriedade desencadeiam processos de desapropriação do imóvel

pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), observadas as

Portarias nº 101, de 12/1/96, do MTE, a Lei nº 8.629/93 e a Lei Complementar nº 76,

de 6/6/93.

Os responsáveis pela exploração são demandados na Justiça do Trabalho

para ressarcimento dos danos aos trabalhadores e pagamento das verbas

contratuais. Também podem ser acionados na esfera criminal pelo Ministério Público

Federal ou pelo Ministério Público Estadual. A possibilidade está prevista no artigo

149 (reduzir alguém à condição análoga a de escravo – pena de reclusão de dois a

oito anos), no artigo 197 e seguintes, especialmente os artigos 203 e 207 (crimes

contra organização do trabalho), todos do Código Penal.

Extensão do seguro-desemprego aos resgatados em situação análoga à

escravidão (2002):

Previsto pela Lei n.10.608, de 20 de dezembro de 2002, que inseriu na Lei do

Seguro-Desemprego, Lei n.7.998/1990, o Art. 2º-C, que dispõe sobre a extensão do

benefício aos trabalhadores resgatados (submetidos ao "trabalho escravo" e

afastados do ambiente pela intervenção da Inspeção do Trabalho). Nos termos da

norma:

Art. 2º-C - O trabalhador que vier a ser identificado como submetido a regime de trabalho forçado ou reduzido a condição análoga à de escravo, em decorrência de ação de fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego, será dessa situação resgatado e terá direito à percepção de três parcelas de seguro-desemprego no valor de um salário mínimo cada, conforme o disposto no § 2º deste artigo.

O direito conferido pela legislação compõe o conjunto de políticas para

reinserção social dos trabalhadores resgatados da condição análoga de escravos,

em situação de alta vulnerabilidade socioeconômica. A medida concorre, outrossim,

para romper o ciclo vicioso do trabalhado escravo contemporâneo que, não raro,

37 MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO. Trabalho escravo. Disponível em: <http://portal.mpt.mp.br/wps/portal/portal_mpt/mpt/area-atuacao/trabalho+escravo>. Acesso em: 30/01/2018.

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43

envolve as seguintes etapas: aliciamento e migração; trabalho escravo; fuga ou

fiscalização liberatória; pagamento de direitos; vulnerabilidade socioeconômica e;

sujeição para o retorno de aliciamento e migração38.

Plano nacional para a erradicação do trabalho escravo: vigora desde 2008

o 2º Plano, tendo sido o primeiro formulado em 2003. Trata-se de documento

elaborado pela Comissão Especial do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa

Humana (CDDPH), constituída pela Resolução 05/2002 do CDDPH e que reúne

esforços de entidades e autoridades nacionais ligadas ao tema. O Plano Nacional

para a Erradicação do Trabalho Escravo atende às determinações do Plano

Nacional de Direitos Humanos e expressa uma política pública de Estado,

permanente que deverá ser fiscalizada por um órgão ou fórum nacional dedicado à

repressão do trabalho escravo39

Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo: criada pelo

Decreto sem número, de 31 de julho de 2003. É vinculada à Secretaria de Direitos

da Presidência da República, cujo objetivo é coordenar e avaliar a implementação

das ações previstas no Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo.

Também compete à Comissão acompanhar a tramitação de projetos de lei no

38 YOUTUBE. Ciclo do trabalho escravo contemporâneo. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=OWFQRQ1GTpE>. Acesso em 20/01/2018. 39 MINISTÉRIO DO TRABALHO. Plano Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo. Disponível em: <http://trabalho.gov.br/fiscalizacao-combate-trabalho-escravo/plano-nacional-para-erradicacao-do-trabalho-escravo>. Acesso em 21/01/2018.

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Congresso Nacional e avaliar a proposição de estudos e pesquisas sobre o trabalho

escravo no país40.

Sem embargo das mencionadas normas implementadas no ordenamento

pátrio com escopo no combate e prevenção ao trabalho em condições análogas à

escravidão, a celebração do acordo de solução amistosa, celebrado em 18 de

setembro de 2003 entre o Estado brasileiro e a Corte Interamericana de Direitos

Humanos, potencializou a criação de novos instrumentos jurídicos, ilustrativamente a

seguir aduzidos.

Cadastro de Empregadores que tenham Submetido Trabalhadores a

Condições Análogas às de Escravo – Lista Suja do Trabalho Escravo (2004):

considerando que o combate às formas de escravidão contemporânea são de

interesse prioritário enquanto política de Estado e que o ordenamento jurídico

brasileiro proíbe a escravidão sob todas as suas formas, inclusive com repressão

criminal, o cadastro objetiva dar publicidade aos nomes de empregadores infratores,

traduzindo-se em importante mecanismo de combate ao trabalho escravo, de cunho

preventivo e moralizante.

A publicidade dos infratores desse direito, é, outrossim, como bem aponta a

Recomendação nº2, de 10 de março de 2017, do Conselho Nacional dos Direitos

Humanos, instrumento de enfrentamento ao desempenho de qualquer trabalho

análogo à escravidão, na medida em que funciona como meio de denúncia de

violações de direitos humanos, impacta na imagem reputacional dos empregadores

que se beneficiam dessa prática de concorrência desleal, diretamente e ao longo de

suas respectivas cadeias produtivas, atingindo suas relações comerciais e de

investimento, além de incentivar o consumo consciente41;

Salienta-se que a inclusão do empregador na Lista Suja do Trabalho Escravo

é posterior à oportunidade de exercício do contraditório e ampla defesa, de sorte que

somente após o esgotamento do processo na via administrativa sem êxito na

pretensão do empregador, é que haverá a publicidade no cadastro. 40 MINISTÉRIO DOS DIREITOS HUMANOS. Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo. Disponível em: <http://www.mdh.gov.br/assuntos/conatrae/programas/comissao-nacional-para-a-erradicacao-do-trabalho-escravo>. Acesso em: 21/01/2018. 41 MINISTÉRIO DOS DIREITOS HUMANOS. Recomendação nº 2, de 2017. Disponível em: <http://www.mdh.gov.br/sobre/participacao-social/cndh/recomendacoes-1/recomendacao-cndh-02-2017/view>. Acesso em: 21/01/2018.

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Neste sentido, preconiza o art.2º da Portaria Interministerial do Ministério do

Trabalho e Emprego nº 02 de 12 de maio de 2011;

Art. 2º - A inclusão do nome do infrator no Cadastro ocorrerá após decisão administrativa final relativa ao auto de infração, lavrado em decorrência de ação fiscal, em que tenha havido a identificação de trabalhadores submetidos a condições análogas à de escravo42.

Isso posto, considerando que o combate à prática de todas as formas

análogas à escravidão exige um esforço conjugado de toda sociedade, legítimo que

esta tenha conhecimento dos resultados das fiscalizações e dos respectivos

infratores.

Ademais, as ações de resgate de trabalhadores submetidos a condições que

configuram escravidão moderna desenvolvem-se por meio de procedimentos

administrativos, regidos, em regra, pelas normas constitucionais da moralidade e

publicidade, nos termos do art.37, caput, da CF.

Ainda com assento na Constituição da República, o acesso à informação é

direito fundamental, consoante preconiza o art.5º, inciso XXXIII. Aduz o dispositivo

que “todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse

particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob

pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à

segurança da sociedade e do Estado”43.

A garantia de obtenção das informações não apenas para interesse particular,

mas, ainda, para o coletivo ou geral, traduz-se em instrumento de garantia de defesa

da cidadania, amparada no Estado Democrático de Direito (art.1º, caput, CF).

A Lei 12.527/2011 regulamenta o acesso a informações previsto no inciso

XXXIII do art. 5º, da CF, dispondo em seu art.1º, parágrafo único, inciso I, que os

órgãos públicos integrantes da administração direta dos Poderes Executivo,

Legislativo, incluindo as Cortes de Contas, e Judiciário e do Ministério Público,

subordinam-se ao regime desta Lei, evidenciando de maneira cristalina que os atos

Ministeriais estão abrangidos pelo seu alcance.

42 NORMAS LEGAIS. Portaria Interministerial MTE/SEDH nº 2, de 2011. Disponível em: <http://www.normaslegais.com.br/legislacao/portariainter_mtesedh02_2011.htm>. Acesso em: 21/01/2018. 43 PLANALTO. Constituição Federal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 21/01/2018.

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Interessante destacar que nos termos da referida Lei, a observância do

princípio da publicidade é regra que se impõe, sendo diretriz da norma a divulgação

de informações de interesse público, independentemente de solicitações. Vejamos:

(...) Art. 3º - Os procedimentos previstos nesta Lei destinam-se a assegurar o direito fundamental de acesso à informação e devem ser executados em conformidade com os princípios básicos da administração pública e com as seguintes diretrizes: I - observância da publicidade como preceito geral e do sigilo como exceção; II - divulgação de informações de interesse público, independentemente de solicitações; III - utilização de meios de comunicação viabilizados pela tecnologia da informação; IV - fomento ao desenvolvimento da cultura de transparência na administração pública; V - desenvolvimento do controle social da administração pública44. Original sem grifos.

Demais disso, nos termos do art.6º, inciso I, da mesma Lei 12.527/11, cabe

aos órgãos e entidades do poder público assegurar a “gestão transparente da

informação, propiciando amplo acesso a ela e sua divulgação”.

Outrossim, o art.7º, II complementa, determinando que o acesso à informação

de que dispõe a Lei, inclui o direito de “obter informação contida em registros ou

documentos, produzidos ou acumulados por seus órgãos ou entidades, recolhidos

ou não a arquivos públicos”.

Este direito também compreende a informação relativa à “implementação,

acompanhamento e resultados dos programas, projetos e ações dos órgãos e

entidades públicas, bem como metas e indicadores propostos” e; “ao resultado de

inspeções, auditorias, prestações e tomadas de contas realizadas pelos órgãos de

controle interno e externo, incluindo prestações de contas relativas a exercícios

anteriores” (art.7º, VII, “a” e “b”). Original sem grifos.

Por derradeiro, convém destacar que a Lei em comento, dada a relevância

acerca do tema, repisa no art.8º, a diretriz delineada no art.3º, II, no sentido de que a

44 PLANALTO. Lei nº 12.527, de 2011. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/l12527.htm>. Acesso em 21/01/2018.

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divulgação da informação por órgãos da administração pública é regra que se

impõe, independentemente de solicitação. Senão, vejamos:

“Art. 8º - É dever dos órgãos e entidades públicas promover, independentemente de requerimentos, a divulgação em local de fácil acesso, no âmbito de suas competências, de informações de interesse coletivo ou geral por eles produzidas ou custodiadas”. Original sem grifos.

Posto isto, a divulgação do cadastro de empregadores que tenham submetido

trabalhadores a condições análogas às de escravo é medida que se impõe em um

Estado Democrático de Direito, vez que a busca pela real liberdade do ser humano

trabalhador passa pela repressão ao ilícito através dos mais variados instrumentos

ao alcance do Poder Público.

Formalização do Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo

(2005): voltado para gestão empresarial das cadeias produtivas, traduz-se no

compromisso assumido por empresas brasileiras e multinacionais de não contratar

com quem explora o trabalho escravo.

Composto pelo Instituto Ethos, o Instituto Observatório Social (IOS), a

Organização Internacional do Trabalho (OIT) e a ONG Repórter Brasil, o acordo que

visa repelir a utilização de qualquer trabalho escravo na cadeia produtiva de

produtos e serviços, pune os signatários descumpridores dos compromissos, sendo

as empresas publicamente afastadas, além de sujeição a sanções comerciais45.

Em 2013, visando o melhor gerenciamento, fortalecimento e expansão do

acordo, o Comitê Gestor do Pacto criou o Instituto Pacto Nacional pela Erradicação

do Trabalho Escravo - InPACTO.

Quanto à adesão, no início de 2014, o Pacto já contava com mais de 400

signatários que assumiram o compromisso de cortar relações comerciais com

agentes econômicos envolvidos na exploração criminosa de mão de obra escrava e,

juntos, representavam mais de 35% do PIB brasileiro46.

45 SENADO FEDERAL. Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo. Disponível em: <https://www.senado.gov.br/noticias/Jornal/emdiscussao/trabalho-escravo/ongs-contra-o-trabalho-escravo/pacto-nacional-pela-erradicacao-do-trabalho-escravo.aspx>. Acesso em: 18/02/2018. 46 ETHOS. Instituto Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo. Disponível em: <https://www3.ethos.org.br/conteudo/projetos/apoiados/pacto-nacional-pela-erradicacao-do-trabalho-escravo/#.Wol9F66nHIU>. Acesso em: 18/02/2018.

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Todas essas medidas administrativas demonstram o empenho do Estado

brasileiro na prevenção e combate a todas as formas de escravidão contemporânea,

após, pela primeira vez reconhecer expressamente a existência de trabalho escravo

em seu território, no processo junto à Comissão Interamerica de Direitos Humanos,

na solução amistosa no Caso José Pereira.

As medidas concorrem para superação do crime do emprego de mão de obra

escrava, porém, cabe às autoridades, articuladas com todos os atores sociais

envolvidos com a questão, buscar a efetivação de tais instrumentos para que o

Brasil deixe de figurar como telespectador da ocorrência desta prática criminosa

essencialmente violadora dos direitos humanos.

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2. DA ATUAÇÃO DE ÓRGÃOS ESTATAIS AUTÔNOMOS E GOVERNAMENTAIS

NO COMBATE A TODAS AS FORMAS DE ESCRAVIDÃO MODERNA

2.1 Da Atuação do Ministério Público do Trabalho

O Ministério Público é órgão extrapoder, de natureza constitucional que

compõe a estrutura organizacional do Estado, definido como instituição permanente,

essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe precipuamente a defesa

da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais

indisponíveis (CF/1988, art.127).

Possui independência funcional e administrativa (CF/1988, art.127, §2º), além

da unidade, indivisibilidade e independência funcional, como princípios norteadores

de sua atuação (CF/1988, art.127, §1º).

Quanto ao escopo maior da instituição, oportuno o magistério de Celso Ribeiro

Bastos citado por Carlos Henrique Bezerra Leite47:

O Ministério Público tem a sua razão de ser na necessidade de ativar o Poder Judiciário, em pontos em que este remanesceria inerte porque o interesse agredido não diz respeito a determinadas pessoas, mas a toda coletividade. Mesmo com relação aos indivíduos, é notório o fato de que a nossa ordem jurídica por vezes lhe confere direitos sobre os quais não podem dispor. Surge daí a clara necessidade de um órgão que zele tanto pelos interesses da coletividade quanto pelos dos indivíduos, estes apenas quando indisponíveis. Trata-se, portanto, de instituição voltada ao patrocínio desinteressado de interesses públicos, assim como de privados, quando merecem especial tratamento do ordenamento jurídico. (original sem destaque).

No que se refere à organização interna do Ministério Público, meramente

administrativa e não orgânica, tem-se que o Ministério Público da União

compreende: a) o Ministério Público Federal; b) o Ministério Público do Trabalho; c)

o Ministério Público Militar; d) o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios; e

os Ministérios Públicos dos Estados (CF/1988, art.128).

47 LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Ministério Público do Trabalho: doutrina, jurisprudência e prática. 6ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 34.

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De especial relevância aos objetivos deste trabalho, o Ministério Público do

Trabalho - MPT é ramo especializado do Ministério Público da União e funciona

processualmente nas causas de competência da Justiça do Trabalho.

Quantos às formas de atuação do MPT, são inúmeras suas atribuições, sendo,

entretanto, possível, sintetizar duas frentes: a atuação judicial e a atuação

extrajudicial (esfera administrativa).

A LC 75/93, que dispõe sobre a organização e atribuições do Ministério Público

da União, dedica o capítulo II do Título II ao Ministério Público do Trabalho, dispondo

entre outras previsões, a delimitação específica da atuação do MPT no âmbito

judicial, consoante art.83.

Em sua atuação judicial, o Ministério Público do Trabalho poderá fazê-lo na

condição de parte (órgão agente), ou de fiscal da ordem jurídica (custos legis ou

órgão interveniente). Como órgão agente destaca-se sua atuação na ação civil

pública, a ação civil, a ação anulatória de cláusulas de contrato, acordo coletivo ou

convenção coletiva, a ação rescisória e o dissídio coletivo no caso de greve em

atividades essenciais lesivas ao interesse público.

Já na esfera extrajudicial, o órgão ministerial pode promover a abertura de

inquérito civil, seu principal instrumento investigatório, instituído pela Lei 7.347/85

(Lei da Ação Civil Pública), assim como, o entabulamento de TAC’s - Termos de

Ajustamento de Conduta, para adequação da conduta de infratores.

Entretanto, de rigor mencionar que o entendimento que prevalece

doutrinariamente é que a referida divisão na atuação judicial ministerial é meramente

didática, dado que a partir das Leis Complementares 73/93 e 75/93 o Ministério

Público volta-se indistintamente à defesa de interesses indisponíveis do indivíduo e

da sociedade e ao zelo dos interesses sociais, coletivos e difusos, vedada sua

atuação fora da vocação institucional48.

Entre as principais áreas de atuação institucional do MPT em defesa da

ordem jurídico-trabalhista, o órgão tem priorizado a erradicação do trabalho escravo

ou forçado, tendo sido criada por meio da Portaria PGT n.231/2002 de 12 de

setembro de 2002, a Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo –

CONAETE, que tem como objetivo integrar as Procuradorias Regionais do Trabalho

48 MAZZILI, Hugo Nigro citado em LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Ministério Público do Trabalho: doutrina, jurisprudência e prática. 6ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 119.

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em plano nacional, uniforme e coordenado, para o combate ao trabalho escravo,

fomentando a troca de experiências e discussões sobre o tema, bem como a

atuação ágil onde necessária se faça a presença do Ministério Público do Trabalho.

As principais áreas de atuação da Coordenadoria são: combate ao trabalho

em condições análogas às de escravo; investigações de situações nas quais os

obreiros são submetidos a trabalho forçado; servidão por dívidas; jornadas

exaustivas e condições degradantes de trabalho - alojamento precário, água não

potável, alimentação inadequada, desrespeito às normas de segurança e saúde do

trabalho, falta de registro, maus tratos e violência49.

Visando conferir efetividade ao planejamento de atuação uniforme e

harmoniosa, a CONAETE formula Orientações, seis até a conclusão do presente

estudo, das quais três especialmente, determinam a definição, alcance e

interpretação dos tipos penais arrolados pelo art.149 do Código Penal, referentes à

condição análoga à de escravo; jornada exaustiva e condições degradantes de

trabalho. Vejamos o teor das mencionadas Orientações50:

ORIENTAÇÃO N.03: “Jornada de trabalho exaustiva é a que, por circunstâncias de intensidade, frequência, desgaste ou outras, cause prejuízos à saúde física ou mental do trabalhador, agredindo sua dignidade, e decorra de situação de sujeição que, por qualquer razão, torne irrelevante a sua vontade”.

ORIENTAÇÃO N.04: “Condições degradantes de trabalho são as que configuram desprezo à dignidade da pessoa humana, pelo descumprimento dos direitos fundamentais do trabalhador, em especial os referentes a higiene, saúde, segurança, moradia, repouso, alimentação ou outros relacionados a direitos da personalidade, decorrentes de situação de sujeição que, por qualquer razão, torne irrelevante a vontade do trabalhador”.

ORIENTAÇÃO N.05: “Trabalho em condições análogas às de escravo. Violação à dignidade da pessoa humana e ao patrimônio ético-moral da sociedade, ensejando danos morais individuais e coletivos. Responsabilização do explorador. A exploração do trabalho em condições análogas às de escravo ofende não somente a direitos individuais do lesado, mas também e, fundamentalmente, aos

49 MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO. Trabalho escravo. Disponível em: <http://portal.mpt.mp.br/wps/portal/portal_mpt/mpt/area-atuacao/trabalho+escravo>. Acesso em: 30/01/2018. 50 MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO. Portaria nº 231, 2002. Disponível em: <http://portal.mpt.mp.br/wps/wcm/connect/portal_mpt/e346715f-5885-48a0-af9c-3800148803ba/Orienta%C3%A7%C3%B5es+-+Conaete.pdf?MOD=AJPERES&CVID=lTxWe4j>. Acesso em 03/03/2018.

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interesses difusos de toda a sociedade brasileira. Tratando-se de grave violação à dignidade da pessoa humana e ao patrimônio ético-moral da sociedade, o Membro do Ministério Público Trabalho, observadas as peculiaridades do caso concreto, promoverá a responsabilização do explorador mediante a celebração de Termo de Ajustamento de Conduta e /ou a propositura de Ação Civil Pública, ambos os instrumentos contendo obrigação de ressarcimento dos danos morais individuais e/ou coletivos”.

Outrossim, a atuação coordenada inclui a participação do MPT nos grupos

móveis, GEFM – Grupo Especial de Fiscalização Móvel, ligado à Secretaria de

Inspeção do Trabalho (SIT) do Ministério do Trabalho e Emprego, oportunamente

referenciado neste trabalho no tema atinente às ações governamentais de combate

e prevenção às condições análogas à escravidão após denúncia do Estado

brasileiro na Comissão Interamericana de Direitos Humanos, em 1992, em razão a

graves violações de direitos humanos no caso José Pereira, vítima de trabalho

escravo.

Acerca da atuação nos grupos móveis, a CONAETE formulou a Orientação

n.01, que dispõe no seguinte sentido:

ORIENTAÇÃO N. 01: “Os Membros do Ministério Público do Trabalho, quando participarem de operações para erradicação do trabalho escravo, deverão atuar de forma coordenada com os demais parceiros, realizando prévia reunião com os representantes dos demais órgãos para definição das prioridades, da forma de abordagem, das atribuições, da divulgação de informações e demais procedimentos a serem adotados na operação”.

A atuação interdisciplinar dos grupos móveis prevê a participação de

diferentes órgãos e instituições públicas e privadas que convergem para a meta

central de extirpar da realidade sociolaboral brasileira a odiosa prática de submeter

trabalhadores a mais vil forma de apropriação do labor humano consubstanciada na

escravidão moderna.

Além da atuação dos procuradores do Ministério Público do Trabalho (MPT)

no GEFM, destaca-se a atuação dos auditores fiscais do trabalho, que coordenam

as operações de campo, agentes e delegados da Polícia Federal (PF) e da Polícia

Rodoviária Federal e membros da Defensoria Pública da União.

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Sem embargo da proteção trabalhista, face à interdisciplinaridade dos Grupos

decorrente de sua atuação conjunta, a ação de fiscalização ocasiona para os

infratores consequências que ultrapassam a dinâmica sociolaboral, alcançando

eventualmente, os planos civil, administrativo e criminal.

Nisso, de rigor trazer à baila o desempenho do MPT na promoção de Termos

de Ajustamento de Condutas – TAC’s e ajuizamento das ações de tutela coletiva.

2.2 Da Atuação do Ministério do Trabalho e Emprego

No âmbito governamental, o Grupo Especial de Fiscalização Móvel constitui

relevante instrumento, ocupando papel destacado no reconhecimento do Brasil

como referência na repressão contra a utilização de mão de obra escrava junto à

Organização Internacional do Trabalho.

Na estrutura organizacional do MTE51, a Secretaria de Inspeção do Trabalho

(SIT/MTE) recebe denúncias por meio de uma rede institucional de parceiros e, com

base nelas, o GEFM conduz operações sigilosas de fiscalização, que são realizadas

majoritariamente no meio rural.

Verificada situação de submissão à condição análoga à de escravo, opera-se

o resgate dos trabalhadores com objetivo principal de assegurar sua segurança e

seus direitos trabalhistas.

Além da eventual responsabilização nas respectivas esferas jurídicas, o MTE

maneja ainda, o Cadastro de Empregadores Infratores, também conhecido como

“Lista Suja”, oportunamente destacado no corpo deste trabalhado quando da

abordagem das medidas adotadas pelo Brasil após denúncia junto à Comissão

Interamericana de Direitos Humanos.

Com efeito, tanto o GEFM, como o cadastro de empregadores

consubstanciado na referida Lista, são medidas resultantes do reconhecimento

oficial do Governo Brasileiro da existência de trabalho em condições análogas à

escravidão em seu território.

51 ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. As boas práticas da inspeção do trabalho no Brasil: a erradicação do trabalho análogo ao de escravo. Disponível em: <http://www.oitbrasil.org.br/sites/default/files/topic/labour_inspection/pub/trabalho_escravo_inspecao_279.pdf>. Acesso em: 12/03/2018.

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Outrossim, apenas para fins de registro e sem a pretensão de

aprofundamento da temática, vale ressaltar que as medidas governamentais

voltadas para a questão social do trabalho escravo não se restringem às sobreditas

práticas de inspeção.

Em suma, vale destacar a evolução cronológica de diversos outros

instrumentos normativos instituídos para o fortalecimento do processo de combate

às formas contemporâneas de escravidão, mencionados em publicação da OIT, em

2010, produzida no âmbito da cooperação técnica entre a Organização Internacional

do Trabalho (OIT) e a Secretaria de Inspeção do Trabalho (SIT) 52.

Especificamente quanto ao Plano Nacional para Erradicação do Trabalho

Escravo, o presente documento foi elaborado pela Comissão Especial do Conselho

de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH), constituída pela Resolução

05/2002 do CDDPH e que reúne entidades e autoridades nacionais atuantes na

temática. O Plano atende às determinações do Plano Nacional de Direitos Humanos

e expressa uma política pública permanente, tendo sua execução monitorada pela

Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo (CONATRAE).53

52 1957: Ratificação pelo Brasil da Convenção nº. 29 sobre o Trabalho Forçado ou Obrigatório (1930) da OIT; 1965: Ratificação pelo Brasil da Convenção nº 105 sobre a Abolição do Trabalho Forçado (1957) da OIT; 1975: Criação da Comissão Pastoral da Terra e com isso, intensificação das primeiras denúncias sobre a existência de trabalho escravo no Brasil; 1995: O governo brasileiro reconhece a existência do trabalho escravo no país; 1995: Criação do Grupo Executivo de Repressão ao Trabalho Forçado (GERTRAF), juntamente com o Grupo Especial de Fiscalização Móvel (GEFM); 2002: Início da execução do Projeto de cooperação técnica “Combate ao Trabalho Forçado no Brasil”, da Organização Internacional do Trabalho; 2003 (março): Lançamento, pelo Presidente da República, do Primeiro Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo, elaborado pela Comissão Especial do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH); 2003 (julho) – Criação da Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo (CONATRAE); 2003 (setembro): Acordo de Solução Amistosa entre o Estado Brasileiro, representado pela Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República, e as peticionárias, representadas pelo Centro pela Justiça e o Direito Internacional, CEJIL-Brasil e a Comissão Pastoral da Terra; 2003 (dezembro): Alteração do artigo 149 do Código Penal Brasileiro, que tipifica o crime de reduzir trabalhador (a) à condição análoga à de escravo; 2004: Criação do Cadastro de Empregadores Infratores (portaria 540/2004 MTE); Constituída pela Resolução no. 05/2002 do CDDPH; 2005: Acordo de cooperação técnica firmado entre o Ministério do Trabalho e Emprego e o Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome, com o objetivo de priorizar a inserção de trabalhadores resgatados no Programa Bolsa Família; 2008: Segundo Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo, elaborado pela CONATRAE. ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. As boas práticas da inspeção do trabalho no Brasil: a erradicação do trabalho análogo ao de escravo. Disponível em: <http://www.oitbrasil.org.br/sites/default/files/topic/labour_inspection/pub/trabalho_escravo_inspecao_279.pdf>. Acesso em: 12/03/2018. 53 MINISTÉRIO DO TRABALHO. Plano Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo. Disponível em: <http://trabalho.gov.br/fiscalizacao-combate-trabalho-escravo/plano-nacional-para-erradicacao-do-trabalho-escravo>. Acesso em 21/01/2018.

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Ademais, diversas outras iniciativas são desenvolvidos no âmbito

governamental54, destacando-se ilustrativamente nesta seara:

O Cadastro de Empregadores, oportunamente referenciado;

O Termo de Cooperação do Trabalho Escravo de 08/11/1994, resultante da

conjugação de esforços entre o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), o

Ministério Público Federal (MPF), o Ministério Público do Trabalho (MPT) e a

Secretaria de Polícia Federal (SPF), com a finalidade de prevenção, repressão e

erradicação de práticas de trabalho forçado, de trabalho ilegal de crianças e

adolescentes, de crimes contra a organização do trabalho e de outras violências aos

direitos à saúde dos trabalhadores, especialmente no ambiente rural.

A sistematização e compilação de Resultados das Operações de Fiscalização

para Erradicação do Trabalho Escravo, cujos dados referentes ao ano de 2016,

atualizados até 13/03/2017, apontam, nos diferentes Estados do Brasil, 115

operações de fiscalização, 191 estabelecimentos inspecionados, 576 contratos de

trabalho formalizados no curso das ações fiscais, 885 trabalhadores resgatados de

condições análogas de escravo, R$ 2.807.347,19 (dois milhões, oitocentos e sete

mil, trezentos e quarenta e sete reais e dezenove centavos) em pagamentos de

indenizações, resultantes de 2.366 autos lavrados55.

De notar com o panorama institucional, a preocupação estatal com a defesa e

proteção do trabalhador em face de sua utilização como mero instrumento na busca

incessante de lucros pelo capital.

Assiste-se uma mudança de paradigma no perfil nas políticas públicas, que a

partir de provocações da comunidade internacional, buscam posicionar a dignidade

do ser humano trabalhador no centro da dinâmica sociolaboral, concretizando

através de diversas medidas o princípio fundante e axiológico do ordenamento

pátrio, traduzido na dignidade humana.

Em arremate, oportuno repisar que o ser humano é um fim em si mesmo e

jamais um meio para atingir determinado fim, repelindo-se com escoro em tal

premissa toda e qualquer forma de coisificação do trabalhador.

54 MINISTÉRIO DO TRABALHO. Resultados das Operações de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo. Disponível em: <http://trabalho.gov.br/fiscalizacao-combate-trabalho-escravo/resultados-das-operacoes-de-fiscalizacao-para-erradicacao-do-trabalho-escravo>. Acesso em: 15/03/2018. 55 Idem.

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56

Com assento nesse pressuposto dever-se-ia se consolidar todas as medidas

estatais de prevenção e combate ao trabalho em condições análogas à escravidão,

de sorte a prestigiar o princípio do não retrocesso social e sempre com vistas a

adaptar o direito ao ser humano e não o ser humano ao direito.

2.3 Da Atuação da Defensoria Pública da União

A Defensoria Pública da União é órgão com previsão constitucional destacada

como função essencial à Justiça, ao lado do Ministério Público e da Advocacia

Pública56.

A instituição é organizada pela LC 80/1994, tendo sua autonomia funcional e

administrativa, assim como iniciativa de sua proposta orçamentária, conferida pela

Emenda Constitucional 74/2013.

Considerando que trabalho escravo não é apenas desrespeito às leis

trabalhistas, mas, sobretudo, grave violação aos direitos humanos, seja na área

rural, seja nas cidades, a DPU milita na temática da escravidão moderna,

participando de vários comitês de combate ao trabalho escravo no país,

concretizando sua atuação por meio do Grupo de Trabalho (GT) de Assistência às

Trabalhadoras e Trabalhadores Resgatados de Situação de Escravidão,

destacando-se ilustrativamente entre as metas do Grupo, a promoção da assistência

aos resgatados; acompanhamento nas ações de fiscalização; estabelecimento de

medidas de prevenção e enfrentamento da questão e fomento do trabalho em rede

integrada 57.

56 Art. 134. A Defensoria Pública é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados, na forma do inciso LXXIV do art. 5º desta Constituição Federal. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 80, de 2014). PLANALTO. Constituição Federal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 21/01/2018. 57 Art. 3°. Além das atribuições previstas no art. 2º, caberá aos Grupos de Trabalho: V – Ao Grupo de Trabalho de Assistência as Trabalhadoras e Trabalhadores Resgatados de Situação de Escravidão: 1. promover a assistência aos trabalhadoras e trabalhadores resgatados de situação de escravidão; 2. acompanhar as ações de fiscalização do trabalho escravo organizadas em parcerias com outros órgãos e implantar busca ativa de assistência jurídica de trabalhadoras e trabalhadores resgatados de situação de escravidão, afastando-se, na hipótese de trabalho escravo, qualquer restrição ao atendimento de demandas trabalhistas por parte da Defensoria Pública da União, como a prevista na Portaria nº 001/07/DPGU;

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57

No trabalho de fiscalização, objetiva-se assegurar a rescisão trabalhista e

indenização por dano moral, entre outras medidas reparatórias. A instituição também

atua na assistência pós-resgate, prevenindo a chamada revitimização, quando o

trabalhador, em razão de sua vulnerabilidade social, retoma o ciclo do trabalho

escravo supramencionado (vulnerabilidade socioeconômica; aliciamento e migração;

trabalho escravo; fuga ou fiscalização e libertação; pagamento de direitos;

vulnerabilidade socioeconômica).

Quanto à atuação em rede, durante as operações coordenada com os demais

órgãos públicos envolvidos, busca-se efetivar assistência às vítimas resgatadas com

atendimento interdisciplinar e integrado, considerando que atendimentos pontuais e

paliativos repercutem em menor escala no processo de superação da

vulnerabilidade vivenciada pelas vítimas.

Como referência ilustrativa, a unidade da Defensoria Pública da União em

São Paulo, a partir de 2010 passou a acompanhar ações de fiscalização do MTE.

Neste mister,

(...) a DPU atuou na orientação e assistência jurídica a vítimas resgatadas de exploração de trabalho escravo urbano no ramo da confecção têxtil, em operações de fiscalização envolvendo as empresas e/ou marcas Pernambucanas, Marisa, Collins, Zara, Talita Kume, GEP, Le Lis Blanc, M.Officer, Seiki, Unique Chic, Atmosfera S/A e Renner. As atuações envolveram desde acompanhamento de rescisões trabalhistas, regularização migratória das vítimas, celebração de Termos de Ajustamento de Conduta (TAC) com as empresas contratadas, ajuizamento de ações individuais e coletivas perante a Justiça do Trabalho e participação dos processos criminais na qualidade de assistente de acusação. Na Bahia, em 2014, a DPU atuou na defesa das vítimas resgatadas de condições de escravidão em cruzeiros de navios da MSC. No Rio de Janeiro, em 2015, foram

3. identificar dificuldades políticas e processuais à prevenção e enfrentamento do trabalho escravo com objetivo de propor e debater soluções; 4. mapear os procedimentos judiciais em que se debate a temática do trabalho escravo ou a condenação de pessoas físicas ou jurídicas sobre o tema, seja em sede de tutela individual ou coletiva; 5. monitorar os casos relacionados a trabalho escravo em trâmite na DPU e consolidar os dados necessários a subsidiar políticas públicas visando à erradicação do trabalho escravo; 6. fomentar a integração da Defensoria Pública da União às redes e promover à representação a Defensoria Pública da União na Comissão Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo (CONATRAE) e demais órgãos colegiados de enfrentamento do trabalho escravo e promoção do trabalho decente; 7. Fomentar a coordenar a participação da Defensoria Pública da União nos comitês estaduais de erradicação do trabalho escravo; DEFENSORIA PÚBLICA DA UNIÃO. Portaria GABDPGF DPGU nº 200, de 2018. Disponível em: <http://www.dpu.def.br/images/stories/Infoleg/2018/03/13/PORTARIA_200.pdf>. Acesso em: 16/03/2018.

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58

prestadas orientações e assistência jurídica às vítimas resgatadas de exploração de trabalho escravo de chineses em pastelarias58.

No âmbito político institucional, DPU participa da Comissão Nacional e

Estaduais pela Erradicação do Trabalho Escravo.

No tocante à abrangência de sua atuação, a DPU é incumbida de patrocinar

os interesses das vítimas de exploração de trabalho escravo, nas esferas criminal,

administrativa e trabalhista, sendo que nesta última seara, o permissivo normativo

para atuação decorre do disposto no art.14 da LC 80/94 c/c o art.3º, V, da Portaria

GABDPGF DPGU nº 200/2018 (conforme nota de rodapé 56), que afasta qualquer

restrição ao atendimento de demandas trabalhistas na hipótese de trabalho escravo.

No campo criminal, a defesa dos interesses das vítimas de exploração de

trabalho escravo, permite a participação da DPU no processo na qualidade de

assistente de acusação, conforme art. 268, do Código de Processo Penal (CPP). A

par disso, a Lei 11.719/2008, que conferiu nova redação ao art. 387, IV59, estabelece

competência ao juiz criminal para, na sentença penal condenatória, fixar o valor

mínimo para reparação ao ofendido, antes restrito ao âmbito da ação civil ex delicto.

De notar, a especial relevância da normativa na responsabilização dos infratores.

Nisso, oportuno mencionar ainda, que a competência para processar e julgar

o crime de redução a condição análoga à de escravo, delineado no art.149 do

Código Penal, é, de acordo com entendimento do Supremo Tribunal Federal (RE

459510/MT – 26/11/2015), da Justiça Federal, por tratar-se de delito que ultrapassa

a esfera da liberdade individual, situando-se nos crimes contra a organização do

trabalho.

58 SEVERO, Fabiana Galera. A Atuação da Defensoria Pública da União na Defesa das Vítimas de Trabalho Escravo. Disponível em: <http://www.dpu.def.br/images/esdpu/jornaldpu/edicao_4/Artigo_5_-_A_atuação_da_Defensoria_Pública_da_União_na_defesa_das_vítimas_de_trabalho_escravo.pdf>. Acesso em 16/03/2018. 59 (...) Art. 268. Em todos os termos da ação pública, poderá intervir, como assistente do Ministério Público, o ofendido ou seu representante legal, ou, na falta, qualquer das pessoas mencionadas no Art. 31; (...) Art. 387. O juiz, ao proferir sentença condenatória: IV - fixará valor mínimo para reparação dos danos causados pela infração, considerando os prejuízos sofridos pelo ofendido; (Redação dada pela Lei nº 11.719, de 2008). PLANALTO. Código de Processo Penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del3689Compilado.htm>. Acesso em 16/03/2018.

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59

Para Defensora Pública Federal em São Paulo/SP, integrante do GT

Erradicação do Trabalho Escravo, Fabiana Galera Severo60, na versão

contemporânea, a escravidão está associada a uma determinada opção de

acumulação capitalista, que se vale da máxima exploração da força de trabalho

humana submetendo pessoas a jornadas extenuantes, condições degradantes de

trabalho ou formas de restrição de locomoção, como servidão por dívida, retenção

de documentos e vigilância ostensiva.

A responsabilização dos infratores, contudo, não é tarefa fácil. De acordo com

a Defensora “como não há previsão legal de responsabilização criminal da pessoa

jurídica por exploração de trabalho escravo, a condenação criminal se restringe à

pessoa física do empregador intermediário, imediatamente ligado às vítimas – o gato

no meio rural ou a pessoa física do trabalhador em nome de quem foi constituída a

empresa individual em meio urbano – comprometendo as chances de efetiva

reparação.”

O enfrentamento do trabalho escravo contemporâneo, em qualquer de suas

mais diversas roupagens é meta institucional da DPU, a qual, na qualidade de órgão

de proteção dos direitos humanos e articulada com os demais atores sociais, integra

a rede de prevenção e combate ao problema, buscando o efetivo cumprimento da lei

e aplicabilidade imediata dos preceitos e pressupostos que efetivam a dignidade da

pessoa humana.

60 SEVERO, Fabiana Galera. A Atuação da Defensoria Pública da União na Defesa das Vítimas de Trabalho Escravo. Disponível em: <http://www.dpu.def.br/images/esdpu/jornaldpu/edicao_4/Artigo_5_-_A_atuação_da_Defensoria_Pública_da_União_na_defesa_das_vítimas_de_trabalho_escravo.pdf>. Acesso em 16/03/2018.

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60

3. DA RESPONSABILIZAÇAO DOS INFRATORES

3.1 Do intuito de desresponsabilização com a fragmentação da produção por

meio das cadeias produtivas

Sem embargo da concepção cultural escravagista, apenas formalmente

superada no Brasil, na dinâmica capitalista contemporânea a principal causa do

emprego de mão de obra escrava é a redução de custos e maximização dos lucros.

A prática cada vez mais presente e ao mesmo tempo, cada vez mais velada,

oculta-se nas mais diversas roupagens, inclusive, em complexas cadeias produtivas,

que, a despeito de convergirem para o único objetivo de atender os anseios da

empresa principal, concorrendo para entrega de seu produto final, diluem os riscos

da atividade com diversas outras pessoas jurídicas, com intuito de se desvincular da

responsabilidade pelos ilícitos cometidos.

Ilustrativamente, hipótese fática de cadeia produtiva no meio rural é o trabalho

em carvoarias. O carvão vegetal produz o ferro gusa, destinado às siderúrgicas, as

quais, por sua vez, comercializam o produto para a produção de determinado bem,

por exemplo, a montagem de veículo automotor em uma montadora. Se a carvoaria,

instalada em uma fazenda no interior do Tocantins, por exemplo, utiliza-se de mão

de obra escrava, o seu aproveitamento pela siderúrgica em Minas Gerais e dessa,

para uma montadora de carros em São Paulo, é ilegal, e, consequentemente toda

cadeia produtiva restará viciada.

No que tange a possibilidade de terceirização nessas cadeias, à míngua de

qualquer regulamentação legislativa trabalhista até então, a jurisprudência do

Tribunal Superior do Trabalho, cristalizada na Súmula 331, reconhece a licitude da

terceirização em quatro hipóteses pontuais, a saber: serviços de conservação e

limpeza, serviços de vigilância, serviços especializados na atividade-meio do

tomador e o trabalho temporário.

Pautado nessa diretriz, redes de terceirizações ilícitas verificavam-se com

recorrência nos processos produtivos de grandes empresas, que a adotavam para

obtenção de seu produto final, com o objetivo de esquivarem-se de obrigações

trabalhista.

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Uma pesquisa realizada pela Universidade Federal da Bahia (Ufba) identificou

que 75% de casos de trabalho análogo ao de escravo estão relacionados com a

terceirização. A presença de um intermediário entre a empresa beneficiária dos

serviços e os trabalhadores é quase uma regra nos casos identificados pela

fiscalização na Bahia. A pesquisa está sendo desenvolvida pelo Núcleo de Estudos

Conjunturais da Faculdade de Economia da Ufba (NEC) em parceria com o

Ministério Público do Trabalho (MPT) e outros órgãos de defesa do trabalhador,

como o Ministério do Trabalho61.

Conforme ensina Maurício Godinho Delgado62,

“Atividades-fim podem ser conceituadas como funções e tarefas empresariais e laborais que se ajustam ao núcleo da dinâmica empresarial do tomador dos serviços, compondo a essência dessa dinâmica e contribuindo inclusive para a definição de seu posicionamento e classificação no contexto empresarial e econômico. São, portanto, atividades nucleares e definitórias da essência da dinâmica empresarial do tomador de serviços. Por outro lado, atividades-meio são aquelas funções e tarefas empresariais e laborais que não ajustam ao núcleo da dinâmica empresarial do tomador de serviços, nem compõem a essência dessa dinâmica ou contribuem para a definição de seu posicionamento no contexto empresarial e econômico mais amplo. São, portanto, atividades periféricas à essência da dinâmica empresarial do tomador dos serviços”.

O debate da distinção entre atividade meio e fim, parece encontra-se,

entretanto, superado. O processo de repasse da atividade finalística resta

atualmente legalmente respaldado pela Reforma Trabalhista, introduzida no

ordenamento jurídico por meio da Lei 13.467/17, que, modificando a Lei 6.019/74,

acrescentou o art.4ºA63, norma que permite a terceirização da atividade fim da

empresa.

61 MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO NA BAHIA. Estudo da Ufba aponta relação entre terceirização e trabalho escravo. Disponível em: <http://www.prt5.mpt.mp.br/informe-se/noticias-do-mpt-ba/886-estudo-da-ufba-aponta-relacao-entre-terceirizacao-e-trabalho-escravo>. Acesso em: 23/03/2018. 62 DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 14ª Ed. São Paulo: LTR, 2015, p. 489. 63 Art. 4º-A. Considera-se prestação de serviços a terceiros a transferência feita pela contratante da execução de quaisquer de suas atividades, inclusive sua atividade principal, à pessoa jurídica de direito privado prestadora de serviços que possua capacidade econômica compatível com a sua execução. (Redação dada pela Lei nº 13.467, de 2017). PLANALTO. Lei nº 6.019, de 1974. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L6019.htm>. Acesso em 19/03/2018.

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62

No art.5ºA64, acrescentado na mesma conjuntura da Reforma, o legislador

ratifica a possibilidade de terceirização na atividade finalística da tomadora de

serviços (no caso do trabalho temporário), estendendo a mesma prerrogativa à

empresa contratante na hipótese de terceirização.

O próprio processo de transferências sucessivas da responsabilidade pela

execução do serviço (“quarteirização”, “quinteirização”...) foi chancelado pelo novel

legislativo, de modo que o ordenamento passa a permitir expressamente a

subcontratação de outras empresas para realização dos serviços inicialmente a

cargo da prestadora de serviços (art.4ºA, §1º, da Lei 6.019/74).

Inegável neste cenário o enfraquecimento do vínculo de emprego direto,

garantidor de maior estabilidade ao trabalhador e de mais abrangente espectro de

direitos.

Todavia, a despeito do retrocesso social em matéria sociolaboral promovido

pelas alterações legislativas, de notar que transferência da atividade principal pela

maior beneficiária dessa cadeia de exploração do trabalho (a empresa holding ou

empresa-mãe, administradora do conglomerado de empresas, detentora de maior

potencial econômico) para pessoa jurídica diversa, não a exime de sua

responsabilidade em caso de ilicitude na própria prestação dos serviços.

Essa responsabilidade social, intrinsicamente relacionada com o conceito de

desenvolvimento sustentável, no sentido de extrair o máximo com o mínimo de

prejuízo para o meio ambiente, nele incluído o do trabalho, não é, entretanto,

pacificamente aplicada pela jurisprudência dos tribunais trabalhistas.

Nesta toada, organismos e órgãos de defesa e combate da prática de

submissão ao trabalho escravo, notadamente o MPT, buscam a responsabilização

do legítimo empregador, verdadeiro beneficiário do resultado da cadeia produtiva,

lançando mão, para tanto, das mais diversas teorias, a depender do contexto em

que se constatou a ocorrência do crime de redução a condição análoga à de

escravo.

64 (...) Art. 5º-A. Contratante é a pessoa física ou jurídica que celebra contrato com empresa de prestação de serviços relacionados a quaisquer de suas atividades, inclusive sua atividade principal. (Redação dada pela Lei nº 13.467, de 2017). PLANALTO. Lei nº 6.019, de 1974. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L6019.htm>. Acesso em 19/03/2018.

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3.2 Cadeias produtivas no meio ambiente de trabalho rural

Tendo em vista ser o objetivo deste trabalho não apenas uma abordagem

teórica, mas, sobretudo, a análise fática da questão social da escravidão moderna,

oportuno destacar o resultado de investigações do Ministério Público do Trabalho

em operações de resgate de trabalhadores no meio rural, diretamente inseridos nas

cadeias produtivas de grandes empresários ou grupos econômicos.

Além das hipóteses genericamente previstas no art.149, do CP, para

delimitação de trabalho em condição análoga à escravidão, especificamente no meio

rural, condições específicas concorrem para caracterização do ilícito.

Neste sentido, de rigor o registro das condições em que são encontradas as

vítimas dessa prática, ainda muito presente no cotidiano trabalhista contemporâneo.

De acordo com o Procurador do Trabalho Ruy Fernando Gomes Leme

Cavalheiro65, constata-se com recorrência nas intervenções do MPT condições

precárias, caracterizadoras da submissão à condição análoga à escravidão. Nesse

passo, ilustrativamente, apura-se nas ações de fiscalização:

a) Acomodações improvisadas e inadequadas: situações em que a

moradia dos trabalhadores consiste em barracões, barracas, cabanas, casas de

madeira ou de sapé/adobe, tendas e até mesmo redes sob árvores ou sob lonas. Ou

seja, habitações sem a mínima infraestrutura, em completo desacordo com as normas

de proteção ao trabalho, especialmente a NR15 do MTE, que dispõe sobre atividades

e operações insalubres.

Já nas construções com reais características de imóveis, as estruturas são

precárias e são simultaneamente utilizadas como depósito de materiais da produção,

como maquinários, venenos e adubos.

A título ilustrativo da precariedade dos alojamentos destinado aos

trabalhadores reduzidos à condição análoga de escravo, pertinente a análise de uma

operação conjunta dos órgãos de proteção ao trabalho, integrada pelo MPT da Bahia

em maio de 201666:

65 CAVALHEIRO, Ruy Fernando Gomes Leme. Procurador do Trabalho. Mestre e Especialista em Direito. Especialista em Filosofia e História da Ciência. Curso Ênfase, regular 2017. Aulas 41 e 42. 66 MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO NA BAHIA. Fiscais libertam 5 pessoas em condição análoga à de escravo em Conquista. Disponível em: <http://www.prt5.mpt.mp.br/informe-se/noticias-do-mpt-ba/693-fiscais-libertam-5-pessoas-em-condicao-analoga-a-de-escravo-em-conquista>. Acesso em 23/03/2018.

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64

“Fiscais libertam 5 pessoas em condição análoga à de escravo em Conquista Cinco homens foram libertados nessa segunda-feira (30) de uma fazenda na zona rural do município de Vitória da Conquista, no sudoeste da Bahia, onde eram submetidas a condições de trabalho análogas à escravidão. Alojamentos sem as mínimas condições de saúde e higiene e a falta de registro dos contratos de trabalho foram algumas das irregularidades comprovadas no local. Em razão da precariedade do alojamento, os trabalhadores foram retirados do local pela Polícia Rodoviária Federal retornando a suas residências no município de Itambé. A PRF também prendeu em flagrante o dono da fazenda, que foi conduzido à Superintendência da Polícia Federal em Vitória da Conquista.

O alojamento dos empregados era dentro do curral

(...) Os empregados dormiam em um curral, ao lado de cavalos, em camas improvisadas, sem sanitários, sem condições mínimas de higiene, e com um fogareiro aceso ao lado dos colchonetes de espuma. Eles também não tiveram as carteiras de trabalho assinadas, nem realizaram exames médicos admissionais. Além disso, trabalhavam sem qualquer tipo de equipamento de proteção individual e coletiva. Um dos trabalhadores sofreu um corte no dedo e mesmo assim foi obrigado a trabalhar. A carne que consumiam era conservada em sal e ficava dependurada em um varal dentro do curral (...). (original sem destaque).

b) Informalidade do vínculo e da execução do contrato: não há

registro em CTPS, registro de jornada, respeito aos intervalos, recibos de pagamentos

e, muitas vezes, não há sequer pactuação de salário. No mais das vezes, trabalha-se

para sobreviver, obtendo-se como contraprestação apenas comida.

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c) Precárias condições sanitárias e de higiene: constata-se, outrossim,

a inexistência de banheiros, improvisando-se em substituição fossas ou buracos

para depósito das necessidades fisiológicas dos trabalhadores e utilização de

riachos e igarapés (filete de água rasa, não potável, de aproximadamente 3 dedos

de profundidade na sua parte mais funda). Vejamos na prática as condições em que

sãos resgatados os trabalhadores67:

“Operação resgata 19 pessoas mantidas como escravos em fazenda na Bahia Dezenove trabalhadores rurais que eram mantidos em condição semelhante à de escravos foram resgatados nessa segunda-feira (27/11) da fazenda Vitória, no município de Ribeirão do Largo, no sudoeste da Bahia. A força-tarefa responsável pela operação foi realizada pela Comissão Estadual para a Erradicação do Trabalho Escravo da Bahia, com a participação de representantes do Ministério Público do Trabalho (MPT), da Secretaria de Inspeção do Trabalho do Ministério do Trabalho do Brasil (MTB) e da Secretaria da Justiça, Direitos Humanos e Desenvolvimento Social do Estado (SJCDH), com o apoio da Polícia Rodoviária Federal (PRF). Com o resgate, as vítimas receberão seguro-desemprego e a rescisão do contrato de trabalho, além se suporte da rede de assistência social. A equipe chegou à propriedade de difícil acesso no fim da manhã para apurar denúncia de trabalho escravo e encontrou uma situação de degradância da condição humana de 19 homens, que trabalhavam na roçagem de terreno e no manejo de gado. Desses, só um tinha carteira de trabalho assinada, o vaqueiro da fazenda, e todos dormiam em casas sem energia, água encanada, banheiros e sem acesso a água potável. Além disso, trabalhavam sem qualquer tipo de proteção como luvas, máscaras para aplicação de defensivos agrícolas, que eram armazenados o mesmo local em que dormiam. As camas também eram improvisadas, feitas pelos próprios trabalhadores, que levavam de casa colchões e roupas de cama. A alimentação e o local para as refeições também não eram garantidos. (...) "O que vimos nessa fazenda é um amplo conjunto de irregularidades que, somadas, configuram claramente a submissão desses trabalhadores à condição de escravos contemporâneos” (...) , explicou o procurador do MPT Ilan Fonseca, que integrou a operação. (...) Ao chegar às duas casas que serviam de alojamento para os trabalhadores temporários responsáveis pela roçagem e para o

67 MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO NA BAHIA. Operação resgata 19 pessoas mantidas como escravos em fazenda na Bahia. Disponível em: <http://www.prt5.mpt.mp.br/informe-se/noticias-do-mpt-ba/976-operacao-resgata-19-pessoas-mantidas-como-escravos-em-fazenda-na-bahia>. Acesso em 23/03/2018.

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66

vaqueiro da fazenda, a força-tarefa identificou graves descumprimentos de normas básicas de higiene e saúde”. Original sem destaque.

d) Inadequação da alimentação: além da predominância da inexistência

de refeitórios, exigência da NR15 do MTE e de diversas outras normativas internas e

internacionais adotadas pelo Brasil, há o agravante da verificação de alimentos

vencidos e mal acondicionados, misturados com vestuário, material de limpeza e de

produção, por exemplo, gasolina, adubo, óleo, graxa, com potencial risco de

contaminação. Ademais, constata-se embalagens de alimentos destinados ao

consumo humano atacados por insetos e roedores, além de itens de cozinha velhos

e sem higienização.

e) Inadimplemento das Obrigações: além da característica da

informalidade, os contratos caracterizam-se também pela ausência ou longos

atrasos nos pagamentos; ausência de repouso semanal remunerado; longas

jornadas (ex. começa com o nascer do sol e acaba quando o sol se põe), sendo

aproximadamente de 14h a 16h de trabalho por dia de trabalho; ausência ou atraso

na entrega de mantimentos, equipamentos, itens de higiene, de proteção individual e

coletiva, remédios (dado o isolamento das oficinas de trabalho); vedação ou

restrição na locomoção para fora do local de trabalho (retenção de documentos,

ameaça de não pagamento, ameaça de despedida e até mesmo de agressão e

morte).

f) Dívidas: constituídas como forma de aprisionamento do trabalhador,

sob alegação de contrapartida do que despendeu o empregador para deslocamento

até o local de trabalho; pelo posto de trabalho; pelo uso de equipamentos; consumo

de alimentos; moradia, entre outros. No cotidiano das ações integradas, o

endividamento é uma realidade68:

(...) Um dos trabalhadores, responsável pelo recrutamento e pagamento dos empregados, mantinha uma pequena venda,

68 MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO NA BAHIA. Operação resgata 19 pessoas mantidas como escravos em fazenda na Bahia. Disponível em: <http://www.prt5.mpt.mp.br/informe-se/noticias-do-mpt-ba/976-operacao-resgata-19-pessoas-mantidas-como-escravos-em-fazenda-na-bahia>. Acesso em 23/03/2018.

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fornecendo produtos alimentícios e de higiene, além de medicamentos para dores musculares, muito consumidos pelos lavradores. Esses produtos eram adquiridos e descontados do pagamento (...). Original sem destaque.

Exposição a perigos e ameaças: face a inadequação dos alojamentos há

exposição aos perigos naturais, como sujeição a ataques de animais silvestres

(macaco, leão, javali, insetos, cobras, etc.), bem como ameaças à integridade física

e moral do trabalhador, como de não pagamento, não renovação da contratação, de

agressões e intimidação à própria vida.

É comum a presença de seguranças ou chefes e encarregados armados, que

além de se incumbirem da vigilância ostensiva, orientam os trabalhadores a se

esconderem em eventual investigação nos locais de trabalho pelos órgãos de

fiscalização.

A ocorrência da exposição a perigos é verificável com recorrência nas ações

de fiscalização dos Grupos Móveis69. Vejamos:

(...) Alguns estavam com marcas de picada de escorpião e de aranha. Outra grave situação encontrada foi a aplicação de veneno ao mesmo tempo em que as áreas eram roçadas. Os dois responsáveis por borrifar o defensivo também não usavam máscaras, luvas ou qualquer outra proteção. E como o líquido era borrifado próximo ao local onde os demais cortavam o mato, todos ficavam expostos aos produtos. Vários deles se queixaram de dores de cabeça e respiratórias constantes”. (original sem destaque).

g) Trabalhadores isolados: é comum a execução do trabalho ocorrer em

locais de difícil acesso, longínquo e com estradas precárias, muitas com acesso

somente a pé ou de helicóptero. O nível de isolamento é propositalmente

estabelecido para restringir a liberdade de ir e vir dos trabalhadores.

Oportuno, neste sentido, a descrição destes locais pelos próprios agentes de

fiscalização70:

69 MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO NA BAHIA. Operação resgata 19 pessoas mantidas como escravos em fazenda na Bahia. Disponível em: <http://www.prt5.mpt.mp.br/informe-se/noticias-do-mpt-ba/976-operacao-resgata-19-pessoas-mantidas-como-escravos-em-fazenda-na-bahia>. Acesso em 23/03/2018.

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(...) A dificuldade de acesso à fazenda chamou a atenção dos integrantes da força-tarefa da Coetrae. O policial rodoviário federal Marcus França, que comandou a unidade da PRF responsável pela segurança da equipe durante a operação, relatou que "foi necessário fazer um levantamento por GPS, com coordenadas, para chegar ao local, a partir de uma estrada vicinal acessada através da BA-634. De lá, os veículos da força-tarefa passaram por sete cancelas e diversos mata-burros até chegar à sede da Fazenda Vitória". Da sede da fazenda à frente de trabalho, foram mais de três quilômetros percorridos a pé num terreno íngreme. Os trabalhadores contaram, inclusive, que levavam cerca de uma hora entre o local onde dormiam e a frente de trabalho. No retorno, já transportando os resgatados em carrocerias de picapes, já que nem ônibus nem vans acessam o local, o grupo chegou a utilizar uma balsa para cruzar o rio e chegar à BA-263, que dá acesso a Itambé”. Original sem destaque.

h) Pagamento por produção: estimula a necessidade de uma produção

absurda para receber o mínimo para subsistência. A pactuação do pagamento

ocorre normalmente pela produção em metros desmatados; metros cercados;

metros de madeira carregadas; metros de áreas para aplicação de veneno; quilos de

colheita ou corte de vegetação.

Especificamente no meio ambiente de trabalho precário e degradante em que

se encontra esses trabalhadores, essa forma de pagamento é desleal com o

empregado, que não tem como aferir com exatidão o que produz. No mais, se lhe

impõe ritmo de trabalho exaustivo e desgastante, vez que não há observância do

salário mínimo, piso regional ou piso convencional, desvinculado da produção.

i) Aliciamento de Trabalhadores: prática tipificada como ilícito penal

(art.207, CP71), está intrinsicamente associada com o trabalho escravo.

70 MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO NA BAHIA. Operação resgata 19 pessoas mantidas como escravos em fazenda na Bahia. Disponível em: <http://www.prt5.mpt.mp.br/informe-se/noticias-do-mpt-ba/976-operacao-resgata-19-pessoas-mantidas-como-escravos-em-fazenda-na-bahia>. Acesso em 23/03/2018. 71 Art. 207 - Aliciar trabalhadores, com o fim de levá-los de uma para outra localidade do território nacional: Pena - detenção de um a três anos, e multa. (Redação dada pela Lei nº 9.777, de 29.12.1998) § 1º Incorre na mesma pena quem recrutar trabalhadores fora da localidade de execução do trabalho, dentro do território nacional, mediante fraude ou cobrança de qualquer quantia do trabalhador, ou, ainda, não assegurar condições do seu retorno ao local de origem. (Incluído pela Lei nº 9.777, de 1998) § 2º A pena é aumentada de um sexto a um terço se a vítima é menor de dezoito anos, idosa, gestante, indígena ou portadora de deficiência física ou mental. (Incluído pela Lei nº 9.777, de 1998).

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Geralmente a migração ocorre de uma região pobre, com excesso de mão de

obra, para outra que tem uma demanda maior fluxo de trabalho.

Para coibir esse transporte irregular, a Instrução Normativa SIT nº 90/2011, do

MTE, que disciplina a comunicação do transporte regular de trabalhadores

contratados para desempenhar atividades em localidade diversa da sua origem ao

órgão local do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), por meio da CDTT –

Certidão Declaratória de Transporte de Trabalhadores. Possível também a

notificação do sindicato da categoria obreira acerca da origem e destino dos

trabalhadores.

A notificação aos órgãos de proteção pressupõe presunção de correção, a

qual pode ser ilidida pela constatação de aliciamento ilícito no transporte (Princípio

da Primazia da Realidade).

A incidência das mencionadas características nas fiscalizações do MPT no

meio rural, ocorrem com maior ou menor grau, de forma isolada ou conjuntamente.

Outras situações específicas também verificam-se nas inspeções do

Ministério Público do Trabalho, a exemplo dos falsos caseiros, que a despeito de

serem contratados para exercício de zeladoria, com oferecimento de moradia em

contrapartida, exige-se do trabalhador e sua família trabalho constante com

requisitos característicos de escravidão moderna, como impedimento de liberdade

de locomoção, submissão à jornadas degradantes e alegações de supostas dívidas.

Outra fraude constatada nas intervenções são as falsas parcerias, nas quais,

a pretexto da cessão de terrenos para exploração, explora-se em realidade a mão

de obra do “parceiro” e sua família, sem observância das normas trabalhistas de

proteção à saúde, higiene e segurança, nos termos das Normas Regulamentadores

correspondentes.

Todas estas situações denunciam a submissão de pessoas às mais diversas

formas contemporâneas de escravidão, prática que concebe o ser humano como

coisa e, portanto, sem a qualidade que o faz merecedor de um patamar mínimo de

dignidade.

PLANALTO. Código Penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848compilado.htm>. Acesso em 21/03/2018.

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As condições acima denunciadas (ausência de alojamentos, submissão ao

relento, frio, calor, ataque de animais, ingestão de alimentos impróprios ao consumo,

coação moral e física, entre inúmeras outras), vivenciadas na vida real de milhões

de brasileiros, compõem cenário fático que vai de encontro com as diretrizes

constitucionais que consagram o trabalho como elemento central de redistribuição

de renda, concretizador de autonomia e emancipação social através da melhoria das

condições de vida do trabalhador.

3.3 Cadeias produtivas no meio ambiente de trabalho urbano

Trabalho escravo urbano é essencialmente o que se desenvolve em atividades

não rurais, não relacionadas à pecuária ou agricultura, mas sim, em zonas urbanas

principalmente no setor de produção e, eventualmente, no ramo de serviços.

3.3.1 Trabalho análogo ao de escravo no setor têxtil

Ainda de acordo com o apurado em ações do Ministério Público do Trabalho,

com informações sistematizadas pelo Procurador do Trabalho, Ruy Fernando

Gomes Leme Cavalheiro, as principais ocorrências das cadeias produtivas que

adotam a prática, verificam-se no setor têxtil, em confecções nos grandes centros

urbanos, especialmente na cidade de São Paulo e cidades da Região metropolitana

deste Estado.

Na prática, grandes marcas têxteis contratam confecções para obtenção de seus

produtos finais, e estas, por sua vez, subcontratam oficinas de costura. Essas

oficinas são, em regra, pequenas oficinas clandestinas, sem a mínima estrutura para

o exercício laboral, que contratam normalmente trabalhadores estrangeiros

igualmente clandestinos, geralmente latino americanos fronteiriços, especialmente

bolivianos, peruanos e paraguaios, para confecção de peças encomendadas

indiretamente pelas grifes.

A execução dos trabalhos ocorre em jornadas exaustivas, sob condições

degradantes, sem observância da legislação atinente à proteção do trabalho e

Normas Regulamentadoras do MTE.

As contratações dessas oficinas inserem-se na dinâmica mercadológica de

obtenção de maior produção ao menor custo. A lógica estabelecida segue

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normalmente o mesmo padrão: as Marcas detêm o nome, mas não realizam a

produção de suas mercadorias. Contratam para tanto confecções prestadora desses

serviços, as quais por sua vez, também não executam diretamente a produção que

lhe foi incumbida, repassando o encargo para as oficinas de costura, em espécie de

quarteirização.

O resultado dessa fragmentação da produção é a sensível redução do valor

do trabalho, ao passo que, todos aqueles que transferem a execução do serviço

para terceiros asseguram para si parte do pagamento que lhe foi conferido na

contratante anterior.

A consequência fática desse ciclo de transferências é a precarização das

relações de trabalho, terreno fértil para a ocorrência de trabalho escravo e

consequentes vícios nas terceirizações de mão de obra.

A redução de trabalhadores à condição análoga a de escravo foi flagrada em

grandes empresas do ramo da moda, como as famosas Zara e M. Officer,

detentoras de considerável poderio econômico. Nesse caso, medida de justiça que

se impõe é que sejam tais empresas responsabilizadas pela degradação ao meio

ambiente de trabalho face a submissão de trabalhadores à situação de indignidade.

Nisso, convém ressaltar que a inovação legislativa promovida pela Lei

13.467/17 na Lei 6.019/74, no sentido de autorizar a terceirização da atividade

empresarial finalística, não tem o condão de afastar a responsabilidade das

empresas holding’s.

A rigor, o substrato das condenações deve pautar-se no aproveitamento

direto dessas empresas com a prática do crime de redução do trabalhador à

condição análoga à escravidão. E, sendo a empresa mãe a principal beneficiária do

processo de precarização, é sua responsabilidade social reparar às vítimas e a

sociedade pelas ilicitudes perpetradas.

Neste sentido, em recente acórdão proferido pelo Tribunal Regional do

Trabalho de São Paulo (TRT/SP), a 4ª Turma manteve a condenação de primeira

instância da M5 Indústria e Comércio, dona da marca M. Officer, por submeter

trabalhadores a condições análogas à de escravidão em ação civil pública do

Ministério Público do Trabalho (MPT). Com isso, a grife de roupa terá que pagar R$

4 milhões por danos morais coletivos e mais R$ 2 milhões por dumping social

(quando uma empresa se beneficia dos custos baixos resultantes da precarização

do trabalho para praticar a concorrência desleal). Além disso, terá que cumprir uma

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série de obrigações trabalhistas, estando ainda sujeita a aplicação da lei estadual

14.946/201372, que determina a cassação da inscrição no cadastro de contribuintes

do ICMS, de qualquer empresa que faça uso direto ou indireto de trabalho escravo

ou em condições análogas pelo período de 10 anos após condenação em segunda

instância.

Na Ação Civil Pública movida em 2014, o MPT sustentou que “a M5 utilizava

empresas intermediárias para subcontratar o serviço de costura, realizado em

grande parte por imigrantes em oficinas clandestinas submetidos a jornadas

excessivas em condições precárias, sem qualquer direito trabalhista. Em um desses

locais, descoberto em diligência conduzida no dia 6 de maio de 2014 pelo Ministério

do Trabalho e Emprego (MTE) em atuação conjunta com MPT, Defensoria Pública

da União (DPU) e Receita Federal, constatou-se que os trabalhadores ganhavam de

R$ 3 a R$ 6 por peça produzida e cumpriam jornadas médias de 14 horas (bem

mais do que o limite legal de 8 horas). Os seis bolivianos resgatados pouco falavam

português e viviam com suas famílias no mesmo local de trabalho, costurando em

máquinas próximas a fiação exposta, botijões de gás e pilhas de roupas

(representando grave risco de incêndio). Alguns afirmaram ainda estar pagando pela

passagem ao Brasil com o “salário” recebido pelas peças costuradas, o que,

segundo o MPT, poderia ser indício de tráfico de pessoas para fins de trabalho”.

De acordo com o relator do recurso ordinário, desembargador Ricardo Artur

Costa e Trigueiros, a atividade desenvolvida pelos trabalhadores as empresas

interpostas era a própria finalidade da M.Officer. “O labor desenvolvimento pelos

trabalhadores era essencial na cadeia produtiva da ré. De modo que sem ele

72 Artigo 1º - Além das penas previstas na legislação própria, será cassada a eficácia da inscrição no cadastro de contribuintes do imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual, intermunicipal e de comunicação (ICMS) dos estabelecimentos que comercializarem produtos em cuja fabricação tenha havido, em qualquer de suas etapas de industrialização, condutas que configurem redução de pessoa a condição análoga à de escravo. Artigo 4º - A cassação da eficácia da inscrição do cadastro de contribuintes do ICMS, prevista no artigo 1º, implicará aos sócios, pessoas físicas ou jurídicas, em conjunto ou separadamente, do estabelecimento penalizado: I - o impedimento de exercerem o mesmo ramo de atividade, mesmo que em estabelecimento distinto daquele; II - a proibição de entrarem com pedido de inscrição de nova empresa, no mesmo ramo de atividade. § 1º - As restrições previstas nos incisos prevalecerão pelo prazo de 10 (dez) anos, contados da data de cassação. (...). ASSEMBLEIA LEGISLATIVA DO ESTADO DE SÃO PAULO. Lei nº 14.946, de 2013. Disponível em: <https://www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/lei/2013/lei-14946-28.01.2013.html>. Acesso em: 23/03/2018.

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não se poderia comercializar o produto específico. Não se trata, portanto, de

simples ingerência na qualidade e no controle de produção da prestadora de

serviços, nos moldes do contrato de facção, e sim, de modalidade inaceitável

de terceirização”73. Original sem destaque.

É com o engajamento neste propósito que devem atuar integradamente os

órgãos e instituições de prevenção e combate a todas as formas de escravidão

contemporâneo, com vistas a conferir a máxima efetividade do princípio

constitucional basilar da dignidade da pessoa humana, assim como garantir um

patamar mínimo civilizatório para as relações de trabalho estabelecidas no âmbito

predatório da sociedade capitalista.

3.3.2 Trabalho análogo ao de escravo na construção civil Conforme esclarece o Procurador do Trabalho Ruy Fernando Gomes Leme

Cavalheiro, especialmente na cidade de São Paulo/SP, nas obras para a Copa do

Mundo, o MPT verificou a incidência de quarteirizações. Empreiteiras vencedoras

das licitações com a Administração Pública contratavam empregados de outras

empresas menores, potencializando a natural precarização das contratações

indiretas.

De acordo com o juiz do trabalho da 14ª Região Wagson Linfolfo José Filho74,

na construção civil, empreiteiras menores terceirizadas por grandes construtoras

trazem trabalhadores da região Nordeste e os acumulam em canteiros de obras.

Sem quaisquer recursos, têm suas carteiras de trabalho e vencimentos retidos,

trabalhando horas a fio sem ter seus direitos sociais observados.

Sem embargo da maior ocorrência da prática nos estados do Sudeste, em

razão da maior concentração industrial, o problema acontece em diversos estados

brasileiros. A título de exemplo, cita-se o flagrante de trabalho escravo em obra do

governo federal no oeste baiano no ano de 2015.

73 MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO EM SÃO PAULO. Condenada por trabalho escravo, M.Officer pode ser proibida de vender em SP por 10 anos. Disponível em: <http://www.prt2.mpt.mp.br/507-condenada-por-trabalho-escravo-m-officer-pode-ser-proibida-de-vender-em-sp-por-10-anos>. Acesso em: 23/03/2018. 74 MAGISTRADO TRABALHISTA. Teoria do avestruz - Aplicabilidade no Direito do Trabalho. Disponível em: <http://www.magistradotrabalhista.com.br/2013/11/teoria-do-avestruz-aplicabilidade-no.html>. Acesso em: 25/03/2018.

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Na ocasião, seis trabalhadores contratados para construção de casas

populares do Programa Nacional de Habitação Rural (PNHR) no município de Santa

Rita de Cássia, foram resgatados após constatada condições de degradância a que

eram submetidos. Força tarefa coordenada pelo MPT constatou que os operários

contratados dormiam em alojamentos improvisados, sem condições mínimas de

higiene, privados de sanitários, água potável, locais apropriados para armazenagem

e preparo de alimentos e sem remuneração adequada. Para reparação do ilícito foi

firmado Termo de Ajustamento de Conduta –TAC, o qual entre outros compromissos

de adequação da empresa infratora, consignou-se a vedação de contratação de

operários por meio de terceiros75.

De notar a preocupação Ministerial em reprimir o ilícito e, sobretudo, formular

estratégias de prevenção para que outras, ou até mesmo as mesmas vítimas, na

dinâmica do ciclo vicioso do trabalho escravo, não venham retomar a situação de

precariedade.

3.3.3 Outras hipóteses de configuração do trabalho em condições análogas à

escravidão no meio urbano

Muito embora a adoção de mão de obra análoga à escravidão na área urbana

tenha maior incidência no setor de produção e serviços, o Procurador do Trabalho,

aponta outras relações contratuais de fática incidência do ilícito. Senão, vejamos:

a) Trabalho análogo ao de escravo na prostituição de mulheres e

travestis

Em pese a reprovação moral, a prostituição é prática que remonta os

primórdios da organização social humana.

De acordo com o representante do MPT, é situação normalmente associada ao

aliciamento de trabalhadores. O que se constata na prática é o deslocamento de

mulheres e travestis de outras regiões do país, especialmente do Norte para as

75 MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO NA BAHIA. MPT flagra trabalho escravo em obra do governo federal no oeste baiano. Disponível em: <http://www.prt5.mpt.mp.br/informe-se/noticias-do-mpt-ba/501-mpt-flagra-trabalho-escravo-em-obra-do-governo-federal-no-oeste-baiano>. Acesso em: 28/03/2018.

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grandes capitais do Sul e Sudeste, que passam a morar com uma “mãe de rua”

(cafetina), a qual oferece a moradia (ponto de trabalho) em troca da exploração. A

venda do corpo forçada normalmente é intermediada pelos chamados “cafetões”.

O pagamento da morada normalmente se estabelece em diárias, não obstante

as péssimas condições das residências convencionadas. Comumente tratam-se de

habitações subdividas em cômodos, com banheiro e cozinha comunitária.

Como cediço, no Brasil a prostituição não é ilegal, sendo prevista, inclusive, na

Classificação Brasileira de Ocupações. Desta feita, não há qualquer reprimenda

para os clientes, nem mesmo para o próprio agente que se submete ao

favorecimento sexual.

Noutro giro, contudo, o ordenamento pátrio penaliza com prisão a exploração

da prática. Ou seja, o agenciamento, a promoção ou contratação de pessoas com

intuito lucrativo é crime tipificado no Código Penal Brasileiro, consoante inovações

trazidas pela Lei 12.015/2009 76

Nessa dinâmica mercantil, a mulher desempenha um trabalho não de acordo

com seu livre arbítrio, mas submetida a exploração sexual por terceiros com

finalidade lucrativa. E, sendo a prostituição uma forma de trabalho, é de interesse

76 Favorecimento da prostituição ou outra forma de exploração sexual Art. 228. Induzir ou atrair alguém à prostituição ou outra forma de exploração sexual, facilitá-la, impedir ou dificultar que alguém a abandone: Pena - reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa. § 1º - Se o agente é ascendente, padrasto, madrasta, irmão, enteado, cônjuge, companheiro, tutor ou curador, preceptor ou empregador da vítima, ou se assumiu, por lei ou outra forma, obrigação de cuidado, proteção ou vigilância: Pena - reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos. § 2º - Se o crime, é cometido com emprego de violência, grave ameaça ou fraude: Pena - reclusão, de quatro a dez anos, além da pena correspondente à violência. § 3º - Se o crime é cometido com o fim de lucro, aplica-se também multa. Casa de prostituição Art. 229. Manter, por conta própria ou de terceiro, estabelecimento em que ocorra exploração sexual, haja, ou não, intuito de lucro ou mediação direta do proprietário ou gerente: Rufianismo Art. 230 - Tirar proveito da prostituição alheia, participando diretamente de seus lucros ou fazendo-se sustentar, no todo ou em parte, por quem a exerça: Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa. § 1º- Se a vítima é menor de 18 (dezoito) e maior de 14 (catorze) anos ou se o crime é cometido por ascendente, padrasto, madrasta, irmão, enteado, cônjuge, companheiro, tutor ou curador, preceptor ou empregador da vítima, ou por quem assumiu, por lei ou outra forma, obrigação de cuidado, proteção ou vigilância: Pena - reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos, e multa. § 2o Se o crime é cometido mediante violência, grave ameaça, fraude ou outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação da vontade da vítima: Pena - reclusão, de 2 (dois) a 8 (oito) anos, sem prejuízo da pena correspondente à violência. PLANALTO. Código Penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848compilado.htm>. Acesso em 21/03/2018.

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dos órgãos de proteção ao trabalho interceder nessas relações contratuais abusivas

que submetem trabalhadores a jornadas exaustivas, sem direito a descanso, sujeitos

a toda sorte de violências.

b) Trabalho análogo ao de escravo no âmbito doméstico

Ainda hodiernamente constata-se a contratação doméstica com contornos de

escravidão contemporânea, notadamente por famílias com melhor poder aquisitivo

que, a pretexto de acolher “filha de criação”, normalmente meninas advindas de

regiões pobres do país, valem-se de sua mão obra, sem observância de qualquer

limitação de jornada e demais direitos da relação de emprego.

Apenas para análise como a ocorrência é factível, pertinente trazer a baila a

condenação criminal de uma empregadora de Brasília/DF acusada dos crimes de

tortura e de redução análoga a de escravo de uma adolescente de 15 anos, que

migrou do interior de Goiás para trabalhar como empregada doméstica para a

acusada, sendo, entretanto, submetida a sofrimento físico e mental, com emprego

de violência e grave ameaça entre agosto de 2004 até fevereiro de 2007. Constatou-

se nas investigações que durante a execução do contrato, a adolescente foi privada

da possibilidade de estudar, jamais recebeu qualquer contraprestação pelo

exaustivo trabalho a que era submetida, não tendo respeitado ainda, os repousos

semanais remunerados. Segue ementa do acórdão:

E M E N T A: APELAÇÃO CRIMINAL. RECURSO DA DEFESA. CRIMES DE TORTURA E DE REDUÇÃO À CONDIÇÃO ANÁLOGA À DE ESCRAVO. ARTIGO 1º, INCISO II, C/C § 4º, INCISO II, DA LEI N.º 9.455/1997 E ARTIGO 149, § 2º, INCISO I, DO CÓDIGO PENAL. SENTENÇA CONDENATÓRIA. PEDIDO DE ABSOLVIÇÃO. NÃO ACOLHIMENTO. PROVA DA MATERIALIDADE E AUTORIA. SUBMISSÃO DA VÍTIMA A INTENSO SOFRIMENTO FÍSICO E MENTAL COMO FORMA DE CASTIGO PESSOAL. CONDIÇÕES DEGRADANTES DE ALIMENTAÇÃO, ACOMODAÇÃO E TRABALHO. PROVA TESTEMUNHAL E PERICIAL EM HARMONIA COM O DEPOIMENTO DA VÍTIMA. CONDENAÇÃO MANTIDA. RECURSO CONHECIDO E NÃO PROVIDO. 1. Para a caracterização do crime de tortura previsto no artigo 1º, inciso II, da Lei n.º 9.455/4997, exige-se a existência de lesões físicas e/ou sofrimento mental, causados em decorrência de constrangimento ilegal praticado com emprego de violência ou grave ameaça, como forma de castigo pessoal. 2. O crime de redução à condição análoga à de escravo configura-se com a submissão da vítima a condições degradantes de trabalho, mediante jornada exaustiva. 3. No caso dos autos, restaram configurados os crimes de tortura e de redução à

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condição análoga à de escravo, pois a prova testemunhal e pericial comprovam que a vítima foi submetida a ilegal e intenso sofrimento físico e mental, durante vários anos, como forma de castigo pessoal, em condições degradantes de alimentação, acomodação e trabalho, sem receber qualquer remuneração. Ademais, além da acusada submeter a vítima a trabalho excessivo, ainda a impedia de se comunicar com a família, restringindo sua liberdade de locomoção. (...) 5. Recurso conhecido e não provido para manter a sentença que condenou a ré nas sanções do artigo 149, § 2º, inciso I, do Código Penal (redução à condição análogo à de escravo) e artigo 1º, inciso II, c/c o § 4º, inciso II, ambos da Lei nº. 9.455/1997 (tortura), às penas de 06 (seis) anos e 08 (oito) meses de reclusão, em regime inicial semiaberto, e 15 (quinze) dias-multa, no valor mínimo legal. (Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios TJ-DF - Apelacao Criminal : APR 20100111881165 DF 0060801-58.2010.8.07.0001. 2ª Turma Criminal. 18 de julho de 2013).

Ainda no contexto de caracterização de trabalho análogo a de escravo no

âmbito doméstico, cita-se o recente e emblemático caso da doméstica resgatada na

Bahia, na cidade de Elísio Medrado, após 40 anos sem salário, folga ou férias. A

doméstica foi resgatada no dia 21/12/2017 por uma força tarefa composta pelo

Ministério Público do Trabalho, auditores-fiscais do trabalho, e Polícia Federal.

Como contraprestação pelo trabalho desempenhado, recebia apenas

alimentação, vestuário e medicamentos. Além de privar-se de vínculos sociais, era

submetida à violência psicológica, moral e física77.

Por fim, retomando as considerações do Representante do MPT, o membro

ressalta que, muito embora verificáveis em área urbana, as situações características

do trabalho escravo contemporâneo, não se distinguem relevantemente em relação

ao trabalho rural no tocante à exposição a situações de degradância e violação da

dignidade. Neste sentido, semelhantemente constata-se no cotidiano das ações de

fiscalização e resgate integradas pelo MPT78:

a) Trabalhadores em vulnerabilidade: em especial imigrantes legais (ex.

paraguaios que podem residir no Brasil) ou ilegais (ex. peruanos e bolivianos, países

77 G1. Doméstica em condições análogas à escravidão é resgatada na BA após 40 anos sem salário, folga ou férias. Disponível em: <https://g1.globo.com/ba/bahia/noticia/domestica-em-condicoes-analogas-a-escravidao-e-resgatada-na-ba-apos-40-anos-sem-salario-folga-ou-ferias.ghtml>. Acesso em: 22/03/2018. 78 CAVALHEIRO, Ruy Fernando Gomes Leme. Procurador do Trabalho. Mestre e Especialista em Direito. Especialista em Filosofia e História da Ciência. Curso Ênfase, regular 2017. Aulas 41 e 42.

Page 78: ESCRAVIDÃO MODERNA: CONFIGURAÇÃO E … · COMPLEXO DE ENSINO RENATO SARAIVA PRISCILA OLIVEIRA INÁCIO ESCRAVIDÃO MODERNA: CONFIGURAÇÃO E ENFRENTAMENTO Trabalho de Conclusão

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sem acordo de reciprocidade para trabalho no Brasil); migrantes de regiões pobres

(ex. Região Norte e Nordeste); atividades ilegais, clandestinas ou irregularidades.

b) Isolamento; cárcere ou restrição para contato com outras pessoas: em

regra, não é uma determinação impositiva para configuração da escravidão

moderna, mas decorrente da situação de vulnerabilidade, clandestinidade, ilicitude

do objeto da prestação de serviços, dívidas etc.

c) Informalidade do vínculo e da execução do contrato: inexistência de

registro em carteira profissional; anotação de jornadas; dias de trabalho, intervalos,

recibos de pagamentos e de consectários do salário, como depósitos fundiários e

recolhimentos previdenciários.

d) Condições sanitárias e de higiene precárias: comum a existências de

banheiros comunitários sem higienização, especialmente na construção civil e

prostíbulos.

e) Inadimplemento das Obrigações: reiteradas constatações de ausências ou

longos atrasos no pagamento de salários; longas jornadas sem pausa e restrição de

locomoção. Comum a ocorrências em oficinas de costura, prostíbulos e trabalho

doméstico.

f) Dívidas: normalmente decorrentes do transporte do aliciamento ilegal e cota

parte de moradia. Na prostituição também decorre de procedimentos estéticos,

como implantação de silicone, em regra aplicado por profissionais não habilitados.

g) Assédio moral e pressão por metas: estabelecimento de metas difíceis ou

impossíveis, cujo descumprimento gera ameaças de não pagamento, não renovação

de contrato, e até mesmo à vida do trabalhador. Exemplo: cafetina ameaça prostituta

de ir morar na rua, caso não trabalhe. Certas de que a ameaça é real, se submetem

às imposições. Em São Paulo é comum prostitutas em situação de rua. Em se

tratando de travestis e prostitutas, o meio ambiente de trabalho é muito propenso à

coisificação da pessoa.

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Outra hipótese é o trabalho de estrangeiros nas oficinas de costura, os quais

produzem sob ameaça de não pagamento, não renovação de contrato, não

permissão para trazer a família, denúncia da ilegalidade imigratória, agressões

físicas e até mesmo homicídios.

h) Pagamento por produção: em regra, há estabelecimento de metas

altíssimas, que demandam jornadas exaustivas e assédio moral para o

cumprimento. São exemplos o número de programas para prostitutas e produção de

centenas e milhares de peças de vestuário nas oficinas têxteis. O MPT já constatou

neste meio ambiente laboral o trabalho de Boliviano que recebia R$ 0,02 (dois

centavos) por zíper que juntava à roupa.

i) Aliciamento de trabalhadores: migrantes brasileiros oriundos normalmente

da Região Norte e Nordeste, ou do interior de São Paulo e Minas Gerais para

trabalharem nos grandes centros industriais, sem comunicação ao Ministério do

Trabalho.

j) Tráfico de pessoas: casos de imigrantes ilegais. Há tipificação do crime no

Código Penal Brasileiro, consoante art.149 A79, acrescentado pela Lei 13.344/2016.

Trata-se de crime de ação múltipla ou plurinuclear, isto é, descreve várias condutas

no mesmo artigo, entre as quais destaca-se o núcleo do tipo comprar, verbo que

sinaliza a coisificação do ser humano.

79 Art. 149-A. Agenciar, aliciar, recrutar, transportar, transferir, comprar, alojar ou acolher pessoa, mediante grave ameaça, violência, coação, fraude ou abuso, com a finalidade de: I - remover-lhe órgãos, tecidos ou partes do corpo; II - submetê-la a trabalho em condições análogas à de escravo; III - submetê-la a qualquer tipo de servidão; IV - adoção ilegal; ou V - exploração sexual. Pena - reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa. § 1o A pena é aumentada de um terço até a metade se: I - o crime for cometido por funcionário público no exercício de suas funções ou a pretexto de exercê-las; II - o crime for cometido contra criança, adolescente ou pessoa idosa ou com deficiência; III - o agente se prevalecer de relações de parentesco, domésticas, de coabitação, de hospitalidade, de dependência econômica, de autoridade ou de superioridade hierárquica inerente ao exercício de emprego, cargo ou função; ou IV - a vítima do tráfico de pessoas for retirada do território nacional. § 2º A pena é reduzida de um a dois terços se o agente for primário e não integrar organização criminosa. PLANALTO. Código Penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848compilado.htm>. Acesso em 21/03/2018.

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No cotidiano laboral é comum a submissão passiva de estrangeiros a condições

degradantes, por considerarem-se em posição de vantagem face o patamar de

direitos inferior praticados em seus países de origem.

A vontade do contratado, entretanto, é desconsiderada, pois aqui se tutela a

dignidade da pessoa humana. A vítima não é só o trabalhador, mas a coletividade,

sendo este é fundamento para o dano moral coletivo, pois a liberdade, a dignidade e

o valor social do trabalho são bens sociais que ultrapassam a esfera de contratação

privada.

k) Tráfico de pessoas para o estrangeiro: a crise econômica pode levar

brasileiros à emigração. Os destinos mais comuns são EUA, Turquia e Japão.

O enquadramento jurídico para conduta é o mesmo art.149 A do CP, que é

crime plurinuclear que prevê amplo rol de condutas para tipificar o tráfico de

pessoas, a saber: Agenciar, aliciar, recrutar, transportar, transferir, comprar, alojar ou

acolher pessoa, mediante grave ameaça, violência, coação, fraude ou abuso, com a

finalidade de: (...) II - submetê-la a trabalho em condições análogas à de escravo;

III - submetê-la a qualquer tipo de servidão.

Os recrutados geralmente são pessoas com baixa instrução, não ocupantes

de rentáveis postos de trabalho no Brasil, que se iludem com a ideia de fazer fortuna

no estrangeiro.

O Representante do MPT aponta como principais características do fluxo de

trabalhadores recrutados no Brasil para trabalhar no estrangeiro:

a) Falsas promessas de salário e condições de trabalho;

b) Informalidade do vínculo: Não existe contrato de trabalho, não obstante a

lei do trabalho estrangeiro exigir registro em carteira e uma série de outros

requisitos;

c) Ausência de vistos para trabalhar no país de destino: Comum nos EUA e

Europa, países nos quais os trabalhadores adquirem visto de turista, porém ao

chegarem ao destino iniciam atividade profissional. Em alguns casos, como nos

EUA, por exemplo, a prática é considerada crime, com risco de deportação.

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d) Assunção de despesas burocráticas pelo trabalhador: para pagamento

de passaportes, vistos, acomodações, vacinas, passagens de ida e volta etc.

e) Trabalhadores que não dominam o idioma do local de destino;

f) Em casos extremos ocorre: Trabalho escravo; Prostituição; Trabalhos

pornográficos (vídeos e webcam ao vivo).

g) Trabalhadores imigrantes sem visto de trabalho: Com exceção dos

países integrantes do Mercosul, geralmente o trabalhador imigrante que vem ao

Brasil é clandestino (ex. peruano, boliviano).

A característica da clandestinidade favorece a exploração ilícita de mão de

obra, pois o trabalhador se sujeita à toda e qualquer arbitrariedade sem recorrer às

autoridades.

h) Inadequação ambiental: a inspeção pelos órgãos de fiscalização em

oficinas de costura resulta na constatação de problemas de ergonomia. Comum a

realização do trabalho em cadeiras inadequadas, a exemplo, de praia, de jantar, de

plástico, utilizadas em uma jornada média de 12 horas por dia de trabalho.

Verifica-se, outrossim, a presença de alojamentos inadequados, com camas

velhas sem roupas de cama, ausência de armários e outros utensílios domésticos

essenciais.

Ademais, a iluminação normalmente é precária, havendo casos em que a

confecção ou oficinas de costura situam-se no subsolo do prédio ou em quarto no

fundo da casa, normalmente sem janela para ocultar a degradância do trabalho.

Também se verifica ausência de segurança na rede elétrica, com fiação

exposta e irregular para funcionamento das máquinas, fios desencapados ou com

fitas isolantes e benjamins. Todas situações de alto risco de curto circuito e incêndio.

Constata-se ainda, a presença de poeiras e pós de cortar, de adesivo, gases

das máquinas, dos tingimentos; fezes de animais; restos de comida; lixo

desembalado; além de riscos estruturais do imóvel, dada a inadequação para

atender aquela finalidade, sendo ainda, velhos e mal conservados.

É comum a ausência de alvarás e de licenças para funcionamento dos

estabelecimentos; existência de máquinas perigosas sem manutenção; ausência de

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equipamentos de proteção individual e de PCMSO - Programa de Controle da Saúde

Médico Ocupacional.

i) Terceirização fraudulenta: hipótese tipicamente aferível em confecções

têxteis, para onde a marca encaminha peças pilotos com todas as orientações de

montagem para reprodução. Da confecção, o trabalho é repassado para oficinas de

costura, as quais não desempenham qualquer criação. Todo serviço é coordenado

pela empresa contratante, que impõe integralmente o modus operandi.

3.4 Teorias de Responsabilização do Principal Beneficiário da Produção nas

Cadeias Produtivas

3.4.1 Teoria da Cegueira Deliberada

Proveniente do Direito Penal, também é analisada na perspectiva sociológica

das relações humanas. É também conhecida como “Teoria do Avestruz”, em alusão

ao animal que enterra a cabeça na terra. Concebe o comportamento do agente que

acintosamente se coloca em situação de ignorância, quando tinha o dever razoável

e objetivo de conhecer.

O infrator, nessa perspectiva, cria obstáculos, de forma consciente e

voluntária, para desconhecer a ilicitude de sua conduta, de sorte que sua ignorância

deliberada passa a equivaler-se ao dolo eventual ou, até mesmo, à culpa

consciente. Há possibilidade de o agente ter acesso à determinada informação,

porém, por razões diversas, opta por não adquiri-las, mantendo-se,

intencionalmente, em estado de incerteza80.

O MPT atua enfaticamente na questão da precarização do trabalho nas

cadeias produtivas, buscando a condenação das empresas-mãe, reais beneficiárias

da exploração ilícita.

No âmbito dos tribunais trabalhistas vêm se obtendo o reconhecimento da

responsabilidade da empresa holding, como, a título de exemplo, em recentes

80 CONJUR. Aplicação da cegueira deliberada requer cuidados na prática forense. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2017-ago-09/victor-valente-aplicacao-cegueira-deliberada-requer-cuidados>. Acesso em: 20/03/2018.

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decisões proferidas no caso Zara, a respeito do qual, o MPT/SP divulgou matéria em

seu site oficial81:

“Justiça responsabiliza Zara por trabalho escravo e empresa pode entrar na “lista suja” Empresa tentou anular as provas de que havia trabalho escravo em sua cadeia de produção São Paulo, 13 novembro de 2017 – O Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região determinou na semana passada (8/11) que o trabalho análogo ao escravo registrado na cadeia produtiva da Zara Brasil LTDA em 2011 é de fato responsabilidade da marca de roupas, que faz parte do grupo multinacional Inditex. Segundo o desembargador do Trabalho Ricardo Artur Costa Trigueiros, relator do acórdão, “é impossível” aceitar a ideia de que a Zara não sabia o que estava acontecendo nas oficinas de costura, em uma espécie de “cegueira conveniente”. (...) "A decisão está em conformidade com as deliberações da Organização Internacional do Trabalho (OIT) em matéria de responsabilidade em cadeias produtivas”, afirmou o procurador do Trabalho Luiz Carlos Michele fabre, que acompanha o caso desde o início. “O subproduto do trabalho escravo é a proliferação de bolsões de miséria e mazelas sociais. Nada mais justo que tal degradação sócio-ambiental urbana seja internalizada pela detentora do poder econômico relevante em uma cadeia produtiva, ainda que o trabalho escravo haja sido flagrado em oficinas contratadas por fornecedoras da Zara". No acórdão, o desembargador afirma que a Zara fez mais do que ignorar deliberadamente o que se passava nas oficinas contratadas por suas tercerizadas, como a Aha Indústria e Comércio: “A cadeia produtiva da Zara empregou a Aha como entreposta, no esforço de evitar seu flagrante envolvimento com mão-de-obra em condições análogas às de escravo”, afirmou. A decisão judicial também possibilita que a Zara seja incluída no Cadastro de Empregadores que mantiveram trabalhadores em condições análogas à de escravos, conhecido como "Lista Suja". Um dos indícios mais fortes da fraude era que a Aha não tinha em suas instalações nenhuma máquina de costura. Era impossível que a Zara não soubesse disso, já que a produção dependeria de máquinas e trabalhadores. Para o Desembargador, a Zara pretendia, com a cegueira deliberada, “obter um produto de qualidade barata, através de quarteirização, que obviamente implicava em baixíssimos custos, que somente poderiam ser obtidos de forma ilegal”. O grupo têxtil Inditex, que detém a marca Zara, é uma multinacional com patrimônio de cerca de U$ 25 milhões. Em 2016, o grupo registrou lucro líquido de US$ 3,277 bilhões), uma alta de 10% com

81 MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO EM SÃO PAULO. Justiça responsabiliza Zara por trabalho escravo e empresa pode entrar na “lista suja”. Disponível em: <http://www.prt2.mpt.mp.br/513-justica-responsabiliza-zara-por-trabalho-escravo-e-empresa-pode-entrar-na-lista-suja>. Acesso em: 23/03/2018.

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relação a 2015. Em agosto de 2011, uma operação do Ministério do Trabalho flagrou 15 pessoas, incluindo uma adolescente de 14 anos, trabalhando em regime análogo ao de escravidão nas oficinas fornecedoras da Zara situadas em São Paulo. Meses antes, dezenas de trabalhadores, bolivianos em sua maioria, também haviam sido flagrados nas mesmas condições em oficinas na cidade de Americana (SP)”. Original sem destaque.

A aceitação da teoria na jurisprudência laboral sinaliza a recusa da cegueira

opcional, que nos dizeres do juiz do trabalho da 14ª Região, Wagson Lindolfo José

Filho82 “não pode ser arguida para se imiscuir das obrigações de cunho social,

caracterizando-se a conduta omissa do tomador dos serviços em nítida fraude aos

preceitos trabalhistas”.

Especialmente no TRT da 2ª Região, o trabalho escravo está concentrado na

construção civil e na área têxtil. Nesta, como se denota ilustrativamente do acórdão

supramencionado, há envolvimento de empresas detentoras de marcas de grife,

gerando grande repercussão social os flagrantes de trabalho escravo em suas

cadeias produtivas.

O sobredito magistrado trabalhista descreve a problemática do trabalho em

condições análogas à escravidão nas oficinas de costura da seguinte maneira:

As vítimas, nestes casos, são estrangeiras, oriundas de países como Bolívia, Peru e Paraguai. Em seus países de origem são aliciadas para trabalhar em oficinas de costura, com promessas de melhores oportunidades. Quando chegam em São Paulo já possuem uma dívida de US$ 1500,00 (mil e quinhentos dólares) com os seus agenciadores. São empilhadas em casas transformadas em cortiços, sem as mínimas condições dignas para habitação. Sem recursos, veem a dívida aumentando com a moradia e alimentação “subsidiadas”. Recebem um salário médio de R$ 400,00 por mês, numa jornada que vai das sete da manhã até meia noite, seis dias por semana, de segunda a sábado. Passam um período de três meses de experiência, quando seus vencimentos são destinados integralmente ao pagamento das dívidas da viagem. Desconhecem a língua portuguesa, sendo que muitos sequer falam espanhol, pois são oriundos de regiões onde se comunicam através de dialetos indígenas. Quando estragam uma peça de roupa é descontado de seus salários o valor da loja, de vitrine, e não o de custo. Diz o procurador Fabre que dos trezentos mil estrangeiros que chegaram nestas situações, somente um terço está de forma regular. Como com os imigrantes europeus do final do século XIX, que aportavam

82 MAGISTRADO TRABALHISTA. Teoria do avestruz - Aplicabilidade no Direito do Trabalho. Disponível em: <http://www.magistradotrabalhista.com.br/2013/11/teoria-do-avestruz-aplicabilidade-no.html>. Acesso em: 25/03/2018.

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em Santos, rumo às fazendas de café e se endividavam nos armazéns, a história se repete. Original sem destaque.

Oportuno mencionar que tais considerações foram extraídas de artigo,

publicado pelo juiz em novembro de 2013, o que denota que, não obstante

transcorrido quase cinco anos, esta realidade não se alterou significativamente,

conforme apontamentos das investigações narradas pelo Procurador do Trabalho

Ruy Fernando Gomes Leme Cavalheiro, descritas no transcorrer deste trabalho.

Especificamente quanto às cadeias produtivas, relata o magistrado da 14ª

Região:

(...) A cadeia criminosa funciona da seguinte forma: As vítimas vêm diretamente para as “instalações” de um oficineiro, que normalmente é uma pessoa que chegou nas mesmas circunstâncias e conseguiu transitar da posição de vítima para escravizador. Este é terceirizado por confecções maiores, muitas cujos donos são sul coreanos, que intermediam o produto para a ponta final, com a função de colocar o produto no mercado, ou seja, para as grandes grifes. (...) A estratégia de combate é começar de cima para baixo, fazendo com que as grandes grifes não subsidiem este tipo de conduta, provocando a quebra de toda a cadeia. Estas grandes empresas sempre afirmam que desconheciam tais práticas por suas parcerias, mas os membros do MPT aplicam para responsabilizá-las a denominada “teoria da Cegueira Deliberada”, também conhecida como teoria do avestruz, segundo a qual o maior beneficiado, embora não tenha um contato direto com a conduta ilegal, faz vistas grossas a um fato conhecido no ramo, que não teria como ser ignorado em razão dos preços bem baixos pagos pelas peças têxteis encomendadas, o que evidencia que do outro lado só pode haver uma parte sendo prejudicada, qual seja, o trabalhador.

Sem embargo da dignidade da pessoa humana, valor central que se busca

preservar com o combate das cadeias produtivas ilícitas, há, outrossim, a

preocupação com o equilíbrio socioeconômico do país. Isso porque é certo que a

fragmentação fraudulenta que se observa nessas cadeias gera o dumping social,

prática caracterizada pela “adoção de práticas desumanas de trabalho, pelo

empregador, com o objetivo de reduzir os custos de produção e, assim, aumentar os

seus lucros”83.

83 MIGALHAS. "Dumping Social" - Uma prática desconhecida pelas empresas. Disponível em: <http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI217836,21048-%20Dumping+Social+Uma+pratica+desconhecida+pelas+empresas>. Acesso em 26/03/2018.

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O dumping social é, a rigor, concorrência desleal contra as empresas que

observam as leis trabalhistas, concorrendo efetivamente para o desequilíbrio na

economia. Ademais, resulta na configuração de uma nova roupagem da escravidão

contemporânea, assentada na versão moderna de novos mercadores de escravos

combatidos, noutro giro, por novos abolicionistas.

Com base nisso, medida que se impõe é a responsabilização de todos

aqueles que, de um lado, deliberadamente assumem posição de desconhecedores

das ilicitudes em seus processos produtivos, e, de outro, afiguram-se principais

beneficiários do trabalho executados em condições indignas e subumanas.

3.4.2 Teoria da Subordinação Integrativa

Como cediço, a relação de emprego é configurada a partir dos elementos

fáticos jurídicos da pessoalidade, onerosidade, não eventualidade e especialmente,

a subordinação jurídica.

De rigor, entretanto, salientar que o conceito tradicional de subordinação

sofreu significativas alterações com as mudanças sociolaborais, vindo a estabelecer-

se atualmente em moldes bastante diversos do estado de sujeição do empregado na

relação de trabalho, baseada em controle rigorosamente pessoal, essencialmente

subjetivo.

Consoante doutrina de Maurício Godinho Delgado, em sua concepção

moderna, a natureza jurídica da subordinação classifica-se, inquestionavelmente,

como um fenômeno jurídico, derivado do contrato estabelecido entre trabalhador e

tomador de serviços, pelo qual o primeiro acolhe o direcionamento objetivo do

segundo sobre a forma de efetuação da prestação do trabalho84.

Noutra quadra, a reestruturação do processo produtivo exigiu o

estabelecimento de novos critérios objetivos para averiguação da subordinação

jurídica, entre estes, o grau de integração do trabalhador na estrutura ou

organização da empresa, consubstanciada na subordinação estrutural ou integrativa.

Para o mencionado doutrinador, também Ministro do Tribunal Superior do

Trabalho, a subordinação, como qualquer fenômeno social, tem sofrido ajustes e

adequações ao longo dos dois últimos séculos. Neste contexto, destacam-se com

84 DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 14ª Ed. São Paulo: LTR, 2015.2015, p. 312.

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relação ao fenômeno três dimensões principais: a clássica (a mais comum,

consistente no acolhimento do poder direção empresarial quanto ao modo de

prestação da atividade laborativa); a objetiva (pautada pela integração do

trabalhador nos fins e objetivos do empreendimento do tomador de serviços, ainda

que afrouxadas as amarras do vínculo empregatício) e, por fim, a estrutural, de

especial relevância ao presente estudo.

Nessa linha, Godinho aponta que subordinação estrutural é a que se

expressa:

(...) na dinâmica do tomador de seus serviços, independentemente de receber (ou não) suas ordens diretas, mas acolhendo, estruturalmente, sua dinâmica de organização e funcionamento. Nesta dimensão da subordinação, não importa que o trabalhador se harmonize (ou não) aos objetivos do empreendimento, nem que receba ordens diretas das específicas chefias deste: o fundamental é que esteja estruturalmente vinculado à dinâmica operativa da atividade do tomador de serviços85.

A teoria da subordinação estrutural ou integrativa, bastante aplicada nas

cadeias produtivas pautadas na terceirização dos serviços, mede a integração do

trabalhador na estrutura produtiva da empresa beneficiária dos serviços contratados,

avaliando-se a sua sujeição ao poder diretivo da empresa tomadora dos serviços.

Na prática, quando determinado fornecedor tem quase a totalidade de sua

produção voltada a atender a demanda de determinada empresa, subordina-se

economicamente a esta. Seria o caso de um fornecedor que, sem aquela empresa

que o contrata, seque existiria.

É, de fato, uma nova versão do exercício do poder diretivo, harmônica com os

novos tempos e com a inovação legislativa inaugurada pela Lei 12.551/11. A norma

em tela altera o art.6º da Consolidação das Leis do Trabalho – CLT, que dispõe

sobre a ausência de distinção entre o trabalho realizado no estabelecimento do

empregador e o executado à distância. Dispõe neste sentido que “os meios

telemáticos e informatizados de comando, controle e supervisão se equiparam, para

85 DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 14ª Ed. São Paulo: LTR, 2015, p. 314.

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fins de subordinação jurídica, aos meios pessoais e diretos de comando, controle e

supervisão do trabalho alheio”86.

A teoria da subordinação estrutural, de viés objetivo, visa resguardar a

proteção do trabalhador face às novas formas de trabalho antes afastadas pela

teoria tradicional.

No âmbito da jurisprudência trabalhista é possível o reconhecimento do

vínculo de emprego direto com o tomador dos serviços, quando caracterizado os

elementos da subordinação integrativa. Neste sentido:

MATÉRIAS SUSCITADAS APENAS NO AGRAVO DE INSTRUMENTO EM RECURSO DE REVISTA DA PROATIVO SERVIÇOS E TELEMARKETING EIRELI - EPP . RECURSO DE REVISTA INTERPOSTO NA VIGÊNCIA DA LEI Nº 13.015/2014. REQUERIMENTO DE SOBRESTAMENTO DO FEITO PARA AGUARDAR PRONUNCIAMENTO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL EM PROCESSO COM REPERCUSSÃO GERAL. (...) MATÉRIA COMUM SUSCITADA NOS AGRAVOS DE INSTRUMENTO EM RECURSOS DE REVISTA DOS RECLAMADOS . RECURSO DE REVISTA INTERPOSTO NA VIGÊNCIA DA LEI Nº 13.015/2014. TERCEIRIZAÇÃO ILÍCITA. BANCÁRIO. ATIVIDADE-FIM. FORMAÇÃO DO VÍNCULO EMPREGATÍCIO DIRETAMENTE COM O TOMADOR DE SERVIÇOS. SÚMULA Nº 331, ITEM I, DO TST. APLICAÇÃO DOS BENEFÍCIOS PREVISTOS EM NORMAS COLETIVAS DA CATEGORIA. O Tribunal Regional, com base no conjunto fático-probatório dos autos e com amparo na Súmula nº 331, item I, desta Corte, afirmou que as atividades desempenhadas pela reclamante, consistentes "na venda de produtos, empréstimos, seguros, etc.", aos clientes do banco estavam inseridas na atividade-fim do tomador de serviços, porquanto eram essenciais para os serviços de créditos oferecidos pelo banco reclamado, ficando configurada a ilicitude da terceirização. Indubitável que as atividades descritas estão inseridas na atividade precípua do tomador de serviços, tratando-se de serviço integrado à dinâmica produtiva do banco reclamado, com a inserção da reclamante no âmbito do empreendimento econômico do banco, o qual se beneficiou da força de trabalho da autora, caracterizando o que a doutrina moderna denomina subordinação estrutural, apta ao reconhecimento do vínculo de emprego. Nesse contexto, merece ser mantida a decisão regional por meio da qual se reconheceram o vínculo de emprego com o tomador de serviços e, como consectário lógico, a aplicação das normas coletivas dos bancários e a responsabilidade solidária dos reclamados, em face da terceirização ilícita. Agravo de instrumento desprovido. (TST - AIRR: 105881520155030040, Relator: José Roberto Freire Pimenta, Data

86 PLANALTO. Consolidação das Leis do Trabalho. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del5452compilado.htm>. Acesso em 26/03/2018.

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de Julgamento: 20/03/2018, 2ª Turma, Data de Publicação: DEJT 23/03/2018). Original sem destaque.

No particular, convém mencionar que com as inovações trazidas pela

Reforma Trabalhista, consoante Lei 13.467/17, a irregularidade das terceirizações

para execução das atividades finalísticas da empresa ganha novos contornos.

Conforme oportunamente mencionado no decorrer deste trabalho, a inovação

legislativa tornou expressamente lícita a contratação de prestadoras de serviços

para prestação de quaisquer atividades empresariais, inclusive a principal. (Lei

6.019/74, art.4ºA).

Com isso, a Reforma instituiu um regramento autorizador da divisão e

especialização do trabalho dentro da empresa. Entretanto, o que se convém

sustentar pautado no princípio maior do Direito do Trabalho, Princípio da Proteção, é

que a inovação legislativa não autorizou o emprego da terceirização como

instrumento de intermediação de mão obra, pactuação excepcionalmente admitida

somente nas relações de trabalho temporário.

Para Ricardo Souza Calcini87, não há que se confundir a intermediação de

mão de obra com a legítima e efetiva terceirização de serviços, viabilizada por uma

pessoa jurídica de direito privado a terceiros. Complementa que no âmbito da Lei

13.429/17, a empresa terceirizada, responsável pela prestação de serviços a

terceiros, passou a se dedicar à execução de serviços, os quais, a partir da reforma

trabalhista, podem ser direcionados às atividades principais da contratante dentro da

perspectiva de terceirização lícita.

Contudo, releva mencionar que a licitude da terceirização neste contexto, é a

que pressupõe ausência de pessoalidade e subordinação direta dos empregados

terceirizados em relação aos representantes legais e/ou prepostos da contratante.

Assim sendo, o disposto na parte final do item III, da Súmula 331 do C. TST88, segue

87 CONJUR. Contrato de trabalho anterior à reforma trabalhista deve seguir Súmula 331. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2017-out-29/ricardo-calcini-contrato-anterior-reforma-trabalhista-seguir-sumula-331>. Acesso em: 16/03/2018. 88 Súmula nº 331 do TST - CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS. LEGALIDADE (nova redação do item IV e inseridos os itens V e VI à redação) - Res. 174/2011, DEJT divulgado em 27, 30 e 31.05.2011. (...) III - Não forma vínculo de emprego com o tomador a contratação de serviços de vigilância (Lei nº 7.102, de 20.06.1983) e de conservação e limpeza, bem como a de serviços especializados ligados à atividade-meio do tomador, desde que inexistente a pessoalidade e a subordinação direta. TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO. Súmula nº 331. Disponível em: <http://www3.tst.jus.br/jurisprudencia/Sumulas_com_indice/Sumulas_Ind_301_350.html>. Acesso em 26/03/2018.

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90

vigente, ainda que a essência do verbete tenha sido mitigada pela legislação

superveniente.

Com isso, é medida acertada sustentar que as modificações legiferantes

promovidas pela Reforma não são permissivos para mercantilização do trabalho

humano, o que sustenta com base no valor social do trabalho como fundamento da

República (CF/88, art.1º, IV), alicerce da ordem econômica (Cf/88, art.170 caput e

VIII), e base da ordem social (CF/88, art.193).

Com base no exposto, constatações de fragmentação do processo produtivo

por meio de cadeias produtivas ilícitas, são sim fatores que ensejam reprimenda

estatal com a devida responsabilização dos infratores.

3.4.3 Teoria do Ajenidad

Alheiabilidade ou “Ajenidad” é termo espanhol que se refere à alteridade, ou

seja, assunção dos riscos de um negócio, consoante previsão na norma consolidada

(CLT, art. 2º)89.

Essa teoria responsabiliza quem detém o poder econômico, valendo-se, para

tanto, do Princípio da Justiça, segundo o qual quem detém o bônus aufere o ônus da

atividade empreendida. Neste sentido, o maior beneficiário da atividade deve

assumir todos os riscos de sua execução.

Em relação à temática, Vólia Bonfim Cassar aduz:

“Ajenidad significa aquisição originária de trabalho por conta alheia. Este princípio revela dois conteúdos: a) que a aquisição do trabalho gera o vínculo de emprego com o tomador que originariamente recebe os serviços do empregado, daí por que a aquisição é originária; b) que o trabalho é exercido para e por conta de outra pessoa. Isto quer dizer que a energia desprendida pelo trabalhador destina-se a outro que não ele próprio e que é por conta deste tomador que ele exerce seus serviços, logo, é o empregador quem corre os riscos deste negócio. Daí exsurge a conclusão de que o natural é que o vínculo de emprego se forme diretamente com o tomador de serviços. A terceirização deve ser considerada como exceção, pois a aquisição

89 Art. 2º - Considera-se empregador a empresa, individual ou coletiva, que, assumindo os riscos da atividade econômica, admite, assalaria e dirige a prestação pessoal de serviço. PLANALTO. Consolidação das Leis do Trabalho. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del5452compilado.htm>. Acesso em 26/03/2018.

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91

do trabalho se dá de forma derivada para a empresa que terceiriza mão de obra. Outra característica que se abstrai deste princípio é o caráter forfetário da relação de emprego, isto é, de que ela é onerosa e os riscos são sofridos apenas pelo patrão”90.

A teoria da alheiabilidade, baseada no direito comparado espanhol, também

ventila a jurisprudência dos tribunais pátrios, como bem delineado no aresto adiante

transcrito:

COOPERATIVA RELAÇÃO DE EMPREGO. ALTERIDADE E ALHEAMENTO. Uma vez não evidenciado que o trabalho prestado - de forma pessoal e habitual, resultasse em proveito comum da própria coletividade de trabalhadores, é de se presumir que o produto desse trabalho se efetivasse em proveito alheio. Em se tratando de atividade perfeita e essencialmente inserida na esfera produtiva do tomador de serviço, sujeitada ao seu poder de organização, a presunção ordinária é a de que tal labor seja logrado a benefício do empreendimento contratante do trabalho. Para configuração do autêntico trabalho cooperado, o essencial não é propriamente a inexistência de alteridade, já que esta última decorre da própria prestação de serviço a outro, mas, sim, e, sobretudo, da inexistência de alheamento dos frutos do trabalho prestado. Nessa mesma linha, inclusive, a tradição da doutrina espanhola, por exemplo, foca-se primordialmente na existência ou não de trabalho em proveito alheio "ajenidad" e não especificamente na subordinação hierárquica, já que a subordinação decorre muito mais da forma rígida de organização da produção "regime taylorista" do que especificamente do modo de apropriação do excedente econômico gerado pelo trabalho. Se há apropriação desse excedente por outrem que não o trabalhador, não há falar em regime de trabalho cooperado, senão em trabalho economicamente alienado e tornado estranho ao seu produtor imediato e, enquanto tal, sujeito ao regime de tuição normativa da CLT. (RO-00586-2007-134-03-00-6- D.J. de 26/09/2007). (TRT-3 - RO: 1993507 01667-2006-043-03-00-5, Relator: Jose Eduardo Resende Chaves Jr., Quarta Turma, Data de Publicação: 06/11/2007,DJMG . Página 19. Boletim: Não.) Original sem destaque.

Conclui-se diante do exposto, que se a contratação da prestação dos serviços

é gestada sem autonomia pelo prestador, mantendo-se este alheio à produção de

seus frutos, não há falar em terceirização lícita, restando em consequência o

reconhecimento direto com o tomador dos serviços, real beneficiários dos frutos do

trabalho alheio.

90 CASSAR, Vólia Bomfim. Direito do Trabalho. 9ª Ed. São Paulo: Método, 2014, p. 267.

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92

3.4.4 Teoria da Internalização das Externalidades Negativas

De comum aplicação na seara do Direito Ambiental, no âmbito do Direito do

Trabalho quer significar que os efeitos gerados no meio ambiente do trabalho pela

atividade econômica devem ser assumidos pela empresa responsável.

Na esfera das cadeias produtivas, a teoria é fundamento válido para

responsabilização dos beneficiários do custo ambiental dos processos produtivos,

traduzidos nos danos ocasionados aos trabalhadores em sua concepção coletiva ou

mesmo individualizada, como ocorre no trabalho escravo.

No Direito pátrio, o fundamento jurídico para aplicação da Teoria da

Internalização das Externalidades Negativas invoca como argumento o art. 14, §1º

da Lei nº 6.938/8191 (Política Nacional do Meio Ambiente), que dispõe acerca da

responsabilidade do poluidor independentemente de culpa, pautado na sua

responsabilidade objetiva.

Na realidade justrabalhista, aplica-se a teoria ilustrativamente na hipótese de

Grife de vestuário sem produção própria que contrata confecção para produção de

calças, ao valor de $40,00, comercializando a mesma peça no mercado por

R$120,00. A confecção contratada subcontrata oficina de costura, oferecendo-lhe o

preço de R$4,50 à peça. O dono da oficina retém parte deste valor, repassando aos

trabalhadores um terço da quantia por peça produzida.

No exemplo acima, mencionado pelo Procurador do Trabalho Luís Carlos

Michele Fabre92, “a concentração de esforços em face da Oficina levará à

formalização da situação de 20, 30 trabalhadores. A atuação na Confecção elevará

este número em algumas dezenas. Já a atuação em face da Grife abrangerá até

quinze mil costureiros, a um dispêndio de esforços e recursos que pouco varia

91 Art. 14 - Sem prejuízo das penalidades definidas pela legislação federal, estadual e municipal, o não cumprimento das medidas necessárias à preservação ou correção dos inconvenientes e danos causados pela degradação da qualidade ambiental sujeitará os transgressores: (...) § 1º Sem obstar a aplicação das penalidades previstas neste artigo, é o poluidor obrigado, independentemente da existência de culpa, a indenizar ou reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros, afetados por sua atividade. O Ministério Público da União e dos Estados terá legitimidade para propor ação de responsabilidade civil e criminal, por danos causados ao meio ambiente. PLANALTO. Lei nº 6.938, de 1981. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L6938compilada.htm>. Acesso em: 26/03/2018. 92 CARTA FORENSE. A responsabilidade das grifes pelo trabalho escravo nas oficinas. Disponível em: <http://www.cartaforense.com.br/conteudo/artigos/a-responsabilidade-das-grifes-pelo-trabalho-escravo-nas-oficinas/12979>. Acesso em: 26/03/2018.

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conforme o alvo. Portanto, a solução racional do problema requesta imputações à

Grife”.

Ressalta o Procurador que nesta hipótese, a Grife, não se trata de um

beneficiário situado em ponto remoto da cadeia produtiva. É patente a configuração

de sua intervenção enquanto detentora de relevante poderio econômico,

idealizadora do modo operacional de execução dos trabalhos e principal beneficiária

da rede produtiva.

Na perspectiva internacional o Princípio do Poluidor Pagador, também

chamado de Princípio da Responsabilidade, foi consagrado com a Conferência das

Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, realizados no Rio de

Janeiro, em junho de 1992 (ECO-92). O evento reafirmou as diretrizes da

Conferência de Estocolmo (1972), adicionando e consagrando outras diretrizes,

como os Princípios do Desenvolvimento Sustentável e do Poluidor Pagador, este

elevado à matéria da Declaração do Rio (1992).

O Princípio16 da mencionada Declaração dispõe o seguinte:

(..) Tendo em vista que o poluidor deve, em princípio, arcar com o custo decorrente da poluição, as autoridades nacionais devem promover a internalização dos custos ambientais e o uso de instrumentos econômicos, levando na devida conta o interesse público, sem distorcer o comércio e os investimentos internacionais93.

Em se tratando de externalidades negativas ambientais, o Princípio do

Poluidor Pagador pretende distribuir equitativamente os danos ao meio ambiente,

nele incluído a ambiência laboral (art.200, VIII)94.

No âmbito das relações trabalhistas aplica-se a teoria em questão com o fim

de responsabilizar o empregador ou tomador dos serviços, os quais, em razão do

exercício de suas atividades econômicas, provocam danos ao meio ambiente

laboral, sendo correta a responsabilização pela reparação, independentemente de

culpa eventualmente verificável.

93 SCIELO. Declaração do Rio de Janeiro. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/ea/v6n15/v6n15a13.pdf>. Acesso em: 26/03/2018. 94 Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. Art. 200. Ao sistema único de saúde compete, além de outras atribuições, nos termos da lei: (...) VIII - colaborar na proteção do meio ambiente, nele compreendido o do trabalho. PLANALTO. Constituição Federal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 21/01/2018.

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4. DO RETROCESSO SOCIAL NA CONFIGURAÇÃO DO CRIME DE REDUÇÃO À

CONDIÇÃO ANÁLOGA A DE ESCRAVO

4.1 Da Edição da Portaria nº 1.129/2017 do Ministério do Trabalho e Emprego

A despeito do destacado papel do Brasil na concretização de políticas

públicas de prevenção e combate ao trabalho em condições análogas à escravidão

após a denúncia na Comissão Interamericana de Direitos Humanos, face o

paradigmático Caso José Pereira, testemunha-se hodiernamente flagrante tentativa

de retrocesso na temática em voga.

O recuo normativo refere-se à edição da Portaria nº 1.129 DE 13/10/2017 pelo

Ministério do Trabalho, publicada no Diário Oficial da União em 16/10/2017, cujo teor

modifica o conceito de trabalho escravo e traz novo regramento para publicação do

Cadastro de Empregadores que tenham submetido trabalhadores a condições

análogas a de escravo, a chamada “Lista Suja”.

A Portaria dispõe sobre os conceitos de trabalho forçado, jornada exaustiva e

condições análogas à de escravo para fins de concessão de seguro-desemprego ao

trabalhador que vier a ser resgatado em fiscalização do Ministério do Trabalho.

De acordo com o art.1º, para fins de concessão de benefício de seguro-

desemprego ao trabalhador que vier a ser identificado como submetido a regime de

trabalho forçado ou reduzido a condição análoga à de escravo, em decorrência de

fiscalização do Ministério do Trabalho, bem como para inclusão do nome de

empregadores no Cadastro de Empregadores que tenham submetido trabalhadores

à condição análoga à de escravo, considerar-se-á:

(...) II - jornada exaustiva: a submissão do trabalhador, contra a sua vontade e com privação do direito de ir e vir, a trabalho fora dos ditames legais aplicáveis a sua categoria; III - condição degradante: caracterizada por atos comissivos de violação dos direitos fundamentais da pessoa do trabalhador, consubstanciados no cerceamento da liberdade de ir e vir, seja por meios morais ou físicos, e que impliquem na privação da sua dignidade95.

95 LEGISWEB. Portaria MTB nº 1129, de 2017. Disponível em: <https://www.legisweb.com.br/legislacao/?id=351466>. Acesso em: 26/03/2018.

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De notar que nos termos da norma, para que a jornada excessiva ou a

condição degradante sejam caracterizadas, é preciso haver a restrição de liberdade

do trabalhador, o que contraria o artigo 149 do Código Penal, com redação dada

pela Lei nº 10.803/2003, amplamente discutido no decorrer desta monografia, que

determina que qualquer um dos quatro elementos do tipo (condição análoga à de

escravo; trabalhos forçados; jornada exaustiva; condições degradantes) é suficiente

para caracterizar a prática de trabalho escravo.

Não é só. Consoante art.4º, §1º da Portaria96, a divulgação da “Lista Suja”

será realizada apenas por determinação expressa do Ministro do Trabalho, atividade

até então realizada pelo setor técnico do Ministério.

De negativa repercussão no meio jurídico interno e internacional, a norma

ministerial teve sua constitucionalidade questionada na Arguição de

Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF, nº 489, ajuizada pelo partido

Rede Sustentabilidade.

No processo objetivo junto ao Supremo Tribunal Federal, em 24/10/2017, foi

deferida liminar pela Ministra Rosa Weber, suspendendo a Portaria até julgamento

do mérito em plenário, em consonância com o que defende o Ministério Público do

Trabalho e diversos órgãos e setores da sociedade que militam em prol da dignidade

do ser humano trabalhador.

Tramita ainda no STF ação semelhante (ADPF 491) ajuizada pela

Confederação Nacional das Profissões Liberais (CNPL), também sob relatoria da

ministra Rosa Weber.

Em apertada síntese, em sua decisão na ação proposta pela Rede, a Ministra

Relatora afirma que as definições conceituais “sobremodo restritivas”, não se

coadunam com o que exige o ordenamento jurídico brasileiro, os tratados

96 (...) Art. 4º O Cadastro de Empregadores previsto na PI MTPS/MMIRDH nº 4, de 11.05.2016, será divulgado no sítio eletrônico oficial do Ministério do Trabalho, contendo a relação de pessoas físicas ou jurídicas autuadas em ação fiscal que tenha identificado trabalhadores submetidos a condições análogas à de escravo. § 1º A organização do Cadastro ficará a cargo da Secretaria de Inspeção do Trabalho (SIT), cuja divulgação será realizada por determinação expressa do Ministro do Trabalho. (...). LEGISWEB. Portaria MTB nº 1129, de 2017. Disponível em: <https://www.legisweb.com.br/legislacao/?id=351466>. Acesso em: 26/03/2018.

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internacionais celebrados pelo Brasil e a jurisprudência dos tribunais sobre a

matéria97.

Nos termos de sua decisão, acrescenta a Relatora com acertada precisão

que, consonante com a evolução do direito internacional "a 'escravidão moderna' é

mais sutil e o cerceamento da liberdade pode decorrer de diversos constrangimentos

econômicos e não necessariamente físicos”

“A violação do direito ao trabalho digno, com impacto na capacidade da vítima

de realizar escolhas segundo a sua livre determinação, também significa ‘reduzir

alguém a condição análoga à de escravo’”.

Na avaliação da ministra, a Portaria ministerial esvazia o conceito de jornada

exaustiva de trabalho e trabalho forçado. Além disso, introduz, sem base legal, “o

isolamento geográfico” como elemento necessário à configuração de hipótese de

cerceamento do uso de meios de transporte pelo trabalhador e coloca a presença de

segurança armada, como requisito da caracterização da retenção coercitiva do

trabalhador no local de trabalho em razão de dívida contraída.

A relatora menciona ainda, os mecanismos e instrumentos de repressão,

prevenção e de reparação às vítimas do trabalho em condições análogas à de

escravo viabilizados pelos Grupos Especiais de Fiscalização Móvel, de

reconhecimento internacional.

Salientou, ademais, que os relevantes esforços enveredados não foram

suficientes, entretanto, para evitar a condenação do Brasil pela Corte Interamericana

de Direitos Humanos no caso Fazenda Brasil Verde, o que demonstra que as

iniciativas de combate e prevenção a esta modalidade de violação de direitos

humanos é um processo que não admite retrocessos.

A Portaria do Ministério do Trabalho também foi amplamente repudiada por

representantes do Ministério Público do Trabalho, Ministério Público Federal,

Delegacia Sindical do Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho e

Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho.

O MPT e Ministério Público Federal – MPF, expediram, inclusive,

Recomendação pela revogação da Portaria face a sua manifesta ilegalidade. Nos

termos da Recomendação “a portaria “é manifestamente ilegal”, porque “contraria

97 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Ministra Rosa Weber suspende efeitos de portaria ministerial sobre trabalho escravo. Disponível em: <http://stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=359907>. Acesso em: 26/03/2018.

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frontalmente o que prevê o artigo 149 do Código Penal e as Convenções 29 e 105

da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ao condicionar a caracterização do

trabalho escravo contemporâneo à restrição da liberdade de locomoção da vítima”98.

Para o coordenador nacional de Erradicação do Trabalho Escravo (Conaete)

do MPT, Tiago Muniz Cavalcanti, a Portaria viola tanto a legislação nacional quanto

compromissos internacionais firmados pelo Brasil. "O governo está de mãos dadas

com quem escraviza. Não bastasse a não publicação da Lista Suja, a falta de

recursos para as fiscalizações, a demissão do chefe da Divisão de Fiscalização para

Erradicação do Trabalho Escravo (Detrae), agora o Ministério edita uma Portaria que

afronta a legislação vigente e as convenções da OIT”99.

Em suma, conclui-se que Portaria nº 1.129/2017 do Ministério do Trabalho é

norma que se estabelece contrariamente ao arcabouço pátrio e internacional de

combate a todas as formas de escravidão contemporânea, em suas mais diversas

roupagens.

Com efeito, os conceitos trazidos pela normativa são reducionistas, com nítido

escopo de limitar as fiscalizações e desresponsabilizar eventuais infratores. Sua

eventual vigência, após julgamento de mérito em sede de controle de

constitucionalidade, é apta a significar perigosas consequências à efetiva

erradicação do trabalho em condições análogas à escravidão, com possíveis

impunidades de escravocratas contemporâneos, em cenário de patente retrocesso

na esfera de proteção dos direitos humanos.

4.2 Da condenação do Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos

no Caso Fazenda Brasil Verde

O avanço na concepção dos direitos humanos exige do Estado a efetiva

implementação desses direitos, sob pena de se tornar inócua a premissa de situar o

ser humano no centro do ordenamento jurídico, elevando sua dignidade como um

fim em si mesmo.

98 MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO. Notícias. Disponível em: <http://portal.mpt.mp.br/wps/portal/portal_mpt/mpt/sala-imprensa/mpt-noticias>. Acesso em: 26/03/2018. 99 Idem.

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Todavia, consolidada a necessidade de proteção desses direitos à nível

global, o Estado deixa de ser o único responsável pela solução de problemas

constitucionais, agindo em verdadeira atuação sistêmica com a sociedade mundial

em um processo de desterritorialização de questões jurídico-constitucionais, as

quais emanciparam-se do Estado100.

Com efeito, o que resta estabelecido a partir dessa inovadora ordem não é

uma nova hierarquia absoluta ou um supranacionalismo, mas sim, o reconhecimento

de diversas ordens jurídicas entrelaçadas, que devem se articular transversalmente

na solução de questões de direitos fundamentais e humanos.

Alcançou-se, de fato, após as atrocidades e violações de direitos humanos

presenciadas pela humanidade após as Guerras Mundiais, inescapável nível de

correlação e coordenação entre a normativa doméstica e a internacional, porquanto

ambas fundamentam-se no irrestrito compromisso com a dignidade da pessoa

humana. Tal premissa determina que seu objeto comum deverá sempre ser o

avanço na proteção dos direitos humanos no plano dos fatos, isto é, na solução de

problemas-caso101.

Sumariamente, conforme bem expõe Sílvio Beltramelli Neto, a participação do

Brasil nos sistemas internacionais de direitos humanos, não se cuida por certo de

meras citações de tratados internacionais como incremento teórico e petições. Trata-

se, em verdade, de debater a partir de padrões de entendimento e argumentação

calcados exclusivamente sob a teologia da preservação da dignidade da pessoa

humana, razão pela qual merecem ser consideradas pelas instâncias jurídicas

pátrias. Daí a pertinência da estratégia denominada por Carvalho Ramos como

“Diálogo das Cortes”, interação a ser implementada com objetivo de impedir

violações de direitos humanos oriundas de interpretações nacionais equivocadas

dos tratados. Tal proposta é complementada pela teoria do duplo controle: de

constitucionalidade nacional e de convencionalidade internacional102.

Com escoro neste entendimento, em 2016, o Brasil foi julgado pela Corte

Interamericana de Direitos Humanos não cumpridor da proteção dos direitos

humanos ao não viabilizar efetivos esforços para coibir a prática de submissão de

100 NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo. 1ª Ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013, p. 297 e 298. 101 NETO, Sílvio Beltramelli. Direitos Humanos, 4ª Ed. Bahia: Jus Podivm, 2017, p. 433 e 434. 102 Ibidem, p.434 a 435.

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trabalhadores à condição análoga à escravidão. Trata-se do Caso Fazenda Brasil

Verde, que culminou no primeiro pronunciamento da Corte IDH em matéria de

trabalho análogo ao de escravo, cuja síntese histórica é descrita por Sílvio

Beltramelli Neto103, conforme segue:

Em fevereiro de 1989, março de 1993, novembro de 1996, abril e novembro de 1997 e março de 2000, Auditores-Fiscais do Trabalho e outras autoridades estatais fizeram visitas e fiscalizações à Fazenda Brasil Verde, localizada no Estado do Pará, para constatar as condições em que se encontravam trabalhadores. As fiscalizações de abril de 1997 e março de 2000 concluíram que existia trabalho análogo ao de escravo; a visita policial de 1989 e as fiscalizações de 1993 e 1996 encontraram “irregularidades” trabalhistas; e a fiscalização de novembro de 1997 considerou que havia “algumas falhas” na referida fazenda. Em 1988, foi comunicada à Polícia Federa local o desaparecimento de dois adolescentes que tentaram fugir do regime análogo à escravidão, mantido na Fazenda. Não se deu prosseguimento à investigação desse desaparecimento. Além dos autos de infração lavrados pelos Auditores-Fiscais do Trabalho, nas ocasiões das fiscalizações, e uma ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público do Trabalho (encerrada por acordo judicial), todas as mencionadas constatações, conquanto repetidas, ensejaram apenas uma ação penal contra o dono da fazenda, referente à fiscalização de 1997 e que experimentou demora de cerca de dez anos apenas para a definição da competência material para o julgamento. Após, a ação penal restou extinta, a pedido do Ministério Público Federal, em razão do decurso do prazo prescricional. Ainda em 1998 o caso foi levado à CIDH pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) e Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL/Brasil). Após análise, a CIDH considerou que a informação disponível permite qualificar as práticas na fazenda como trabalho forçado e servidão por dívidas como forma contemporânea de escravidão, todavia, suas decisões não foram cumpridas e o caso foi submetido à Corte IDH, em 4 de março de 2015. Em sentença de 20 de outubro de 2016, o tribunal declarou a responsabilidade internacional do Estado brasileiro pela violação dos seguintes direitos previstos na Convenção Americana sobre os DH: direito a não ser submetido à escravidão e ao tráfico de pessoas (art.6.1); direito ao reconhecimento da personalidade jurídica (art.3º); direito à integridade pessoal (art.5º); direito à liberdade pessoal (art.7º); direitos da criança (art.19); proteção da honra e da dignidade (art.11); direito de circulação e de residência (art.22); garantia judiciais de devida diligência e de prazo razoável (art.8.1); e direito à proteção judicial (art.25). A Corte IDH impôs, por conseguinte, as diversas formas de reparação: (i) reiniciar, com a devida diligência , as investigações e/ou processos penais relacionados aos fatos, com vistas a, em um prazo razoável, identificar, processar e, se for o caso, punir os responsáveis; (ii) publicar, no prazo de seis meses, o resumo oficial da sentença, elaborado pela Corte, por uma única vez, no Diário Oficial, o mesmo resumo oficial, por uma única

103 Ibidem, p. 468 e 469.

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vez, em um jornal de ampla circulação nacional e a íntegra da sentença, por um período de um ano, em um sítio web oficial; (iii) dentro de um prazo razoável, adotar as medidas necessárias para garantir que a prescrição não seja aplicada ao delito de Direito Internacional de escravidão e suas fontes análogas; e (iv) pagar às vítimas montantes fixados a título de indenizações por dano imaterial e aos representantes, valores estabelecidos a propósito de reembolso de custas e gastos. Original sem destaque.

Quanto à importância da condenação na esfera internacional, Beltramelli

ressalva que se trata de decisão histórica, sendo o primeiro pronunciamento da

Corte IDH acerca da escravidão moderna, ainda recorrente no Brasil. O tribunal em

sua fundamentação vale-se de diversas normativas internacionais de direitos

humanos para “consagrar a imprescritibilidade do crime de submissão de qualquer

pessoa à condição análoga à de escravo, posto que se trata de norma imperativa de

Direito Internacional (jus cogens) implicando em obrigação erga omnes”.

No mais, merece destaque o fato de a sentença declarar manifesta

discriminação estrutural por parte do Estado brasileiro no tratamento das

ocorrências, porquanto constatadas características comuns de particular vitimização

dos trabalhadores resgatados em 15 de março de 2000, quais sejam:

(...) se encontravam em uma situação de pobreza; provinham das regiões mais pobres do país, com menor desenvolvimento humano e perspectivas de trabalho e emprego; eram analfabetos e tinham pouca ou nenhuma escolarização. Segundo a Corte, essas circunstâncias de origens históricas tornavam os resgatados mais suscetíveis a aliciamento mediante falsas promessas e enganos, denotando risco imediato para um grupo determinado de pessoas com características idênticas e originários das mesmas regiões do país, contexto amplamente conhecido, pelo menos, desde 1995, quando o Governo do Brasil expressamente admitiu a existência de “trabalho escravo” no país104.

No tocante ao atual marco normativo da escravidão, a Corte IDH traçou o

panorama da construção internacional do conceito legal de trabalho escravo

contemporâneo, cotejando-o com a legislação brasileira, para declarar a

inadequação da redação original do art.149 do Código Penal vigente à época dos

fatos julgados, reconhecendo, contudo que sua posterior alteração o colocou em

sintonia com o padrão normativo internacional.

104 Idem.

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No particular, oportuno destacar com base nisso, o desajuste da Portaria nº

1.129 DE 13/10/2017, editada pelo Ministério do Trabalho, que, na contramão dos

avanços alcançados pelo Brasil no enfrentamento da questão social da escravidão

contemporânea, pretende introduzir no ordenamento jurídico pátrio, não obstante a

ausência de compatibilidade constitucional e convencional, a redução do conceito de

trabalho escravo e excluir da esfera de responsabilização infratores que, não

obstante violem direitos humanos, não privem o trabalhador de sua locomoção

física.

A responsabilização do Estado brasileiro por instâncias jurídicas de Direito

Internacional concorre para a prevenção e combate de todas as formas de trabalho

análogas à escravidão, incluindo, neste contexto, as mais modernas roupagens do

ilícito, que se reinventam-se reiteradamente com o objetivo desenfreado de alcançar

maiores vantagens ao custo da dignidade do ser humano trabalhador.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Muito se discutiu no decorrer deste trabalho acerca da dignidade da pessoa

humana como fim último do ordenamento jurídico e o conceito legal de trabalho

escravo contemporâneo, enfatizando-se sua ocorrência como postura largamente

afastada da matriz constitucional de 1988 e do universo normativo internacional

trabalhista vigorante no plano interno da sociedade e economia brasileira.

Outrossim, destacou-se a atuação estatal no enfrentamento da questão social

da escravidão moderna, abarcada em suas mais sutis e versáteis roupagens, sendo

por derradeiro, forçoso concluir pela insuficiência das estratégias de prevenção e

combate, muito embora tenha o país alcançado significativo avanço atinente à

temática.

Este cenário atribui-se essencialmente ao desenvolvimento de uma política

estatal ainda bastante retraída na efetiva responsabilização dos infratores sopesada

com o agravante da hodierna afronta ao patamar normativo já alcançado pelo país

em matéria de configuração de trabalho em condição análoga à escravidão.

Hipótese ilustrativa da empreitada de desregulamentação do padrão

civilizatório mínimo de proteção aos direitos humanos trabalhistas é a edição da

Portaria nº 1.129 de 13/10/2017 pelo Ministério do Trabalho, cujo teor reduz a

amplitude do conceito de trabalho escravo e impõe regramento restritivo para

publicação do Cadastro de Empregadores que tenham submetido trabalhadores a

condições análogas a de escravo, a chamada “Lista Suja”.

Oportuno mencionar, neste sentido, que o estabelecimento de mecanismos

sem efetivo potencial para enfrentamento das ilicitudes que configuram a escravidão

moderna resultam em um desequilíbrio estrutural de difícil superação.

Com efeito, a questão social da precarização do trabalho humano situa-se na

correlação de forças entre capital e trabalho, sendo certo que nesta dinâmica, o

trabalhador, parte hipossuficiente dessa relação essencialmente desigual, situa-se

em situação maior de vulnerabilidade socioeconômica, porquanto não se articule

efetiva teia de proteção apta a atenuar, no plano jurídico, o desiquilíbrio inerente ao

plano fático do contrato de trabalho.

Neste sentido, pertinente as considerações da Corte Interamericana de

Justiça, que ao julgar e condenar o Brasil, no ano de 2016, no Caso Fazenda Brasil

Verde, apontou para manifesta discriminação estrutural por parte do Estado

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brasileiro no tratamento das ocorrências de trabalho em condições análogas à

escravidão.

A discriminação apontada pela Corte relaciona-se às semelhantes

características dos trabalhadores resgatados da fazenda em questão, identificados

de forma uníssona quanto ao acentuado grau de vulnerabilidade social.

A rigor, o perfil de proeminente pobreza e baixo ou nenhum nível de

escolarização das vítimas, reflete as consequências de um sistema produtivo

predatório estabelecido com a chancela estatal, responsável por posicionar o Brasil

entre os países de maior desigualdade social.

Com efeito, na sistemática de produção do capital, migrantes, analfabetos,

clandestinos, pessoas com deficiência, doentes, alcoolistas, e pessoas que nunca

tiveram um documento de identificação, são concebidos como “peças” essenciais de

uma lógica capitalista perversa que tende a acentuar a segregação e marginalização

de trabalhadores, com a finalidade última de preservar e fortalecer o sistema de

acumulação de lucros.

Com escoro nessa perspectiva econômica, segmentos de baixa ou nenhuma

renda, provenientes de regiões mais pobres do país, analfabetos ou pessoas com

pouca ou nenhuma escolarização, conforme apontados na sentença da Corte

Interamericana de Justiça, compõem a classe de trabalhadores excluídos dos

processos de pertencimento social, achando-se mais suscetíveis a aliciamentos

disfarçados mediante falsas promessas.

O trabalho análogo ao de escravo, ainda recorrente no Brasil, enquanto

prática de cunho desumano e degradante, que priva o trabalhador de condições

existências mínimas para uma vida digna, estabelece-se na contramão dos

fundamentos e direitos fundamentais da República Federativa do Brasil, assim como

dos direitos humanos defensáveis na comunidade internacional, especialmente no

âmbito das Organização das Nações Unidas – ONU e Organização Internacional do

Trabalho – OIT.

Nisso, urge que máximo esforço deve ser articulado para interação entre os

sistemas internacionais de proteção e políticas nacionais, em favor do real

afastamento da mercantilização do trabalho humano, pautado na coisificação do

trabalhador justificadora da perversa contratação de mão de obra escrava.

Para o alcance de tal desiderato, necessário que, para além das normativas

estabelecidas em plano interno e internacional, o valor social do trabalho, enquanto

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fundamento do Estado Democrático de Direito, (CF/88, art.1º, IV), alicerce da ordem

econômica (Cf/88, art.170 caput e VIII), e base da ordem social (CF/88, art.193),

seja de fato concebido como instrumento de realização do ser humano, viabilizador

de sua autonomia e emancipação social, valores que efetivamente prestigiam sua

dignidade enquanto pessoa.

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