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122 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA SOCIAL Vanessa Gomes Ramos “Os Escravos da Religião” – Alforriandos do clero católico no Rio de Janeiro Imperial (1840-1871) Dissertação de Mestrado Rio de Janeiro

Escravos Da Religiao

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alforrias; clero católico; rio de janeiro; século XIX

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA SOCIAL

Vanessa Gomes Ramos

“Os Escravos da Religião” – Alforriandos do clero católico no Rio de

Janeiro Imperial (1840-1871)

Dissertação de Mestrado

Rio de Janeiro

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Março de 2007

“Os Escravos da Religião” – Alforriandos do clero católico no Rio de Janeiro

Imperial (1840-1871)

Vanessa Gomes Ramos

Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Social do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito para a obtenção do grau de Mestre em História.

Orientador: Prof. Dr. Manolo Garcia Florentino

Rio de Janeiro

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Março de 2007 “Os Escravos da Religião” – Alforriandos do clero católico no Rio de Janeiro

Imperial (1840-1871)

Vanessa Gomes Ramos

Orientador: Prof. Dr. Manolo Garcia Florentino

Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em História

Social -Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do Título de Mestre em História Social.

Aprovada por: _______________________________________________ Prof. Dr. Manolo Garcia Florentino – Orientador Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) _______________________________________________ Prof. Dra. Ana Lugão Rios Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) _______________________________________________ Prof. Dr. José Roberto Góes Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) _______________________________________________ Prof. Dr. Francisco José Silva Gomes Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) _______________________________________________ Prof. Dr. Carlos Engemann Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

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Rio de Janeiro / Março de 2007 Ficha Catalográfica

RAMOS, Vanessa Gomes.

“Os Escravos da Religião” – Alforriandos do clero católico no Rio de Janeiro Imperial (1840-1871) - Vanessa Gomes Ramos. Rio de Janeiro: UFRJ, PPGHIS, 2007.

xii, 158 f.: 31 cm. Orientador: Manolo Garcia Florentino Dissertação (Mestrado) – UFRJ / IFCS / Programa de Pós-Graduação

em História Social, 2007. Referências Bibliográficas: f. 154-158. 1 – Escravidão. 2 – Rio de Janeiro. 3 – Alforria. 4 – Clero católico.

I – Ramos, Vanessa Gomes. II – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação em História Social. III – Título

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Resumo

O trabalho tem como um de seus objetivos mais gerais apresentar, por meio das

cartas de alforria, numa amostra de 370 registros, a especificidade da escravidão exercida

por clérigos católicos na cidade do Rio de Janeiro. Na historiografia brasileira há uma

variedade de autores que buscaram identificar os padrões de alforria em diferentes regiões

do país. Todavia, as manumissões concedidas pelo clero católico, diluídas no conjunto total

das alforrias, não nos permitem perceber uma possível peculiaridade eclesiástica. Dessa

forma, procuramos estabelecer especificamente os padrões de alforria do clero. Além de

evidenciar as diferenças, no tocante à escravidão, entre as práticas do clero regular e do

secular.

Os escravos e os alforriandos de eclesiásticos são o principal objeto desta pesquisa,

cuja base empírica constitui-se de cartas de alforria, documento manuscrito de natureza

cartorária, emitidas pelo clero católico e registradas no primeiro, segundo e terceiro Ofícios

de Nota do Rio de Janeiro, no período de 1840 a 1871. Além de inventários post-mortem de

alguns padres seculares encontrados no Arquivo Nacional.

Identificamos os padrões de tipo de alforria, naturalidade e sexo dos “alforriandos

do religião”. Além também de identificar os tipos de formação familiar mais recorrentes no

plantel eclesiástico, evidenciando os “arranjos familiares” formados para a saída do

cativeiro. Ainda, realizamos uma, ainda, incipiente análise sobre a temática da liberdade e

seus diferentes significados, discutindo a “polêmica” questão da alforria condicional e o

sentido desta para o alforriado.

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Abstract

The purpose of this work is understand, through the enfranchisement letters, in a

sample of 370 registrations, the specificity of the slavery exercised by Catholic clergymen

in the city of Rio de Janeiro. In the Brazilian historiography there is a variety of authors that

looked for to identify the enfranchisement patterns in different areas of the country.

Though, the manumissions granted by the Catholic clergy, diluted in the total group of the

enfranchisements, they don't allow to notice us a possible peculiarity ecclesiastical. In that

way, we tried to establish the patterns of enfranchisement of the clergy specifically. Besides

evidencing the differences, concerning the slavery, among the practices of the regular

clergy and of the secular.

The slaves and the alforriandos of the clergy are the main object of this research,

whose empiric base is constituted of enfranchisement letters emitted by the Catholic clergy

and registered in the first, second and third Ofícios de Nota of Rio de Janeiro, in the period

from 1840 to 1871. Besides some secular priests' inventories post-mortem found in the

National File.

We established the patterns of enfranchisement type, naturalness and sex of the

"slaves of the religion." Beyond also of identifying the more appealing types of formation

relative in the ecclesiastical plantel, evidencing the "family arrangements" formed for the

exit of the captivity. Still, we accomplished a, still, incipient analysis on the theme of the

freedom and their different meanings, discussing the "controversy" subject of the

conditional enfranchisement and the sense of this for the alforriado.

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Agradecimentos

Ao meu professor e orientador Manolo Garcia Florentino. Este trabalho não poderia

ter sido concluído sem a sua orientação amiga e (pra lá de bastante) paciente. Sua

contribuição transcende esta dissertação. Desde 2002 vem me ensinando a arte de “fazer

História” e o real sentido de “ser historiador”.

À CAPES – pelo financiamento desta pesquisa, sem o qual tudo seria mais

complicado.

À professora Ana Rios não poderia deixar de expressar especial agradecimento. A

convivência com ela desde a graduação tem sido de inestimável valor. Na ocasião do

Exame de Qualificação suas observações deveras pertinentes foram cruciais ao

desenvolvimento da pesquisa. A você, muito obrigada.

Ao professor José Roberto Góes por suas tão importantes considerações de ordem

metodológica que serão, inclusive, muito úteis num futuro trabalho de doutorado, além de

sua gentileza durante o Exame de Qualificação.

Aos professores das disciplinas cursadas ao longo do primeiro ano de mestrado:

Francisco José, João Fragoso, Mônica Grin e Didier Lahon. Os debates em sala de aula

foram de grande valia para a elaboração e enriquecimento do trabalho.

Aos funcionários do Arquivo Nacional, especialmente Rosane e Sátiro, sempre

prontos a ajudar com boa vontade.

Às “meninas da Pós”, Gleidis e Sandra, sempre solícitas a resolver as “pendengas”

burocráticas. Agradeço aos sorrisos sempre estampados e aos divertidos “papos” nas horas

de folga, às vezes em horas nem tão folgadas assim...

Ao colega Carlos Engemann. Sua enriquecedora colaboração durante a época da

graduação se faz muito presente neste trabalho.

À Jana, pelas oportunas discussões seja no IFCS, nos “cafés” da Manon ou no “apê”

da Glória. Obrigada pelo apoio nas horas de dificuldades.

Aos meus amigos (incluindo os consangüíneos) de fora da órbita acadêmica,

essenciais a minha vida. Graças a Deus, são muitos e não caberia numerá-los nestes breves

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agradecimentos. Todos nem imaginam o quanto me ajudaram. Obrigada pela amizade

sincera e pelos preciosos momentos de descontração.

À minha família devo muito mais que gratidão. Meus pais, Aprigio e Celeste, meu

irmão Douglas, encarnam o verdadeiro sentido da palavra família. Obrigada pelo apoio e

amor incondicionais.

A Renato, meu porto seguro. Mais que simplesmente marido: meu companheiro e

amigo inseparável. Aturou com paciência inesgotável, até os 48 do segundo tempo, meus

“surtos e chiliques”. Obrigada por estar presente em cada página dessa dissertação.

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SUMÁRIO

LISTA DE GRÁFICOS......................................................................................10

LISTA DE TABELAS ........................................................................................11

EPÍGRAFE..........................................................................................................12

INTRODUÇÃO ..................................................................................................13

CAPÍTULO I – Rumo à liberdade....................................................................17

1. A Alforria na historiografia ...........................................................................18

2. Acordos para a liberdade ................................................................................27

3. Coartações, prestações, trocas – meandros da liberdade ................................30

4. A alforria paga – preços e valores ..................................................................34

CAPÍTULO II – Padrões das alforrias eclesiásticas .......................................43

1. Tipos de alforria..............................................................................................49

2. Africanos e crioulos entre os escravos do clero .............................................61

3. Homens e mulheres – servos da religião ........................................................68

CAPÍTULO III – A família cristã entre os “escravos da religião” ................72

1. O surgimento da família escrava na historiografia...........................................73

2. Catolicismo e família escrava – a teoria católica .............................................78

3. A alforria e os arranjos familiares – a prática católica .....................................83

BREVES REFLEXÕES ...................................................................................105

1. Liberdades ......................................................................................................106

2. Liberdades e alforrias condicionais ................................................................114

CONSIDERAÇÕES FINAIS...........................................................................117

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131

ANEXOS............................................................................................................119

FONTES E BIBLIOGRAFIA..........................................................................151

Lista de gráficos

1. Flutuações dos preços das alforrias e dos escravos adultos (15-40 anos

de idade) do sexo masculino, meios urbano e rural do Rio de Janeiro,

1790-1869, em mil-réis e libras esterlina 39

2. Emancipações Pagas e Gratuitas ................................................................................45

3. Distribuição (%) dos tipos de cartas de alforrias, Rio de Janeiro (1789-1864)..........48

4. Porcentagem de alforriando por tipo de alforria no Rio de Janeiro – clero total –

1840-1871.................................................................................................................49

4.1. Porcentagem de alforriando por tipo de alforria no Rio de Janeiro – clero regular e

secular – 1840-1871 .................................................................................................50

4.2. Porcentagem de alforriando por tipo de alforria (clero regular)..............................50

4.3. Porcentagem de alforriando por tipo de alforria (clero secular)..............................51

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Lista de Tabelas

1. Distribuição de alforriandos por naturalidade (1840-1871) 63

1.1 Distribuição de alforriandos por naturalidade (1840-1850)......................... 63

1.2 Distribuição dos alforriandos por naturalidade (1851-1871) ....................... 64

2. Distribuição das alforrias por sexo nos respectivos cleros (1840-1850) 70

2.1 Distribuição das alforrias por sexo nos respectivos cleros (1851-1871)

70

3. Distribuição dos “arranjos familiares” presentes nas cartas de alforria do

clero regular e secular no Rio de Janeiro (1840-1871) 87

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“‘Maldito seja Canaã, disse ele; que ele seja o escravo dos escravos de seus irmãos!’ E Noé acrescentou: ‘Bendito seja o Senhor Deus de Sem, e Canaã seja o teu escravo! Que Deus dilate a Jafet; e este habite nas tendas de Sem, e Canaã seja teu escravo!’”. (Gênese, cap. 9: 25-27)

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Introdução

“Cristianismo e escravidão não podem conviver, mas, ‘igrejismo’ e escravidão são irmãos gêmeos”.1 (James Redpath)

A citação acima, apesar de bastante idealista, disfarça uma realidade vivida pelas

pessoas que foram contemporâneas ao sistema escravista. No Brasil, por quase

quatrocentos anos, cristianismo não foi sinônimo de abolicionismo. Desde o século XVII,

os letrados que escreveram sobre o trabalho escravo, clérigos em sua maioria, procuraram

fundamentá-lo em termos morais, jurídicos e religiosos.2 Tais letrados recorriam à bíblia

para encontrar justificativas ideais para a condição de “ser cativo”. Além de fundamentar a

escravidão, o clero contribuiu para sua manutenção na medida em que foi proprietário de

grande contingente de escravos.

Os escravos e os alforriandos de eclesiásticos são o objeto principal desta pesquisa,

cuja base empírica constitui-se de cartas de alforria, documento manuscrito de natureza

cartorária, emitidas pelo clero católico, registradas no primeiro, segundo e terceiro ofícios

de nota do Rio de Janeiro, no período de 1840 a 18713. Além de inventários post-mortem

de alguns padres seculares encontrados no Arquivo Nacional.

O trabalho tem como um de seus objetivos mais gerais apresentar, por meio das

cartas de liberdade, numa amostra de 370 registros, a especificidade da escravidão exercida

por clérigos católicos na cidade do Rio de Janeiro. Na historiografia brasileira há uma

1 Apud GENOVESE, Eugene. A Terra prometida. O mundo que os escravos criaram. Rio de Janeiro: Paz e Terra; Brasília: CNPq, 1988. 2 VAINFAS, Ronaldo. Ideologia e Escravidão. Os letrados e a sociedade escravista no Brasil colonial. Petrópolis: Vozes, 1986. 3 Foram analisadas todas as cartas de alforria registradas nos 1°, 2° e 3° Ofícios de Notas, entre os anos de 1840 e 1871, porém os registros realizados entre os anos de 1865 e 1869 não foram vistos.

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variedade de autores que buscaram identificar os padrões de alforria em diferentes regiões

do país. Todavia, as alforrias concedidas pelo clero católico, diluídas no conjunto das

manumissões, não nos permitem perceber uma possível peculiaridade eclesiástica. Dessa

forma, procuramos estabelecer especificamente os padrões de alforria do clero. Além de

evidenciar as diferenças, no tocante à escravidão, entre as práticas do clero regular e do

secular.

Este trabalho inicia-se com uma discussão sobre a “evolução” do tema “alforria” na

historiografia, tanto a nacional como a internacional. Podemos dizer, que cada historiador

da escravidão compreendeu esta questão de acordo com suas próprias definições teóricas

concernentes ao regime escravista e seus significados no interior da sociedade brasileira.

Depois, discutimos alguns acordos que poderiam ser convencionados entre os senhores e os

escravos para a assinatura final do documento de liberdade. Para isso, explicamos a

metodologia utilizada para classificar as alforrias em “pagas”, “gratuitas” ou

“condicionais”.

Também neste primeiro capítulo, discorremos sobre alguns caminhos que poderiam

levar o escravo à conquista de sua liberdade, discutindo determinadas variações da alforria

“paga”, como a coartação, a prestação e a troca por outro cativo. Além disso, abordaremos

a questão específica dos preços das alforrias compradas pelos escravos, com o intuito de

verificar se havia uma diferença entre os valores cobrados por leigos e religiosos.

No capítulo 2 procuramos analisar os padrões das alforrias concedidas

especificamente pelos eclesiásticos. Diferentes autores buscaram identificar os padrões de

manumissões em diferentes regiões do país4. Assim, tecemos comparações com as

tendências já identificadas para as alforrias de um modo geral e, buscamos perceber uma

possível peculiaridade eclesiástica. Ainda, evidenciamos as diferenças existentes no interior

do próprio clero católico, ou seja, entre os regulares e seculares.

Com relação às alforrias registradas por eclesiásticos no período entre 1807-31,

Mary Karasch afirmou:

4 Cf. FLORENTINO, M. Alforrias e etnicidade no Rio de Janeiro oitocentista: notas de pesquisa. TOPOI. Revista de História. Rio de Janeiro: Programa de Pós-graduação em História Social da UFRJ / 7 Letras, n. 5, set.2002; KARASCH, Mary. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). SP: Companhia das Letras, 2000; SCHWARTZ, Stuart B. Escravos, roceiros e rebeldes. Bauru. São Paulo: EDUSC, 2001; MATTOSO, Kátia M. de Queirós. Propósito de cartas de alforria na Bahia, 1779-1850. Anais de História. Marília, n. 4, 1971; PAIVA, Eduardo França. Escravos e libertos nas Minas Gerais do século XVIII: estratégias de resistência através dos testamentos. São Paulo: ANNA-BLUME, 1995.

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136

Catorze sacerdotes alforriaram 34 escravos (...). Somente uma de suas

alforrias estabeleceu preço; a maioria delas foi incondicional ou dada em testamento. Esse é o único grupo social que libertava homens escravos sem compensação monetária. As ordens religiosas raramente libertavam cativos nessa amostra5.

A partir da construção de um banco de dados e da análise de seu conteúdo

percebemos que a citação acima não serve como padrão para o período delimitado nesta

pesquisa. Veremos adiante que nem sempre a maioria dos padres e das ordens alforriava

seus cativos sem uma “compensação monetária”. Ao contrário, ao longo da pesquisa

percebemos que justamente as ordens religiosas alforriaram mais da metade de seus cativos

mediante o pagamento em dinheiro.

Em relação à quantidade de cartas de alforria, podemos afirmar haver uma

considerável diferença entre o período analisado por Karasch e a época posterior. Houve um

significativo aumento do número de escravos alforriados por clérigos. Para termos uma

idéia, somente no primeiro ofício de notas, o único analisado pela autora, achamos 61 cartas

entre os anos de 1840 e 1871, sendo 34 do clero secular e 27 dos regulares.

Ainda no segundo capítulo, identificamos os padrões de naturalidade e de gênero

presente nas manumissões dos “escravos da religião”. Percebemos que as diferenças

encontradas entre seculares e regulares mostram-se como resultados das desiguais

condições de vida dos escravos pertencentes a cada setor eclesiástico, isto é, possuíam

diferentes tipos de moradia, de relacionamento com outros cativos, de grau de parentesco,

de acumulação de pecúlio e de funções exercidas.

No capítulo 3 abordamos a questão da família escrava e o papel que esta assumia no

processo de manumissão dos “escravos eclesiásticos”. Começamos fazendo uma breve

discussão sobre o recente “nascimento” da família escrava na historiografia. Depois, a partir

da análise das cartas de alforria, procuramos compreender o significado, para o escravo do

clero, de estar inserido em redes familiares, além de verificar se a condição de aparentado

5 KARASCH, M. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 450.

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137

favorecia, ou não, a obtenção do documento de liberdade. Buscamos ainda, estabelecer os

padrões dos tipos de família predominante no cativeiro clerical, evidenciando os “arranjos

familiares” formados para a saída do cativeiro.

Por fim, na última parte desta dissertação, que denominamos de “breves reflexões”,

desenvolvemos uma incipiente análise sobre a temática da liberdade e seus diferentes

significados, a partir de autores que já se debruçaram sobre essa questão. Discorremos

sobre os significados de liberdade para senhores e escravos e a aplicação deste conceito na

vida dos alforriados. Além disso, nesta parte final, discutimos a “polêmica” questão da

alforria condicional, procurando entender a representação desta para o escravo, que se

encontrava na difícil condição de meio cativo e meio liberto.

Page 17: Escravos Da Religiao

138

Capítulo I – Rumo à liberdade

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1 – A alforria na historiografia

No que tange ao tema específico das alforrias no Brasil, faz-se necessário entender

que cada historiador da escravidão pensou nesta temática de acordo com suas definições

teóricas a respeito do regime escravista e seus significados no interior da sociedade

brasileira.

Variados estudos elaborados ao longo do século XX dedicaram-se à análise das

alforrias e implicações subjacentes. Há muito já se comprovou que o Brasil distinguiu-se

dos demais países escravistas da América, por ter libertado o maior número de cativos por

meio da via institucional.6 Então, essa temática tem em nossa sociedade significado deveras

especial. Esse fato ensejou diversas pesquisas realizadas por historiadores nacionais e

internacionais que privilegiaram, sobretudo, a história comparada. Buscou-se compreender

as causas desse “diferencial”, identificando as peculiaridades inerentes aos diferentes

sistemas escravistas.

Podemos dizer que a grande emissão de manumissões em nossa sociedade,

considerada nas primícias como resultado direto de uma “leniência” da escravidão

brasileira, foi a base de inúmeros trabalhos cujo objetivo era explicar tal realidade.

Portanto, há uma variedade imensa de elaborados estudos acerca desse assunto. Seria

inviável analisarmos aqui, numa dissertação de mestrado, todas essas obras. Façamos,

então, apenas uma breve discussão sobre algumas delas.

Dois autores norte americanos dedicaram-se a esta questão, mas a compreenderam

de maneira antagônica: Frank Tannenbaum e Marvin Harris. O primeiro, na década de

1940, foi influenciado pela obra de Gilberto Freyre e almejou explicar as diferenças entre

dois pólos de colonização: As colônias inglesas, principalmente os Estados Unidos e a

América Ibérica, enfatizando, sobretudo, o Brasil. Tannenbaum baseou sua argumentação

em fatores culturais e institucionais. Para ele, a amenidade da escravidão brasileira resultou

6 Ver, por exemplo, MERRICK, Thomas W e GRAHAM, Douglas H. População e Desenvolvimento Econômico no Brasil. Rio de Janeiro, Zahar, 1981, p. 76.

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140

de interferências da Igreja Católica e da existência de um arcabouço legal que visava

proteger o cativo dos excessos senhoriais7.

Conforme este autor, a influência da Igreja sobre a instituição escravista foi

determinante para estabelecer um verdadeiro contraste entre as sociedades colonizadas pela

Inglaterra e as colonizadas pelos países Ibéricos. Aos escravos pertencentes às primeiras

eram, quase sempre, negados privilégios do cristianismo, como o batismo, o casamento e a

educação religiosa. Enquanto nas segundas, a Igreja favorecia até mesmo a alforria, pautada

sempre na idéia da igualdade de todos os homens perante Deus. Além disso,

especificamente no Brasil do século XVIII não havia apenas inúmeros fiéis negros, mas

também, segundo Tannenbaum, negros assumindo cargos de clérigo, como bispos. Essa

diferença entre as sociedades em questão decorre, sobretudo, do fato de que “the element of

human personality was not lost in the transition to slavery from África to the Spanish or

Portuguese dominions. He remained a person even while he was a slave”.8

Referente à obtenção da liberdade, Tannenbaum afirma que as leis e as tradições na

Espanha e na América Portuguesa proporcionavam aos escravos maiores possibilidades de

conquistar sua carta de alforria. Já os cativos que viviam na América do norte e nas

colônias inglesas não tinham a mesma sorte, já que nessas regiões havia todo um aparato

legal hostil à alforria. Logo, para Tannenbaum:

The frequency and ease of manumission, more than any other factor, influence the character and ultimate outcome of the two slave systems in this hemisphere. For the ease of manumission bespeaks, even if only implicitly, a friendly attitude toward the person whose freedom is thus made possible and encouraged, just as the systematic obstruction of manumission implies a complete, if unconscious, attitude of hostility to those whose freedom is opposed or denied. And these contrasting attitudes toward manumission work themselves out in a hundred small, perhaps unnoticed, but significant details in the treatment of the Negro, both as a slave and when freed.9

7 TANNENBAUM, Frank. Slaves and Citizen. Boston: Bacon Press, 1946. 8 Idem, pp. 97 e 98. 9 Idem, p. 69.

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Logo, o grande volume de manumissões seria conseqüência direta de um sistema

mais humanizado. Para este autor, as alforrias mostravam-se como “coeficientes” de

brandura e não exatamente um elemento estrutural do sistema escravista. Além disso, no

Brasil o liberto tinha acesso, mesmo que por meio de “uma porta entreaberta”, à política, às

artes e à cultura em geral, e desenvolvia um papel na vida social que era totalmente

desconhecido na sociedade norte-americana.10 Assim, Tannenbaum conclui em seu trabalho

que:

In Brazil and Spanish America the law, the church, and custom put few impediments in the way of vertical mobility of race and class, and in some measure favored it. In the British, French, and United States slave systems the law attempted to fix the pattern and stratify the social classes and the racial groups.11

Inferindo então as panfletárias idéias de Frank Tannenbaum, a influência da Igreja

Católica, as leis e os costumes foram determinantes em propiciar uma escravidão mais

branda e suave na América Ibérica. Assim, em decorrência dessa particularidade, os negros

e mulatos libertos tiveram poucos impedimentos à mobilidade social e logo puderam

inserir-se em todos os setores da sociedade.

Na década de 1960, Marvin Harris publicou um livro – Padrões Raciais na América

– no qual contestou a tese defendida por Tannenbaum. Conforme aquele autor, o alto

número de escravos alforriados no Brasil estava diretamente ligado a especificidades

demográficas e econômicas.

Os Estados Unidos e a América Latina sofreram a experiência de tipos totalmente diferentes de colonização. Quando a Espanha e Portugal iniciaram sua ocupação no Novo Mundo foram atormentados pela drástica falta de homens disponíveis, o que lhes dificultou a tarefa de encontrar colonos para seus extensos impérios (...). As migrações de

10 Idem, p. 4. 11 Idem, p. 127.

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ingleses e britânicos para o Novo Mundo seguiram um ritmo completamente diferente. Embora o movimento começasse quase um século depois, logo alcançou uma magnitude que não encontrou paralelo na América Latina até o século XIX.12 Segundo Harris no século XIX, menos de 20% da população brasileira era composta

por brancos, ao passo que na sociedade norte-americana a população negra não

ultrapassava os 20%.13 Logo, o perfil demográfico, a proporção de “brancos para não-

brancos” entre o Brasil e os Estados Unidos era exatamente o oposto. Essa característica

explica, para o autor, o grande número de alforrias emitidas no Brasil, apesar de reconhecer

que em nossa sociedade o número de escravos libertados sempre foi maior, tanto em

números absolutos como proporcionalmente. Todavia para Harris, “a disparidade pode não

ter sido tão grande quanto certas pessoas acreditam”, visto que em nossa sociedade só havia

duas vezes mais libertos do que nos Estados Unidos.14

Além disso, para explicar o menor índice de alforria na sociedade norte-americana,

Harris afirma que os Estados Unidos possuíam um excesso populacional (imigrantes

ingleses) que preenchia todos os setores do mundo do trabalho – exceto os das plantations,

que eram primordialmente dos escravos – naquele país. Dessa forma: “não havia realmente

lugar para o escravo libertado se enquadrar15” na sociedade norte-americana. No Brasil, a

situação de escassez de mão-de-obra configurou um quadro no qual o liberto encontrava

uma maior oportunidade de se engajar no processo econômico-social, sobretudo porque a

imigração portuguesa não era suficiente para ocupar o chamado setor terciário da

economia. Assim, para se resolver a carência de trabalhadores de origem européia os

“brancos não tiveram alternativa (e) foram forçados a criar um grupo intermediário que se

colocasse entre eles e os escravos16”. Este grupo, composto por mestiços e negros libertos,

exerceriam funções das quais os escravos eram incapazes de realizar.

Ainda, Harris afirma que:

12 HARRIS, Marvin. Padrões Raciais na América. Rio de Janeiro. São Paulo: Civilização Brasileira, 1967, pp. 130 e 131. 13 Idem, p. 134. 14 Idem, p. 136. 15 Idem, p. 141. 16 Idem, p. 137.

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A alforria pode ter sido um tanto mais freqüente no Brasil do que nos Estados Unidos, mas não tão mais freqüente a ponto de ser usada com segurança como indicação de que a escravatura no Brasil era uma instituição mais suave do que nos Estados Unidos. Deve-se ter em mente que a maior proporção de pessoas de cor em relação aos escravos no Brasil possa até certo ponto representar a maior ansiedade por parte dos brasileiros que possuíam escravos de livrar-se do encargo e do sustento de pessoas idosas ou enfermas.17

Portanto, as manumissões do sistema escravista brasileiro eram concedidas a grande

número de escravos velhos ou doentes. Logo, não caracterizava necessariamente uma

sociedade branda. Para Harris, a racionalidade global do sistema, adicionada a uma

racionalidade individual dos senhores, explicam a alta incidência de alforrias no Brasil.

Além dos norte-americanos, muitos historiadores brasileiros, interessados no

processo de libertação do cativo, debruçaram-se sobre tal tema. No final da década de 1970,

Jacob Gorender, pautado em modelos teóricos totalizantes, encarou o curso da liberdade do

escravo como um elemento estrutural do modo de produção escravista. Segundo Gorender,

os senhores alforriavam seus escravos, sobretudo, com os seguintes objetivos: livrar-se de

escravos imprestáveis; estimular a fidelidade de seus cativos, e obter uma renda

suplementar advinda do pecúlio dos escravos.18

Tal como Harris, Gorender afirmou que se alforriava mais escravos idosos e

imprestáveis para evitar gastos desnecessários. Porém, ele discorda do historiador norte-

americano quando a questão é a causa do elevado índice de alforrias no Brasil. Para

Gorender, essa característica não é derivada pela “escassez de colonos brancos,

insuficientes para o preenchimento de várias funções inadequadas aos escravos19”, mas sim,

um padrão decorrente de um conjunto de causas:

A principal consistiu em que o escravismo brasileiro foi o de mais longa duração nas Américas e atravessou várias fases de depressão, quando não poucos senhores se viam obrigados a libertar escravos, sem condições ou facilitando a alforria. Outro fator foi o costume de alistar

17 Idem, p. 136. 18 GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. São Paulo: Ática, 1985, p. 352. 19 Idem, p. 354.

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144

escravos como combatentes, o que podia ser para eles uma via de emancipação20.

Conforme Gorender, as manumissões eram concedidas em maior número durante

períodos de crises econômicas quando, mediante o pagamento em dinheiro, serviria como

renda suplementar ao senhor. Além disso, a alforria poderia também ser utilizada como

uma espécie de manipulação do escravo, sendo elevada, pelo senhor, à condição de prêmio

ao escravo submisso e fiel. Portanto, as necessidades econômicas e interesses pessoais dos

senhores explicariam o grande número de escravos libertos em nossa sociedade.

No final da década de 1980, Manuela Carneiro da Cunha analisou a questão das

manumissões sob a ótica de uma sociedade paternalista: “política generalizada de alforrias

baseada em um sistema de convivência paternalista”.21 Para Cunha as manumissões,

mesmo quando pagas pelo escravo, representavam a generosidade do senhor e, também, a

fidelidade e os bons serviços prestados pelo cativo. Logo a autora percebe o processo de

alforria como unilateral, dependendo somente da vontade do patriarca.

Além disso, buscava-se, através de uma vasta concessão de alforrias, criar laços de

dependência entre senhores e ex-escravos, caracterizando-se uma espécie de clientelismo.

Também, como Gorender, a autora afirmou que a expectativa da liberdade incutia no

escravo uma necessidade de lealdade e extrema submissão ao seu senhor. Portanto, a

alforria:

(...) não só mantinha a sujeição entre os escravos, mas permitia a produção de libertos dependentes. Entre os escravos mantinha a esperança (...) de conseguir a liberdade, incentivava à poupança e uma ética de trabalho; mas condicionava também a liberdade a relações pessoais com o senhor. Entre os libertos, abria-lhes a condição de dependentes, mantendo os laços de gratidão e de dívida pessoal em troca de proteção do patrono. (...) O direito em lei da alforria paga,

20 Idem, p. 357. 21 CUNHA, Manuela Carneiro de. Antropologia do Brasil: mito, história, etnicidade. São Paulo: Brasiliense/Edusp, 1987, p. 136.

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145

prescindindo da aquiescência do senhor, subverteria a sujeição, afrouxando os laços entres senhor e escravos.22

Nesse sentido, de acordo com a autora, os laços morais que permeavam a relação

entre o senhor e o escravo, não cessavam com a assinatura da carta de liberdade. Exigia-se

gratidão e lealdade do alforriando, mas em contrapartida, aos senhores era exigido, no

mínimo, uma certa proteção ao manumisso, fato este que a autora chamou de “injunções

morais” dos senhores.23

No derradeiro ano da década de 1970 outros dois historiadores norte-americanos

também se debruçaram sobre a problemática das alforrias em nossa sociedade: Thomas

Merrick e Douglas H. Graham. Estes disseram se opor ao viés exclusivamente economicista

e compreenderam a manumissão como um tema que não comportava generalizações.

Porém, a partir do método comparativo, entre a nossa sociedade e o sul norte-americano,

inferem a extrema importância do fator econômico quando a questão era a liberdade do

escravo.

Embora o cálculo econômico possa não ter sido o motivo predominante na decisão de todos os senhores de escravos no Brasil, de conceder alforria, gratuita ou comprada, aos seus escravos, a importância desses fatores subjacentes é ressaltada se compararmos o ambiente brasileiro com o sul dos Estados Unidos. Se o Brasil dispusesse, como os Estados Unidos, de uma relativa abundância de capital, se a mortalidade dos escravos tivesse sido menor e as importações fossem proibidas, e se os preços dos escravos tivessem subido desde 1800, então o ritmo de alforrias provavelmente teria sido bem menor.

Apesar de Merrick e Graham terem “relativizado” o processo de manumissão e

afirmado que ele refletiu “mais do que condições e motivos meramente econômicos”,

acabam por concluir que o alto número de alforrias emitidas no Brasil foi causa imediata de

fatores meramente econômicos, como os prolongados períodos de declínio nos ciclos de

22 Idem, p. 138. 23 Idem, p. 137.

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146

exportação e a contínua e massiva entrada de africanos nos portos brasileiros até o ano da

sanção da lei Eusébio de Queirós.

Além disso, com relação aos benefícios garantidos pelos senhores, os autores

afirmam, assim como Manuela Carneiro da Cunha, que a possibilidade da alforria,

“comprada ou gratuita” provocava um comportamento mais fiel e produtivo por parte dos

escravos e, dessa forma, proporcionava ao senhor um maior controle sobre sua força de

trabalho.24 Portanto, podemos dizer, que tais historiadores ainda entendiam o processo de

alforria como algo manipulado somente pelos interesses senhoriais, sejam estes,

econômicos ou pessoais.

No Brasil, desde o final da década de 1980, alguns autores, através da utilização de

novas fontes e da aplicação de novas metodologias, como a demografia histórica, iniciaram

um processo de revisão de alguns conceitos e teorias já cristalizados pela historiografia.

Questões como a “teoria do escravo-coisa” começaram a ser alvo de inúmeras críticas. No

que diz respeito ao escravo, este passou a ser visto como um ser partícipe, capaz de

interagir em sua sociedade por meio da racionalidade. Nesse sentido, inseridos nesta nova

perspectiva acerca da escravidão, autores como Sidney Chalhoub e Manolo Florentino,

trataram da temática da alforria de maneira inovadora.

Sidney Chalhoub, no livro Visões de Liberdade, discutiu a vulgar concepção da

alforria como uma doação ao escravo. Segundo o autor, a lei, tradicionalmente, tratava das

manumissões inserindo-as no mesmo título das doações.25 Todavia, para Chalhoub a “carta

de alforria que um senhor concede a seu cativo deve ser também analisada como o

resultado dos esforços bem-sucedidos de um negro no sentido de arrancar a liberdade a seu

senhor”. Logo, as etapas percorridas até a assinatura final da carta pelo senhor poderiam ser

encaminhadas através de negociações com o próprio cativo, a despeito do poder de alforriar

ser restrito aos senhores, afinal, somente eles poderiam assinar o documento. Portanto,

Chalhoub procurou demonstrar as “interferências” do futuro forro, caracterizando a

manumissão como o resultado de um processo multilateral. Além disso, o autor afirma que:

O fato de muitos escravos terem seguido este caminho (a conquista da liberdade por meio da alforria) não significa que eles tenham simplesmente “espelhado” e “refletido” as representações de seus

24 Idem, pp. 78 e 79. 25 CHALHOUB, Sidney. Op. cit.,1990, p. 129.

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147

“outros” sociais. Os cativos agiram de acordo com lógicas ou racionalidades próprias (...) Longe de estarem passivos ou conformados com a sua situação, procuravam mudar sua condição através de estratégias mais ou menos previstas na sociedade na qual viviam. Mais do que isto, pressionaram pela mudança, em seu benefício, de aspectos institucionais daquela sociedade.26

Conquistar a liberdade por meio da via institucional não significava que o escravo

agisse somente de acordo com as normas impostas pela hegemonia dominante, ou seja, da

classe senhorial. Óbvio reconhecer a presença desta na organização de vida dos cativos,

mas ao mesmo tempo, devemos também admitir a criação, por parte dos escravizados, de

um mundo próprio, justaposto às agruras do cativeiro.27

Manolo Florentino, como Merrick e Graham, sustentou a importância do fator

econômico: “para a manumissão dos escravos concorria grande dose de concessão, levada a

cabo de acordo com as vicissitudes do cálculo senhorial”.28 Porém, Florentino avança na

medida em que afirma a necessidade de uma atitude política do escravo para negociar sua

esperada alforria. Com o fim do tráfico internacional de cativos, em 1850, o valor destes

aumentou bruscamente, dificultando a formação de pecúlio para a auto-aquisição: “A

extrema valorização contribuiu para redefinir parte das expectativas, das opções e das

atitudes dos escravos frente à liberdade”.29 Ou seja, a partir do momento em que há o

predomínio das alforrias gratuitas30, foi necessária uma extrema “politização” da relação

entre o escravo e o seu senhor para a obtenção da manumissão: a conquista da liberdade

deslocou-se da esfera da formação do pecúlio (i.e., do mercado) para a órbita intrínseca da

“negociação entre o escravo e o seu senhor” (grifo meu). Dessa forma, o autor coloca o

escravo como agente e negociador na busca por sua própria liberdade.

Assim, partimos do princípio que a manumissão pode ser entendida, também, como

uma conquista escrava. Porém, conforme Florentino:

26 Idem, pp. 252 e 253. 27 Idem, passim. 28 FLORENTINO, M. Op. cit., 2002, p. 17. 29 Idem, p. 18. 30 O autor trabalhou especificamente com as alforrias do Rio de Janeiro. O predomínio das alforrias gratuitas verificou-se no período entre 1840 e 1864.

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148

Não se trata de negar o que de concessão senhorial havia em toda e qualquer manumissão, mas sim de realçar os aspectos (práticas, comportamentos sociais, formação de pecúlio etc) que tornavam o escravo um ator mais ativo na mudança de sua condição social e jurídica do que comumente se imagina.31

Enfim, neste trabalho percebemos os homens e as mulheres escravizados como

agentes históricos dotados de racionalidade própria. Eles interagiram, durante todo o

período de vigência do regime escravista, com a sociedade na qual faziam parte,

contribuindo para uma efetiva transformação da instituição a partir das suas próprias

experiências históricas e tradições coletivas, que segundo Robert Slenes, foram transmitidas

e perpetuadas através das gerações familiares.32

2 – Acordos para a liberdade

A assinatura da carta de alforria pelo senhor poderia significar o início de uma nova

vida para o escravo, além de pôr fim a um presumível extenso processo manipulado pelos

agentes sociais envolvidos na situação. O ápice da assinatura trazia consigo as marcas da

riqueza do sistema escravista na medida em que trazia à tona situações ambíguas que

tornam o estudo deste tema algo ao mesmo tempo difícil e instigante para o historiador.

João Cabinda recebeu a tão esperada carta de alforria, em vinte de setembro de 1843

na cidade do Rio de Janeiro, das mãos do seu senhor, o cônego José Álvares Couto. Este o

libertou alegando o seguinte motivo “(...) se me tem servido bem como escravo, mas como

31 FLORENTINO, Manolo. “De escravos, forros e fujões no Rio de Janeiro Imperial (ensaio)”. In: Revista USP, São Paulo, nº. 58, pp. 104-115, junho/agosto 2003. 32 SLENES, Robert W. Na senzala, uma flor: esperanças e recordações na formação da família escrava Brasil-Sudeste, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.

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149

bom amigo e bom cristão”. O documento foi registrado em cartório sem qualquer ônus

monetário a João Cabinda.33

A madre Maria de Jesus, aos três dias do mês de setembro de 1849, dirigiu-se ao

cartório do 2º ofício do Rio de Janeiro para registrar a alforria de três escravos: Tereza

Maria de Jesus, parda de cinco anos de idade, Caetano de Jesus, pardinho com apenas um

ano de idade e Maria da Glória de Jesus, pardo, também com um ano de idade. As crianças,

possivelmente filhas de escravas suas, foram alforriadas sob a condição de servir em vida a

mesma senhora.34

Já o escravo e oficial de barbeiro, Joaquim Pinto de Gouveia, pardo, de vinte e três

anos, nascido e criado na Fazenda de Campos, teve sua carta de liberdade registrada na

metade do ano de 1859. Para esse fim, teve de amealhar, um conto de réis, quantia pela

qual fora avaliado por seus senhores, os monges do Mosteiro de São Bento.35

Os três exemplos acima representam alguns dos arranjos que podiam ser elaborados

em torno do processo da manumissão. Logo, neste trabalho, as alforrias serão divididas,

quanto ao seu meio de obtenção, em três categorias: “pagas”, “gratuitas” e condicionais.36

Cabe ressaltar que essa divisão ainda é redutora, tendo-se em vista a riqueza e minúcias que

envolvem o processo da alforria. Este assunto ainda demanda maior desvelo por parte da

historiografia brasileira.

Foram consideradas alforrias gratuitas as que não fizeram referência de pagamento

em dinheiro ou em serviços, por parte do escravo ou algum benfeitor. (em determinadas

cartas a palavra “gratuitamente” é mencionada, porém, sob forma condicional de prestação

de serviços, assim, essas cartas foram incluídas na categoria condicional). Geralmente,

esses tipos de cartas apareciam com as seguintes motivações por parte dos senhores: bons

33 2º Ofício de Notas, livro 73, p. 323 v. – Arquivo Nacional (RJ). Ver no anexo 6 a transcrição integral do documento. 34 2º Ofício de Notas, livro 81, pp. 169 e 170 – Arquivo Nacional (RJ). Ver no anexo 7 a transcrição integral do documento. 35 2º Ofício de Notas, livro 94, p. 18 – Arquivo Nacional (RJ). Ver no anexo 8 a transcrição integral do documento. 36 No exame de Qualificação desta dissertação, em março de 2006, o professor José Roberto Góes propôs uma tipologia bem mais elaborada e adequada: separar as alforrias em “pagas” e “gratuitas” e, a partir daí, classificá-las em “sem condição”, “com condição de servir” e “com outra condição”. Porém, no período da Qualificação o arcabouço da pesquisa já se encontrava praticamente completo e, devido ao restrito tempo de uma pesquisa de mestrado, optamos por não mudar a metodologia já empregada. Todavia, a tipologia proposta pelo professor será de grande valia num posterior trabalho de doutorado, que abrangerá um número bem maior de fontes.

Page 29: Escravos Da Religiao

150

serviços, amor de criação, amizade, merecimento, gratidão, fidelidade, enfermidade do

escravo e, até mesmo, o desejo do senhor de “se ver livre” do cativo, seja por medo ou

vingança. Tais motivos foram encontrados em outras categorias de alforria, porém, são

mais constantes nas gratuitas. Dessa forma, pode-se observar que na maioria das vezes

concorriam para a manumissão gratuita as relações entre senhores e escravos, sejam estas

afetivas ou não.

Consideramos como manumissões condicionais as que exigiram do escravo o

cumprimento de certas atividades estabelecidas pelos senhores. Esse tipo de carta poderia

ser acordado de diversas maneiras. Por exemplo: o escravo devia servir ainda por um

determinado período, variando entre meses e décadas; servir ao senhor durante toda a vida

deste ou a alguém por ele designado (além de ter, em alguns casos, de arcar com o funeral e

missas pela alma do senhor); realizar trabalhos, como garçom, costureiro em algum período

do ano; exercer funções militares, etc. Essa categoria ainda gera certa perplexidade, devido

à dificuldade em compreender essa condição de livre e cativo que o escravo – ou ex-

escravo – vivenciava ao mesmo tempo. Essa categoria será melhor estudada na etapa final

do trabalho.

Por fim, as alforrias “pagas”. Nestas, aparecia explícito o pagamento efetivado em

dinheiro para a compra da manumissão. Normalmente, esses documentos continham a

forma de pagamento, o valor e a pessoa que efetivamente concorreu para tal fim – o próprio

escravo, parentes, padrinhos, instituições, amigos, etc. Em muitos casos, os escravos

passavam anos pagando ao seu senhor mensalmente até obter a quantia necessária a sua

alforria. Em outros, acordava-se uma coartação, ou seja, o senhor libertava o escravo

estipulando uma quantia e um prazo para o pagamento. Se o (ex) escravo não o

conseguisse, voltaria à condição de cativo. Novamente, nota-se a condição intermediária

entre cativeiro e liberdade.

Apesar da divisão acima descrita, houve cartas – devido à já mencionada riqueza e

complexidade do tema – com dúbio sentido, colocando-nos em dificuldade no momento da

classificação taxonômica. Em alguns casos o alforriando passou, seja em dias ou anos, por

duas diferentes categorias de manumissão. Vejamos os seguintes exemplos: Joana

Francisca Nobre, herdeira do padre João de São Boaventura Cardoso, recebeu, em legado, a

escrava Felicidade Crioula no dia trinta e um de julho de 1852. O padre alforriou Felicidade

Page 30: Escravos Da Religiao

151

em testamento com a condição dela servir durante cinco anos a sua herdeira Joana.

Todavia, no dia quatro de agosto do mesmo ano, esta foi ao 3º cartório do Rio de Janeiro e

concedeu a alforria gratuita desistindo dos serviços da escrava.37

Outra situação: o padre Francisco Manoel Marques Pinheiro recebeu a escrava

Presciliana parda, de 20 anos, como legado da falecida Inocência Angélica da Conceição.

Esta, em testamento, libertou Presciliana sob a condição de servir ao padre enquanto este

fosse vivo. Contudo, dez anos após a abertura do testamento, em agosto de 1870, Francisco

Pinheiro assinou a alforria plena, recebendo para este fim 700 mil réis da escrava.38

No total das 370 alforrias analisadas, casos como os acima descritos ocorreram com

certa freqüência. Nessas situações, decidiu-se por escolher a categoria na qual o padre

atuou diretamente. Ou seja, no primeiro exemplo, mesmo a escrava não tendo “chegado a

servir”, esta alforria foi classificada como condicional devido à intenção do senhor, o padre

João de São Boaventura Cardoso, de libertar a escrava Felicidade mediante a prestação de

serviços. No segundo caso a alforria foi destinada à categoria “paga”, porque somente com

o pagamento em dinheiro o padre Francisco Pinheiro desistiu dos serviços da escrava,

apesar dela já lhe ter servido durante um período de dez anos.

Explicada a metodologia utilizada para classificar as alforrias em diferentes

categorias, vejamos alguns caminhos percorridos pelos escravos a partir do pagamento em

dinheiro à obtenção da sua esperada liberdade.

2.1 – Coartações, prestações, trocas – meandros da liberdade:

Coartações, prestações, troca por outro cativo... Enfim, variados poderiam ser os

acordos estabelecidos entre o escravo e o senhor para que aquele pudesse efetuar a compra

de sua alforria. A coartação, ainda hoje, é pouco estudada na historiografia brasileira, talvez

37 3º Ofício de Notas, livro 10, p. 146 v – Arquivo Nacional (RJ). Ver no anexo 9 a transcrição interal do documento. 38 3º Ofício de Notas, livro 32, p. 15 v – Arquivo Nacional (RJ). Ver no anexo 10 a transcrição integral do documento.

Page 31: Escravos Da Religiao

152

por ter sido uma transação não muito corrente no escravismo brasileiro, diferente do que

ocorria na escravidão cubana, por exemplo. Mas, podemos dizer que a análise da

“coartação brasileira” ficou, sobretudo, restrita aos historiadores que se dedicaram à região

das Minas Gerais, na qual caracteriza-se por ter tido esse tipo de acordo como “modalidade

específica”.39

O processo de coartamento suscitou, e ainda hoje suscita, diferentes interpretações.

Para Stuart Schwartz, o cativo coartado obtinha o direito de pagar pela própria alforria,

conquistando uma certa liberdade de movimentos para acumular os recursos necessários a

tal fim.40 Nesse sentido, o coartado era um escravo que se encontrava em processo de

transição para a condição de liberto.

O coartado tinha “o direito de procurar, próximo ou distante do domínio senhorial,

os meios para saldar prestações referentes à compra de sua carta de alforria”. Eis a

interpretação dada por Eduardo França Paiva para a coartação. Logo, segundo Laura de

Mello e Souza, este autor aproxima o coartado do escravo de ganho. Mas para Paiva, o

coartado também se via entre o cativeiro e a libertação e, inseria-se no mercado de trabalho

tendo como prova de sua situação um documento assinado por seu proprietário – a carta de

corte.

Diferentemente do que ocorria no resto do país, a coartação foi bastante comum na

região aurífera das Minas Gerais. Consoante a Paiva, este acordo foi usual desde a segunda

década do século XVIII. Inclusive, analisando 357 testamentos, ele constatou que o número

de coartamentos foi superior ao de alforrias a partir da década de 1730.41 Isto foi explicado

pelo autor como uma estratégia do senhor para aumentar seus rendimentos. Laura de Mello

e Souza corrobora essa hipótese baseada na constatação de haver uma maior incidência de

coartações em períodos de menor dinamismo econômico.42

Ainda de acordo com a autora citada:

39 Sobre coartação ver: SOUZA, Laura de Mello e. Norma e conflito. Aspectos da História de Minas Gerais no século XVIII. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999; PAIVA, Eduardo França. Escravos e libertos nas Minas Gerais do século XVIII: estratégias de resistência através dos testamentos. São Paulo: ANNA-BLUME, 1995; HIGGINS, Kathleen Joan. The slave society in eighteenth-century Sabara: a community study in colonial Brazil. UMI Dissertation Services, 1994; SCHWARTZ, Stuart B. Segredos Internos. Op. cit., 1995. 40 SCHWARTZ, Stuart B. Op. cit., 1995, p. 214. 41 PAIVA, Eduardo França. Op. cit., p. 89. 42 SOUZA, Laura de Mello e. Op. cit., 1999, p. 159.

Page 32: Escravos Da Religiao

153

Os coartamentos contribuíram em muito para complicar uma estrutura social já bastante complexa, abrindo vastas áreas de indefinição entre o cativeiro e a liberdade. (...) o coartamento integrou as estratégias que os escravos souberam desenvolver de forma paciente, corajosa e, não raro, malandra. Os coartamentos ensejaram, portanto, um vasto espaço de manipulação mútua em que senhores e escravos jogavam um xadrez complicado.43

Brilhantemente, Souza insere a coartação no campo das “estratégias políticas”

utilizadas pelos escravos para conseguir a esperada liberdade, por meio da via institucional

prevista pela sociedade escravista. A coartação tinha um caráter contratual que ambas as

partes, os senhores e os escravos, deveriam observar. Mas, ainda conforme esta autora,

como o coartado somente seria liberto quando pagasse a quantia pré-fixada em prestações,

ela afirmou que a coartação tinha um aspecto de alforria condicional, malgrado o

reconhecimento de seus traços bastante peculiares.

Nesta questão específica não seguimos com o mesmo ponto de vista. Consideramos

alforrias condicionais as que exigiam do escravo um pagamento sob forma de prestação de

determinados serviços não envolvendo, portanto, transações monetárias. Compreendemos a

coartação como uma variação da manumissão paga e não como um fenômeno alheio ao

processo de alforria. Seria até mesmo algo muito parecido com a alforria paga em

prestações, porém, entendemos que num processo de coartação, o alforriando poderia “estar

a ganhar”, para acumular os recursos necessários, longe, ou não, da esfera senhorial, o que

o diferencia do pagamento em prestações, na qual o escravo ainda estaria vivendo sob a

égide de seu senhor. Assim como dito por Paiva, o escravo já estaria vivendo uma certa

liberdade.

Em nossa amostra dos registros de manumissões temos dois documentos de

liberdade que, apesar de não ser denominado como uma carta de corte, consideramos como

tal por sua característica. Vejamos esses casos: na alforria de Ludugero mina, registrada no

início de 1844, o cônego Alberto da Cunha Barbosa explicitou que o escravo “está a ganhar

para pagar sua liberdade”. Ou seja, o alforriando deixou de trabalhar diretamente para o

43 Idem, p. 169.

Page 33: Escravos Da Religiao

154

senhor e passou a gozar de certa liberdade para acumular o “seu próprio valor”.44 No

segundo caso, ocorrido em outubro do ano de 1843, o síndico da Província de Santo

Antônio registrou a alforria de João Cabinda e evidenciou a seguinte informação: “500 mil

réis o escravo já pagou e poderá trabalhar para conseguir os 300 mil réis”.45 Portanto, está

explícito no registro de alforria, que igualmente a Ludugero, João poderia estar fora da

órbita de seu senhor, acumulando o restante da quantia da forma que desejasse e pudesse.

Além disso, tiveram suas cartas assinadas antes do pagamento total.

Diferente processo viveu Constancia Cabinda. Em vinte de dezembro de 1851, esta

africana acordou sua liberdade e a de sua filha, Carolina Crioula, com seu senhor, o padre

Reginaldo José Antunes: ela poderia pagar em prestações o total de 400$000 réis. Dois

anos depois – em quatorze de fevereiro de 1853 – mãe e filha tiveram finalmente suas

cartas registradas no livro de notas do 3º ofício do Rio de Janeiro.46 Possivelmente, o

espaço de vinte e quatro meses entre o ajuste de liberdade e o seu registro em cartório foi o

tempo necessário à Constância para conseguir pagar o total estabelecido. Logo, mãe e filha

só tiveram acesso à carta após o completo pagamento de seus valores, diferentemente do

que ocorreu com Ludugero mina e João Cabinda, cujo processo de alforria foi considerado

por nós como coartação.

Assim, não foram registrados nos Ofícios de Notas que compreendem a amostra

dessa pesquisa, casos declarados de alforrias obtidas por coartamento. Porém encontramos

no inventário do padre e senador José Custódio Dias uma coartação específica. O

inventariante e testamenteiro, Roque de Souza Dias, sobrinho do religioso, em meio à

avaliação dos bens do finado tio, declarou “ter recebido do escravo Julião a quantia de

400$000, preço porque foi coartado pelo finado em seu testamento, e por isso, lhe deu sua

carta de liberdade”.47 Infelizmente o registro de documento de liberdade de Julião não

aparece nos ofícios de nota em questão; mas temos em nosso banco de dados o registro de

outros cinco cativos do padre, também libertos em testamento. Mas, apesar do inventariante

ter registrado estas alforrias em cartórios do Rio de Janeiro, o padre, falecido em janeiro do

ano de 1838, era morador da Freguesia de São José dos Alfenas, província de Minas

44 2º Ofício de Notas; livro 74, p. 286 – Arquivo Nacional (RJ). 45 2º Ofício de Notas; livro 74, p. 35 – Arquivo Nacional (RJ). 46 3º Ofício de Notas; livro 11, p. 51v. – Arquivo Nacional (RJ). 47 Inventário de José Custódio Dias, 1ª Vara Civil; caixa: 289; nº: 3546; ano: 1839 – Arquivo Nacional (RJ).

Page 34: Escravos Da Religiao

155

Gerais... Logo, nosso único exemplo de coartação explícita corrobora a idéia de ser este

acordo uma modalidade, essencialmente, mineira.

Outra situação bastante interessante é o caso de troca de escravos. Apesar de

classificação ainda redutora, consideramos esse processo como uma variável da alforria

paga, devido ao ônus financeiro dispensado pelo alforriando. Em nossa amostra temos o

registro de três cativas que conseguiram sua liberdade comprando outro escravo para deixar

em seu lugar.

São elas, Teodora Monjola, Honorata cabra e Joana Narcisa. Todas pertencentes à

mesma instituição, o Convento Nossa Senhora da Conceição da Ajuda. Em maio de 1842,

mediante acordo entre Joana Narcisa e esta instituição, ficou estabelecido que a escrava

deixaria o cativeiro mediante sua permuta por outra cativa, substituindo-a. Logo, ela

comprara a cativa Silvéria pelo valor de 630$000 réis deixando-a em seu lugar. Assim feito,

em junho do mesmo ano Joana teve sua alforria registrada em cartório.48 Da mesma forma,

Teodora e Honorata tiveram suas cartas de liberdade49 registradas nos anos de 1854 e 1855,

respectivamente, a partir do momento em que compraram outro cativo para lhe

substituírem.

Vimos então, neste item, o quão sinuosos poderiam ser os acordos para o escravo

chegar à obtenção de sua carta. Todos esses exemplos reforçam ainda mais a participação

direta dos escravos, caracterizando-os como agentes sociais que interagiam de forma bem

ativa na sociedade em que viviam.

2.2 – A Alforria paga – preços e valores

Variados acordos entre senhores e escravos não foram elementos peculiares à

sociedade escravista do Brasil. Pelo contrário, eles fazem parte de um conjunto de práticas

costumeiras e até mesmo jurídicas referentes à escravidão existentes há séculos na Europa e

48 1º Ofício de Notas, livro 5, p. 224v. – Arquivo Nacional (RJ). 49 2º Ofício de Notas; livro 88; p. 115 e livro 89; p. 104v. – Arquivo Nacional (RJ). – Ver nos anexos 11 e 12 a transcrição integral dos documentos.

Page 35: Escravos Da Religiao

156

até mesmo na África. Especificamente neste continente, Paul Lovejoy nos diz que desde o

princípio do Califado de Socoto (1804), Império Islâmico localizado na região do Sudão

Central, “a prática da autocompra – a fansa – permitia ao escravo pagar ao seu senhor uma

quantia inicial, seguida de prestações até que se completasse o valor da compra”.50

Na Espanha do século XIII, sob o reinado de D. Alfonso X, o Sábio, foi instituído

um código de leis, Las Siete Partidas que, segundo Ana Beatriz Frazão, ultrapassou o

enfoque jurídico e pode ser comparada aos tratados de moralidade.51 Logo, Las Siete

Partidas caracterizam a sociedade da época em seus costumes e definem regras de conduta

coletivas vinculadas ao bem comum. Entre inúmeras cláusulas, tal código estabeleceu os

diretos e deveres dos cativos. Sintetizou elementos do direito romano e do canônico e,

assim, seus artigos são vistos por alguns estudiosos como características específicas da

abordagem católica da escravidão.52

Em 1685, o governo francês criou um edito relativo ao governo, a administração da

justiça, a política, a disciplina e o comércio dos escravos nas colônias francesas. Tal edito,

conhecido por Code Noir tinha por objetivo “uniformizar o conjunto das leis escravistas”

que já havia sendo elaborado nas colônias.53 No Brasil, apesar de não ter existido uma

legislação direcionada exclusivamente à população escrava, como o Código Negro francês,

muito se seguiu das práticas ocorrentes desde a escravidão branca européia (logicamente

adaptadas à nova realidade sócio-cultural).

Segundo Frank Tannembaum, as leis, os costumes e as tradições espanholas,

sistematizadas nas Sietes Partidas, foram transferidas para o Novo Mundo e “came to

govern the position of the Negro slave”.54 Por exemplo:

A master might manumit his in the church which or outside of it, before a judge or other person, by testament or letter, but must do this by himself, in

50 LOVEJOY, Paul E. “A escravidão no Califado de Socoto”. In: FLORENTINO, Manolo & MACHADO, Cacilda (Org.). Ensaios sobre a escravidão (1). Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003, p. 55. 51 RIBEIRO, Ana Beatriz Frazão. O bem comum nas “Siete Partidas” de Alfonso X. Ver no link: http://www.ifcs.ufrj.br/~pem/html/textos.html. 52 DAVIS, Davis Brion. O problema da escravidão na cultura ocidental. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. 53 MARQUESE, Rafael de Bivar. Feitores do corpo, missionários da mente. Senhores, letrados e o controle dos escravos nas Américas, 1660-1860. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 34. 54 TANNENBAUM, Frank. Op. cit., 1992, p. 52.

Page 36: Escravos Da Religiao

157

person (...). The slave could become free (...) providing another slave in his place (...). The law further permitted the slave to free himself by installments, and this became a widely spread custom (...).55

Outro direito dos escravos presente nas Siete Partidas56 era o de acesso aos tribunais

caso o senhor não aceitasse alforriá-lo mediante o valor pelo qual ele fora comprado.

Semelhante prática – a dos senhores cobrarem do escravo, pela alforria, o valor de mercado

vigente no período de sua aquisição, e não o corrente no momento do acordo da alforria –

caracterizava-se como direito consuetudinário na América portuguesa e foi corrente pelo

menos até a década de 1830.57 Todavia, isso não significa que o escravo, no Brasil, pudesse

forçar seu senhor a libertá-lo, como afirmou Tannenbaum58, afinal isso era prática

corriqueira e não juridicamente estabelecida.

Manuela Carneiro da Cunha analisou o grande predomínio no Brasil das chamadas

leis consuetudinárias, concluindo haver em nossa sociedade um “silêncio das leis”. A

autora afirmou não haver nenhuma regulamentação que obrigasse os donos de escravos a

pôr em prática o costume de se alforriar um escravo com o preço pelo qual ele fora

comprado. Todavia, “ao inverso da lei escrita, a lei costumeira contava com a sanção de

uma opinião pública atenta. Padres, ‘homens da mesma classe do senhor’ e até a ‘gentinha’,

diante dos quais o senhor não queria se desprestigiar”. Portanto, tal prática era largamente

difundida entre os donos de escravos no Brasil.

Em 1830, o então deputado Antônio Pereira Rebouças, levou ao Parlamento uma

proposta para regulamentar as liberdades de cativos pelo pagamento de seu próprio valor. O

projeto tinha o intuito de adaptar à realidade brasileira uma lei da ordenação filipina – livro

4, título 11,§ 4 – a qual legislava a respeito dos mouros cativos em Portugal. Segundo esta

ordenação, apesar de ninguém poder constranger a venda de propriedades contra a vontade

do dono, em favor da liberdade muitas coisas deveriam ser outorgadas contra as regras

55 Idem, p. 50. 56 Ver link: http://bibliotecaforal.bizkaia.net/search*spi/tsiete+partidas/tsiete+partidas /1,2,2,B/frameset&FF=tsiete+partidas+del+sabio+rey+don+alonso+el+nono&1,1. 57 MATTOSO, Kátia; KLEIN, Herbert & ENGERMAN, Stanley. “Notas sobre as tendências e padrões dos preços de alforria na Bahia, 1819-1888”. In: REIS, João José (Org.). Escravidão e invenção da liberdade. Estudos sobre o negro no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1988, p. 63. 58 Idem, p. 54. O autor fez essa afirmação baseado em obras de Harry Johnston e J. C. Fletcher.

Page 37: Escravos Da Religiao

158

gerais. Portanto, o mouro cativo poderia ser libertado através do pagamento de valor

acrescido de 20%.59

Logo, Rebouças propusera que “qualquer escravo que consignar em depósito

público o seu valor, e mais a quinta parte do mesmo valor, será imediatamente manutenido

se o seu senhor não convier em conferir-lhe amigavelmente a liberdade”.60 Todavia,

segundo Keila Grinberg, tal projeto sobre o pecúlio e a regulamentação do acesso à

liberdade por cativos teve o pedido de urgência negado pelo Parlamento, foi remetido à

análise pela comissão responsável, porém, de lá nunca saiu.

Somente no ano de 1871 esse costume de se alforriar um escravo com o preço pelo

qual ele fora comprado tornou-se lei escrita: juntamente com a Lei do Ventre Livre, foi

sancionada uma lei que obrigava ao senhor emancipar seus cativos que pudessem pagar o

valor de mercado corrente. 61

Alguns historiadores já se dedicaram ao estudo dos preços das alforrias para

identificar a lucratividade da escravidão e a estrutura relativa dos preços conforme a idade e

o sexo dos alforriados. Analisando os preços das alforrias da Bahia entre 1819 a 1888,

Kátia Mattoso, Herbert Klein e Stanley Engeman perceberam um gradativo aumento até o

final da década de 1860, quando se verificou o seu ápice. Somente a partir deste momento

os preços sofreram um declínio que se estendeu até o ano da abolição. Ainda assim, esses

preços em queda foram superiores aos anteriores à década de1830.62

No Rio de Janeiro, Antônio Carlos Jucá identificou um aumento considerável do

valor dos escravos entre o século XVII e o início do XVIII. Mas conforme o autor, esse

acréscimo não se mostrou em nada exorbitante:

A variação de valores entre os dois períodos é de 135,25% para escravos adultos, muito inferior ao que encontramos para os valores das propriedades agrícolas. Os engenhos de açúcar, por exemplo, valorizam-se em 178,95% no mesmo período. Na verdade, o aumento dos valores dos cativos faz parte

59 GRINBERG, Keila. O fiador dos brasileiros. Cidadania, escravidão e direito civil no tempo de Antônio Pereira Rebouças. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p. 119. 60 Idem, p. 120. 61 DAVIS, Davis Brion. Op. cit., 2001, p. 304; CUNHA, Manuela Carneiro da. Op. cit. 1987, p. 127. 62 MATTOSO, Kátia, KLEIN, Herbert & ENGERMAN, Stanley. Op. cit., 1988, p. 64.

Page 38: Escravos Da Religiao

159

de uma elevação geral de preços ocorrida no Rio de Janeiro como decorrência da descoberta e posterior colonização das áreas mineradoras.63 Para a mesma região, Manolo Florentino fez uma breve análise sobre as flutuações

dos preços das alforrias e dos escravos adultos no Rio de Janeiro desde o final do século

XVIII até a década de 1860.64 Tendo por base o valor nominal de um escravo típico – sexo

masculino entre 15 e 40 anos de idade – o autor percebeu um gradativo aumento do preço

desse cativo, alcançando seu ápice nos anos 60. Com isso, o século XIX assistiu a maior

valorização monetária dos escravos desde o auge das atividades mineradoras de Minas

Gerais, o que acarretou uma brusca diminuição no número de alforrias.

Além disso, Florentino identificou que entre 1840 e 1869 o preço das alforrias de

um cativo típico, encontrava-se no mesmo patamar das variações de seu valor de mercado

(gráfico 1)65. Assim, pode-se dizer que o boom de valorização do escravo arrefeceu a

continuidade da antiga tradição de se alforriar o escravo com o mesmo valor pelo qual ele

fora comprado.

Gráfico 1: Flutuações dos preços das alforrias e dos escravos adultos (15-40 anos de idade) do sexo masculino, meios urbano e rural do Rio de Janeiro, 1790-1869, em mil-réis e libras esterlinas:

63

JUCÁ, Antônio Carlos. “A produção da liberdade: padrões gerais das manumissões no Rio de Janeiro colonial, 1650-1750”. In: FLORENTINO, Manolo (Org.) Tráfico, cativeiro e liberdade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, passim. 64 FLORENTINO, Manolo. Op. cit., 2002. 65 Idem, p. 16.

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160

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Lib

ras

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10000

Mil-ré

is

Escravos (em libras) Escravos (em mil-réis) Alforrias (em mil-réis)

Fonte: Apud FLORENTINO, Manolo. Op. cit., p. 16. No entanto, como será visto em item posterior, no mesmo período em que no padrão

geral as alforrias “gratuitas” sobrepuseram-se às “pagas” (1840-1869), a maioria das

instituições religiosas regulares alforriava seus escravos mediante o pagamento em

dinheiro... Se estes últimos conseguiam reunir pecúlio para alforriar-se mesmo estando

supervalorizados é bem possível que parte daquela fração do clero tenha mantido a tradição

em questão. Contribui para essa hipótese uma comparação entre o particular, representado

pelas manumissões concedias pelos eclesiásticos, e o geral, reunindo as demais.

Face aos limites da fonte analisada – o banco de dados elaborado possui poucas

cartas de alforria “pagas” que reúnem todos os dados necessários à realização do cálculo da

média de preço, como a idade do escravo e o valor da alforria – não pudemos realizar uma

análise mais pormenorizada. Dessa forma, a comparação foi feita apenas entre o preço

médio das alforrias de escravas entre 15 e 40 anos na década de 1860. Conforme Manolo

Florentino, o preço médio das manumissões de tal grupo estava em torno de 1.298$000

Page 40: Escravos Da Religiao

161

réis66, enquanto as alforrias especificamente de escravas do clero custavam em média

581$000 réis.67

Portanto, a despeito da pequena amostra de cartas, é possível perceber uma

considerável diferença entre as duas médias: para o período analisado, as escravas de uma

instituição religiosa pagavam quase a metade por sua alforria em relação às escravas de um

senhor leigo. Logo, podemos sugerir que os religiosos preservaram o costume de deixar o

escravo pagar por sua manumissão o preço de sua compra, a despeito da maximização de

seu valor. Talvez, isso representasse para o clero a expressão máxima da vontade de manter

a tradição em uma sociedade na qual os “interesses” sobrepunham-se cada vez mais rápido

às “paixões”.

Albert Hirschman buscou uma nova abordagem para a interpretação do “espírito do

capitalismo” e de sua gênese por meio da análise dos discursos de diversos pensadores –

desde Santo Agostinho a Max Weber – realizando uma verdadeira história das idéias.68 O

autor percebeu que num momento anterior à ascensão da economia de mercado e à efetiva

implementação do capitalismo, construíram-se, paulatinamente, argumentos políticos e

justificativas favoráveis a este sistema, legitimando práticas antes ofensivas à moral cristã –

as atividades lucrativas. Analisando os conceitos “paixão” e “interesse”, Hirschman

mostrou como o primeiro foi cedendo lugar ao segundo enquanto papel de propulsor

ideológico do novo sistema nascente. Desde Hobbes era necessário:

(...) opor os interesses dos homens às suas paixões e contrastar os efeitos favoráveis que se seguem quando os homens são guiados pelos seus interesses ao estado calamitoso das coisas que prevalece quando os homens soltam as rédeas das suas paixões.69

66 Banco de dados de alforrias do Rio de Janeiro, 1840-1871. O Professor Manolo Florentino ainda não disponibilizou essas informações, mas gentilmente me passou estes dados. 67 São somente oito alforrias de escravas no banco de dados que forneceram condições para o cálculo da média. Sendo sete do clero regular (Mosteiro de São Bento) e uma do clero secular. Portanto, devido à precariedade da amostra, os resultados ainda não são definitivos, esperamos concluí-lo num posterior trabalho de doutorado. 68 HIRSCHMAN, Albert. As paixões e os interesses. Argumentos políticos a favor do capitalismo antes de seu triunfo. Rio de Janeiro: Record, 2002. 69 Idem, p. 53.

Page 41: Escravos Da Religiao

162

Assim, formou-se a idéia de que as paixões aprisionavam os homens às tradições e

às atitudes “atrasadas” impedindo-os de alcançar a modernidade e o capitalismo.

Transferindo essas idéias para o nosso caso específico, pode-se dizer que grande parte do

clero não acompanhou a “evolução” dos interesses, sendo ainda “dominado” pelas paixões

quando o assunto era a liberdade do escravo.

A condenação da “usura” como pecado pela Igreja desde suas origens na

Antiguidade, também pode nos ajudar a entender a atitude dos religiosos frente ao preço

das alforrias. Bartolomé Clavero elaborou uma análise do “Tratado de Mutuo y Usura”,

escrito em meados do século XVII por um moralista desconhecido.

(a usura) constituye uma conducta completamente reprobable, condenada por todos los derechos, natural y positivo, divino y humano, canônico y civil. (...) Se comete usura si en un determinado contrato, el de mutuo, se produce lucro, si por causa de un préstamo se recibe algo más de lo entregado.70

Assim, podemos fazer uma analogia entre o empréstimo de dinheiro a juros, a

usura, e a venda da alforria com um valor acima do estabelecido no momento da compra do

escravo.

Logo, concomitantemente aos nascentes valores de uma sociedade de mercado no

Brasil do século XIX, podemos sugerir, por meio dos números acima citados, que a Igreja

presumivelmente ainda mantinha práticas antigas e medievais consideradas adequadas à

sua moral. Então, uma instituição ou um religioso católico estaria incorrendo em pecado se

exigisse de seu escravo, para a autocompra, um valor superior ao preço pago no momento

da aquisição.

Essa atitude do clero poderia derivar de uma antiga idéia segundo a qual a

escravidão tinha um tempo limite, isto é, transcorrido determinado tempo de “bons serviços

e bom comportamento” os escravos estariam redimidos de seus pecados e por isso

deveriam receber a liberdade. Conforme A. C. Saunders, para os portugueses dos séculos

70 CLAVERO, Bartolomé. Antidora: antropologia catolica de la economia moderna. Milano – Ginffrè Editore.

Page 42: Escravos Da Religiao

163

XV e XVI, devido à “experiência da época medieval, durante a qual os prisioneiros

mouros, usados como escravos pelos cristãos, foram resgatados e libertados, fora de tal

modo incrementada que não se concebia a condição escrava como algo de permanente”.71

Tal idéia, possivelmente, tenha influenciado o monsenhor Antônio Vieira Borges a alforriar

gratuitamente Joaquim Angola em março de 1853. O religioso fez questão de frisar na carta

o motivo da atitude: bons serviços do escravo “por mais de quarenta anos”.72

Enfim, neste capítulo explicamos a metodologia utilizada para classificar as cartas

de alforria em “gratuitas”, “pagas” e “condicionais”. Demos ênfase, no entanto, ao âmbito

da manumissão comprada pelo escravo, discorrendo sobre alguns caminhos que este

poderia percorrer para alcançar a almejada liberdade. A partir de variados exemplos vimos

cair por terra a teoria, já refutada pela historiografia contemporânea, do escravo-coisa.

Coartações, prestações e trocas mostram-se como exemplos de como os seres escravizados

criavam estratégias visando a liberdade. Isto caracteriza os cativos como agentes sociais

capazes de interagir e, até mesmo, modificar a sociedade na qual viviam.

Também neste primeiro capítulo estabelecemos o valor médio das alforrias cobrado

pelo clero, malgrado o ínfimo número de manumissões que permitiram a efetivação desse

cálculo. Vimos, a partir da comparação com o valor médio das alforrias em geral, que as

alforrias emitidas pelo clero custavam menos que as emitidas por senhores leigos. Dessa

forma, sugerimos que os religiosos preservaram uma antiga tradição, a de deixar o cativo

pagar por sua manumissão o preço de sua compra, não obstante à maximização de seu

valor.

Identificamos um provável “desejo” de manutenção das tradições e costumes que

nortearam a ideologia e atos da milenar instituição Católica, mesmo a despeito das

mudanças introduzidas pela modernidade e pelo desenvolvimento do capitalismo. Talvez,

isso pudesse representar para os religiosos a vontade de manter os costumes em uma

sociedade na qual os “interesses” sobrepunham-se cada vez mais rápido às “paixões”.

71 SAUNDERS, A. C. de C. M. História social dos escravos e libertos negros em Portugal (1441-1555). Lisboa: Imprensa Nacional, 1982, p. 188. 72 2º Ofício de Notas do Rio de Janeiro; livro 85, p. 304. – Arquivo Nacional.

Page 43: Escravos Da Religiao

164

Capítulo II: Padrões das alforrias eclesiásticas

Page 44: Escravos Da Religiao

165

O documento que deveria garantir a liberdade ao escravo mostra-se ao historiador

como uma fonte riquíssima – apesar das limitações inerentes a qualquer fonte –, capaz de

nos ajudar a melhor compreender a relação senhor/escravo/sociedade. Nesse contexto,

alguns autores da nossa historiografia já se utilizaram desse documento e de sua divisão em

categorias – “arranjos para liberdade” – para identificar o padrão de alforria de determinada

região.

Veremos então, neste capítulo, o padrão dos tipos de alforrias concedidas

especificamente por eclesiásticos. Logo após, iremos analisar os padrões de naturalidade e

de gênero dos “alforriandos eclesiásticos”, não deixando de comparar, sempre, com os

padrões já identificados para as alforrias de uma maneira geral.

O historiador Stuart Schwartz, centralizando sua pesquisa no estado da Bahia,

chegou a algumas conclusões acerca do padrão dos tipos de alforrias nessa região. Este

autor analisou as cartas registradas entre 1684 e 1745 e obteve os seguintes resultados:

47,7% dos escravos pagaram por sua alforria, enquanto 52,3% receberam-na

gratuitamente.73 Dentro desse conjunto, das “gratuitas”, quase 20% dos escravos tornaram-

se forros sob alguma espécie de condição.

De acordo com Schwartz, essa proporção entre emancipações “pagas” e “gratuitas”

não permaneceu invariável durante o período analisado. Desde a década de 1680 a 1720,

observou-se um aumento uniforme no número das alforrias “pagas”. Entre 1720 e 1730

73 SCHWARTZ, Stuart. Op. cit., 2001, p. 201.

Page 45: Escravos Da Religiao

166

houve uma relativa estabilidade e, finalmente, na década de 1740 as manumissões

compradas ultrapassaram a metade do número total.

Vejamos o gráfico:

Gráfico 2: Emancipações Pagas e Gratuitas:

0

10

20

30

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50

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70

80

1680 1690 1700 1710 1720 1730 1740

pagas gratuitas

Fonte: SCHWARTZ, Stuart B. Escravos, roceiros e rebeldes. Bauru: São Paulo: EDUSC, 2001, p.202.

Desde o final do século XVII, o preço do cativo começou a crescer em território

baiano. Esse fato pode ser explicado pela grande demanda de mão-de-obra escrava na

exploração aurífera em Minas Gerais. Como exemplo, na década de 1690, o valor de um

escravo, em boas condições, variava em torno de 40 a 60 mil réis. Já em 1723 chegou a

Page 46: Escravos Da Religiao

167

valer até 200 mil réis.74 Somente a partir da segunda metade do século XVIII, com a crise

da mineração, o preço do cativo entrou em declínio.

Portanto, no caso baiano, a concessão das alforrias “gratuitas” era inversamente

proporcional à alta dos preços dos cativos. Embora seja óbvio o predomínio constante desse

tipo de manumissão, pelo menos até o final da década de 1730, é bastante considerável o

crescente número de escravos que conseguiam comprar sua alforria, até chegar, a partir da

década de 1710, a um patamar de quase paridade entre essas duas categorias. Assim, à

medida que o valor do escravo crescia, tornava-se cada vez maior a quantidade de senhores

que exigiam pagamento em dinheiro para a assinatura do documento.

Esse padrão, o alto número de alforrias pagas, pode está relacionado ao alto índice

de africanos ocidentais, provenientes sobretudo da Costa da Mina, na Bahia. Para termos

uma idéia, nas primeiras décadas do século XVIII o comércio negreiro com a zona

ocidental da África representou cerca de 60% dos escravos que chegavam no Brasil.75 A

predominância dos Minas foi suplantada somente a partir da década de 1730.

Para o Rio de Janeiro, Florentino afirmou que “os menos representados dentre os

escravos nascidos na África – os Minas – eram, proporcionalmente, os mais privilegiados

quando se tratava de obter a liberdade”.76 Mais ainda, relacionando os tipos de alforria com

a etnia africana, os afro-ocidentais concentravam a maioria das cartas pagas. Essa

característica foi explicada por Florentino, como possível conseqüência da grande

participação desse grupo entre os escravos “ganhadores”, fato este decorrente de

experiências trazidas de além-mar, visto que havia na África Ocidental uma “cultura mais

urbanizada e mercantil”. Também concorria para esse padrão a forte identificação étnica

existente entre os Minas.77

Logo, podemos dizer que o mesmo ocorria na região baiana, onde os Minas

perfaziam a grande maioria do contingente africano. Entre os anos de 1808 e 1884, os afro-

ocidentais perfaziam nada menos que 87% dos africanos forros!78 Podemos supor que o

alto número de alforrias pagas na Bahia seja também resultado direto da manutenção, a

74 SCHWARTZ, Stuart. Segredos internos. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 167. 75 RIBEIRO, Alexandre Vieira. O tráfico atlântico de escravos e a praça mercantil de Salvador (c.1678 – c. 1830). Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: UFRJ / PPGHIS, 2005, p. 19. 76 FLORENTINO, Manolo. Op. cit., 2002, p. 28. 77 Idem, p. 30. 78 Ibidem.

Page 47: Escravos Da Religiao

168

despeito do cativeiro, de experiências e tradições africanas mantidas por esse grupo étnico

da África Ocidental.

Schwartz não utilizou a divisão anteriormente descrita, inserindo as manumissões

obtidas “mediante serviço” na categoria das cartas consideradas “gratuitas”. Essa

metodologia, de unir dois tipos diferentes numa mesma variável, pode acarretar uma certa

simplificação na análise, além de ocultar certas nuances. O autor baseou-se apenas na

transação envolvendo dinheiro para dividir suas variáveis, não levando em consideração o

tempo de serviço que o escravo teria de pagar para cumprir a condição acordada, além de se

ver obrigado a conviver com a incerteza de chegar ao fim da vida sem conquistar a alforria

completa. Por exemplo, caso o escravo tivesse de cumprir a condição “servir durante a vida

do senhor”, e morresse antes deste, em verdade, o tal cativo não teria chegado a ser

totalmente forro.

As negociações envolvendo manumissões “gratuitas” ou mediante a prestação de

serviços eram bastante díspares. Para cada tipo de acordo com o senhor, antes e durante

todo o processo, os escravos utilizavam diferentes estratégias. Ao final, ao menos em

teoria, o “alforriando gratuito” saía completamente do âmbito do senhor, enquanto o

“condicional” continuaria no mesmo ambiente e vivendo, na maioria dos casos, em

condições semelhantes às anteriores à assinatura da carta.

Para identificar o padrão de alforria carioca, Mary Karasch analisou as cartas

registradas no primeiro° ofício de notas entre os anos de 1807 a 1831 e concluiu que “no

Rio do século XIX, a liberdade raramente era gratuita”.79 Logo, Karasch afirmou ter

encontrado o padrão característico de todo o século XIX analisando apenas um ofício de

notas, num período circunscrito a apenas 24 anos do Oitocentos... Enfim, a autora

classificou as alforrias em cinco tipos principais: leito de morte (testamentos), condicional,

incondicional, comprada e ratificada. Desse conjunto, as alforrias compradas somavam

39%.

No período de 1789 a 1831, Florentino – utilizando a classificação das manumissões

em “pagas”, “gratuitas” e mediante “serviços” – mostrou, a partir de outros autores, que a

maior parte dos escravos obteve seu documento de liberdade, através do pagamento em

79 KARASCH, Mary. Op. cit., 2000, p. 440.

Page 48: Escravos Da Religiao

169

dinheiro. Já a alforria gratuita era a segunda forma mais corriqueira de emancipação,

seguida, por fim, pela alforria mediante a prestação de serviços.80 Observemos o gráfico:

Gráfico 3: Distribuição (%) dos tipos de cartas de alforrias, Rio de Janeiro (1789-1864):

0

10

20

30

40

50

60

70

1789-94 1807-31 1840-44 1845-49 1850-54 1855-59 1860-64

%

servir pagas gratuitas

Fonte: Apud FLORENTINO, Manolo. Op. cit., 2002, p. 19.

É fato inquestionável que o preço dos escravos aumentava em ritmo acelerado desde

o século XVIII. Todavia, essa tendência ainda não havia influenciado de maneira direta nas

80 FLORENTINO, Manolo. Op. cit., 2002, p. 19.

Page 49: Escravos Da Religiao

170

formas de obtenção da alforria dos escravos que viviam na região fluminense. Somente por

volta do ano de 1840 até o ano de 1869, uma super valorização do escravo remodelou o

padrão que há muito perdurava: as alforrias gratuitas sobrepuseram-se às pagas. Esta

mudança concorreu “para redefinir parte das expectativas, das opções e das atitudes dos

escravos frente à liberdade”.81 Dessa maneira, segundo Florentino, essa nova situação

exigia, por parte dos cativos, estratégias com maior grau de politização em busca da

almejada manumissão.

Temos então, no Rio de Janeiro, uma situação semelhante à verificada na Bahia,

apesar dos diferentes recortes temporais. No caso baiano, a carta “gratuita” foi a

predominante, pelo menos, desde o final do século XVII até a década de 1740, quando foi

substituída pelas manumissões “pagas”. Do mesmo modo, na região fluminense, estas eram

maioria, sendo superadas pelas “gratuitas” apenas na década de 1840.

1– Tipos de alforrias

Nesta parte do capítulo, analisaremos os padrões dos tipos de manumissões emitidas

pelos religiosos regulares e seculares. Discutiremos as categorias de alforrias mais

utilizadas pelos “homens da religião”, utilizando a divisão descrita no capítulo anterior:

pagas, gratuitas e condicionais. Sem delongas, observemos os seguintes gráficos:

Gráfico 4: Porcentagem de alforriando por tipo de alforria no Rio de Janeiro - 1840-1871:

Clero Regular e Secular

81 Idem, p. 18.

Page 50: Escravos Da Religiao

171

45%

33%

22%

Grátis Paga Condicional

Gráfico 4.1: Porcentagem de alforriando por tipo de alforria no Rio de Janeiro - 1840-

1871:

Regular Secular

38%

50%

12%

Grátis Paga Condicional

21%

27%

52%

Gratuita Paga Condicional

Gráfico 4.2: Porcentagem de alforriando por tipo de alforria:

CLERO REGULAR

Page 51: Escravos Da Religiao

172

1840-1850

24%

45%

31%

Grátis Paga Condicional

1851-1871

40%

53%

7%

Gratuita Paga Condicional

Gráfico 4.3: Porcentagem de alforriando por tipo de alforria:

CLERO SECULAR

1840-1850

54%

17%

29%

Grátis Paga Condicional

1851-1871

50%

23%

27%

Grátis Paga Condicional

Fonte dos gráficos 4, 4.1, 4.2 e 4.3: anexos 1 e 1.1. Livros de registros de notas do primeiro, segundo e terceiro ofícios do Rio de Janeiro – 1840-1871, Arquivo Nacional.

Page 52: Escravos Da Religiao

173

A partir da análise do gráfico 4, vemos que o padrão eclesiástico seguiu a tendência

geral descrita no gráfico anterior, ou seja, entre os anos de 1840 a 1864, aproximadamente,

verifica-se o predomínio das alforrias “gratuitas”, seguidas pelas “pagas” e sendo, por fim,

a alforria sob a condição de prestação de serviços a menos utilizada pelos senhores. Logo,

concluímos que as “alforrias eclesiásticas” seguiram o mesmo padrão das “alforrias leigas”.

No entanto, analisando o clero separadamente, percebemos uma nítida diferença entre eles.

Para o período delimitado, o clero secular, alforriou gratuitamente um pouco mais

da metade de seus escravos libertos, seguindo, portanto, a tendência laica. Entretanto, entre

os regulares, vemos uma situação inversa, sendo as emancipações “pagas” superiores às

“gratuitas”.

O gráfico 4.2, no qual dividimos o recorte temporal entre antes e pós-fim do tráfico

transatlântico, mostra que o padrão não se alterou com relação às manumissões pagas para

o clero regular: foram, em ambos os períodos, as mais emitidas. Mesmo após a proibição do

tráfico internacional, momento em que o preço do cativo aumentou substancialmente, a

maioria dos alforriandos dos religiosos regulares pagou por sua liberdade. Esperávamos,

dessa forma, observar para este período um declínio das manumissões pagas, todavia, deu-

se o oposto: houve um ligeiro crescimento percentual desse tipo de alforria em relação ao

recorte temporal anterior. Mesmo assim, podemos dizer que a super valorização dos

escravos influenciou de certa forma as manumissões concedidas por eclesiásticos. As

“gratuitas” foram minoria até o fim da década de 1850, depois apresentaram um

crescimento bastante significativo, de 24% a 40%. Porém, o elevado preço do cativo não

foi suficiente para essa categoria tornar-se superior às “pagas”.

Já o gráfico 4.3 evidencia que para o clero secular o fim do tráfico não influenciou

de maneira direta os padrões de alforrias: não houve alteração na ordem dos tipos em

questão. Os valores das porcentagens variaram muito pouco, apresentando mudanças que

podemos considerar insignificantes. Apenas as manumissões pagas aumentaram 6% nos

anos pós-tráfico internacional.

Os regulares e seculares não se diferenciavam apenas na prática religiosa, pois,

apesar de pertencerem a uma única religião e instituição, possuíam diferentes visões de

mundo e de inserção no mesmo, além de diferentes situações econômicas. Logo, sendo

díspares as condições de vida dos senhores, conseqüentemente, o modo de vida de seus

Page 53: Escravos Da Religiao

174

respectivos escravos também o seria. O padrão acima talvez possa ser explicado por meio

das desiguais condições de vida dos escravos dos distintos cleros, isto é, possuíam

diferentes tipos de moradia, de relacionamento com outros cativos, de grau de parentesco,

de acumulação de pecúlio e de funções exercidas.

As diversas ordens representantes do clero regular no Rio de Janeiro eram

proprietárias tanto de imóveis urbanos quanto rurais. Possuíam engenhos, fazendas de gado,

olarias, estaleiros, armazéns e propriedades. O patrimônio fundiário e imobiliário das

ordens fora acumulado por meio de doações de famílias nobres, da Coroa e por compra.82

Concernente à área urbana, podemos dizer que urbanização do município carioca deve

muito a essas instituições, na medida em que foram participantes ativos deste processo.

Segundo Fania Fridman, ocorreu uma certa “coincidência” geográfica entre as propriedades

santas e os caminhos de crescimento da cidade. A autora ainda nos diz que:

Os beneditinos envolveram-se com grande número de edificações, febre de construções que também observamos na prática econômica dos carmelitas e da Irmandade da Misericórdia. Os carmelitas possuíam, em 1797, uma centena de propriedades no espaço que hoje compreende o município do Rio de Janeiro, incluindo chãos foreiros, dois engenhos e sete fazendas. Na área central, entre 1718 e 1858, seu patrimônio era composto por casas, sobrados e terrenos às ruas do Rosário, Alfândega, Direita, Sabão, Bragança, Hospício, Estreita de São Joaquim, Carmo e Nova do Ouvidor.83

Podemos ratificar a intensa atividade econômica das ordens, na medida em que as

mesmas possuíam propriedades em lugares privilegiados, como por exemplo, próximas a

fontes de água potável, de terra fértil ou do mar. 84 Especificamente sobre as propriedades

beneditinas, a proximidade do mar facilitava o abastecimento e o escoamento de sua

produção.

82 Idem, p. 57. 83 FRIDMAN, Fania. Donos do Rio em nome do rei: uma história fundiária da cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, Ed. Garamond, 1999, p. 43. 84 Idem, p. 60.

Page 54: Escravos Da Religiao

175

A título de exemplo, entre os anos de 1751 a 1850, na área central do município, a

Ordem de São Bento acumulou, aproximadamente, duzentas casas de aluguel, mais de vinte

terrenos foreiros e dois prédios, além de sete lojas.85 Segundo D. Ramalho Rocha, durante

os séculos XVII e XVIII os rendimentos do Mosteiro de São Bento provinham

principalmente de suas fazendas de gado e de seus engenhos, mas a partir do final do

Setecentos os ganhos acrescidos com os aluguéis urbanos chegaram a superar os da

fazenda. Conforme Fridman, pode-se considerar “as ordens religiosas e confrarias como

agentes modeladores do espaço urbano no período colonial com funções de agentes

imobiliários”.86

É óbvio que as ordens possuíam “escravos urbanos” pois que trabalhavam nos

serviços internos do mosteiro, da igreja, nas construções de imóveis na cidade e, até mesmo

eram emprestados ao governo.87 Mas não se pode comparar a quantidade numérica desses

escravos com os que viviam em meio rural. No caso da nossa amostra documental, dos 160

registros de liberdade emitidos pelos regulares, em apenas 63 há informações sobre a

residência dos escravos. Dentre estas cartas, 71% pertenciam a escravos que viviam no

meio rural. Portanto, apesar da pequena amostra, podemos dizer, que a maioria dos

alforriandos do clero regular eram “escravos rurais”.

Afora todo o investimento no setor imobiliário, as ordens religiosas possuíam

inúmeras fazendas de gado e engenhos no Rio de Janeiro. Estas propriedades rurais eram

essenciais à sobrevivência e a manutenção de muitas ordens, mosteiros e conventos. Esses

latifúndios arregimentavam uma extensa mão-de-obra que, por conseguinte, tornou o clero

regular proprietário de um vasto número de escravos (estima-se que em 1834, o Mosteiro

de São Bento possuía 1.497 e em 1871, 4000 escravos).88

Muitos destes escravos do clero regular não viviam em senzalas comunais;

possuíam pequenos lotes de terras nos quais habitavam e retiravam sua subsistência e a de

sua família.89 Stuart Schwartz constatou, através da análise da política de tratamento à mão-

85 Idem, p. 71. 86 Idem, p. 49. 87 Idem, p. 61. 88 LUNA, D. Joaquim Grangeiro de, OSB. Os monges beneditinos no Brasil. Apud PIRATININGA JUNIOR, Luis Gonzaga. Dietários dos escravos de São Bento: originários de São Caetano e São Bernardo. São Paulo: HUCITEC; São Caetano do Sul, São Paulo: Prefeitura, 1991, p. 31 e FRIDMNAN, Fania. Op. cit., p. 62. 89 ROCHA, Mateus Ramalho. O Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro. 1590/1990. Rio de Janeiro: Studio HMF, 1991, p. 88.

Page 55: Escravos Da Religiao

176

de-obra cativa dispensada pela Ordem de São Bento, a existência de determinadas margens

de autonomia dos escravos, concretizadas no sistema de roças autônomas e no direito de

exercer pequeno comércio dos bens produzidos.90 Atualmente, a questão da chamada

“brecha camponesa” é assunto encerrado na historiografia brasileira. No entanto, esse

termo, elaborado por pesquisadores caribenhos, gerou, a princípio, certa polêmica entre os

historiadores brasileiros. Portanto, cabe aqui, tecer-lhe breve comentário.

Alguns autores, como Jacob Gorender, entendem a “brecha camponesa” como

simplesmente uma “fenda em alguma coisa”, neste caso, no modo de produção escravista.91

Assim, sua definição reduz-se a uma simples produção de alimentos pelos escravos para

seu uso próprio ou para venda. Assim sendo, os resultados obtidos com a tal fenda ou

abertura, não causaram qualquer impacto sobre estrutura e a dinâmica do sistema

escravista. E, ainda conforme Gorender, o escravo permaneceu submetido aos interesses

mercantis do seu senhor.

Já o historiador Ciro Flamarion Cardoso compreendeu a “brecha camponesa” para

além da questão exclusivamente econômica. Além de proporcionar uma possível melhoria

na economia cativa, abria ao escravo um maior espaço psicológico, a partir do momento em

que ampliava sua autonomia.92 Dessa forma, tal fenômeno não deveria ser mais

denominado “brecha” nem, a rigor, “camponesa”, mas sim, uma “economia interna dos

escravos”, um termo que abrange todas as atividades desenvolvidas pelos cativos para

aumentarem seus recursos.

Segundo Robert Slenes, o historiador não deve aprisionar o pensamento na metáfora

“brecha camponesa”, pois dessa forma a discussão cingir-se-ia à “existência da fenda ou do

tamanho dela, que apenas poderia variar entre pequeno ou minúsculo”.93 Assim, para

Slenes:

90 SCHWARTZ, Stuart. “The Plantations os Saint Benedict: the benedictine sugar mills of colonial Brazil”. The Americas, Washington, 39, 1982, pp. 1-22. Apud: MACHADO, Maria Helena. “Em torno da autonomia escrava: uma nova direção para a história social da escravidão”. In: Revista Brasileira de História. São Paulo, AMPUH / Marco Zero, v. 8, nº 16, março de1988 / agosto de 1988; p. 150. 91 GORENDER, Jacob. Op.cit., 1984. 92 CARDOSO, Ciro Flamarion. Escravo ou camponês? O proto-campesinato negro nas Américas. São Paulo: Brasiliense, 1987. 93 SLENES, Robert W. Op. cit., 1999, p. 198.

Page 56: Escravos Da Religiao

177

Compreender o sistema escravista como totalmente inabalado, com brecha imperceptível ou ausente, nada mais é do que a visão de quadrado fechado das senzalas, e não a construção real ‘remodelada’ pelo escravo e crivada de ‘buracos’ por onde se fugia a toda hora, mas aquele quadrado-prisão perfeito do imaginário do fazendeiro.94 Como Cardoso, Slenes entende que essa “contenda” entre senhores e escravos, e

não a economia interna escrava em si, destaca-se como o elemento determinante no sistema

escravista.

Conforme o antropólogo Sidney Mintz, os escravos elaboraram certos padrões de

comportamento adaptativos que, pode-se dizer, “contribuíram, de um lado, para a operação

efetiva do sistema, e, de outro, para seu progressivo enfraquecimento”.95 Assim, o

fenômeno da “economia interna dos escravos” caracterizou um processo de via dupla: por

um lado contribuiu para uma identidade escrava autônoma, e por outro, beneficiou os

senhores, tanto economicamente quanto ideologicamente – servindo como controle social.

Porém, a “brecha” foi mais do que simples terra para o escravo e benefício econômico para

o senhor. Ela ensejou a formação de verdadeiras comunidades mestiças, do ponto de vista

jurídico, onde cativos e ex-cativos viviam e trabalhavam em conjunto. E retornando a

Slenes, ela ainda “criava condições para re(criar) uma cultura e uma identidade própria que

tornavam a família e a roça mais do que um engodo ideológico”.96

Concluindo, conforme Mintz, muitos pessoas, mesmo enquanto bens de outras,

possuíam propriedades, onde produziam para subsistência, para venda ou troca, usufruindo

com autonomia os ganhos daí provenientes, criando dessa forma, uma certa distância entre

seu status social de escravos e suas práticas.97

Enfim, este era o modo de vida da maioria dos escravos do clero regular: além de

trabalharem para seus senhores, usufruíam terras98 que lhes proporcionavam subsistência e

a formação de pecúlio, proveniente da comercialização dos “excedentes”. Como ilustração,

vejamos alguns exemplos: Sofia Crioula, escrava da fazenda de Campos de propriedade do

Mosteiro de São Bento. Ela amealhou 600$000 réis e, em março de 1848, pôde pagar sua 94 Idem, p.199. 95 MINTZ, Sidney W. The origins of the jamaican market system. Apud: SLENES, Robert. Op. cit., 1999, p. 198. 96 SLENES, Robert. Op. cit., 1999, p. 200. 97 MINTZ, Sidney W. Op. cit., Apud: MACHADO, Maria Helena P. T. Op. cit., 1988; p. 154. 98 ROCHA, Mateus Ramalho. Op. cit., 1991, p. 88.

Page 57: Escravos Da Religiao

178

carta de alforria mais a de seu filho José, ainda “cria de peito”.99 Também Antônio, escravo

da fazenda Iriri pertencente aos carmelitas, formou um pecúlio de 300$000 réis e teve sua

manumissão registrada em 31 de março de 1864.100 No início da década de 1860, as cativas

Carolina, 32 anos e Domingas, 22 anos, ambas pardas, “trabalhadoras da fazenda” de

Vargem Pequena, dos beneditinos, tornaram-se forras, pois, conseguiram juntar 400$000

réis e 600$000 réis respectivamente.101 Portanto, suponhamos que o acesso a uma pequena

porção de terra favorecia o acúmulo de pecúlio por parte dos cativos.

Além dessa forma de obtenção de dinheiro, muitos escravos das fazendas possuíam

alguma especialização profissional. O Mosteiro de São Bento, por exemplo, formava desde

jovens seus cativos em vários ofícios e artes, como carpinteiros, oleiros, ferreiros, alfaiates,

pedreiros, marceneiros, fiadeiras, cozinheiras etc. 102 Especializados, além de trabalharem

nas diversas propriedades beneditinas, os escravos poderiam ser locados pelos próprios

senhores ou realizar trabalhos, ocasionalmente, para além da fazenda. Isso, além de ser uma

óbvia medida de economia para o Mosteiro, significava elevação de status para o próprio

cativo, que possuía uma certa mobilidade espacial, proporcionando-lhes melhores

oportunidades de formação de pecúlio.

Como exemplo, voltemos às fontes. No universo dos 370 registros de alforrias, a

ocupação do escravo foi documentada em apenas em 17, sendo 13 de cativos do clero

regular e 4 do secular. Dos 13 primeiros, 6 pagaram por sua alforria, 3 tornaram-se forros

com o pagamento de terceiros, 2 receberam gratuitamente e 2 cumpriram uma condição não

explícita na carta. Dessa forma, apesar de ínfima amostra, podemos observar que,

aparentemente, os escravos especializados em alguma profissão tinham melhores

oportunidades de conseguir a manumissão mediante o pagamento em dinheiro.103

De acordo com Manuela Carneiro da Cunha, era grande a dificuldade de um escravo

do eito reunir economias.104 Também, segundo Thomas Merrick e Douglas Graham “os

escravos jovens que trabalhavam no campo eram os menos beneficiados com a alforria,

99 2º Ofício de Notas; livro 79; p. 177 - Arquivo Nacional (RJ). 100 2º Ofício de Notas; livro 100; p. 46v. - Arquivo Nacional (RJ). 101 1º Ofício de Notas; livro 61; p. 89 / 2º Ofício de Notas; livro 99; p. 79v. - Arquivo Nacional (RJ). 102 ROCHA, Mateus Ramalho. Op. cit. 103 As ocupações que aparecem nos registros são: alfaiate, oficiais de barbeiro, pedreiro, carpinteiro e marceneiro, mestres de pedreiro e sapateiro, enfermeira e “trabalhador da fazenda”. 104 CUNHA, Manuela Carneiro da. Negros estrangeiros. Os escravos libertos e sua volta à África. São Paulo: Brasiliense: 1995.

Page 58: Escravos Da Religiao

179

gratuita ou comprada”. 105 Contudo, não foi essa a realidade encontrada na análise dos tipos

de alforrias dos cativos pertencentes aos regulares... Dessa forma, acreditamos ser essa

“maior facilidade” para acumulação de pecúlio a razão pela qual a metade da escravaria

liberta do clero regular, no recorte temporal delimitado, ter adquirido sua emancipação com

o pagamento em dinheiro, mesmo em períodos de super valorização de seus preços. Padrão

contrário caracterizou as alforrias assinadas pelo clero secular, no qual a manumissão

gratuita foi o principal meio de libertação dos escravos pertencentes a este clero. Logo,

podemos afirmar que o acúmulo de dinheiro, por parte dos cativos, estava diretamente

ligado ao acesso a terra e, também, à especialização profissional.

Afora a acumulação de pecúlio, acreditamos que situação política e financeira das

ordens nesse período contribuíram para o predomínio das alforrias “pagas” entre os

alforriados pelos regulares. O Aviso de 19 de maio de 1855, promulgado pelo ministro da

justiça Nabuco de Araújo, proibiu a entrada de noviços em quaisquer ordens religiosas.

Com isso, a Coroa pretendia reverter ao poder monárquico os bens dessas ordens. A

conseqüência direta desse Aviso, claro, foi o despovoamento de mosteiros e conventos. O

Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro, por exemplo, em 1868 possuía apenas quinze

religiosos106 e à época da Proclamação da República, só possuía um monge, o Abade

Ramos. Além disso, as ordens passavam por momentos de crises internas que tornara a

vida regular bastante desarticulada.107

Nesse sentido, podemos supor que esta crise favorecia o descontrole das instituições

com relação às suas fazendas e a seu enorme contingente de escravos. Essa situação pode

ter acarretado uma maior autonomia, proporcionando aos escravos do meio rural das ordens

regulares uma maior mobilidade espacial que, por conseguinte, facilitava e acelerava o

processo de acumulação do esperado pecúlio. Este, além de pagar a alforria do escravo,

poderia servir como ajuda financeira à instituição em crise. Contudo, essa crise institucional

não descaracteriza as ações e estratégias forjadas pelos cativos em busca de sua liberdade.

São diversos fatores que, de alguma forma, convergiram para a determinação de certos

padrões.

105 MERRICK, Thomas W e GRAHAM, Douglas H. Op. cit. 1979, pp. 78 e 79. 106 FRIDMAN, Fania. Op. cit., 1999, p. 71. 107 GOMES, Francisco José Silva. Quatro séculos de cristandade no Brasil. Comunicação apresentada em junho de 2001 em Recife, no Seminário Internacional de História das Religiões, promovido pela ABHR.

Page 59: Escravos Da Religiao

180

Uma certa autonomia econômica – que facilitava a compra da alforria até mesmo

em períodos de alta nos preços – bem como a formação profissional – deixando

transparecer uma possível valorização do trabalho por parte do clero regular, que

possibilitava ao escravo melhores condições de vida após a alforria – são exemplos que

talvez resultem de práticas permeadas por valores morais ostentados pelo clero. Não seria

absurdo supor, então, que por traz dessas “permissões e incentivos” dos regulares houvesse

uma vontade de contribuir à salvação daqueles seres, descendentes de Cam, amaldiçoados

por Noé... Conjeturamos que o clero regular proporcionava ao escravo a possibilidade de se

tornar um agente social mais ativo.

Bem diverso era o modo de vida dos escravos do clero secular. Das 210 alforrias por

ele emitidas, encontramos apenas quarenta e duas referências às residências dos cativos.

Dessa amostra, somente doze escravos moravam em fazendas. Sendo que destes, nove

pertenciam a um mesmo padre, João Coelho, que alforriou, entre os anos de 1845 e 1848,

nove escravos residentes em sua fazenda localizada em Tribobó.108

Logo, podemos sugerir que os escravos dos seculares viviam, essencialmente, no

meio urbano e realizavam, sobretudo, serviços domésticos nas paróquias e residências

particulares dos padres. Essa condição, supomos, dificultava a constituição de pecúlio. No

que se refere à maioria de alforrias gratuitas emitidas pelo clero secular, a proximidade

entre senhores e escravos pode ajudar-nos na compreensão.

Poucos padres tinham patrimônio expressivo e isso é causa direta dos pouquíssimos

inventários post-mortem de eclesiásticos existentes no Arquivo Nacional, ao menos no

período compreendido por esta pesquisa. Não obstante, encontramos um caso bem peculiar.

Antônio Joaquim de Souza, presbítero secular da irmandade de São Pedro, possuía uma

grande propriedade rural na Freguesia de Irajá. Em seu inventário, aberto em 1848, foram

avaliados 63 escravos e o monte líquido de seus bens somou 27:342$690.109

Enfim, afora exceções como a do presbítero Antônio Joaquim de Souza, a maioria

dos padres seculares vivia em suas paróquias com poucos escravos. A manumissão de um

escravo do clero secular poderia depender de sua relação com o senhor, requerendo daquele

108 2º Ofício de Notas; livro 76; p. 89 / livro 79; pp. 19, 16v e 138 - Arquivo Nacional (RJ). 109 Inventário de Antônio Joaquim de Souza - 3ª Vara civil / Juízo de Órfãos – caixa: 3614; nº: 2; ano: 1848 / 1852 – Arquivo Nacional (RJ).

Page 60: Escravos Da Religiao

181

uma certa “politização” em busca de sua liberdade. Ou seja, sendo em número reduzido

(comparado à escravaria do clero regular) e desenvolvendo atividades em constante contato

com seus senhores, é razoável supor que esses escravos tinham melhores oportunidades de

tecer negociações de caráter pessoal, balizadas por favores e recompensas recíprocas.

Malgrado não descartamos a possibilidade da existência de redes de solidariedade mesmo

em plantéis com reduzido número de escravos.

Diferentemente, os escravos dos regulares dependiam muito mais de suas redes de

auxílio mútuo, de solidariedade entre os companheiros de cativeiro para obter sua carta.

Como vimos, o clero regular da cidade Rio de Janeiro era proprietário de verdadeiros

latifúndios, o que pressupunha uma grande quantidade de trabalhadores submetidos a uma

ordem religiosa, e não a um senhor em particular. Esse contexto, portanto, desfavorecia a

formação de relações mais próximas entre os senhores e os escravos.

Todavia, essa característica também exigia do cativo uma negociação, que se

realizava não exclusivamente no âmbito pessoal, como visto no secular, mas sim em nível

institucional, até porque o monge responsável pela fazenda não poderia alforriar sem a

devida autorização do conselho superior da ordem. Por exemplo, o escravo poderia inserir-

se em redes de solidariedade ou familiares onde, talvez, veria encurtado seu caminho à

emancipação. Mas, esse assunto será trabalhado com maior desvelo no próximo capítulo.

Também, não devemos esquecer que não obstante as alforrias pagas terem predominado,

muitos cativos (gráfico 4.1 – 38%) recorreram à negociação política para obter sua

liberdade sem ônus monetário.

Analisadas as variáveis pagas e gratuitas, vejamos agora as alforrias condicionais. O

gráfico 4, apresenta a seguinte constatação: a carta que condicionava o escravo a prestar

algum tipo de serviço foi a menos utilizada pelo clero, seguindo portanto o padrão já

identificado às alforrias gerais. Porém, desagregando o clero, observamos as diferenças

entre eles: a carta condicional foi em ambos os recortes temporais a segunda opção mais

utilizada entre os seculares. Já no caso do clero regular, que durante a vigência do tráfico as

alforrias condicionais ficavam “atrás” das “pagas” com uma diferença percentual não muito

grande, aparecem no período posterior perfazendo apenas 7% das cartas de alforria.

Talvez esses números sejam reflexos, também, da maior ou menor proximidade entre

senhores e escravos. Era comum um escravo receber a alforria sob a condição de servir por

Page 61: Escravos Da Religiao

182

longos anos e, mesmo até a morte do senhor. Não raro, este se comprometia a cuidar do

escravo, dando-lhe alimentação, vestuário, medicamentos e, inclusive, educação. Assim,

temos de convir que essa prática seria bem mais razoável de ser aplicada pelos seculares,

segundo os motivos já vistos acima. Entre o clero regular, que tinha sob sua administração

um número muito maior de escravos, verdadeiras comunidades em suas fazendas, natural

supormos que esse tipo de acordo seria menos corriqueiro.

Olhando friamente para esses exemplos de acordo que norteavam as manumissões

condicionais poderíamos pensar numa condição, onde fosse possível que, mesmo forro, o

(ex) escravo continuasse sob a égide do seu senhor, vivendo como o “bom Pancrácio” da

crônica Machadiana... Mas, deixemos as alforrias condicionais para o final desta

dissertação.

2 – Africanos e crioulos entre os escravos do clero

Tem-se fundamentado, na historiografia da escravidão brasileira, a superioridade

dos crioulos na população forra. Isto devido a uma maior proximidade entre senhores e

escravos, conseqüência direta do alto grau de aculturação referente aos escravos nascidos

no Brasil. Vejamos então alguns autores que discorreram sobre o padrão de naturalidade

das alforrias em diferentes regiões do país.

Por meio da análise de testamentos da região de Minas Gerais Oitocentista, Eduardo

França Paiva reiterou o padrão mencionado. Dos 357 testamentos analisados, o autor

utilizou 151, que faziam referências a alforrias gratuitas ou condicionais, para verificar o

padrão de naturalidade entre os libertos mineiros.110 Na amostra total, 343 cativos

receberam suas alforrias através de testamento. Dentro desse universo, a maioria dos

libertos havia nascido no Brasil, mais precisamente, 74%.111

110 PAIVA, Eduardo França. Op. cit., 1995, p. 94. 111 Conforme Paiva, em 24 casos (7%) os testamentos não registraram a origem do escravo.

Page 62: Escravos Da Religiao

183

A despeito da utilização de diferentes fontes e de uma amostra documental bastante

superior (1.160 cartas de alforria), Schwartz verificou na Bahia, no período de 1684 a 1745,

tendência à região mineira: 69% dos forros eram crioulos enquanto 31% eram africanos.112

Retornando as atenções para o Rio de Janeiro das primeiras décadas do século XIX,

novamente, vemos os crioulos como os mais alforriados. Da amostra analisada por Karasch

(1808-1831), 56% dos libertos havia nascido no Brasil, enquanto 38% na África,

atravessado o Atlântico em tumbeiros.113

Todavia, esse padrão da região fluminense não se mostra estável ao longo do século

XIX. Contrariando as expectativas, as décadas de 40 e 50 assistiram a inversão da

característica predominante: a quantidade de africanos alforriados foi superior a de

crioulos.114 Naquelas décadas Oitocentista, os africanos superavam os crioulos numa

proporção variável entre dois e três para cada escravo nascido no Brasil. Além da

predominância no número de manumissões, os africanos dominavam também o universo

das alforrias pagas em dinheiro. Portanto, conforme Florentino, a hegemonia africana neste

período foi resultado de dois fatores concomitantes: “a evidente capacidade dos africanos

para constituir pecúlio e comprar a liberdade, e outro fator de ordem demográfica, o

expressivo peso dos africanos na população escrava do Rio”.115 Somente na década de 1860

– dez anos após a definitiva proibição do tráfico Atlântico – os crioulos voltariam a ser

hegemônicos na “emancipação pela via conservadora”.

Vistos os padrões de naturalidade em algumas regiões, vejamos agora sua

distribuição entre os escravos dos eclesiásticos do Rio de Janeiro:

Tabela 1: Distribuição de alforriandos por naturalidade (1840-1871):

CLERO

AFRICANOS CRIOULOS TOTAL 2

112 SCHWARTZ, Stuart. Op. cit., 2001, p. 186. 113 KARASCH, Mary. Op. cit., 2000, p. 458. 114 FLORENTINO, Manolo. Op. cit., 2002, p. 22. 115 Idem, p. 26.

Page 63: Escravos Da Religiao

184

# % # % # %

REGULAR 30 29 75 71 105 100

SECULAR 103 57 78 43 181 100

TOTAL 1 133 47 153 53 286* 100

Fonte: Livros de registros de notas do primeiro, segundo e terceiro ofícios do Rio de Janeiro – 1840/1850, Arquivo Nacional (RJ). * Em 84 cartas a naturalidade não foi mencionada ou o documento não permite uma classificação. Tabela 1.1: Distribuição de alforriandos por naturalidade (1840-1850):

AFRICANOS CRIOULOS TOTAL 2

CLERO

# % # % # %

REGULAR 13 38 21 62 34 100

SECULAR 46 63 27 37 73 100

TOTAL 1 59 55 48 45 107 100

Fonte: Livros de registros de notas do primeiro, segundo e terceiro ofícios do Rio de Janeiro – 1840/1850, Arquivo Nacional (RJ). Tabela 1.2: Distribuição dos alforriandos por naturalidade (1851-1871):

CLERO

AFRICANOS CRIOULOS TOTAL 2

Page 64: Escravos Da Religiao

185

# % # % # %

REGULAR 17 25 51 75 68 100

SECULAR 59 53 53 47 112 100

TOTAL 1 76 42 104 58 180 100

Fonte: Livros de registros de notas do primeiro, segundo e terceiro ofícios do Rio de Janeiro – 1851/1871, Arquivo Nacional (RJ).

As tabelas evidenciam algumas questões interessantes acerca da origem dos

“escravos da religião”. A primeira apresenta que, de um modo geral, o clero seguiu a

tendência já observada para a naturalidade: a predominância dos crioulos entre os

alforriados. Todavia, esse padrão, como visto acima a partir do trabalho de Florentino, não

foi constante durante todo o século XIX no Rio de Janeiro. Ocorreu nas décadas de 1840 e

1850 uma inversão na qual vê-se os africanos como os maiores beneficiados quando a

questão era a carta de alforria. Então, analisando a tabela 1, concluímos que o clero não

seguiu o padrão da região fluminense. Porém ao dividirmos nosso recorte temporal em pré

e pós-fim do tráfico internacional (tabelas 1.1 e 1.2), vemos exatamente o oposto. A tabela

1.1 evidencia que entre os anos de 1840 e 1850 os africanos foram os mais alforriados,

logo, seguindo a mesma tendência encontrada por Florentino. Desta feita, entre os

mancípios de clérigos, somente depois da Lei Euzébio de Queiroz, os escravos nascidos em

terra brasileira voltaram a ser predominantes (tabela 1.2).

Mas, passemos neste momento, à análise “dos cleros” separadamente. Os dados

numéricos evidenciam uma grande diferença entre seculares e regulares no que concerne à

naturalidade de seus alforriandos. Durante todo o recorte temporal desta pesquisa os

africanos foram maioria entre os alforriandos dos seculares, enquanto com os regulares

deu-se o padrão inverso: os crioulos foram sempre majoritários. Supomos que esses

padrões refletiram as diferenças inerentes ao próprio clero.

Page 65: Escravos Da Religiao

186

No momento, não temos como afirmar a procedência desses africanos pertencentes

aos seculares. Sabemos, conforme Tannenbaum, que ao menos em teoria, a Igreja

condenara o tráfico de escravos e proibira os católicos de participarem de tal comércio.116

Mas o fato de os seculares alforriarem majoritariamente africanos não nos permite afirmar a

recorrência direta dos padres ao tráfico, visto que também poderiam ter muitos escravos

provenientes de legado de heranças deixadas por fiéis, ato não incomum no século XIX.

Por ora, nossas fontes revelam que os padres alforriaram um número bem maior de

africanos em detrimento dos cativos naturais do Brasil. Isso, obviamente, nos sugere uma

maior incidência de africanos nos plantéis dos seculares.

Podemos dizer, baseado em nosso banco de dados, que os escravos dos seculares

viviam, sobretudo, no meio urbano. Logo, essa superioridade numérica de africanos entre

os alforriandos do clero secular talvez possa ser entendida pelo padrão demográfico

fluminense no período em questão. Como dito acima, havia um grande contingente de

africanos entre a população escrava da Corte. Além disso, uma numerosa parcela desses

africanos era “ladinizada”, sendo assim, tão capaz quanto os crioulos para negociar sua

liberdade, visto que, os originários da África, além das alforrias compradas, dominavam

também o campo das alforrias gratuitas.117

Então, esse padrão das naturalidades presente nas alforrias do clero secular, pode ter

refletido o padrão demográfico da população escrava do Rio de Janeiro nesse período. E

além de tudo, corrobora a idéia de que os africanos, mesmo não inseridos em redes de

solidariedade e parentesco solidificadas como as dos crioulos, forjavam estratégias que, de

certa forma, facilitavam seu acesso à liberdade. Criavam laços de parentesco e de

solidariedade, possivelmente, por meio da inserção em alguma irmandade ou buscavam a

formação de pecúlio via trabalho “extra cativeiro”.

Situação diversa vivenciaram os escravos pertencentes aos regulares. Os crioulos

foram os mais alforriados por este setor eclesiástico, conforme visto nas tabelas acima.

Logo, também supomos ter esse padrão refletido as condições de vida de tal clero. Os

escravos viviam, principalmente em meio rural, já que os regulares eram proprietários de

inúmeros latifúndios no Rio de Janeiro.

116 TANNEMBAUM, Frank. Op. cit., 1946, p. 62. 117 FLORENTINO, Manolo. Op. cit., 2002, p. 24.

Page 66: Escravos Da Religiao

187

Para o clero regular podemos ser mais incisivos com relação a proveniência dos

escravos: à grande predominância de crioulos nos plantéis dos regulares podemos supor

uma ínfima recorrência destes ao tráfico negreiro. Esse padrão da naturalidade reitera a

afirmação de Ramalho Rocha na qual afirma que o Mosteiro de São Bento recorria muito

pouco ao tráfico e comprava cerca de dez escravos a cada triênio para distribuir entre os

mosteiros e suas sete – conhecidas – propriedades rurais no Rio de Janeiro.118

Carlos Engemann, estudando diversas fazendas de grande porte da região sudeste –

entre elas, a do Engenho do Camorim na freguesia de Jacarepaguá, pertencente aos

beneditinos do Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro – percebeu que os escravos de

grandes plantéis criavam estratégias de vida que os enlaçavam em autênticas

comunidades.119

Essas comunidades pressupunham uma elaborada estrutura familiar. Esta

circunstância ensejava um vigoroso crescimento endógeno nas fazendas, explicando, por

sua vez, a grande freqüência de crioulos entre os mancípios dos religiosos regulares. E

como visto anteriormente, o clero regular recorria pouquíssimo ao tráfico negreiro. Dessa

forma, a estimativa de que este mosteiro possuía aproximadamente 4000 escravos em 1871,

leva a crer que o aumento da população escrava da ordem beneditina era sustentado pelo

crescimento vegetativo, ou seja, na própria existência da família, e não em reposição via

tráfico.

Comparando a fazenda Resgate, no oeste paulista, propriedade do Comendador

Manuel de Aguiar Vallim, com a fazenda do Engenho do Camorim, dos beneditinos,

Engemann constatou que apesar da última possuir um número de escravos inferior à

primeira (436 e 172 escravos respectivamente, na segunda metade do século XIX), ela

presenciou uma reprodução endógena mais ampla que a formação dos escravos da fazenda

paulista.120

Isso pode ser explicado pela peculiaridade de ser uma fazenda cujos donos eram

eclesiásticos. Afora a normal reprodução endógena no interior de qualquer latifúndio, as

fazendas pertencentes a instituições religiosas tinham, ao menos em teoria, uma

118 ROCHA, Mateus Ramalho. Op. cit., 1991, p. 83. 119 ENGEMANN, Carlos. De grande escravaria a comunidade escrava. Revista Estudos de História. Franca: UNESP, v. 9, n. 2, pp. 75-96, 2002. 120 Idem, p. 82.

Page 67: Escravos Da Religiao

188

especificidade a mais: o incentivo dado pelos clérigos à formação de famílias escravas

“legítimas”. Mas, isso não significa que os regulares fizessem de suas fazendas verdadeiros

criatórios de escravos como afirmou Manuela Carneiro da Cunha, baseada apenas em

relatos do viajante Thomas Ewbank, do século Oitocentista que, apesar de representarem

fontes riquíssimas, não possuem base empírica e são demasiadamente preconceituosos:

Não só as ordens religiosas tinham seus escravos, até quase às vésperas da Abolição, mas algumas se especializaram, e parecem ter sido as únicas empresas do gênero no Brasil, na reprodução de escravos. Os carmelitas tinham, por exemplo, criatórios de escravos na província do Rio de Janeiro, e os beneditinos na Ilha do Governador, no Rio.121

Óbvio que a reprodução endógena consistia em importante fator econômico para a

instituição, porém, não devemos nos aprisionar na supremacia do econômico, vendando os

olhos para outras possíveis interpretações. Assim como Cunha, Piratininga Junior também

baseou seus estudos na obra de Ewbank. O mesmo autor que sustentou a idéia da existência

de uma sólida estrutura familiar nas senzalas, evidenciando dessa forma, que os cativos

“não foram passivos e simples objetos”, 122 afirmou a existência de criadouros no interior

das fazendas beneditinas.

Ora, a presença de famílias “legítimas” entre a população escrava, por si só,

pressupunha uma realidade deveras adversa à condição de “criatórios” de escravos,

entendidos como grupos de indivíduos associados por práticas que subvertiam a própria

norma social predominante.

Havia sim um grande incentivo, em teoria, por parte dos religiosos, à constituição

familiar de sua escravaria com matrimônio legítimo. Por exemplo, o Capítulo Geral da

Congregação Beneditina do Brasil, em 1829, determinou que as escravas mães de seis

filhos e casadas legitimamente seriam alforriadas.123 As manumissões seriam concedidas

121 CUNHA, Manuela Carneiro da. Op. cit., 1987, pp. 129 e 130. 122 PIRATININGA JUNIOR, Luis Gonzaga. Op. cit., 1991, p. 33. 123 Desde 1780 a Junta do Mosteiro de São Bento já havia promulgado essa lei, porém ela sofreu diversas modificações ao longo dos anos, inclusive na Congregação Beneditina do Brasil. ROCHA, Mateus Ramalho. Op. cit., 1991.

Page 68: Escravos Da Religiao

189

gratuitamente e as ex-escravas poderiam continuar vivendo na fazenda junto a seu

marido.124 Pode-se perceber aí, além de uma intenção simplesmente econômica, uma

preocupação de caráter moral/religioso; a escrava, para “obter a graça” deveria fazer parte

de uma família legítima, ou seja, deveria estar casada sob as bênçãos da religião católica.

3 – Homens e mulheres: servos da religião

Há muito já se consagrou na historiografia brasileira o padrão de manumissão

concernente ao sexo do cativo. Diversos historiadores obtiveram as mesmas conclusões

analisando diferentes regiões do país: as mulheres escravas sempre tiveram vantagem sobre

os homens escravos quando o assunto era a emancipação através da carta de alforria.

Vejamos a análise em duas diferentes regiões.

Stuart Schwartz analisou 1.160 cartas de alforrias registradas nos cartórios da cidade

de Salvador, no período de 1684 a 1745 e chegou à conclusão que o padrão de

manumissões coloniais da Bahia é a proporção constante de duas mulheres para cada

homem liberto.125 Este desequilíbrio foi encontrado na pesquisa realizada por Kátia

Mattoso num período posterior – 1779 a 1850.126 Esses resultados levam a crer, segundo

Schwartz, que tal proporção – duas mulheres para cada homem liberto – foi uma

característica invariável da manumissão baiana.

Mary Karasch, no livro A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850),

analisou as manumissões registradas nos livros de notas do primeiro cartório carioca entre

124 Idem, p. 86. 125 SCHWARTZ, Stuart B. Op. cit., 2001, p.184. 126 MATTOSO, Kátia M. de Queirós. Propósito de cartas de alforria na Bahia, 1779-1850. Anais de História. Marília, n°. 4, 1971.

Page 69: Escravos Da Religiao

190

1807 e 1831. A maior freqüência do sexo feminino sobre o masculino, tal como na Bahia,

foi o padrão encontrado. Mais precisamente, 64% dos alforriados, na amostra utilizada pela

autora, eram mulheres. Posteriormente, percebemos que a tendência não se altera, conforme

o censo de 1849. Este estabelece que as mulheres alforriadas somavam 56% contra 44%

libertos na região fluminense.127

A autora citada enumera diferentes fatores que influenciariam a consolidação desse

padrão de manumissão. Primeiramente, a variação dos preços entre escravos de diferentes

sexos. As cativas, geralmente, tinham menor valor no mercado, podendo, assim, perfazer de

forma mais célere o pecúlio necessário a sua alforria. Especialmente em cidades como o

Rio de Janeiro elas tinham melhores oportunidades de trabalhar como “ganhadoras”,

vendendo frutas, verduras, doces, etc, ou até mesmo na prostituição.

Afora o fator econômico, outros contribuiriam para o sucesso das mulheres sobre os

homens na conquista da carta. Em uma família escrava, por exemplo, os homens poderiam

amealhar o dinheiro necessário à alforria, porém receosos com o futuro de seus filhos,

libertariam primeiramente suas esposas para que os mesmos nascessem livres. Além disso,

a relação de amizade que muitas escravas domésticas consolidavam com suas sinhás e

possíveis uniões consensuais que mantinham com seus senhores, concorriam para o

predomínio das mulheres entre os mancípios.

Analisando especificamente as manumissões dos escravos pertencentes aos clérigos,

obtivemos os seguintes números:

Tabela 2: Distribuição das alforrias por sexo nos respectivos cleros (1840-1850):

SEXO

REGULAR SECULAR TOTAL 2

127 KARASCH, Mary. Op. cit., 2000, p. 452.

Page 70: Escravos Da Religiao

191

# % # % # %

MULHERES 30 71 51 56 81 61

HOMENS 11 29 40 44 51 39

TOTAL 1 42 100 91 100 132 100

Fonte: Livros de notas do primeiro, segundo e terceiro ofícios do Rio de Janeiro – 1840/1850, Arquivo Nacional (RJ). Tabela 2.1: Distribuição das alforrias por sexo nos respectivos cleros (1851-1871):

REGULAR SECULAR TOTAL 2

SEXO # % # % # %

MULHERES 62 53 67 54 130 54

HOMENS 54 47 57 46 111 46

TOTAL 1 116 100 124 100 240 100

Fonte: Livros de notas do primeiro, segundo e terceiro Ofícios do Rio de Janeiro – 1851/1871, Arquivo Nacional (RJ). As tabelas mostram, em ambos os períodos, que o clero seguiu a tendência laica:

alforriava-se mais mulheres. Pormenorizando a análise, vemos que entre os seculares a

proporção de libertandos masculinos e femininos permaneceu praticamente inalterada ao

Page 71: Escravos Da Religiao

192

fim do tráfico internacional. Mas entre o clero regular, verificamos uma mudança na

proporção entre os gêneros: enquanto na década de 1840 as mulheres eram maioria absoluta

entre os alforriandos, no segundo recorte temporal, a diferença diminui bruscamente.

A despeito do constante predomínio do sexo feminino nas manumissões, vemos um

relativo equilíbrio entre os sexos nas manumissões concedidas por seculares, comparando-

se com a enorme diferença existente, no primeiro período, entre as alforrias das ordens.

Porém, estas, após 1851, tornaram-se também equilibradas, chegando a uma diferença de

apenas 6% entre homens e mulheres.

Segundo Schwartz, a maior recorrência do sexo feminino entre os forros esteve

“presente tanto entre os setores urbanos quanto rurais (...) embora a tendência de se

favorecer as mulheres no processo de emancipação seja um pouco mais acentuada nas áreas

rurais”.128 Portanto, os resultados evidenciados nas tabelas acima reiteram a afirmação do

autor, visto que a maioria dos alforriados dos religiosos regulares vivia em ambiente rural.

Enfim, a título de conclusão, neste capítulo definimos e analisamos certos padrões

das manumissões concedidas por clérigos católicos da cidade do Rio de Janeiro. Estes

padrões permitiram-nos vislumbrar algumas peculiaridades inerentes à escravidão exercida

por este grupo restrito de senhores.

Porém, percebemos que as peculiaridades identificadas não se apresentam de forma

homogênea nos “dois tipos” de clero. Concluímos, desse modo, a fragilidade de se analisar

a escravidão exercida pelo “clero católico” admitindo este como um segmento único. O que

ora se impõe é a existência de “dois cleros” no interior de um mesmo grupo religioso,

agindo de forma diferenciada entre si no que concerne à escravidão. Desagregando a

análise, vimos não só padrões diferentes, mas também opostos. Ressaltamos, portanto, a

necessidade de um estudo diferenciado entre eles.

128 SCHWARTZ. Stuart B. Op. cit., 2001, p. 184

Page 72: Escravos Da Religiao

193

Capítulo III: A família cristã entre os “escravos da religião”

Page 73: Escravos Da Religiao

194

1 – O “surgimento” da família escrava na historiografia

Hoje, a vida familiar dos escravos não é uma novidade. Isso se tornou evidente

desde que a demografia começou a ser utilizada pelos historiadores brasileiros na década de

1980. Portanto, não há mais a necessidade de se provar que os escravos estabeleciam laços

de solidariedade e construíam redes familiares. Todavia, cabe-nos tecer uma breve

discussão sobre a evolução do tema em nossa historiografia.

A publicação de Casa Grande e Senzala129, na década de 1930, significou um marco

para a discussão da escravidão no Brasil. Gilberto Freyre apresentou a contribuição do

negro para a formação da cultura brasileira como algo positivo. Com isso, inaugurou uma

nova visão acerca do negro no Brasil, opondo-se à teoria, predominante até então, de

inferioridade racial do mesmo e do perigo da miscigenação para o desenvolvimento da

sociedade brasileira.130

Com relação à família, Freyre criou a noção de “família patriarcal brasileira”, ou seja,

aquela que engloba esposa, filhos, netos, avós, agregados e escravos, enfim todos aqueles

que se encontravam sob o poder e proteção do senhor patriarcal. Dessa forma, em Freyre

ainda não existia a idéia da existência da família cativa propriamente dita, mas sim de uma

só família – extensa e multifuncional – onde senhores e escravos, principalmente

domésticos, mantinham relações quase sempre harmoniosas.

129 FREYRE, Gilberto. Casa grande e senzala. Rio de Janeiro: Record, 2001. 130 Essa teoria, racismo científico, teve Nina Rodrigues e Conde de Gobineau como seus principais representantes.

Page 74: Escravos Da Religiao

195

Na década de 1950, a Escola Paulista de Sociologia caracterizou-se como crítica a

Freyre. Autores como Florestan Fernandes, Emília Viotti da Costa e Fernando Henrique

Cardoso enfatizaram o caráter violento da escravidão brasileira, contrapondo-se à imagem

de certa leniência criada por Freyre.131 Esses autores ressaltaram o conflito inerente à

sociedade escravista e a impossibilidade de uma convivência harmoniosa entre senhores e

escravos.

Estes autores perceberam a sociedade colonial como um todo generalizado e, nesse

sentido, o regime escravista enquanto parte dela. Antes deles, apresentando reflexões acerca

da colonização brasileira, Caio Prado Jr. em seu livro A formação do Brasil

Contemporâneo apontou o cativeiro enquanto motor da lógica econômica colonial132. Para

ele, a lógica empresarial dava o tom das relações entre senhores e escravos e entre os

próprios cativos. Sendo o escravo mão-de-obra facilmente reposta pelo tráfico Atlântico e a

custos baixos, vantajosa seria a intensificação de sua jornada de trabalho para o aumento da

produção e atendimento da demanda, embora fosse diminuída brutalmente a vida útil do

cativo. A essa lógica econômica, que redundava em um péssimo tratamento, estaria

vinculada uma baixa taxa de reprodução natural dos escravos e a insignificante incidência

de famílias entre eles.

Na década de 70, Jacob Gorender deixou ainda mais marcado o viés economicista em

suas reflexões sobre a escravidão no Brasil133. A violência foi entendida por Gorender

como a mais expressiva forma de reprodução deste escravismo, que trazia consigo a marca

da identidade de “peça” nas bases das relações sociais do cativeiro.

Como resultado da violência e opressão, o cativo caracterizava-se pela incapacidade

em permitir interações. O cativeiro subtraía-lhe a humanidade e imputava-lhe uma condição

anômica. Ou seja, o conceito subjacente à obra de Gorender é o da anomia. O cativeiro era

compreendido como sendo desprovido de leis e regras que norteassem sua vida em

sociedade. Isso impedia ao escravo agir por si próprio, reagindo passivamente aos

significados sociais que lhe eram impostos. Essa anomia tenderia a interditar-lhe uma série

131 FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes. Vol. 1 e 2. São Paulo: Ática, 1978; Costa, Emília Viotti da. Da senzala à colônia. São Paulo: Difel, 1966; Cardoso, Fernando Henrique. Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional: o negro na sociedade escravocrata do Rio Grande do Sul. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. 132 PRADO JUNIOR, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. São Paulo: Brasiliense/Publifolha, 2000. 133 GORENDER, Jacob. Op. cit., 1978.

Page 75: Escravos Da Religiao

196

de práticas sócio-culturais como, por exemplo, a constituição de família e a participação

ativa no seu processo de manumissão.

Nesta perspectiva, as condições impostas pelo cativeiro, por si só, teriam impedido a

formação de famílias escravas. Fatores como a separação por venda ou herança, o

desequilíbrio sexual e o desinteresse do senhor e do escravo teriam se constituído em

empecilhos a uniões estáveis e isso, por fim, ensejava um comportamento promíscuo entre

os cativos.

Na década de 1980, alguns autores, como Maria Helena Machado, enfatizaram a

autonomia escrava, descaracterizando a anomia até então atribuída. Logo, começou-se a

perceber os cativos como agentes no processo de formação da sociedade brasileira, isto é,

como sujeitos históricos ativos:

Conceitos como os de resistência e autonomia entre escravos têm sido reiteradamente apontados como núcleos centrais para a reconstituição de uma história preocupada em reverter as perspectivas tradicionais e integrar os grupos escravos em seus comportamentos históricos, como agentes efetivamente transformadores da instituição. 134

Nesse caminho e com a utilização de novas fontes e técnicas metodológicas,

sobretudo a demografia histórica, surgiram as primeiras discussões em torno da família

escrava no Brasil. Estas foram decorrentes às discussões presentes na historiografia norte-

americana em autores como Eugene Genovese e Herbert Gutman.135

Este último autor, tendo como base uma vasta documentação qualitativa de registros

demográficos de propriedades rurais no sul dos Estados Unidos, argumentou que a família

nuclear, “intergeracional e extensa” era uma instituição forte e valorizada pelos escravos.

Ainda mais, Gutman afirmou que a transmissão da cultura proporcionava aos escravos

importantes recursos para enfrentar as agruras de uma vida em cativeiro.136

134 MACHADO, Maria Helena P. T. Op. cit., 1988. 135 Apud ROCHA, Cristiany Miranda. Histórias de famílias escravas: Campinas, século XIX. São Paulo: UNICAMP, 2004. 136 GUTMAN, Herbert G. The black Family in Slavery end Freedon - 1750-1925. N.Y: Vintage, 1976. Apud: SLENES, Robert. Op. cit., 1999, pp. 38 e 39.

Page 76: Escravos Da Religiao

197

A historiografia mais recente tem procurado investigar a questão da formação de

relações sociais próprias aos cativos, de forma particular, a formação de relações de

parentesco e de sociabilidade. Autores como Sidney Chalhoub, Marisa Soares e Hebe

Maria Mattos137 entendem que homens e mulheres escravizados foram capazes de forjar, na

escravidão, tanto formas de resistência e luta, como relações sociais que longe de estarem

absolutamente determinadas pela lógica econômica, eram frutos de estratégias próprias dos

cativos. Robert Slenes, em seu artigo Lares Negros Olhares Brancos, abriu caminho para a

discussão sobre a natureza do parentesco escravo, resgatando a “família negra” do mundo

da promiscuidade e respeitando o que nela havia de peculiar, sem com isso conferir-lhe um

estatuto inferior138.

Neste conjunto de novos trabalhos sobre família escrava destaca-se o de Hebe Maria

Mattos. Para ela, a constituição da família e a manutenção de redes de parentesco eram pré-

condições ao acesso a pequenas lavouras de subsistência dentro das terras senhoriais e

também ao acesso a habitações isoladas, representando assim, a conquista de um espaço

próprio e a autonomia das organizações familiares cativa.139 No entanto, para Mattos, a

família escrava enfraquecia os laços de comunidade dentro dos plantéis e uma coordenada

resistência à escravidão, já que a família incentivava a competição por recursos.140

Já no final da década de 1990, Manolo Florentino e José Roberto Góes141 observaram

a família escrava como elemento estrutural da sociedade escravista. Estabeleceram uma

relação direta entre as flutuações do tráfico atlântico de escravos e a sociabilidade entre

estes, demonstrando que a influência era de tal ordem que a presença constante do

estrangeiro produzia constantemente um alto potencial de conflito no interior dos plantéis.

Deste modo, fazia-se necessário criar mecanismos que possibilitassem a pacificação e

viabilizassem a convivência:

137 CHALHOUB, Sidney. Visões de liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990; REIS, João José e SILVA, Eduardo. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Companhia das Letras, 1989; MATTOS, Hebe Maria Mattos. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no sudeste escravista - Brasil séc. XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. 138 SLENES, Robert. “Lares Negros, Olhares Brancos”. In: Colcha de retalhos: estudos sobre família no Brasil. Campinas, SP: Ed. da UNICAMP, 1994. 139 MATTOS, Hebe. Op. cit., 1998, passim. 140 Idem, apud ROBERT, Slenes. Na senzala, uma flor. Esperanças e recordações na formação da família escrava. Brasil, Sudeste, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. 141 FLORENTINO, Manolo & GÓES, José Roberto. Op. cit., 1997.

Page 77: Escravos Da Religiao

198

Os cativos faziam e refaziam o parentesco, enquanto o mercado produzia e produzia mais uma vez o estrangeiro. Espécie de meta-nós,era o parentesco escravo a possibilidade e o cimento da comunidade cativa. Era o solvente imprescindível a senhores e escravos, por intermédio do qual se tecia a paz das senzalas. Ao cativo, ele tornava possível esconjurar a anomia (...). Ao senhor, ávido de homens pacificados, permitia auferir uma renda política, cuja contabilidade, por não aparecer nunca de maneira óbvia nos inventários que deixava, tem sido com freqüência despercebida. (...) O cativeiro era estruturalmente dependente do parentesco cativo.142

Assim, conforme os autores, a inserção em uma rede familiar foi o mecanismo

encontrado pelos cativos para uma melhor convivência entre seus pares. Eram os próprios

escravos que procuravam inserir-se em redes familiares, logo, Florentino e Góes criticaram

estudos que situam ao exagero, o devir da história na vontade senhorial.143 A relação

parental transformava o ser aprisionado em escravo, além de instaurar a “paz nas senzalas”,

que rendia inúmeras vantagens políticas aos proprietários, caracterizadas, por exemplo, nas

diminuições de tentativas de fugas nos plantéis.144

Robert Slenes, em outro trabalho lançado dois anos após a publicação de “A paz nas

senzalas”, compreende a família escrava de uma maneira diferente de Hebe Mattos,

Florentino e Góes. Consoante a Slenes, a família escrava contribuiu decisivamente para a

formação de uma comunidade escrava, unida em torno de experiências, valores e memórias

compartilhadas que, dessa forma, minava a hegemonia dos senhores. Ele entende a família

escrava como centro de “um projeto de vida” que:

(...) não configura uma “brecha” camponesa que permita uma pequena autonomia ao cativo. Ao contrário, é um campo de batalha (...) em que se trava a luta entre o escravo e o senhor e se define a própria estrutura e destino do escravismo. Não concordo, portanto, que a família escrava deva

142 Idem, pp. 36 e 37. 143 MARQUESE, Rafael de Bivar. Op. cit., 2004, p. 280. 144 Idem, passim.

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199

ser considerada um fator estrutural na manutenção e reprodução do escravismo (...). De fato, ao formarem tais laços, os escravos aumentaram ainda mais sua vulnerabilidade, transformando-se em “reféns”, tanto de seus proprietários quanto de seus próprios anseios e projetos de vida familiar. Isto não quer dizer, no entanto, que foram necessariamente impedidos de criar uma comunidade de interesses e sentimentos e virar um perigo para os senhores.145

Desse modo, para o brasilianista, a família cativa representava mais do que estratégias

e projetos centrados nos laços de parentesco. Ela expressava um “mundo mais amplo”

criado pelos cativos a partir de suas próprias esperanças e tradições. Mais ainda, a família

concorria à formação de uma identidade antagônica a dos senhores.

Malgrado os brilhantes trabalhos realizados pelos diversos autores acima

mencionados, o tema “família escrava” tornou-se objeto de pesquisa dos historiadores

somente há pouco mais de vinte anos. Logo, a historiografia brasileira ainda tem muito a

avançar no estudo da família e da comunidade escrava.

2 – Catolicismo e família escrava – a teoria

Uma minoria (de escravos) conseguia montar unidades familiares estáveis, mas a maioria, menos afortunada, tinha de suportar o trauma da escravização sem estruturas familiares conhecidas. No caso dos escravos cariocas, não podemos nem começar a discutir a instabilidade de suas famílias, pois quase sempre a unidade familiar nem se formara. Um casal de cativos só conseguia constituir família, por casamento cristão ou união consensual, com grandes dificuldades, pois boa parte da sociedade carioca era ativamente contra a criação de unidades familiares independentes para os escravos. (...) nem os senhores nem os padres católicos os estimulavam a casar com outros escravos em forma canônica reconhecida diante de um sacerdote numa igreja católica.146 (grifo nosso)

145 SLENES, Robert. Op. cit., 1999, pp. 48 e 49. 146 KARASCH, Mary. Op. cit., 2000, p. 379.

Page 79: Escravos Da Religiao

200

Mary Karasch escreveu o trecho acima já no final da década de 1980. Além das

equivocadas conclusões acerca da família, a autora afirmou a má vontade dos padres na

realização dos casamentos entre os escravos. Porém, desde a primeira década do século

XVIII a Igreja no Brasil se posicionou sobre este assunto com a elaboração das

Constituições primeiras do acerbispado da Bahia. Segundo as quais estabeleceram que:

(...) seus senhores lhe não podem impedir o matrimônio, nem o uso dele em tempo e lugar conveniente, nem por esse respeito os tratar pior, nem vender para outros lugares remotos, para onde o outro, por ser cativo, ou por outro justo impedimento o não possa seguir.147

Logo, se no início do século anterior ao recorte temporal da pesquisa de Karasch a

Igreja já havia se posicionado a favor da constituição de família entre a escravaria, como os

padres não estimulavam o matrimonio católico? Não somente as Constituições Primeiras,

mas as disposições do clero regular, como o Capítulo geral da congregação Beneditina,

também incentivaram a união de escravos sob os preceitos da fé católica:

A Junta de 1780 decidiu que as escravas mães de seis filhos ainda vivos e tidos de matrimonio legítimo seriam alforriadas (...) Recomendavam os Visitadores que se devia pôr todo o empenho em promover o casamento dos escravos, sobretudo em vista da moralidade, boa conduta dos escravos e boa ordem nas fazendas.148

O texto dessa disposição própria do Mosteiro de São Bento, de se alforriar as mães

escravas com seis ou mais filhos, apesar de ter sofrido algumas alterações ao longo dos

anos, mostra-nos a preocupação por parte dos beneditinos em incentivar os escravos a

seguirem os preceitos e dogmas da fé católica. As manumissões seriam concedidas

147 “Constituições primeiras do arcebispado da Bahia”; Coimbra, 1720, livro I, tit. 71,§ 303. Apud SILVA, Maria Beatriz Nizza da. História da família no Brasil colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. 148 ROCHA, Mateus Ramalho. Op. cit., 1991.

Page 80: Escravos Da Religiao

201

gratuitamente e as ex-escravas poderiam continuar vivendo na fazenda junto a seu marido.

Pode-se perceber aí uma preocupação de caráter moral/religioso.

Como já visto no capítulo anterior, o incentivo dado pelos religiosos à reprodução

endógena de seus escravos era de fundamental importância econômica para a instituição,

porém, este não seve ser entendido como o único objetivo almejado pelos eclesiásticos. Os

cativos, para “obter a graça”, deveriam constituir uma família cristã legítima, isto é,

deveriam estar casados sob as bênçãos da religião católica.

Em teoria, o catolicismo sempre incentivou o casamento. Desde o século XIII o

código de leis espanhol, Las Siete Partidas, reconhecia a capacidade legal e moral do

escravo para o casamento, até mesmo sem a devida autorização de seu senhor. Porém a

questão do matrimônio foi sempre polêmica, pois colocava em prova a própria noção de

posse do senhor. A união sancionada pela Igreja criava uma relação contratual de

autoridade e obediência, de direitos e obrigações mútuas dentro de uma família, que era

incompatível com o conceito de posse absoluta dos escravos por seus senhores.149 O

casamento em sua concepção pura iria dividir e transferir parcialmente o poder dos

senhores para o “escravo-marido-pai”, desestruturando o conceito de escravidão. Contudo,

filósofos católicos como Tomás de Aquino incentivaram o matrimônio, apesar de ter

afirmado ser o cativo “um instrumento físico de seu proprietário, que tinha pleno direito a

tudo o que o escravo possuía ou produzia, inclusive filhos”.150

Então, é razoável supor que todo esse aparato teórico de incentivo ao casamento

tenha favorecido a liberdade de alguns escravos. Este foi o caso de Anastácia Crioula,

residente na Fazenda de Tribobó, em São Gonçalo151. Para ela, o ano de 1941 foi

duplamente especial, pois além de se tornar forra, casou-se conforme os preceitos católicos.

Porém, o antigo senhor, o padre João Coelho, registrou a alforria somente seis anos depois,

em 29 de outubro de 1847 e, logo no dia seguinte registrou, num mesmo documento, a

liberdade de Severina Rebolo e Maria Crioula, respectivamente mãe e irmã de Anastácia.

As primeiras obtiveram sua carta sem ônus monetário e sem motivo explícito. Mas, com

149 DAVIS, Davis Brion. O problema da escravidão na cultura ocidental. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 125. 150 Idem, p. 126. 151 2º Ofício de Notas, livro 79, p. 16v; Arquivo Nacional (RJ).

Page 81: Escravos Da Religiao

202

relação à Anastácia, o padre fez questão de evidenciar no registro o motivo da manumissão:

“a escrava irá casar, por isso eu a liberto”.

Outro exemplo interessante é o caso de Francisca crioula, escrava do padre José

Custódio Dias. Não temos sua alforria em nosso banco de dados, mas conhecemos sua

história através do inventário post-mortem do finado padre. O inventariante Roque de

Souza Dias

Declara não terem sido avaliados os serviços da crioula Francisca, porque sendo de menor idade, e tendo o finado disposto em seu testamento que aparecendo pessoa com quem ela casasse, lhe deixe sua carta de liberdade, assim o fez o inventariante por se realizar esse casamento, sem que até essa época ela prestasse serviço algum, antes fez despesas com a sua educação e vestuário.152

Percebemos nesses casos uma obediência, por parte dos padres João Coelho e José

Custódio Dias, que ultrapassou as exigências teóricas da doutrina católica. Esta ditava que

o senhor era obrigado a facilitar a união matrimonial de seus cativos, possibilitando meios

de mantê-los unidos após o sacramento.153 Portanto, a alforria não era necessariamente uma

obrigação, mas a entendemos, neste caso, como um meio encontrado pelos senhores para

incentivar o casamento legítimo entre seus escravos, já que ambos possuíam um plantel

razoavelmente grande. Assim, sugerimos, que era desejo desses senhores utilizar a

manumissão como meio de evangelização/educação, ensejando assim a formação de

famílias legítimas do ponto de vista moral/religioso.

Ronaldo Vainfas, por meio da análise de textos redigidos por eclesiásticos, chegou à

conclusão de haver entre estes um projeto escravista-cristão. Logo, podemos dizer que a

existência prática de tal projeto passava pela idéia da formação de uma verdadeira família

cristã, incluindo aí, senhores e escravos. Vejamos brevemente alguns aspectos desse

projeto.

152 Inventário de José Custódio Dias, 1ª Vara Civil; caixa: 289; nº: 3546; ano: 1839 – Arquivo Nacional. 153 “Constituições primeiras do arcebispado da Bahia”, Apud SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Op. cit., 1988.

Page 82: Escravos Da Religiao

203

Os religiosos, em sua grande maioria, não contestaram a escravidão africana, ao

contrário, sempre buscaram legitimá-lo. Neste contexto, voltavam-se para os textos bíblicos

a fim de justificar a relação de dominação dos brancos sobres os pretos. Portanto,

estabeleceu-se uma série de princípios e regras com o objetivo de reformar o que se julgava

inadequado na ordem social. Criou-se um novo projeto ideológico:

Convencidos da legitimidade da escravidão africana, porém, insatisfeitos com as práticas sociais vigentes, os letrados coloniais trataram de construir normas que tornassem aquela mais estável ou duradoura, mais produtiva e menos violenta (...) Cruzaram-se motivações econômicas, sociais, religiosas, morais.154 (grifo nosso)

Logo, o projeto escravista-cristão tinha por objetivo, essencialmente, normatizar a

relação entre o senhor e o escravo, pondo ambos os agentes sociais sob os preceitos do

sistema ideológico católico. Aos escravos eram recomendadas a abnegação, renúncia e fé.

Conforme o jesuíta Antônio Vieira, a escravidão era felicidade e milagre e os escravos

deveriam agradecer o cativeiro... Pois na verdade, este significava sua própria salvação.

Segundo Vieira, “os negros eram eleitos de Deus e feitos à semelhança de Cristo para

salvar a humanidade através do sacrifício”.155 Dessa maneira, buscava-se formar o servo

cristão ideal: obediente ao Deus cristão e ao senhor na Terra.

Já para os senhores era recomendada a supressão dos abusos. Por exemplo, Jorge

Benci e Antonil os aconselhavam a levar em conta a força e a idade de cada escravo na

distribuição das tarefas, evitar o trabalho contínuo que viesse a debilitar o cativo e sua

realização nos domingos e dias santos, dentre outros. Acima de tudo, sobre a conduta dos

donos de escravos deveria pairar a idéia que estes últimos estavam purgando seus pecados

oriundos da maldição de Cam156, e assim, precisavam ser tratados com benevolência cristã.

Para se converter o africano em servo cristão (obediente e piedoso), e para que o

mundo da escravidão se transformasse numa família patriarcal-cristã, era preciso criar um 154 VAINFAS, Ronaldo. Ideologia e Escravidão. Os letrados e a sociedade escravista no Brasil colonial. Petrópolis: Vozes, 1986, p. 100. 155 Idem, p. 97. 156 Santo Agostinho foi o primeiro religioso a estabelecer a relação entre a escravidão em geral e a história bíblica da maldição de Cam. Noé amaldiçoou Cam, seu filho, e seus descendentes, por ele ter ludibriado a sua nudez e embriaguez. Ver VAINFAS, Op. cit., 1986 e PIRATININGA JUNIOR, Luis Gonzaga. Op. cit., 1991.

Page 83: Escravos Da Religiao

204

novo senhor, e até mesmo um novo homem, que assumisse o cristianismo como norma de

conduta e modo de pensar. (...). Se a criação de uma nova consciência senhorial era o

requisito para a conversão da escravidão numa comunidade familiar e cristã, logo, era de

fundamental importância construir e reforçar a noção de família.

Projetava-se converter a escravidão num modelo de família cristã socialmente ausente. Construir a “família” e reformar a escravidão conforme os padrões cristãos, eis o duplo sentido do projeto escravista.157 (grifo nosso)

Contudo, o projeto escravista-cristão não repercutiu no mundo leigo da maneira

desejada pelos letrados, pois aquele impunha uma consciência adversa aos hábitos sociais

vigentes. Apesar da maioria dos donos de escravos serem adeptos do catolicismo, as

práticas cotidianas na colônia dificultavam a interiorização total do projeto. Tornar real a

família patriarcal cristã dependia de uma profunda mudança na sociedade, fato este não

alcançado pelos religiosos. Portanto, conforme Vainfas, o discurso escravista-cristão não

obteve êxito entre os senhores laicos.

Mas, entre os eclesiásticos de meados do século XIX, na escravidão administrada

propriamente por eles, o projeto repercutiu de maneira prática? Teriam conseguido impor

sobre seus cativos a verdadeira família cristã baseada em seus preceitos teóricos? A essas

perguntas ainda não existem respostas completas e definitivas, porém, por meio das cartas

de alforria podemos vislumbrar possíveis caminhos para respondê-las, ainda que de forma

incipiente visto tratar-se de uma pesquisa de mestrado.

3 – A alforria e os “arranjos familiares” – a prática católica

157 VAINFAS, Op. cit., pp. 130 e 131; 1986.

Page 84: Escravos Da Religiao

205

No que concerne à inserção do libertando a uma rede familiar, dividimos os

manumissos em três tipos de categoria: os inseridos em “arranjos familiares”, os

“aparentados” e os “solitários”. Óbvio que estes termos não são exatamente apropriados,

visto que todos os escravos eram aparentados, e nenhum deles, de certa forma, era solitário.

Mas, por ora, servem à nossa proposta metodológica.

O termo “arranjo familiar” foi utilizado para as cartas que registraram a saída

conjunta de parentes, ou seja, quando em uma só carta de alforria foi registrado a liberdade

de dois ou mais parentes. Mas, esta categoria demanda maior desvelo e será melhor

analisada mais à frente.

Para os registros que determinam a alforria de um único escravo, mas de alguma

forma, há a informação do nome de um determinado familiar, utilizamos o termo

“aparentado”. Por exemplo, a alforrianda Minervina, de vinte anos de idade, teve em sua

manumissão o nome de sua mãe, Claudina, registrado.158 A carta não fornece informações

sobre a condição jurídica de Claudina, apenas deixa marcada a existência da mãe e a

provável importância desta na vida de Minervina.

O simples fato de incluir no documento de liberdade a existência de um parente seja

mãe, pai, ou, até mesmo um irmão, pode mostrar-se como uma memória familiar do cativo,

que fazia questão de registrar o seu “pertencimento” a uma rede familiar e de solidariedade.

Até porque, não seria absurdo supor que o “parente informado” possa ter participado, de

alguma maneira, do processo que levou à assinatura final daquela carta. Neste caso

específico, temos o exemplo de Josefa Crioula, escrava do padre Jacinto Pires Lima.159 Ela

teve sua carta registrada, em agosto de 1844, mediante o pagamento de 200 mil réis, pagos

por seu irmão, cujo nome não foi registrado, mas a ajuda indispensável e digna de

reconhecimento sim.

Ainda nesta variável – “aparentados” – incluímos os parentes que obtiveram suas

manumissões em momentos diferentes. Este, por exemplo, foi o caso de Benvinda160,

parda, mãe de Mafalda161 também parda. Ambas escravas do Mosteiro de São Bento,

porém, a mãe era trabalhadora da Fazenda de Maricá e a filha da Fazenda de Campos.

158 2° Ofício de Notas, livro 0, p. 30, Arquivo Nacional (RJ). 159 3° Ofício de Notas, livro 7, p. 80, Arquivo Nacional (RJ). 160 2° Ofício de Notas, livro 90, p. 211, Arquivo Nacional (RJ). 161 3° Ofício de Notas, livro 19, p. 26, Arquivo Nacional (RJ).

Page 85: Escravos Da Religiao

206

Benvinda, em junho de 1956, já tinha amealhado a quantia necessária – 800 réis – para a

compra de sua alforria. Já Mafalda, só deixou o cativeiro três anos após a saída de sua mãe,

quando pagou 600 réis aos beneditinos.

Semelhante história aconteceu com os pequenos Bernardino e Frederico, também

pertencentes ao Mosteiro de São Bento e residentes na Fazenda de Vargem Pequena. Mas

neste caso, a ordem de saída foi invertida e foram os filhos os primeiros a tornarem-se

libertos, enquanto a mãe, Apolinária, permaneceu escrava. Ambos os irmãos tiveram a sorte

de nem mesmo sentirem as agruras de uma vida em cativeiro, já que foram contemplados

com suas cartas de alforria ainda bem pequenos, Bernardino com um ano de idade e

Frederico com dois. Porém, aquele teve seu documento registrado no dia 17 de março de

1857, e somente três anos depois, em outubro de 1860, seu irmão Frederico fora igualmente

alforriado. Os dois foram avaliados em 100 mil réis e não consta no documento o

responsável pelo pagamento, mas provavelmente, fora a própria mãe ainda escrava do

mosteiro. Supomos que depois da liberdade do primeiro filho, precisou de mais três anos de

economia para conseguir “comprar” a do segundo, tendo assim, a felicidade de poder ver

seus filhos crescerem como homens livres.

Para as demais alforrias, onde nenhum tipo de relação familiar foi registrado usamos

a tipologia “solitário”. Este tipo foi o mais recorrente, antes e após o fim do tráfico atlântico

de cativos, sendo que após 1850 houve um ligeiro aumento na porcentagem desses

escravos, chegando a 74% (ver tabelas nos anexos 2 e 2.1). Analisando os poucos

inventários de padres seculares localizados até o momento, buscamos algumas pistas sobre

parentes destes “solitários” por meio do cruzamento das fontes, com a intenção de

reconstituir algumas famílias. Porém, desses inventários, somente dois possuíam lista

nominal da escravaria, mesmo assim, o cruzamento foi impossível devido ao fato das

alforrias terem sido concedidas anteriormente ao falecimento de ambos os padres.

Cuidaremos agora dos arranjos familiares encontrados nas alforrias em análise.

Hebe Mattos, autora anteriormente citada, percebeu que os laços familiares permitiam a

reprodução de uma experiência de liberdade construída em oposição à escravidão. Além

disso, o casamento ou a união consensual significava para o escravo/estrangeiro o

estabelecimento de relações com uma família e com a região, deixando de ser um ser

estranho à comunidade. Mais ainda, “constituir família retirava o sentido de provisoriedade

Page 86: Escravos Da Religiao

207

e abria portas para o acesso à roça de subsistência”.162 Temos, então, a família como pré-

condição à “brecha camponesa”. Admitindo tal hipótese, poderíamos afirmar que a família

servia para o escravo do meio rural como um catalisador para a liberdade, na medida em

que temos a seguinte gradação: constituição de família → acesso à terra → maior

autonomia → formação de pecúlio → compra da alforria.

A carta de alforria – principal fonte deste trabalho – é muito limitada quando se tem

como objeto a família escrava. Este documento não permite a visualização da família como

um todo, evidenciando apenas os “arranjos familiares” que se formavam para a saída do

cativeiro, não fornecendo dados sobre possíveis membros de uma mesma família que se

tornaram forros antes ou depois do recorte temporal da pesquisa. Logo, não será possível

nessa pesquisa estabelecer o “padrão familiar” entre os escravos do clero, mas tão somente

os arranjos que eram estabelecidos.

O termo “arranjo familiar” será utilizado, neste trabalho, em substituição ao termo

“família”. Do contrário, se classificássemos, por exemplo, como “matrifocal” uma carta na

qual uma mãe foi alforriada junto a seu filho, estaríamos possivelmente omitindo uma

verdadeira família existente para além dos limites da fonte. Dessa forma, quando membros

de uma mesma família foram alforriados em uma mesma carta, utilizamos a seguinte

tipologia: matrifocal, fraternal, nuclear com filho (s), nuclear sem filho e viúva com filho.

Vejamos a tabela abaixo:

Tabela 3: Distribuição dos “arranjos familiares” identificados nas cartas de alforria do

clero católico do Rio de Janeiro (1840-1871):

matrifocal fraternal Nuclear c/

filho

Nuclear s/

filho

Viúva c/

filho

Total 2

Clero #

% # % # % # % # % # %

162 MATTOS, Hebe. Op. cit., p. 58, 1999.

Page 87: Escravos Da Religiao

208

Regular 9 75 2 17 0 0 1 8 0 0 12 100

Secular 12 76 1 6 1 6 1 6 1 6 16 100

Total 1 21 75 3 11 1 3 2 8 1 3 28 100

Fonte: Livros de registros de notas do primeiro, segundo e terceiro ofícios do Rio de Janeiro – 1840-1871; Arquivo Nacional (RJ).

Em nossa amostra encontramos 28 casos de “arranjos familiares”, ou seja, de 1840 a

1871, o clero registrou, aproximadamente163, 28 documentos de liberdade nos quais se

alforriavam dois ou mais parentes juntos. Este resultado soma um total de 7% para os

regulares e para os seculares que, coincidentemente, emitiram a mesma proporção de cartas

formadas por “arranjos familiares”. Os anexos 2e 2.1 evidenciam que após o término do

tráfico internacional, o número de escravos inseridos em arranjos desse tipo sofreu ligeira

queda.

Eis alguns exemplos desses arranjos: no final do ano de 1859, um benfeitor, cujo

nome e situação jurídica nos é desconhecida, pagou 750 mil réis aos religiosos carmelitas e

pôde, dessa forma, garantir a carta de alforria de Alexandrina e a de seus dois filhos, José e

Benedito. Os três mancípios eram trabalhadores da Fazenda da Pedra, no Rio de Janeiro,

pertencente aos carmelitas.164 Logo, podemos dizer que Alexandrina foi agraciada com uma

oportunidade nem tanto comum na sociedade escravista: deixou para trás o cativeiro

levando consigo seus filhos à liberdade. Ainda mais, teve o concurso de um benfeitor,

malgrado não termos quaisquer informações sobre ele, não seria nenhum absurdo supor ser

o próprio pai de José e Benedito... que mediante o pagamento em dinheiro proporcionou a

alforria e a união definitiva de sua família.

163 Como dito em nota acima, nosso banco de dados é formado pelas alforrias registradas nos 1º, 2º e 3º Ofícios de Nota do Rio de Janeiro, restando o 4º Ofício, além disso, há um desfalque no corte temporal, faltando os anos de 1864 a 1869. 164 2º Ofício de Notas, livro 94, p. 140, Arquivo Nacional (RJ).

Page 88: Escravos Da Religiao

209

Quadro 1: Arranjo: Matrifocal

Proprietário: Convento Nossa Senhora do Carmo

Data de registro: 19/12/1859

yuy

?

Alexandrina

• Alforria paga

Page 89: Escravos Da Religiao

210

José Benedito • Alforria paga • Alforria paga

O caminho percorrido por Jesuína Crioula foi diferente, porém, o desfecho foi

semelhante ao de Alexandrina. No primeiro mês do ano de 1845, o senhor carmelita

Custódio Alves Serrão, a alforriou junto com seus quatro filhos ainda crianças, Leonídia

Crioula, de 9 anos, Firmina parda, de 7 anos, Tomásia parda, de 6 anos, e finalmente,

Francisca parda, de 4 anos.165 Para isso, ficou acordado que Jesuína e seus filhos teriam de

servir “por alimentação, vestuário etc” ao senhor até que este morresse. Evitando

complicações futuras, Custódio ainda enfatizou: “os filhos que nascerem também ficam

sujeitos às condições”.166 Dessa forma, Jesuína conseguiu mudar sua situação jurídica e,

mais ainda, iria ver seus filhos crescerem na mesma condição, a de libertos.

Esse mesmo documento ainda nos possibilita maiores conjeturas sobre a vida dessas

pessoas: primeiramente, podemos dizer que Jesuína não era legitimamente casada; não há,

em momento algum, menção sobre cônjuge ou sobre a figura paterna. Além disso, a idade

das crianças, com pequenas diferenças entre elas, nos permite supor que apesar de ser não

casada sob o sacramento católico, Jesuína possuía um relacionamento estável com o pai de

suas quatros filhas.

165 2º Ofício de Notas, livro 75, p. 487, Arquivo Nacional (RJ). 166 Ibidem.

Page 90: Escravos Da Religiao

211

Quadro 2: Arranjo: Matrifocal

Proprietário: Custódio Alves Serrão (Carmelita)

Ano de Registro: 02/01/1845

?

Jesuína

Crioula

• Condicional

Francisca parda

4 anos

• Condicional

Tomásia

6 anos

•Condicional

Firmina

7 anos

•Condicional

Leonídia

9 anos •Condicional

Page 91: Escravos Da Religiao

212

Já Marcolina, não teve a mesma sorte vivenciada pelas mães das histórias acima.

Ex-escrava dos religiosos carmelitas e residente na Fazenda da Pedra, fora agraciada com

sua alforria, porém, não pudera levar à liberdade seus dois filhos, Leovigildo e Máximo,

permanecendo estes ainda em cativeiro. Mas em dezembro de 1862 – infelizmente não

sabemos quanto tempo depois de sua própria alforria – Marcolina conseguiu reunir o

pecúlio necessário – 400 mil réis – para o pagamento da manumissão dos filhos e,

finalmente, ter a família (ou, pelo menos, uma maior parte dela) unida em liberdade.167

167 2º Ofício de Notas, livro 98, p. 134 v – Arquivo Nacional (RJ).

Page 92: Escravos Da Religiao

213

Quadro 3: Arranjo: Fraternal Proprietário: Convento da Ordem Terceira do Carmo Data de registro: 20/06/1862

?

Leovigildo Máximo •Alforria paga •Alforria paga

Page 93: Escravos Da Religiao

214

Observação: A mãe, Marcolina, ex-escrava do convento, pagou pela

alforria dos filhos.

Os “arranjos matrifocais” perfazem a grande maioria dos arranjos presentes nas

cartas de alforria (como visto na tabela 3). Dos vinte e oito encontrados, vinte e um são

matrifocais (75%), sendo doze entre os escravos de senhores seculares e nove entre os

regulares. (Todos os vinte e oito arranjos encontram-se esquematizados, seja em anexo ou

no texto).

A partir das alforrias, concluímos por ora, que a família escrava existente nos

plantéis dos religiosos regulares e seculares, seguiu a tendência observada nos plantéis de

senhores laicos: a constante “ausência” da figura paterna nos documentos de liberdade,

determinando assim a “matrifocalidade” como característica dominante dessas “famílias da

religião”. Como nas alforrias analisadas o estado civil dessas mães não fora mencionado,

entendemos se tratar de uniões consensuais. Logo, a prática contrariava as recomendações

teóricas dos religiosos...

Numa outra etapa da pesquisa constatamos que a maior parte dos cativos do clero

regular tornou-se forra mediante a compra da alforria. Logo, concluímos ser esse padrão

conseqüência imediata da maior possibilidade desses escravos em reunir pecúlio, supondo

haverem conquistado uma “certa autonomia econômica” decorrente do acesso à roça de

subsistência. Isto, essencialmente, por se tratar de escravos do meio rural.

Reiterando, então, a hipótese de Hebe Mattos – segundo a qual a formação da

família era pré-condição para o usufruto da terra – e crendo, a título de exemplo, no

capítulo geral da congregação Beneditina – que afirmou o incentivo dos regulares à

inserção do escravo em uma família “legítima” – logicamente esperávamos encontrar nas

cartas de manumissão referências aos cônjuges, tendo em vista que o estado civil dos

manumissos, sobretudo para as mulheres, normalmente era registrado neste documento.

Enganamo-nos.

Havia-se chegado à metade do ano de 1859, e precisamente no dia 07 de junho, no

cartório do 3° ofício da cidade do Rio de Janeiro, era realizado o registro da “carta de

liberdade” do casal Manoel e Helena. Ambos os ex-escravos haviam pertencido ao

Page 94: Escravos Da Religiao

215

Convento Nossa Senhora do Amparo, localizado no litoral norte de São Paulo, e segundo

consta na alforria, o motivo da liberdade foi o seguinte: “(...) já tiveram oito filhos, todos

escravos do convento (...)” e por isso os cativos “julgam-se com direito a virem implorar

da caridade [dos Reverendíssimos padres] a graça de lhes concederem sua liberdade”.168 O

representante legal da instituição fez questão de evidenciar no documento que se tratava de

um cumprimento a uma Disposição Capitular do convento. Essa carta deixa evidente a

consciência que o velho casal de escravos possuía de seus direitos dentro da ordem. Tendo

conhecimento do regimento interno do convento, os cativos buscaram sua liberdade para

poderem “gozar nos últimos dias das suas vidas este benefício”.169

Quadro 4: Arranjo: Nuclear sem filhos

Proprietário: Convento Nossa Senhora do Amparo

Data de registro: 07/06/1859 Manoel • Alforria gratuita 168 3º Ofício de Notas, livro 19, p. 138 v – Arquivo Nacional (RJ). Ver no anexo 13 a transcrição integral do documento. 169 Ibdem.

Helena

• Alforria gratuita

Page 95: Escravos Da Religiao

216

Observação: O casal tem oito filhos, todos escravos do convento.

Esse registro, porém, não é apenas interessante por nos mostrar mais uma lei interna

sancionada por religiosos regulares, na qual era explícito o incentivo à família escrava, mas,

principalmente, por se tratar de um exemplo único do nosso corpus documental. No total

das 160 alforrias de escravos dos regulares, em apenas uma houve o registro de um casal

unido de acordo com os sacramentos católicos: Manoel e Helena.

Das manumissões concedidas pelos padres seculares, num total de 209, nos é

apresentado quatro casais cuja união foi abençoada pela Igreja. Dois desses casais deixaram

o cativeiro junto com seus cônjuges: Antônia e Benedito, José Ferreira Congo e Tereza

Cabinda. Os primeiros representam o único “arranjo nuclear com filhos” encontrado entre

as cartas do clero secular: o marido, a mulher e os dois filhos, Maurício e Zeferino170. Logo

no despontar do ano de 1847, quatro pessoas (quem sabe todos os membros?) de uma

mesma família, pertencentes ao reverendo padre Manoel José Alves do Vale e tendo

residência em Campo Grande, tiveram a sorte de alcançarem juntos o status de forros,

malgrado a situação de ainda servirem em vida ao dito clérigo.

170 1º Ofício de Notas, livro 46, p. 40 v., Arquivo Nacional (RJ).

Page 96: Escravos Da Religiao

217

Quadro 5: Arranjo: Nuclear com filho

Proprietário: Padre José Alves do Vale

Data de registro: 19/01/1847

Benedito

•Condicional

Maurício Zeferino

•Condicional •Condicional

Antônia

• Condicional

Page 97: Escravos Da Religiao

218

O segundo casal, Teresa Cabinda e José Ferreira Congo deixaram para trás o

cativeiro representando uma formação de “arranjo nuclear sem filho (s)”.171 Também o

único exemplo presente entre os seculares. José, idoso com 64 anos, e sua esposa Teresa, de

idade indeterminada, mas provavelmente também idosa, tiveram suas cartas de alforria

registradas em julho de 1871. Seu antigo senhor, o padre Antônio Manoel de Camargo

Lacerda, alegou para o motivo liberdade os “bons serviços” prestados pelos escravos e os

alforriou sem nenhum custo monetário.

Quadro 6: Arranjo: Nuclear sem filhos

Proprietário: Padre Antônio Manoel de Camargo Lacerda

Data de registro: 28/07/1871 José Ferreira Congo 64 anos • Alforria gratuita

171 1º Ofício de Notas, livro 80, p. 18 v. (registro de Teresa); 3° Ofício de Notas, livro 33, p. 61 v. (registro de José), Arquivo Nacional (RJ).

Tereza Cabinda

• Alforria gratuita

Page 98: Escravos Da Religiao

219

Já a escrava Joana, em junho de 1846 tinha em suas mãos o tão esperado documento

de liberdade172. Seu marido, Antônio, liberto, contribuiu muito para esta realidade, visto

que conseguiu amealhar o dinheiro necessário para tirar a esposa do cativeiro. Assim, com

400 réis pagos ao seu senhor, o vigário Francisco Lopes Barbosa, Joana pôde desfrutar sua

nova condição jurídica, a de liberta.

Por fim, temos o caso da cativa Lucinda África, alforriada junto com seu filho

Abraão ainda criança, que havia sido casada com o escravo Paulo, mas no momento da

assinatura de sua carta já se encontrava viúva. O padre Luis Gonçalves Dias Correa

alforriou Lucinda sob a condição de servi-lo em vida, alegando “fidelidade e bons serviços”

da cativa, enquanto o pequeno Abrão foi batizado livre, sem condição alguma.

172 2° Ofício de Notas, livro 77, p. 156. Arquivo Nacional (RJ).

Page 99: Escravos Da Religiao

220

Quadro 7: Arranjo: Viúva + Filho

Proprietário: Padre Luis Gonçalves Dias Correia

Ano de Registro: 25/06/1841

Abraão cria Batizado livre

Observação: Lucinda já se encontrava viúva do escavo Paulo no

momento do registro da alforria.

Lucinda África

Africana

Viúva

• Condicional

Page 100: Escravos Da Religiao

221

Portanto, esses exemplos, essas quatro histórias de famílias consideradas legítimas

pela Igreja, perfazem somente 4% dos escravos alforriados pelo clero secular. Temos então,

para um total de 370 escravos de ambos os religiosos, somente oito sendo registrados nas

cartas de manumissão como oficialmente casados.

Logo, a constatação da ausência da família legítima nas cartas de alforria nos leva a

refletir sobre duas possibilidades: sub-registro da fonte, isto é, a omissão das informações

sobre os cônjuges, tornando este documento bastante limitado para a análise dessa questão.

Ou ainda, essa “inexistência” evidencia o não cumprimento às ordenações clericais, ou seja,

corrobora a idéia de que o incentivo dos regulares e seculares não ultrapassou o plano

ideal e teórico, pelo menos em parte do século XIX, período compreendido por esta

pesquisa.

Mas antes de consideramos esta hipótese como finalizada, cabe analisar um outro

padrão que poderia incidir de forma muito significativa sobre nossos primeiros olhares para

a família escrava: o padrão etário da nossa amostra. A especificação desse padrão poderá

contribuir, ou não, para compreendermos esses incipientes resultados, que revelam uma

“ausência” da família legítima cristã entre os “escravos da religião”.

Infelizmente, em nosso banco de dados, há poucas referências às idades dos

escravos libertandos. Segundo Schwartz, “na análise das cartas de alforria nenhuma

característica dos libertos é mais difícil de se registrar e analisar do que a idade”.173

Portanto, os resultados obtidos não correspondem à maioria do corpus documental, pelo

contrário, dizem respeito a apenas 36% dos escravos. Porém, apesar de ínfimos, esses

números podem contribuir para, ao menos, termos uma idéia do padrão etário presente nas

alforrias do clero.

Como as referências às idades não são homogêneas, tendo sido registradas de

diferentes modos, dividimos a variável “idade” em três, sendo as duas primeiras “ditas”

pela fonte primária e a terceira estipulada por nós. Primeiramente, “Idade I”, na qual a

idade do cativo foi registrada de forma direta pelo responsável do mesmo; “Idade II”

quando o documento faz algum tipo de menção à idade do escravo, contudo de modo

indireto, como: “menor”, “mulatinho” (a), “pardinho” (a), “negrinho” (a), “inocente“,

173 SCHWARTZ, Stuart. Op. cit., 2001, p. 189.

Page 101: Escravos Da Religiao

222

”velho”, “idade avançada” etc. E, por fim, a variável, “Idade III”, na qual classificamos os

escravos em crianças (0-15 anos), adultos (16-45 anos) e idosos (a partir de 46 anos).

Muitos registros de liberdade não fazem nenhuma referência à idade, mas a variável

“Idade II” somada a algumas informações sobre o manumisso, permitiram a identificação,

mesmo que de forma indireta, da idade e, assim, pudemos criar a variável “Idade III”. A

metodologia utilizada foi a seguinte: consideramos como “adultos” os escravos que, por

exemplo, eram casados ou viúvos, tinham “filho ainda de peito”, ou foram avaliados com

um preço considerado bem alto para o período, como foi o caso de Augusto pardo. Este,

apesar de não ter profissão registrada, só obteve sua carta de alforria mediante o pagamento

de 2 contos de réis ao vigário José da Costa Vallim174. Logo, concluímos se tratar de um

escravo adulto, visto que provavelmente, uma criança ou um idoso teria uma avaliação

menos onerosa.

Foram classificados como “crianças”, os cativos cujas cartas de alforria trazem a

recomendação do senhor de se “batizar como livre”, ou ainda, a informação de que se trata

de um “forro de pia”. Por último, consideramos como idosos, os que têm nos documentos

de manumissão alguma menção do tipo: “bons serviços por mais de 40 (50) anos” etc. A

partir dessa metodologia, extraímos mais 42 referências à idade, ampliando, dessa forma,

nosso cabedal de especificações etárias dos escravos libertos.175

A partir dessa metodologia, o padrão etário dos libertandos eclesiásticos entre os

anos de 1840 e 1871, conforme as tabelas 5 e 5.1 em anexo, caracteriza-se da seguinte

forma: os seculares alforriaram 34% de crianças, 44% de adultos e 22% de idosos. Os

regulares, 41% de crianças, 39% de adultos e 20% de idosos. Proporcionalmente, as ordens

alforriaram igualmente crianças e adultos, possivelmente, devido ao fato da maioria desses

escravos viverem em verdadeiras comunidades agrícolas, tendo a família, mesmo

matrifocal, como característica. Já entre o clero secular os adultos foram os mais

beneficiados.

Portanto, por ora sugerimos que a maioria dos “alforriandos eclesiásticos” estava

em idade de casar, ou seja, adultos e idosos somavam a maior parte dos libertandos. E o

padrão sexual, visto no capítulo anterior, reitera essa conclusão. Apesar de no período de

174 1° Ofício de Notas, livro 88, p. 248, Arquivo Nacional (RJ). 175 Ver anexos: 5, 5.1 e 5.2.

Page 102: Escravos Da Religiao

223

vigência do tráfico, haver uma significativa diferença entre as alforrias de homens e

mulheres concedidas por regulares, após 1851, malgrado o constante predomínio do sexo

feminino nas manumissões, a diferença percentual entre os sexos torna-se bem menor,

revelando um relativo equilíbrio para ambos “os cleros”. Logo, a “ausência” de

casamentos evidenciada nos documentos de liberdade, assinados por eclesiásticos, não pode

ser relacionado ao padrão etário desses libertandos. Essa conclusão reitera a hipótese acima

levantada, de o incentivo dos eclesiásticos não ultrapassou o plano ideal e teórico.

Voltando aos arranjos, os matrifocais foram predominantes entre os “escravos da

religião”, seguindo, por sinal, a tendência laica, na qual a “ausência” do pai também é uma

constante. Numericamente, 75% dos arranjos eram formados por mãe e filho (s) (vide

tabela 3). Assim, outra questão se impõe: os pais, onde estavam? Do total de 370 alforrias

emitidas por eclesiásticos, a figura paterna foi registrada em somente cinco. Dessa forma,

supomos novamente um sub-registro documental. Mas, também, os filhos de algumas

mães, supostamente solteiras, quiçá sejam frutos de relacionamentos dessas (ex) escravas

com seus (ex) senhores, visto que no século XIX o seguimento ao celibato era pouco

comum no Rio de Janeiro.

Até mesmo nos dias atuais esse dogma do celibato ainda traz muitos incômodos à

Igreja católica. Pesquisas internas realizadas por esta própria instituição religiosa apontam

que 5.500 padres brasileiros, ou seja, 32% deles, não obedecem ao voto de castidade

imposto pelo celibato. No resto do mundo esse número chega a 150 mil eclesiásticos.176

Um caso de “má conduta sexual” de um clérigo está correndo atualmente nos tribunais

brasileiros. A pernambucana Renilda Maria da Silveira, recorreu à Justiça em novembro de

2006 com um processo de reconhecimento e dissolução do casamento contraído com base

em erro, já que ela ignorava a condição de padre de seu cônjuge, Jaime Alves de Melo. Nos

autos do processo consta a seguinte afirmação:

Que pressionando o Jaime, o porque ele fez aquilo, pois se havia o juramento de castidade feito pela Igreja, mentindo porque assumiu uma casa, uma família, tendo ele rindo dito que a “depoente era muito

176 Reportagem realizada por Alan Rodrigues In: Revista Isto é. 29 de novembro de 2006; número 1936, pp. 50-54.

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224

puritana, porque na Igreja isso era normal, porque os padres quando não tinham esposas, tinham maridos”.177 Portanto, se mesmo nos dias atuais ainda existe o desrespeito, por parte de

eclesiásticos, às regras impostas pela instituição católica, não se caracteriza como absurdo

imaginar que alguns dos “nossos alforriandos” fossem frutos de relacionamentos de seus

proprietários/padres com suas escravas.

Temos como exemplo o caso do monsenhor Antônio Pedro dos Reis. Ele aparece

em nosso banco de dados, no ano de 1852, registrando a alforria de seu escravo Cleto

Congo.178 Mas foi em seu inventário post-mortem, feito em 1878, ano de sua morte, que

pudemos conhecer mais detalhadamente sua história. Dentro deste documento encontra-se

um documento de perfilhação, no qual o monsenhor reconhece que, “por fragilidade

humana”, tivera seis filhos, não com escravas, mas com duas “pessoas livres e

desimpedidas”, D. Anna Praxedes Ferreira e D. Anna Nogueira da Luz. 179 Portanto, após

33 anos do nascimento de seu primeiro filho, o religioso reconheceu a paternidade de todos

os seis e desejou “que como tais fossem por todos reconhecidos e aceitos para gozarem de

todas as prerrogativas e vantagens que a essa condição possam ser inerentes, sucedendo-o

em todos os seus bens, direitos e ações”. Apesar de o Monsenhor Antônio não ter tido um

relacionamento com escravas, o exemplo evidencia o não cumprimento às obrigações

eclesiásticas.

Logo, histórias como essa não deviam ser incomuns no século XIX, embora não

tenhamos encontrado nenhum caso explícito de clérigos assumindo a paternidade de

crianças escravas. Mas, algumas alforrias fornecem pistas, abrem brechas a “suspeitas”. Por

exemplo, aos vinte e três de novembro de 1855 um representante do Mosteiro de São Bento

registrou o documento de liberdade “pura, gratuita e irrevogável a escrava parda de nome

Domingas”.180 Até aí seria uma carta como tantas outras passadas por esta instituição

religiosa. Porém, a alforria de Domingas parda foi a concretização do último desejo do

177 Idem, p. 52. 178 2° Ofício de Notas, livro 84, p. 185, Arquivo Nacional (RJ). 179 Inventário do Monsenhor Antônio Pedro dos Reis – Juízo de Órfãos; caixa: 3992; nº: 53; ano: 1878; Arquivo Nacional (RJ). Ver no anexo 14 a cópia integral do documento de perfilhação. 180 1° Ofício de Notas, livro 54, p. 174, Arquivo Nacional (RJ). Ver no anexo 15 a cópia integral do documento.

Page 104: Escravos Da Religiao

225

“Reverendíssimo Padre Pregador Geral Abade Frei Marcelino do Coração de Jesus”, que

no momento da morte pedira esse favor a sua Santa Comunidade. Seria errôneo imaginar

que o religioso em questão tivera como derradeira vontade a liberdade da própria filha?

Mas, apenas suposição...

Portanto, ressaltamos, ainda que de forma bastante incipiente, a pequena

repercussão da prática do projeto escravista-cristão entre os eclesiásticos católicos, assim

como percebido por Vainfas para os senhores laicos. O que se evidencia nos documentos de

liberdade é a ausência da família cristã legítima, ou seja, a família constituída sob os

preceitos teóricos e dogmáticos do catolicismo. O que podemos vislumbrar, por enquanto, é

a recorrência entre “os escravos da religião” do mesmo o que ocorria entre os pertencentes

a senhores laicos: a grande predominância da família/matrimônio consensual, ou mesmo

um sub-registro da fonte, no qual o nome de um possível cônjuge era negligenciado.

Além disso, se na teoria, a inserção do escravo do meio rural181 em uma rede

familiar parecia funcionar como um catalisador para sua liberdade, não o percebemos na

prática, visto que em 72% dos alforriados nenhuma referência familiar foi registrada.

Logo, podemos dizer, que a hipótese levantada por Hebe Matos, assim como o discurso

moral/religioso defendido pelo clero, não ultrapassou o plano ideal. Afora alguns religiosos,

como os dos exemplos acima citados, que buscavam exercer praticamente sua doutrina, a

grande maioria, concernente ao tratamento de seus cativos, agia seguindo a tendência da

“escravidão laica”.

181 Parte considerável, pouco mais da metade, dos escravos do nosso banco de dados eram residentes do meio rural.

Page 105: Escravos Da Religiao

226

Breves reflexões: A alforria condicional e o significado de liberdade

1 – Liberdades

“I see how the poor White people do. I ought to do so too, or else I am a slave”

Page 106: Escravos Da Religiao

227

Henry Adams (ex-escravo norte-americano)

Ao longo do desenvolvimento do trabalho, percebemos o quão redutora se mostra a

divisão das alforrias entre “pagas”, “gratuitas” e “condicionais”, visto que o processo

precedente à assinatura da carta era tão complexo, envolvendo os senhores, os escravos e

terceiros, que muitas vezes encontra-se numa só manumissão, traços de duas categorias,

complicando – e enriquecendo – a análise histórica.

Enfim, em nossa amostra de 370 manumissões, as alforrias condicionais perfazem

um total de 81, ou seja, 22%. Manumissões desse tipo ensejaram a busca pela compreensão

do sentido de liberdade para os ex-cativos, pois em muitas cartas, à primeira vista, a vida do

cativo não mudava de forma prática e ele continuava sob a égide do seu senhor. Então,

pretendemos analisar, mesmo que de forma ainda incipiente, o significado de uma carta

condicional para o escravo.

Para isso, desenvolveremos nesse breve texto, a temática da liberdade e seus

diferentes significados a partir de autores que já se debruçaram sobre esse tema, como:

Frederick Cooper, Thomas C. Holt e Rebecca J. Scott182, Hebe Mattos183, Eric Foner184,

Sidney Chalhoub185 e Henrique Espada.186

O livro de Cooper, Holt e Rebecca nos traz grande contribuição para o estudo dos

significados de liberdade. Esses autores partem da análise dos africanistas Igor Kopytoff e

Suzanne Miers, para analisar a díade “escravidão e liberdade”. Segundo esses dois

estudiosos, estes conceitos são fundamentalmente ocidentais e que, normalmente são

aplicados à África, porém, isso reduz o entendimento das sociedades africanas como

realmente eram. Na concepção ocidental, liberdade representa autonomia e falta de

restrições sociais. Todavia, na maior parte das sociedades africanas:

182 COOPER, Frederick, HOLT, Thomas C. & SCOTT, Rebecca J. Além da escravidão. Investigações sobre raça, trabalho e cidadania em sociedades pós-emancipação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. 183 MATTOS, Hebe. Op. cit., 1998. 184 FONER, Eric. A short history of Reconstruction – 1863-1877. Harper & Row, Publishers, New York. 185 CHALHOUB, Sidney. Op. cit., 1990. 186 ESPADA, Henrique. Sob o domínio da precariedade: escravidão e os significados da liberdade de trabalho o século XIX. In: TOPOI. Revista de História. Rio de Janeiro: Programa de Pós-graduação em História Social da UFRJ / 7 Letras, vol. 6, n°. 11, jul-dez. 2005, pp. 289-325.

Page 107: Escravos Da Religiao

228

(...) a ‘liberdade’ não está em afastar-se numa autonomia sem sentido e perigosa, mas em apegar-se a um grupo de parentesco, um patrono, um poder – um apego que ocorria dentro de um arcabouço hierárquico bem definido.(...) A antítese de ‘escravidão’ não é ‘liberdade’, no sentido de autonomia, mas sim ‘pertencer’, ‘fazer parte’.187

Segundo os autores do livro “Além da escravidão”, esses apontamentos criam

corretamente uma verdadeira tensão no esquema conceitual. Alegam, porém, que ao

contrastar um conceito de autonomia essencialmente ocidental com um africano de “fazer

parte”, os dois africanistas deixam de observar o fato de que estas noções são contestadas

em ambos os contextos. Na América do Norte, os escravos alforriados lutaram para sentir

que faziam parte, como cidadãos, sociedade (veremos isso mais a frente na análise de Eric

Foner). Por outro lado, os africanos buscaram “escapar de formas opressivas de fazer

parte”,188 com o intuito de exercer o direito de escolha entre os tipos de redes de

solidariedade as quais desejavam pertencer.189

Em todas as sociedades escravistas, os escravos buscavam um mínimo de vida

social, tanto entre seus comuns quanto entre seus senhores.

Uma das questões mais enfatizadas por esses autores é a:

(...) simples questão da liberdade não ser um estado natural, mas sim um construto social, um conjunto de valores coletivamente comuns, reforçado pelo discurso ritual, filosófico, literário e cotidiano. A liberdade tem uma história que contém noções distintas cuja própria fusão numa tradição histórica específica é tão importante quanto a tensão entre elas. (grifo nosso)

Portanto, os significados de liberdade devem ser analisados dentro de todo um

contexto histórico e social específico, que faz com que muitas vezes esses significados

187 KOPYTOFF, Igor & MIERS, Suzanne.”African ‘Slavery’ as an institution of marginality”. In Miers e Kopytoff, Slavery in: Slavery in Africa, p. 17, apud COOPER, Frederick, HOLT, Thomas C. & SCOTT, Rebecca J. Op. cit., p. 45. 188 COOPER, Frederick, HOLT, Thomas C. & SCOTT, Rebecca J. Op. cit., p. 46. 189 Ibidem.

Page 108: Escravos Da Religiao

229

sejam conflitantes. Nos trazendo a conclusão de que cada sociedade com suas histórias e

tradições definem o que é ser livre e o que é ser escravo.

Eric Foner, em trabalho que aborda o tema da Reconstrução nos Estados Unidos,

trata de forma singular a temática dos significados da liberdade para os ex-escravos norte-

americanos. Primeiramente, o autor enfatiza que o conceito de liberdade em si mesmo

tornou-se um território de conflito, pois era aberto a diversas interpretações e, até mesmo,

contraditórias: possuía diferentes significados para brancos e negros, ex-senhores e ex-

escravos190.

Para os antigos donos de escravos, o trabalho livre significava simplesmente

trabalhar em troca de um salário, além da manutenção da hierarquia entre brancos e negros.

Todavia, para os ex-escravos, a liberdade tinha denotação diferente, tendo como eixo o

acesso a diversos setores social, como: a propriedade de terras, a independência econômica,

o controle sobre a instituição religiosa, a educação, o exercício da cidadania e, sobretudo, a

autonomia familiar.

Os libertos procuravam controlar as condições de trabalho e pôr fim à subordinação

aos brancos, além de buscar uma autonomia econômica. A liberdade representava mais do

que trabalhar algumas horas por salário; almejava-se a propriedade da terra e com isso, uma

independência completa.

Buscavam praticar livremente sua religião, detendo o controle de suas igrejas. Estas

se tornaram, nos Estados Unidos, as primeiras instituições sociais completamente

controladas por negros. A educação também foi parte central para a definição de liberdade.

Os ex-escravos criaram diversas organizações de ajuda mútua com o intuito de promover a

educação básica de seus filhos.

A incessante busca pelo reconhecimento de seus direitos foi característica marcante

dos libertos norte-americanos. Em 1865, por exemplo, organizaram uma série de

mobilizações e petições, nas quais se exigia igualdade civil e direito a voto. Henry M.

Turner, um ministro negro, afirmou: “freedom meant the enjoyment of our rights in

commom with other men. If I cannot do like a white man I am not free”.191

190 FONER, Eric. Op. cit. p. 35 191 Idem, p. 36.

Page 109: Escravos Da Religiao

230

Mas, o texto de Foner deixa claro que a liberação da família da autoridade do senhor

representava um dos maiores sentidos do significado da liberdade. Embora a família

escrava sempre ter existido, os “chefes” dessas famílias não possuíam completo domínio

sobre elas, visto que viviam constantemente sob o risco da separação e não tinham

autonomia sobre o trabalho e as regras familiares.

Como visto no capítulo 3, David Brion Davis afirmou que o casamento entre os

cativos criava uma situação teórica bastante conflituosa, pois colocava em questão a noção

de posse absoluta do senhor. O matrimônio gerava uma relação contratual de autoridade e

obediência no interior de uma família, que era incompatível com o conceito de posse

absoluta dos escravos por seus senhores.192 Dessa forma, o casamento, em sua concepção

pura, iria transferir parcialmente o poder dos senhores para o “escravo-marido-pai”,

desestruturando assim o próprio conceito de escravidão.

Porém, um dos maiores representantes da religião católica, Tomás de Aquino,

sempre incentivou o matrimônio em sua obra.193 O filósofo afirmou que o casamento não

poderia ser proibido pela autoridade do senhor, pois era uma necessidade social de um

mundo pecaminoso além de ser um direito natural, mas isso não deveria enfraquecer a

suprema autoridade dos senhores ou mudar o caráter essencial da escravidão.

Dessa forma, pode-se dizer que uma das primeiras atitudes dos “chefes de famílias”,

numa clara demonstração de autonomia conquistada, foi a retirada das mulheres e crianças

do trabalho no campo. Portanto, vê-se que a emancipação fortaleceu e pré-existente família

escrava/mista194, mas também modificou as regras e as relações entre seus componentes.

Por exemplo, abriu caminho ao paternalismo que, segundo Foner, era inexistente. A

escravidão colocava a mulher e o homem num mesmo patamar de autoridade sobre a

família, mas com a abolição as diferenças de ambos os sexos ficaram bem delimitadas.

Logo, supomos, a partir do trabalho de Eric Foner, que o exercício da autonomia plena

sobre a família, era o principal significado de liberdade para os ex-escravos do sul norte-

americano.

192 DAVIS, David Brion. O problema da escravidão na cultura ocidental. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 125. 193 Idem, p. 126. 194 Sobre a questão da família mista juridicamente ver texto de Ana Lugão Rios: “A preparação ética e política para a liberdade: a última geração de escravos e senhores no Vale do Paraíba” In: RIOS, Ana Lugão & MATTOS, Hebe. Op. cit., 1998, p. 163.

Page 110: Escravos Da Religiao

231

Detendo-nos agora à historiografia brasileira, em Visões de Liberdade, Sidney

Chalhoub analisa a noção de liberdade apontada por Fernando Henrique Cardoso. Este

afirmou que somente “através de gestos de desespero e revolta e pela ânsia indefinida e

genérica de liberdade” o escravo conseguia superar sua condição natural de “coisa”. 195

Logo, podemos dizer, para Cardoso o cativo compreendia a liberdade como algo indefinido

e genérico, significando apenas a vida fora do cativeiro e sua inserção na sociedade.

Algumas décadas depois, num contexto bastante diverso e já pautado em novas

tendências e descobertas historiográficas, Chalhoub afirmou que a liberdade poderia

representar para os escravos a esperança de autonomia de movimento e de maior segurança

na constituição das relações afetivas. Não apenas a liberdade de ir e vir conforme a oferta

de mercado, mas a “possibilidade de escolher a quem servir ou de escolher não servir a

ninguém”.196 Enfim, o autor chega à conclusão de que a liberdade, em verdade,

desdobrava-se em liberdades e estas poderiam ter significados e sentidos bem opostos uns

dos outros.

Segundo Florentino, “a noção de liberdade manejada pelos escravos confundia-se

com a possibilidade de, em graus diversos, dispor de si”.197 Os cativos procuravam dispor

de si dentro da rotina do cativeiro, na medida em que associavam a liberdade a “pequenas

conquistas tendentes a alargar sua autonomia na escravidão”. Portanto, aqueles

desdobramentos de liberdade poderiam significar para o cativo até mesmo um sentido de

liberdade praticado ainda no cativeiro.

Hebe Mattos, num livro em que aborda os significados da liberdade na região

sudeste do Brasil, percebeu que a família esteve diretamente ligada ao significado de

liberdade tanto para os escravos como para os ex-escravos e configurava-se como “capital

social básico”.198 Conforme a autora, os laços familiares permitiam a reprodução de uma

experiência de liberdade construída em oposição à escravidão.

Hebe Mattos afirma que, assim como a mobilidade espacial, a família nuclear e a

rede de relações pessoais e familiares continuaram essenciais na vida dos libertos e dos

escravos. E para estes, a “obtenção de maiores níveis de autonomia dentro do cativeiro

195 CARDOSO, Fernando Henrique. Apud CHALHOUB, Sidney. Op. cit., 1990. 196 CHALOUB, Sidney. Op. cit., 1990, p. 80. 197 FLORENTINO, Manolo. Op. cit., 2002, p. 14. 198 MATTOS, Hebe. Op. cit., 1998, p. 178.

Page 111: Escravos Da Religiao

232

parece ter dependido, em grande parte, das relações familiares e comunitárias que

estabeleciam com outros escravos e homens livres da região”.199 Como já visto no capítulo

anterior, Mattos afirma que o casamento ou a união consensual poderia representar para o

escravo, interações com uma família e com a região onde vive, deixando dessa forma, a

condição de ser um estranho à comunidade.

Henrique Espada desenvolveu um estudo sobre a experiência do trabalho livre na

cidade de Desterro, no século XIX. O autor utilizou os “contratos de locações de serviços”

como seu principal objeto de pesquisa. Nestes contratos, Espada percebeu que na maioria

dos casos os libertos continuaram servindo como escravos. Portanto, superaram o mundo

do trabalho forçado, mas entraram num mundo de uma liberdade frágil, uma liberdade sem

proteção, que os levavam a aceitar contratos que não mudavam significativamente o seu

modo de vida e, de certa forma, continuaram sendo “forçados” a trabalhar, visto que

enfrentavam agora a face sombria da liberdade, ou seja, a necessidade, a fome.200

Conforme Espada, a contraposição que parece auto-evidente, a oposição radical

entre trabalho escravo e liberdade de trabalho, é carregada de ambigüidade.201 Visto que em

termos ideais, “o mundo do trabalho livre supõe: liberdade de escolha, ausência de coerção

para o trabalho, capacidade de mobilidade dos trabalhadores, impessoalidade na relação

patrão/empregado202” etc. No entanto, essa configuração é bastante ilusória. Admitir essa

oposição pura e simples nos conduziria a interpretar de maneira viciada, traduzida na leitura

das sociedades escravistas em termos evolucionistas.

Vejamos um exemplo de acordo firmado nos contratos de trabalho estudados por

Espada: Thereza, africana de 25 anos, contraiu, com Dona Filisberta Coriolana de Souza

Passos, uma dívida de cem mil réis para completar o valor de sua alforria. Em pagamento

dessa quantia, a ex-escrava comprometia-se a dedicar 25 anos de sua vida em serviço para

Dona Filisberta, agindo “como se fora sua cativa”, em troca, sua patroa assumia o

compromisso de vesti-la, sustentá-la e tratá-la em caso de doença.203

199 Idem, pp. 64 e 65. 200 ESPADA, Henrique. Op. cit., 2005, passim. 201 Idem, p. 5. 202 Idem, p. 6. 203 “Escriptura de loucação de serviços que faz a preta liberta Thereza, a Dona Filisberta Coriolana de Souza Passos”, In Livro 12 do 2º Ofício de Notas da Cidade do Desterro (1849), fls. 10 e 10v. Apud ESPADA, Henrique. Op. cit., 2005, p. 12.

Page 112: Escravos Da Religiao

233

Ao longo do Oitocentos, foram assinados diversos acordos semelhantes a este. A

maioria exigia do trabalhador uma postura, perante o patrão, de praticamente escravo.

Olhados assim friamente, os contratos de locação de serviço, parecem uma continuidade da

escravidão, um acordo imposto de cima para baixo. Porém, analisando com cautela e tendo

os conceitos de Giovanni Levi como sua base teórica, Espada afirma que os contratos

apontam para uma negociação ativa entre as partes – os ex-escravos e os contratantes dos

serviços.

Do livro “A herança imaterial”, de Giovanni Levi, retiramos dois conceitos que

servem como arcabouço teórico deste trabalho: estratégia e rede.

O relativo esgotamento das abordagens macro-analíticas, inaugurando um período de

revisões na forma de encarar a construção histórica, permitiu resgatar a sociedade pensada

como a soma de indivíduos que estabelecem relações e formam redes que interagem entre

si sem, contudo, negar por completo as estruturas. A liberdade do homem passa, então, a

ser vislumbrada através do resgate de suas práticas e estratégias.

O pressuposto de que as estruturas sociais são, na verdade, um conjunto de redes

estabelecidas pelos indivíduos a partir, até certo ponto, de seus próprios desejos e

interesses, é essencial para o trabalho. Levi empregou o conceito de rede como as relações

de consangüinidade ou de aliança e parentesco fictício. Redes, como as frentes familiares

em sua luta pela sobrevivência e pelo poder, são “os mecanismos protetores da caridade e

da clientela e uma certa rede de amizades, vínculos e proteções”.204

Levi utilizou o conceito de estratégia para analisar as relações estabelecidas pelos

habitantes de Santena no universo agrário que os cercava. Ele visou compreender os

comportamentos dos personagens analisados, ponderando a incerteza subjacente a toda

ação social, uma vez que o resultado de uma ação depende das ações paralelas, ou da

relação de outros indivíduos. Isto faz com que vejamos os personagens, em nosso caso os

escravos e seus senhores, enquanto sujeitos dinâmicos, construtores de diversas estratégias.

E estas como ações norteadas por uma noção de valores, cercadas por limitações, resultado

da interação racional do indivíduo com seu meio.

204 LEVI, G. A Herança Imaterial: trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000; p. 96.

Page 113: Escravos Da Religiao

234

O autor percebeu as estratégias familiares em relação à mercantilização da terra, dando

o peso das relações interpessoais nas transações econômicas. Sua conclusão:

O objetivo não era somente o de enfrentar a natureza e a sociedade, correndo o menor número de riscos possível, mas o esforço contínuo de melhorar a previsibilidade dos fatos, de evitar a fatalidade de um mundo de famílias ou de indivíduos isolados, para desenvolver ativamente uma política de relações que desse frutos permanentes de relativa segurança, sobre os quais construir uma dinâmica social e um crescimento econômico.205 (grifo nosso)

Dessa forma, aplicando em sua pesquisa os conceitos de estratégia e previsibilidade,

Henrique Espada chega a conclusão, que: Transformar a escravidão em um contrato para o pagamento de uma dívida significava também a tentativa de garantir de algum modo a continuidade de uma ocupação que garantisse a subsistência e uma menor incerteza frente ao futuro. A compensação pecuniária desse trabalho – como sugerem, na verdade, os próprios contratos – era certamente subordinada a essa condição.206 (grifo nosso)

Aos recém libertos havia uma perspectiva não muito promissora dos significados

positivos da noção de liberdade, como o acesso à propriedade, um trabalho compensado

monetariamente, autonomia plena. Ao contrário tinham a certeza de que encontrariam um

mundo livre repleto de incertezas e precariedades. Portanto, os ex-escravos que se

submetiam aos contratos de locação, optavam por escolher uma certa estabilidade do

trabalho, capaz de prover uma subsistência apropriada e estável, em detrimento de ganhos

estritamente pecuniários.207 Logo, pode-se dizer, que a redução da incerteza era um dos

motores que propulsava as ações e decisões humanas.

205 LEVI, Giovanni. Op. cit., 2000, p. 167. 206 ESPADA, Henrique. Op. cit., 2005, p. 14. 207 Idem, passim.

Page 114: Escravos Da Religiao

235

2 – Liberdades e Alforrias condicionais

Vejamos neste momento uma breve análise das manumissões condicionais,

fragmento do nosso objeto de pesquisa, que são as alforrias concedidas por clérigos

católicos no Rio de Janeiro.

Diante da necessidade da divisão taxonômica, a carta condicional mostra-se como a

mais complexa de se “enquadrar”. Logo, acreditamos, a mais instigante para o historiador.

Cabe-nos explicar brevemente a metodologia utilizada para a classificação das cartas de

alforria.

Como visto no primeiro capítulo, consideramos como manumissões condicionais as

que exigiam do escravo o cumprimento de certas atividades estabelecidas pelos senhores.

Esse tipo de carta poderia ser acordado de diversas maneiras. Por exemplo: o escravo devia

servir ainda por um determinado período, variando entre meses e décadas; servir ao senhor

durante toda a vida deste ou a alguém por ele designado (além de ter, em alguns casos, de

arcar com o funeral e missas pela alma do senhor); realizar trabalhos, como garçom,

costureiro em algum período do ano; exercer funções militares, etc. Essa categoria, por

situar o ex- escravo numa situação ambígua na qual se vê, aos nossos olhos, livre e cativo

ao mesmo tempo, mostra-se como a mais difícil de se enquadrar na divisão, logo, a mais

instigante de se estudar.

Enfim, do total da nossa amostra documental, as alforrias condicionais somam 81

cartas, ou seja, 22 %. Apesar de numericamente inferiores, essas cartas fornecem histórias

inusitadas e instigantes ao estudo. Vejamos alguns exemplos.

Em novembro de 1851 o padre Leonardo José da Costa registrou a alforria de

Mateus José Crioulo. A manumissão foi motivada pelos bons serviços prestados pelo

escravo, não exigindo nenhuma condição deste, nem mesmo pagamento monetário. No

Page 115: Escravos Da Religiao

236

entanto, o senhor escreveu no documento o seguinte “pedido”: “(...) espero que o dito

escravo continue a me acompanhar”.208

Já, o frei Custódio Alves Serrão, bacharel e diretor do Museu Nacional, registrou

em cartório, em julho de 1844, a carta de liberdade de Maria Cabinda, de vinte e seis anos,

e da pequena Angélica parda, de dois anos, filha de Maria. Ambas foram alforriadas sob a

condição de prestação de serviços (o documento não fornece o tempo da condição) além da

seguinte observação: “(...) deverão continuar servindo, e o senhor poderá sublocar os

serviços dentro do município”.209 Além disso, o documento registra que as escravas

servirão “por alimentação, vestuário etc”.

Voltando às situações descritas, no primeiro caso, Mateus José Crioulo foi libertado

gratuitamente, não obstante seu senhor almejar que ele retribuísse esse gesto com sua

companhia, ou seja, esperava que ele permanecesse servindo-o como sempre. No segundo

caso a peculiaridade é mais explícita: Maria Cabinda teria de continuar servindo por

período indeterminado ao frei e a possíveis locadores. Enquanto o (ex) senhor continuaria a

lucrar, com a locação da (ex) escrava e, futuramente, da pequena Angélica. Dessa forma,

podemos supor que a alforria não mudou de forma prática a vida da escrava Maria

Cabinda e de seu dono Custódio. Todavia, isso não descaracteriza a importância da carta

como “divisor de águas” na vida das duas escravas.

A partir de alforrias como esta, surgiu a necessidade de, ao menos tentar, entender o

significado de liberdade para os manumissos condicionais, visto que em muitas cartas

parecia que a vida do cativo não mudava de forma prática e ele continuava sob a tutela do

seu senhor. Então, pretendemos analisar, mesmo que de forma incipiente, o significado de

uma carta condicional para o escravo, ou seja, em última instância, qual a representação de

liberdade contida naquela carta do ponto de vista do escravo.

Com relação às cartas de alforria condicionais, podemos dizer, que ocorria um

processo semelhante aos contratos de locações de serviços. Apesar de a primeira vista

parecer uma imposição do senhor, seu processo vinha carregado de estratégias forjadas

pelos próprios escravos. Estes, suponhamos, buscavam nas cartas condicionais – assim

208 1º Ofício de Notas, livro 51, p. 81 – Arquivo Nacional (RJ). 209 3º Ofício de Notas, livro 7, p. 75 – Arquivo Nacional (RJ).

Page 116: Escravos Da Religiao

237

como os libertos que assinavam contratos de locação de serviço, estudados por Espada –

uma redução da imprevisibilidade que envolvia a perspectiva dos recém-libertos.

Segundo Espada, os libertos viviam sob a ameaça da “individualidade”. Esta poderia

se mostrar maior que o próprio cativeiro, visto que a coerção ao trabalho seria substituída

pela nova realidade da “desfiliação social”, da coerção da miséria.210 Logo, partindo dessa

mesma idéia, as alforrias condicionais não representavam necessariamente a manutenção da

condição de escravidão ou, mesmo, num consentimento passivo por parte dos ex-escravos.

Acreditamos que eram resultados de uma negociação ativa, envolta de ações estratégicas,

com vistas à diminuição das incertezas provenientes da tão esperada liberdade.

Retornando aos autores Frederick Cooper, Thomas C. Holt e Rebecca J. Scott,

devemos admitir a existência de diferentes significados de liberdade. E o que, a princípio,

nos parece simples continuidade do cativeiro, para os libertos condicionais, possivelmente,

representava a segurança do “pertencimento”; a liberdade para eles poderia ser a garantia de

continuar mantendo vínculos sociais e a certeza de ter uma subsistência adequada e um certo

amparo em caso de enfermidade, como foi o caso, acima descrito, da ex-escrava Maria

Cabinda e sua filha Angélica.

Logo, numa perspectiva de resgate do indivíduo, este trabalho parte da idéia de que

os escravos não eram agentes cujas práticas eram determinadas exclusivamente pela

dinâmica escravista ou por uma lógica absolutamente econômica. Eram, isto sim, autênticos

agentes históricos, capazes de criar estratégias e inserir-se em redes sociais que o ajudavam

a viver melhor no regime escravista ou, até mesmo, concorriam para o alcance da esperada

liberdade.

Por fim, essas primeiras análises sobre os significados da liberdade para os escravos

alforriados condicionalmente ainda são superficiais. Ainda nos resta muito a pesquisar e

estudar sobre os escravos e alforriandos eclesiásticos, além de suas relações com seus

proprietários e interações com o catolicismo. Essas questões constituem um bom material

para um trabalho de doutorado que pretendo realizar brevemente.

210 ESPADA, Henrique. Op. cit., 2005, p. 16.

Page 117: Escravos Da Religiao

238

Considerações finais

Com o intuito de contribuir para um estudo específico da escravidão ministrada por

religiosos católicos na cidade do Rio de Janeiro, esse trabalho, que por ora se encerra,

identificou alguns padrões das alforrias concedias por eclesiásticos, como tipo, naturalidade

e padrão sexo-etário. Estes padrões permitiram-nos vislumbrar algumas peculiaridades

inerentes à escravidão exercida por este grupo restrito de senhores.

Percebemos, assim, que tais peculiaridades não se apresentam de forma homogênea

nos “dois tipos” de clero. Notamos, portanto, a fragilidade de se analisar a escravidão

exercida pelo clero católico concebido como um segmento único, face à existência de “dois

cleros” no interior de um mesmo grupo religioso, agindo de forma diferenciada no que

concerne à escravidão. Identificamos não só padrões diferentes, mas também opostos,

convencendo-nos da necessidade de uma análise específica para cada um deles.

Page 118: Escravos Da Religiao

239

Vimos, a partir da comparação com o valor médio das alforrias em geral, que as

pagas pelos escravos do clero custavam menos que as emitidas por senhores leigos. Dessa

forma, sugerimos que os religiosos preservaram uma antiga tradição: a de deixar o cativo

pagar por sua manumissão o preço de sua compra, apesar da maximização de seu valor.

Assim, vislumbramos um provável “desejo” de manutenção das tradições e

costumes que nortearam a ideologia e atos da milenar Instituição Católica, mesmo a

despeito das mudanças introduzidas pelo desenvolvimento do capitalismo. Talvez, isso

pudesse representar para os religiosos a vontade de manter os costumes em uma sociedade

na qual os “interesses” sobrepunham-se cada vez mais rápido às “paixões”.

Também analisamos, ainda que de forma incipiente, a pequena repercussão da

prática do projeto escravista-cristão entre os eclesiásticos católicos, assim como percebido

para os senhores laicos. O que se evidencia nos documentos de liberdade é a ausência da

família cristã legítima, ou seja, a família constituída sob os preceitos dogmáticos do

catolicismo. Logo, supomos a recorrência entre “os escravos da religião” da mesma

situação ocorrida entre os pertencentes a senhores laicos: a grande predominância da

família/matrimônio consensual.

Com base na análise das cartas de alforria emitidas em algumas décadas do século

XIX, podemos afirmar que o incentivo da Igreja à formação da “verdadeira família cristã”

entre os escravos ficou restrito à teoria dos tratados morais e dos Capítulos das ordens

religiosas.

Enfim, na última parte dessa dissertação discorremos brevemente sobre os

diferentes significados de liberdade para senhores e escravos. A partir daí, fizemos uma

análise sobre a questão da alforria condicional e chegamos à conclusão de que esta não

representava uma simples continuidade do cativeiro, já que poderia garantir a manutenção

de vínculos sociais e a certeza, para o alforriando, de ter uma adequada subsistência e

amparo em casos de necessidade.

Encerramos este trabalho com a convicção de que a complexidade das questões que

lhe constituem objeto demanda ainda pesquisa e estudo mais abrangentes. Indispensável

mais amplo cabedal de fontes: maior número de alforrias e inventários bem como registros

de batismo e casamento, além de uma maior amplitude no recorte temporal. Dessa forma,

Page 119: Escravos Da Religiao

240

poderemos adentrar mais confiantes no âmbito da teoria católica e sua conseqüente relação

com o universo escravista.

Anexos Anexo 1: Distribuição dos tipos de alforrias (1840-1850)

PAGA

GRÁTIS

CONDICIONAL

TOTAL 2

CLERO # % # % # % # %

SECULAR 16 17 49 54 26 29 91 100

REGULAR 19 45 10 24 13 31 42 100

TOTAL 1 35 26 59 45 39 29 133 100

Anexo 1.1: Distribuição dos tipos de alforrias (1851-1871)

PAGA

GRÁTIS

CONDICIONAL

TOTAL 2

CLERO # % # % # % # %

SECULAR* 28 23 62 50 34 27 124 100

Page 120: Escravos Da Religiao

241

REGULAR 61 53 47 40 8 7 116 100

TOTAL 1 89 37 109 45 42 18 240 100

* No ano de 1860 há uma carta identificada como “ratificação” no clero secular que não foi incluída na contagem. • Três cartas registradas como “cumpriu” foram consideradas, nesse trabalho, como tipo “condicional” sendo duas para o regular e uma para o secular. Anexo 2: Distribuição do número de alforriandos inseridos ou não em redes familiares:

1840-50

SOLITÁRIO APARENTADO ARRANJO TOTAL 2

CLERO

# % # % # % # %

REGULAR 26 60 4 10 13 30 43 100

SECULAR 57 72 7 8 16 20 80 100

TOTAL 1 83 68 11 9 29 23 123 100

Fonte: Livros de registros de notas do primeiro, segundo e terceiro ofícios do Rio de Janeiro, Arquivo Nacional (RJ).

Page 121: Escravos Da Religiao

242

Anexo 2.1: Distribuição do número de alforriandos inseridos ou não em redes familiares:

1851-71

SOLITÁRIO APARENTADO ARRANJO TOTAL 2

CLERO

# % # % # % # %

REGULAR 88 74 15 13 15 13 118 100

SECULAR 95 73 6 5 29 22 130 100

TOTAL 1 183 74 21 8 44 18 248 100

Fonte: Livros de registros de notas do primeiro, segundo e terceiro ofícios do Rio de Janeiro, Arquivo Nacional (RJ).

Page 122: Escravos Da Religiao

243

Anexo 3: Esquematização dos arranjos familiares

Anexo 3.1: Arranjo: Matrifocal

Proprietário: Custódio Alves Serrão (Carmelita)

Ano de Registro: 23/12/1844

Page 123: Escravos Da Religiao

244

Anexo 3.2: Arranjo: Matrifocal

Proprietário: Custódio Alves Serrão (Carmelita)

Data de Registro: 05/12/1845

Maria Cabinda

• Condicional

Angélica Parda

• Condicional

Page 124: Escravos Da Religiao

245

Anexo 3.3: Arranjo: Matrifocal

Proprietário: Mosteiro de São Bento

Joana Cabinda

20 anos

• Condicional

Eulália Parda

1 ano e 8 meses

• Condicional

Page 125: Escravos Da Religiao

246

Data de Registro: 25/10/1845

Anexo 3.4: Arranjo: Fraternal

Brígida

• Alforria paga

Filha por batizar

• Alforria paga

Page 126: Escravos Da Religiao

247

Proprietário: Padre Agostinho José da Silva

Data de Registro: 15/10/1845

Thomas Pardo

Isabel Crioula

• Alforria gratuita

Page 127: Escravos Da Religiao

248

• Alforria gratuita Observação: mãe, Maria Benguela

Anexo 3.5: Arranjo: Matrifocal

Proprietário: Padre João Coelho

Data de Registro: 30/10/1847

Severinda Rebolo

• Alforria gratuita

Page 128: Escravos Da Religiao

249

•Pai: Manoel Gongo.

* O Proprietário a libertou, pois ela iria casar.

Anexo 3.6: Arranjo: Matrifocal

Proprietário: Mosteiro de São Bento

Data de registro: 04/03/1948

Anastácia Crioula*

• Alforria gratuita

Maria Crioula

• Alforria gratuita

Sofia Crioula

• Alforria paga

Page 129: Escravos Da Religiao

250

Anexo 3.7: Arranjo: Matrifocal

Proprietário: Padre João Coelho

Data de registro: 15/03/1848

José Crioulo

• Alforria paga

Firmina

• Condicional

Page 130: Escravos Da Religiao

251

Prudenciano Carlos Félix

•••• Condicional •••• Condicional •••• Condicional

Anexo 3.8: Arranjo: Matrifocal Proprietário: Padre Antônio Joaquim de Souza Data de registro: 27/05/1851

Prudenciana

• Condicional

Page 131: Escravos Da Religiao

252

Anexo 3.9: Arranjo: Matrifocal Proprietário: Padre Jacinto Pires Lima

Joaquina Parda

• Alforria paga

Polucena

• Alforria paga

Generosa

• Alforria paga

Page 132: Escravos Da Religiao

253

Data de registro: 20/04/1852

Anexo 3.10: Arranjo: Matrifocal Proprietário: Padre Manoel Caetano de Almeida

Balbina Parda

• Alforria gratuita

Inocente Pardo

• Alforria gratuita

Page 133: Escravos Da Religiao

254

Data de registro: 15/04/1852

Augusto

•Alforria • Alforria gratuita

Anexo 3.11: Arranjo: Matrifocal

Proprietário: Convento São João Bernardino

Maria do Rosário

• Alforria gratuita

Contildes

• Alforria gratuita

Cristina

• Alforria gratuita

Maria

• Alforria gratuita

Page 134: Escravos Da Religiao

255

Data de registro: 02/05/1853

Filho recém- nascido •Alforria gratuita

Apolinária

• Alforria paga

Page 135: Escravos Da Religiao

256

Anexo 3.12: Arranjo: Matrifocal

Proprietário: Padre Reginaldo José Antunes

Data de registro: 14/02/1853

Constância

Cabinda

• Alforria paga

Carolina Crioula

• Alforria paga

Page 136: Escravos Da Religiao

257

Anexo 3.13: Arranjo: Matrifocal

Proprietário: Vigário Francisco Lopes Barbosa Data de registro: 21/12/1855

Rita Nação

• Condicional

Page 137: Escravos Da Religiao

258

Firmino Felipe

• Condicional • Condicional

Anexo 3.14: Arranjo: Matrifocal

Proprietário: Padre Joaquim Duarte Nunes

Data de registro: 15/08/1855

Ana Rebola

• Condicional

Page 138: Escravos Da Religiao

259

Anexo 3.15: Arranjo: Matrifocal Proprietário: Padre Joaquim Duarte Nunes Data de registro: 15/08/1855

Maria Crioula

• Condicional

Maria Crioula

• Condicional

Page 139: Escravos Da Religiao

260

Anexo 3.16: Arranjo: Matrifocal

Proprietário: Mosteiro de São Bento

Data de registro: 31/07/1856

Emiliana Crioula

• Condicional

Rogéria Crioula

• Alforria Paga

Page 140: Escravos Da Religiao

261

Balbino pardo • Alforria paga

Anexo 3.17: Arranjo: Matrifocal

Proprietário: Mosteiro de São Bento

Data de registro: 17/05/1859

Eufénia

• Alforria paga

Page 141: Escravos Da Religiao

262

Observação: Pai, Laurindo, ainda escravo.

Anexo 3.18: Arranjo: Matrifocal Proprietário: Padre Francisco de São José Vila Real Data de registro: 25/11/1859

Blandina

• Alforria paga

Polucena

• Condicional

Page 142: Escravos Da Religiao

263

Alex Antônio

• Condicional • Condicional

Anexo 3.19: Arranjo: Matrifocal Proprietário: Cônego José Antônio da Costa Velincas Data de registro: 26/08/1860

Cântida

• Condicional

Joaquina de

Nação

• Alforria paga

Page 143: Escravos Da Religiao

264

Anexo 3.20: Arranjo: Fraternal Proprietário: Convento da Ordem Terceira do Carmo Data de registro: 18/04/1864

Filha

• Alforria paga

Page 144: Escravos Da Religiao

265

Manoel Inocêncio

• Alforria paga •Alforria paga Observação: Mãe, ainda escrava do convento, pagou a alforria com a ajuda de um benfeitor.

Anexo 3.21: Arranjo: Matrifocal Proprietário: Padre Bernardo Antônio Lima Velasco Data de registro: 19/11/1870

Maria Crioula

• Condicional

Page 145: Escravos Da Religiao

266

Irmina

• Condicional

Page 146: Escravos Da Religiao

Anexo 4: Comparação da porcentagem de parentes ou não no interior do mesmo clero e porcentagem do clero em geral (1840-1871):

INSERIDOS EM REDE DE PARENTESCO

SOLITÁRIOS TOTAL 2 CLERO

# % # % # %

REGULAR 47 29 114 71 161 100

SECULAR 57 27 152 73 209 100

TOTAL 1 104 28 266 72 370 100

• Documento não faz menção a parentesco algum. Fonte: Livros de registros de notas do primeiro, segundo e terceiro Ofícios do Rio de Janeiro - 1840/1871, Arquivo Nacional (RJ).

Page 147: Escravos Da Religiao

14

Anexo 5: Distribuição do padrão sexo-etário dos alforriandos do clero regular da cidade do Rio de Janeiro – 1840 -1871.

CRIANÇAS ADULTOS IDOSOS TOTAL 2

SEXO # % # % # % # %

MULHERES 18 37 26 53 5 10 49 100

HOMENS 13 48 4 15 10 37 27 100

TOTAL 1 31 41 30 39 15 20 76 100

Fonte: Livros de notas do primeiro, segundo e terceiro Ofícios do Rio de Janeiro – 1840/1850, Arquivo Nacional (RJ).

Anexo 5.1: Distribuição do padrão sexo-etário dos alforriandos do clero secular da cidade do Rio de Janeiro – 1840 -1871.

CRIANÇAS ADULTOS IDOSOS TOTAL 2

SEXO # % # % # % # %

MULHERES 12 34 17 49 6 17 35 100

HOMENS 8 33 9 38 7 29 24 100

TOTAL 1 20 34 26 44 13 22 59 100

Page 148: Escravos Da Religiao

15

Fonte: Livros de notas do primeiro, segundo e terceiro Ofícios do Rio de Janeiro – 1840/1850, Arquivo Nacional (RJ).

Anexo 5.2: Distribuição do padrão etário a partir da idade bruta registrada nas manumissões concedidas pelo clero regular e secular da cidade do Rio de Janeiro – 1840 –1871:

CRIANÇAS ADULTOS IDOSOS TOTAL 2

SEXO # % # % # % # %

REGULAR 26 47 22 39 8 14 56 100

SECULAR 11 28 18 46 10 26 39 100

TOTAL 1 37 39 40 42 18 19 95 100

Page 149: Escravos Da Religiao

16

Anexo 6: Registro de alforria de João Cabinda – 2º Ofício de Notas; livro 73; p. 323v;

20/09/1843:

“Digo eu abaixo assinado que sou senhor e possuidor de um escravo de nome João

de nação Cabinda e, porque este me tem servido bem, não como escravo, mas como bom

amigo e bom cristão lhe dou de hoje para sempre plena liberdade e, peço à Justiça de Sua

Majestade, que supram qualquer falta que nesta possa haver e sirva de carta de liberdade

que de minha livre vontade lhe concedo. Rio de Janeiro, vinte e três de julho de 1843.

Cônego José Álvares Couto.”

Anexo 7: Registro de alforria de Caetano de Jesus Maria – 2º Ofício de Notas; livro 81; p.

169v; 03/09/1849:

“Eu abaixo assinado declaro que possuo um pardinho por nome Caetano de Jesus

Maria de idade de um ano que lhe dou a sua liberdade com condição de me acompanhar

enquanto eu viva for e, morta eu ele gozará de sua liberdade sem condição alguma nem

impedimento e, para maior clareza passo este somente por mim assinado. Rio de Janeiro,

três de setembro de 1849. Madre Maria de Jesus”.

Anexo 8: Registro de alforria de Joaquim Pinto de Gouveia - 2º Ofício de Notas; livro 94;

p. 18; 30/07/1859:

Page 150: Escravos Da Religiao

17

“O Padre Mestre Frei Luis da Conceição Saraiva D. Abade atual do Mosteiro de São

Bento do Rio de Janeiro. Por este Nosso Alvará damos liberdade pura e irrevogável ao

nosso escravo Joaquim Pinto de Gouvêa, pardo com vinte e três anos de idade, pouco mais

ou menos, Oficial de Barbeiro, nascido em nossa Fazenda de Campos, atualmente

empregado no serviço do Mosteiro, por havermos recebido a quantia de um conto de rei,

conforme foi deliberado em Conselho, nós obrigamos por nós e pelos nossos sucessores, a

fazer-lhe esta sua liberdade boa, e de paz pacífica, tirando-o de qualquer dúvida que a seu

respeito se possa mover, para que de hoje em diante, goze desta liberdade como se nascera

de ventre livre. Dado e passado neste Nosso Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro sob o

sinal e selo dele, aos cinco de abril de 1859”.

Anexo 9: Registro de alforria de Felicidade crioula – 3º Ofício de Notas; livro 10; p. 146v;

04/08/1852:

“Digo eu Dona Joana Francisca Nobre na qualidade de inventariante e testamenteira

e herdeira do finado padre João de São Boaventura Cardoso, que tendo o mesmo finado

deixado forra em testamento a escrava Felicidade, crioula, com a condição de servir-me

pelo espaço de cinco anos, declaro que desisto dos mesmos serviços, e lhe dou a plena

liberdade de hoje para sempre como se de ventre livre tivesse nascido, e rogo às Justiças de

Sua Majestade Imperial hajam de lhe dar o seu cumpra-se, e por não saber ler nem escrever

pedi ao senhor Francisco José Pereira que isto por mim fizesse e a meu rogo assinasse. Rio

de Janeiro, trinta e um de julho de 1852”.

Page 151: Escravos Da Religiao

18

Anexo 10: Registro de alforria de Presciliana – 3º Ofício de Notas; livro 32; p. 15v;

23/08/1870:

“Eu abaixo assinado declaro que tendo incluído em legado deixado pela finada

Senhora Dona Inocência Angélica da Conceição o usufruto dos serviços de sua escrava

Presciliana parda de 20 anos de idade com a cláusula de ficar a mesma livre depois de

minha morte, recebi da dita parda Presciliana a quantia de 700 mil réis por mão de sue

protetor o Ilustríssimo Senhor Doutor Castro pela cessão (sic) ou renúncia deste legado, a

fim de que entre ela desde já no pleno gozo e posse de sua liberdade, omitindo pois de mim

os direitos que tenho a tais serviços, constituo a referida parda Presciliana minha

procuradora em causa própria para defender em qualquer tempo perante quaisquer Juízos

ou Tribunais os seus direitos de liberdade de isenção dos serviços que a mim estava

obrigada. Rio de Janeiro, oito de setembro de 1870. Padre Francisco Manoel Marques

Pinheiro”.

Anexo 11: Registro de alforria de Teodora Monjola – 2º Ofício de Notas; livro 88; p. 115;

24/10/1854:

“Pela presente damos plena e geral liberdade a escrava Theodora de Nação Monjola,

do serviço de Nosso Convento por termos recebido outra em seu lugar e pelos bons

serviços prestados, cuja liberdade gozará de hoje em diante como se livre tivesse nascido. E

para constar se lhe passou a presente passada neste Convento de Nossa Senhora da

Conceição da Ajuda, e selada com o selo da comunidade. Rio de Janeiro, 18/10/1854.”

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19

Anexo 12: Registro de alforria de Honorata cabra – 2º Ofício de Notas; livro 89; p. 104v;

06/07/1855:

“Pela presente damos plena e geral liberdade a escrava Honorata cabra natural de

Macacu (?), do serviço de Nosso Convento por termos recebido outra em seu lugar e pelos

bons serviços prestados, cuja liberdade gozará de hoje em diante como se livre tivesse

nascido. E para constar se lhe passamos a presente passada neste Convento de Nossa

Senhora da Conceição da Ajuda, e selada com o selo da comunidade. Rio de Janeiro,

1/07/1855.”

Anexo 13: Registro de alforria do casal Manoel e Helena – 3º Ofício de Notas; livro 19; p.

138v; 07/06/1859:

“Reverendíssimos senhores Padres Ministro Provincial e mais Padres da Mesa

Definitora. Os escravos Manoel e Helena, casados e pertencentes ao Convento de Nossa

Senhora do Amparo, do bairro de São Sebastião, tendo prestado ao Convento serviços que

podem ser atestados por seus senhores Padres Guardiões d’aquele Convento e contando já

de idade mais de cinqüenta anos, nos [?] tem tido oito filhos, todos escravos do Convento,

julgam-se com direito a virem implorar da caridade de Nossas Reverendíssimas a graça de

lhes concederem sua liberdade, para que possam gozar nos últimos dias das suas vidas este

benefício, por que tanto suspiram, por isso humildemente: pedem a Nossas

Reverendíssimas a esmola que pretendem. Espera receber mercê. Atendendo ao que alegam

os suplicantes e seguindo a disposição da Lei Capitular, concedemos-lhes gratuitamente a

liberdade que pedem, para o que o Nosso Irmão Síndico Geral, lhe mandará passar as

respectivas cartas. Vinte e três de maio de 1859. Frei Coração de Maria Almeida”.

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20

Anexo 14: Documento de Perfilhação extraído do inventário do Monsenhor Antônio Pedro

dos Reis:

“(...) na sua condição de clérigo de Ordens Seculares, por fragilidade humana, tivera com D. Anna Praxedes [?] Ferreira, hoje falecida, e com D. Anna Nogueira da Luz, também, já falecida, pessoas livres e desimpedidas, os seguintes filhos: com a primeira, Augusto, nascido na cidade do Rio Preto da Província de Minas, em junho de 1840, hoje o bacharel Augusto Ferreira dos Reis; e com a segunda, Júlio Cezar Nogueira dos Reis, Maria Carmelita Nogueira dos Reis Hallais, casada hoje com o Dr. Hypolito Emílio Hallais, Constança Nogueira dos Reis, Adelaide Nogueira dos Reis e Antônio Nogueira dos Reis, nascidos: o primeiro nesta Corte em julho de 1850, a segunda, idem, em agosto de 1853, a terceira, idem, em julho de 1855, a quarta, idem, em julho de 1857 e o quinto, idem, em agosto de 1859. Todos menores à exceção do bacharel e da casada com o Dr. Hallais, sendo ele outorgando-se tutor dos menores. Acrescentou que aos mesmos reconhecia por seus filhos e queria que como tais fossem por todos reconhecidos e aceitos para gozarem de todas as prerrogativas e vantagens que a essa condição possam ser inerentes, sucedendo-o em todos os seus bens, direitos e ações (...) sendo sido declarou em tempo o outorgante que só é falecida hoje D, Anna Nogueira da Luz, sendo ainda viva D. Anna Praxedes Ferreira, e não falecida como por engano foi dito (...). Rio, 13/11/1873.”

Anexo 15: → Registro de alforria de Domingas Parda – 1º Ofício de Notas; livro 54; p.

174; 06/09/1856:

“O Padre Mestre Pregador Imperial Frei Manoel de São Caetano Pinto Dom Abade

atual do Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro. Por este nosso alvará damos liberdade

pura, gratuita e irrevogável a escrava parda de nome Domingas, pertencente ao falecido

nosso Reverendíssimo Padre Pregador Geral Abade Frei Marcelino do Coração de Jesus,

por assim o haver pedido antes de sua morte à Santa Comunidade, e esta o haver

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aprovado; e nos obrigamos por nós e pelos nossos sucessores a fazer. Lhe damos esta sua

liberdade boa e de paz pacífica, tirando-a de qualquer dúvida que a seu respeito se possa

mover, para que de hoje em diante goze desta liberdade como se nascera de vente livre.

Dada e passada neste Nosso Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro, sob o nosso signo e

selo aos vinte e três de novembro de 1855”.

Fontes e Bibliografia

⇒⇒⇒⇒ Fontes

→→→→ Cartas de alforrias registradas nos 1º, 2º e 3º Ofícios de Notas do Rio de Janeiro,

depositadas no Arquivo nacional. Período: 1840-1871.

→→→→ Inventários:

• Padre Agostinho José da Silva - Juízo de Órfãos – maço: 439, nº: 8477; ano: 1864.

• Padre Antônio Joaquim de Souza - 3ª Vara civil / Juízo de Órfãos – caixa: 3614; nº: 2; ano: 1848 / 1852. • Monsenhor Antônio Pedro dos Reis - Juízo de Órfãos – caixa: 3992; nº: 53; ano: 1878.

• Padre Candido Olympio Martins Lage - Juízo de Órfão - caixa: 4027; nº: 654; ano: 1873 • Padre Francisco de São José Villa Real - Vara de Órfãos – caixa: 4127; nº: 1168; ano: 1858 - Juízo da Provedoria – caixa: 388; nº: 1366; ano: 1862.

• Padre Francisco José Medella - Provedoria – conta – caixa: 390; nº: 1448; ano: 1859. • Padre Joaquim Severino Gomes de Abreu - Caixa: 274957 nº: 6; ano: 1868. • Padre e senador José Custódio Dias - 1ª Vara Civil; caixa: 289; nº: 3546; ano: 1839.

Page 155: Escravos Da Religiao

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⇒⇒⇒⇒ Bibliografia

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