Escritos Breves Pedro Caeiro

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    ESCRITOSB R E V E S

    Pedro Caeiro

    Quem cabritos vende e cabras no tem...

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    PROJECTODESAFIOS SOCIAIS, INCERTEZA E DIREITO(UID/DIR/04643/2013) | INSTITUTO JURDICO

    Grupo de investigao: | Thematic strand:

    Crise, sustentabilidade e cidadania(s) | Crisis, sustainability and citizenship(s)

    permitida a distribuio ou reproduo, total ou parcial, do presente trabalho, desde quea ttulo gratuito e citada a fonte, sendo proibida a sua comercializao.

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    EDIOInst i tuto Jur dico

    Faculdade de Dire i to da Univers idade de Coimbra

    COORDENAO EDITORIAL

    Inst i tuto Jur d icoFaculdade de Dire i to da Univers idade de Coimbra

    CONCEPO GRFICA | INFOGRAFIAAna Pa ula Si lva | Jorge Ribeiro

    CONTACTOSinst i tuto jur id [email protected] .pt

    www.i j . fd.uc.ptPt io da Univers idade | 3004-528 Coimbra

    ISBN978-989-8787-27-9

    JULHO 2015INSTITUTO JURDICO | FACULDADE DE DIREITO | UNIVERSIDADE DE COIMBRA

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    QUEM CABRITOS VENDE E CABRAS NO TEM...

    1. Em 2012, a Assembleia da Repblica (AR) aprovou uma lei que criminalizou aqui-lo a que chamava enriquecimento ilcito, e que consistia em adquirir ou possuir bens deorigem indeterminada, de valor incompatvel com os rendimentos legtimos do titular. Aincriminao-base abrangia todos os cidados e a qualidade de funcionrio ou de titular decargo poltico agravava as penas aplicveis (crime especco impuro).

    Na altura, o Presidente da Repblica (PR) solicitou ao Tribunal Constitucional (TC)

    a scalizao preventiva da constitucionalidade das normas incriminadoras. Dadas as ml-tiplas e evidentes decincias de que enfermavam e que foram logo apontadas pela ge -neralidade dos especialistas e dos rgos representativos das prosses forenses o TC

    no hesitou em declar-las inconstitucionais. A nica surpresa ter sido, eventualmente, aextenso do consenso: na parte em que incriminava o enriquecimento ilcito dos cidadoscomuns e dos funcionrios, a deciso foi alcanada por unanimidade; e na parte em que sereferia aos titulares de cargos polticos obteve uma maioria de 11 votos contra 1.

    2. Em 2015, a maioria parlamentar do PSD / CDS-PP voltou a aprovar agora comos votos contra de toda a oposio a criminalizao daquilo a que chama enriquecimen-to injusticado, que consiste em adquirir, possuir ou det[er] patrimnio incompatvel com os seus

    rendimentos e bens declarados ou que devam ser declarados.Alguns vero nesta lei um encarniamento obsessivo de dois ou trs responsveis

    polticos, que resolveram fazer do assunto uma cruzada pessoal. Outros, tendo em mente odesprezo soberbo dispensado s crticas que, de vrios quadrantes, fustigaram a lei de 2012,bem como os avisos que foram sendo feitos aos deputados nas audies parlamentares de

    2015 pela generalidade das pessoas ouvidas, alimentaro fundadas dvidas de que algumtenha querido genuinamente que esta incriminao venha, algum dia, a entrar em vigor.

    Seja como for, a nova lei foi aprovada por uma maioria parlamentar e merece, s por

    isso, respeito democrtico. Todavia, o PR entendeu que a criminalizao do enriquecimen-

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    to injusticado continua a suscitar objeces e solicitou, tambm desta vez, a scalizao

    preventiva da respectiva constitucionalidade, que est presentemente a ser examinada peloTC processo que merece o mesmo respeito democrtico.

    A questo est pois em saber se as modicaes introduzidas na lei de 2015 elimi-

    nam as causas pelas quais o TC declarou inconstitucionais as normas de 2012.

    3. No seu acrdo de 2012, o TC decidiu que a incriminao do enriquecimento ilci-to (recordemo-la: adquirir, possuir ou det[er] patrimnio, sem origem lcita determinada, incompatvelcom os seus rendimentos e bens legtimos) violava a Constituio, essencialmente, por trs razes:

    por no existir um bem jurdico claramente identicado e digno de proteco penal; por

    no estarem sucientemente determinadasa aco ou omisso proibidas; e por se violar apresuno de inocncia, ao presumir-se a origem ilcita do patrimnio incongruente.

    De acordo com as intervenes dos deputados da maioria na 1 Comisso, o legis-

    lador de 2015 teria tomado boa nota do Acrdo do TC e dado os passos necessrios paracontrariar estas objeces. Vejamos se assim foi.

    3.1. Podemos descartar deste curto comentrio o problema da descrio tpica dasmodalidades da aco (adquirir, possuir ou deter bens com certas caractersticas), pois aformulao mantm-se exactamente igual na nova lei, aplicando-se-lhe, portanto, o juzodo TC sobre este aspecto (a construo do tipo no permite a identicao da aco ou

    omisso que proibida, com o que ca violada a exigncia de determinao tpica do artigo29., n. 1, da Constituio).

    A este propsito, sempre diremos que, a nosso ver, o maior problema no esttanto na indeterminao das condutas tpicas, mas sim na incriminao de condutas a que nosubjaz a violao de qualquer dever: no existe, como veremos, um dever de no adquirir oudisfrutar de bens que sejam incompatveis com os rendimentos e bens declarados ou quedevam ser declarados.

    3.2. Comearemos por notar que o legislador de 2015 extirpou da norma incrimi-nadora o elemento sem origem lcita determinada com que caracterizava, na lei de 2012, opatrimnio adquirido ou detido pelo agente, procurando assim acolher a objeco do TC

    relativa violao da presuno de inocncia.A funo deste elemento era apenas a de excluir da incriminao os casos em quese provasse positivamente a origem lcitado patrimnio. O que signicava tambm, foro-samente, que o contedo do ilcito no se encontrava na incongruncia patrimonial em si

    mesma considerada, mas sim napossvelorigem criminosa do patrimnio de fonte desco-nhecida, por a se justicando a concluso de que a norma violava a presuno de inocncia.

    Ora, ao eliminar aquela causa de excluso da tipicidade, o legislador de 2015 afastou-sedecididamente da intencionalidade que subjazia, ainda que de forma implcita, lei de 2012(a punio, por via indirecta, dos crimes no esclarecidos que geraram o enriquecimento),e assumiu que o ilcito material o puro desfasamento entre o patrimnio que se tem, ou de que sedisfruta, e os rendimentos e bens declarados ou que devam ser declarados.

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    Com esta formulao, no h razo para se falar em violao da presuno deinocncia.

    3.3. Sucede que uma incriminao com este contedo no s poltico-criminal-

    mente (ainda mais) inadequada, como continua a ser jurdico-constitucionalmente invlida.Desde logo, ela assenta numa falsa premissa, qual seja, a de que todos os rendimen-

    tos e bens de que uma pessoa pode fruir licitamente devem ser por ela declarados, da se infe-rindo, como consequncia lgica, a ilicitude da deteno dos que no devam s-lo. No

    todavia assim, como se depreende imediatamente do seguinte exemplo: suponhamos queA, pessoa de elevadas posses, mantm o seu / a sua amante B, desempregado(a) e sembens [ou empregado(a) e remediado(a), pouco importa], pondo-lhe casa e carro (regis-tados no nome deA, que sobre eles paga os devidos impostos) e oferecendo-lhe jantares,jias e viagens. Bno tem qualquer dever de declarar a fruio / deteno / recebimento

    destes bens, que no so tributados em imposto de selo nem em IRS, pelo que o padro dosrendimentos declarados ou que devam ser declarados de B, para os efeitos desta incrimi-nao, ser, quando muito, o subsdio de desemprego que no compatvel com a fruio

    / deteno / recebimento daqueles bens.Assim, se a verso de 2012 tinha por efeito obrigarAe Ba expor a sua relao pes-

    soal s autoridades, com vista a provar a origem lcita dos bens e, por a, a afastar a tipici-dade da conduta, a lei de 2015 desinteressa-se por completo da situao: todo o desfasamento

    patrimonial tpico, e a circunstncia de os bens terem uma fonte legtima perfeitamenteirrelevante, porque j no a eventual origem criminosa dos mesmos que constitui o ilcito.

    Por outro lado, como o contedo de ilcito reside nessa desproporo patrimonial, a origemlcita dos bens no pode constituir, de per si, uma causa de justicao. Consequentemente,no caso do exemplo, Bcometeria o crime de enriquecimento injusticado (tal como A,alis, na veste de cmplice).

    Bem vistas as coisas e correspondendo preocupao do legislador com o escn -dalo pblico causado pela ostentao de riqueza de fonte desconhecida aquilo que a lei de

    2015 pretende impor um dever penal de no adquirir, no possuir nem deter bens incompatveiscom os rendimentos e bens que o agente deva declarar. Proibio que, alm de absurda, mani-festamente inconstitucional, pois impe uma restrio desproporcional e desnecessria ao

    direito de propriedade e livre iniciativa privada sobretudo porque, como veremos j deseguida, no protege bem jurdico algum.

    3.4. Na verdade, esta caracterizao da conduta proibida mostra saciedade que noexiste aqui qualquer bem jurdico digno de tutela, tal como no existia na lei de 2012.

    Porm, pretendendo colmatar esse vazio, o legislador incluiu na prpria lei (art.335.-A, n. 2) uma norma segundo a qual as condutas de enriquecimento injusticadoatentam contra o Estado de direito democrtico, agridem os interesses fundamentais do Estado, a conananas instituies e no mercado, a transparncia, a probidade, a idoneidade sobre a provenincia das fontes de

    rendimento e patrimnio, a equidade, a livre concorrncia e a igualdade de oportunidades.

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    uma norma risvel, a vrios ttulos.Desde logo, porque a armao de que uma conduta atenta contra certo bem jur -

    dico tem que resultar de uma avaliao de ndole criminolgica e poltico-criminal e no susceptvel de se estabelecer por decreto. Se a lei pudesse ordenara danosidade social de uma

    conduta, os mandamentos constitucionais da dignidade penal e da necessidade da lei penalestariam na inteira disponibilidade do legislador ordinrio: haveria bem jurdico digno ecarecido de proteco penal sempre que o legislador o dissesse.

    Ao contrrio do que foi alardeado nos trabalhos da 1. Comisso,no verdadeque esta fantasiosa determinao legal da danosidade social de uma conduta se encontre jpresente no n. 6 do art. 316. do Cdigo Penal, na redaco introduzida pela Lei Orgnican. 2/2014, de 6 de Agosto, que reviu a incriminao da violao de segredo de Estado.Bem diversamente, aquela norma concretiza, tipicando-os, os interesses fundamentais doEstado Portugus genericamente referidos, como elemento do tipo objectivo, no n. 1 do

    mesmo artigo. O que no signica, evidentemente, que as condutas tipicadas ofendamesses interessesporque a lei o diz.Em segundo lugar, a amlgama de polticas, interesses e valores constante do n. 2

    do art. 335.-A no tem qualquer semelhana com um (ou vrios) bem(ns) jurdico(s). Atransparncia, a livre concorrncia e a igualdade de oportunidades so polticaspblicasimportantes, a probidade uma virtude moral prezvel, a equidade um princpio jurdicofundamental mas no tm densidade e concreo sucientes para serem, em si mesmas,

    bens jurdico-penais. Alm disso, misturar, no mesmo plano e sombra do mesmo tipolegal, a proteco do Estado de direito democrtico com a proteco da conana no mer-cado sinal ostensivo de uma incriminao errtica, a que no preside uma intencionalidade

    poltico-criminal racional, impedindo-se por a, do mesmo passo, qualquer relao de pro-porcionalidade entre a ofensa ao bem jurdico e as penas cominadas.

    Despida estagangainverosmil, resta a crua evidncia de que, tal como sucedia na leianterior, a aquisio, posse ou deteno de patrimnio incompatvel com os rendimentosdeclarados ou que devam ser declarados no ofendem, em si mesmas, bem jurdico algum,pelo que as normas que as punem so, tambm elas, inconstitucionais.

    3.5. Por ltimo, para piorar o cenrio, a escolha dos rendimentos e bens declarados,ou que devam ser declarados, como estalo contra o qual se medir a incongruncia do patri-

    mnio, pode levar a um outro absurdo. Na verdade, numa sua interpretao possvel, oart. 10. da Lei Geral Tributria sujeita tributao (e, portanto, a um dever de declarar) osrendimentos e bens ilicitamente obtidos (neutralidade scal), quando se preencherem os

    pressupostos das normas tributrias aplicveis.Se assim for, sempre que a aquisio ilcita de bens deva ser declarada por fora da

    lei tributria, e mesmo que o no seja (por motivos bvios), no existir enriquecimentoinjusticado, porque o patrimnio ilcita e efectivamente detido no ser incompatvelcom os (...) rendimentos e bens declarados ou que devam ser declarados. O que signica queo cometimento do crime no depende da falta de justicao do patrimnio, mas sim da

    circunstncia aleatria para este efeito de os bens ou rendimentos ilicitamente obtidos

    deverem ou no ser declarados.

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    4.Atravessamos um momento confrangedor, em que as decises dos rgos de so-berania em matria penal invocam, como suma autoridade, os brocardos segregados pelasabedoria popular, num regresso atvico a formas primitivas de legitimao (?) que fazem galaem desprezar a racionalidade jurdica.

    tempo de despedir a poltica criminal do rifo e as aberraes que produz. Quemcabritos vende e cabras no tem, normalmente dono de um talho. Ora essa.

    14 de Julho de 2015.

    Pedro Caeiro

    Investigador do IJ

    Professor da Faculdade de Direitoda Universidade de Coimbra

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