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Texto de autoria de Nildo Viana onde ele discute a perspectiva materialista histórica e dialética da produção do espaço urbano
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ESPAÇO E SOCIEDADE A PARTIR DA CONTRIBUIÇÃO DE KARL MARX - Nildo Viana 10/03/2013 12:00 A teoria de Karl Marx nada tem a ver com a questão do espaço, pois ele não escreveu
nada a este respeito. Esta afirmação é aparentemente correta. A grande questão é que
Marx não escreveu nenhuma obra ou artigo direto sobre o conceito de espaço ou com o
foco nessa questão, mas fez diversas análises da sociedade que a envolvem. Este é o
nosso tema no presente artigo.
A concepção de Marx é reconhecidamente marcada pela historicidade. Ele analisou a
história da humanidade e elaborou uma teoria da história. Esta é conhecida pela
sucessão dos modos de produção. A ideia de especificidade histórica é outro elemento
fundamental do seu pensamento (KORSCH, 1983). Se isto é reconhecido com relativa
facilidade e consenso, o mesmo não ocorre com a questão espacial. Contudo, a obra de
Marx também aponta para uma percepção do espaço. Essa percepção do espaço, por sua
vez, está indissoluvelmente ligada ao social e ao histórico. Um determinado espaço é
uma forma de manifestação de determinadas relações sociais inscritas numa região,
território, etc. Sem dúvida, ele não fez tal afirmação, mas ela pode ser deduzida da
forma como ele trabalha a questão do espaço. É por isso que vamos discutir,
inicialmente, a sua análise do espaço no processo de desenvolvimento histórico da
humanidade e, posteriormente, no caso da sociedade capitalista.
Quando Marx analisa a passagem das sociedades sem classes para a sociedade de
classes, ele observa um processo de ampliação da divisão social do trabalho que
mantém íntima relação com uma divisão espacial da sociedade. É nesse contexto que ele
observa a oposição cidade e campo (MARX e ENGELS, 2002), produto da expansão da
divisão social do trabalho, que gera, por sua vez, uma divisão espacial. Mas, além desta
questão das origens, há também a circunscrição histórica de determinadas sociedades
em determinadas regiões. É por isso que ele poderá constituir os conceitos de modo de
produção asiático e modo de produção germânico (MARX, 1985). O modo de produção
asiático é circunscrito a uma determinada região, tal como o modo de produção
germânico. Obviamente que os dois termos são problemáticos, pois não é a questão da
região que caracteriza esses modos de produção (embora tenham impacto sobre ele, tal
como a questão da irrigação no modo de produção asiático), mas isso se deve ao fato de
que ele não elaborou uma teoria desenvolvida de tais modos de produção, sendo que sua
análise incidiu mais sobre o caso dos modos de produção existentes na Europa
Ocidental.
A deformação do pensamento de Marx, que foi apresentado como sendo constituído por
uma concepção positivista de leis da história, que era marcado pela sucessão necessária
de quatro modos de produção é um obstáculo a ser superado para se compreender seu
método e concepção da realidade, como algo concreto e não como a mera manifestação
de leis sociais. Sem dúvida, ele aborda a sucessão do modo de produção asiático, antigo,
feudal e burguês no Prefácio de Contribuição à Crítica da Economia Política (MARX,
1983), mas essa exposição, “em traços gerais”, não é a apresentação de uma evolução
geral da humanidade. Nesse texto ele não apresenta as comunidades primitivas que
antecedem esses modos de produção que já constituem classes sociais, são modos de
produção de sociedades classistas.
Nos Grundrisse (MARX, 2011), os esboços de O Capital (MARX, 1988), no capítulo
que foi posteriormente publicado sob o título de Formações Econômicas Pré-
Capitalistas (MARX, 1985), ele analisa de forma mais profunda que em A Ideologia
Alemã (MARX e ENGELS, 2002), o desenvolvimento de outros modos de produção
além dos clássicos da Europa Ocidental (escravismo, feudalismo e capitalismo). O
modo de produção asiático, bem como o “germânico”, são modos de produção
classistas, apesar da polêmica em torno disto, pois já constituem e produção e
apropriação de um excedente, ou seja, relações de exploração. Porém, o que nos
interessa aqui é reafirmar a relação entre espaço e sociedade. Estes modos de produção
existiram em determinadas regiões, constituindo determinadas formas de sociedade e
uma determinada organização espacial. Claro que, posteriormente, alguns historiadores
identificaram a existência de um modo de produção asiático fora da região originária, o
que, no entanto, significa apenas que o nome “asiático” é impreciso e que formas
análogas surgiram em outras regiões (tal como alguns afirmam ter existido no
continente americano). Em outras palavras, um modo de produção e uma forma de
sociedade correspondente são históricos e se organizam num determinado espaço
territorial, instituindo relações específicas derivadas dos processos sociais e sofrendo
influências, cuja intensidade e forma dependem tanto das relações sociais quanto do
meio ambiente local.
Contudo, a relação entre espaço e sociedade ganha maior concretude e profundidade na
análise de Marx quando se trata da sociedade capitalista. A análise que Marx faz da
ascensão e desenvolvimento do modo de produção capitalista aponta para o seu
processo de contínua expansão espacial e transformação do espaço. Desde o
renascimento das cidades e redefinição do espaço com a constituição paulatina de um
espaço urbano, a expulsão dos camponeses de suas terras e a reconfiguração do espaço
rural, passando pela análise da acumulação primitiva de capital e transformações
espaciais derivadas, inclusive pelo processo imposto pelo Estado absolutista e sistema
colonial (Marx, 1988b), até a constituição da nova paisagem urbana com a revolução
industrial e consolidação da acumulação capitalista propriamente dita e sua repercussão
espacial internacional, Marx faz um conjunto de análises que mostram a íntima relação
entre capital, estado capitalista, luta de classes e reconstituição do espaço.
Nesse sentido, a análise do modo de produção capitalista por Marx é fundamental para
compreender as mutações no espaço urbano, rural e internacional. Os seus artigos sobre
colonialismo (MARX e ENGELS, 1978) apontam para a percepção de que a
configuração do espaço é algo constituído socialmente e, na sociedade capitalista, o
movimento do capital, a ação estatal, as lutas de classes, a luta operária, são
fundamentais para compreender este processo. Sem dúvida, não somente o que ele
escreveu efetivamente sobre as transformações sociais, bem como sobre as mudanças
espaciais que lhes acompanham, mas dois outros elementos de sua obra são
fundamentais para uma análise do espaço na sociedade moderna: a sua teoria do
capitalismo e o método dialético.
O método dialético é essencial para a percepção de que o espaço deve ser analisado não
como “coisa”, no sentido durkheimiano (Durkheim, 2008), concepção metafísica, e nem
sob a forma empiricista. O fetichismo do espaço consiste em dar vida a ele, pensar que
ele age por conta própria, que tem vida própria. Uma abordagem durkheimiana
desembocaria nisso, mas mesmo alguns supostamente marxistas acabam gestando
ideologias análogas (VIANA, 2002). O espaço não tem vida própria. Sem dúvida, existe
o meio ambiente e suas características, possibilidades, resistências a determinadas ações
humanas. É possível dizer que o meio ambiente (e não algo abstrato como “o espaço”) é
uma das determinações da constituição do espaço humano, social. A concepção
empiricista, por sua vez, também é totalmente desprovida de condições de explicar o
espaço, pois isola o mesmo, perde de vista sua historicidade (seu processo de
constituição social). O método dialético aponta para uma teoria da realidade que
compreende a mesma como sendo algo concreto, inserido numa totalidade e sendo
produto de uma constituição histórica. No caso espaço, habitado por seres humanos, é
um espaço constituído socialmente, inserido na totalidade das relações sociais que
geram determinada configuração espacial, e que teve um processo histórico de
constituição e mutação. Uma vez constituído qualquer espaço social (urbano, rural,
etc.), ele, obviamente, produz limites, assume formas, que muitas vezes são herdadas
das gerações atuais pelas gerações anteriores. O espaço não ganha vida própria, é
apenas a reprodução de relações sociais anteriores e que persistem em existir e possuem
raízes fortes e sustentáculos que dificultam sua superação[1].
E é nesse momento que ganha importância a teoria do capitalismo de Marx, outra
contribuição indireta deste autor para se compreender a relação entre espaço e sociedade
no capitalismo. A organização espacial na sociedade capitalista reproduz a organização
social, a divisão social do trabalho. A divisão social do trabalho gera uma divisão
espacial do trabalho. No entanto, isso não é estático, muda historicamente e pode
realizar fusões e processos híbridos. A luta de classes é o conceito fundamental para se
explicar tal processo de constituição social do espaço no capitalismo. A essência do
capitalista está na produção de mais-valor, que expressa uma relação de exploração e
dominação que ocorre no processo de trabalho e produção, que tem um forte impacto
sobre a organização espacial de uma cidade e, de forma derivada, da sociedade como
um todo. A produção industrial não é implantada em qualquer lugar e onde ela se instala
interfere em outras relações sociais e no espaço social. O impacto dos centros industriais
é muito mais forte do que o de indústrias isoladas, mas mesmo no caso destas últimas
não é possível pensar que não. O impacto abrange transporte coletivo, poluição,
comércio, serviços e cria diversas necessidades que terão que ser satisfeitas, tais como
formação da força de trabalho, meios de consumo, etc. Ela também gera espaços de
resistência, de luta, bem como de conciliação e distração, tais como as várias formas de
organização dos trabalhadores (sindicatos, clubes, etc.), serviços de assistência, locais e
momentos de mobilização, etc. Contudo, isso é apenas um elemento aparente de todo o
processo, pois a produção de mais-valor não somente cria luta e necessidades derivadas
delas (aparato jurídico e repressivo, por exemplo), mas para além dos muros das
fábricas, cria a necessidade de realização do mais-valor, as relações de distribuição,
circulação e o comércio. Aqui se envolvem inúmeras outras relações sociais, que não
poderemos citar. O Estado capitalista é o responsável por organizar o espaço tanto no
sentido de permitir a reprodução das relações de produção capitalistas como de impedir
a transformação social. A Comuna de Paris produziu mutações no espaço urbano para
evitar o ressurgimento de experiências semelhantes (ENGELS, 1986).
No entanto, as lutas de classes não se dão apenas devido ao processo de dominação e
exploração no processo de trabalho, elas se reproduzem na instância da repartição do
mais-valor, nas relações de distribuição e circulação. A aquisição de meios de consumo,
mais ou menos possível para certos setores da sociedade, sob formas e graus variáveis,
são fontes de conflitos, bem como os serviços e o papel do Estado na repartição do
mais-valor, geralmente beneficiando o capital, os capitalistas e os burocratas. Outras
classes entram na luta: lumpemproletariado, camponeses, intelectuais, trabalhadores
domésticos, etc. A própria organização espacial e o processo de segregação cria novos
conflitos e diversos agentes: o capital imobiliário e a especulação, o governo,
desabrigados, moradores das periferias, etc.
Contudo, as relações de produção capitalistas geram um processo de reprodução
ampliada do capital, acumulação crescente, concentração e centralização. Isso provoca
disparidades espaciais nacionais, regionais, locais. Isso produz o crescimento urbano e
diversos outros problemas. Em síntese, trata-se de um conjunto diverso e complexo de
relações sociais entrelaçadas que afetam o espaço, que lhe dão uma configuração e
criam conflitos e lutas, mais materiais para ação estatal, intervenção espacial. Mas este é
um processo permanente do capitalismo e não se pode esquecer a historicidade e deixar
de ver que ele só se reproduz se ampliando e o faz isso através de mutações.
O modo de produção capitalista muda e isso cria alterações na organização espacial.
Sem dúvida, apesar de Marx ter realizado uma abordagem histórica da constituição e
evolução inicial do capitalismo, não pôde analisar a sua evolução posterior ao século 19
e, nesse caso, cabe ampliar a teoria do capitalismo para observar seu desenvolvimento
histórico. A teoria dos regimes de acumulação aponta para uma percepção desse
desenvolvimento histórico com base na teoria do capitalismo de Marx (VIANA, 2003;
VIANA, 2009), o que, no entanto, ultrapassa os limites da presente discussão. Cabe
apenas observar que os sucessivos regimes de acumulação constituem alterações
espaciais a nível internacional, nacional, regional e local, atingindo a vida cotidiana das
pessoas, tal como no caso do regime de acumulação integral, o atual regime de
acumulação, que aumenta a pobreza, a violência, etc., devido sua busca de aumentar o
processo de exploração de forma geral, gerando novos fenômenos espaciais, tais como a
criação dos condomínios fechados, convivendo com a “favelização” da sociedade
(DAVIS, 2006), para citar apenas dois exemplos.
Em síntese, a contribuição de Karl Marx para pensar as relações entre espaço e
sociedade abrange um conjunto complexo de temas e problemas que podemos apenas
elencar seus principais aspectos. Nessa contribuição se insere não somente as
referências diretas de Marx ao processo de relação entre espaço e sociedade, mas
também sua contribuição teórica e metodológica, bem como é necessário acrescentar os
desdobramentos possíveis posteriores realizados por outros. O conjunto da obra de
Marx oferece um rico material sobre a questão da relação entre espaço e sociedade, que
está disperso num conjunto de textos e trechos de obras, que ainda não ganharam uma
coletânea como já ganhou seus escritos esparsos sobre educação, arte e diversos outros
fenômenos sociais. Quando esse trabalho for realizado, os estudos sobre sua
contribuição direta serão ampliados e facilitados. A sua contribuição metodológica é
fundamental e abre amplas perspectivas analíticas ainda não inteiramente
desenvolvidas, em parte pelo processo histórico de empobrecimento e deformação do
método dialético, desde o início do século 20. Nesse sentido, o resgate do autêntico
método dialético que vem se realizando, seja retomando as obras de Marx ou de outros
que buscaram recuperá-lo das concepções deformadoras, tal como Karl Korsch (1977;
1983), para citar apenas um exemplo, também faz parte de um processo de
reconhecimento desta contribuição. A sua contribuição teórica com sua análise do modo
de produção capitalista segue a mesma lógica e dinâmica de sua contribuição
metodológica e a releitura de Marx e daqueles que resgataram sua concepção também é
fundamental. Por fim, é necessário abandonar as leituras dogmáticas, tal como Korsch
já havia exigido, e reconhecer que o conjunto da contribuição de Marx é não só
fundamental, mas que deve ser vista criticamente e inserida no contexto social e
histórico em que foi produzida, bem como a percepção de que a história não parou e ele
não disse tudo, o que significa a necessidade de atualizar, desenvolver, avançar,
aprofundar, o conjunto de tal contribuição, inclusive analisando as mutações ocorridas
graças ao desenvolvimento histórico do capitalismo. Contudo, a percepção da
historicidade já estava nas obras do próprio Marx. Assim, o fundamental é manter a
essência da contribuição de Marx: analisar a realidade de forma crítica e revolucionária,
desfazendo todas as ilusões e naturalizações para contribuir com a constituição do novo.
Referências DAVIS, Mike. O Planeta Favela. São Paulo: Boitempo, 2006. DURKHEIM, Émile. As Regras do Método Sociológico. São Paulo: Martins Fontes, 2008. ENGELS, Friedrich. Prefácio. In: MARX, Karl. As Lutas de Classes na França. São Paulo: Global, 1986. KORSCH, Karl. Karl Marx. Barcelona, Ariel, 1983. KORSCH, Karl. Marxismo e Filosofia. Porto: Afrontamento, 1977. MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã (Feuerbach). São Paulo, Hucitec, 2002.
MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Sobre o Colonialismo. Lisboa: Estampa, 1978. MARX, Karl. Contribuição à Crítica da Economia Política. São Paulo, Martins Fontes, 1983. MARX, Karl. Formações Econômicas Pré-Capitalistas. 4ª edição, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985. MARX, Karl. Grundrisse. São Paulo: Boitempo, 2011. MARX, Karl. O Capital. Vol. 1, 3ª edição, São Paulo, Nova Cultural, 1988a. MARX, Karl. O Capital. Vol. 3, 3ª edição, São Paulo, Nova Cultural, 1988b. VIANA, Nildo. Estado, Democracia e Cidadania. A Dinâmica da Política Institucional no Capitalismo. Rio de Janeiro: Achiamé, 2003. VIANA, Nildo. O Capitalismo na Era da Acumulação Integral. São Paulo: Ideias e Letras, 2009. VIANA, Nildo. Violência Urbana: A Cidade como Espaço Gerador de Violência. Goiânia, Edições Germinal, 2002.
Nildo Viana Professor da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Federal de Goiás
Doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília. E-mail: [email protected]
[1] Obviamente que aqui também entra em questão a teoria da consciência que está nas bases do método dialético. As representações, verdadeiras ou ilusórias, são constituídas socialmente, bem como as ideologias e teorias, e todas elas remetem ao problema da constituição social das ideias e seu vínculos com valores, sentimentos, interesses, que são constituídos socialmente e manifestam a posição do indivíduo na sociedade, seu pertencimento de classe e outras determinações existentes. Assim, tanto para a autoanálise (das possibilidades e formas de utilização do método dialético) quanto para a análise das formas de consciência sobre o espaço (tanto as representações cotidianas, ilusórias ou verdadeiras, quanto as ideologias e teorias), é fundamental essa percepção de que entre o real e a representação do real há a mediação do ser que realiza a representação, o ser consciente, que é o que constitui determinada consciência.
__________________________________________________________________________________________________________________________________________ Ficha bibliográfica: VIANA, Nildo. Espaço e sociedade a partir da contribuição de Karl Marx. In: Territorial - Caderno Eletrônico de Textos, Vol.3, n 4, 10 de março de 2013. [ISSN 22380-5525]. Leia mais: http://www.cadernoterritorial.com/news/espa%C3%A7o-e-sociedade-a-partir-da-contribui%C3%A7%C3%A3o-de-karl-marx-nildo-viana/ Crie seu site grátis: http://www.webnode.com.br