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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO JANETE TEIXEIRA DE LYRA ESPAÇO E TEMPO DE FORMAÇÃO COLETIVA DE PROFESSORAS ALFABETIZADORAS- A SOPPA RIO DE JANEIRO 2008

ESPAÇO E TEMPO DE FORMAÇÃO COLETIVA DE …livros01.livrosgratis.com.br/cp069857.pdf · você não pode responder nada enquanto escreve?” , souberam reconhecer e valorizar a produção

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE CINCIAS HUMANAS E SOCIAIS

PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO

JANETE TEIXEIRA DE LYRA

ESPAO E TEMPO DE FORMAO COLETIVA DE PROFESSORAS ALFABETIZADORAS- A SOPPA

RIO DE JANEIRO

2008

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JANETE TEIXEIRA DE LYRA

ESPAO E TEMPO DE FORMAO COLETIVA DE PROFESSORAS ALFABETIZADORAS- A SOPPA

Dissertao apresentada ao Programa de Ps-graduao em Educao da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro como requisito parcial para a obteno do ttulo de Mestre em Educao.

Orientadora :Profa Carmen Sanches Sampaio

RIO DE JANEIRO

2008

Lyra, Janete Teixeira de . L992 Espao e tempo de formao coletiva de professoras alfabetizadoras: a SOPPA. / Janete Teixeira de Lyra, 2008. 138f. Orientador: Carmen Sanches Sampaio. Dissertao (Mestrado em Educao) - Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008.

1. Sociedade de Professores Pesquisadores em Alfabetizao. 2. Profes- soras alfabetizadoras Formao. 3. Alfabetizao. I. Sampaio, Carmen Sanches. II. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (2003-). Centro de Cincias Humanas. Mestrado em Educao. III. Ttulo. CDD 370.71

UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

CENTRO DE CINCIAS HUMANAS E SOCIAIS

PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO

SOPPA- ESPAO E TEMPO DE FORMAO COLETIVA DA PROFESSORA ALFABETIZADORA- A SOPPA

JANETE TEIXEIRA DE LYRA

Aprovado pela Banca Examinadora

Rio de Janeiro, 12/05/2008

____________________________________________________ Prof. Dra. Carmen Sanches Sampaio- UNIRIO

(orientadora)

_____________________________________________________ Prof. Dr. Guilherme do Val Toledo Prado- UNICAMP

(membro externo)

______________________________________________________ Profa Dra. Jacqueline de Ftima dos Santos Morais- UERJ

(membro externo)

______________________________________________________ Profa. Dra. Cludia Fernandes de Oliveira- UNIRIO

(membro interno)

Dedico este trabalho s professoras da SOPPA que, apesar de todas dificuldades enfrentadas

no dia-a-dia, continuam acreditando e lutando por uma escola pblica mais solidria e

democrtica.

AGRADECIMENTOS

Aos meus pais que me ensinaram muito sobre respeito e solidariedade nas relaes com o outro e, entre tantas coisas, me fizeram acreditar que possvel sonhar com um mundo melhor.

Aos meus filhos, Rgis e Jssica, meus amores, que mesmo reclamando da ausncia: Me, voc no pode responder nada enquanto escreve?, souberam reconhecer e valorizar a produo deste trabalho.

Ao meu marido, Geraldo, pela colaborao, incentivo, carinho e orgulho. Sem ele, tudo seria mais difcil: No incomode sua me, ela est estudando.

minha irm, Joslia, que mesmo sem entender e gostar, me acompanhou em vrios congressos de educao, pelo simples prazer de estarmos juntas. Que tima companhia!

Liziane, nora quase filha, pelo interesse no trabalho e pela leitura atenta e emocionada.

s professoras da SOPPA pela parceria e solidariedade que vivemos todos os meses desde 2005. Sem elas, no seria este o trabalho.

Tereza Barreiros pela interlocuo, entusiasmo e pelo muito que tem me ensinado sobre o real significado de compartilhar.

s queridas amigas: Maria Tereza, Alcioni, Cirlei e Geni pelo incentivo, torcida e palavras confortveis em horas difceis.

Aos professores da banca de qualificao: Guilherme do Val Toledo Prado, Jacqueline de Ftima dos Santos Morais e Cludia de Oliveira Fernandes por terem aceitado contribuir para que essa pesquisa se fizesse melhor.

professora Carmen Sanches, pelo incentivo para que eu socializasse a experincia da SOPPA, pela orientao e confiana.

RESUMO

Esta pesquisa tem por objetivo investigar e compartilhar a experincia de um grupo de professoras no municpio de Duque de Caxias que, desde abril de 2005, se rene mensalmente, aos sbados, para compartilhar leituras e refletir criticamente sobre a sua prtica alfabetizadora. A SOPPA- Sociedade de Professores Pesquisadores em Alfabetizao um grupo no oficial, aberto a diferentes professores que desejam investir em sua formao profissional. Como integrante do grupo, busco compreender o que ali acontece, elegendo para isso os registros pessoais, as atas e gravaes dos encontros, alm de entrevistas realizadas com algumas integrantes do grupo. Os principais referenciais tericos utilizados na pesquisa (BAKHTIN, 1999, 2003; PREZ GOMES, 2001; NVOA, 1992, 1995; BENJAMIN, 1991, 1993) confirmam o que as narrativas das professoras nos dizem: o processo de formao coletiva, baseado na confiana e respeito mtuo, experienciado na SOPPA, influencia sobremaneira o modo como encaramos os complexos desafios do cotidiano escolar. O trabalho tambm evidencia a necessidade de o professor ser considerado como protagonista em seu processo de formao, visto que no podemos conceber uma formao que, em nome de uma racionalidade tcnica, histrias, experincias e saberes sejam desconsiderados. Se compreendemos que o aluno o sujeito de seu prprio conhecimento, essa premissa vale tambm para os professores. Este seria um investimento que poderia transformar a escola em um espao de formao para todos.

PALAVRAS-CHAVE: formao coletiva de professores, alfabetizao, SOPPA, complexidade

ABSTRACT

This research aims to investigate and share the experience of a group of teachers in the city of Duque de Caxias which, since April 2005, meets monthly on Saturdays, to share readings and to reflect critically on their literacy practice. The SOPPA - Society of Teachers Researchers in Literacy is an unofficial group, open to different teachers who want to invest in their training. As a member of the group, my aim is to understand what happens there, selecting the relevant personal records, the minutes and recordings of the meetings, besides interviews with some members of the group. The main theoretical references used in the search (BAKHTIN, 1999, 2003; PREZ GOMES, 2001; NVOA, 1992, 1995; BENJAMIN, 1991, 1993) confirm what the narratives of the teachers tell us: the process of collective training, based on trust and mutual respect, experienced in SOPPA, influence how we face the complex challenges of everyday school practice. The work also shows the need to consider the teacher a protagonist in the process of his own formation, given that we can design a training in which, in the name of a technical rationality, stories, experiences and knowledge are disregarded. If we understand that the student is the subject of his own knowledge, this premise applies also to the teachers. This would be an investment that could transform school into an area of training for all.

KEYWORDS: teachers collective training, literacy, SOPPA, complexity

SUMRIO

A TTULO DE APRESENTAO 01

1 PARTE- EXPERINCIAS DE FORMAO: MEMRIAS E NARRATIVAS DE QUEM PESQUISA 04

2 PARTE- OS CAMINHOS DA PESQUISA 14

2.1- Quem me acompanha no caminho 16

2.2- Algumas opes durante o caminhar 20

2.3- Sobre o que recolho no caminho: os dados da pesquisa 22

3 PARTE- MEMRIAS COLETIVAS: O EU E O OUTRO EM FORMAO 29

3.1- O Programa de Formao de Professores- PROFA 30

3.2- O projeto De professor para professor: um convite ao trabalho cooperativo 38

4 PARTE- SOPPA: REGISTROS DE UMA HISTRIA EM CONSTRUO 51

4.1- Sobre a gesto das escolas: o que isso tem a ver com a nossa itinerncia 57

4.2- O que falam as integrantes da SOPPA sobre o pertencimento ao grupo 64

5 PARTE- O QUE ACONTECE QUANDO A SOPPA ACONTECE: UM POUCO DOS NOSSOS ENCONTROS 71

5.1- Das leituras que compartilhamos: as lies que aprendemos/ensinamos 74

5.2- O que escrever? Como escrever? preciso escrever? Registro sobre os nossos registros 79

5.3- Sobre a organizao do tempo: desabafos, conflitos e produo 86

6 PARTE- OS ESTUDOS SOBRE O ENSINAR E APRENDER A LER E ESCREVER. 92

6.1- Decises a partir do planejamento de Marinalva: estudos e reflexes sobre

Alfabetizao e letramento 94

6.2- Do planejamento sala de aula: visitando a prtica de Luciane 102

6.3- Os conhecimentos prvios dos alunos:o que j sabem e o que precisam aprender 104

6.4-A organizao das atividades, os agrupamentos e as intervenes ajustadas 110

6.5- Atividades de leitura e escrita: lendo e escrevendo que se aprende a ler e escrever 113

7 PARTE- O CAMINHO QUE CHEGA AO FIM: OU SER O RECOMEO? 120 REFERNCIAS 124 ANEXOS 129

1

A TTULO DE APRESENTAO

H muito, as memrias, as experincias, as histrias contadas e o que subjetivo vm

sendo renegados ao plano do no- cientfico, no-confivel, falso. A cincia moderna,

produziu, hegemonicamente, um discurso que desvinculava experincia e conhecimento,

emoo e razo, sujeito e objeto. Entretanto, ajudados por alguns autores (BENJAMIN, 1996;

LARROSA, 1995, 2000, 2001, 2002; SANTOS, 2005), podemos hoje questionar esse

discurso e colocar as narrativas, as experincias, os saberes produzidos pelo homem comum

como sendo uma outra forma de se fazer cincia. Uma cincia mais apaixonante, mais

discursiva e solidria1.

a isso que me apego e o que persigo nesta pesquisa. Ao trazer as narrativas,

histrias, experincias de um grupo de professoras alfabetizadoras que se rene no municpio

de Duque de Caxias busco dar um lugar de destaque ao que ns, professoras, produzimos

cotidianamente, mas que, na maioria das vezes, consideramos como menor, de pouca

importncia. Nos (com) formamos nesta perspectiva. E por isso temos pago um preo alto: a

pouca ou nenhuma participao nas decises e implementaes de propostas educacionais, a

aceitao de pssimas condies de trabalho, a baixa remunerao, a jornada de trabalho

desumanizante e alienadora, a perda da confiana na nossa capacidade criativa e

transformadora.

Estando envolvida com essas professoras desde abril de 2005, quando criamos a

Sociedade de Professores Pesquisadores em Alfabetizao- SOPPA, me proponho, com essa

pesquisa, socializar e analisar a nossa histria. Histria que se faz na fora do coletivo, na

solidariedade e na parceria. Histria de professoras que investem em sua prpria formao,

acreditando que possvel construir uma outra realidade, uma outra escola.

Esse trabalho apresenta o movimento deste grupo em buscar novas e diferentes

possibilidades para a nossa formao como professoras alfabetizadoras. Ao longo desses trs

anos, em que nos encontramos mensalmente, temos buscado construir uma docncia tica

(PRADO E BARRICHELO, 2007), um trabalho comprometido com o humano e com a

justia. Esse compromisso no nos permite considerar natural o nmero de alunos que

fracassam em nossas escolas na aprendizagem da lngua escrita, mas tampouco permite

responsabilizar somente os professores por tal resultado.

1 Apaixonante por no eliminar o prazer; discursiva por romper com a dicotomia entre sujeito/objeto, razo/emoo e solidria por compartilhar aes e resultados.

2

Temos experienciado, no grupo, a diferena que faz ter pessoas com quem

compartilhar dvidas, anseios, conquistas em relao nossa prtica. Ao socializarmos os

nossos saberes e ainda no-saberes abrimos espao para outros olhares, mltiplas

interpretaes, posicionamentos, enunciados. Acredito que isso s possvel porque temos

como pilares a confiana e o respeito. Assim , aprendemos a aprender com o outro, a

compartilhar as nossas aes, a duvidar das nossas certezas, constituindo-nos, desse modo,

em uma comunidade de aprendizes mtuos2

Diferentes autores (FREIRE,1998;GARCIA 1998, 2001, 2003, NVOA, 1995)

afirmam que o professor , pela prpria natureza de seu trabalho, um pesquisador. No h

ensino sem pesquisa, nos ensina Paulo Freire (1998). Quem ensina, ao investigar a sua

prpria prtica, aprende a melhor ensinar. Na SOPPA, temos tentado seguir a lio do mestre

e ao buscarmos compreender as diferentes lgicas das crianas ao tentarem se apropriar da

lngua escrita, pensamos a melhor maneira de mediar, intervir neste processo, que

consideramos extremamente complexo.

Tentando nos apartar de uma formao que prescreve ao professor o que fazer, como

alfabetizar, na SOPPA compreendemos o professor como sujeito de sua formao, o que

significa ter histrias, experincias que no podem ser deixadas para trs. Nesse sentido,

compartilhamos do que afirmam Prado e Damasceno( 2007):

Os saberes docentes se constroem pelo significado que cada professor/professora, enquanto autor/autora confere atividade docente no seu cotidiano a partir de seus valores, de seu modo de situar-se no mundo, de sua histria de vida, de suas representaes, de seus saberes, de suas angstias e anseios, do sentido que tem em sua vida o ser professor e professora (PRADO E DAMASCENO, 2007, p. 25).

Essa pesquisa apresenta a nossa histria. Histria que vem sendo tecida por diferentes

professoras. Algumas se mantm juntas desde a criao da SOPPA, em 2005, o que

chamamos de ncleo fixo; outras chegam, permanecem por um tempo, se afastam, retornam.

So professoras que compartilham aes e sonhos. So essas pessoas que, em seu fazer

cotidiano, tm se esforado para construir uma vida mais digna e solidria. So elas que tm

me acompanhado nessa difcil tarefa de escrever sobre o vivido, porque mergulhada nele.

2 Utilizamos aqui a definio de Bruner. Para este autor, uma comunidade de aprendizes mtuos seria um lugar onde, entre outras coisas, os indivduos que esto aprendendo se ajudam aprender,cada qual de acordo com suas habilidades (BRUNER, 2001, p. 29).

3

No temos a iluso de que a educao pode tudo, mas cremos nela como instrumento

estratgico de mudanas sociais. Para que isso acontea, a escola precisa se configurar como

lcus de aprendizagem para alunos e professores. Podemos ajudar a construir uma outra

histria, uma outra escola. Que estas sejam menos discriminatrias e mais solidrias, e que

tenham como base o dilogo, a confiana e o respeito. Como diz um poema, de Elisa Lucinda,

lido com muita emoo, em um dos nossos encontros, pela professora Mrcia Santos:

Sabemos que no d pra mudar o comeo, mas se a gente quiser vai mudar o final.

4

1 PARTE:

EXPERINCIAS DE FORMAO: MEMRIAS E NARRATIVAS DE QUEM

PESQUISA

Talvez os homens no sejamos outra

coisa que um modo particular de contarmos o que somos. E, para isso, para contar o que somos, talvez no tenhamos outra possibilidade seno

percorrermos de novo as runas de nossa biblioteca para tentar a recolher as

palavras que falem por ns(...) E cada um tenta dar sentido a si mesmo,

construindo-se como um ser de palavras e dos vnculos narrativos que recebeu.

(Larrosa, 2001)

Procuro palavras que falem um pouco de mim. No so fceis de serem encontradas.

Mas penso que para iniciar um trabalho devo informar, ao possvel leitor, um pouco sobre a

pessoa desta pesquisadora. Afinal, seria lgico se perguntar antes de querer l-lo, ou no:

Quem a pessoa que pesquisa? De que lugar fala? Por que essa pesquisa e no aquela?

Boaventura me ajuda nas respostas. Segundo o autor, a minha trajetria de vida

influencia sobremaneira na escolha do que pretendo investigar. Para o autor: O carter

autobiogrfico do conhecimento emancipao plenamente assumido: um conhecimento

compreensivo e ntimo que no nos separe e antes nos una pessoalmente ao que estudamos (

BOAVENTURA, 2005, p. 84).

Busco, ento, nesta parte do trabalho, deixar explicitado o que me une aos estudos da

alfabetizao dos alunos das classes populares. O motivo pelo qual resolvo investir em minha

formao, fazendo parte de diferentes grupos que refletem sobre esta temtica. Creio que, ao

escrever um pouco sobre a minha trajetria de aluna, professora, as experincias vividas, terei

respondido algumas perguntas do pretenso leitor.

Onde, ento, comea a minha formao? O meu desejo de ser professora? Ser que

tenho como definir isso? Penso que no. Assim sendo, tento criar uma interpretao possvel

da minha histria de formao, compreendendo que ela se d num continuum, ao infinito,

tendo muito mais relaes com as experincias vividas do que com cursos realizados, tcnicas

aprendidas. Dominic contribui para esta minha reflexo:

5

Devolver experincia o lugar que merece na aprendizagem dos conhecimentos necessrios existncia (pessoal, social e profissional) passa pela constatao de que o sujeito constri o seu saber activamante ao longo do sue percurso de vida. (...) A noo de experincia mobiliza uma pedagogia interactiva e dialgica (DOMINIC, In NVOA, 1995, p. 25).

Assim, me pus a vasculhar as lembranas, histrias que falassem um pouco de

mim.Histrias que pareciam apagadas na memria, esquecidas. Me ponho a desvel-las.

Algumas no so to fceis de serem rememoradas. Parecem trazer tona os sentimentos, as

tristezas e emoes outrora vivenciados. Mas, me entrego ao desafio. Mergulho no passado:

uma casa pequena, a quarta de sete filhos, muitas dificuldades.

Pai dono de uma barraca na frente de casa. Me, dona de casa. Casa de 2 quartos, na

comunidade da Vila Operria, regio extremamente carente no municpio de Duque de

Caxias, Baixada Fluminense. Nos meados dos anos 70, poca da minha infncia, esta

comunidade j apresentava os primeiros indcios de que iria se transformar em um local

violento e dominado pelo trfico. Nesta poca, j presencivamos, embora sem tanta

freqncia, os tiroteios, a presena truculenta dos policiais e alguns jovens perdendo a vida

pelo envolvimento com o crime.

Fui alfabetizada antes mesmo de ingressar na escola oficial. Lembro-me do orgulho

com que meu pai me sentava sobre os seus joelhos e pedia mandando que eu lesse para os

seus fregueses da barraca alguma parte do jornal que usava para embrulhar os produtos.

Apesar de saber ler pouco, meu pai creditava escola o papel de passaporte para a mudana

de vida. estudar para ser algum na vida- dizia ele. Por isso, sempre arrumava algumas

pessoas para me ensinar a ler, pois os meus 3 irmos mais velhos j estudavam em escolas

pblicas e os outros ainda no tinham idade.

No foi fcil para minha me conseguir uma vaga na escola pblica prxima minha

residncia. No ano que iria completar sete anos, no tinha mais vagas para a primeira srie.

Entrei para a escola somente em setembro, com a desistncia de uma vizinha. A sua famlia,

vinda do nordeste para tentar a vida no Rio de Janeiro, estava retornando, por considerar aqui

a vida difcil demais. Fiz um teste de leitura e escrita na Escola Municipal Jos de Jesus3,

nome dado em homenagem ao morador responsvel pela construo da escola, alm da

distribuio dos lotes aos moradores da comunidade. Passei a fazer parte de uma turma de 1

srie. Era o ano de 1972.

3 Hoje esta escola se chama Escola Municipal Vila Operria.

6

Era uma escola pequena, com trs salas, funcionando em dois turnos. Escola feia, suja,

conhecida como a escola do Seu Barbosa, apelido do Sr. Jos de Jesus .Lembro-me com

mais detalhes de uma professora: A Dona Esmeralda. Senhora forte, rigorosa, mas tambm

carinhosa e preocupada com a nossa aprendizagem. Alguns de ns amos pegar Dona

Esmeralda em casa, apesar da distncia e do no consentimento de nossas mes. Era este o

momento de ouvirmos conselhos sobre a importncia dos estudos. Dona Esmeralda nos deu

aula nas 2 e 3 sries. Era muito querida por pais e alunos.

No dava trabalho na escola. Sempre tirava as melhores notas. Fazia parte do grupo

dos esforados. O outro grupo, afirmavam algumas professoras: no queria nada ou, ento,

tinham problemas. E eram muitos: de fome, neurolgicos, motores etc. Coitados dos meus

colegas...

De acordo com Moreira (2005), so estes os pressupostos que a escola moderna

apregoa: a disciplina, contedos e mtodos unificados, a pureza, a ordem e a homogeneizao

(p. 39). Quem no consegue se adequar a estes critrios so, segundo o mesmo autor, os

estranhos. Incapaz de assimilar as diferenas, a estratgia utilizada pela escola a de

discriminar, punir, conjurar o estranho. Neste caso, o estranho era uma boa parte dos meus

amigos.

Segundo Sacristn (1997, p.43), a escola foi criada sob a premissa da no-diversidade,

se configurando, na sua ideologia e nos usos normativos e pedaggicos, como um instrumento

de homogeneizao e de assimilao dentro da cultura dominante. Uma outra contribuio a

esse respeito vem de Dubet. Em um artigo intitulado O que uma escola justa?, o autor se

debrua sobre estudos de alunos que no tm boas chances na escola os pouco dotados de

capital social e cultural e revela o lado cruel de uma escola que tem como funo precpua a

competio e a meritocracia. So palavras do autor:

Na verdade, quando adotamos o ideal de competio justa e formalmente pura, os vencidos, os alunos que fracassam, no so mais vistos como vtimas de uma injustia social, pois a escola lhes deu, a priori, todas as chances para ter sucesso como os outros. A partir da, esses alunos tendem a perder sua auto-estima, sendo afetados por seu fracasso e, como reao, podem recusar a escola, perder a motivao (...) A seu ver, a escola meritocrtica atraiu-os para uma competio da qual foram excludos (DUBET, 2004, p. 5).

esse sentimento de culpabilizao pelo prprio fracasso que, freqentemente, faz

parte das conversas, tanto dos alunos, como das suas famlias. Muitos de meus colegas

7

desistiram da escola por consider-la impossvel, distante demais para eles. Muitas mes, ao

se encontrarem com a minha, nas reunies escolares, falavam: Este aqui tem a cabea dura,

igual a mim. No aprende mesmo. Impossvel questionar ou criticar o ensino que a escola

oferece. Se uns aprendem, quem no consegue aprender porque no d para os estudos.

Na 4 srie uma outra professora assume a turma. Neste ano, levo o meu primeiro e

nico puxo de orelhas da trajetria como estudante. Apesar de j ter visto inmeros colegas

serem punidos com castigos fsicos, inclusive pela Dona esmeralda, pelo meu comportamento

dcil e disciplinado e por ter sido considerada at aqui uma boa aluna, jamais imaginava que

pudesse acontecer comigo. Hoje penso que considervamos natural estes castigos, validados

inclusive pelos responsveis. Se alguns alunos no aprendiam porque eram preguiosos, no

queriam nada, como afirmavam algumas professoras, precisavam ser chamados ateno para

os estudos.A maneira no importava muito. Podia ser com puxo de orelhas, como o que

recebi, reguadas, idas para a secretaria e incontveis cpias.

Como doeu este castigo. No falo da dor fsica, esta eu no lembro, mas a vergonha, o

constrangimento. Lembro do meu rosto como se estivesse pegando fogo. No leventei mais a

cabea durante a aula. Nenhum colega fez algum comentrio. Tambm, ser que no ouvi a

professora dizer que uma arroba pesava 15 quilos? Jamais esqueci essa informao. Apesar

disso, nunca me foi til.

A escola, historicamente, sempre evitou o erro, puniu com notas baixas, castigos ou

substituiu-os imediatamente por respostas certas, com a pretenso de que elas se fixassem no

aluno. O erro esteve sempre ligado ao proibido, ao desconhecimento, ao no-saber, da a

vergonha ao se expor, o medo de ousar, de experimentar o novo. E se eu errar?

Ao terminar a 4 srie, sou selecionada, aps rigoroso exame, para estudar em uma

escola distante da minha casa: a Escola Municipal Marechal Castelo Branco, hoje Escola

Municipal Olga Teixeira de Oliveira. Era uma escola grande, considerada de excelente

qualidade e de normas bastante rgidas. Minha me, com medo de no ter, em alguns dias,

dinheiro para pagar a passagem de nibus, reluta em fazer a matrcula, e afirma que prefere

que eu estude em uma outra escola prxima a minha residncia. Sou salva por meu pai que,

orgulhosssimo pelo meu desempenho nas provas, j que os meus trs irmo haviam tentado

ingressar nesta escola e foram eliminados, afirma; vamos dar um jeito.

8

E l vou eu. Escola grande, exigncia de uniforme, sapatos, de compra de material,

livros e muito mais. Tudo o que a minha famlia no podia. Pedia na Caixa Escolar4 alguns

livros, copiava a matria dos livros de algum e s comprava um ou outro no ltimo caso,

principalmente em poca de provas. Algumas vezes, com vergonha de minhas amigas que

sempre me ofereciam de sua merenda, gastava o dinheiro destinado minha passagem de

nibus e tinha que fazer um longo percurso a p, da escola para a minha casa. Isso sem minha

me tomar cincia. Me sentia um peixe fora dgua nesta escola. Tudo l era diferente. Os

alunos eram, na sua maioria, filhos de professores, funcionrios pblicos. Os lugares que

freqentavam, as roupas que usavam, os costumes, tudo muito diferente. Esta foi a poca em

que mais senti vergonha da minha origem. Tinha poucas amizades e falava muito pouco sobre

mim, mas tentava me destacar sendo uma aluna aplicada, esforada. Fazia aqui o que Certeau

(1994) chama de a arte dos fracos.

O Ginsio acaba. O que vou ser? Recebo uma bolsa de estudos para o segundo grau e

me matriculo em uma escola particular para estudar durante o dia. Pretendo fazer o curso de

formao de professores. Ao contar para a minha me sobre a minha deciso, ela me fala das

condies da famlia, de que preciso trabalhar para ajudar em casa. Sigo, ento, o destino de

tantas meninas: com quatorze anos passo a fazer parte do quadro de funcionrios de uma

fbrica de costura, localizada estrategicamente prxima comunidade onde moro. de l que

esta fbrica recruta grande parte dos seus operrios. So meninas que, a troco de meio salrio

mnimo, deixam os seus sonhos se perderem em meio a fiapos de linhas e pedaos de tecido.

Parecem aceitar, conformadas, o que o destino lhes reserva. Eu, incentivada por minha

famlia, tentava fugir a esta lgica e fiz todo o meu curso normal noite, cultivando o

desejo de um dia tornar-me professora, mas fui ser me.

Aos dezoito anos, tive o meu primeiro filho. Depois outro. Na funo de jovem me,

deixo para trs o desejo de ser professora. Permaneo me e dona de casa por dez anos. Mas

esta situao j no mais me conforta. O desejo volta tona. Fao, ento, o concurso para

professor municipal de Duque de Caxias. Sou aprovada e retorno minha escola. A escola

onde cursei da 1 4 srie. Passaram quase vinte anos e agora era Escola Municipal Vila

Operria e eu no era mais a aluna comportada, era a professora Janete Lyra. Tantas

lembranas!

4 Apesar de ser uma escola municipal, esta escola cobrava contribuio trimestral dos alunos que tinham boas condies financeiras. Este dinheiro, alm de outras coisas, servia para ajudar na compra de livros e uniformes dos alunos carentes.

9

Por estranho que possa parecer, este meu retorno, depois de quase vinte anos, me

mostra uma face da escola que j conhecia, embora com algumas arrumaes diferentes.

Apesar de um discurso mais progressista, como uma maior facilidade ao acesso, muitos

alunos ainda so marcados pelo no-saber. Isso se revela principalmente quando a mim

oferecida a turma de primeira srie totalmente formada por alunos em defasagem srie-idade.

Alunos que j estavam na escola h vrios anos, mas que no conseguiam aprender a ler. Isso

era dito assim mesmo: eram os alunos que no conseguiam, afinal eram agressivos, tinham

irmos envolvidos com o trfico, a famlia era desestruturada... Alunos que nenhum professor

queria. Continuavam, sendo os estranhos.

Como professora nova, este era o meu presente. Logo na chegada fui informada, por

algumas professoras, sobre as etiquetas dos alunos: este aqui estuda desde no sei quando,

mas acho que tem problemas, no consegue aprender nem as vogais. Este outro aqui viu o

irmo ser morto. terrvel! Coitada de voc. Fulano tem...

O que fazer, ento, com essas crianas to marcadas pelo fracasso? Como manter a

disciplina da turma, com tantos alunos considerados problema, para a escola? Como

trabalhar de uma maneira que os alunos se sintam capazes de aprender? Como dar conta de

tanta coisa se eu tambm no sabia o que fazer, nem por onde comear? Ser que a formao

recebida no meu curso normal h tantos anos me ajudaria?

Inicialmente acreditava que sim. Como boa aluna que fui, tiraria de letra os

problemas da sala de aula. Que decepo! As instrues recebidas durante o curso no

davam conta da complexidade do dia-a-dia. Concordo com Kramer (2001, p.85) quando

afirma que o curso de formao de professores no qualifica o professor, pois este ao chegar

escola nem dispe de uma viso terica abrangente sobre a prtica pedaggica nem

conhece a realidade da escola e sua prtica concreta.

O incio foi muito difcil. O no saber fazer me incomodava e buscava auxlio das

outras professoras e da equipe pedaggica da escola. Como podiam entregar uma turma com

tantos problemas a quem no tinha qualquer experincia com o magistrio? - me questionava.

Alm disso, o sentimento de solido era constante. Queria compartilhar com pessoas mais

experientes os meus medos, me sentir acolhida. Mas isso no acontecia na escola. O mximo

que diziam nos corredores ou na hora da sada era: Viu, eu te avisei. Estes alunos no tm

jeito mesmo ou J fizemos de tudo, nem adianta tentar!.

10

Buscando caminhos, procurando atalhos, me encontrando nos olhos daquelas crianas,

compreendi o papel importante que precisava desempenhar na vida delas. Eu havia sido como

elas e no podia reforar o sentimento mtuo de estranheza entre elas e a escola. Algo me

juntava quelas quase adultas crianas. Era como se eu estivesse me vendo atravs delas.

Se este ano no foi fcil, foi gratificante. Hoje reflito sobre o que fiz para que a

maioria dos alunos aprendesse a ler. Sabia que os meus alunos precisavam disso, mas tambm

sabia que precisavam ser ouvidos. No seria somente ouvi-los nos momentos em que saam

gritando na hora do recreio ou na sada, mas sim uma escuta sensvel (BARBIER, 2004),

capaz de distinguir a sutileza das suas falas, conversas, risos, silncios, gritos.

Esteban (1999, p.141) nos fala que as condies de aprendizagem e desenvolvimento

so oferecidas aos alunos de acordo com as possibilidades que a professora percebe neles.

Como a autora, tambm confio na capacidade que cada um tem de aprender. Essa minha

crena fazia com que os alunos se sentissem mais confiantes, seguros. Acredito que isto tenha

feito a diferena para eles.

O certo que o que eu sabia de alfabetizao era o que lembrava do meu prprio

perodo de aprendizagem da leitura e escrita e, tambm, o modo como via os meus filhos

sendo alfabetizados. De uma maneira inconsciente acabava reproduzindo o modelo de

racionalidade que a cincia moderna to fortemente instalou entre ns, ocidentais. Era preciso

controlar a quantidade de letras que j havia ensinado, ver quantas faltavam ser lanadas at o

final do ano e descomplexificar ao mximo a lngua, pois a mente dos meus alunos no

poderia compreender tanta coisa junta. Pura tolice!

Intuitivamente compreendi que no fazia sentido para aqueles alunos estudar as

vogais, os encontros voclicos e o ba, be, bi, bo, bu. Um dos motivos pelos quais no

aprenderam a ler fora exatamente esse: uma alfabetizao que produz uma atividade sem

conscincia, desvinculada da realidade e desprovida de sentido.

Sem ter lido Regina Leite Garcia, a minha intuio me encaminhava para uma prtica

diferente da que via na escola, pois, como a autora, considero que: Difcil, difcil mesmo

aprender o que no faz sentido, o que no atende necessidade e, no tendo utilidade, no

vai ao encontro do interesse (...) o quanto rida a convivncia das crianas com vogais,

encontros voclicos, etc (GARCIA, 2001, p.23).

Durante este perodo de dvidas sobre se o que vinha desenvolvendo para que meus

alunos aprendessem a ler era o mais adequado, chega escola uma nova orientadora

11

pedaggica, j que a que ocupava esta funo assume a direo da escola. Maria Teresa se

transformou na grande interlocutora. Era com ela que dividia os meus anseios, as minhas

dvidas e as conquistas. Ela era a parceira mais experiente. Ensinar, como aprender, no pode

ser um ato solitrio.

Maria Teresa logo saiu da escola. No compactuar das orientaes da direo e das

relaes presentes no ambiente escolar significava um espao reduzido para o trabalho de

orientao junto s professoras. Permanecer nesta escola aps a sada de dela e tambm de

Alcioni, a orientadora educacional, significou, num primeiro momento, o abandono dos ideais

que me moviam. Hoje, compreendo que a minha permanncia foi importante para a

continuidade das discusses acerca da alfabetizao, com a chegada das novas orientadoras.

Era mais uma para, juntamente com estas, defender uma alfabetizao significativa para os

alunos da Escola Municipal Vila Operria, em Duque de Caxias. A mesma escola onde

estudei.

Permaneci por 12 anos nesta escola. Durante este perodo, trabalhei quase que

exclusivamente com turmas de alfabetizao. Era considerada a professora construtivista.

Sentia na pele os equvocos e estigmas que esta palavra carregava. Era querida pelos pais e

alunos, mas vista por uma boa parte das professoras como a que no cobrava contedos e letra

cursiva, a que no investia em cpias e, considerada, principalmente pela diretora, como a que

no tinha domnio de turma, pois os meus alunos levantavam, recorriam a textos expostos

pela sala e trabalhavam em grupos, ajudando uns aos outros. O movimento presente na sala

era considerado caos e desordem, necessitando de controle, disciplina.

Boaventura de Souza Santos (2005, p. 78) me ajuda a compreender o que na poca no

conseguia. Ao apresentar as duas formas principais de conhecimento da modernidade, o

conhecimento-regulao e o conhecimento- emancipao, o autor explicita a forma como o

primeiro, que tem primazia sobre o segundo, aparece na escola. A diferena, para o

conhecimento-regulao, representa o caos e a desordem como forma hegemnica da

ignorncia. Desse modo, precisa ser evitada e silenciada.

A vontade de aprender a melhor ensinar aos meus alunos fez com ingressasse, em

1998, na Universidade Estadual do Rio de janeiro- UERJ, no curso de Pedagogia das Sries

Iniciais. Este curso era destinado exclusivamente a professores regentes de turma. Acreditava

que cursar uma universidade me daria algumas respostas a tantas questes que formulava

como professora alfabetizadora: por que consigo alfabetizar a uns e outros no? O que fazer

com estes? Como motivar os meus alunos a aprender?Como planejar aulas interessantes?

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Certamente no foi na universidade que encontrei respostas para tantos

questionamentos. Alis, muitos deles ainda me fao. Nessa busca, procurei o PROFA5. Este

curso foi essencial para que compreendesse melhor como as crianas aprendem a ler e

escrever e, desse modo, pensar possibilidades para favorecer este processo. Era 2002, estava

trabalhando em um projeto da prpria escola, que tinha como objetivo auxiliar as crianas do

3 ano do Ciclo de Alfabetizao6 que no tinham ainda se alfabetizado e, tambm, em uma

turma de 1 ano do Ciclo.

Terminamos o PROFA em dezembro de 2003. Em 2004 fui convidada a participar do

projeto De professor para professor: um convite ao trabalho cooperativo, desenvolvido pela

Secretaria Municipal de Educao de Duque de Caxias. ramos 17 professoras sob a

coordenao das professoras Tereza Cristina Barreiros e Marliza Bod de Moraes. Este

projeto tinha como objetivo assessorar os professores do 1 ano do Ciclo de Alfabetizao que

desejassem partilhar a sua prtica e refletir criticamente sobre ela. No texto enviado

Secretaria Municipal de Educao, quando da apresentao do projeto, definamos o que, para

ns, significava a palavra assessoramento:

Assessorar, no mbito deste projeto, significa tomar a cooperao como valor profissional e contribuir para o fortalecimento da relao de autonomia do professor com o prprio trabalho.

Atuar como professora adjunta7 significou no s para os professores assessorados,

mas tambm para mim, um espaotempo8 de muitas aprendizagens. Entretanto, a mudana de

prefeito e dos seus secretrios significou o fim tambm deste trabalho. Apesar de os

professores participantes, por diversas vezes, terem feito o pedido de sua continuidade junto

SME, para estes governantes este trabalho no interessava, ou melhor, no do modo como

havamos pensado no ano anterior.

5 Programa de Formao de Professores Alfabetizadores, desenvolvido pelo MEC em parceria com Universidades, Secretarias Estaduais e Municipais de Educao em todo o pas em 2001/2002. 6 Em Duque de Caxias, os trs primeiros anos escolares formam o Ciclo de Alfabetizao, em seguida a organizao se d em sries. 7 As professoras adjuntas compunham uma equipe de assessoramento responsvel por disponibilizar aos professores que aderiram ao Projeto uma parceria no planejamento da interveno pedaggica e na anlise desta. Este termo adjunto foi escolhido para caracterizar a funo dos professores que estariam unidos, muito prximos dos titulares das turmas de 1 ano (Fragmento do texto de apresentao do Projeto De Professor para professor: um convite ao trabalho cooperativo SME de Duque de Caxias). 8 Optei, a exemplo de Carmen Sanches, Nilda Alves, Regina Leite Garcia, entre outros pesquisadores do/no cotidiano, por escrever os dois termos como se fossem um s, numa maneira de superar a dicotomia existente nos discursos da modernidade. Outros termos aparecero escritos do mesmo modo.

13

Depois que se conhece a experincia da parceria e solidariedade jamais se deseja

voltar solido. E isto, com certeza, ns no queramos, pois consideramos, como Kramer

(2001, p.92), que um projeto de formao em servio, se construdo coletivamente, capaz de

entre outros fatores , gerar a melhoria da qualidade do ensino. Por isso, em abril de 2005,

fundamos a Sociedade de Professores Pesquisadores em Alfabetizao - SOPPA.

A minha dissertao fala sobre este grupo. Investigo, de modo (com)partilhado, a

experincia de mulheres, professoras que acreditam que possvel construir uma outra lgica

de formao. Uma lgica pautada na parceria, solidariedade, na construo de vnculos. Para

falar da SOPPA trago, neste trabalho, diferentes vozes. s vezes a minha, outras vezes das

demais integrantes. s vezes vozes convergentes, outras dissonantes. So professoras a falar

sobre histrias vividas juntas, mas contadas de diferentes maneiras. So professoras a falar de

frustraes, alegrias, conquistas e do quanto bom sonharmos juntas por uma outra realidade.

Sonho que se sonha s s um sonho que se sonha s mas sonho que se sonha junto

realidade. (Raul Seixas)

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2 PARTE:

OS CAMINHOS DA PESQUISA

Cada um l com os olhos que tem. E interpreta a partir de onde os ps pisam. Todo ponto de vista a vista de um ponto.

Para entender como algum l, necessrio saber como so seus olhos

e sua viso de mundo. A cabea pensa a partir de onde os ps pisam.

Para compreender, essencial conhecer o lugar social de quem olha.

(Leonardo Boff, 1998)

Desde que ingressei no mestrado, tinha como desejo o trabalho com a formao de

professores alfabetizadores. Esta tem sido a minha grande paixo e, como concordo com

Boaventura, acredito que fazer cincia no significa dissociar prazer, subjetividade, vida.

Assim, o meu projeto previa analisar o trabalho que venho realizando como orientadora

pedaggica na formao de professores alfabetizadores em uma das escolas onde atuava.

Ainda na entrevista de seleo falei sobre um grupo ao qual participava

voluntariamente desde a sua fundao. Falei com muito orgulho sobre a SOPPA. Era ali que

encontrava espaos de troca, de escuta e da busca de possibilidades de ao para tentar

diminuir o fracasso que ronda as classes de alfabetizao.Era ali que a solidariedade e o

pensar junto me fortalecia, ajudando a diminuir a sensao de isolamento e competitividade

que fazem parte do nosso dia-a-dia de professores.

Mas no, o meu objetivo era a minha prtica como orientadora. Os meus primeiros

trabalhos, aps ter sido aprovada, versavam sobre isso, apesar de constantemente narrar as

experincias do grupo, o que de certa maneira levava as pessoas a quererem saber um pouco

mais, principalmente a professora Carmen Sanches, minha orientadora. Acho que ela j previa

que eu no teria como escapar de contar um pouco sobre a nossa experincia, a nossa histria.

Os entraves do dia-a-dia na escola me desanimavam: como falar do meu papel de

orientadora na formao de professoras que alfabetizam se no conseguamos constituir um

grupo, j que nas duas escolas onde atuava, havia assumido a funo de orientadora

pedaggica no mesmo ano em que ingressara no mestrado. Alm disso, na escola onde

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desejava fazer a pesquisa, a maioria das professoras trabalhava em regime de aula-extra9, ou

seja, no ano seguinte no estariam mais na escola. De um total de dezenove professores,

somente quatro eram efetivas, com matrcula na escola. A alta rotatividade de professores se

apresentava como uma das grandes dificuldades para um projeto de formao

continuada.Alm disso, mesmo com a garantia de um grupo de estudos mensal, o tempo

destinado aos estudos era muito restrito. So tantas as cobranas burocrticas tanto para

professores como para orientadores que, apesar de tentar arrumar brechas, no conseguamos

muita coisa. Com uma carga horria de 16 horas semanais, tendo que cumprir todas as

exigncias que a SME impunha escola no que diz respeito preenchimento de papis,

verificao de dirios, plano disso, daquilo outro, sobrava-me muito pouco tempo para estar

com os professores.

Se pensamos na formao como um processo que no ocorre a curto prazo, pois

necessrio que se estabelea no mnimo um clima de confiana entre equipe pedaggica e

professores, para que estes se sintam vontade para expor a sua prtica, sem medo de serem

repreendidos, essa alta rotatividade dos professores significava um recomear do zero com

outro grupo no ano seguinte, o que inviabilizaria o trabalho de mestrado, no que diz respeito

ao tempo para a execuo da pesquisa.

A surgia a SOPPA como opo de pesquisa. No era discutir a formao e

professores alfabetizadores o que eu queria desde antes de me inscrever no mestrado? Por que

no vislumbrava a possibilidade de analisar este grupo, ao qual fao parte? Seria o

desconsiderar de prticas que fogem ao normal, ao estabelecido, institudo? Ser que

considerava a nossa experincia como de pouco valor, impossvel de ser escrita em uma

dissertao de mestrado?

Penso que algumas dessas idias me habitavam. Outras at hoje. Entretanto, ajudada

pelas leituras recomendadas no mestrado e pelas discusses sobre complexidade (MORIN,

1999); cotidiano (PAIS, 2003); conhecimento- emancipao (SANTOS, 2005), entre tantas

outras, reconheo agora que as experincias que temos tido no podem ficar restritas ao

grupo, precisam ser visualizadas e valorizadas. preciso que mais pessoas saibam que

algumas professoras se renem, no municpio de Duque de Caxias, para pensarem uma outra

possibilidade de escola e sociedade. Sobre isso nos fala Costa:

9 O regime de aula-extra, tambm chamado de dobra, significa o contrato por um tempo, no mais que um ano, quer seja para cobrir vagas de professores licenciados ou em decorrncia do dficit de professores na rede.

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Para ter o direito a existir, sem ser idntico (ao colonizador), preciso encontrar as brechas, praticando a poltica cultural da representao. preciso encher o mundo de histrias que falem sobre as diferenas, que descrevam infinitas posies espao-temporais de seres no mundo. (COSTA,1998, p.40)

Por isso, a deciso. No me arrependo dela. Alis, tenho muito orgulho de pertencer e

investigar um grupo que tem caminhado margem das polticas oficiais de formao. Um

grupo que, de forma compartilhada, tem procurado criar horizontes de possibilidades para

professores e alunos aprenderem. Essa a minha pretenso neste trabalho: compartilhar e

investigar a nossa histria, os nossos acontecimentos. Espero que a contribuio, apesar de

pequena, seja vlida.

2.1- Quem me acompanha no caminho?

Assumo neste trabalho o que a cincia moderna tem negado ao longo dos anos em

relao pesquisa cientfica: a influncia da minha trajetria de vida na escolha do que

pretendo investigar. Boaventura (2005), Nvoa (1995) e Larrosa (2001) contribuem para que

eu compreenda que nesta opo esto imbricados os meus valores, crenas e experincias.

Minhas experincias como filha da classe popular, aluna e professora alfabetizadora de

escola pblica, orientadora pedaggica, integrante da SOPPA, me, mulher e pesquisadora

influenciam o meu olhar e as leituras feitas durante a investigao. Sou um sujeito

encarnado (NAJMANOVICH, 2001) e, como tal, ao contrrio do sujeito abstrato e neutro,

preconizado pela pesquisa tradicional, as minhas interpretaes se do a partir do lugar que

ocupo, a partir das minhas experincias e subjetividade.

Reconhecer essa corporalidade do sujeito implica aceitar que no podemos conhecer o

objeto sem relacion-lo ao que tambm conhecemos, como se fosse independente de ns. S

podemos conhecer o que somos capazes de perceber e processar com o nosso corpo (idem).

Desse modo, sempre haver situaes que no conseguiremos ver, os buracos cognitivos, as

zonas cegas. o sujeito encarnado pagando com a sua incompletude a impossibilidade de

tudo conhecer (ibidem).

Tenho clareza de que, como participante e investigadora deste grupo, no tenho como

me isentar do que escrevo. Nos encontros que temos realizado, ao longo destes trs anos,

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muito de mim est l. Algumas falas, alguns silncios, algumas incompreenses. Investigar

estes momentos , no dizer de Oliveira e Alves (2001, p. 8), mergulhar nos acontecimentos,

pois muitos deles no se reduzem ao observvel e organizvel formalmente. Ainda segundo as

autoras: A realidade no s o que existe, mas o que emerge, o que se imagina, o que foi

suprimido, silenciado e marginalizado. Desse modo, o meu desafio, como pesquisadora, o

de colocar novos focos de luz, buscando descobrir o que est obscuro, ausente (PAIS, 2003).

Precisei estar atenta para que minha familiaridade com o grupo no impedisse que eu

enxergasse o que muitas vezes no se mostrava explicitamente. Fazendo uma analogia entre o

ato de pesquisar e o de receber um hspede em casa, Amorim (2001)citando Derrida (1997),

nos fala do papel do anfitrio. Para a autora, o pesquisador seria aquele que recebe e acolhe o

estranho, construindo com ele uma escuta de alteridade. Entretanto, alerta para que, como

pesquisadores/anfitries, estejamos atentos em relao ao cuidado demasiado com esta

hospitalidade, o que pode nos impedir de fazer perguntas, indagar sobre a identidade do outro.

Ainda segundo a autora, A linguagem a prpria hospitalidade, pois a que as

trocas e os acolhimentos se do (idem, p. 27). Porm, adotar uma perspectiva dialgica de

pesquisa no significa afirmar que as omisses de falas e as incompreenses no surjam. Ao

contrrio, considero que tanto pela voz como pelo silncio estamos s voltas com a produo

de sentidos, cabendo a mim, como pesquisadora, buscar compreender o que muitas vezes se

apresenta como indecifrvel.

Me debruar sobre a experincia de um grupo no significa desconsiderar as variantes

sociais que interferem no cotidiano. Tenho clareza disso. Entretanto, como afirma Pais (2003,

p. 74), uma viso exclusivamente macroscpica do social no pode dar conta de todos os

pequenos jogos sociais que constituem a trama social. Tenho aprendido com este autor que

o cotidiano pode e deve ser tomado como fio condutor do conhecimento da sociedade. no

micro que as pessoas criam astcias, reinventam o cotidiano e fazem histria. Recorro ainda

s palavras de Prez para justificar este trabalho no/do cotidiano:

Cotidiano movimento, construo social e histria da ao humana. Ao produzir a cultura e a histria, homens e mulheres produzem vida, a sua vida- como indivduo e espcie-, fluxo vital que os coloca diante de estados inditos, num movimento permanente de tornar-se: criando, aumentando e intensificando suas potencialidades e energias. (PREZ, 2003, p. 117)

Aprendi com Pais (2001, p.59) que o bom pesquisador aquele capaz de estar

desperto para a polifonia das vozes que o rodeiam. Essa escuta sensvel requer do

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investigador uma atitude de abertura holstica, buscando compreender, no julgar, o excedente

do sentido que existe na situao. Trata-se de realmente entrar numa relao de totalidade

com o outro tomado em sua existncia (BARBIER, 1992, p.98). Portanto, elaborar uma

leitura dos acontecimentos vividos na SOPPA me obrigou a mergulhar com todos os sentidos

neste cotidiano, procurando captar e dialogar com a multiplicidade de vida e de vozes. Para

Alves: preciso ter claro que no h outra maneira de se compreender as tantas lgicas do

cotidiano seno sabendo que estou inteiramente mergulhada nele, correndo todos os perigos

que isso significa (ALVES, 2001, p.16).

Por isso, numa tentativa de compreender o processo de formao e consolidao da

SOPPA, trabalho com as narrativas das professoras integrantes do grupo. Encontro ainda em

Connely e Clandinin (1995) justificativa para o trabalho com as narrativas. So eles que

afirmam que ns, os seres humanos, somos organismos contadores de histrias, organismos

que individual e socialmente vivemos vidas relatveis. Desse modo, o estudo das narrativas

o estudo da forma em que ns, os seres humanos, experimentamos e representamos o mundo.

Na mesma linha de argumentao, Larrosa traz uma contribuio complementar:

Talvez os homens no sejamos outra coisa que no um modo particular de contarmos o que somos. E, para isso, para contarmos o que somos, talvez no tenhamos outra possibilidade seno percorrermos de novo as runas de nossa biblioteca, para a tentar recolher as palavras que falem por ns. [...] Que podemos cada um de ns fazer sem transformar nossa inquietude numa histria? (LARROSA,2000, p. 22)

Ainda segundo Connely e Clandinin, tanto as histrias contadas como os documentos,

as anotaes pessoais, os dirios de campo so importantes ferramentas da investigao.

Citando Hogan (1988), os autores sinalizam alguns elementos importantes na relao de

investigao: a igualdade entre os participantes, a situao de ateno mtua e propsitos

compartilhados. Da a opo por trabalhar com este tipo de pesquisa, pois o que vivemos na

SOPPA.

Desse modo, a narrativas sobre esta histria revelam os modos como cada uma de ns

compreendemos o que vivemos. Sendo estes, modos pessoais, singulares, mesmo que

fundados em uma experincia coletiva. a leitura do que vivemos importante, pois ao mudar

o tempo e o espao de onde o sujeito observa os acontecimentos, olha para a experincia

vivida com novos conhecimentos, o que permite novas leituras. Como afirma Larrosa:

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A reconstruo do sentido da histria de nossas vidas e de ns mesmos nessa histria fundamentalmente um processo interminvel de ouvir e ler histrias, de mesclar, matizar ou dar cor a histrias, de contrapor uma s outras, de viver como seres que interpretam e se interpretam, posto que j se acham constitudos nesse gigantesco caldeiro de histrias que a cultura (LARROSA, 1995, p. 47).

Respeitar as diferentes vozes, mesmo que dissonantes das minhas, compreendendo que

ela so produtos de um sujeito implicado com a histria relatada, significa reconhecer o outro

como legtimo outro (MATURANA, 1998, p. 66), condio essa fundamental para um

dilogo profcuo entre o pesquisador e os co-participantes da pesquisa. Reconhecer essa

legitimidade do outro me faz assumir uma escuta respeitosa ao que o outro me diz, sabendo

que o seu discurso a sua representao do que lhe acontece. Desse modo, cada enunciado

permeado de verdades, mentiras, iluses, interpretaes que cada um d ao momento vivido.

O que cabe ao pesquisador desenvolver uma postura tica, reconhecendo que cada um fala a

partir seu ponto de vista, que nem sempre condiz com o meu.

A tentativa de compreender o que acontece neste grupo alimentada de confiana,

respeito e partilha, construdos ao longo da nossa convivncia desde 2002, quando

participvamos de encontros oferecidos pela Secretaria Municipal de Educao de Duque de

Caxias. Se considerarmos que algo j nos unia desde esta poca, so seis anos de cho

partilhado, de experincia com o outro (BENJAMIN, 1991). Sendo assim, comeo a relatar

a nossa histria a partir desta poca, pois j sentamos a necessidade de querer saber sempre

mais sobre tudo aquilo que se refere ao direito, necessidade e ao prazer de aprender, para

darmos conta do compromisso primeiro de todo professor, que ensinar.

o sentimento de pertencimento ao grupo dos que almejam uma escola de qualidade

para os alunos das classes populares que no me deixa esquecer do compromisso que tenho

com essa causa. Por isso, a minha opo de investigar um grupo de professoras que se rene

em Duque de Caxias, fora do seu horrio de trabalho, um sbado em cada ms, para estudar,

refletir e discutir assuntos referentes alfabetizao. Um grupo de professoras que assume seu

processo de auto-formao, considerando, como Paulo Freire, que somos seres inacabados,

nosso destino no dado, mas algo que precisa ser feito e de cuja responsabilidade no

podemos nos eximir (1996 p.58).

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2.2- Algumas opes durante o caminhar

Voc escreve na 1 pessoa?

Engraado, sempre ouvi dizer que no podia.

(Marinalva)

Tento, nesse trabalho, fugir da perspectiva que tem guiado a maioria das pesquisas e

publicaes cientficas: a impessoalidade, a abstrao e o distanciamento do pesquisador.

Entretanto, assumindo uma perspectiva backtiniana, tenho clareza, que a minha voz

acompanhada de muitas outras, algumas presenciais, como a famlia, os espaos de formao,

os amigos, a SOPPA, outras atravs de leituras feitas e incorporadas. So essas as

experincias que me constituram e que me fazem dizer o que digo, pensar como penso, hoje.

Amanh j no sei, pois outras vozes podem dialogar comigo, me fazendo pensar outras

possibilidades.

O sujeito no o dado biologicamente, mas o construdo no intercmbio em um meio social humano, que por sua vez est em interao constante com outros contextos. atravs dos vnculos sociais de afeto, de linguagem, de comportamentos que o sujeito vai se auto-organizando (NAJMANOVICK, 2001, p. 94).

Assim, nessa rede de interaes com outros sujeitos, com outras realidades, me fao,

refao, construo, desconstruo. No poderia ser diferente no movimento de fazer pesquisa.

Vou construindo os meus caminhos medida que leio, escuto, discuto, discordo, digo,

silencio, erro, retorno, aprendo. Aprendo fazendo. Ningum me prescreveu os caminhos aos

quais deveria caminhar. No encontrei nenhum manual que me indicasse o mtodo mais

eficiente, mais seguro de se fazer pesquisa. Tambm no o procurei. Talvez at tivesse

encontrado se partisse de uma outra perspectiva que no fosse a do dilogo, que no fosse

uma investigao compartilhada, como a que me propus trabalhar.

Por ser assim, algumas opes durante a pesquisa tm a ver com as discusses feitas

com as integrantes da SOPPA, com sugestes da minha orientadora, professora Carmen

Sanches, com as contribuies generosas dos professores que fizeram parte do meu exame de

qualificao. Outras, por conta prpria assumi. Dentre essas, o tratamento: professor ou

professora?

21

O nosso grupo, a SOPPA, constitudo exclusivamente por mulheres. Por isso,

quando falo dele, escrevo sempre no gnero feminino: as professoras. Entretanto, ao me

referir ao profissional da educao, de maneira generalizada, trato como os professores, por

entender que, apesar de termos ainda um nmero reduzido de homens nas sries iniciais do

Ensino Fundamental, se escrevo no gnero feminino, desconsidero a pequena parcela

masculina. Poderia escrever ainda: o(a) professor(a), mas penso que este recurso utilizado

repetidas vezes dificulta a leitura, tornando-a enfadonha.

Uma outra questo em se tratando de pesquisa diz respeito nomeao dos sujeitos.

Assim, desde o anncio da pesquisa, perguntei-lhes em uma reunio se concordavam em ter o

nome exposto no trabalho. Todas as professoras aceitaram. Optei apenas por omitir os nomes

de professoras que no fazem parte da SOPPA, mas que contriburam com as suas narrativas

no sentido de elucidar fatos, dar maior relevncia ao que discuto. Estas professoras, s quais

no tive como lhes pedir autorizao para ter seu nome includo no trabalho, so tratadas por

codinome. Este fato sinalizado no corpo do trabalho, atravs de notas de fim de pgina.

Jamais cogitei a idia de omisso dos nomes das pessoas que fizeram parte dessa

pesquisa, os co-participantes deste trabalho. Entretanto, compreendo que essa no uma

questo simples, como antes pensava. Esto imbricadas, nesta omisso ou declarao dos

nomes reais, questes de ordem tica e epistemolgica. Inventar nomes para os sujeitos

investigados poderia supor uma certa preservao. Desse modo, poderiam falar mais

livremente, estariam protegidos sob o anonimato. O que valeria tambm para quem pesquisa.

Se no identifico os sujeitos investigados, posso fazer crtica mais abertas s suas falas,

posturas.

Outros pesquisadores (SAMPAIO 2003, MORAES, 2007) defendem que,

principalmente nas pesquisas em educao, ter o seu nome revelado seria um modo de

garantir que os sujeitos investigados se reconheam como co-autores do trabalho, com

histrias a contar, experincias a compartilhar. O que propicia um estatuto de visibilidade aos

que, muitas vezes, so considerados apenas objetos de investigao.

Uma outra linha considera que a deciso de nomear ou no os sujeitos da pesquisa

cabe ao pesquisador e a seu orientador. Essa seria uma discusso a qual, os investigados, no

precisariam participar. Uma deciso unilateral que confere poder ao pesquisador, negando aos

sujeitos pesquisados o direito de querer ou no ter o seu nome revelado na pesquisa.

22

Como revelei acima, acreditava que seria natural, ao investigar a SOPPA, grupo ao

qual participo desde a sua criao, a identificao das pessoas com os seus nomes

verdadeiros. Para mim, seria a maneira de visualizar a experincia do grupo tal qual era. As

pessoas que optavam por participar, o que as movia estar no grupo, quais histrias tinham

para contar, as resistncias, a indignao. No tinha como trat-las por letras, nomes fictcios.

So sujeitos encarnados que fazem parte dessa histria.

Lendo a tese de doutorado da professora Carmen Sanches e vendo o encaminhamento

que ela deu a essa questo de nomear ou no os sujeitos da pesquisa, compreendi que essa no

uma questo com uma nica resposta, uma deciso fcil de quem faz a pesquisa. Ser que as

professoras da SOPPA gostariam de ter o seu nome revelado, como era ao meu desejo?

Deciso compartilhada. Por isso, os nomes que esto presentes neste trabalho so os

nomes das professoras integrantes da SOPPA. Nomes verdadeiros, por nos acreditar fazedoras

de histrias. Daqui a algum tempo algumas de ns pode no mais fazer parte do grupo ou at

mesmo ele no mais existir. Mas teremos nossos nomes lembrados, pois registrados neste

trabalho. Quem so essas professoras que durante esses trs anos compartilham o sonho de

construir uma escola mais solidria e humana? Os seus nomes esto aqui:

Mrcia dos Santos Oliveira; Vanessa Ransatto; Adriana Camargo de Melo; Marinalva Dias C.

Francisco; Janete Teixeira de Lyra; Arlete Martins; Tereza Cristina Barreiros; Luciane

Ceccopieri Belo; Judith de L. Cortez;Vera Lcia S. da Silva; Gergia Bezerra; Tonia Gilca

Silva Barbosa; Luciana Alves Pereira; Isabela Vargas; Tnia campos; Fabiana Esteves,

Ftima Janaina Santos Neves, Ivania Barbosa Gomes, Marliza Bod de Morais, Myrian

Medeiros da Silva, Dinalva Serrate, Andria Nogueira Teixeira, Andra Lopes de

Sousa;Thereza Cristina Millan de Almeida; Suzana; Neusimar Morais; Virginia ...

importante ressaltar que este no um grupo fechado. H, portanto, uma circulao

razovel de professoras. Temos um ncleo fixo, composto basicamente pelas professoras

citadas na pesquisa, um outro grupo que freqenta aleatoriamente, e um outro que permanece

por um tempo, se afasta, retorna. Para este trabalho, estou considerando participante quem

tem, nem que seja uma nica vez, o seu nome na lista de freqncia dos encontros. As

reticncias acima indicam que, provavelmente, muitas outras professoras participaram dos

nossos encontros, lembro-me inclusive de algumas, mas, por um motivo ou outro, no tiveram

os seus nomes registrados.

23

2.3- Sobre o que recolho no caminho: os dados da pesquisa

Desde o primeiro encontro da SOPPA havamos acertado que uma pessoa se disporia

fazer o registro dos acontecimentos, lendo-o no encontro seguinte. No havamos falado nada

sobre as alteraes que porventura surgissem. O que, para mim, seria inevitvel acontecer,

pois com uma mdia de quinze professoras discutindo algum assunto, nada mais natural, por

mais anotaes que se faa, que fiquem algumas informaes truncadas ou sem a referncia

de quem as fez.

Desse modo, organizamos uma pasta, muita bem cuidada por Mrcia Santos. Nela

esto, alm dos registros, materiais organizados por ns, fotografias e leituras realizadas ou

sugeridas. Agora so duas pastas. Os materiais contidos nelas so as minhas principais fontes

de pesquisa. Por mais que cada uma de ns faamos as anotaes pessoais, nos registros o

local onde encontramos mais informaes sobre os nossos encontros. Ou pelo menos deveria

ser.

Digo isso porque, aps o anncio da pesquisa, me vi tambm responsvel pela

organizao da pasta. S ento percebi que faltavam muitos registros. Isso j havia sido

apontado por Mrcia: Pessoal, quem ficou responsvel por algum registro, traz logo. T

faltando registro de vrios encontros. Isso foi uma dificuldade para mim durante a pesquisa.

Sabia que havamos discutido algum assunto, alguns estavam sinalizados no meu caderno

pessoal, mas quando ia procurar na pasta, o registro no estava. Sabia, entretanto, que ele

havia sido feito, pois fora lido durante o encontro. Por que ento no estava na pasta?

Eu e Tereza conversamos sobre isso. Ela, que acabara de ler o meu texto, tecia alguns

comentrios a respeito dos recortes que eu havia feito dos registros do grupo para inseri-los na

dissertao. Disse que gostou muito e me sugeriu colocar mais alguns. Eu lhe disse que j

havia utilizado o que me interessava de todos os registros disponveis. E o que ela achava da

idia de pedir que as professoras que ainda no os entregaram que me enviassem, via correio

eletrnico. Assim, eu os imprimiria e os colocaria na pasta. Com a opinio favorvel de

Tereza me senti mais vontade para fazer o pedido. At agora recebi somente um.

Por que as professoras no entregavam o registro? No era porque no faziam, pois

quase todas faziam a leitura dele. Nestes trs anos de encontros, poucas que ficaram de fazer o

registro, o deixaram de fazer quando isso acontecia sempre havia uma justificativa. Tereza

argumentou que a no entrega tinha a ver com o cuidado com a escrita que temos no grupo.

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Para ela muito mais a vontade de apresentar um texto bonito, caprichado, do que a

negligncia, a no responsabilidade. Quanto a isso, concordo com ela.

S depois, fiquei pensando em outra possibilidade. Realmente, no acho que seja m

vontade, j que o texto era lido. Isso quer dizer que a pessoa responsvel pelo registro,

ocupava uma parte do seu tempo em casa para faz-lo. A no entrega poderia, ento, estar

relacionada s nossas intervenes durante a leitura. No, no foi isso que foi dito; acho

que nesta parte voc poderia acrescentar isso; No foi fulana quem falou isso..... Isso

aconteceu principalmente quando discutamos assuntos complexos, como os relacionados

didtica de alfabetizao proposta nos Parmetros Curriculares Nacionais- PCN- de Lngua

Portuguesa. Penso que ficava muito difcil para as pessoas articularem a leitura do registro

com as sugestes de complementos e retificaes. De repente, o receio de, mesmo aps as

intervenes feitas, o texto no esteja de acordo com o que ns esperamos. Considerando que

Se quem escreve o faz para um outro, o outro est sempre presente quando escrevemos. Trata-se, pois, de um exerccio solitrio na aparncia, mas que nos pe em contato virtual com todos os possveis leitores. Quando apagamos, quando corrigimos, ns o fazemos para o severo leitor, eu ou voc (MAUTNER, apud ZIBETTI, 2005, p. 159).

Da que agora proponho uma mudana em relao ao ato de registrar os encontros.

Penso que as intervenes podem acontecer, mas o registro do encontro poderia ser entregue

do jeito que foi produzido. As alteraes ficariam a cargo de quem vai produzir o registro do

dia, que vai ser lido e entregue no encontro seguinte.

Uma sada que encontrei para a falta dos registros foi a gravao dos encontros. De

incio a minha inteno no era essa. Era muito mais a necessidade de captar tudo o que

acontecia no grupo, como se isso fosse possvel. Pensava: quem registra acaba no

registrando tudo o que acontece, tem sempre coisas que ficam de fora. Fiz alguns registros

utilizando a gravao. Ser que tambm no deixei coisas para trs? Ser que ao produzir um

texto, mesmo tendo como recurso uma gravao, no seleciono o que mais me diz, o que dou

mais valor?

Estou convencida que sim. Ao produzir o registro do encontro, mesmo sem ter

conscincia, coloco nele as minhas percepes de mundo, o meu juzo de valor sobre algumas

falas, dou mais nfase a alguns assuntos, outros nem cito. Em contrapartida existe um outro,

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aquele a quem quero atingir, o meu leitor. Por isso, o medo das crticas, o desejo de mostrar

um texto bem escrito. J que:

Na realidade toda palavra comporta duas faces. Ela determinada tanto pelo fato de que procede de algum, como pelo fato de se dirige para algum. Ela constitui justamente o produto da interao do locutor e do ouvinte. Toda palavra serve de expresso a um em relao ao outro. Atravs da palavra, defino-me em relao ao outro, isto , em ltima anlise, em relao coletividade. A palavra uma espcie de ponte lanada entre mim e os outros. Se ela se apia sobre mim numa extremidade, na outra apia sobre o meu interlocutor (BAKHTIN, 1999, p. 113).

Os registros, tanto os do grupo como as minhas anotaes pessoais, as transcries

das gravaes se constituram em importantes fontes de anlise dos acontecimentos do grupo.

As discusses sobre o PROFA e sobre o projeto De professor para professor: um convite ao

trabalho cooperativo se deram, principalmente, a partir dos documentos fornecidos por

Tereza. Tereza era a guardi do que para mim se constituiu em tesouros: carta das cursistas do

PROFA reivindicando a continuidade dos estudos referentes alfabetizao, avaliao de

professoras e formadoras que participaram do projeto De professor para professor, registro

de algumas reunies s quais ela e Marliza participaram na SME para discutirem sobre a

permanncia do projeto.

Em relao investigao propriamente sobre a SOPPA e a sua dinmica, pelo que

considerava um reduzido material de anlise (j que eram poucos os registros e ainda no

havia comeado a gravar os encontros), resolvi enviar um questionrio com perguntas abertas

para as integrantes do grupo. As perguntas versavam basicamente sobre: como e por que

surgiu a SOPPA; o significado dela para cada uma; se a participao no grupo faz diferena

na prtica; o que consideram um bom encontro.

A proximidade e intimidade com todas fizeram com que eu optasse por enviar as

perguntas via correio eletrnico e esperava as respostas pelo mesmo recurso. Entretanto,

algumas integrantes no me responderam ou, quando sim, percebia que as respostas eram

curtas e pontuais,o que fez com que eu optasse pela realizao de algumas entrevistas. Assim,

realizei cinco entrevistas, o que considerei um nmero razovel, principalmente considerando

o pouco tempo que me restava para a concluso do trabalho.

Cada entrevista teve em mdia duas horas de durao e foram realizadas em minha

casa. Isso se deu principalmente pela facilidade de acesso, pois as professoras entrevistadas,

com exceo de Luciana Alves, trabalhavam em lugares distantes. Assim, marcvamos algum

ponto de encontro, amos para a minha casa e depois as levava at o local que consideravam

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mais apropriado. Todas as entrevistas foram gravadas e a transcrio no se deu na ntegra.

Fiz, o que a professora Carmen Sanches chama de transcrio interessada. Assim, ouvia a

todas as gravaes e, como no discuto todos os temas abordados na entrevista, transcrevi

somente o que me interessou, neste momento.

Para a realizao das entrevistas, estabeleci algumas perguntas iniciais, entretanto,

tinha como inteno que o prprio dilogo fosse determinando os rumos das questes, o que

de fato aconteceu. Assim, ainda que tivessem um compromisso com os temas em questo:

formao, constituio de um grupo, trabalho em parceria, todas as entrevistas aconteceram

ao sabor do dilogo, construindo-se a partir de narrativas e da relao estabelecida entre as

interlocutoras. As professoras entrevistadas foram: Vanessa, Isabela, Luciana Alves, Mrcia

Santos e Luciane.Com esta ltima, alm do que foi conversado com as outras professoras,

direcionei o dilogo para que relatasse um pouco sobre o trabalho realizado por ela em uma

turma de 2 ano do Ciclo de Alfabetizao, no ano de 2006. Aqui j havia decidido discutir

como o planejamento organizado pelo grupo se articulava na sala de aula.

Na parte do texto em que isso ocorre, justifico a minha escolha por essa professora.

Luciane disponibilizou para essa discusso uma pasta contendo as principais produes

escritas dos alunos, desde junho, quando iniciou o trabalho com a turma, at dezembro. Alm

disso, enviou os relatrios dos alunos e uma avaliao que fez ao final do ano sobre a turma e

que foi entregue equipe pedaggica da escola.

Considerar os materiais enviados por Luciane como de fundamental importncia para

a pesquisa, significa compreender o que produzimos nas nossas salas de aula, como

privilegiadas formas de construir conhecimentos e compreender o cotidiano escolar. Para

Alves, as fontes comumente utilizadas para ver a totalidade do social no so suficientes e

nem apropriadas para compreender o cotidiano, com toda a sua complexidade. Segundo a

autora, para isso preciso recorrer a diferentes fontes, todas as fontes, algumas at

consideradas insignificantes, pois:

Para alm daquilo que pode ser grupado e contado (no sentido de numerado), como antes aprendemos, vai interessar aquilo que contado (pela voz que diz) pela memria: o caso acontecido que parece nico (e que por isto o ) a quem o conta; o documento (caderno de planejamento, caderno de aluno, prova ou exerccio dado ou feito etc.) raro porque guardado quantos tantos iguais foram jogados fora porque no eram importantes e sobre o qual se conta uma histria diferente, dependendo do trecho que se considera; a fotografia que emociona, a cada vez que olhada, e sobre a qual se contam tantas histrias, dos que nela aparecem ou esto ausentes ou da situao que mostra ou daquela que faz lembrar (ALVES, 2001, p. 27).

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Percebo que, em alguns momentos, o que Luciane relata, pode parecer ao leitor como

algo fcil de ser construdo tanto por ela como pelos alunos. Sei, entretanto, que a realidade

no o que parece ser. Assim, o dia-a-dia da sala de aula repleto de imprevistos,

contradies, recuos e avanos. Esta complexidade pouco destacada nos relatos, o que

caberia a mim, como pesquisadora, uma anlise mais questionadora.

Em nenhum momento observei a prtica de Luciane nesta turma, o que exigiria um

tempo maior do que o disponvel agora. Por isso, as discusses e anlises se do a partir do

que a professora me relata e tambm do que tenho de conhecimento de sua prtica por termos

trabalhado juntas em diversos momentos de nossa trajetria profissional. A devolutiva

professora sobre o que escrevia se dava via correio eletrnico. medida que escrevia, lhe

enviava e aguardava a sua apreciao sobre o escrito.

Desse modo tambm transcorreu a devolutiva que fiz, durante todo o percurso da

pesquisa, dos textos produzidos. A idia era que lendo, as professoras do grupo, pudessem

tecer comentrios, sugerir outras possibilidades ou questionar o que apresento ao analisar as

suas narrativas. Reconheo que isso no aconteceu com todas. Algumas, ao ler, teciam

somente comentrios positivos, outras no falavam nada. Mas os comentrios que algumas

fizeram foram de extrema importncia, tanto pela delicadeza e sensibilidade com que eram

feitos como pela sinceridade na exposio das suas idias, me apontando coisas que eu no

conseguia perceber de to mergulhada na produo. O que eu via como assunto esgotado,

algumas vezes, pela interveno da leitura que algumas integrantes do grupo faziam,

precisava ser revisitado, questionado. Aprendi assim que

No existe nem a primeira nem a ltima palavra, e no existem fronteiras para um contexto dialgico (ascende a um passado infinito e tende para um futuro igualmente infinito). Inclusive os sentidos passados nunca podem ser estveis (concludos de uma vez para sempre, terminados); sempre vo mudar renovando-se no processo posterior de dilogo (BAKHTIN, 2003, p. 410).

Esses dizeres de Bakthin tem relao com o que afirma Larrosa a respeito da leitura:

A liberdade da leitura est em ver o que no foi visto nem previsto. E em diz-lo

(LARROSA, 1998, p. 182). Essa era a minha inteno ao compartilhar com as professoras do

grupo o que vinha escrevendo sobre o prprio grupo: ao ler a nossa histria traduzida em uma

pretensa dissertao, que elas, com um olhar exotpico sobre o texto, me apontassem o que,

da posio de investigadora que agora ocupo, eu no conseguia ver.

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Assim, escolhendo caminhos, abandonando outros, pensando novas e diferentes

possibilidades, fomos construindo o que se apresenta agora como uma dissertao. Ao optar

por privilegiar a palavra das professoras do grupo, neste trabalho, me remeto ao que Freire

chama de novo pronunciar, ao afirmar que a existncia humana no pode ser silenciosa,

pois:

Existir, humanamente pronunciar o mundo, modific-lo. O mundo pronunciado, por sua vez se volta problematizado aos sujeitos pronunciantes, a exigir deles novo pronunciar. (...) No no silncio que os homens se fazem, mas na palavra, no trabalho, na ao-reflexo (FREIRE, 2005, p. 90 ).

Como Freire, acredito na fora das palavras. E atravs delas que, como pesquisadora,

pretendo analisar os acontecimentos de um grupo de professoras comprometido com a

alfabetizao dos alunos das classes populares. Professoras que ao investir em sua formao,

buscam novas formas de ensinar e de compreender a sua prtica. Professoras que se colocam

na posio de aprendizes, reconhecendo que s ensina quem aprende (FREIRE, 1998) e que a

base para a aprendizagem a certeza da inconcluso do ser humano, o que pressupe

humildade para reconhecer o seu inacabamento e esperana de ser melhor a cada dia.

Gostaria de ressaltar mais uma vez que deste grupo sou participante e agora

investigadora. No tenho, portanto, como me manter distanciada a analisar o meu objeto de

pesquisa, mesmo que acreditasse ser isso possvel. Sou uma professora, integrante da

SOPPA, a falar sobre os acontecimentos da SOPPA. Estou dentro desta pesquisa. Espero que

quem leia essa dissertao compreenda isso.

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3 PARTE

MEMRIAS COLETIVAS: O EU E O OUTRO EM FORMAO

E aprendi que se depende sempre De tanta muita, diferente gente Toda pessoa sempre a marca

Das lies dirias de outras tantas pessoas. E to bonito quando a gente entende

Que a gente tanta gente Onde quer que a gente v.

to bonito quando a gente sente Que nunca est sozinho

Por mais que pense estar ( Gonzaguinha)

O movimento de aprendizagem coletiva e compartilhada que vivemos na SOPPA de

abril de 2005 at hoje comeou a ser tecido em outros tempos e diferentes espaos,

principalmente a partir das experincias que tivemos com as professoras-formadoras Marliza

Bod de Moraes e Tereza Cristina Barreiros no Programa de Formao de Professores

alfabetizadores- PROFA e no projeto De professor para professor: um convite ao trabalho

cooperativo.

O trabalho destas duas profissionais nestes dois movimentos de formao foi essencial

para manter o nosso desejo e necessidade de continuar a refletir e estudar sobre a

alfabetizao dos nossos alunos. O respeito aos nossos diferentes saberes e a compreenso de

que a mudana da prtica no ocorre de uma hora para outra, alm da paixo que

demonstravam pela alfabetizao nos contagiavam. Desse modo, a histria da SOPPA se

entrelaa com a histria destes dois movimentos de formao e com a trajetria destas

profissionais na rede municipal de Duque de Caxias.

Ao relembrar os fatos sobre a nossa origem, procurar narrativas que contassem um

pouco a histria do grupo, me debruo inicialmente sobre estes dois espaostempos: o

PROFA e o projeto De professor para professor: um convite ao trabalho cooperativo. Trago

aqui somente as falas das professoras que participaram destas formaes, compreendendo

que com elas que a SOPPA se inicia, se gesta. a partir da que as histrias se unem em

busca do sonho de construir uma outra realidade, uma outra escola, onde ensinar e aprender

possam ser inerentes ao exerccio da profisso de professor.

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3.1-O Programa de Formao de Professores Alfabetizadores- PROFA

O Programa de Formao de Professores Alfabetizadores- PROFA comeou a ser

desenvolvido em nvel nacional no incio de 2001, por meio de parcerias entre o MEC com

secretarias estaduais, municipais e universidades. Foi concebido para subsidiar o trabalho do

professor em termos tericos, metodolgicos e organizacionais, dando-lhe uma dimenso

coletiva e institucional, pautado na certeza de que, para assegurar ao aluno o direito

aprendizagem, preciso garantir ao professor o direito de desenvolvimento profissional

contnuo, aliado a melhorias relacionadas s condies de trabalho e carreira. Em 2003, o

curso deixa de ser desenvolvido com o apoio do Governo Federal. A partir da, a sua

continuidade se deu por esforos de secretarias e instituies de ensino.

O Programa propunha discusses sobre uma didtica da alfabetizao que tem como

referncia a psicognese da lngua escrita e como compromisso a formao inicial do aluno

como leitor e produtor de textos. Privilegiava, portanto, contedos relacionados no s aos

processos de aprendizagem da leitura e da escrita como organizao do ensino de Lngua

Portuguesa no incio da escolarizao.

Em 2002, foi criado em Duque de Caxias o primeiro grupo de formao do PROFA,

coordenado pelas professoras Olga Guimares e Stella Maris de Macedo, docentes da

Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ. Neste mesmo ano, as professoras Marliza

Bod de Moraes e Tereza Cristina Barreiro so admitidas por concurso para o cargo de

orientadoras pedaggicas de escolas pblicas do Municpio de Duque de Caxias. A Secretaria

Muncipal de educao de Duque de Caxias- SME, ao tomar conhecimento de que as duas

haviam participado do curso de formadores em nvel nacional, as convida para coordenarem

novas turmas do PROFA, juntamente com as professoras pertencentes primeira turma e

selecionadas para atuarem como formadoras. Sem saber comevamos, neste momento, a

escrever coletivamente esta histria.

Histria de luta de professoras que no aceitam a idia determinista do insucesso dos

alunos das classes populares do acesso ao conhecimento. Histria de quem acha possvel

alfabetizar todos os alunos que recorrem s escolas pblicas e no apenas alguns, como vem

acontecendo nas escolas brasileiras. Histria de quem no se conforma com a incapacidade

dos sistemas de ensino em garantir a permanncia dos alunos das classes populares nos

bancos escolares.

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Contrariando os discursos oficiais que apontam o professor como o principal

responsvel pelo fracasso na educao, o PROFA apresenta como justificativa a necessidade

de investimentos na formao do professor que alfabetiza, embora deixe claro que somente

este investimento no vai conseguir mudar o cenrio educacional brasileiro. Aliada

formao docente, o programa aponta para a urgncia da melhoria das condies de trabalho e

valorizao da carreira. No Documento de Apresentao do Programa, explicita-se a

importncia do investimento na formao continuada dos professores:

No justo que os sistemas de ensino e seus gestores assumam uma posio de responsabilizar pessoalmente os educadores pelo fracasso do ensino. Se a sociedade demanda profissionais bem-formados para prestar um servio de qualidade populao, preciso que as instituies formadoras cumpram a tarefa de habilit-los adequadamente para o exerccio da profisso.

( BRASIL, Documento de Apresentao do PROFA / MEC, 2001, p.19)

Com uma carga horria de 180 horas, distribudas em 3 mdulos, este curso destinava-

se ao professor que alfabetiza, fosse na educao infantil, no ensino fundamental ou na

educao de jovens e adultos e tinha como proposta central discusses sobre uma didtica de

alfabetizao que compreende o aluno como leitor e produtor de textos desde o incio de seu

processo de escolarizao.

O segundo semestre de 2002 comea com a divulgao nas escolas de que estariam

sendo formadas novas turmas do PROFA. Entretanto, s um professor de cada escola poderia

se inscrever e o curso seria ministrado fora do horrio de trabalho, inclusive aos sbados.

Nesse perodo, eu trabalhava com um grupo de alunos que, segundo as professoras das

turmas, apresentava muitas dificuldades na aprendizagem da leitura e escrita. Eram dezesseis

alunos que freqentavam a sala regular e, no contra-turno, participavam, em grupos de quatro,

do projeto de apoio, o GALE - Grupo de apoio leitura e escrita. Informei a escola sobre o

meu desejo de fazer o curso. Queria aprender mais sobre esta tarefa to complexa de ensinar a

ler e escrever.

Mas no era to fcil assim: como s uma pessoa por escola poderia participar do

curso e outras professoras tambm demonstraram o desejo de participar, resolvemos fazer um

sorteio. Grata surpresa: eu fui a sorteada. Luciane, que trabalhava comigo na Escola

Municipal Vila Operria, era uma das que pretendiam fazer o curso. Insatisfeita por no ter

conseguido se inscrever foi