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Identidade! é licenciada sob uma Licença Creative Commons. Identidade! | São Leopoldo | v.18 n. 3, ed. esp. | p. 312-323 | dez. 2013 | ISSN 2178-0437X Disponível em: <http://periodicos.est.edu.br/identidade> Espaços e práticas de sociabilidades da comunidade quilombola do Morro do Fortunato – Garopaba – SC Spaces and practices of sociability of the quilombola community on Fortunato Hill– Garopaba - SC Mauricélia Teixeira de Albuquerque Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História – PPGH, da Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC Resumo: Este artigo lança mão das memórias de moradores da Comunidade de Remanescentes de Quilombo do Morro do Fortunato, localizada no Norte do município de Garopaba – SC, no bairro Macacú, procurando, através das narrativas, delinear os acontecimentos que possibilitaram a formação do grupo. Desta forma, a metodologia da História Oral é o aporte teórico que dá sustentação ao estudo. Vale lembrar que estudos referentes à problemática afro-brasileira encontram lugar de destaque na contemporaneidade, pois os afro-brasileiros fizeram-se presentes em diferentes espaços com seus costumes, sua religiosidade e seu trabalho, desempenhando, desde os primeiros momentos da colonização, papel fundamental na formação étnica e cultural brasileira. Palavras-chave: História Oral. Memória. Identidade/Identificação. Comunidade Quilombola. Abstract: This article makes use of the memories of residents of the Community of Remnants of Quilombo Morro do Fortunato, located in the North of the city of Garopaba – SC, in the District of Macacú, seeking through the narratives to outline the events that made possible the group formation. Thus, the methodology of oral history is the theoretical basis that supports the study. It is important to remember that studies on the African-Brazilian theme took place in contemporary times because the African-Brazilian made up of different spaces with their habits, religion and work, developing since the early days of colonization an important role in the ethnic and cultural Brazilian formation. Keywords: Oral History. Memory. Identity/Identification. Community Quilombo. Introdução Este estudo refere-se à formação da Comunidade de Remanescente de Quilombo do Morro do Fortunato, localizada no Norte do Município de Garopaba – SC, no bairro Macacu. As discussões giram em torno da constituição histórica do grupo e dos aspectos que garantiram a coesão e sua permanência naquele espaço. Nesse sentido, recorrem-se as memórias de moradores da comunidade bem como de seu entorno, buscando, através destas narrativas, apresentar os

Espaços e Praticas de Sociabilidades Da Comunidade Quilombola Do Morro Do Fortunato

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Este artigo lança mão das memórias de moradores da Comunidade de Remanescentes deQuilombo do Morro do Fortunato, localizada no Norte do município de Garopaba – SC, nobairro Macacú, procurando, através das narrativas, delinear os acontecimentos quepossibilitaram a formação do grupo. Desta forma, a metodologia da História Oral é o aporteteórico que dá sustentação ao estudo. Vale lembrar que estudos referentes à problemáticaafro-brasileira encontram lugar de destaque na contemporaneidade, pois os afro-brasileirosfizeram-se presentes em diferentes espaços com seus costumes, sua religiosidade e seutrabalho, desempenhando, desde os primeiros momentos da colonização, papel fundamentalna formação étnica e cultural brasileira.

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  • Identidade! licenciada

    sob uma Licena Creative Commons.

    Identidade! | So Leopoldo | v.18 n. 3, ed. esp. | p. 312-323 | dez. 2013 | ISSN 2178-0437X

    Disponvel em:

    Espaos e prticas

    de sociabilidades

    da comunidade quilombola

    do Morro do Fortunato

    Garopaba SC

    Spaces and practices

    of sociability of the

    quilombola community on

    Fortunato Hill

    Garopaba - SC

    Mauriclia Teixeira de Albuquerque

    Mestranda do Programa de Ps-Graduao em Histria PPGH, da Universidade do Estado de Santa Catarina UDESC

    Resumo:

    Este artigo lana mo das memrias de moradores da Comunidade de Remanescentes de

    Quilombo do Morro do Fortunato, localizada no Norte do municpio de Garopaba SC, no bairro Macac, procurando, atravs das narrativas, delinear os acontecimentos que

    possibilitaram a formao do grupo. Desta forma, a metodologia da Histria Oral o aporte

    terico que d sustentao ao estudo. Vale lembrar que estudos referentes problemtica

    afro-brasileira encontram lugar de destaque na contemporaneidade, pois os afro-brasileiros

    fizeram-se presentes em diferentes espaos com seus costumes, sua religiosidade e seu

    trabalho, desempenhando, desde os primeiros momentos da colonizao, papel fundamental

    na formao tnica e cultural brasileira.

    Palavras-chave: Histria Oral. Memria. Identidade/Identificao.

    Comunidade Quilombola.

    Abstract:

    This article makes use of the memories of residents of the Community of Remnants of

    Quilombo Morro do Fortunato, located in the North of the city of Garopaba SC, in the District of Macac, seeking through the narratives to outline the events that made possible

    the group formation. Thus, the methodology of oral history is the theoretical basis that

    supports the study. It is important to remember that studies on the African-Brazilian theme

    took place in contemporary times because the African-Brazilian made up of different

    spaces with their habits, religion and work, developing since the early days of colonization

    an important role in the ethnic and cultural Brazilian formation.

    Keywords: Oral History. Memory. Identity/Identification. Community Quilombo.

    Introduo

    Este estudo refere-se formao da Comunidade de Remanescente de Quilombo do Morro

    do Fortunato, localizada no Norte do Municpio de Garopaba SC, no bairro Macacu. As

    discusses giram em torno da constituio histrica do grupo e dos aspectos que garantiram a

    coeso e sua permanncia naquele espao. Nesse sentido, recorrem-se as memrias de moradores da

    comunidade bem como de seu entorno, buscando, atravs destas narrativas, apresentar os

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    acontecimentos que possibilitaram tal formao. Assim, para dar sustentao terica pesquisa,

    trabalha-se com as categorias: Identidade / Identificao, Memria e Experincias. A construo

    identitria desse grupo no est naturalmente dada, ela construda por meio de escolhas e

    confrontos. Lembrando que os estudos que abrangem a problemtica afro-brasileira encontram

    lugar de destaque na contemporaneidade.

    O presente artigo tem como finalidade mapear os espaos de sociabilidades da

    Comunidade Quilombola do Morro do Fortunato, no municpio de Garopaba. A comunidade

    caracteriza-se como Quilombo contemporneo, sendo que sua constituio est caracterizada pela

    comum herana com o passado escravista e por formas culturalmente especficas como a

    coletividade e o compadrio. Essas caractersticas so visveis pelas vivncias e por experincias de

    organizao social diretamente relacionada ao direito a terra, por formas de consanguinidade e

    parentesco.

    Constitudas por descendentes de escravo, a Comunidade do Morro do Fortunato, ainda

    contemplam alguns dos hbitos e costumes dos antepassados, reconstitudos ao longo do tempo por

    fora da tradio, como a produo familiar de gneros alimentcios, utilizando utenslios muitas

    vezes improvisados, mas que, juntamente com o trabalho assalariado, garante a sobrevivncia do

    grupo e a manuteno da cultura herdada de seus antecessores.

    A trajetria do conceito de Quilombo

    No poderamos iniciar tal discusso sem deixar bastante clara a trajetria do conceito de

    Quilombo e suas transformaes. Assim, como ponto de partida, sentiu-se necessidade de

    entendermos acerca da construo histrica dos Quilombos, pois no decorrer da histria do Brasil

    ocorreram vrias anlises e interpretaes referentes ao conceito de Quilombo.

    No sculo XVI, o conceito de Quilombo foi inicialmente, identificado, pelos cronistas e

    autoridades como algo danoso sociedade. O conceito de Quilombo abarca diferentes tempos e

    espaos na historiografia brasileira. No decorrer do perodo colonial e imperial esteve associado

    resistncia e a fuga na inteno de enfraquecer ou, at mesmo, extinguir o regime escravista.

    J na segunda dcada do sculo XX, o termo Quilombo foi rebuscado por estudiosos

    principalmente marxistas ou simpatizantes ao marxismo, como expresso singular da luta de

    classes. Entretanto, a partir de 1988, aps a promulgao da Constituio, o conceito de Quilombo

    foi reinterpretado, adquirindo nova significao.

    A definio histrica do conceito Quilombo vista ainda muitas vezes estereotipada, no

    senso comum, calcada na ideia de fuga ou negros fugitivos. Atualmente diversos discursos e

    debates polticos foram produzidos acerca desses conceitos estereotipados.

    Iniciou um largo processo de recuperao e reenquadramanto da memria at ento

    recalcadas, e a revelao de laos histricos entre comunidades contemporneas e grupos

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    de escravos que, de diferentes formas e em diferentes momentos, teriam conseguido impor

    sua liberdade ordem escravista1.

    Atravs desses processos de reenquadramanto da memria e os debates em questo, o

    conceito de Quilombo passou a abranger realidades de grupos cada vez mais distintos. As reas

    territoriais dos grupos Remanescentes de Quilombo foram ocupadas de diversas maneiras e em

    ocasies e contextos bastante diferentes. Muitos dos escravos livres e seus descendentes as

    ocuparam no necessariamente porque para l fugiram, mas, sim, porque foram reas de terras

    conquistadas, ofertadas, compradas ou adquiridas de diferentes maneiras. Enfim, revelando a

    pluralidade nos modos de obteno e ocupao das terras dos grupos que possuem em comum

    herana com o passado escravista. Quilombo , ento, definido como sendo uma experincia

    coletiva, no s dos africanos, mas de seus descendentes, somados as tantas experincia trocadas

    em seu interior pelos diferentes sujeitos [...] 2.

    Nessa nova perspectiva, o termo Quilombo, tambm defendido em legislao, excede a

    histria baseada na fuga dos escravos. Fundamentada numa perspectiva contempornea, dentro de

    uma viso mais ampliada, o conceito de Quilombo gira em torno de novos desafios, a luta pela

    posse definitiva da terra e a preservao da cultura que rene um verdadeiro universo de tradies.

    Assim, o conceito de Quilombo adquiriu novas interpretaes:

    O Quilombo passa, a significar, um tipo particular de experincia, cujo alvo recai sobre a

    valorizao das inmeras formas de recuperao da identidade positiva, a busca por tornar-

    se um cidado de direitos, no apenas de deveres. Enquanto uma forma de organizao, o

    Quilombo viabiliza novas polticas e estratgias de reconhecimento 3.

    Analisando a interpretao da autora, percebe-se que a histria do Quilombo no Brasil foi e

    uma histria de luta e de resistncia, semelhante a das Comunidades Quilombolas atuais, que

    lutam pelo direito a terra, cidadania e respeito. Portanto, as novas interpretaes acerca dos

    Quilombos significariam para a sociedade brasileira, sobretudo um direito a ser reconhecido e no

    propriamente apenas um passado a ser rememorado 4.

    Conhecer os Quilombos e as Comunidades Quilombolas no cenrio poltico atual ,

    portanto, falar de uma luta poltica e, consequentemente, uma reflexo cientfica em processo de

    construo. Acerca das consideraes referentes ao conceito de Quilombo, pode-se afirmar que este

    tem passado atualmente por vrios questionamentos, diferindo da ideia de fuga e de rebeldia que

    muitos estudiosos conheciam ou referendavam.

    A discusso sobre os Quilombos contemporneos foi trazida tona pelo movimento negro,

    principalmente nos anos de 1970, como parte do contexto da luta contra o preconceito racial. Essa

    grande batalha se deve ao aprendizado intelectual de vrios autores como Llia Gonzalez Abdias do

    1 ARRUTI, Jos Maurcio. Mocambo: antropologia e histria do processo de formao Quilombola. Bauru: Edusc,

    2006. p. 28. 2 MUNANGA, Kabengele (Org.). Superando o racismo na escola. 2 ed. Braslia: Ministrio da educao, Secretaria

    de Educao Continuada, Alfabetizao e Diversidade, 2004. p. 72. 3 LEITE, Ilka Boaventura. Os Quilombos no Brasil: questes conceituais e normativas. Textos e Debates,

    Florianpolis: NUER/UFSC, n. 7. 2000, p. 19. 4 LEITE, 2000, p. 6.

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    Nascimento, Clvis Moura, Kabengele Munanga, dentre outros. Um dos objetivos dessa luta foi

    enfatizar os Quilombos como cones da resistncia negra. Nesse sentido Abdias do Nascimento

    afirma que Quilombo quer dizer reunio fraterna e livre, solidariedade, convivncia, comunho

    espiritual 5. Seguindo o pensamento de Abdias, os Quilombos so locais de liberdade e de

    modernizao dos laos tnicos e ancestrais, constitui a nica via segura para modificar o discurso e

    conduzir a uma nova conscincia em relao cultura e identidade africana.

    Identificao e alto-reconhecimento da Comunidade Quilombola Morro do Fortunato

    Para garantir direitos a esta comunidade importante entender o contexto histrico onde se

    originou cada experincia. E para entendermos os sentidos e como eram reelaboradas as prticas

    cotidianas e a noo de experincia importante nos reportarmos a E.P.Thompson. Dessa forma,

    compreendemos os grupos Remanescentes de Quilombo em seu carter social apontado pela

    historiografia, percebemos os sujeitos nas suas multiplicidades de experincias e vivncias

    experimentando suas prprias experincias, na cultura como normas, obrigaes familiares e de

    parentesco, e reciprocidade, como valores ou na arte ou nas convices religiosas 6. Ou seja,

    prticas cotidianas que possibilitem a garantia de direitos a estas comunidades valorizando cada

    experincia vivenciada.

    importante destacar que os membros e lideranas da Comunidade Quilombola do Morro

    do Fortunato, atualmente veem rompendo com a histria tradicional centrada nos antigos discursos

    polticos que lhes determinavam as regras e os caminhos que tinham que trilhar. Na ltima dcada

    alguns dilogos foram estabelecidos nessa comunidade com o objetivo de sensibilizar os moradores

    da importncia da autoidentificao e autoreconhecimento da identidade como Comunidade

    Quilombola e principalmente de seus direitos. A partir dessas reflexes passaram a pensar sobre os

    diferentes usos da memria e da histria na mobilizao pelo direito a terra e pelo reconhecimento

    como remanescente de Quilombo perante as agncias federais vinculadas a essa temtica.

    Esse estudo busca ainda, e mais especificamente, compreender a formao espacial e as

    prticas de sociabilidade da Comunidade Quilombola do Morro do Fortunato, em Garopaba. E para

    que o presente trabalho tenha respaldo acadmico e possa contribuir com a construo histrica do

    grupo necessrio colaborao dos moradores e vizinhos da Comunidade Quilombola, pois se

    sabe que uma das principais ferramentas do conhecimento est nos depoimentos e nas memrias

    desses moradores. Ainda com relao memria, concordamos que a memria seletiva. Nem

    tudo fica gravado. Nem tudo fica registrado.7 Ainda referente memria, salientamos que por

    muito que deva memria coletiva, o indivduo que recorda. Ele o memorizador das camadas

    do passado a quem tem acesso pode reter objetos que so, para ele, significativos dentro de um

    tesouro comum 8.

    5 NASCIMENTO, Abdias. O Quilombismo. 2 ed. Rio de Janeiro: Fundao Palmares/OR Editor, 2002. p. 272.

    6 THOMPSON, Edward P. A misria da teoria ou um planetrio de erros. Rio de Janeiro: Zahar, 1981. p. 182-189.

    7 POLLAK, Michael. Memria e identidade Social. Estudos Histricos, Rio de Janeiro, v. 5, n. 10, p. 200-212, 1992.

    p. 200. 8 BOSI, Ecla. Memria e Sociedade: Lembranas de Velhos. 11 ed. So Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 411.

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    Disponvel em:

    Em se tratando de vivncias Quilombolas, o dilogo entre as fontes passa a contemplar

    experincias e pontos de vista distintos, contraditrios, ambguos, que tendem a se completar

    mutuamente, pois argumentam coletivamente diante de uma problemtica comum - a luta pela

    afirmao de uma identidade. Minha inteno no tentar a tarefa impossvel de estabelecer a

    verdade dos fatos, mas sim mostrar o que se pode registrar e analisar a partir do lugar que o sujeito

    se situa como agente histrico e como historiador.

    Com o intuito de conhecer as vivncias dos moradores da Comunidade Quilombola da

    Aldeia, a histria oral um procedimento, um caminho ou um fio condutor das tramas da memria,

    das experincias de vida em um espao no qual a oralidade predomina. A histria Oral possibilita

    o afloramento de mltiplas verses da histria e, portanto, potencializa o registro de diferentes

    testemunhos sobre o passado 9. Nesse sentido os testemunhos e os relatos orais tornaram-se as

    fontes principais a serem trabalhadas. Nessa perspectiva, a categoria memria constitui-se como

    elemento de significativa importncia para a reconstituio do processo histrico desses

    remanescentes; o sujeito que lembra 10.

    A memria algo que se diferencia do presente, mas que, ao mesmo tempo, o compe.

    Assim como a memria, tambm o passado entendido dentro do pensamento ocidental como um

    mbito temporal distinto do presente. A memria um dos caminhos para o conhecimento do

    passado. Nesse sentido, o maior desafio da histria oral, tomando como emprstimo a interpretao

    de Walter Benjamin sobre a memria, contribuir para que as lembranas continuem vivas e

    atualizadas.

    Ressalta-se que a memria tem vrias funes: toda nossa conscincia do passado est

    fundada na memria; atravs das lembranas recuperamos acontecimentos anteriores, distinguimos

    o ontem de hoje e confirmamos que j vivemos um passado. A memria, portanto, traduz registro

    de espaos, tempos, experincias, imagem, e representaes.11 Ou seja, o passado muitas vezes nos

    ajuda entender o contexto vivido, como tambm nos ajuda a construir um futuro mais significativo.

    Nesse vis, a categoria identidade / Identificao vem complementar e at mesmo de forma

    intrnseca, estabelecer os contornos das particularidades pertinentes da Comunidade Quilombola em

    questo: Morro do Fortunato. A construo identitria desse grupo no est naturalmente dada, ela

    construda por meio de escolhas e confrontos. Nesse sentido, pensamos que existe uma crise de

    identidade abalando as estruturas do homem ps-moderno. As fronteiras bem definidas do homem

    da sociedade moderna o localizavam e o definiam no mundo social e cultural, premissa que fora

    abalada na modernidade tardia com o descentramento das identidades modernas12

    .

    9 DELGADO, Luclia de Almeida Neves. Histria oral: memria, tempo, identidades. Belo Horizonte: Autntica,

    2006. p. 52. 10

    HALBWACHS, Maurice. A Memria Coletiva. So Paulo: Centauro, 2004. p. 80. 11

    DELGADO, 2006, p. 61. 12

    HALL, Stuart. Identidade cultural na ps-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2006. p. 2.

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    Disponvel em:

    Assim, a identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente uma fantasia. 13

    Entende-se ento que as tradies e os valores so reinventados pelas novas geraes que so mais

    susceptveis, dos meios informacionais e pelas polticas implantadas pelos rgos institucionais. O

    autor ainda ressalta que na ps-modernidade o que se pode chamar de identidade fixa aquela que

    consolidava o homem moderno, no se ampara devido s prprias modificaes histricas de ordens

    estruturais e institucionais.

    Sendo assim, a identificao seria o processo pelo qual nos projetamos em nossas

    identidades, identidade torna-se uma celebrao mvel: formada e transformada continuamente em

    relao s formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos

    rodeiam. Ou seja, as velhas identidades esto em declnio e as novas identidades permitindo as

    mltiplas fragmentaes. Possibilitando aos sujeitos ps-modernos, a no terem uma identidade

    fixa, essencial ou permanente, ou seja, h uma crise de identidade, pois dentro de ns h

    identidades contraditrias, empurrando em diferentes direes, de tal modo que nossas

    identificaes esto sendo continuamente deslocadas.14

    Os estudos sobre processo de identidade cultural enaltecem as reflexes sobre as

    experincias vivenciadas pelo grupo em estudo. Ou seja, ressaltam os mltiplos fios das culturas e

    tradies estabelecidas e vivenciadas por eles, na perspectiva da teoria de uma identidade hibrida.

    O sujeito previamente vivido dentro de uma identidade unificada e estvel, est se tornando

    fragmentado; composto no de uma, mas de vrias identidades, algumas vezes contraditrias e no

    resolvidas.15 Sabe-se que as hibridaes podem ocorrer de formas variadas, vejamos uma delas:

    Como a hibridao funde estruturas ou prticas sociais discretas para gerar novas estruturas

    e novas prticas? s vezes isso ocorre de modo no planejado ou resultado imprevisto de

    processos migratrios, tursticos ou de intercmbio econmico ou comunicacional. Mas

    frequentemente a hibridao surge da criatividade individual e coletiva. No s nas artes,

    mas tambm na vida cotidiana e no desenvolvimento tecnolgico. 16

    Alm disso, no caso especifico dos Quilombos, existem lutas identitria, pois existem as

    disputas internas, as verses a cerca do mito de fundao a serem aceitas por todos, enfim, uma

    gama bastante complexa de olhares e opinies que se engendram pra construir a face identitria do

    grupo. Nesse sentido, importante destacar certas consideraes a cerca do momento histrico que

    vivemos: [...] encontramo-nos no momento em que espao e tempo se cruzam para produzir

    figuras complexas de diferena e identidade, passado e presente, interior e exterior, incluso e

    excluso.17 Tendo em vista o pensamento do Homi K. Bhabha, sobre a complexidade do processo

    histrico identitrio em que vivemos, compreendemos que os movimentos de identidade cultural

    enfrentam a superao das referncias nacionais ou raciais, os seus essencialismos em favor de

    culturas locais, culturas de grupos, culturas de gnero, culturas de movimentos e tantas outras

    culturas.

    13

    HALL, 2006, p. 13. 14

    HALL, 2006, p. 12-13. 15

    HALL, 2006, p. 12. 16

    CANCLINI, Nstor Garca. Culturas hibridas: estratgias para entrar e sair da modernidade. 4 ed. So Paulo:

    EDUSP, 2008. p. 22. 17

    BHABHA, Homi k. O local da cultura. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 1998. p. 19.

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    Disponvel em:

    Ressaltamos, portanto, a importncia que vrios grupos e partidos polticos tiveram

    colocando em cena, dando visibilidade a novas configuraes de auto representao cultural. Ou

    seja, processos de identidade e diferena so mutuamente dependentes. Todo grupo social

    especfico ao se posicionar socialmente como sujeito de uma determinada tradio cultural,

    reinventa ou assume uma nova identidade. Sendo assim, viver uma identidade abrange constru-la

    tambm. No entanto, as tradies tambm podem ser inventadas e ou se transformarem ao longo do

    tempo. A tradio inventada tenta, sempre que possvel, estabelecer continuidade com um passado

    histrico apropriado. Ou seja, pode ser entendida como um conjunto de prticas reguladas por

    regras de natureza ritual ou simblica, aceitas pelo grupo, que visam sugerir certos valores e normas

    de comportamentos a partir da repetio, implicando uma continuidade em relao ao passado. Na

    medida em que as prticas passam a ser um hbito, a partir da repetio, resgata-se um passado

    histrico ao quais tais prticas fazem referncia ao grupo.

    Assim, as culturas no correspondem a fronteiras espaciais ou temporais. No estabelecem

    obstculos de nao ou de raa. Tampouco reproduzem valores essenciais de antigas tradies como

    um princpio histrico. As tradies, as culturas so escancaradas ao dilogo e s trocas. A dinmica

    das identidades e formaes culturais totalmente livre e no seguem um fio condutor pronto que

    orienta sua trajetria cultural. Ou seja, as prticas culturais trocam, intercambiam-se, conflitam-se,

    metamorfoseiam-se permanentemente. Nesse sentido entendemos as reinvenes culturais e

    identitrias dos grupos sociais, principalmente da Comunidade Quilombola em estudo.

    Constituio histrica da Comunidade Quilombola do Morro do Fortunato e os aspectos que

    garantiram a coeso e a permanncia naquele espao.

    No litoral de Santa Catarina, Municpio de Garopaba, numa altitude compreendida entre

    100 e 200 metros, existe, h mais de cem anos, uma comunidade negra denominada Famlia do

    Fortunato, na localidade conhecida como Morro do Fortunato, no bairro de Macacu. Segundo

    Miriam Furtado Hartung (1992) o nome Fortunato decorrente da unio de duas palavras: Fortuna

    e Nato, podendo-se dar a ele o significado de nascido na fortuna.

    Numa anlise mais profunda acerca do nome do grupo social em estudo, pode-se sugerir

    que o nome Fortunato traz memria do grupo a imagem de um dos seus ancestrais e fundador:

    Fortunato Justino Machado. Os membros o tinham como responsvel pela comunidade, sendo ele

    considerado homem de boa ndole, sensato e rico, imagem que foi construda a partir de valores

    institudos pela comunidade. O nome Fortunato evoca, portanto, esse conjunto de valores, de

    virtudes, que se propagaram na defesa do grupo. Para Maurlio Machado, bisneto de Fortunato

    Justino Machado e Presidente da Associao de Moradores da Comunidade, o patriarca foi:

    Meu bisav Fortunato Justino Machado foi um homem rico. No incio quando veio morar

    aqui no Morro no, tudo foi difcil para ele. Para criar os filhos passou bastante dificuldade,

    mas depois se tornou um homem rico, pois no Morro tinha mais de 20 mil ps de caf.

    Dizem aqui no Morro, que ele at emprestava dinheiro para os homens brancos do Centro

    da cidade de Garopaba18

    .

    18

    Entrevista realizada na residncia do Sr. Murlio Machado, Rua Geral do Morro do Fortunato, Macac,

    Garopaba/SC, em 16/02/2013.

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    Disponvel em:

    Essa imagem de homem trabalhador e rico que os moradores do grupo aludem

    fundamentada na trajetria do grupo, j que quando de sua constituio havia uma crise econmica.

    Joana Maria de Jesus, me de Fortunato Machado, ficou sozinha com um menino de dez anos de

    idade naquele mato, isolada de vizinhos e com parcos meios de produo. Pode-se inferir que o

    prprio Marcos Vieira, seu antigo senhor, lhe auxiliou para poder sustentar seu filho at que se

    tornasse capaz e em condies de assumir a casa. Segundo a Sra. Jordina Machado (82 anos),

    moradora da comunidade:

    Meu av Fortunato Justino Machado foi um moo que se casou muito cedo, casou-se com

    Luiza Cristina de Jesus, moa que veio de Imbituba e tiveram oito filhos: Joo Fortunato

    Machado, Loureno Machado, Manoel Machado, Alice Machado, Anastcio Machado,

    Daniel Machado, Incio Machado, e tem mais um menino que morreu solteiro. No devia

    ser fcil, naquele tempo, criar uma famlia to grande19

    .

    A fala da Senhora Jardina vem a corroborar que a situao financeira da famlia do Sr.

    Fortunato no incio da formao do grupo no era nada fcil, pois criar sete filhos, numa poca em

    que no havia uma estrutura econmica e social estabilizada era muito desafiadora. Com os filhos

    em fase de crescimento havia a perspectiva que se tornassem capazes de colaborar com o trabalho

    coletivo. De fato, at que atingissem o ponto de trabalhar, muitas dificuldades foram enfrentadas.

    Em relao nfase da riqueza do Sr. Fortunato infere-se que seja referente ao trabalho do

    grupo, aps seus filhos estarem criados e coletivamente produzirem sua prpria economia. Durante

    dcadas os moradores do Morro do Fortunato viveram sob a economia de subsistncia destacando-

    se a seguinte produo: cana-de-acar (acar, cachaa e melado), feijo, milho, amendoim,

    mandioca, sabo, criao de gado e de galinha. Sendo que, ainda hoje, muitos moradores

    desenvolvem prticas na rea rural contemplando desde a criao de gado ao cultivo de cana-de-

    acar. Alm disso, a grandeza da comunidade foi o caf. Segundo o Sr. Laudelino Antnio

    Teixeira: Em Garopaba tinha algumas famlias produtoras de caf e o Morro do Fortunato era uma

    das comunidades que produziam muito caf. Esta produo era transportada para o centro do

    municpio, negociada com o comrcio local e embarcada para Florianpolis.20

    A rea onde se localiza o Morro do Fortunato constituda por dois ncleos residenciais

    distintos, denominados Morro e Vale. A distncia do Morro para o Vale de aproximadamente um

    quilmetro. No Morro, residem os habitantes de raiz africana e no Vale famlias, em sua maioria,

    descendentes de europeus (aorianos).

    Em entrevista com o Sr. Maurlio Machado, Presidente da Associao de Moradores da

    Comunidade Quilombola do Morro do Fortunato, bem como atravs de conhecimentos prvios,

    percebeu-se que a constituio do Morro do Fortunato aconteceu de forma bastante distinta da outra

    Comunidade Quilombola do Municpio de Garopaba a Aldeia, isto porque no caso do Morro do

    Fortunato foi um nico ncleo familiar que iniciou o povoamento do local enquanto que na Aldeia

    19

    Entrevista realizada na residncia da Sra. Jordina Machado, Rua Geral do Morro do Fortunato, Macac,

    Garopaba/SC, em 16/02/2013. 20

    Entrevista realizada na residncia do Sr. Laudelino Antnio Teixeira, Rua Geral do Ouvidor Limpa Garopaba, em 17/02/2013.

  • 320 ALBUQUERQUE, M. T. Espaos e prticas de sociabilidades...

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    Disponvel em:

    as famlias foram passando a morar prximas umas das outras atravs de casamentos, por

    compadrio ou aleatoriamente.

    No caso do Morro do Fortunato, o grupo ainda se mantm praticamente no mesmo espao

    geogrfico desde a chegada de Joana Maria de Jesus e seu filho Fortunato Justino Machado. Ainda

    hoje, em uma faixa de terra com cerca de 700 metros de comprimento por 200 metros de largura,

    vivem as cerca de 35 (trinta e cinco) famlias de remanescentes quilombolas.

    A Comunidade Quilombola do Morro do Fortunato, est localizada no municpio de

    Garopaba, mais especificamente nas proximidades da Lagoa do Siri. Esta comunidade

    desenvolveu-se nas terras que pertenceram a Marcos Vieira, que as doou para sua escrava Joana

    Maria de Jesus e seu filho. Segundo Maurlio Machado, tataraneto de Marcos Vieira e bisneto de

    Fortunato Machado:

    O primeiro fundador do grupo foi Fortunato Justino Machado, meu bisav, que foi o tronco

    e mestre do grupo. Ele veio de Paulo Lopes, mas o pai dele, Marcos Vieira, nativo do

    Pntano do Sul, em Florianpolis. Isso foi identificado por um historiador da Universidade

    Federal de Santa Catarina que descobriu que ele veio de l. Ento o Marcos Vieira, que era

    o dono da escrava Joana, veio de Florianpolis morar em Paulo Lopes e ele devia ser um

    homem bem, era senhor de escravos. 21

    Para fazermos uma leitura mais clara quanto constituio do grupo em questo,

    precisamos de algumas horas de entrevista e conversas descontradas com o Sr. Maurlio Machado.

    Nas narrativas do entrevistado ele afirma que sua tatarav, Joana Maria de Jesus, era escrava e

    trabalhava na propriedade de Sr. Marcos Vieira, em Paulo Lopes. Alm disso, ele afirma que sua

    tatarav teve um filho com o Sr. Marcos Vieira - homem branco, dono de engenho e senhor de

    escravos na poca. Nesse contexto, vlido destacar que no municpio de Paulo Lopes, tambm

    existe uma Comunidade de Remanescentes Quilombolas denominada Toca. A partir dessa

    constatao podemos inferir que havia um nmero considervel de escravos na regio, pois os

    quilombos de Morro do Fortunato, Aldeia e Toca, embora localizados em municpios diferentes,

    esto bastante prximos geograficamente. Voltando a constituio do Morro do Fortunato, vejamos

    o que nos conta Maurlio Machado:

    A histria assim: Joana e seu filho Fortunato vieram morar aqui no morro quando o

    menino tinha mais ou menos 10 anos e j eram libertos. Na verdade quando Fortunato

    nasceu ele no era mais escravo, j nasceu na lei do ventre livre, a Joana que era escrava.

    Ai ento o seu Marcos Vieira deu esse pedao de terra para eles virem morar aqui, esse

    pedao de terra foi uma herana que ele deu para no dar problema para ele. Essa terra ele

    doou para seu filho Fortunato antes de morrer22

    .

    Mediante as informaes do Sr. Maurlio, observa-se que Marcos Vieira, o dono da escrava

    Joana, para invisibilizar o filho que teve com sua escrava colocou-os nesse pedao de terra, longe

    de vizinhos e embrenhados no mato. Provavelmente, um dos motivos que levaram Marcos Vieira a

    21

    Entrevista realizada na residncia do Sr. Murlio Machado, Rua Geral do Morro do Fortunato, Macac,

    Garopaba/SC, em 16/02/2013. 22

    Entrevista realizada na residncia do Sr. Murlio Machado, Rua Geral do Morro do Fortunato, Macac,

    Garopaba/SC, em 16/02/2013.

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    Disponvel em:

    se livrar de Joana e seu filho eram os traos genticos que o menino carregava. Tal qual o pai ele

    possua olhos azuis evidenciando o processo de miscigenao. Tais caractersticas fsicas do menino

    possivelmente lhe tiravam o sono e chamavam ateno da comunidade branca.

    Esses traos genticos permanecem at hoje em alguns dos moradores do Morro do

    Fortunato que carregam tanto marca da procedncia negra africana, quanto certas caractersticas

    do branco europeu. Alguns apresentam cor negra concomitantemente com a cor azul dos olhos,

    como, por exemplo, o Senhor Fortunato Machado (bisneto de Marcos Vieira): um negro que ostenta

    na cor a sua origem africana, porm exibe seus olhos azuis, o que exterioriza uma relao de

    descendncia com os povos europeus. Segundo dizem, seus olhos so herana gentica de seu av,

    o velho Fortunato, fundador do grupo.

    Um dos questionamentos feitos ao Sr. Maurlio Machado, foi forma que o grupo se

    formou, como foram os casamentos, se pessoas de outras comunidades negras vieram para c ou os

    membros do Morro casaram-se e foram morar em outros lugares. Segundo Murlio Machado: A

    primeira mulher que veio de fora para c foi esposa do meu bisav Fortunato Machado que era

    filha de uma famlia negra de Imbituba. Lembro tambm do meu av Loureno que era casado com

    a Rita que veio do Mirim [Imbituba]. Essas pessoas foram morando umas perto das outras,

    ocupando a terra de Fortunato Justino Machado, sendo que esse costume perdura aos dias atuais,

    conforme indica o Sr. Maurlio Machado:

    Todos moraram aqui. Dessa casa que morava ele [Fortunato Machado] e a me foram

    fazendo as casinhas e todos os filhos ficaram aqui nos arredores. O Joo Fortunato morava

    do lado da casa do pai, o Loureno morava mais separado, o Manoel morava no outro lado,

    o Anastcio morava l do outro lado, a uns 200 metros ali perto da Rita, o Anastcio

    morava ali, o Daniel morava l em cima, o Incio morava l do outro lado, mas era como

    hoje, um pertinho do outro23

    .

    Percebe-se que a linhagem familiar marcada por casamentos consanguneos bem como

    pelo matrimnio de homens da comunidade com mulheres oriundas de Mirim e Nova Braslia no

    municpio de Imbituba. inquietante o fato de se deslocarem para Imbituba para arranjar

    casamento j que as localidades em questo ficam a uma distncia aproximada de 30 quilmetros. O

    senhor Maurlio no soube explicar exatamente por que isso acontecia, mas sabe que depois que o

    primeiro casou os outros foram casando com as outras parentes. Questionou-se o porqu de se

    casarem entre si, os chamados casamentos consanguneos, no que o Sr. Maurlio foi muito

    espontneo ao responder:

    Acontecia, acontecia mesmo. que na verdade eles se gostavam porque eram umas negras

    bonitas, quando eles casavam era porque as negras eram bonitas mesmo, ento eles

    garravam pra no sarem daqui. O meu pai casou com a filha do Loureno, que era prima-

    irm dele e o tio Natinho, que era irmo do pai, casou tambm com uma prima-irm e da

    foi. Hoje em dia difcil isso acontecer, o ltimo que casou mais moo a foi o Nico que

    casou com uma prima irm, que a Maura. Isso faz uns 15 anos. Hoje em dia t mais

    23

    Entrevista realizada na residncia do Sr. Murlio Machado, Rua Geral do Morro do Fortunato, Macac,

    Garopaba/SC, em 16/02/2013.

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    Disponvel em:

    misturado, tu v, o meu filho casou com uma moa branca l da Palhocinha, hoje t

    assim24

    .

    Assim, atravs da entrevista realizada com o Sr. Maurlio Machado foi possvel conhecer

    aspectos mpares da formao do grupo quilombola do Morro do Fortunato, evidenciando que os

    chamados quilombos modernos tm razes de ser distintas das de outrora cultuadas, ou seja, que

    nem sempre foram locais de fuga e esconderijo. No caso especfico do Morro do Fortunato o

    ajuntamento se deu, a princpio, pela inconvenincia de um homem branco (e provavelmente

    casado) ter um filho com uma escrava e que para complicar ainda mais a vida do senhor, nasceu

    com os olhos azuis. O Quilombo surge, ento, como um lugar capaz de invisibilizar perante a

    sociedade branca a miscigenao que ora se apresentava. Depois as coisas tomaram seu prprio

    rumo: casamentos com negras de outras comunidades, mais especificamente de Imbituba, e

    casamentos consanguneos desenharam a constituio da Comunidade do Morro do Fortunato.

    Consideraes finais

    Desta forma, entende-se que o desenvolvimento deste estudo encontra sua relevncia na

    emergncia que a questo dos negros no Brasil requer, j que somos um pas miscigenado que ainda

    no se reconhece etnicamente. Portanto, afirmar nossa identidade uma das formas de valorizar

    nossa cultura. No que se refere s questes raciais, importante ressaltar que sempre que existir a

    oportunidade das pessoas se sensibilizarem, mudarem suas prticas, em prol dos desafios da luta

    antirracista no cenrio social, j uma conquista, que no se encerra em si, mas, um caminho a

    trilhar, fundamental para a conquista histrica do reconhecimento e a formao da identidade do

    povo negro no Brasil. Principalmente a luta do reconhecimento das Comunidades Quilombolas.

    Insere-se desta maneira uma discusso em torno do reconhecimento dos remanescentes de

    quilombo que conquistaram uma dimenso de direitos e cidadania. Nessa discusso a busca do

    desenvolvimento social enfatiza a luta pela liberdade, cidadania e direitos, possibilitando a

    construo de uma identidade social especfica. Da mesma maneira, propem-se a construo e

    manuteno da memria coletiva, da terra e do espao cultural construdo pelos negros escravos e

    seus descendentes.

    Assim, a comunidade de Remanescentes de quilombo do Morro do Fortunato comea a

    escrever sua outra histria. Uma histria rica culturalmente e que vem se tornando motivo de

    orgulho no s para seus moradores como tambm para as comunidades envolventes. Buscou-se,

    portanto, compreender e verificar as formas de interao entre o grupo e as comunidades do

    entorno, bem como a organizao interna do mesmo. Alm disso, procurou-se perceber as sutilezas

    do reconhecimento e o balizamento de fronteiras e sua relao com a afirmao da identidade afro-

    brasileira no contexto das relaes polticas, sociais e hierrquicas.

    Assim, encontra-se a viso de uma histria construda a partir das lutas sociais e da

    interao entre culturas. O estmulo para a realizao de estudos dessa categoria emerge da

    24

    Entrevista realizada na residncia do Sr. Murlio Machado, Rua Geral do Morro do Fortunato, Macac,

    Garopaba/SC, em 20/02/2013.

  • ALBUQUERQUE, M. T. Espaos e prticas de sociabilidades... 323

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    Disponvel em:

    possibilidade de poder narrar histria de nossos pares, a histria que nos circunda e enche nossa

    vida de sentidos. Conhecer a histria das Comunidades Quilombolas nos permite conhecer melhor a

    histria do Brasil e de ns mesmos.

    Referncias

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