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Espantado (DEGUSTAÇÃO)

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Pequena amostra do livro Espantado, da editora MAORI BOOKS, escrito por Nelson Machado.

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Outubro de 2014

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Nelson Machado

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DADOS INTERNACIONAIS DECATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)

M149e Machado, Nelson, 1954- Espantado / Nelson Machado. Sinop: Maori Books, 2014.

ISBN 978-1-312-45737-9

1. Fantasia - Ficção adulta. Literatura brasileira. 2. Terror. I. Título. II. Série.

CDU: B869.3

Espantado | Nelson MachadoCopyright © 2014 por Nelson Machado

Copyright © 2014 por Maori BooksTodos os direitos reservados e protegidos

pela Lei nº 9.610, de 19.2.1998.

Editor: Matheus Prado

Ilustrações da capa e do miolo: Carla Luzwww.mistressainley.deviantart.com

Todos os direitos reservados

Revisão: Talita Galbiati

Design by Maori FactoryTwitter: ©maorifactorywww.maorifactory.com

Todos os direitos reservados

Proibida a reprodução por qualquer meio existente ou que venha a existir sem a autorização por escrito da editora e do autor.

Direitos desta edição reservados à

Editora Maori Books LTDAAv. dos Tarumãs - 4002 | Jardim das NaçõesSinop-MT | Brasil - Fone: +55 (66) 9653-7702

[email protected] | www.maoribooks.com

Impresso no Brasil | Printed in Brazil

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SUMÁRIO

123456789

10

Seu Pedro

Olhos Pretos

Espantado

Lepinha

Fotografi as

Prováveis Escrituras

Barreira do Som

A Mulher que Criava Anjos

Quadro a Quadro

Dez Segundos

Página 07

Página 31

Página 61

Página 75

Página 99

Página 115

Página 139

Página 155

Página 177

Página 193

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Barreira do Som

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OLHA, VAI SER BEM DIFÍCIL de acreditar, doutor Ênio, mas já que estou nessa situação, o que mais eu tenho a perder?

Vou contar tudo pro senhor. Já sei, já sei, tenho que contar com calma pro escrivão ir anotando. O senhor já me disse isso. Eu vou tentar resumir, senão ele vai acabar escrevendo uma lista telefônica inteira, mas não posso pu-lar muita coisa, senão o senhor não vai enten-der. Bom, não vai adiantar o senhor entender. Ninguém vai acreditar mesmo. Eu sei que tenho razão, mas não sou médico, não sou cientista e hoje em dia só é verdade o que alguém vestido de branco diz, não é? Não, não escreve isso não. Isso não faz parte da história.

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A história mesmo começa há uns quinze anos. Eu estava com vinte e três. Não precisa ficar com essa cara, doutor Ênio, não vou levar quinze anos pra contar tudo.

Eu estava na calçada do MASP, na avenida Paulista, esperando o sinal ficar verde pra atra-vessar. Um sujeito do meu lado parecia mais apressado, não quis esperar e tentou atravessar assim mesmo. Sabe como é ali, né, doutor? Os carros passam voando. Alguém devia dar um jeito naquele pedaço, quando os sinais abrem fica todo mundo louco e ninguém quer saber de mais nada. Só quer saber de passar todos os sinais antes que fiquem vermelhos. Pois é, mas o sujeito atravessou correndo, veio um carro na direção dele, o motorista quando viu aque-le homem no meio da pista pisou no freio com tudo. O carro deu aquela guinchada, foi paran-do, parando, parando até que parou de vez... A meio metro do sujeito, que tinha ficado ali, du-rinho de medo, em pé, sem se mexer pra lado nenhum. Mas quando o carro parou, ele caiu. Ficou um inferno na Paulista. O trânsito con-gestionou, gente correndo de tudo quanto era lado, todo mundo em volta do homem caído. Aí um outro sujeito chegou perto, examinou o coi-tado e disse que ele estava morto! Morto, dou-tor! Por nada. O carro não tinha batido nele. Não tinha nem encostado. Mas o infeliz estava ali,

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no meio da Paulista, mortinho da silva!Fui embora encafifado... Por que o sujeito

tinha morrido? Aquela história de que o susto pode ter provocado um ataque do coração era conversa fiada pra mim. Eu já levei tanto susto na vida, doutor, e estou aqui, vivinho. Passei o dia inteiro pensando naquilo. À noite, nem dor-mi direito. Por que tem gente que morre assim, sem mais nem menos? Já viu isso? O camarada está conversando, rindo, cantando, de repente dá um treco e ele cai duro. Aí vem um monte de médico, um bocado de sujeito vestido de bran-co e fala uma porção de teoria sobre a vida e a morte, como se soubessem mesmo o que é isso. Olha, eu não sou um homem formado, doutor Ênio, não tenho a mesma cultura que o senhor. Pra ser delegado tem que se formar em Direito, né? Pois é, eu só terminei o colegial, mesmo as-sim aos trancos e barrancos, mas do pouco que eu estudei deu pra perceber que de tempos em tempos os cientistas dizem que tudo o que os outros antes deles disseram estava errado ou não era bem assim. Isso não quer dizer que da-qui a uns cinquenta anos vão dizer que tudo o que os de hoje estão fazendo está errado? Olha, não escreve isso não, vão pensar que eu sou al-gum fanático religioso. Já escreveu? Então, pa-ciência.

Mas de tanto ficar encafifado, como eu

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disse, acabei ficando maluco pelo assunto. Não maluco de verdade, o senhor entende, né? Eu não conseguia parar de pensar naquilo. Aí co-mecei a colecionar notícias e comecei a pesqui-sar casos de mortes que não fossem acidente ou assassinato. Até fui bem esperto. Fiz amiza-de com um sujeito do IML, foi fácil porque eu estava trabalhando numa firma de crédito ali perto das Clínicas. Tem um bar na Dr. Arnaldo onde eu ia sempre e ali conheci o cara. Ele não era médico, nem nada, só trabalhava lá dentro. E me contava os casos que eu queria. Um velhi-nho que estava em casa ouvindo rádio, de re-pente botou a mão no peito e caiu. Uma mulher que estava na feira, fazendo compras, caiu na frente da barraca de bananas. Um sujeito den-tro do carro, trânsito parado, botou a cara pra fora, xingou todo mundo, buzinou e caiu com a cabeça em cima do volante. Um menino de uns doze anos, tinha ficado doente, coisa à toa, uma febrezinha, nariz escorrendo, um pouco de dor pelo corpo, disseram que ele tinha que ficar em repouso, ele ficou fechado no quarto dele, televisão ligada, videogame à mão, janela aberta, passarinhada cantando lá fora, comidi-nha na hora certa e mesmo assim bateu com as dez. Sem mais nem menos. Os doutores disse-ram que foi insuficiência respiratória. Mas eu fico maluco com isso. Insuficiência respiratória

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quer dizer que o sujeito não respirou o suficien-te, não é? Ora, todo mundo que morre, uma hora não respirou o suficiente. Seja por qual motivo for. Então todo mundo morre é disso, né?

Já reparou, doutor Ênio? Quando a gente se interessa por alguma coisa, só aparece essa coisa na frente da gente. Parece perna machuca-da. Já notou que quando a gente machuca uma perna, toda hora bate com a perna machucada em algum lugar? Pois é, foi assim com essa his-tória. Daí pra frente, toda hora eu via uma no-tícia qualquer de alguém que morreu por nada. Na autópsia sempre achavam uma explicação qualquer, mas um segundo antes de cair, essas pessoas estavam ótimas. Aí eu pensei na teoria da maionese. É, parece coisa de maluco, mas já percebeu que quando a gente vai numa festa e no dia seguinte fica ruim da barriga, sempre tem mais umas quatro ou cinco pessoas que também ficaram assim? E quando a gente vai saber, só aconteceu com as pessoas que co-meram a maionese. Daí eu inventei essa teo-ria: se alguma coisa acontece com muita gente, do mesmo jeito, tem que ter uma maionese na história. Em cada caso a maionese é uma coisa, mas ela está lá.

Comecei a procurar o que é que tinha de igual naquelas pessoas. Gente tão diferen-te, gente rica, gente pobre, velhos, crianças,

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homens, mulheres. Com qualquer um a coisa acontecia. Então tinha que ter uma coisa que to-dos faziam, ou que todos tinham, ou que todos comiam. O cara da Paulista se assustou e mor-reu. Então era porque todos viam alguma coisa. Mas não podia ser, já que na minha lista tinha quatro casos de cegos. E pra falar a verdade, o cara da Paulista estava de costas. Só viu o carro na última hora. A mulher da feira estava com a sacola cheia. Então podia ser o fato de fazer força. Mas o garoto no quarto não estava fazen-do força nenhuma. Estava deitado. Passei me-ses, doutor Ênio, meses encafifado com aquilo. Até que um dia, era no mês de junho, me veio a ideia. Eu estava dentro do meu apartamento, lá mesmo onde vocês foram me buscar, na Lapa de Baixo. Tinha uma quermesse na rua de trás e de noite era uma festa! Eu ficava em casa ou-vindo aquelas músicas, sempre gostei de festa junina. Uns garotos passaram perto da minha janela e soltaram uma bombinha. Eu não vi, e quando a bomba estourou, me assustei. Como eu já falei, acho que susto não mata ninguém. Mas o estouro da bomba fez meu coração dar um pulo. Parecia que ele ia sair pela boca. E aí eu entendi!

O som! Barulho! Essa era a maionese, dou-tor Ênio. Todo mundo da minha lista só tinha isso de igual. Todo mundo escutava. Pode pare-

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cer coisa de maluco, mas eu não tinha nenhum surdo na lista. Mas mesmo isso era diferente em cada história. O cara da Paulista escutou um carro freando. A mulher da feira devia estar ou-vindo gritos dos feirantes. O garoto no quarto, escutava a televisão e passarinhos na janela. E a maionese tem que ser a mesma, senão não é a maionese.

Saí de casa e comecei a prestar atenção na cara das pessoas, no meio da quermesse. Tinha gente que nem ligava pras bombinhas, mas tinha outros que a cada estouro ia fican-do irritado, mais irritado, e mais e mais. Teve um camarada que na quinta bombinha que ele ouviu, foi embora, com uma cara tão amarrada que parecia que tinham dado uma surra nele. Comecei a ter uma ideia de que estava no ca-minho certo, mas na hora meus pensamentos foram desviados. No meio da quermesse estava a Helena. O senhor tinha que ver, doutor, nove anos atrás, quando eu conheci a Helena. Do jei-to que o senhor viu, não dá pra ter uma ideia de como ela era bonita! Fiquei na quermesse, a gente conversou, jogou argola, tiro ao alvo, eu mandei correio elegante pra ela, ela mandou me prender por dez minutos na cadeia da quer-messe, foi uma farra. O resultado é que um ano depois a gente estava se casando.

Ela não gostava muito da minha teoria,

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até fazia gozação. Cada vez que ela preparava maionese, fazia um montão de piadas sobre o assunto. Mas eu não desisti. Continuei cole-cionando notícias e comecei a fazer experiên-cias. Tinha som que incomodava meu cachor-ro, tinha som que deixava ele mais alegre... Li numa revista que as plantas crescem ou mor-rem de acordo com sons. Fora o samba e o rock, né, doutor Ênio. Que corpo fica parado quando ouve um bom balanço?

Então eu tinha que estar certo. Os sons fa-ziam tanta coisa no corpo. Por que não podiam matar? Mas que som? Essa era a minha dúvida. Qual era o som certo?

A minha paixão pela Helena e o casamen-to tinham desviado minha cabeça da direção. Mas uma noite, eu não conseguia dormir por causa dos roncos da Helena, a coisa voltou to-dinha. A cara daquele homem na quermesse, se irritando aos poucos a cada bombinha, se in-comodando cada vez mais, até ir embora. Vai ver que alguma coisa nele disse pra ir embo-ra. Vai ver que o corpo dele estava se cuidan-do sozinho, evitando de se desligar. O senhor nunca saiu de um lugar tão depressa que nem deu tempo de pensar por que estava querendo ir embora? Nunca aconteceu de o senhor sentir que tinha que ir a todo custo e só sossegar de-pois de sair?

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Pois era isso! Não existia um som da mor-te. Qualquer som era o som. A maionese não era um som. A maionese era a repetição!

Daí pra frente, tudo se encaixava. Cada pessoa tinha um som próprio com um limite. Podia ser o som da chuva, por exemplo. Pingos batendo no chão. Mas qual era o limite? Qual era a barreira? Quantas vezes uma pessoa po-deria ouvir pingos antes que alguma coisa se quebrasse dentro dela com aquele som? Por-que era isso que acontecia. O som quebra coi-sas, não quebra? Tem gente que quebra copo só com a voz. Dizem que as muralhas de Jericó fo-ram derrubadas com trombetas. Som! Um copo é mais fraco do que um corpo. Ninguém diz de verdade por quanto tempo as trombetas toca-ram até a muralha cair.

Depois de ter chegado à conclusão, dou-tor Ênio, eu não tive mais paz. Não sou nenhum santo, sabe, mas pensa bem. Se o senhor tivesse na mão uma coisa que podia salvar a vida de uma porção de gente, o senhor não ia ficar ma-luco pra usar? Pois foi o que aconteceu comigo. Eu queria contar pra todo mundo, mas eu tinha que achar um jeito de descobrir qual era o som de cada um. A ideia da repetição do som esta-va certa, eu tinha certeza disso. Mas para cada pessoa a barreira era diferente. Cada pessoa ti-nha um som seu, particular, com limite. Então

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era só cada um descobrir seu som e se proteger. Mas como é que se descobria o som?

O tempo foi passando, doutor Ênio. Um ano atrás do outro. A vida da gente foi ficando ruim, eu não conseguia pensar em mais nada, ia trabalhar, voltava pra casa e ficava fazendo experiência. Com o cachorro, com as plantas, às vezes com a Helena. Ela ficava maluca, dou-tor, ela reclamava, dizia que a vida dela era um inferno. A gente nunca teve filho, não sei por quê... Ela queria que eu fosse fazer exame, mas eu não tinha tempo, doutor. Eu trabalhava pra gente poder viver, mas fora do horário de traba-lho, eu tinha que achar as respostas. Eu podia salvar a vida de tanta gente. Ela não entendia.

À noite, eu não dormia. Ficava lendo, pro-curando, testando. Helena já tinha engordado um pouco, estava mais velha, só sabia ver no-vela e roncar de noite. Pra mim a vida também estava chata.

Mas, sem saber, Helena me ajudou. Uma noite eu percebi. Uma noite a coisa ficou clara pra mim. Não tem aquela história do veneno da cobra curar a mordida da cobra? Pois era isso! Morrer parece dormir, não parece? Pois então... O som que te acorda é o som que te mata! Pois isso também é diferente pra cada um. Tem gen-te que acorda com o despertador, tem gente que não. Tem gente que dorme com qualquer baru-

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lho, pode ser uma festa, pode ser o rádio alto, pode ser criança brincando, mas se uma porta bater no meio disso tudo, o camarada acorda assustado. Só que ele tem um limite, uma bar-reira. Ele pode ouvir portas batendo um certo número de vezes na vida. Chega uma hora que a porta que acordou o sujeito a vida inteira vai fazer ele dormir... pra sempre.

Fiquei numa alegria doida, doutor Ênio. Minha teoria estava pronta. Agora era só contar pra todo mundo. Cada um ia descobrir seu som, se proteger contra ele e todo mundo ia viver até ficar bem velhinho.

Eu tinha que contar pra alguém, na mesma hora. Chamei a Helena. Ela resmungou, virou pro outro lado e continuou dormindo. Ah, aqui-lo me deixou tão chateado, doutor Ênio... Não, chateado não, não escreve chateado. Escreve ir-ritado. Foi isso. Eu fiquei com raiva. Puxa vida, doutor Ênio, eu tinha achado uma coisa que to-dos os cientistas do mundo inteiro, em todos os tempos, tinham procurado e não encontraram. Eu tinha achado um jeito de enganar a morte! E a minha mulher, a minha companheira, a mi-nha Helena não estava interessada. Só queria dormir. Só queria continuar roncando!

Fui ficando cada vez mais irritado. Cha-mei mais uma vez. Ela roncou. O ronco estava me deixando doido. Eu estava agradecido a ela,

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de verdade, doutor Ênio. Se ela não roncasse tanto, toda noite, anos a fio, acho que eu não ia descobrir a verdade nunca! Mas foi o ronco dela que me deu a ideia. Porque era o ronco dela que fazia eu ficar acordado todas as noites até não aguentar mais. Então, eu estava agradeci-do a ela. Mas aquele ronco foi me irritando. Foi me deixando com raiva. Meu coração começou a bater mais rápido, de tanta irritação. E aí eu percebi que aquele era o meu som! O ronco da Helena! Se ela continuasse roncando, eu podia morrer. Quantos roncos mais eu ia aguentar? Qual era a minha barreira, o meu limite? Eu já vinha ouvindo roncos por tantos anos, doutor Ênio. Tentei chamar ela mais uma vez. Ela não ligou. Aí eu fiquei com medo. Qual seria o ron-co final pra mim? Podia ser o próximo. Tentei abafar o ronco dela com o travesseiro. Eu juro que era só isso que eu queria, doutor Ênio. Fa-zer ela parar de roncar. Ela começou a esper-near, com o travesseiro no rosto. Eu sempre fui bem mais forte do que ela. Estava tão irritado que nem pensei na hora, doutor. Pra mim, ela só queria que eu tirasse o travesseiro pra conti-nuar dormindo em paz. E continuar roncando. A irritação foi virando medo. Fui ficando cada vez com mais medo de que ela roncasse. E fui apertando o travesseiro no rosto dela. Ela tenta-va respirar, coitada. Eu não percebi, ela só que-

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ria respirar. Mas cada vez que ela fazia algum som, tentando puxar o ar pelo travesseiro, o ruí-do que vinha era de um nariz fechado, uma gar-ganta espremida, era um ronco! E quanto mais ela roncava, mais eu apertava o travesseiro. Até que uma hora, ela parou de se mexer, parou de espernear. Ainda fiquei encafifado, na dúvida, um tempão. E se ela estivesse fingindo? E se eu tirasse o travesseiro e ela voltasse a roncar? Eu podia morrer naquela noite, doutor. Eu acho que cheguei no meu limite de ronco. Se ouvir mais algum, adeus Marcelo e adeus teoria. E o mundo vai continuar morrendo por causa dos sons.

Então, doutor Ênio, mesmo que o senhor não acredite em nada do que eu contei, por fa-vor, diz aí pro seu escrivão anotar que não foi assassinato. Foi legítima defesa. Ela ia me ma-tar. Eu só estava me protegendo.

Ah, e por favor, será que dá pra me deixar sozinho na cela? Se tiver outro preso junto, eu posso morrer, doutor. E se ele roncar?

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