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número cinco maquiné 2018
WALMIR AYALAespecialDiáriosCartasPoemasEntrevista
número cincomaquiné | 2018
EDITORES
CONSELHO EDITORIAL
SELEÇÃO DOS TEXTOS, ORGANIZAÇÃO E VERBETE SOBRE O ESCRITOR
REVISÃO DE TEXTO
TRANSCRIÇÃO DE TEXTO
PROJETO GRÁFICO, CAPA E CHECAGEM
FOTOGRAFIA [CAPA | CARTEIRA]
FOTOGRAFIAS [ESCRITOR]
PORTA HOBLICUA
TRATAMENTO ICONOGRÁFICO
EDITORAÇÃO ELETRÔNICA
ADMINISTRATIVO
APOIO CULTURAL
DOUGLAS MACHADOJOÃO MARCELLO DE MACÊDO CLAUDINO
ANDRÉ SEFFRIN CARLOS NEWTON JÚNIOR LUIZ ANTONIO DE ASSIS BRASIL SYLVIE DEBS
CARLOS NEWTON JÚNIOR
SILVANA SEFFRIN
ALANA YASMIM DOS SANTOS
HOBLICUA
DOUGLAS MACHADO
DAVID UZURPATOR ALAIR GOMES
PAULO VASCONCELLOS
MARCÍLIO BENÍCIO
ALCIDES AMORIM
JOÃO FERRAZ DE ALMEIDA
CONSTRUTORA SUCESSO S.A.
NOSSOS AGRADECIMENTOS A GARDÊNIA CURY | JOSIENE SAIBROSA DA SILVA
E ALBERTO DA COSTA E SILVA | ALEX NICOLAEFF | ARNALDO SARAIVA | ARQUIVO-MUSEU
DE LITERATURA BRASILEIRA/AMLB – FUNDAÇÃO CASA DE RUI BARBOSA | ASTRID CABRAL
CAMILA BATTISTETTI | DANILO CARVALHO | DAVID CURY | ÉDER ADÃO MENDES | EMIL DE CASTRO
ÉSIO MACEDO RIBEIRO | FERNANDO DUVAL | FOED CASTRO CHAMMA (IN MEMORIAM)
FRANKLIN JORGE | GERSON IPIRAJÁ | INSTITUTO DE ESTUDOS BRASILEIROS/IEB-USP
JOÃO CARLOS RODRIGUES | JONES BERGAMIN | JORGE MOURÃO | JOSÉ ARMANDO PEREIRA DA SILVA
JOSÉ TARCÍSIO RAMOS/ZÉ TARCÍSIO | LATUF MUCCI (IN MEMORIAM) | LIA SAMPAIO
LUIZ CARLOS LACERDA/BIGODE | LUIZ FERNANDO PIQUET MARTIN (IN MEMORIAM)
MARCIANO RIBEIRO | NELSA DO CARMO SEFFRIN | PIETRINA CHECCACCI
RENATO BITTENCOURT GOMES | RENATO ROSA | ROBERTO GOMES
ROBERTO SCHMITT-PRYM | SIRON FRANCO | VICTOR ARRUDA | ZECA COELHO
Direitos reservados à HOBLICUA
Av. Industrial Gil Martins, 510 - Sala 3 - Bairro Tabuleta64019-630 | Teresina | Piauí | Brasil
+55 [86] 32214984 | +55 [86] 999812747www.hoblicua.com.br
[email protected] | [email protected]©2018 Copyright HOBLICUA e seus colaboradores
ISSN: 2358-5609
DIÁRIOS
CARTAS
POEMAS
ENTREVISTA(S)
SOBRE O ESCRITOR
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SUMÁRIO
número cincomaquiné | 2018
13
73
119
136
191
15
IV
Sangue na boca
2-1-62
Retiro a folhinha velha do suporte da agenda. Fica uma poeira
acumulada como o suor dos dias, e já não sei mais o que
significa o ano que passou. Estou com toda a probabilidade de um tempo novo diante de mim. Mas o que fiz dos meus dias? Vejo na antiga agenda anotações e nomes que se pulverizaram. Por mais que eu tente recompor a circunstância, o rendimento é pouco. Estou, isto sim,
debruçado sobre o mar de tentação que é esta manhã do ano ainda novo.
E mergulharei. Pode ser este o ano da minha morte, da minha glória, da
minha miséria ‒ que sei eu de mim, em realidade? Mas disponho deste instante, deste meu corpo que resiste, desta minha alma que palpita.
Disponho para a alegria e para o abismo, e este dispor é minha arma.
5-1-62
Releio hoje a carta de Adalgisa Nery que, há seis anos, foi a
gota d’água para a minha transferência de Porto Alegre para o Rio de
Janeiro. Não me lembro mais com quem obtive seu endereço, só sei
que lhe escrevi uma carta mandando meu primeiro livro de poesia. Esta
carta é um retrato desta mulher de fibra: escrita a lápis, em letra correta e impositiva, o testemunho direto, o sentimento exposto.
***
A carta está datada de 17 de agosto de 1955 e eu tinha 22 anos.
Cinco meses depois eu comunicava à minha família, na mesa de jantar,
Walmir Ayala
16
que iria morar no Rio de Janeiro, e que embarcaria dois dias após. Apesar
de todos os prognósticos contra, aqui estou até hoje. O mais estranho é
que não estreitei laços de amizade com Adalgisa Nery. Nossos contatos foram muito formais e não era ela a fonte que me satisfaria. Minhas
afinidades estariam principalmente com Cecília Meireles e Lúcio Cardoso, e estou certo de que para sempre.
18-2-62
Não acredito em obra de arte literária construída sobre a
alegria. Na música talvez seja possível, assim mesmo a alegria de certas composições disfarça uma fundamental melancolia, e não há alegria
mais duvidosa do que a do carnaval, por exemplo. É uma espécie de
solidão delirante, e nada é mais fatal para o homem do que sua condição
de solitário, pois tudo acaba e ele morre só.
1-3-62
Quem estiver lendo a continuidade deste diário, inclusive em
seus volumes anteriores, há de pensar apressadamente que me coloco ao
lado da marginalidade. Estou, isto sim, desafiando o preconceito, seja ele qual for, porque sinto que o ser humano merece integrar dignamente o
reino que lhe foi preparado, e para o qual nasceu sem chance de opção.
Levo adiante esta luta, com certo orgulho. Quando encontro os limpos
de preconceitos então o meu orgulho arrefece e já nem me parece tão
heroica esta luta. Os que me aceitam é que me vencem.
4-3-62
Que carne é esta que se aproxima de mim me desejando? Que olhos são estes que estranho e nos quais me reproduzo em repentino
Diários
17
entendimento? Que entrega é esta que me percorre o sangue como uma cegueira, e dentro da qual flutuo e reajo? O que é o amor, tão diferente disto? Depois de “fazer o amor” com quem não amamos, a sensação é simplesmente de um exercício exaustivo e quiçá rendoso do
ponto de vista da emoção. Mas só tocar no corpo da pessoa realmente
amada, é como um ato extremo. Por isso não registrarei aqui, jamais,
as simples entregas físicas com que me vitimo em minha antropofagia
exaltada e passional. Isto não interessa, porque não me interessa, e deixa
apenas a vaga sensação de flor pisoteada, e um amargo mal-entendido
na alma que sempre participa um pouco dessas fúrias. Aqui registrarei
sempre o milagre repetido e real do amor. Cada corpo é uma ilusão de
fácil acesso, cada alma é uma difícil fortaleza.
6-3-62
Penso em escrever um ensaio sobre o travesti, o que me interessa
por sua dramática sede de metamorfose. Metamorfose esta que assume
os mais variados aspectos: da perfeição ao grotesco, do belo ao exótico,
do humorístico ao degradado.
Imagino também o tema do que será o meu segundo romance:
a história de um adultério. O romance começa na primeira pessoa,
o verme falando ‒ o verme que corrói o corpo da jovem adúltera assassinada pelo marido. Lanço-me à aventura maravilhosa de imaginar
esta segunda história.
***
Cada vez mais o fantasma da morte me desafia. Penso no absurdo da vida, tão breve, tão precária, neste vale de lágrimas. E, se houver a
Vida Eterna, não a terei com os meus sentidos de agora. Estar integrado
em Deus será ser parte do “amor absoluto”. Eu terei que esquecer
Walmir Ayala
18
tudo para ser parte do que me criou e absorve. Aqui confirmo meu conhecimento do outro através de horas e horas de sedução. Do “outro lado” não precisarei dar provas. Se eu repousar em Deus estarei repleto dele, porque derramado nele, e esta perspectiva, para a minha pobre
concepção humana de felicidade, é um sofrimento.
7-3-62
Cada vez me convenço mais de que a paixão sexual tem pouco a ver com o amor. Ou, por outra, que o amor não depende de um
exclusivo entusiasmo sexual. Na ligação física há o interesse imediato e
fugaz que dura o tempo de um orgasmo e, quando muito, de uma sábia manutenção erótica. O amor, já num plano completamente estranho,
vive de muitas renúncias físicas, de uma doação integral, de uma
genuflexão humílima, de um temor, de uma esperança que a exaltação sexual não supre. E de tanto se amar, quando o amor é definitivo, chega-se ao êxtase. É certo que o objeto amado desperta sempre, ao
fim, um desejo de fusão corpórea, mas como um complemento que nada acrescenta à densidade inicial. Toda a loucura de amor, num par
fundamentalmente unido pelo espírito, é como a cobertura férrea que
contivesse uma rosa.
12-3-62
Reacionária, a meu ver, é toda atitude que vai contra a
liberdade. Ora, não admito obra de valor que seja contra a liberdade, o
que equivaleria a dizer: contra a justiça humana. Pode Miguel Ângelo, em função de ter esculpido a figura bíblica de Davi, e não a de um camponês italiano de seu tempo, ser chamado de reacionário? Pois
Car
tas
Walmir Ayala
82
A VINICIUS DE MORAES
S.d. [década de 1960]
Prezado Vinicius,como é difícil encontrar você, resolvi escrever este mais bilhete
que carta, para pedir...pedir que numa folga, entre um poema e um
take, você me redija uma Carta a um jovem poeta brasileiro. É para um
livro que estou organizando. Você não imagina a plêiade de jovens poetas que cada dia abrem a boca faminta pedindo uma palavra. Não
quero dizer que a palavra de quem já se formou possa resolver o problema do poeta jovem, mas realiza esta caridade da comunicação, de que tanto necessitam. Esta carta pode ser de conselho, pode ser de
revisão e depoimento de uma experiência pessoal de formação poética,
pode ser até mesmo uma arte poética. Mas escreva. Sinto que este livro
será útil a muita gente, ao poeta jovem, ao leitor de poesia ou não, aos
poetas feitos (pela revisão de si mesmos ou conhecimento do exame
de consciência dos outros). Grato de me atenderes. Um abraço muito
forte do
Walmir Ayala
91
Cartas
A CLARICE LISPECTOR
Rio, 8/3/66.
Clarice,
aí vai mais uma nota sobre teu livro. Li-o vertiginosamente.
Com pena de ti. Que mundo terrível o teu! Com pena de ti, sim. Porque
acho que assumiste a grande tragédia do nosso tempo lítero-nacional.
Única. Um livro como o teu não se escreve senão com sobre-humano
sofrimento. Sinto que em cada clímax, e são duzentos mil os teus, consumas uma morte. Faz-me lembrar aqueles fascinantes golpes de
morte dos filmes japoneses de samurai, um gesto, uma investida, um absoluto. Isto eu não disse no artigo mas vou registrar em meu diário.
Assisto dolorido a tua descida ao inferno, eu pecador por quem pagas
também. Gostaria de merecer as tuas milícias.
Um abraço,
Walmir Ayala
Walmir Ayala
92
A LUIZ CARLOS LACERDA
Rio, 19/7/67.
Querido queridíssimo Bigode,
muita e muita saudade também. Planos de ir até aí num próximo
fim de semana. Ontem colei no meu álbum particular um lindo retrato do Arduíno que o Júlio me deu, foto de O justiceiro. O Arduíno está
lá, com aquela cara franca e bela, que me devolve com tanta força as
atmosferas florentinas que nunca vi ‒ mas que sei como são, no fundo do meu coração sei como são.
Meu livro Um animal de Deus está na boca do forno. Sim, sobre
amor homossexual, 200 páginas de uma luta para provar que o espírito
é soberano, e o corpo um simples veículo, que o amor tem pouco
a ver com a carne, apenas nos arrasta aos paraísos da paixão, onde
começa o inferno e a glória. Eu queria gritar de beleza por estar te escrevendo! Tu estás aí com Arduíno e Nelson, o mestre. Ah, Luiz Carlos, não sei se percebeste a importância de amar e estar junto das
pessoas de qualidade. Esta é a única aristocracia, e a única chance
de sobrevivência. Eu fico quase sem respirar, de ter perto de mim estes produtos da inteligência e da graça... Não resisto a isso. Quanto
tempo ainda ficas aí? Tenho medo de não te encontrar, caso vá. Iria por dois dias, para te abraçar, para vos abraçar. Estou travando uma
luta linda aqui no Rio, depois te conto – espero vencer. Se não vencer
não perderei nada... mas se vitorioso será bom para todos, um novo
campo. A esta altura deves estar pulando de curiosidade. Pois vou
dizer: sou forte candidato à coluna de crítica de artes plásticas do Jornal do Brasil. Duas senhoras poderosas é que se erguem contra mim
no momento: Edila Mangabeira e Maria Martins. Contra os ministros
talvez eu possa pouco. Mas espero com uma confiança férrea. Também o Jayme Maurício está apavorado com a possibilidade de eu ter esta
coluna. Imagina ‒ ele sabe que não me controlará, que não serei um
93
Cartas
eco do Correio da Manhã, como era o Harry Laus. Sinto a minha força,
pelo terror que inspiro nos mal-intencionados. Que bom não ser
mercadoria moral!
Estamos vivendo aqui as exéquias do Castelo Branco (que Deus
o tenha!). Por mais que me esforce não consigo achar uma ponta de
motivo para lamentar. Todos morrem, os bons e os maus. Por que
inverter a verdade só porque a morte os iluminou? Ninguém pode tirar a Castelo Branco a sua missão negativa e desumana. É triste ver como
se criou uma certa euforia com a sua morte. E eu que chorei tanto a
morte de Kennedy, de João XXIII, de Gandhi, atravessei de coração
seco todo o noticiário e o barulho da morte do ex-presidente. Será que
estou me transformando num monstro? Será justo isso? Tenho até um certo medo de estar faltando com a Caridade.
Meu querido, não adianta continuar mal-datilografando estas
palavras. Estou emocionado e feliz. Que Deus projeta vocês todos. Preciso urgentemente de uma boa foto do mestre para a minha coleção.
Meus álbuns estão ficando lindos, quentes de humanidade, se alargam como praias generosas. (Não queria entrar na nova página, que fazer?)
Abraço-te ainda uma vez.
Walmir
Poem
as
121
A MEU PAI
Cedro da minha unida tessitura,
aço do meu punhal contra o Infinito,pálio do meu jogral, sabre inaudito
na origem da ferida prematura.
Não te dera o silêncio onde permito
o marco desta mística escritura,
e não me entenderias na imatura
vindima deste cântico restrito.
Corcel que sobre mim voa e entre as rotas
apensas minhas lágrimas conserva
às ilhas mais subidas e remotas.
Retrato ao fim de todos os meus zelos,razão que nos meus mitos se observa,sedimento ancestral nos meus cabelos.
[Este sorrir, a morte, 1957]
Walmir Ayala
122
HOJE ME DÓI A VIDA COMO UM CRAVO
Hoje me dói a vida como um cravo
e morro de desejo de morrer,
sinto pelo meu sangue se acender
a aurora de infortúnio em que me lavo.
Que vale desta forma receber
o dom da luz, o lídimo conchavode cada dia, se a carpir me agravo
no sítio onde devera florescer?
Hoje me dói o sol na córnea gasta
de tanto pranto não vertido, e adeja
a asa da solidão na minha carne.
Percorro como um louco iconoclasta
o adro de mim, e grito, sem que veja
instrumento melhor para quebrar-me.
[O edifício e o verbo, 1961]
Walmir Ayala
136
Wal
mir
Aya
la
ANDRÉ SEFFRIN
Você veio de Porto Alegre com pouco mais de 20
anos, e sozinho. Poeta, queria se afirmar. Hoje, trinta anos depois, como vê essa aventura?
WALMIR AYALAEu tinha uma família, mas não sabia ver minha
família. Eu talvez exigisse deles o que não conseguia dar: tolerância. Assim nos desgarramos e eu
almejava um espaço para eles impossível, o da poesia.
Poesia como sistema de vida, como ar respirável.
Então vim com uma mala amarrada com um cinto,
dinheiro para a sobrevivência de uma semana, e muito
medo. Mais que medo, terror. Mas eu não imaginava
que se pudesse tirar do medo a força. Porque a poesia
era maior do que o medo, e eu não sabia. E a poesia
me fortaleceu, me deu esperança, me engrandeceu,
e me fez ver. Hoje eu amo a minha família. Eu os entendo e eles me entendem. O que esperar mais?
Ent
revi
sta(
s)
137
Entrevista
Walmir Ayala
138
ANDRÉ SEFFRIN
E como foi, no começo, essa nova vida?
WALMIR AYALA
O emprego de um ano numa companhia de seguros. Os quartos alugados.
Depois a decisão de não mais me burocratizar, de viver do que escrevia. Muitos concursos literários, vencendo alguns, sobrevivendo disso, mais
um salário mínimo que meu pai me mandava. Colaborações em alguns
jornais, com remuneração simbólica. Amizades certas e apoio. Muito apoio humano, e muita força interior para não descer. Não desci nunca.
ANDRÉ SEFFRIN
Para isso os amigos foram imprescindíveis...
WALMIR AYALA
Sim. Cecília Meireles, Lúcio Cardoso, Maria Helena Cardoso, Júlio
José de Oliveira, Silvia Chalreo, Maria Ramos. Alguns me adotaram
integralmente. Todos me deram um exemplo maior. E os espaços
generosos de Aníbal Machado e Álvaro Moreyra, onde ia ver gente
convencionalmente chamada importante. E muitos o eram. Eu nesses
contatos todos, com meu orgulho e minha gana de conquistar um espaço.
Um Rio de Janeiro mais afável e manso que me abria portas. Poderia
escrever mil páginas. A boêmia, Amarelinho, bar Tucano, galeria Dezon, La Gôndola, Empanadas Chilenas. Esqueci de citar a importantíssima
Maria Muniz, amiga que me fez escrever romance. Como parâmetros eu poderia apontar Lúcio e Cecília, duas coisas tão diferentes e que se
completam, dois tempos espirituais. Com Lúcio a coragem de viver, com
Cecília a paixão pela transcendência. Deus foi generoso comigo, não me
139
Entrevista
deixou cair, me ofereceu os caminhos corretos, e me deu discernimento
para permanecer neles.
ANDRÉ SEFFRIN
Nisso tudo, a década de 1960 era um caldeirão.
WALMIR AYALA
Foi definitiva. Ganhei muitos concursos que me serviam de plataforma de credibilidade. Pode até parecer que acredito muito em concurso.
Nada disso. Para um escritor novo era uma forma de ser notado, de
conseguir editoras, ganhar algum dinheiro, e sobretudo revisar originais
guardados. Aconselho qualquer escritor que se empenhe numa aventura
de mudança, como eu, a seguir este caminho. É um dos mais prováveis.
Os livros publicados me projetando. A preocupação de organizar antologias de novos, como eu. A aproximação com os pintores.
Apresentações, finalmente uma das colunas de arte mais importantes do país nas mãos. Tudo como num passe de mágica. E muito trabalho.
Muita predestinação. A poesia ainda e sempre meu refúgio, quando
tudo o mais me faltava. E a resistência.
ANDRÉ SEFFRIN
Falar em resistência, e a política na época? Você se envolveu?
WALMIR AYALA
Não participei da política dos anos 60 e 70 como ativista. Minha luta
pessoal era muito grande para que eu pudesse me desviar. Defendi
sempre a liberdade de expressão, tive minha casa invadida pelo
Walmir Ayala
140
DOPS, pronunciei um discurso famoso contra a censura ao receber
um prêmio nacional de poesia em Brasília. Briguei publicamente com
um general que censurava um livro de poetas novos coordenado por
mim. Era minha forma de participar, sem provocar, mas defendendo
os pontos moralmente básicos da dignidade de viver. Não ostento
feridas nem prisões, porque Deus não quis. Nem me engajei nas causas
radicais da esquerda e da direita. Tinha certeza de que tudo ia passar e sobreviveríamos, não apenas individualmente, mas como nação. Sim,
sou otimista, acredito no futuro e num novo século de restauração
dos valores mais altos. Um tempo de maior espiritualidade, de mais
reflexão, de limpeza do lixo cultural que os conflitos de geração e de ideologia nos deixaram. Vejo a juventude desnorteada e aparentemente
sem caminho, mas não posso deixar de acreditar que ela levará a chama
adiante, para os que se preparam no silêncio, no mistério, na fatalidade
histórica, para as novas e grandes construções.
ANDRÉ SEFFRIN
A vida, a literatura como construção, como sistema de vida. E você
conciliou isso muito bem. O poeta se deixou multiplicar, e os gêneros
fluíram.
WALMIR AYALA
Escrever, o prazer de escrever, como disse Mário Faustino. Não me sinto inibido diante de nenhum gênero, e em todos sou eu mesmo, ou
seja, o poeta que um dia me estimulou à grande viagem. Este mesmo
poeta que me iluminará na última grande viagem. Escrevo ficção, poesia, diário, teatro, ensaio, literatura infantil. Cada momento me pede
um caminho, e eu trilho o que me dá maior felicidade. Todas as tristezas e júbilos da vida me pertencem, o que me faz simplesmente humano.