Espiritual e Magia Na Arte: A noção de Gênio em

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    Espiritual e magia na arte. A noo de Gnio na obra de Kandinsky

    Walter Menon [email protected] Federal do Paran (UFPR), Curitiba, Brasil

    resumo Este texto pretende-se um ensaio sobre a questo do Espiritual na teoria pictrica

    de Kandinsky. Nele busco evidenciar a ideia de que as concepes do pintor russo, em

    grande parte construda em consonncia com o pensamento esotrico do fim do sculo

    XIX, aproximam-se bastante de um tipo de cosmologia mgica, que abriga uma perspectiva

    anloga quela das categorias do pensamento mgico segundo Marcel Mauss. No centro

    desta cosmologia encontra-se a arte, sntese do Espiritual, cuja noo central a de gnio

    que creio ser herdada em grande medida de Kant.

    palavras-chave arte espiritual; gnio; cosmologia; Kandinsky; Mauss; Kant

    Este texto se pretende uma anlise da noo de espiritual apresentada na obra terica de Kandinsky, sobretudo em Do Espiritual na Arte e na Pintura em Particular, entendendo-a como princpio esttico e moral. Princpio este que estaria ligado, antes de tudo, ideia de uma ordem sobrenatural inspirada pela leitura de Kandinsky das obras de Madame Blawatsky e que constitui o eixo terico de sua obra escrita. Acredito que, em gran-de medida, o texto de Kandinsky, ao se apoiar nas concepes msti-cas exotricas de Blawatsky, constitui-se em uma viso arcaizante da arte que se define como parte de uma cosmologia mgica. O termo mgico aqui,penso-o de acordo com as categorias elaboradas por Marcel Mauss, para quem o pensamento mgico seria constitudo por modos tradicio-nais de organizao social que nos ritos mgicos suprimem o diferente. Tal qual nos ritos de incorporao, pensados por Mauss, em Kandinsky a

    Recebido em 29 de julho de 2013. Aceito em 20 de agosto de 2013.

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    arte se estabelece em, ao mesmo tempo que instaura, pontos de passagem constitutivos de um universo organizado hierarquicamente de acordo com leis mgicas.

    Central nessa ordem mgica, para Kandinsky, e intrnseca ao espiritual que reflete a obra de arte abstrata, encontrar-se-iam duas outras noes: a de gnio e a de talento. Verifica-se, como de resto j se havia apresen-tado na tradio filosfica desde Kant, que essas duas noes sinnimas, representam o elemento da natureza que dota a arte de regras. Dessa ma-neira, pretendo mostrar como a questo do espiritual na arte surge sob o duplo signo das concepes mgicas do mundo em consonncia com a noo de gnio. Acredito que tais noes so de suma importncia para se compreender a questo do espiritual na arte, no s em Kandinsky, mas em toda uma tradio em artes plsticas que da derivar um discurso e uma prtica que reivindica a desmaterializao progressiva do objeto plstico como instncia fundamental do fazer artstico. A ordem espiritual encontra-se conexa a uma certa noo do primitivo, relacionado magia, e consiste no fundamento terico da abstrao pictrica. Se por um lado a arte abstrata se apresenta em oposio a tudo o que representao da natureza, entendida como os objetos externos prpria linguagem formal da arte, por outro, o abstracionismo, do tipo que tem em Kandinsky seu representante, busca incorporar a natureza na arte no como objeto, mas como procedimento que tem em uma forma arcaica de espiritualidade sua materializao. O pintor acadmico que quisesse expressar o estado de esprito de uma paisagem,pintava a prpria paisagem, j o pintor abstrato buscava transformar este estado de esprito em obra. So projees desse estado de esprito na materialidade da obra. No segundo caso, a pintura efeito de um estado de nimo. Este, por sua vez, regido por uma faculda-de do esprito que obedece a regras de uma natureza que em grande me-dida interna ao artista, reflete, no obstante, a ordem invisvel do cosmos.

    Kandinsky pretende dar uma justificativa metafsica e moral ao abstra-cionismo em artes plsticas, no sentido de apresent-lo como, no s uma libertao das frmulas tradicionais da figurao, sobretudo em pintura, mas tambm como resposta a uma esttica da materialidade. Baseado em uma concepo mgica do mundo, ele procura romper com frmulas consideradas ndices de uma civilizao materialista decadente. A metaf-sica de Kandinsky tomar, portanto, a forma de um pensamento mstico e

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    mgico, arcaico e arcaizante da experincia esttica, traduzida na concep-o de espiritual. O espiritual que aparentemente significaria uma ultra-passagem do gosto e arte decadentes, regidos pela figurao, e valorizao da matria, preserva, paradoxalmente, em noes tais quais as de talento, gnio, etc., elementos e conceitos que pertencem a etapas anteriores, na histria da arte, quela em que Kandinsky elabora seu pensamento. Por outro lado essas noes so atualizadas, no texto e na produo artstica de Kandinsky a partir de doutrinas espiritualistas portadoras de uma concep-o de mundo religiosa heterodoxa, onde se misturam elementos cristos e de outras religies.

    As manifestaes, figuraes do esprito na obra de arte encontram suasformulaes condensadas em sua obra principal: Do espiritual na arte e na pintura em particular. O que impressiona no texto de Kandinsky mais a desencarnao, ou a desmaterializao da viso pelo encantamento da palavra, que propriamente sua tentativa de fundar as bases formais da pin-tura abstrata a partir de uma pretendida experincia espiritual inerente abstrao. Ainda que as duas coisas no estejam dissociadas em Kandinsky a abstrao da pintura no pode se fazer sem sua desmaterializao, isto , sem o abandono, no somente da representao figurativa, mas tambm da expressividade material da pintura, - justamente a palavra que permite a desencarnao da obra, quer dizer que permite subjetivi-dade do artista, pressuposta representada na obra, tornar-se subjetividade absoluta. Dito de outra maneira, pela palavra interposta, se experimenta o corpo limitado da pintura, no sentido da sua singularidade de objeto que se oferece ao espectador, como o corpo glorioso da experincia esttica da unidade entre forma e materialidade na abstrao, concebida em analogia com a experincia mstica. Essa unidade se traduz pela viso transcendente, onipresente do espiritual. Posto que despojada de todo li-mite de espao e tempo singulares, o espiritual na arte torna-se experin-cia esttica instaurada pelas formas absolutas da abstrao que se substitui quela outra do limite sensvel do espectador.

    Exerccio de ascese, cujo objetivo justamente a elevao da vida hu-mana ao estado de pura ideia, puro conceito, a arte abstrata concebida por Kandinsky contm um apanhado de prescries e invocaes que devem ser respeitadas e seguidas pelo espectador a fim que ele possa reconhecer sua prpria viso purificada do peso ilusrio da corporeidade figurativa.

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    Ora esta purificao se consuma apenas quando o espectador no pode se impedir de ver, nas formas articuladas da composio, a imagem do espiritual absoluto: a imagem de uma intencionalidade sem inteno, ou melhor, a imagem de uma finalidade sem fim no sentido kantiano. Assim, a abstrao primeira aquela da inteno do artista na intencio-nalidade do espiritual encarnado na obra. A forma visual torna-se livre jogo, linguagem autnoma, desprovida de um corpo, de um enunciador. A partir deste gesto subjetivo do autor que se torna subjetividade absoluta, o espectador pode se deixar levar pela experincia visual qual ele deve aderir identificando-se com a inteno suposta do artista transformada por sua vez em manifestao do espiritual.

    Pode-se ento conceber a composio visual, que se quer objetiva na sua apresentao, como sendo a representao da concepo terica da abstrao visual expressa pelo artista. Assim, Kandinsky abre seu ensaio do espiritual na arte atacando o primado da imitao, para reabilit-lo a sua revelia. Ele refaz o caminho j trilhado por diversas verses do platonismo que o de colocar em questo no a imitao em si, a ao de imitar, mas a legitimidade daquilo que deve ser imitado. Isto do ponto de vista da sua constituio ontolgica. No seu empreendimento de purificao da arte, necessrio, antes de qualquer coisa, definir o que no deve ser objeto de imitao, a fim de se determinar qual a boa mmesis. Para Kandinsky, este objeto a ser evitado o modelo clssico, cuja referncia a repre-sentao idealizada da arte grega (KANDINSKY, 1996).

    Mais radical que a condenao do artista por Plato, Kandinsky com-para aquele que busca copiar a imitao da arte grega a um smio que imita o comportamento humano (KANDINSKY, 1996). Sua mmica no teria nenhum significado interior; dito de outra maneira, ela estaria des-provida de esprito, isto desta dimenso no evidente, nica capaz de sustentar, fora o aspecto visual e material do gesto, seu sentido. Ora jus-tamente, por que o smio imita sem conhecer o sentido do que ele imita, ele repete mecanicamente os gestos sem imitar-lhes a inteno. Ainda que sem finalidade, apenas a inteno porta o significado da obra. Significao profunda, cuja nica possibilidade de acesso se encontra em uma arque-ologia idealizada de um tipo, tambm idealizado, de mmesis. Este tipo, necessrio procur-lo no primitivo, ou melhor, entre aqueles que o re-presentam no imaginrio ocidental, mais precisamente, procur-la nos

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    smbolos de foras inconscientes originrias, das quais testemunham os mitos, e que so, por sua vez, entendidas como foras da natureza. Estas foras seriam aquelas que determinam a essncia comum entre individuo, comunidade e a natureza. So foras centrpetas e centrfugas que habitam todos os homens, medida que so seres sociais e biolgicos, e das quais alguns estariam separados desde h muito tempo pela domesticao que operou o processo civilizatrio. Ainda que esta separao seja um produto da cultura, por intermdio de uma pratica cultural, a arte, que se pode aceder a esta ordem primordial. Faz-se necessrio recuperar pela arte a experincia do contato com essas foras e as trazer, ainda uma vez, ao centro da vida, porque elas constituem, segundo Kandinsky, a necessida-de fundamental, essa espcie de principio estruturante de uma ordem csmica que ele chama de espiritual, ou o Essencial interior e que se encontra refletida na ordem da composio pictrica abstrata.

    Existe outra analogia, entre as formas de arte, baseada numa necessidade fundamental. A similitude das tendncias morais e espirituais de toda uma poca, a busca de objetivos j perseguidos em sua linha essencial, depois esquecidos, e, portanto, a semelhana do clima interior, podem logicamente levar ao emprego de formas que, no passado, serviram com xito s mesmas tendncias. Assim nasceu, pelo menos em parte, nossa simpatia e nossa compreenso pelos primitivos, a afinidade espiritual que descobrimos ter com eles. Como ns, esses artistas puros s se ligaram, em suas obras, essncia interior, sendo por isso mesmo eliminada toda e qualquer contingncia. (KANDINSKY, 1996, p. 27)

    As formas de arte autnticas seriam, portanto, aquelas que obedecem a uma necessidade interna de afinidade entre os elementos formais que as constituem. Alm disso, essa necessidade deve ser similar s leis de afini-dade que regem a vida moral e espiritual caracterstica das relaes sociais nas sociedades no contaminadas pela filosofia materialista; denomina-o geral dada por Kandinsky s doutrinas que afirmam a contingncia, o efmero, em detrimento da permanncia, da conservao.

    As formas autnticas da arte, por outro lado, colocariam em relevo as tendncias dos artistas puros, quer dizer, daqueles que procuram fa-zer de seus gestos frmulas de conjurao da exterioridade contingente, preservando, assim, sempre os mesmos gestos figurados nas obras de arte

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    como o Essencial interior. Nesse sentido, parece estar sugerido aqui uma certa analogia com o pensamento arcaico do ritual mgico. Analogia entre o gesto do artista e as formulas mgicas de conjurao das foras sociais antagnicas de excluso e incluso social, da maneira como foram pensadas pelo antroplogo Marcel Mauss, isto , como aspectos da reitera-o coletiva tpica dos ritos mgicos. No gesto do artista, tal qual naquele que instaura o ritual mgico, estariam contidos elementos capazes de har-monizar as foras centrpetas (de preservao, conservao e integrao) e as centrfugas (de excluso, eliminao e marginalizao). Foras essas sintomticas dos modos tradicionais de organizao social e figuradas nos ritos mgicos de incorporao, entendida como supresso do diferente.

    Os ritos mgicos, e a magia como um todo, so, em primeiro lugar, fatos de tradio. Atos que no se repetem no so mgicos. Atos em cuja eficcia todo um grupo no cr, no so mgicos. A forma dos ritos eminentemente transmissvel e sancionada pela opinio. Donde se segue que atos estritamente individuais, com as praticas supersticiosas particulares dos jogadores, no podem ser chamadas de mgicas. (MAUSS, 2003, p. 56)

    O que caracterizaria a arte, nesse sentido, parece ser uma busca por recu-perar o poder mgico, como descrito por Mauss. Poder que, em um certo sentido, a arte nunca teria perdido, posto que, sua formulao recorrente teria de algum modo, conservado algo do ato de magia. Recuperar este poder de encantamento significaria, portanto, reencontr-lo atualizado na unidade entre o gesto do artista e o formalismo plstico da pintura, iden-tificados que esto dimenso transcendental da abstrao.

    Duas concluses so aqui possveis. A primeira a de que a arte seria o lugar de uma experincia comum, onde so necessrias pelo menos duas instncias para que haja transmissibilidade, troca de signos, capazes de estabelecer um campo de experincia esttica de identificao mtua entre os membros de uma comunidade. A segunda concluso diz respeito a um reconhecimento, por ambas instncias, de uma dinmica de lingua-gem: aquela do encantamento mgico identificado com a pintura. Tm-se aqui o equivalente ao efeito produzido pela invocao mgica. O encan-tamento se concretiza apenas quando h o consentimento em aderir palavra mgica, reconhecendo-se, assim, o sujeito como submetido s leis

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    de encantamento manifestas na invocao. Por meio de seu efeito mgico a arte provoca um refinamento da experincia sensorial e da sensibilidade corrompida do homem civilizado, libertando-o do peso de sua materiali-dade. Ela cumpre um papel moral. A repetio do protocolo da abstrao plstica, nas obras, corresponde quela da frmula de encantamento. H como que uma purificao, uma espiritualizao das formas de figurao da arte, que, ao se abstrarem, provocam, por sua vez, o despertar de um tipo de experincia em que pressupe uma ascenso espiritual contnua, representada por uma hierarquia de sentimentos que vai do mais material, arte figurativa, at o espiritual abstrato, numa correspondncia clara com uma purificao dos sentimentos morais.

    Os sentimentos elementares, como o medo, a tristeza, a alegria, que teriam podido, durante o perodo da tentao, servir de contedo para a arte, atrairo pouco o artista. Ele se esforar por despertar sentimentos mais matizados, ainda sem nome. O prprio artista vive uma existncia completa, relativamente requintada, e a obra, nascida de seu crebro, provocara, no espectador capaz de experiment-las, emoes mais delicadas, que nossa linguagem incapaz de exprimir. (KANDINSKY, 1996, p. 28)

    Kandinsky, dessa maneira, alude ao efeito da magia esttica sobre o espec-tador que o livra do peso de um olhar carregado pelos artifcios ilusrios da tradio da representao visual do Ocidente, representada pelo na-turalismo da pintura figurativa. Os esquematismos culturais, tais quais, a perspectiva em pintura, contaminaram durante sculos o olhar antes puro, limitando a viso exterioridade de um mundo de simulacros que se substituem imagem real, quer dizer, quela que a ao cirrgica da abs-trao torna visvel, recuperando, assim, a inocncia de um olhar original, primitivo. Esta viso da alma seria antes de tudo da ordem de um sentir a presena de uma vibrao: algo que nos envolve, o ambiente, e nos sempre invisvel (KANDINSKY, 1996).

    A ambincia espiritual da arte, por um efeito de consonncia/disso-nncia se transmite ao espectador; reproduz nele um estado de alma in-teiramente idntico ambincia produzida na pintura. Para que se possa participar de uma tal harmonia, suficiente aceitar como necessrio o fato de que h uma outra alma, a do artista, que goza de uma espiritualidade

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    essencialmente indiferenciada daquela do espectador. Mas para que haja tal reconhecimento faz-se necessrio educar o espectador a fim de lhe elevar ao nvel do artista (KANDINSKY, 1996, p. 29). Nvel este em que o artista to somente pura espiritualidade, despojada de peso de todo limite imposto por sua individualidade e, portanto, exaurida de toda necessidade que no seja ideal; dito de outra maneira, que no seja ou-tra que aquela representada na ordem de uma necessidade intrnseca composio abstrata. Ordem essa que reproduz aquela outra das formas elementares da estrutura do real.

    Percebe-se, portanto, que o modelo reprodutivo se conserva, isto , aquele que caracteriza a figurao e condena a obra escala mais ele-mentar, sensorial da experincia do real. No obstante, sua permanncia encontra-se dissimulada na experincia de ascese, de purificao do olhar, pela mmesis da Viso elevada, resultante da ordem dos elementos formais que compem uma tal Viso espiritual. Por conseguinte, na condio de iniciado nos mistrios da arte, bem como naqueles da ordem oculta do mundo, o artista teria por finalidade iniciar, por sua vez, o espectador nesses mistrios, fazendo-o gozar, na contemplao da ordem formal da pintura abstrata, da viso da ordem essencial do mundo. A ao da magia esttica se faz sentir pelos efeitos simpticos das frmulas encantatrias da abstrao pictrica, que faz de tal abstrao o lugar da apresentao da ordem do mundo.

    Para Marcel Mauss a magia se transmite por um tipo de relao de afi-nidade dita simptica, mas que envolve tambm seu inverso: o elemento da antipatia. Esta afinidade obedece, entretanto, a uma ordem de associao entre os elementos em jogo determinada pela partilha entre eles de dois ou mais atributos que indiquem relao de similaridade (MAUSS, 2003). Tal experincia apontaria para a evidncia de algo comum, algo que o mesmo e determinante para todos os elementos que so atravessados pelo encantamento mgico. Trs seriam as leis que regem a transmisso da ma-gia: a de contigidade, de similaridade e a de contraste. Haveria, portanto, uma sobreposio entre as leis das associaes entre pensamentos e as re-laes causais entre as coisas materiais. Pode-se verificar, seguindo as ideias de Mauss, como as relaes entre os elementos formais em uma pintura abstrata obedecem no texto de Kandinsky s mesmas leis da magia. As leis de associao de pensamento so as mesmas da composio abstrata,

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    isto espelham uma ordem csmica. As formas e as cores se unem e se contrastam em uma harmonia e em uma escala de valores formais e cromticos inteiramente regida por ritmos e tonalidades que constituem, em ltima anlise, relaes de similitude, contiguidade e contraste. Sendo que contiguidade e similitude podem ser traduzidas como as afinidades entre elementos formais e cores que unem em um todo as partes da composio. Essas relaes espelham necessariamente as outras intrnse-cas ordem formal, ou melhor, ideal do mundo. Assim como a abstrao pictrica tem em seu fundamento a composio de formas geomtricas elementares, segundo um esquema emprestado tradio do platonismo, regida por leis de afinidades e contrastes, assim tambm, em sua essncia espiritual, o real , basicamente, uma estrutura geomtrica.

    O universo estruturado com a forma do tringulo: figura privilegia-da pela tradio mgica, esotrica. O tringulo representa o movimento perptuo da hierarquia espiritual dos seres. Ele a essncia da distino que rege os homens. No percebida pelo conjunto dos indivduos que constituem sua base, o tringulo de Kandinsky se configura em um mo-vimento resultante do esforo para se passar da base ao vrtice indo a uma ascenso progressiva desafiando a desigualdade espiritual da humanidade. Desigualdade provisria, tendo em vista sua dinmica espiritual, da qual se pode apenas tomar conscincia a partir da situao privilegiada daque-le que se encontra na sua ponta extrema, isto a posio do artista. Por conseguinte, o real no se limita aos limites de uma geometria esttica, mas antes se constitui em construo com sua prpria dinmica interna de transformao da base em cume.

    Lugar solitrio por sua topografia espiritual, o ponto extremo do trian-gulo, seu cume, pressupe como condio necessria o despertar da cons-cincia espiritual, traduzida na Viso do real em sua totalidade, Viso que consiste em um reflexo do espiritual da abstrao. quele que conseguiu atingir o ponto mais alto deste triangulo espiritual, cabe revelar aos ho-mens a dessemelhana de suas relaes, libertando-os, assim, dos limites impostos por uma viso singular, restrita, at mesmo mesquinha de suas prprias vidas. Aquele que j atingiu o despertar espiritual tem por tarefa mostrar aos outros o caminho a ser percorrido para se conquistar este abrir de olhos espiritual. Apesar de no ser um privilgio do artista, este por excelncia o caminho por ele percorrido e que aparece figurado na

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    nova ordem da pintura abstrata que necessrio seguir, ordem essa musical, invisvel e visvel, limitada no tempo e no espao, mas, entretanto, presente de maneira absoluta em tudo, tal qual a ordem csmica dos pitagricos.

    Por vezes, escreve Kandinsky, na ponta extrema deste triangulo h no mais que um homem solitrio (KANDINSKY, 1996). O artista dotado daquela viso que s o talento e a sua consequente ascenso mstica po-dem produzir, necessariamente isolado na sua tarefa de fazer avanar a humanidade elevando-a de sua condio decadente e materialista. Para Kandinsky h uma relao intrnseca entre o significado do elemento espiritual e o do primitivo na sociedade, assim como na arte. Primitivo teria antes de tudo o sentido de no contaminado pela civilizao nos seus aspectos tcnico, econmico e social que Kandisnky identifica com o materialismo (KANDINSKY, 1996). Na pureza do primitivo encon-tra-se o espiritual. O isolamento, portanto, no voluntrio. O artista no escolhe por sua genialidade, que lhe permite o acesso ao espiritual, solido dos visionrios; esta antes decorrente do fato de que a huma-nidade resiste inevitvel ascenso que lhe destinada, e nessa resistncia tem por alvo o artista.

    Ainda que Kandinsky seja um inovador, no s nas suas pinturas, mas tambm nas suas concepes tericas, em muito de suas teses conser-vam-se concepes das estticas romnticas e de sua herdeira simbolista, sobretudo no que diz respeito ao papel do artista. Este, tal qual na est-tica romntica tardia, conserva sua destinao de mrtir visionrio. Em sua indignao tratam-no de impostor e demente. Assim, em seu tem-po Beethoven solitrio foi alvo de seus ultrajes (KANDINSKY, 1996, p. 62). Mas o que v o artista? Qual o objeto de sua viso espiritual? Certamente a ordem perene da natureza, ordem da totalidade do ser, cujas leis so discernveis em um trabalho de depurao espiritual que, em grande medida, coincide com aquele da reeducao dos sentidos por meio da abstrao em arte.

    Faz-se necessrio alargar a experincia esttica ordinria limitada que por modelos materialistas, seno sensualistas, projetando esta experincia sobre o horizonte do modelo espiritual da abstrao, pois nele se encontra a demonstrao da natureza espiritual da matria pela equivalncia entre as leis da composio formal e aquelas da ordem do cosmos. Uma vez este modelo aceito, basta se deixar impregnar pela experincia esttica da

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    abstrao, para se purificar seus prprios sentidos, levando-os a um estado de sensibilidade espiritual que permite tornar visveis as leis da natureza figuradas nas leis da pintura abstrata, como leis da viso espiritual que se compartilha com o artista. Este processo se passa em todas as seces do tringulo estrutural do cosmos: Podem-se descobrir artistas em todas as partes do tringulo. Aquele que, entre eles, capaz de olhar alm dos limites da parte a que pertence um profeta para os que o cercam. Ele ajuda a fazer avanar a carroa recalcitrante (KANDINSKY, 1996, p. 35).

    O artista de gnio, no somente, pode ver o que os outros no podero ver seno muito tempo depois dele, mas tambm pode transmitir sua vi-so, fazendo com que se participe desta por meio da palavra compartilha-da, palavra que indica, que mostra o que se deve ver. Uma viso, portanto, com vocao universal. no texto de Kandinsky que essa palavra mgica tem seu lugar. por ela que se v, no sentido de compreender, assim como s o artista pode ver, a composio abstrata espelhar a composio do real. Dito de outra maneira, apenas se capaz de refazer o caminho da experincia da identidade entre a viso e o que visto na abstrao plstica, ao se fazer a abstrao de nossos sentidos, entendidos na sua sin-gularidade; isto , acordando palavra do artista, a Kandinsky, portanto, o poder de nos fazer experimentar suas concepes da arte e do espiritual como sendo universais. Por intermdio desta mesma palavra, pretenderia talvez Kandinsky, nos ensinar a possibilidade de ver na abstrao pictri-ca, a abstrao dos dados sensveis da percepo, livrando-a assim, de sua referncia corporal, quer dizer, espiritualizando-a, o que permitiria dis-cernir as articulaes necessrias dos elementos formais, que constituem a estrutura dinmica do real, daquelas que so falsas, ilusrias, como por exemplo, aquelas da figurao naturalista identifica ao materialismo da civilizao ocidental. A abstrao torna visvel o real como linguagem, no sentido de um agenciamento formal de signos, ao mesmo tempo na obra e na palavra do artista, cuja lgica baseada nas relaes mgicas entre seus elementos.

    Aparentemente, o que est em jogo a capacidade do artista, no de transformar todas as pessoas em seu smile e, portanto, dotadas de talento e viso espiritual, mas sim, seu poder de transmitir, na obra de arte, esta viso como o fim de uma ascese espiritual. Experincia esttica por exce-lncia libertria, medida que assume a tarefa prometida de ser o nico

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    lugar possvel da vida do esprito. Toma-se como condio do olhar, a possibilidade de se vivenciar, no sentido de uma Erfahung, o espiritual na arte abstrata, porque o que diz Kandinsky em seus escritos, sua obra pic-trica materializa. Mas s por pertencer ele mesmo a esta classe de seres especiais dotados de talento e viso espiritual que o artista abstrato. O que ele intenta nos fazer ver em suas obras sua viso no sentido mstico espiritual. Ela se encontra confirmada na descrio de sua prpria experi-ncia do espiritual, vivida enquanto artista e materializada, paradoxalmen-te, na abstrao pictrica, posto que no h outra maneira de transmiti-la. Tal posio solitria e privilegiada do artista no cume do tringulo da existncia, capaz de dot-lo da viso perfeita, a que lhe permite des-crever sua experincia esttica singular com a legitimidade prometida de uma descrio sistemtica do real, cuja pretenso universalidade onto-lgica evidente. ainda a figura do mgico, no sentido de Mauss, que se amalgama quela do artista e que oferece a possibilidade de tornar-se parte do espiritual a qualquer um que se disponha experincia esttica de se deixar fascinar pela teoria que impregna sua obra.

    Quanto figura do artista, da maneira que Kandinsky o v: colocado no ponto extremo da ordem ontolgica do cosmos, imune at mesmo s leis da contradio, ele mal se diferencia daquela outra figura do mago. Este modelo do artista mago se difunde em diversas correntes da arte ocidental desde o romantismo, passando pelo espiritual abstrato, o delrio surrealista, chegando mesmo arte contempornea, materializada no xa-manismo de Joseph Beuys. O modelo do visionrio, do mstico, afetado pelos dons, os talentos segundo o termo herdado da esttica romntica por Kandinsky, se conserva neste ser de exceo que o artista capaz ao mesmo tempo de despertar e anestesiar a conscincia do espectador, por meio de uma verdade revelada de uma teoria fsica do mundo, que em grande parte se resume a um sistema de pensamento mgico, isto , uma fsica determinada no por leis mecnicas, mas para-simpticas, as mesmas que se encontram mimetizadas na ordem abstrata da pintura.

    Assim como a cincia, a pintura para Kandinsky reivindica o poder de descobrir e descrever o universo microscpico e o macroscpico com suas leis matemticas e formas abstratas, por meio de uma analogia com o sensvel objetivado, no na sua representao conceitual, mas sim, na linguagem formal da pintura abstrata. Isto faz com que gozemos dessa

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    viso ampliada em paralelo quela da magia espiritual, que por isso mes-mo, atribui natureza, ao mundo, um princpio teleolgico. necessrio, como na cincia, mas para alm dos limites lgicos desta, desmaterializar o mundo na linguagem para poder torn-lo visvel, palpvel, de maneira absoluta. Uma vez transmudado em linguagem, pela linguagem, o mundo surge como o efetivamente sensvel comum a toda experincia esttica que se determina como nico real possvel. A analogia entre a ordem do cosmos (o real) e aquela do abstracionismo, delineia as bases do pa-ralelo entre o procedimento do artista mago e o do terico da cincia (KANDINSKY, 1996).

    Ao lado da teoria cientfica se encontra a teoria artstica do mundo, na busca por fazer com que da matria seja liberta o esprito cativo (KANDINSKY, 1996). Kandinsky reclama do mesmo poder da cincia em revelar a estrutura do mundo a partir do que ele crer ser a raiz comum entre arte e cincia, ou seja, o conhecimento revelado aos magos, vision-rios paranormais (KANDINSKY, 1996). Tal figura e conhecimento en-contram-se condensados na mstica paranormal russa Madame Blawatsky e em sua doutrina, que em grande medida constitui a fundamentao da cosmologia de Kandinsky. Tal cosmologia reflete, em grande parte, um certo sintoma de regresso a um arcasmo que acompanha a poca mo-derna, caracterizado de maneira positiva, como alternativa ao decaden-tismo das instituies identificadas civilizao europeia. O primitivo, o sobrenatural, o patolgico so associados a uma natureza no contami-nada pela razo cientfica materialista, bem como a uma certa noo de pureza e verdade; eles so percebidos como ndices de uma divergncia possvel massificao da razo instrumental produtiva e aos costumes burgueses que lhe so ligados. a esse estado de coisas que a arte espiri-tual pretende se contrapor, desafiando a ordem artificial da tcnica e da civilizao, segundo os termos de Kandinsky. Essa busca por alternativas a um suposto materialismo tecnicista atinge at mesmo o campo da reli-gio. Consideradas como parte dessa decadncia da civilizao ocidental, as religies monotestas so rejeitadas, em proveito de um engajamento por parte de alguns intelectuais e artistas em sistemas esotricos de fundo orientalista, tais como, a Teosofia de Blawatsky. H como que uma fasci-nao por um pensamento mgico no seio mesmo da modernidade, e as concepes tericas da arte abstrata no escapam ao seu influxo. Muito

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    pelo contrrio, elas estabelecem seus pressupostos tendo por base a viso de uma ordem mgica essencial que rege todas as coisas e que no con-tradiz, mas se sobrepe quela outra revelada pela cincia.

    Nesse sentido, Kandinsky pensa que a arte deve se voltar para o pri-mitivo com a finalidade de redescobrir prticas e mtodos de um conhe-cimento capaz de revelar o invisvel e dar uma resposta ao que ele cr ser um ceticismo generalizado ligado s cincias (KANDINSKY, 1996). Ceticismo esse, que teria se instaurado a partir da constatao da insufi-cincia dos mtodos cientficos, para dar conta da dimenso no acessvel aos sentidos, na qual reside o espiritual do homem e do mundo, a no--matria, nos termos de Kandinsky. Como se pode perceber, o espiritual, da maneira como condensado nas doutrinas esotricas, no se estabelece em uma contraposio cincia, ou matemtica. Ele reivindica um lugar de origem e alicerce do pensamento cientifico prximo quele da tradi-o filosfica ocidental.

    Se por um lado a imagem do artista filsofo e cientista parece ser nada mais que uma atualizao na histria da arte da figura arcaica do mago, por outro, ao se conceber como este ser de exceo que propor-ciona a possibilidade de aceder essncia das coisas na linguagem formal do abstracionismo pictrico, o artista, como pensado por Kandinsky, atribui a si mesmo a posio da autonomia perfeita da conscincia liber-ta de se representar como conscincia de si. Abre-se uma passagem em direo experincia maior de um modo de vida original, primitivo e, portanto, espiritual. Modo de vida esse, com o qual o artista se encontra plenamente identificado, medida que ele mesmo que promove a experincia esttica e mgica de um transe espiritual, no qual, a cons-cincia e a sensibilidade alteradas, encontram-se refletidas nas formas e cores das composies abstratas. Desta maneira, o artista representa na pintura a crena na possibilidade da alienao completa de si na lingua-gem formal da arte.

    No sem propsito, portanto, que gostaria de sugerir uma aproxi-mao entre o uso dos termos talento e gnio por Kandinsky em Do espiritual na arte, e o de Kant na Critica do Juzo. Creio ser possvel tornar claro nesta aproximao que a concepo de gnio em Kandinsky fun-damental quando se trata de entender o que significa o espiritual na arte. O espiritual resulta da crena em um pensamento mgico que, por sua

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    vez, se pensa em conformidade s regras da abstrao e numa relao de analogia com as leis da natureza. A pintura o lugar da conjuno das re-gras da natureza e da cultura. O talento, para Kandinsky, designaria, dessa maneira, a qualidade do artista de tornar visvel nas normas da abstrao, as leis de uma suposta ordem invisvel da natureza. Kant, na Critica do Juzo, havia afirmado a separao entre as regras tcnicas que no dife-renciam um mero artefato de uma obra, e aquelas do belo. Para que uma obra seja bela, quer dizer, efetivamente obra de arte e no apenas uma reproduo medocre, ela deve, no apenas ser um artefato resultante da aplicao de regras tcnicas, ou seja, algo, cuja forma reflete uma finalida-de, mas tem que conter uma srie de regras que escapem a toda finalidade determinada pelo uso. Essas so as regras do belo e este, segundo Kant, necessariamente algo da ordem da natureza, tendo em vista que a forma do belo no reflete uma intencionalidade e no conforme o conceito, mas sim reflete a finalidade sem propsito, sem fim da natureza. As regras da arte, das belas artes, so as regras do belo, ou seja, dadas pelo Gnio, aquelas da natureza inscritas na arte.

    No pargrafo 46 da Crtica do Juzo, Kant define as propriedades do gnio como sendo basicamente trs: a primeira se afasta da noo de ha-bilidade de seguir regras, noo derivada da tchne grega, para se afirmar como capaz de produzir sem regras determinadas a priori e, portanto, de maneira original. A segunda diz respeito capacidade do gnio forne-cer regras a si mesmo, uma vez que no segue regras determinadas, mas tambm de servir de modelo a outras obras. A terceira e a quarta afirma que a regra que o gnio fornece a si mesmo a natureza, desprovida de conceitos e juzos prvios. No um saber prprio ao artista que igno-ra, por conseguinte, como tais regras encontram-se nele. Ele no pode imagin-las, nem prescrev-las. Na etimologia da palavra gnio fornecida por Kant no final do pargrafo, encontra-se indicada sua origem mgica, aquela de uma natureza paradoxalmente sobrenatural, no determinada conceitualmente e que d regras arte, mas no cincia, visto que esta pressupe o conceito. Gnio um esprito peculiar, um guia, um protetor e, nesse sentido, cabe observar, uma crena que ressurge nas experincias espirituais e ocultistas caractersticas da virada do sculo dezenove para o vinte e que se encontram, dentre outras, na doutrina Teosfica que in-fluencia diretamente o pensamento de Kandinsky.

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    Esse esprito, o Gnio, dado ao homem no seu nascimento e o inspira as ideias originais. Essas ideias no podem ser apreendidas como preceitos para se realizar a obra de arte. Pois, a obra de arte, o que a constitui como tal, seria determinada conceitualmente. Se o gnio no pode ser comu-nicado, no entanto, suas regras podem ser abstradas do produto, e este um ponto importante na aproximao com o espiritual na abstrao pictrica, e comunicadas, no como coisa a ser imitada, mas como mo-delo de imitao caracterstica da obra de arte. Entretanto, este s pode ser comunicado a um outro gnio que despertado pelo contato com as obras do mestre genial. Se o gnio no pode prescrever a si mesmo, expor seu mtodo, quer dizer, o modo como realiza seu produto, ele pode, en-tretanto, se expor na obra. A obra necessariamente o lugar onde o gnio se torna visvel. Coisa que no estava prevista no programa kantiano, no que concerne arte abstrata, a linguagem formal que a estrutura a mar-ca da genialidade. De fato, o gnio um nome para as regras do esprito substancializadas na linguagem da pintura abstrata, da maneira pensada por Kandinsky, quer dizer, como manifestao esttica de um saber que no se apreende, mas que revelado, saber das regras da natureza, tal qual o personifica Blawatsky. Um modelo arcaico de conhecimento, que pres-supe a encarnao e o encantamento do esprito, quer dizer, do gnio.

    Ressalte-se que em seu livro Ponto, Linha e Plano de 1926, portan-to, quinze anos aps Do Espiritual na Arte e quando j exercia cargo de professor na Bauhaus de Weimar, Kandinsky elabora um detalhado es-tudo analtico dos elementos bsicos do desenho, das formas grficas e suas articulaes. Nesta obra ele recupera da tradio artstica o que ele mesmo denomina de uma cincia da arte. A tese defendida a de que haveria uma linguagem formal da arte, em especial do desenho, fundamento de toda arte plstica. Esta seria mais ou menos aparente a depender das circunstncias histricas envolvidas. A tarefa levada a cabo em Ponto, Linha e Plano, portanto, a de revelar e descrever sistematica-mente o funcionamento desta linguagem depurada de todo elemento externo, excedente prpria gramtica do desenho. Pode-se pensar que haveria um afastamento em relao s ideias defendidas em Do Espiritual da Arte, na medida em que se pode tomar esta cincia da arte como um mtodo. No entanto, o que pretende Kandinsky no , evidentemente, apresentar uma frmula. Ponto, linha e Plano no se organiza como um

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    conjunto de prescries para se realizar uma obra de arte. Este texto antes, uma tese acerca das formas primeiras, bsicas do desenho, e sua organizao fenomenolgica que Kandinsky separa em interior e exte-rior (KANDINSKY, 1996, p. 7). Nesse sentido, Kandinsky nos revela o caminho para se compreender uma obra de arte, ou melhor, sua factura onde se revela sua autonomia esttica. Nesse sentido tambm, ele no se afasta da diferenciao pensada por Kant entre as regras que constituem o legado que se apreende nas academias h sempre algo de mecnico na arte, que lhe essencial, e este algo passvel de ser ensinado e apreendido por meio de regras algo mecnico que faz com que uma pintura seja uma pintura, uma escultura uma escultura e assim por diante, e as regras do gnio que constituem efetivamente uma obra de arte. A primeira a reproduo, correta das regras do fazer e das tcnicas, a outra obra de gnio, onde se exprime as regras da natureza que constitui, portanto, o belo autnomo, isto aquilo que define efetivamente uma obra de arte (KANT, 1993, p.156). Ponto, Linha e Plano inscreve a autonomia das for-mas puras do desenho em analogia com as formas puras da natureza, na qual se daria a sntese entre interior e exterior levando a compreenso da ordem maior do Universo. V-se, por conseguinte, a aproximao com o Espiritual (KANDINSKY, 1996, p. 103).

    Cabe aqui acrescentar um outro elemento, qual seja o de Ideia esttica. A concepo de Kandinsky de obra de arte materialista se assemelha, em grande medida, noo de obra sem esprito, segundo a definio de Kant: obra que tem por finalidade no a imitao da ideia esttica, mas a reproduo mecnica do agradvel, isto , do meramente sensvel. O que a arte tem por fim representar a ideia esttica, ou seja, a contrapartida da ideia da razo, nos termos de Kant. A ideia esttica tem esta denomi-nao porque, por sua caracterstica transcendental, aponta para fora dos limites da experincia sensvel e nisso se aproxima das ideias intelectuais (KANT, 1993). Ela um produto da faculdade produtiva da imaginao que cria como que uma natureza, a partir da matria que a natureza efetiva lhe d (KANT, 1993, p. 159). Uma natureza que, embora no seja determinada por conceitos, se aproxima bastante das ideias da razo e, portanto, remete ideia de liberdade, autonomia e tem a aparncia da ob-jetividade. O esprito consiste em um princpio, cuja funo a de tornar visveis as ideias estticas, isto , apresent-las, na obra de arte, como sua

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    prpria forma, produzidas segundo suas prprias regras. A arte depende da maneira de se mostrar, de aparecer por meio da correspondncia entre a obra ela mesma e a faculdade produtiva que a est em jogo. Se essa correspondncia no se realiza, a obra encontra-se reduzida a ser sim-plesmente um modo de exposio da consequncia material e tcnica de certas prticas de produo, das quais o esprito ausente. Quanto questo do juzo de gosto que ligado necessariamente ao belo, a arte dele no depende no que concerne sua definio, posto que apenas uma faculdade de valorar, segundo Kant, e no produtiva. Pode-se ter uma obra de bom gosto, sem, entretanto, ser obra de gnio.

    Diz-se de certos produtos, dos quais se esperaria que devessem pelo menos em parte mostrar-se como arte bela, que eles so sem esprito, embora no que concerne ao gosto no se encontre neles nada de censurvel. Uma poesia pode ser verdadeiramente graciosa e elegante, mas sem esprito. Um discurso festivo profundo e requintado, mas sem esprito [...] (KANT, 1993, p. 159).

    quase nos mesmos termos que Kandinsky vai se referir obra de arte que busca um efeito puramente reprodutivo da tcnica. Ela pode ser agra-dvel ao gosto, sem ser espiritual. Kandinsky compara seu efeito quele que resulta da contemplao de uma paleta de cores. Tanto um aspecto quanto outro, limitam a arte ao seu efeito material. No primeiro, o m-todo que empregar para reproduzir o objeto torna-se, para o artista, o nico problema: o credo de uma arte se alma (KANDINSKY, 1996, p. 37). No outro, a arte se v reduzida sensao fsica agradvel que so, por natureza, de curta durao: elas so superficiais e de curta durao, ela se apaga sem deixar vestgios, mal a alma se fecha (KANDINSKY, 1996, p. 37).

    A alma, o esprito, no um atributo da arte, aspecto natural da arte, no to pouco o que deriva do talento do artista representado pelo puro jogo das faculdades da imaginao sem finalidade. A alma o espiritual que se concretiza na abstrao pictrica, quer dizer, do jogo das faculda-des do esprito identificado ordem da natureza. A alma esta dinmica intrnseca ao gnio que se transmite (magicamente, no sentido de Mauss) de um elemento emprico a outro, tornando-os parte de uma correlao que faz do sensvel, algo da ordem de uma experincia esttica que se no

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    totalmente desprovida de subjetividade, pelo menos pressupe uma sub-jetividade compartilhada de maneira objetiva. Ora Kant, procura definir o termo esprito em oposio a tudo o que do domnio comum do cog-nitivo: conceito, intuio, entendimento, etc., permanecendo, entretanto, em uma relao de analogia com a ideia, com os conceitos.

    Como bem percebeu o terico e crtico da arte americano Clement Greenberg, a quem muito se deve a defesa das teses kantianas como fun-damento terico ao formalismo na arte, na experincia esttica, o sujeito passa a ser to objetivo quanto sua razo. Ainda que no seja o sujeito transcendental do conhecimento, ele necessariamente universal. Na ex-perincia esttica h como que um distanciamento do sujeito particular com suas caractersticas psicolgicas e prticas individualizantes norteadas por interesses, o que para Kant vai no sentido contrrio ao juzo esttico que desinteressado, posto que sem conceito e finalidade que o determi-nem. Na experincia esttica: O indivduo passa a ser to objetivo quan-to em seu raciocnio, o que igualmente requer um distanciamento em relao a este Eu particular (GREENBERG, 2002, p. 56). O contedo, sua forma abstrata, por ser obra do gnio, o espiritual, necessariamente objetivo, universal, e por ser desinteressada, desligada dos limites de uma razo instrumental materialista, visa uma outra razo: aquela das regras da natureza e da liberdade de vontade, ou seja do esprito livre. Nesse senti-do, como afirma Jean-Paul Bouillon no prefcio de Olhar sobre o passado, misto de ensaio terico e autobiogrfico de Kandinsky, a abstrao pict-rica em grande parte um projeto mtico, ideolgico e com pretenses religiosas e morais. A arte serve e consiste em um sistema moral e morali-zador, nico capaz de revelar, pela experincia esttica das leis do gnio, a lei moral interior que cada um deve seguir. Desta forma o prprio texto de Kandinsky torna-se indissocivel de sua obra pictrica e mesmo a jus-tifica para alm do momento histrico como projeto metafsico e tico. Quando se substitui o estudo das relaes dialticas por uma verdadeira teologia da obra de arte, esta acaba se tornando, mais uma vez, apenas uma parfrase daquele que se converte em seu modelo, em vez de ser o objeto de sua anlise (BOUILLON in KANDINSKY, 1991, p.47).

    O esprito a forma absoluta, espiritual, moral da arte, que lhe d o contedo, enquanto a forma material, dada por sua resoluo tcnica, relativa e restrita aos materiais e experincia sensvel, portanto, subjetiva.

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    O essencial na questo da forma, saber se ela nasceu de uma necessida-de interior ou no (KANDINSKY, 1996, p.120). Quando a forma dada pelas regras do gnio, quando este o contedo da arte e tem por origem o livre jogo da faculdade de imaginao, livre jogo que se torna visvel na composio abstrata, ento ela est de acordo com a necessidade interior e cumpre sua funo espiritual e moralizadora. Essa necessidade interior a regra moral que tem por horizonte o conceito de liberdade; a vontade livre, autnoma e a liberdade de criar esttica se encontram numa relao de analogia, confundidas que esto com o poder mgico do espiritu-al, cujas caractersticas Kandinsky distingue na arte abstrata, como sendo uma grande liberdade que nos permite ouvir a voz do esprito e que em ltima instncia se manifesta na expresso esttica. A arte, como pensava Kant, no momento em que se afasta do simples prazer agradvel, deve estar em uma disposio a fins no juzo da razo. Pode-se grosso modo, encontrar a ecos da formulao kantiana, por intermdio da qual, pode--se tambm compreender o espiritual de Kandinsky como seu herdeiro.

    A ligao entre arte e moral na abstrao corresponde quela simblica indicada por Kant entre belo e moral. Se o belo na arte fruto do gnio, quer dizer das regras da natureza como regras da arte, e este o contedo da arte, e se o belo, por seu carter natural, necessrio e compartilhado universalmente no juzo esttico, este, por um assentimento universal re-gido por um principio de liberdade simbolicamente anlogo ao moral-mente-bom. Uma marca disso seria o uso de adjetivos morais em juzos estticos. Assim sendo, como afirma Kant: o gosto torna, por assim dizer, possvel a passagem do atrativo dos sentidos ao interesse moral habitual (KANT, 1993, p.199). Disso depende que o livre jogo da faculdade da imaginao, faculdade produtiva, esteja conforme a fins do entendimento, ou seja, que no esteja contraposta razo.

    Gostaria de finalizar com duas observaes. Primeiro, quanto arte abstrata, a razo estaria reduzida sua capacidade de refletir o espiritual. Ela se exprimiria na linguagem formal da abstrao, que por sua vez seria a imagem de uma razo mgica, cujas regras, tambm elas sobrenaturais, espirituais e divinas, regem a natureza identificada a um princpio moral. Por conseguinte, se a pintura abstrata se considera livre de toda nature-za, no menos verdade que uma outra natureza, derivada de uma necessidade moral interior, subsiste e constitui o valor ontolgico da obra

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    de arte. Segundo, essa natureza do gnio, do esprito que nas palavras de Adorno, ao procurar escapar a uma estetizao da excitao sensvel, pu-ramente ornamental, material e tcnica, ganha autonomia, desaparece na materialidade que ela tenta espiritualizar. Ela se perde ao tentar despojar a obra de todo peso sensvel, posto que para se realizar, paradoxalmente, no pode prescindir de um meio material e tcnico, portanto, determinado por finalidades. O espiritual acaba por se fixar no material nu, no puro e simples ente (ADORNO, 2002). Este esprito implica uma sensibilida-de assptica e por isso apenas glorificada por ela mesma, quanto mais se tenta espiritualizar a arte, mais o espiritual dela se afasta.

    Referncias bibliogrficas ADORNO, T. W. 2002. Lart et les arts. Paris: Descle de Brouwer.

    GREENBERG, C. 2002. Esttica domstica. So Paulo: Cosac e Naify.

    KANT, I. 1993. Crtica da faculdade do juzo. Rio de Janeiro: Forense Universitria.

    KANDINSKY, W. 1991. Olhar sobre o passado. So Paulo: Martins Fontes.

    ___________________. 1996. Do espiritual na arte e na pintura em particular. So Paulo: Martins Fontes.

    ____________________. 1996. Ponto, linha e plano. Lisboa: edies 70.

    MAUSS, M. 2003. Sociologia e antropologia. So Paulo: Cosac e Naify.

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