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Universidade Federal do Rio de Janeiro Faculdade de Letras Comissão de PósGraduação e Pesquisa ESQUEMAS DE IMAGEM NA FORMAÇÃO DE DENOMINAIS EM PORTUGUÊS: O CASO DE EIRO E ÁRIO TOMO I João Carlos Tavares da Silva Rio de Janeiro Fevereiro de 2017

ESQUEMAS DE IMAGEM NA FORMAÇÃO DE DENOMINAIS … · Universidade Federal do Rio de Janeiro Faculdade de Letras Comissão de PósGraduação e Pesquisa ESQUEMAS DE IMAGEM NA FORMAÇÃO

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Universidade Federal do Rio de Janeiro Faculdade de Letras Comissão de Pós­Graduação e Pesquisa

ESQUEMAS DE IMAGEM NA FORMAÇÃO DE DENOMINAIS EM PORTUGUÊS: O

CASO DE ­EIRO E ­ÁRIO

TOMO I

João Carlos Tavares da Silva

Rio de Janeiro Fevereiro de 2017

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Universidade Federal do Rio de Janeiro Faculdade de Letras Comissão de Pós­Graduação e Pesquisa

ESQUEMAS DE IMAGEM NA FORMAÇÃO DE DENOMINAIS EM PORTUGUÊS: O

CASO DE ­EIRO E ­ÁRIO

TOMO I

João Carlos Tavares da Silva

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós­graduação em Letras Vernáculas (Língua Portuguesa) da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Doutor em Letras Vernáculas (Língua Portuguesa). Orientador: Prof. Doutor Carlos Alexandre Gonçalves

Rio de Janeiro Fevereiro de 2017

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TAVARES DA SILVA, João Carlos. Esquemas de imagem na formação de denominais em português: o

caso de ­eiro e ­ário / João Carlos Tavares da Silva. – Rio de Janeiro: UFRJ/FL, 2017 226 f. Orientador: Prof. Doutor Carlos Alexandre Gonçalves

Tese (Doutorado) – UFRJ/ Faculdade de Letras / Programa de Pós­Graduação em Letras Vernáculas (Língua Portuguesa), 2017. Referências Bibliográficas: f. 216­226.

1. Sufixação. 2. Esquemas de imagem. 3. Morfologia Construcional. 4. Linguística Cognitiva. I. GONÇALVES, Carlos Alexandre Victorio. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, Programa de Pós­graduação em Letras Vernáculas (Língua Portuguesa). III. Esquemas de imagem na formação de denominais em português: o caso de ­eiro e ­ário

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ESQUEMAS DE IMAGEM NA FORMAÇÃO DE DENOMINAIS EM PORTUGUÊS: O CASO DE ­EIRO E ­ÁRIO

João Carlos Tavares da Silva Orientador: Professor Doutor Carlos Alexandre Victorio Gonçalves

DEFESA DE TESE

SILVA, João Carlos Tavares da (2017). Esquemas de imagem na formação de denominais em português: o caso de ­eiro e ­ário. Rio de Janeiro, 2013. Tese (Doutorado em Letras Vernáculas) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. Examinada por: ______________________________________________________________________ Professor Doutor Carlos Alexandre Victorio Gonçalves – UFRJ, presidente ______________________________________________________________________ Professora Doutora Sandra Pereira Bernardo – UERJ ______________________________________________________________________ Professora Doutora Eliete Figueira Batista da Silveira – UFRJ ______________________________________________________________________ Professora Doutora Neide Higino da Silva – USU ______________________________________________________________________ Professor Doutor Roberto Botelho Rondinini – UFRRJ ______________________________________________________________________ Professora Doutora Naira de Almeira Veloso – UERJ, suplente ______________________________________________________________________ Professora Doutora Ana Paula Victoriano Belchor – UFRJ, suplente Aprovada em _____ /_____/ 2017.

Rio de Janeiro Fevereiro de 2017

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SINOPSE Esta tese propõe­se a descrever a atuação dos esquemas de imagem na formação dos denominais X­ eiro e X­ário, como base na Morfologia Construcional de Geert Booij e nos pressupostos mais gerais da Linguística Cognitiva .

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Ao clã Tavares, do qual tenho orgulho e faço parte: Iracema Tavares (vótriarca); Luzineide Tavares (mãe); Lindomar Tavares (tia); Valdir Tavares, Valdenio Tavares, Wilmar Tavares, Waldemir Tavares e Waldécio Tavares (tios).

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"Encontrar a verdade é difícil, e o caminho é acidentado. Como buscadores da verdade, o melhor é não julgar e não confiar cegamente nos escritos dos antigos. É preciso questionar e examinar criticamente o que foi escrito, por todos os lados. É preciso aceitar apenas o argumento e a experiência, em vez do que qualquer pessoa diz, pois todo ser humano é vulnerável a todos os tipos de imperfeição. Como buscadores da verdade, devemos suspeitar e questionar nossas próprias ideias ao investigarmos fatos, para evitar preconceitos ou pensamentos descuidados. Sigam este caminho e a verdade vos será revelada."

( Abu Ali al­Hasan ­ 965 ­ 1040)

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AGRADECIMENTOS

Agradeço, primeiramente, ao meu orientador, Professor Doutor Carlos Alexandre Gonçalves, pela orientação impecável e principalmente por todos esses anos de paciência e tempo dedicados, de incentivo e apoio, de confiança no meu trabalho e, sobretudo, de amizade. Professor Carlos, o senhor é, para mim, um ícone não só na esfera acadêmico­profissional, mas também na esfera pessoal. Nunca gostei de tietagem, mas agora, nessa reta final, abro mão desse decoro para dizer: sou seu fã. E se não boto em caixa alta, alongamento da tônica, escansão silábica ou mesmo o bom e velho WordArt, é apenas porque o gênero não permite. Desde a primeira aula de morfologia em 2007, passando pelas aulas de fonologia, pelas aulas na pós, pela orientação no mestrado e, fechando o ciclo, pelas orientações no doutorado, foram muitos momentos em que eu me sentia o famoso gafanhoto ­ sempre atento e apreensivo aos ensinamentos do mestre. Levarei todo esse conhecimento comigo, que, com certeza, é o que me torna um pesquisador e profissional muito melhor do que o que um dia imaginei que poderia ser.

Quero agradecer às Professoras Doutoras Leonor Werneck dos Santos, Regina Souza Gomes, Mônica Nobre, Maria Lúcia Leitão e ao Professor Doutor Leonardo Marcotulio, que, embora não tenham contribuído diretamente para o desenvolvimento do trabalho, contribuíram de forma indireta, na medida em que tiveram grande influência na minha formação acadêmica, ética e profissional.

Agradeço também à Professora Doutora Neide Higino pela amizade, pelas conversas reconfortantes e revigorantes, pelos conselhos e direcionamentos, pois não só de indicação bibliográfica vive o pesquisador.

Nessa senda, faço agradecimento especial à Professora Doutora Eliete Figueira Batista da Silveira, minha amiga, conselheira, alma gêmea libriana com ascendente em touro, que, incrivelmente, conseguiu me aturar por exatos dez anos ­ tarefa, por sinal, dificílima. Há dez anos chegava eu, perdido e desorientado, atrasado para a primeira aula de português, que foi, para mim, um amor à primeira vista. Descobrir que havia um universo para além da gramática normativa e que estudar língua era de fato uma ciência e não apenas um conglomerado de regras arbitrárias ditadas por autores renomados, reacendeu minhas pueris aspirações de quando sonhava em ser cientista.

Àquela época, porém, na minha pequenez (tanto intelectual, quanto espacial), acreditava eu que ser cientista era estudar os planetas, as estrelas e fazer experiências com tubo de ensaio. O método clássico observação­generalização­hipótese­constatação empírica, que foi comum aos grandes nomes que sempre me fascinaram como Galileu, Copérnico, Newton, Darwin, Mendel, dentre tantos outros, se mostrava ali inteiramente imprescindível aos estudos linguísticos. Ver o estudo da língua como ciência descortinou­me aquilo que, de certa forma, até estava lá nas gramáticas de Celso Cunha e Rocha Lima, mas não conseguia ver.

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Assim como o prisma revela a verdadeira natureza da luz branca fragmentando­a em várias cores, cada qual com uma frequência, as aulas de português I e Linguística I, com a ilustríssima professora Aniela Improta França, me mostraram o que de fato era estudar língua(s). Foi Eliete Silveira, porém, que me pegou pela mão e me conduziu ao mundo da pesquisa em língua portuguesa, e, citando o grande maestro soberano, “ só tinha que ser com você ”. Muito provavelmente, dadas as circunstâncias da época, se português I não fosse com você, esta tese nem teria sido escrita. Teria eu atravessado a rua para fazer minha primeira opção: o curso de física ­ do qual não sinto mais nenhuma falta.

Deixo aqui registrados, pois, meus sinceros agradecimentos. E um dia, quem sabe, então, o Rio será alguma cidade submersa, e os escafandristas resgataram esta tese que desvendará não só segredos perdidos da língua portuguesa, mas principalmente a importância que você teve na minha microscópica vida dentro desse universo infinito. Muito obrigado por toda atenção, paciência, carinho, conselhos, amizade, e ensinamentos que foram para muito além do âmbito acadêmico­profissional. Agradeço também Ao Programa de Pós­graduação em Letras Vernáculas da UFRJ e ao NEMP pelo acolhimento e a viabilização deste trabalho. À Capes pela concessão de bolsa de março de 2015 a fevereiro de 2017.

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ESQUEMAS DE IMAGEM NA FORMAÇÃO DE DENOMINAIS EM PORTUGUÊS: O CASO DE ­EIRO E ­ÁRIO

João Carlos Tavares da Silva

Orientador: Professor Doutor Carlos Alexandre Gonçalves

Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós­graduação em Letras Vernáculas, Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Doutor em Letras Vernáculas (Língua Portuguesa).

RESUMO

No intuito de descrever o nível esquemático das construções denominais, a presente tese tem por objetivo principal propor que a semântica dessas construções morfológicas é ancorada em esquemas de imagem de contiguidade (parte­todo, contenção, contato e adjacência). O aporte teórico que sustenta a tese é a junção do modelo construcional de Geert Booij (2005, 2007, 2010) à noção de rede conceitual prototipicamente estruturada de Peirsman & Geeraerts (2006). Tal rede é resultado da combinação de esquemas de imagens e domínios cognitivos. Defendo, neste trabalho, que essa rede conceitual estrutura não só processos referenciais (como mostram Peirsman & Geeraerts), mas também relações lexicais (meronímia e hiponímia) e processos de formação de palavras. As construções aqui selecionadas como foco de análise para corroborar a proposta são X­eiro(a) e a X­ário. Cabe frisar que essa nova abordagem pode ser estendida a outros sufixos denominais, como ­ada, ­al, ­agem e ­aria, não se limitando, pois, ao recorte aqui feito. Palavras­chave: Sufixação. Esquemas de imagem. Morfologia Construcional. Linguística Cognitiva.

Rio de Janeiro Fevereiro de 2017

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IMAGE SCHEMES IN THE FORMATION OF DENOMINALS IN PORTUGUESE: THE CASE OF ­EIRO AND ­ÁRIO

João Carlos Tavares da Silva

Orientador: Professor Doutor Carlos Alexandre Gonçalves

Abstract da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós­graduação em Letras Vernáculas, Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Doutor em Letras Vernáculas (Língua Portuguesa).

ABSTRATC

In order to describe the schematic concept of the denominal constructions, this thesis aims

that the semantics of these morphological constructions is anchored in image schemas of

contiguity (part­whole, containment, contact and adjacency). The theoretical support that base

the thesis is the junction of the constructional morphology model of Geert Booij (2005, 2007,

2010) with the prototypically structured conceptual network of Peirsman & Geeraerts (2006).

This network is a result of the combination of image schemas and cognitive domains. I argue

that this conceptual network structure both referential processes (as Peirsman & Geeraerts

argue) and lexical relations (meronymy and hyponymy) and word formation processes. The

constructions selected here as the focus of analysis to corroborate the proposal are the

X­eiro(a) and X­ário. It should be stressed that this new approach can be extended to other

denominal suffixes, such as ­ada, ­al, ­agem and ­aria, and therefore is not limited to the cut

made here.

Key­words: Suffixation. Image schemas. Construction Morphology. Cognitive Linguistics.

Rio de Janeiro Fevereiro de 2017

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ESQUEMAS DE IMAGEN EN LA FORMACIÓN DE DENOMINALES EN PORTUGUÉS: EL CASO DE ­EIRO Y ­ÁRIO

Resumen da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós­graduação em Letras Vernáculas, Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Doutor em Letras Vernáculas (Língua Portuguesa).

RESUMEN

Con el fin de describir el nivel esquemático de las estructuras denominales, este estudio tiene como objetivo principal proponer que la semántica de estas estructuras morfológicas está anclado en esquemas de imagen de contigüidad (parte­todo, contención, contacto e adyacencia). El marco teórico que apoya la tesis es la unión del modelo construccional de Geert Booij (2005, 2007, 2010) la noción de red conceptual prototípicamente estructurada de Peirsman & Geeraerts (2006). Esta red es el resultado de la combinación de esquemas de imagen y dominios cognitivos. Argumento en esta tesis que esta red conceptual organiza no sólo los procesos de referencia (como se muestra Peirsman y Geeraerts), pero también relaciones léxicas y procesos de formación de palabras. Las construcciones aquí seleccionadas como el foco de análisis para apoyar la propuesta son la construcción X­eiro(a) y la construcción X­ário. Cabe destacar que este nuevo enfoque se puede extender a otros sufijos denominales como ­ada, ­al, ­agem e ­aria, no se limita, por lo tanto, el corte hecho aquí.

Palabras clave: Sufijación. Esquemas de imagen. Morfología Constructiva. Lingüística cognitiva.

Rio de Janeiro Fevereiro de 2017

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LISTA DE QUADROS E FIGURAS

QUADROS

Quadro 1 Construção de movimento causado ……………………………………. 29

Quadro 2 Inventário de esquemas imagéticos ……………………………………. 53

Quadro 3 Taxonomia das relações meronímicas …………………………………. 71

Quadro 4 Esquemas de imagem, metonímia e relações lexicais …………………. 88

Quadro 5 Correspondência entre estrutura analítica e sintética na expressão da agentividade …………………………………………………………….

97

Quadro 6 Distribuição complementar entre X­eiro e X­ista …………………….... 105

Quadro 7 Relação paradigmática entre X­ia e X­ico ……………………………... 106

Quadro 8 Relação paradigmática entre X­eiro e X­aria …………………………... 106

Quadro 9 Classificação dos agentivos segundo Gonçalves, Yacovenco e Costa (1998) …………………………………………………………………...

111

Quadro 10 Formação de holônimos a partir de ­eiro, ­ada, ­agem, ­al e ­aria ……... 129

Quadro 11 Formação de holônimos a partir de ­eiro e ­ada ……………………….. 130

Quadro 12 Diferentes propostas de periodização da língua portuguesa (IVO CASTRO, 1988) ………………………………………………………..

151

Quadro 13 Percurso histórico de ­eiro segundo Viaro (2007) ……………………... 158

Quadro 14 Nomes de partes de corpo e partes de plantas na língua Eyiguayegi­Mbaya ……………………………………………………...

164

Quadro 15 Nomes de partes de plantas nas línguas Eseejja e Amahuaca ……….... 164

Quadro 16 Divisão dos nomes em alienável e inalienável na língua Mataco …….... 165

Quadro 17 Locativos X­ariu ……………………………………………………….. 170

Quadro 18 Distribuição por gênero das palavras X­ariu agentivas ………………... 174

Quadro 19 Distribuição por gênero das palavras X­ariu não agentivas …………… 175

Quadro 20 Distribuição dos corpora latinos ……………………………………….. 184

Quadro 21 Características e correlações entre os profissionais X­ariu, X­eiro e X­ário …………………………………………………………………...

187

Quadro 22 Características e correlações entre os habituais X­ariu e X­eiro ………. 187

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Quadro 23 Distribuição das palavras X­eiro angiospermas do século IX ao XX ………... 191

Quadro 24 Palavras X­ariu e seus correspondentes em português ………………... 194

Quadro 25 Distribuição dos Objetos e Locativos X­eiro do século XI ao XX …….. 195

Quadro 26 Subesquemas X­ariu atingidos pela mudança fonético­fonológica e suas características ……………………………………………………...

198

Quadro 27 Distribuição das palavras X­ário nos quatro períodos da língua portuguesa ………………………………………………………………

207

FIGURAS

Figura 1 Representação do léxico hierárquico …………………………………... 38

Figura 2 Instanciação e unificação de ‘vender’ com a construção X­dor ……...... 39

Figura 3 Herança por subparte nas construções eletro­X ……………………...… 43

Figura 4 Representação das três dimensões propostas por Peirsman & Geeraerts (2006) …………………………………………………….......................

46

Figura 5 Atuação das dimensões força de contato e limitação ………………….. 46

Figura 6 Padrões metonímicos segundo Peirsman & Geeraerts (2006) …………. 48

Figura 7 Representação da Rede Conceitual de Contiguidade (RCC) …………... 51

Figura 8 Representação esquemática da metonímia COMPRAR por PAGAR e da meronímia ‘comprar’ : ‘pagar’ ……………………………………...

88

Figura 9 RCC como base conceitual das relações meronímicas ……………….... 88

Figura 10 Relação Kodak : câmera numa perspectiva extensional ……………...... 90

Figura 11 Relação Kodak : câmera numa perspectiva intensional ……………...... 91

Figura 12 RCC como base conceitual das relações meronímicas ……………….... 92

Figura 13 Relação de parte­todo no domínio temporal ………………………….... 92

Figura 14 Relação de contenção e contato no domínio espaço­material …………. 93

Figura 15 Rede polissêmica de X­eiro segundo Gonçalves & Almeida (2006) ...... 96

Figura 16 Processo de formação da estrutura sintética segundo Botelho (2004) .... 98

Figura 17 Rede polissêmica de X­eiro segundo Pizzorno (2010) ……………….... 99

Figura 18 Continuum de animacidade segundo Pizzorno (2010) ………………… 99

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Figura 19 Rede polissêmica do sufixo ­ão proposta por Gonçalves et al. (2010) .. 125

Figura 20 Rede polissêmica do sufixo ­ão proposta por Alves (2011) …………… 126

Figura 21 Representação esquemática da meronímia membro­coleção ………….. 129

Figura 22 Representação esquemática da meronímia parte­todo …………………. 130

Figura 23 Hierarquia da construção X­eiro denominal ………………………….... 132

Figura 24 Rede polissêmica dos denominais X­eiro(a) não­agentivos ………….... 136

Figura 25 Representação esquemática do grupo ‘entidade em excesso’ …………. 140

Figura 26 Rede polissêmica dos agentivos X­eiro ………………………………... 143

Figura 27 Rede polissêmica dos denominais X­eiro ……………………………... 144

Figura 28 Rede polissêmica dos agentivos X­ário ………………………………... 145

Figura 29 Construções agentivas X­eiro e X­ário no nível esquemático …………. 146

Figura 30 Valores semântico­pragmáticos codificados nas construções agentivas X­eiro e X­ário ………………………………………………………….

147

Figura 31 Rede polissêmica dos não­agentivos X­ário ………………………….... 148

Figura 32 Árvore genealógica de ­eiro segundo Viaro (2007) ……………………. 159

Figura 33 Representação esquemática das construções X­ada com noção coletiva …………………………………………………………..

209

Figura 34 Representação esquemática das construções coletivas X­ada, X­agem, X­al e X­aria ……………………………………………………………

209

Figura 35 RCC como base conceitual de processos de formação de palavras e de relações lexicais ………………………………………………………...

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SUMÁRIO ­ TOMO I

1. INTRODUÇÃO …………………………………………………………….... 18

2. ALICERCE TEÓRICO …………………………………………………….... 26

2.1. Morfologia Construcional ………………….…….…………………….... 27

2.1.1. Modelo(s) construcional(is) ………………………………….. 27

2.1.2. Morfologia Construcional de Geert Booij ……………………... 31

2.1.3. Esquemas, Heranças e Compatibilização ……………………. 36

2.2. A proposta de Peirsman & Geeraerts (2006) …………..…………..……. 43

2.3. Esquemas de imagem …………..…………………………………….…. 51

3. SOBRE RELAÇÕES SEMÂNTICAS ………………………………..……... 56

3.1. Relações lexicais …………………………..………………………..…… 57

3.2. Mais um pouco de metonímia: pequena digressão necessária …….…….. 78

3.3. (Re)pensando as categorias: a Rede Conceitual de Contiguidade (RCC) nas relações lexicais ……………......................................................................

82

4. OS SUFIXOS ­EIRO E ­ÁRIO EM PORTUGUÊS …………………………. 95

4.1. O sufixo ­eiro em Português: breve revisão bibliográfica ..………..…..... 95

4.2. O sufixo ­ário em português: breve revisão bibliográfica ……………..... 107

4.3. Embora “irmãos”, bastante diferentes… uma análise comparativa entre ­eiro e ­ário …………………………………………………...……

109

5. APRESENTAÇÃO DA PROPOSTA CENTRAL ……………………….…... 117

5.1. Um breve apanhado sobre a relação forma e conteúdo na sufixação ……..…………………………………………………………..

117

5.2. Construções X­eiro(a): uma nova abordagem ……………..……………. 131

5.2.1. Formações X­eiro(a) não­agentivas ………………………..… 133

5.2.2. Formações X­eiro(a) agentivas ……………………..………... 140

5.3. Aplicação do modelo às construções X­ário …….………...……………. 144

5.3.1. Formações agentivas ……………………..…………....……... 144

5.3.2. Formações não­agentivas …………………………...………... 147

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6. ENTENDENDO O PRESENTE A PARTIR DO PASSADO …………….…. 150

6.1. Construções agentivas e não­agentivas como construções irmãs: reflexões a partir de dados históricos ………...………………………….

151

6 . 2. Especialização semântico­lexical de ­eiro e ­ário: reflexões a partir de dados históricos ……….……..……………………..

180

6.2.1. Neogramáticos e difusionistas: breve apresentação de uma de uma antiga polêmica ……………………………………….

181

6.2.2. Panorama geral das construções latinas e portuguesas e a evolução ­ariu > ­eiro ………………………………………..

184

6.2.3. De latinismos a construções produtivas: o caso de ­ário ……. 199

7. MUDANÇA LINGUÍSTICA, PANCRONIA E REDE CONSTRUCIONAL: ÚLTIMAS REFLEXÕES ……………………………….................................

208

8. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ……………………………………..... 216

SUMÁRIO ­ TOMO II

INTRODUÇÃO AOS ANEXOS ……………………………………... 9

ANEXO I Corpora das construções X­ariu …………………………………….. 11

AGENTIVOS …………………………………….…………………… 11

Agente profissional …………………………………………….. 11

Agente habitual ………………………………………………… 16

Beneficiário …………………………………………………….. 18

Agente circunstancial …………....……………………….…….. 18

NÃO AGENTIVOS …………………………………….……………. 20

Recipiente …………………………………….……………….... 20

Objeto Conjunto de X …………………………………….…………… 22

Objeto contato …………………………………….………………... 22

Locativo …………………………………….………………….. 23

ADJETIVOS …………………………………….……………………. 28

ANEXO II Quadros de correlações …………………………………….………... 38

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Correlação entre X­arius, a, um / X­arius / X­arium ………….... 38

Substantivos latinos e seus correspondentes portugueses …….... 40

ANEXO III Corpora das construções X­eiro …………………………………….. 42

AGENTIVOS …………………………………….…………………… 42

Agentes profissionais (EI contato) ……………………………... 42

Agentes habituais (EI contato) …………………………………. 51

NÃO AGENTIVOS ……………………………...………………….... 59

Angiospermas (EI parte­todo) ………………………………….. 59

Objetos recipientes (EI contenção) …………………………….. 61

Objetos não­recipientes (EI contato) …………………………… 64

Locativos (EI contenção) ………………………………………. 66

Excesso (EI contenção) ……………………………...…………. 68

ANEXO IV Corpora das construções X­ário ……………………………...……... 71

NÃO AGENTIVOS ……………………………...…………………… 71

Objetos (EI contenção) ……………………………...………….. 71

Locativos (EI contenção / contato) …………………………….. 74

AGENTIVOS …………………………..…...………………………… 79

Agentes profissionais (EI contato) ……………………………... 79

Agentes circunstanciais (EI contato) …………………………… 81

Beneficiário (EI contato) ……………………………………….. 86

ANEXO V Trajetória das formações X­ário do período pré­literário ao português moderno ……………………………….…………………

91

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1. INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem por objetivo principal analisar, descrever e propor um

tratamento para algumas construções do tipo [[X]s Y]s à luz da Morfologia Construcional de

Geert Booij (2005, 2007, 2010), que é, nas palavras do autor, “ uma teoria da morfologia

linguística em que a noção de construção desempenha um papel central ” (BOOIJ, 2010, p.

1). Trata­se de uma abordagem que, a partir da noção mais geral de construção, desenvolve

um olhar específico para o nível da palavra.

Nessa abordagem, palavras são vistas como construções que podem ser abertas ,

parcialmente fixas ou fixas . O significado das construções também é especificado, o que

significa que é uma propriedade holística da construção como um todo. Além disso, o modelo

preconiza que o significado de uma palavra (SEM) pode ter componentes pragmáticos e

estritamente semânticos.

Comumente, costuma­se descrever o significado de uma construção morfológica por

meio de uma paráfrase que seja o mais abrangente possível, isto é, que abarque todas as

formas derivadas de uma mesma construção. Paráfrases distintas, por sua vez, constituem

forte indício de que, na verdade, estamos diante de construções diferentes. Assim, em se

tratando da construção X­ário, por exemplo, para as paráfrases “local em que se cria/cultiva

X” (‘insetário’) e “profissional que trabalha em X” (‘bancário’), diz­se que há dois

subesquemas: o subesquema dos locativos e o dos agentes profissionais.

Entretanto, não são raros exemplos que não se encaixam muito bem na(s) paráfrase(s)

prevista(s) para uma determinada construção, ao mesmo tempo em que não configuram um

grupo à parte. Assim, se por um lado, palavras como ‘apiário’, ‘aviário’, ‘bromeliário’ e

‘herbário’ têm sua semântica descrita por meio da paráfrase “local onde se cria/cultiva X”

(sendo X o significado da base), por outro lado, formas como ‘bicicletário’, ‘fraldário’ e

‘berçário’ não se encaixam muito bem nessa descrição. Caso semelhante é o das palavras

‘joelheira’, ‘cotoveleira’, ‘ombreira’ e ‘caneleira’, que podem ser reunidas pela paráfrase

“objeto para proteger X”. O que dizer então de ‘pulseira’, que não serve para proteger? Se

propusermos a paráfrase “objeto que se usa em X”, incluímos, automaticamente, ‘pulseira’,

mas deixamos de fora viseira ( ?“objeto que se usa na visão” ).

Não se pode deixar de citar os agentes profissionais X­eiro(a), que precisam,

basicamente, de duas paráfrases relativamente distintas para abarcar todas as formações do

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português: “Aquele que trabalha com X” (‘sapateiro’, ‘sorveteiro’, ‘relojoeiro’) e “Aquele que

trabalha em X” (‘açougueiro’, ‘caseiro’, ‘quiosqueiro’). Nenhum estudioso, porém, diria que

se trata de dois grupos semânticos distintos, e, consequentemente, duas construções.

Há palavras que merecem uma descrição mais particular para uma real compreensão

de seu significado. Esse é o caso de ‘planetário’, por exemplo, que, embora seja um local, não

é um local de cultivo ou criação de X, tampouco pode ser descrito apenas como “local em que

há X”, já que não é um “lugar que contém planetas”.

Os exemplos não são poucos e, por isso mesmo, geram impasses descritivos. Afinal,

se uma regra possui muitas exceções, deve­se questionar a validade da regra. Não seria

novidade dizer que tudo isso decorre do fato de que as categorias não são rígidas, mas se

distribuem em termos de prototipicidade e radialidade. Estamos, então, diante do fenômeno da

gradiência, em que membros de uma mesma categoria podem ser mais prototípicos ou mais

periféricos. O caráter radial das categorias semânticas resulta no fenômeno conhecido como

polissemia.

Segundo Soares da Silva (2006, p. 69), “ a flexibilidade do significado e a

instabilidade da polissemia implicam que puxemos o significado tanto para cima como para

baixo ”. Estamos diante, então, de duas metodologias que funcionam como uma espécie de

jogo de forças contrárias que se equilibram, as quais Soares da Silva (op. cit.) chamou de

puxar o significado para baixo ou para cima . Grosso modo, puxar o significado para baixo é

buscar o significado dos usos mais contextuais, mais específicos e psicologicamente mais

reais. Isso é o que fazemos quando descrevemos a palavra ‘planetário’ como “espécie de

anfiteatro, recoberto por uma cúpula, no qual se exibe a imagem do firmamento estrelado e

das órbitas dos planetas” ou quando descrevemos ‘ goleiro ’ como “jogador que atua no gol e é

o único a ter direito de tocar a bola com a mão, desde que o faça na grande área de seu

campo”.

Já puxar o significado para cima é buscar o significado esquemático de uma palavra

e/ou construção. A descrição por meio de paráfrases abrangentes que deem conta de um

número considerável de dados não deixa de ser uma tentativa de puxar o significado para

cima. Porém, essa tentativa não tem se mostrado muito eficiente, deixando muitas lacunas e,

por conseguinte, muitas exceções. Assim, no intuito de descrever o nível esquemático das

construções denominais, a presente tese tem por objetivo principal propor que a semântica

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dessas construções morfológicas é ancorada em esquemas de imagem de contiguidade

(parte­todo, contenção, contato e adjacência).

Esquemas de imagem ou esquemas imagéticos podem ser definidos como versões

esquemáticas de imagens. São representações conceituais relativamente abstratas e totalmente

esquemáticas que surgem a partir da nossa interação cotidiana com o mundo e da observação

do mundo que nos cerca. São derivados, pois, das nossas experiências sensório­motoras e

perceptuais. Logo, um esquema como parte­todo, por exemplo, emerge da nossa experiência

física e perceptual com objetos e suas partes e da relação que partes e todos estabelecem entre

si. Do mesmo modo, o esquema de contêiner emerge de nossas experiências com recipientes.

Diversos estudiosos (LAKOFF, 1987; SWEETSER, 1990; SOARES DA SILVA,

2006; PINHEIRO, 2010a e 2010b, apenas para citar alguns) têm mostrado que esquemas de

imagem são o esqueleto da estrutura gramatical. O presente trabalho também se insere nessa

senda, uma vez que descreve as relações de sentido entre base e produto de algumas

construções denominais a partir da noção de esquema imagético. Em se tratando de

construções morfológicas, pode­se afirmar que aí se encontra o nível esquemático ótimo para

alcançar generalizações coerentes, resolvendo assim o problema da paráfrase, conforme

argumento mais especificamente no capítulo 5.

Além da Morfologia Construcional e da noção de esquema imagético, há outro

construto teórico fundamental à abordagem aqui dada às construções denominais: a noção de

rede conceitual prototipicamente estruturada a partir da junção de esquemas de imagens e

domínios cognitivos . Tal rede foi extraída do trabalho de Peirsman & Geeraerts (2006), que 1

propõem que a metonímia deve ser vista como um fenômeno prototipicamente estruturado:

cada padrão metonímico emerge da confluência de um domínio com um dos esquemas de

imagem de contiguidade atuando nesse domínio. Com base nessa rede, os autores descrevem

1 Segundo Evans (2007, p.61), domínio é “uma entidade conceitual postulada na Gramática Cognitiva. Um domínio constitui uma estrutura de conhecimento que possui, em princípio, qualquer nível de complexidade ou organização”. Por exemplo, um domínio pode constituir um conceito , um frame semântico ou algum outro espaço representacional ou complexo conceitual. Crucialmente, um domínio fornece um tipo particular de representação de conhecimento contra a qual outras unidades conceituais, tais como um conceito, são caracterizadas. Por exemplo, termos linguísticos como quente , frio e morno se relacionam com diferentes tipos de conceitos lexicais que só podem ser completamente caracterizados em relação ao domínio da TEMPERATURA. Assim, a função central de um domínio é fornecer um contexto de conhecimento relativamente estável em termos dos quais outros tipos de unidades conceituais podem ser compreendidas.” Alguns domínios básicos apresentados pela autora são ESPAÇO, COR, TIMBRE, TEMPERATURA, PRESSÃO, DOR, ODOR, TEMPO e EMOÇÃO.

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vinte e três padrões metonímicos . 2

Em suma, Peirsman & Geeraerts propõem uma definição não unitária de metonímia,

ou seja, não baseada em um único conceito. Para eles, a metonímia é mais bem definida a

partir da coadunação de diversas noções, a saber, a noção de domínio, de contiguidade, de

força de contato e de limitação, o que gera uma categoria radial.

Cabe ressaltar que o trabalho de Peirsman & Geeraerts trata do conceito de metonímia

e seus exemplos são todos de palavras usadas para se referir a conceitos a elas relacionados

por contiguidade, como em “ Atualmente, estou lendo Veríssimo ”, em que o autor está para a

obra. O presente trabalho, porém, não trata de padrões metonímicos, mas de esquemas

morfológicos e da relação entre forma e conteúdo nesses esquemas.

Inúmeros substantivos denominais mantêm uma regularidade entre a semântica da

base e a semântica do produto que pode ser descrita em termos de relações de contiguidade.

Por exemplo, as formações X­ eiro (a) que designam angiospermas (‘cajueiro’; ‘abacateiro’),

podem ser descritas em termos de relação de parte e todo, em que a entidade designada pela

base é sempre a parte (‘caju’, ‘abacate’) e a entidade designada pela palavra derivada é

sempre o todo (‘cajueiro’, ‘abacateiro’). Palavras como ‘doceira’ e ‘lixeira’, por sua vez,

podem ser descritas em termos de contenção, em que a base será sempre o conteúdo, ao passo

que a palavras derivada será sempre o recipiente.

A ideia central da presente tese, então, é a de que a rede proposta por Peirsman &

Geeraerts se mostra atuante não apenas em processos referências (metonímias, como mostram

os autores), mas também em processos de formação de palavras. Tal rede, que passo a chamar

de Rede Conceitual de Contiguidade (RCC), será usada primordialmente para refinar o

componente semântico da Morfologia Construcional, o que será desenvolvido no capítulo 5.

Nesse capítulo, mostro como a junção da Morfologia Construcional com a RCC se apresenta

como proposta plausível e eficaz na resolução do problema da paráfrase, além de melhor

explicar porque sufixos aparentemente tão distintos, como ­eiro e ­ário, apresentam

comportamento tão semelhante no que diz respeito à relação entre a semântica da base e a do

produto. O capítulo 5 conta também com um debate acerca de como o binômio forma e

2 1. Parte­todo espacial; 2. Localização e localizado; 3. Conteúdo e continente; 4. Material e objeto; 5. Peça de roupa e pessoa; 6. Peça de roupa e parte do corpo; 7. Parte­todo temporal; 8. Antecedente e consequente; 9. Tempo e entidade; 10. Subevento e evento complexo; 11. Potencial e real; 12. Ação e participante; 13. Causa e efeito; 14. Participante e participante; 15. Controlador e controlado; 16. Possuidor e possuído; 17. Localização e produto; 18. Produtor e produto; 19. Característica e entidade; 20. Entidade única e coleção, 21. Objeto e quantidade; 22. Fator central e instituição; 23. Hiponímia e hiperonímia.

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conteúdo na sufixação é tratado pela tradição gramatical e por linguistas tanto de cunho

formalista quanto sociocognitivista, além de ressaltar a vantagem da RCC como ferramenta

útil em tal tratamento.

Nesta tese, proponho também um novo olhar para as relações entre palavras no léxico,

sobretudo, as conhecidas como meronímia e holonímia. Meronímia e holonímia são conceitos

que surgiram na semântica estruturalista, em meio aos estudos das relações semânticas entre

as palavras no léxico. Grosso modo, pode­se definir o binômio como uma relação do tipo

parte­todo cuja paráfrase corresponde às seguintes asserções: “X é uma parte de Y”; “Y tem

X” (CRUSE, 1986, p. 160). Assim, no par ‘pedal’ : ‘ bicicleta ’, as palavras estabelecem uma

relação lexical de meronímia e holonímia (“O pedal é parte da bicicleta”; “A bicicleta tem

pedal”).

Da mesma forma, pares como ‘ abacate ’ : ‘ abacateiro ’ e ‘ laranja ’ : ‘ laranjeira ’ se

enquadram no conceito de meronímia tal qual proposto por Cruse (1986). Pode­se afirmar,

então, que a construção X­ eiro angiospermas gera produtos que são holônimos de suas bases. Essa

constatação fez com que a reflexão acerca das relações lexicais e, sobretudo, dos mecanismos

cognitivos que as sustentam tomasse elevada importância nesta pesquisa. O capítulo 3 é

destinado justamente a esse debate.

As construções morfológicas aqui selecionadas como foco de análise para corroborar a

proposta foram as construções X­eiro(a) e X­ário. A escolha do primeiro decorre do fato de

ser o que mais apresenta relações semânticas, ou seja, é o sufixo mais polissêmico do

português, o que o torna um melhor representante da proposta aqui defendida. Além disso (e

justamente por isso), foi o sufixo mais estudado do ponto de vista semântico, tendo

despertado interesse por pesquisadores de diversas linhas teóricas. Já a construção X­ário não

podia deixar de se fazer presente, uma vez que ­eiro e ­ário têm a mesma origem, a saber, o

sufixo latino ­ arius , a , um , formador de adjetivos de primeira classe.

Esses dois sufixos, que têm hoje comportamento bastante distinto, não diferem no

nível esquemático, possuindo o mesmo esqueleto. A diferença entre eles emerge no nível dos

usos mais contextuais, ou seja, à medida que puxamos o significado para baixo. Com isso, a

análise dos dois sufixos em conjunto se faz importante também para corroborar a afirmativa

de Soares da Silva (2006) de que

“nem o nível ‘superior’ é mais importante do que o ‘inferior’, ao contrário da ideia

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tradicional de que “o abstracto é o melhor”, nem o nível ‘inferior’ é mais importante do que o ‘superior’, ao contrário do que certas análises cognitivas podem sugerir em nome da adequação psicológica. Ambos os níveis são necessários”. (SILVA, 2006, p. 70)

Dessa forma, embora o objetivo principal deste trabalho seja puxar o significado para

cima, a análise conjunta das construções X­eiro e X­ário demonstra a importância de se puxar

também o significado para baixo.

Na tensão entre esses dois métodos, responder algumas questões se fez necessário.

Como questão de primeira urgência, estava o impasse diante de um número considerável de

dados que aparentemente não se encaixavam no modelo de análise aqui proposto. Palavras

como ‘carteira’, ‘prateleira’, ‘armário’ e ‘veterinário’, entre outras, trouxeram à tona a

necessidade de se recorrer à etimologia.

Tomemos como exemplo o caso de ‘carteira’. Atualmente, qualquer falante definiria

‘carteira’ como uma espécie de bolsa para se guardar dinheiro, cartões e documentos. Se

buscarmos, porém, seu significado primeiro, vemos que ‘carteira’ vem de ‘carta’, pois era um

objeto para se guardar cartas, conforme Houaiss (2002):

Carteira , sb. f. ­ bolsa com fecho, de tamanho variado, feita de materiais diversos (couro, tecido etc.), us. para guardar papéis, dinheiro, documentos etc. “ Etimologia : prov. der. de carta + ­eira, pois em RB há a seguinte definição: 'é uma boceta fechada com chave dentro, na qual se mandam cartas de segredo', acp. ratificada por Morais (1813) 'bolsa com fechadura, de coiro, em que se mandam cartas de segredo”. (HOUAISS, 2002, versão eletrônica)

Isso significa que, em sua origem, ‘carteira’ teve a mesma motivação de palavras

como ‘doceira’ e ‘lixeira’ e foi ancorada no esquema de imagem de contenção, incluindo­se,

assim, no padrão esperado ­ a base sendo o conteúdo e o derivado, o recipiente. Algumas

palavras, inclusive, fizeram com que essa busca retornasse ao latim. Esse é o caso de palavras

como ‘apiário’ e ‘veterinário’, cujas bases são hoje opacas. Assim, adotou­se o critério de

sempre levar em consideração o significado primeiro da palavra, segundo sua origem. Isso é

até bastante coerente, uma vez que o objetivo é buscar também as bases cognitivas que

sustentam e, sobretudo, motivam o processo de formação de substantivos denominais.

Automaticamente, uma análise de cunho diacrônico se fez necessária para o pleno tratamento

dos dados.

A análise de cunho diacrônico foi primordial também para desvendar uma questão que

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há muito intrigava: o pressuposto de que construções não agentivas como ‘jaqueira’

(angiospermas), ‘doceira’ (recipientes), ‘prateleira’ (objetos não recipientes) e ‘aguaceira’

(excesso) são semanticamente derivadas das formações agentivas (GONÇALVES, COSTA &

YACOVENCO, 1999; MARINHO, 2004; BOTELHO, 2004; ALMEIDA & GONÇALVES,

2005 e 2006; PIZZORNO, 2010; apenas para citar alguns). Inclusive, é comum, na literatura,

o rótulo de “agentes naturais” para formações que designam plantas. Assim, no capítulo 6,

argumento, com base em dados históricos, que as construções não agentivas não são filhas das

agentivas, mas sim, suas irmãs.

Outra questão cuja resposta se fez urgente foi com relação ao percurso histórico desses

sufixos. No nível esquemático, ­ eiro e ­ario apresentam o mesmo esqueleto, e isso não é

incoerente, já que ambos os sufixos, como já foi mencionado, têm origem comum: o sufixo

latino ­ arius , a , um . O que fez, porém, com que um sufixo resultasse em duas formas

foneticamente diferentes e semântica e pragmaticamente também distintas? Argumento, pois,

que a mudança fonética ­ ariu > ­ eiro ocorreu apenas em palavras com determinadas

características lexicais e semântico­pragmáticas. Isso significa dizer que a mudança se

implementou por difusão lexical.

A teoria da Difusão Lexical surge em oposição ao modelo Neogramático e preconiza

que uma mudança ocorre inicialmente em algumas palavras e se propaga para outras com

estrutura sonora semelhante, podendo atingir, ou não, o léxico como um todo. Além da

semelhança sonora, vários fatores podem condicionar a propagação da mudança para outros

itens lexicais, tais como frequência de uso, além de semelhanças em termos de

condicionamentos semântico­pragmáticos. É com base nessas premissas que defendo que a

mudança sonora ­ariu > eiro decorreu de um processo de difusão lexical que atingiu parte do

léxico, ou seja, atingiu apenas alguns subsesquemas X­ariu específicos, o que será discutido 3

também no capítulo 6.

Como não podia deixar de ser, esta tese conta, também, com uma revisão bibliográfica

de ­eiro e ­ário, além de um quadro comparativo entre esses dois sufixos, o que é feito no

capítulo 4. No capítulo 7, faço as considerações finais.

Todas as análises foram feitas com base em um corpus constituído de 336 dados de

X­ariu (108 dados de substantivos agentivos, 100 de substantivos não­agentivos e 128 dados

3 A forma X­ariu será aqui adotada para fazer referência às construções com o sufixo latino, excluindo, pois, suas marcas de classe temática e gênero ­us, ­a, um, respectivamente, marcas de masculino, feminino e neutro.

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de adjetivos), 459 dados de X­eiro (233 dados de palavras não agentivas e 226 de palavras

agentivas) e de 124 dados de X­ário (68 agentivos e 56 não agentivos).

Esses dados tiveram diversas fontes. Para os dados de língua latina, foram consultados

o Dicionário de latim­português da editora Porto (1966) e o Dicionário escolar

latino­português de Ernesto Farias (1962). Serviram, porém, como fontes principais para

coleta de palavras latinas a Dissertação de Simões Neto (2016) sobre as construções X­eiro 4

do latim ao português arcaico e a Tese de livre docência do Professor Doutor Mário Eduardo

Viaro, intitulada A derivação sufixal do português: elementos para uma investigação

semântico­histórica . Para os dados de língua portuguesa, as fontes foram o dicionário Houaiss

(2002; versão eletrônica), teses, dissertações e artigos científicos variados, além de buscas

feitas no site Google e Youtube .

Cabe, por fim, frisar que essa nova abordagem aplicada a ­eiro e ­ário pode ser

estendida a outros sufixos denominais como ­ada, ­al, ­agem e ­aria, não se limitando, pois, ao

recorte aqui feito. O próximo capítulo, portanto, é destinado à apresentação e detalhamento do

aporte teórico aqui utilizado.

4 Aproveito para deixar registrado meu sincero agradecimento ao amigo Natival Simões Neto por enviar­me cópia de seu trabalho antes mesmo que estivesse disponível ao público no banco de teses e dissertações da UFBA.

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2. ALICERCE TEÓRICO

Este capítulo tem por objetivo explicitar os pressupostos teóricos que fundamentam a

pesquisa. Dessa forma, divide­se em três partes. Na primeira, apresenta­se a Morfologia

Construcional de Geert Booij (2005, 2007, 2010), cujas principais premissas assumem caráter

primordial na presente tese.

Pode­se afirmar que a Morfologia Construcional (MC) é um modelo alinhado à

Linguística Cognitiva, pois se assume, nesse modelo, que o componente semântico (SEM) das

construções é constituído tanto de informação estritamente semântica quanto pragmática. Isso

significa dizer que o modelo construcional de Booij pressupõe a não separação rígida entre

conhecimento linguístico e conhecimento enciclopédico, uma das principais premissas da

Linguística Cognitiva.

Além disso, pressupõe também a não separação estrita entre léxico e gramática, uma

vez que o autor busca fornecer um único quadro teórico em que as diferenças e as

semelhanças entre as construções, tanto no nível da palavra como nível do sintagma, possam

ser explicadas, contribuindo, assim, para uma melhor compreensão da relação entre

morfologia, sintaxe e léxico (BOOIJ, 2010, p. 1).

Por fim, a Morfologia Construcional aproxima­se de outras abordagens

construcionistas, como a de Goldberg (1995) e de Goldberg & Jackendoff (2004) por prever

pareamento entre o polo semântico e o polo formal de estruturas linguísticas. Todas essas

características aproximam o modelo construcional de Booij do paradigma da Linguística

Cognitiva.

Entretanto, embora o modelo da Morfologia Construcional traga muitas vantagens à

análise e descrição das estruturas morfológicas, carece de maior detalhamento no polo

semântico. Sendo assim, não é incompatível incluir outras propostas, também alinhadas à

Linguística Cognitiva, para maior detalhamento do polo semântico (SEM) das construções

morfológicas. Gonçalves & Almeida (2014), inclusive, propuseram tal refinamento ao aplicar

e incluir ao modelo a noção de herança proposta por Goldberg (1995).

O presente trabalho, então, se propõe também a trazer novo refinamento ao polo

semântico do modelo construcional de Booij, acrescentando ao componente SEM a noção de

Rede Conceitual de Contiguidade (RCC). Tal rede aqui proposta tem por base o trabalho de

Peirsman & Geeraerts (2006), cuja apresentação constitui a segunda parte deste capítulo. A

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terceira parte trata justamente do conceito de esquema de imagem e do papel que este assume

dentro da presente proposta.

2.1. Morfologia Construcional

2.1.1. Modelo(s) construcional(is)

Desde os primeiros trabalhos em Linguística Cognitiva (inclusive aqueles que foram

fundamentais para a solidificação do que hoje se reúne, por meio de posições teóricas afins,

sob o rótulo de LC), há a inclinação a uma visão construcionista em oposição às visões de

composicionalidade e regra. Pode­se afirmar que a LC surge como uma corrente teórica

inerentemente construcionista, embora nenhum de seus precursores se posicionar

explicitamente quanto a isso.

Dois trabalhos pioneiros e importantes nessa senda são os de Lakoff (1977) e Fillmore

(1979). Lakoff percebe que o princípio da composicionalidade preconizado pelos modelos

gerativos não dava conta do significado de boa parte das sentenças. Propõe, então, que não há

uma distinção discreta entre léxico e sintaxe.

Em artigo célebre, Fillmore foca na questão dos idiomatismos, questionando o

princípio da composicionalidade preconizado pelos modelos gerativos. O autor satiriza o

artifício chomskiano da figura do falante/ouvinte ideal e cria o “falante/ouvinte inocente” ­

aquele que conhece os itens lexicais, seus significados e as regras de formação de sentenças,

mas não consegue lidar com as expressões idiomáticas.

O idiomatismo, marginalizado até então, começa a ganhar atenção e destaque dentre

os pesquisadores. A partir dessa mudança de enfoque, percebeu­se que, na verdade, não havia

diferença substancial entre as formas mais canônicas e dignas de atenção ­ aquelas que

poderiam ser explicadas por meios de regras e transformações ­ e formas relegadas ao âmbito

da idiossincrasia. Todas poderiam ser consideradas construções gramaticais . Uma visão

construcionista mais explícita começa a surgir, então, na década de 80.

Lakoff (1987, p. 448) critica a arbitrariedade do signo (pressuposto das correntes

formalistas, estruturalismo e gerativismo) e sugere uma explicação para a motivação das

expressões idiomáticas. Além disso, formula o conceito de redes construcionais e aplica a

teoria nas chamadas construções com ‘there’ ­ there­constructions (LAKOFF, 1987, p. 462).

A ideia principal da noção de redes construcionais é de uma rede formada a partir de uma

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construção básica , que constitui seu núcleo, de onde irradiam outras construções diretamente

relacionadas.

Fillmore, Kay e O’Conor (1988) defendem que as mesmas propriedades semânticas e

pragmáticas que regem os itens lexicais atuam em construções gramaticais complexas

(sintagmas ou sentenças). Estabelecem uma tipologia de expressões idiomáticas com base em

três parâmetros, a saber, expressões idiomáticas de codificação/decodificação;

gramaticais/extragramaticais; e substantivas/formais.

A contribuição de Fillmore & Kay (1993) é fundamental para o desenvolvimento e

delineamento do que hoje se entende por Gramática das Construções. Nesse trabalho, os

autores propõem um continuum de especificação dos elementos que formam as construções,

inaugurando as noções de construção aberta, parcialmente especificada e especificada.

O primeiro caso pode ser exemplificado com a construção sintática do português

SN­V­SN. Essa construção pode ser instanciada, por exemplo, em “Pedro ama Fernanda” ou

“Leandro comeu o bolo”. O termo ‘aberta’ significa que todos os elementos da construção são

variáveis. Um bom exemplo do segundo caso são as construções “X Dar+flexão uma X­ada”,

instanciadas em “ Eu dei uma lida no texto”, “ Beth dará uma varrida na casa”, e assim por

diante. Nesse tipo de construção, há elementos variáveis e elemento fixos. As construções

especificadas são aquelas cujos elementos são todos fixos, como fórmulas de cortesia (“Vá

com Deus”, “bom dia”, “boa tarde” etc.), frases feitas, ditos populares e provérbios (“Deus

ajuda quem cedo madruga”, “mais vale um pássaro na mão que dois voando” etc).

O trabalho de Goldberg (1995) foi o que mais contribuiu para consolidação do que

hoje se conhece como Gramáticas das Construções. Com base em construções que envolvem

estruturas argumentais de verbos, a autora comprovou que a construção aberta tem um

significado próprio.

A tese central da autora é de que “ sentenças básicas do inglês são instâncias de

construções ― correspondências forma­significado que existem independentemente de verbos

específicos. Isto é, sustenta­se que as construções portam significado por si mesmas,

independentemente das palavras na sentença ” (GOLDBERG, 1995, p.1). 5

Um exemplo em português da autonomia semântica da construção proposta por

5 [...] basic sentences of English are instances of constructions ― form­meaning correspondences that exist independently of particular verbs. That is, it is argued that constructions themselves carry meaning, independently of the words in the sentence.

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Goldberg pode ser dado com o verbo ‘tossir’. Tossir é um verbo intransitivo (X tossir).

Entretanto, uma sentença como “Ele tossiu a espinha de peixe no guardanapo” não soa

estranho e é perfeitamente aceitável aos falantes nativos de português. Isso se dá porque o

verbo ‘tossir’ compatibiliza suas propriedades semânticas com as propriedades semânticas de

uma das construções do português conhecida como construção de movimento causado , que

tem seu significado próprio, conforme quadro abaixo:

_____________________________________________________________________

CONSTRUÇÃO SIGNIFICADO

Movimento causado

SUJ ­ V ­ OD ­ OBL X CAUSA Y MOVER­SE PARA Z

______________________________________________________________________ Quadro 1 ­ Construção de movimento causado

Assim, diante de uma necessidade comunicativa (necessidade essa que envolve

questões pragmáticas, expressividade, intensionalidade etc..), o falante compatibiliza o verbo

tossir numa construção transitiva, em que tanto as propriedades semânticas do verbo quanto

da construção vão ser compatibilizadas, resultando numa sentença transitiva completamente

aceitável a partir de um verbo canonicamente intransitivo.

Modelos gerativos, em que a homonímia tem primazia em relação à polissemia,

poderiam propor duas entradas de ‘tossir’ no léxico: tossir 1 (intransitivo) e tossir 2 (transitivo).

A abordagem construcional de Goldberg, porém, descreve e explica tais casos de maneira

mais simples e exata: o verbo ‘tossir’ intransitivo pode instanciar uma construção transitiva e

compatibilizar sua semântica com a semântica da própria construção. Isso significa que o

sentido transitivo é dado pela construção e não pelo verbo.

Essa proposta, além de evitar o problema da sobrecarga do léxico, uma vez que a

teoria gerativa prevê X entradas para tantas quantas forem as configurações sintáticas e/ou os

significados possíveis de um verbo, resolve também o problema da circularidade da análise

da estrutura argumental . 6

6 A circularidade da estrutura argumental é um problema da abordagem tradicional e/ou da abordagem gerativista, uma vez que preconiza que um verbo X qualquer tem seu sentido completado por n­argumentos, porque requer n­complementos, e, porque requer n­complementos, tem seu sentido completado por n­argumentos.

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Segundo a autora, uma construção pode ser definida nos seguintes termos:

C é uma construção se e somente se C é um par forma­significado <Fi, Si>, de tal forma que nenhum aspecto de Fi ou de Si seja estritamente previsível a partir de partes componentes de C ou a partir de outras construções previamente estabelecidas. (GOLDBERG, 1995, p. 4) 7

Construções podem variar em tamanho e complexidade, podendo ser uma palavra,

uma expressão idiomática, um padrão sintático parcialmente preenchidos ou um padrão frasal

mais geral. Goldberg afirma que a totalidade de construções de uma língua forma um

conjunto sistemático e organizado, uma vez que as construções formam uma rede, e são

ligadas entre si por relações de herança, o que coloca seu trabalho em consonância com a

proposta de Lakoff (1987).

As relações entre construções são regidas por quatro princípios básicos por ela

propostos: a) Princípio da Motivação Maximizada; b) Princípio da Não­Sinonímia; c)

Princípio do Poder Expressivo Maximizado; e d) Princípio da Economia Maximizada. Além

disso, a rede de construções pode se estabelecer por relações de heranças. O termo ‘herança’

significa qualquer característica formal ou semântica presente na construção básica que se

transfira para a construção decorrente. Propõe também quatro tipos de relação de herança, a

saber, Ligação por polissemia, Ligação por subpartes, Ligação por instanciação e Ligação por

extensão metafórica.

O trabalho de Goldberg promove um salto considerável dentro desse paradigma das

construções gramaticais, pois comprova, mediante dados empíricos e argumentação

consistente, a autonomia semântica da construção, o que aumenta o potencial

descritivo­explicativo da abordagem construcionista, pois o mesmo olhar dado a itens lexicais

pode ser dado a sintagmas, expressões idiomáticas e padrões frasais mais gerais.

Em suma, todos os trabalhos comentados nesta seção corroboram a afirmativa de

Langacker (1987, p. 5) para quem “ léxico e gramática formam uma consistente gradação

entre conjuntos da estrutura simbólica ”. A próxima seção é destinada a detalhar o modelo da

Morfologia Construcional de Geert Booij (2005, 2007, 2010).

7 C is a CONSTRUCTION iff def C is a form­meaning pair <Fi, Si> such that some aspect of Fi or some aspect of Si is not strictly predictable from C’s component parts or from other previously established constructions.

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2.1.2. Morfologia Construcional de Geert Booij

O modelo de Morfologia Construcional (Construction Morphology) desenvolvido por

Geert Booij (2005, 2007, 2010) é uma proposta que busca fornecer um único quadro teórico

em que as diferenças e as semelhanças entre as construções, tanto no nível da palavra como

nível do sintagma, possam ser explicadas, contribuindo, assim, para uma melhor compreensão

da relação entre morfologia, sintaxe e léxico. É, nas palavras do autor, “ uma teoria da

morfologia linguística em que a noção de construção desempenha um papel central ” (2010, 8

p. 1).

Trata­se de uma abordagem que, a partir da noção mais geral de construção,

desenvolve um olhar específico para o nível da palavra. Nessa abordagem, palavras são vistas

como construções que podem ser abertas ( [[X]s Y]s ), parcialmente fixadas ( [[X]s ário]s )

ou fixadas ( [[bicicleta]s ário]s ). O significado das construções também é especificado, o que

significa que é uma propriedade holística da construção como um todo.

Tal abordagem aproxima o modelo de Booij ao trabalho de Goldberg (1995).

Entretanto, há uma diferença crucial entre as duas abordagens: enquanto esta insere morfemas

no rol das construções gramaticais, aquele assume que afixos são formas presas lexicalmente

não­marcadas que só se realizam quando vinculados a uma construção. Tal assunção coloca a

Morfologia Construcional de Booij dentre os modelos baseados em palavras, em oposição aos

modelos baseados em morfemas.

No modelo Booijiano, padrões de formação de palavras são vistos como esquemas

abstratos que podem ser abstraídos de conjuntos de palavras relacionadas

paradigmaticamente. Essa visão de formação de palavras converge com a visão de Tomasello

(2000, p. 238), para quem a aquisição da linguagem se inicia com armazenamento de

representações mentais de casos concretos do uso da linguagem. Gradualmente, o indivíduo

vai fazendo abstrações através de conjuntos de construções linguísticas com propriedades

similares, então, adquire o sistema abstrato subjacente a estas construções linguísticas.

Observem­se os dados a seguir:

8 [...] a theory of linguistic morphology in wich the notion ‘construction’ plays a central role.

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(1)

correr corredor

falar falador

matar matador

comprar comprador

Os pares de palavras em (1) podem ilustrar a proposta do autor. Esse conjunto de

palavras está em relação paradigmática. Esta relação pode ser projetada sobre a palavra

‘corredor’, por exemplo, na forma da seguinte estrutura morfológica interna da palavra:

[ [correr] V dor] N

Booij argumenta que um conjunto de palavras, como os de (1), pode dar origem a um

esquema abstrato, como o exemplificado a seguir. Consequentemente, tal esquema abstrato

pode funcionar como ponto de partida para criação de novos nomes deverbais em ­dor, em

que o novo nome é formado a partir da substituição de X por um verbo.

[ [X] V dor] N ‘aquele que pratica a ação de X’

Desse modo, palavra é um pareamento de forma e significado. A forma, por sua vez, é

compreendida de forma fonológica e propriedades morfossintáticas. Isso significa que cada

palavra é um pareamento de três tipos de informação: fonológica (FON), morfossintática

(SIN) semântica (SEM). Além disso, o significado de uma palavra (SEM) pode ter

componentes pragmáticos e estritamente semânticos.

Em suma, o autor considera uma palavra como uma peça complexa de informação que

liga uma determinada sequência sonora a um significado, e tem propriedades formais como

etiqueta de categoria sintática, conforme esquemas abaixo:

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As representações em 2a e 2b são os esquemas de uma palavra simples e uma

complexa, respectivamente. O esquema em 2c representa a generalização/abstração que se

pode fazer a partir de um conjunto de palavras semelhantes à representada em 2b

(‘comprador’, ‘vendedor’, ‘corredor’, ‘lixador’, ‘fornecedor’ etc..)

Os símbolos ω e σ correspondem à palavra e à sílaba, respectivamente. Letras

maiúsculas correspondem a categorias lexicais, como N (nome) e V (verbo). As letras

minúsculas subescritas indicam a indexação e coindexação dos elementos no léxico. O

símbolo ↔ significa correspondência. O autor usa o termo ‘correspondência’ para a relação

entre os diferentes níveis de representação (FON, SIN, SEM). O termo ‘interface’ é usado

para denotar a sistematicidade na correspondência entre os três tipos de informação

(fonológica, morfossintática e semântica). Em outras palavras, propriedades de um nível

podem estar relacionadas com as de outro.

Alguns exemplos de interface fonologia­morfologia (ou seja, de propriedades

fonológicas relacionadas a propriedades morforlógicas) em português são os casos de sufixos

não coerentes, como ­(z)inho e ­mente; de formação de paradigma flexional por alternância

vocálica, como na marcação de gênero em ‘avô’ – ‘avó’ ou na marcação de pessoa como em

‘s[i]rvo’ – ‘s[ε]rve/s/m’ – ‘s[e]rvimos’; de mudança categorial mediante mudança de sílaba

tônica, como em ‘fábrica’ – ‘fabrica’, ‘cronômetro’ – ‘cronometro’, ‘análise’ – ‘analise’; e de

truncamento, como em ‘refri’ (de ‘refrigerante’), ‘deprê’ (de ‘depressão’/‘depressivo’),

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‘oftalmo’ (de ‘oftalmologista’) e ‘odonto’ (de ‘odontologia’).

Em suma, o módulo de interface FON­SIN especifica que tipos de informação

morfológica são acessíveis para a computação de propriedades fonológicas e de que maneira

influenciam tais propriedades; assim como processos morfológicos podem fazer uso de

informação fonológica . 9

Na Morfologia construcional, todos os tipos de formação de palavras podem ser

representados como construções. Desse modo, há construções para processos derivacionais

(sufixação e prefixação) e composicionais. Gonçalves & Almeida (2014) adaptam à

morfologia do português a representação original proposta por Booij (2005) para os processos

de composição, sufixação e prefixação.

(3a) composição: [ [X] X [Y] Y ] N

(3b) prefixação: [X [Y] Y ] Y

(3c) sufixação: [ [X] X Y] Y

Nos esquemas em (3), X e Y representam sequências fonológicas, ao passo que as

variáveis subscritas representam categorias lexicais. O esquema geral da composição,

representado em (3a), mostra que, em português, uma sequência fonológica [X], de categoria

x, juntamente a uma sequência fonológica [Y], de categoria y, instanciam o esquema geral da

composição para formar um nome ­ substantivo ou adjetivo ­ conforme pode ser visto nos 10

exemplos a seguir.

9 Para maior esclarecimentos sobre as interfaces, ver exemplos dados pelo autor nas pág. 8 a 11. Sobre interface fonologia­morfologia em português, aconselho a leitura das obras ‘Otimalidade em foco’(GONÇALVES, et al., 2009) e ‘Introdução à morfologia não­linear” (GONÇALVES, 2009) 10 Em português, compostos adjetivos são formados apenas se [X] e [Y] pertencerem à categoria ‘adjetivo’, a exemplo de “afrobrasileiro” ­ [ [afro] A [brasileiro] A ] A . Qualquer outra combinação no interior de um composto resulta em substantivos. Cabe ressaltar ainda que o resultado da combinação A + A frequentemente é usado como substantivo, assim como acontece com diversos adjetivos simples, como se pode ver nas frases “O surdo­mudo finalmente vai aprender LIBRAS” e “O lateral­direito salvou o jogo já no fim da prorrogação”.

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(4)

[ [ bolsa ] S [ atleta ] S ] S

[ [ caixa ] S [ preta ] A ] S

[ [ caixa ] S [ dois ] NUM ] S

[ [ mal ] ADV [ educado ] A ] S

[ [ mal ] ADV [ feitor ] S ] S

[ [ bem ] ADV [ querer ] V ] S

[ [ guarda ] V [ roupa ] S ] S

[ [ corre ] V [ corre ] V ] S

[ [ bate ] V [ pronto ] A ] S

[ [ bota ] V [ fora ] ADV ] S

[ [ sabe ] V [ tudo ] PRON ] S

[ [ belas ] A [ artes ] S ] S

[ [ lateral ] A [ direito ] A ] A

[ [ seu ] PRON [ vizinho ] S ] S

[ [ primeiro ] NUM [ ministro ] S ] S

[ [ contra ] PREP [ ataque ] S ] S

Os esquemas (3b) e (3c), respectivamente prefixação e sufixação, diferem de (3a) pelo

fato de um de seus elementos não ter etiqueta lexical, ou seja, tal elemento não­etiquetado não

corresponde a um lexema e, por isso, só se realiza dentro da construção. Para Booij (2005,

p.13), essa é a diferença entre os esquemas da derivação e da composição.

Como exemplos em português, podemos citar re­ e ­ção que só se realizam,

respectivamente, dentro das construções [re [X] V ] V e [[X] V ção] S . A instanciação de X em

cada um desses esquemas resulta em formas como ‘refazer’, ‘reler’ e ‘rever’, para o primeiro,

e ‘coroação’, ‘falação’ e ‘medição’, para o segundo. A relação entre as construções e seus

produtos mostra que afixos não são as unidades analisadas, uma vez que o que é analisado é a

construção ou esquema como um todo, ou seja, a palavra.

A construção [re [X] V ] V é derivada do esquema geral [X [Y] Y ] Y . Tal esquema expressa

que sua operação é categorialmente neutra, o que significa dizer que a classe gramatical das

palavras prefixadas é idêntica à da base (marcado na construção pelos dois Vs subscritos e no

esquema geral pelos dois Ys). Além disso, a base será sempre a cabeça da construção, como

comprovam as paráfrases “Ler de novo” e “Fazer novamente”.

Diferentemente, na sufixação, é possível que o elemento preso porte informação

sintática (etiquetando lexicalmente a construção) e constitua a cabeça categorial, além de

atribuir gênero, como se pode ver no contraste entre as construção [[X] V ção] S , [ [X] S ada] S e [

[X] S inho] S .

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(5)

[[X] V ção] S ­ coroação (ato de coroar)

[ [X] S ada] S ­ macarronada (prato à base de macarrão)

[ [X] S inho] S ­ livrinho (livro pequeno)

cabeça à direita atribuição de gênero mudança categorial

cabeça à direita atribuição de gênero sem mudança categorial

cabeça à esquerda sem atribuição de gênero sem mudança categorial

Fica claro que a sufixação é um fenômeno de comportamento mais variado que a

prefixação e a composição, apresentando padrões mais prototípicos, a exemplo da construção

X­ção, até padrões menos prototípicos, como X­inho, por exemplo, passando por construções

intermediárias, como X­ada. A presença de sufixos como ­inho e ­ada coloca a sufixação

numa zona mais próxima da fronteira entre flexão e derivação, ao contrário da prefixação que

figura numa zona mais próxima à fronteira derivação­composição . 11

2.1.3. Esquemas, Heranças e Compatibilização

De modo geral, um esquema pode ser definido como uma estrutura conceitual de alto

nível que organiza a experiência anterior e nos ajuda a interpretar novas situações

(GURECKIS & GOLDSTONE, 2010, p. 725). A função principal de um esquema é fornecer

uma síntese das nossas experiências passadas mediante abstração de seus componentes mais

estáveis e importantes. Esquemas desempenham importante papel na linguagem e no

processamento linguístico, ajudando a enquadrar um conteúdo semântico a uma situação.

Um esquema como (6) sintetiza, a partir da abstração dos componentes formais e

semânticos mais estáveis e importantes, nossa experiência linguística de contato com um

grupo de palavras (‘eletroacústica’, ‘eletrobalística’, ‘eletrobomba’, entre outras). Em 12

esquemas, o que é variável pode ser abstraído em forma de slots a serem preenchidos, ao

11 Para uma leitura acerca das fronteiras entre categorias morfológicas em português, indico os trabalhos de Gonçalves (2005 e 2011), para a fronteira entre flexão e derivação, e os de Gonçalves (2011b) e Gonçalves & Andrade (2012), para a fronteira entre derivação e composição. 12 Nossas experiências com as estruturas linguísticas são ricas e complexas, indo desde a absorção de padrões linguísticos recorrentes a questões relacionadas ao uso, como polidez, afetividade ou pejoratividade, contextos mais apropriados, ativação de determinados frames e não de outros, etc. Por isso, um esquema sintetiza não só padrões formais e semânticos, mas também pragmáticos. Dentro do modelo da morfologia construcional de Booij, isso fica claro na afirmativa de que SEM pode ter componentes tanto estritamente semânticos, quanto pragmáticos.

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passo que o que é recorrente pode ser fixado na construção.

(6)

[eletro [x] Yi ] Y ↔ [SEM i relativo à eletricidade]

No esquema em (6), do ponto de vista formal, é abstraído o fato de um grupo de

palavras apresentar recorrentemente uma sequência fonológica comum (eletro­) que sempre

aparece à esquerda da palavra, anexando­se a palavras de livre curso na língua. É abstraído

também o fato de tais palavras serem variáveis e poderem ser de qualquer classe gramatical, o

que é representado no esquema, respectivamente, pela variável X entre colchetes e pelo Y

subscrito ­ em vez de uma etiqueta lexical específica como N (nome) ou V (verbo). Do ponto

de vista semântico, é abstraído o significado relativamente estável “relativo à eletricidade”,

mais ou menos comum a todas as palavras, juntamente com a contribuição semântica (SEM i )

da palavra que vai ocupar o slot [X].

Em suma, (6) representa a síntese formal e semântica de uma experiência linguística

(o contato contínuo com um grupo de palavras que se relacionam paradigmaticamente e

apresentam determinado padrão formal e semântico­pragmático) por meio de sua

esquematização. Esquemas são ferramentas poderosas por serem uma via de mão dupla, pois

ao mesmo tempo que emergem da abstração de usos concretos ­ o que é fundamental para o

processo de aquisição de linguagem ­ são ponto de partida para formação de novas estruturas

linguísticas ­ o que é primordial para a manutenção do caráter criativo e dinâmico da língua,

caráter indispensável à eficácia do funcionamento da língua e da plena comunicação.

Esquemas possuem vários níveis de abstração, desde os mais genéricos e abstratos aos

mais especificados. Em modelos construcionais (FILLMORE & KAY, 1993; GOLDBERG,

1995; BOOIJ, 2010; entre outros), isso se traduz nas noções de construções abertas,

parcialmente especificadas ou plenamente especificadas. Em se tratando de construções

morfológicas, a relação entre esquemas de diversos níveis de abstração se estabelece por meio

da noção de léxico hierárquico, que pressupõe que uma série de subclassificações (cf. figura

1, a seguir) são organizadas hierarquicamente até chegar no nível da palavra individual.

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Figura 1: Representação do léxico hierárquico

Nessa rede de relações, cada esquema é instanciação de um esquema em nível

imediatamente superior, do qual herda propriedades morfossintáticas e semânticas. Sendo

assim, cada esquema abstrato pode ser considerado uma subclasse pertencente aos nomes

complexos. Os esquemas da segunda linha de baixo para cima, por sua vez, são instanciações

dos esquemas abstratos mais gerais e herdam destes propriedades morfossintáticas e

semânticas. A palavra complexa individual, então, é o resultado da unificação de uma palavra

base com um esquema.

Por exemplo, dominado pelo nó ‘nomes complexos’, há o esquema geral da sufixação

que pode ser instanciado pelo esquema [[X] Vi dor] Nj . Tal esquema pode se unificar, por

exemplo, com a palavra ‘vender’, formando o nome complexo ‘vendedor’.

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Figura 2: Instanciação e unificação de ‘vender’ com a construção X­dor

Unificação é a operação de substituição de uma variável no esquema por uma palavra.

Na figura 1, a variável X foi substituída pelo verbo ‘vender’. A essa substituição, Booij

denomina unificação ( unification ), ou seja, uma palavra complexa como ‘vendedor’, com o

significado “aquele que vende algo”, é criada através da unificação do esquema [ [X] Vi dor] Nj

com o item lexical ‘vender’.

Entretanto, Gonçalves e Almeida (2014, p. 176) preferem nomear tal mecanismo de

Compatibilização , por julgarem que o termo ressalta o fato de o item lexical combinar suas

propriedades lexicais com as propriedades semântico­gramaticais da construção, instaurando

“ uma relação bidirecional da construção para o item e do item para a construção ”.

Isso fica evidente se atentarmos para o fato de a palavra ‘vendedor’ ativar o frame de

‘evento comercial’ (FILLMORE, 1982, p. 116­117). Tal frame emerge do verbo ‘vender’ e

não da construção, o que pode ser comprovado pelo fato de só ser ativado em palavras X­dor

cuja base faz parte da rede de ‘evento comercial’ (‘vendedor’, ‘comprador’, ‘cobrador’,

‘mercador’) e estar ausente nas demais palavras X­dor (‘corredor’, ‘prestador’,

‘mergulhador’, ‘perseguidor’, etc.)

Em se tratando das formações X­dor, há algumas poucas exceções, como as palavras

‘lenhador’ e ‘aviador’, que fogem ao padrão esperado, uma vez que suas palavras bases são

nomes e não verbos. Mesmo apresentando tal peculiaridade, tais palavras mantêm

regularidades com outras formações X­dor, como (a) a categoria dos produtos (substantivos) e

(b) o caráter agentivo (o frame ativado é o de ação e as palavras ativam uma cena em que

pessoas exercem alguma atividade). O fato de tais palavras serem formadas a partir de

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substantivos evidencia que nem toda informação de nó dominante é inteiramente preservada.

Casos em que propriedades regulares previsíveis não se estendem ao nó dominado são

tratados por Booij a partir da noção de herança default .

Herança default pode ser definida nos seguintes termos: “ A especificação de uma

palavra para uma propriedade particular é herdada do nó dominante, a menos que a entrada

lexical real tenha outra especificação para aquela propriedade ” (BOOIJ, 2010, p. 27). É um 13

mecanismo necessário para explicar palavras que têm uma propriedade excepcional, embora

sejam regulares na maioria dos aspectos. Isso se dá porque a unificação default ignora valores

incompatíveis para certas propriedades, não gerando falha na unificação. Dessa forma, a

informação do nó mais alto pode ser suplantada por informação relativa ao nó mais baixo.

Como salienta Booij, “ o mecanismo de herança default é necessário porque queremos ser

capazes de expressar que uma palavra tem uma propriedade excepcional, embora seja

regular em muitos outros aspectos. ” (BOOIJ, 2010, p. 27) 14

Construções morfológicas podem manter vínculo por relação de herança. Segundo

Gonçalves & Almeida (2014, p. 178), “ entende­se por herança qualquer característica

formal ou semântica que esteja na construção básica e se transfira para a construção

decorrente ”. Como mencionado mais atrás, Goldberg (1995) propõe quatro tipos de herança:

por polissemia (quando há relação entre um sentido específico de uma construção e

alguma extensão desse sentido em outra);

por extensão metafórica (quando duas construções se relacionam por meio de

mapeamento metafórico);

por instanciação (quando uma construção instancia outra, apresentando mais

elementos especificados); e

por subparte (quando parte de uma construção existe independentemente, constituindo

outra construção).

Os autores, então, propõem que esses quatro tipos de herança, postulados para

13 [...] the especification of a word for a particular property is inherited from the dominating node, unless the actual lexical entry has another specification for that property. 14 The mechanism of default inheritance is necessary because we want to be able to express that a word has an exceptional property, although it is regular in most respects.

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construções sintáticas, também caracterizam construções morfológicas. As duas primeiras,

herança por polissemia e por metáfora, podem ser exemplificadas pelas formações X­ão.

Numa abordagem polissêmica, os vários significados existentes são considerados como

extensões de um significado prototípico que é tomado como ponto de partida. Nas formações

X­ão, o significado prototípico é o de tamanho (GONÇALVES et al., 2010; ALVES, 2011),

do qual derivam as acepções quantidade , intensidade , avaliação , entre outras.

Tendo em vista que os significados mais básicos são os mais concretos, consideramos “aumento de tamanho” o significado central do sufixo ­ão, que naturalmente se adjunge a substantivos concretos (‘pé’, ‘chinelo’, ‘menino’, ‘brinco’, ‘relógio’). Como o próprio nome indica, o aumentativo centralmente exprime o tamanho maior de um referente – mais especificamente um tamanho superior ao normal, isto é, ao protótipo da respectiva categoria: ‘pezão’, ‘chinelão’, ‘meninão’, ‘brincão’, ‘relojão’. Das formações relacionadas a esse significado central, podemos depreender diversas categorias de uso, que vão das mais concretas e próximas ao núcleo significativo, até as mais abstratizadas e distanciadas desse eixo. A acepção central pode ser metonímica ou metaforicamente aplicada a outros domínios, adquirindo, com isso, diversas nuances de significado, sendo, portanto, atualizada e reinterpretada. (GONÇALVES et al., 2010, p. 146­147)

Cabe ressaltar que a polissemia não é propriedade da palavra individual, mas do

esquema construcional. Assim, extensões polissêmicas, que podem decorrer de processos

metafóricos ou metonímicos, resultam em subesquemas. Estes, por sua vez, herdam

propriedades do esquema­mãe. A acepção quantidade , por exemplo, resultado da metáfora

“tamanho é quantidade”, herda do protótipo a noção de “proporção para mais”, resultando no

significado “grande quantidade de X” ou “grande parte de X”.

(7)

Assim, o subesquema quantidade das formações X­ão é exemplo tanto de herança por

polissemia quanto de herança por metáfora, pois (a) mantém relação com um sentido

específico do esquema­mãe (proporção para mais), caracterizando uma ligação por

polissemia, e (b) sua extensão de significado se dá por meio da metáfora “tamanho é

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quantidade”. A herança por instanciação advém da noção de que cada esquema é instanciação

de um esquema em nível imediatamente superior, apresentando mais elementos especificados

que o de seu nó dominante.

(8)

Em (8), os esquemas [ S i ­agem ] Sj e [ V i ­agem ] Sj são instanciações do esquema [

[X]i ­agem] Sj ↔ [Relativo a SEM i ] j , que, por sua vez, é instanciação do esquema geral da

sufixação [[X] X Y] Y . Percebe­se que, a cada instanciação, o esquema se torna mais

especificado. Os esquemas [ S i ­agem ] Sj e [ V i ­agem ] Sj , por exemplo, atualizam a posição de

[X], especificando a classe da palavra base (substantivo e verbo, respectivamente). Já o

esquema [ [X] i ­agem ] Sj atualiza o slot Y, especificando o sufixo ­agem como parte integrante

desse esquema. Essa é, inclusive, a diferença formal mais importante entre [ [X] X Y] Y e [ [X] i

­agem ] Sj , pois esta é uma construção parcialmente fixa, ao passo que aquela é uma construção

aberta.

Por fim, na herança por subparte, “ uma construção corresponde a um pedaço de

outra, constituindo uma porção independente da construção de que se origina ”

(GONÇALVES & ALMEIDA, 2014, p. 180). Pode­se tomar como exemplo os casos de

recomposição que ocorrem em formativos como homo­, tele­ e eco­ e o caso das construções 15

eletro­X . Segundo Tavares da Silva, 16

15 Oliveira & Gonçalves definem recomposição como “ processo pelo qual há encurtamento de uma palavra, outrora um composto neoclássico, em que o arqueoconstituinte, nos termos de Corbin (2000), adquire o significado do composto erudito com maior frequência de token ou vinculado a um referente com alta relevância cultural. Esse radical se junta a uma forma livre da língua, formando nova palavra, agora menos formal por evocação a uma palavra tomada como modelo. Devemos entender que o radical encurtado não preserva o sentido etimológico da forma­gatilho de onde se desprendeu. Na verdade, a forma encurtada é metonímia do composto e tem características peculiares. ” (OLIVEIRA & GONÇALVES 2011, p. 178­179) 16 O caso das formações eletro ­X é bastante particular e difere em pontos bastante substanciais de casos mais clássicos de recomposição. Para um maior aprofundamento acerca das formações eletro­X, aconselho a leitura

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O formativo eletro­ tem origem no grego clássico elektron, que, segundo Cunha (1982), significa “âmbar amarelo”. O âmbar é uma substância sólida amarelada que tem a capacidade de atrair pequenos corpos quando atritado. Devido a essa capacidade, o radical eletro­ passou a designar um tipo de energia por nós conhecida como eletricidade. A partir daí, numerosos vocábulos eruditos das áreas científicas foram formados com o radical eletro­, cuja acepção genérica de eletricidade/energia elétrica está presente em todas as formações – ‘eletroacústica’ (física); ‘eletroafinidade’ (química); ‘eletrocapilaridade’ (fisicoquímica); ‘eletrocardiografia’ (medicina); ‘eletromiografia’ (neurologia). Tais vocábulos são comumente conhecidos na literatura linguística como compostos neoclássicos. (TAVARES DA SILVA, 2013, p. 12)

Além das formações neoclássicas, eletro­ tem se prestado a formações como

‘eletroshopping’, ‘eletroferta’ e ‘eletroportátil’. Nesses casos, eletro­ equivale a

“eletrodoméstico” – como comprova a possibilidade de truncamento como em “Está tendo

promoção de eletro nas Casas Bahia” e “Já montei boa parte da cozinha, só faltam os eletros”.

Isso significa dizer que eletro­ comprimiu o significado do todo ­ eletrodoméstico ­ e passou a

formar novas palavras. É exatamente parte da palavra complexa ‘eletrodoméstico’. Assim,

palavras como ‘eletroportátil’ e ‘eletroshopping’ exemplificam casos de herança por subparte,

uma vez que a parte fixa do esquema que lhes deu origem é subparte de ‘eletrodoméstico’,

conforme figura 3.

Figura 3: Herança por subparte nas construções eletro­X

Os três primeiros casos de herança ­ por polissemia, por metáfora e por instanciação ­

são caros à descrição e caracterização da rede de construções X­eiro e serão retomados

de Tavares da Silva (2013).

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juntamente com a análise dos dados, no capítulo 4.

Em suma, diante dos vários exemplos apresentados ao longo deste capítulo, vê­se que

o modelo de Geert Booij traz vantagens analíticas e descritivas em relação a modelos

baseados em regras. Por tratar as estruturas morfológicas como pareamento de forma e

significado, abre espaço para uma abordagem em que a semântica não fique subfocalizada ou

relegada ao esquecimento. O próprio modelo já traz noções que contribuem para o tratamento

semântico da morfologia, como herança, coindexação e tratamento das relações

paradigmáticas, não apenas do ponto de vista formal, mas, sobretudo, como mecanismo em

que “ por meio de um dos termos da relação paradigmática, é possível criar nova palavra e

conhecer seu significado ” (GONÇALVES & ALMEIDA, 2014, p. 183).

Entretanto, o componente SEM ainda é descrito de maneira muito vaga. Assume­se,

por exemplo, que o polo semântico das construções hierarquicamente superiores deve ser o

mais abrangente possível a ponto de abarcar todas as acepções hierarquicamente

subordinadas. Tal abrangência, porém, não é detalhada e não vai além de paráfrases vagas.

Conforme argumento no capítulo 3, lidar com paráfrases é necessariamente lidar com

uma gama de imprecisões, uma vez que as palavras são naturalmente polissêmicas. Para

minimizar os efeitos inevitáveis das paráfrases, busca­se aqui chegar ao significado

esquemático das construções morfológicas e integrá­lo a SEM.

A proposta de refinamento que aqui se faz, então, é a de assumir que há uma rede

conceitual ancorada em esquemas de imagem que sustenta o polo semântico de alguns

processos de formação de palavras do português, mais especificamente, processos sufixais.

Tal rede toma por base o trabalho de Peirsman & Geeraerts (2006), que é o foco da próxima

seção.

2.2. A proposta de Peirsman & Geeraerts (2006)

Peirsman & Geeraerts, em seu trabalho intitulado Metonymy as a prototypical

category , propõem que a metonímia seja vista como uma categoria hierarquicamente

estruturada. Para isso, retomam a noção de contiguidade, “ o conceito que costumava ser visto

como a característica definidora da metonímia antes de a Linguística Cognitiva introduzir os

conceitos de domínios e matrizes de domínio ” (PEIRSMAN & GEERAERTS, 2006, p. 1), 17

17 [...] the concept that used to be seen as the defining feature of metonymy before Cognitive Linguistics

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como sendo central à definição de metonímia.

Com base na literatura pré­estruturalista tradicional sobre metonímia, os autores fazem

um inventário de vinte e três padrões metonímicos típicos , e argumentam que eles podem ser 18

classificados em termos do tipo de contiguidade pelos quais são motivados. Segundo os

autores, padrões metonímicos podem ser motivados por quatro tipos de contiguidade, a saber,

parte­todo , conteúdo­continente (doravante apenas contenção ), adjacência com contato

(doravante apenas contato ) e adjacência sem contato (doravante apenas adjacência ). Além

disso, os quatro tipos de contiguidade podem atuar em quatro domínios distintos: domínio

material/espacial; domínio temporal; domínio das ações/eventos/processos; e domínio de

assembleia ou coleção, o que mostra que os autores não excluem a importância da noção de

domínio para a caracterização da metonímia.

Argumentam, então, que metonímias podem ser traçadas contra três dimensões: a

força de contato , a limitação e o domínio envolvido, criando uma rede em que os quatro tipos

de contiguidade, os quatro domínios, mais a atuação da ‘força de contato’ e da ‘limitação’ se

relacionam em termos de prototipicidade. Segue, abaixo, a representação das três dimensões

propostas pelos autores.

introduced domains and domain matrices. 18 1. Parte­todo espacial; 2. Localização e localizado; 3. Conteúdo e continente; 4. Material e objeto; 5. Peça de roupa e pessoa; 6. Peça de roupa e parte do corpo; 7. Parte­todo temporal; 8. Antecedente e consequente; 9. Tempo e entidade; 10. Subevento e evento complexo; 11. Potencial e real; 12. Ação e participante; 13. Causa e efeito; 14. Participante e participante; 15. Controlador e controlado; 16. Possuidor e possuído; 17. Localização e produto; 18. Produtor e produto; 19. Característica e entidade; 20. Entidade única e coleção; 21. Objeto e quantidade; 22. Fator central e instituição; 23. Hiponímia e hiperonímia. As obras consultadas pelos autores para o levantamento de tal inventário foram Prinzipien der Sprachgeschichte de Hermann Paul (1880), Grammaire historique de la langue française de Kristoffer Nyrop (1913), Bedeutungsentwicklung unseres Wortschatzes de Albert Waag (1901), Métaphores occidentales de Gaston Esnault (1925) e Semiotic Principles in Semantic Theory de Neal R. Norrick’s (1981).

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Figura 4: Representação das três dimensões propostas por Peirsman & Geeraerts (2006)

Figura 5: Atuação das dimensões força de contato e limitação .

A figura 4 apresenta as representações adotadas. Cada tipo de contiguidade é

representado por uma figura retangular diferente; cada domínio é aqui representado por uma

cor e a dimensão limitação é representada pela linha preenchida, para entidades delimitadas,

ou pontilhada, para entidades não delimitadas. A figura 5 representa a atuação da força de

contato (plano vertical) e da limitação (plano horizontal).

A força de contato é definida pelos autores como “ uma noção intuitiva que faz

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referência à força envolvida na relação entre duas entidades ” (PEIRSMAN & 19

GEERAERTS, 2006, p. 14). A relação de contiguidade do tipo parte­todo, que existe, por

exemplo, entre cabeça e corpo, é muito forte. Para que uma entidade se separe da outra, é

necessária uma grande força. Essa relação é enfraquecida na contiguidade do tipo contenção,

em que as entidades podem ser separadas uma da outra com mais facilidade. Seguindo a seta

vertical (figura 5), há maior enfraquecimento da força de contato, se compararmos a força

envolvida entre duas entidades que estabelecem entre si uma relação conteúdo­contêiner com

a força envolvida entre duas entidades que estabelecem apenas um contato. Por fim, a relação

de adjacência se dá entre entidades que não estabelecem contato entre si; logo, constitui o

grau máximo de enfraquecimento da dimensão força de contato .

O conceito de limitação envolve os limites das entidades envolvidas, se são entidades

limitadas ou ilimitadas. Assim, pode­se ter como exemplo a relação entre ferro e espada. Os

autores colocam a relação entre ferro e espada numa contiguidade do tipo parte­todo em que

uma entidade é limitada (a espada) e a outra é ilimitada (o ferro). Eles argumentam que essa

diferença se faz necessária para que se possa distinguir uma relação ferro­espada de uma

relação espada­cabo, por exemplo, em que ambas as entidades são limitadas. Uma relação do

tipo espada­cabo, então, é representada, na figura 5, pelo primeiro retângulo na linha

parte­todo, ao passo que ferro­espada é representada pelo segundo retângulo na mesma linha.

A combinação entre os tipos de contiguidade, os quatro domínios propostos e as

dimensões força de contato e limitação dá origem a uma rede altamente estruturada, que

define a taxonomia dos padrões metonímicos proposto pelos autores.

Para os autores, o núcleo prototípico dessa rede é, em termos de contiguidade, o

padrão parte­todo e, em termos de domínios, o material/espacial. Sendo assim, o padrão

metonímico parte­todo espacial/material é o núcleo prototípico da rede proposta por Peirsman

& Geeraerts (ver figura 6). A partir dele, os outros padrões metonímicos se relacionam com

esse núcleo e/ou se afastam dele através de das dimensões ‘força de contato’ e ‘limitação’.

Propõem, então, que a metonímia seja vista como um conceito prototipicamente estruturado.

19 [ ...] an intuitive notion that refers to the strength of the relation between the two entities involved.

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Figura 6: Padrões metonímicos segundo Peirsman & Geeraerts (2006).

A figura acima esquematiza os 24 padrões metonímicos elencados pelos autores. Em

suma, o trabalho de Peirsman & Geeraerts propõe uma rede prototipicamente estruturada

capaz de explicar os vários tipos de metonímias encontrados na literatura linguística. Tal rede

se estrutura mediante a interrrelação dos tipos de contiguidade, chamados pelos autores de

padrões metonímicos , e o tipo de domínio envolvido.

Cabe, nesse ponto, distinguir padrões metonímicos de esquemas imagéticos. Padrões

metonímicos, na proposta de Peirsman & Geeraerts, constituem a junção de um esquema de

imagem atuando em um domínio específico. Essa junção serve para estruturar uma relação de

referenciação. Por exemplo, na frase “ A casa toda estava dormindo, quando o assaltante

tentou entrar ”, ‘casa toda’ está para todas as pessoas que residem na casa. O esquema de

imagem nesse caso é o de adjacência e o domínio é o espacial/material. Essa junção resulta no

padrão metonímico ENTIDADE & ENTIDADE ADJACENTE (ver figura 6). Outro exemplo

é o da frase “ Ele pisou no acelerador e chegou na festa em quinze minutos ”, em que ‘pisar no

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acelerador’ é um evento que faz parte de um evento maior e mais complexo que é dirigir. O

esquema de imagem, nesse caso, é o de parte­todo e o domínio é o das

ações/eventos/processos, o que resulta no padrão metonímico SUBEVENTO & EVENTO

COMPLEXO (ver figura 6).

Embora os autores não sejam explícitos que se trata de esquemas de imagem, fazem

menção a eles ao compararem sua abordagem com os trabalhos de Blank (1999) e de

Bonhomme (1987):

A nossa abordagem geral, então, é bastante semelhante à de Blank (1999). Blank (1999) combina uma classificação abstrata de tipos de contiguidade com padrões metonímicos concretos. Ele identifica uma hierarquia de três níveis abstratos que estão na base da metonímia. No mais alto nível, Blank (1999) argumenta, há dois "domínios de contiguidade". Estes dois domínios, co­presença e sucessão, correspondem aproximadamente a "metonímias situativas" e "metonímias actanciais" de Bonhomme (1987) e dão origem a uma lista aberta de "tipos de contiguidade" no segundo nível. Estes podem "ser melhor comparados aos "esquemas imagem" subjacente às metáforas (ver por exemplo Lakoff & Johnson, 1980; Johnson, 1987), que são altamente recorrente e conventionalizadas, mas, no entanto, constroem uma lista aberta" (Blank, 1999: 183). São estes vários tipos de contiguidade que conduzem as metonímias concretas no nível mais baixo . [Grifo meu] (PEIRSMAN & GEERAERTS, 20

2006, p. 6)

Cabe tecer alguns comentários finais sobre a proposta de Peirsman & Geeraerts.

1­ Os autores propõem uma definição não unitária de metonímia, ou seja, não baseada em um

único conceito. Propõem, então, que a metonímia é mais bem definida coadunando diversas

noções, a saber, a noções de domínio, de contiguidade, de força de contato e de limitação, o

que gera uma categoria radial.

A discussão de metonímia no contexto da linguística cognitiva, até agora tem se concentrado numa definição de metonímia como uma mudança de sentido dentro de um domínio ou matriz de domínio (Kövecses 2002: 145). (...) Vários linguistas (entre eles Croft & Cruse 2004, Feyaerts 1999 e Riemer 2001) sugerem agora que não é tão simples usar identidade versus

20 Our general approach, then, is quite similar to Blank’s (1999). Blank (1999) combines an abstract classification of types of contiguity with concrete metonymical patterns. He identifies a hierarchy of three abstract levels that lie at the basis of metonymy. On the highest level, Blank (1999) argues, there are two “domains of contiguity”. These two domains, co­presence and succession, roughly correspond to Bonhomme’s (1987) “métonymies situatives” and “métonymies actancielles” and give rise to an open list of “types of contiguity” on the second level. These can “best be compared to the “image schemas” underlying metaphors (see e.g. Lakoff & Johnson 1980; Johnson 1987), which are highly recurrent and conventionalized, but nevertheless build on an open list” (Blank 1999: 183). It is these various types of contiguity that lead to the concrete metonymies on the lowest level.

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diferença entre domínios semânticos envolvidos como base para a diferenciação de metáfora e metonímia. Ao mesmo tempo, no entanto, um simples retorno à definição anterior de metonímia em termos de contiguidade (ver Ullmann 1967) está excluído. Afinal, esta definição unitária é tão cheia de problemas como uma definição unitária em termos de domínios ou matrizes de domínio. Em vez disso, parece que uma definição não­unitário da metonímia se faz necessária. E a maneira mais óbvia de construir uma tal definição em Lingüística Cognitiva é usar um modelo teórico de categorização baseado em protótipo. (PEIRSMAN &

21

GEERAERTS, 2006, p. 2) 2­ O trabalho de Peirsman & Geeraerts trata do conceito de metonímia e seus exemplos são todos de palavras que são usadas para se referir a conceitos a ela relacionados por contiguidade, como em “ Atualmente, estou lendo Veríssimo ”, em que o autor está para a obra.

O presente trabalho não trata de padrões metonímicos, mas de esquemas morfológicos

e da relação entre forma e conteúdo desses esquemas. Por isso, parte­se do princípio de que as

quatro relações de contiguidade são esquemas de imagem, que, ao se coligarem com domínios

distintos criam uma rede conceitual estruturada e ancorada em esquemas de imagem. Além

disso, a possibilidade de (de)limitação não (de)limitação entre duas entidades amplia

consideravelmente, pelo menos em termos de potencialidade, a rede descrita pelos autores,

que se limitam à descrição de padrões metonímicos. Assim, a figura abaixo é um esquema da

rede com a qual se pretende trabalhar aqui.

21 The discussion of metonymy in the context of Cognitive Linguistics has so far concentrated on a definition of metonymy as a shift of meaning within one domain or domain matrix (Kövecses 2002: 145). It is gradually becoming clear, however, that this definition relies too much on the vague notion of “domain (matrix)” to be fully operational; see Taylor (2002) or Ruiz de Mendoza & Otal Campo (2002) among a number of critical voices. Various linguists (among them Croft & Cruse 2004, Feyaerts 1999 and Riemer 2001) now suggest that it is less than straightforward to use identity versus difference between the semantic domains involved as a basis for the differentiation of metaphor and metonymy. At the same time, however, a simple return to the older definition of metonymy in terms of contiguity (see Ullmann 1967) is precluded. After all, this unitary definition is as problem­ridden as a unitary definition in terms of domains or domain matrices. Rather, it would seem that a non­unitary definition of metonymy is called for. And the obvious way of constructing such a definition in Cognitive Linguistics is to use a prototype­theoretical model of categorization.

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Figura 7: Representação da Rede Conceitual de Contiguidade (RCC)

É essa rede que estou chamando aqui de Rede Conceitual de Contiguidade (RCC). É

com ela que se sustentam as análises deste trabalho, pois está a serviço tanto da estruturação

de processos referenciais ­ como mostram Peirsman & Geeraerts (doravante P&G) ­ assim

como da estruturação de frames semânticos (como será discutido no capítulos 3), além de

estar subjacente a processos de formação de palavras (conforme capítulo 5). Por ora, cabe

apresentar mais detalhes sobre o conceito de esquema de imagem, o que é feito na próxima

seção.

2.3. Esquemas de imagem

Esquemas de imagem ou esquemas imagéticos são apresentados e discutidos em

Lakoff (1987), Johnson (1987) e Lakoff and Turner (1989). Podem ser definidos como

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versões esquemáticas de imagens. São representações conceituais relativamente abstratas e 22

totalmente esquemáticas que surgem a partir da nossa interação cotidiana com o mundo e

observação do mundo que nos cerca. São derivados, pois, das nossas experiências

sensório­motoras e perceptuais. Não são, porém, específicos para uma determinada

modalidade sensorial; ao contrário, são sinestésicos e envolvem, simultaneamente, várias

habilidades sensoriais e perceptuais. Croft & Cruse (2004, p. 44) incluem os esquemas

imagéticos dentre as operações de construal , o que significa dizer que é uma das formas de

conceitualização da experiência . Dito de outra maneira, é um dos mecanismos que 23

empregamos para estruturar, transformar ou converter uma experiência vivida em conceito.

O termo ‘esquema’ significa que as imagens não são conceitos ricos e detalhados, mas

conceitos abstratos que consistem em padrões emergentes das repetidas ocorrências das

nossas experiências corpóreas. Por exemplo, temos, desde bebês, experiências com

recipientes. Aprendemos, na interação cotidiana com recipientes, que podemos colocar e tirar

coisas de dentro deles. A partir da repetição dessa experiência, construímos um esquema em

que há uma fronteira cujos limites se estabelecem na relação dentro­fora.

Temos também diversas experiências em relação ao espaço. Ainda crianças,

aprendemos a ir para frente ou para trás, para esquerda ou para direita, a olhar para cima para

ver ou pegar objetos que estão acima da nossa cabeça ou para baixo para algo que esteja no

chão, por exemplo; aprendemos a nos equilibrar quando começamos a dar os primeiros

passos. Em suma, somos capazes de converter essas diversas experiências em conceitos

esquemáticos e abstratos, esqueletos que vão estruturar os níveis mais básicos da nossa rede

de conceitos.

Segue abaixo um inventário de esquemas imagéticos extraído de Croft & Cruse (2004:

45):

22 O uso do termo ‘relativamente’ decorre do fato de os esquemas imagéticos serem abstratos, no sentido de serem esquemáticos e desprovidos de conteúdo proposicional, e, ao mesmo tempo, não abstratos, no sentido de serem corporificados. 23 A hipótese básica da Linguística Cognitiva é que semântica é conceptualização. Operações de conceitualização da experiência são mecanismos que os seres humanos empregam para transformar ou converter uma experiência vivida em conceito. Para um inventário das operações de construal , ver Croft & Cruse (2004, cap. 3)

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Espaço cima­baixo, frente­trás, esquerda­direita, centro­periferia, contato

Escala trajetória

Contêiner contenção, dentro­fora, superfície, cheio­vazio, conteúdo

Força equilíbrio, força contrária, compulsão, restrição, habilidade, bloqueio

Unidade fusão, coleção, divisão, iteração

Multiplicidade parte­todo, ligação, contável­não contável

Identidade combinação, superimposição

Existência remoção, espaço delimitado, ciclo, objeto, processo Quadro 2: Inventário de esquemas imagéticos

Cabe ressaltar que o inventário de Esquemas imagéticos (doravante EIs) ainda não é

consensual nem forma um grupo fechado e bem delimitado. A questão que se coloca aqui é:

poderia haver outra organização para os EIs distinta da proposta por Croft & Cruse?

Argumento aqui em prol da íntima relação entre os EIs parte­todo, contenção, contato e

adjacência, de maneira tal que formam um grupo subordinado por uma noção maior que é a

noção de contiguidade .

Desde que nascemos, começamos a interagir com o mundo que nos cerca. Essa

interação é fundamental para a emergência de EIs. As interações que temos com as relações

espaciais são constantes e difundidas na experiência humana. Percebemos os objetos ao nosso

redor e as diversas relações espaciais e funcionais que se estabelecem entre eles.

Em nossa interação com o espaço físico, temos diversas experiências relacionadas à

noção de contiguidade. Percebemos, por exemplo, que muitos objetos que nos cercam

possuem partes que se relacionam a seus todos. Obviamente, essa relação pode ser funcional e

também somos capazes de perceber isso, mas é, sobretudo, uma relação física e material no

plano tridimensional. Partes estão sempre contíguas a seus todos.

Isso não é diferente na relação entre contêineres e seus conteúdos. Estar dentro de um

recipiente é, necessariamente, estar contíguo a esse recipiente. Diversas entidades no universo

biossocial podem manter relação recorrente de contato umas com as outras (os livros em

contato com a prateleira, por exemplo) ou mesmo de adjacência sem contato (como as

cadeiras que geralmente ficam adjacentes à mesa ou à escrivaninha, formando um conjunto de

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sala de jantar ou de escritório). Tanto a relação de contato quanto a de adjacência pressupõe

contiguidade.

Em suma, relações espaciais de parte­todo, contêiner­conteúdo, contato e adjacência

têm em comum o fato de as entidades envolvidas estarem contíguas. Podemos dizer então

que, na nossa interação com o mundo, abstraímos a noção mais geral de contiguidade a partir

dessas diversas relações entre entidades no plano espacial.

De fato, contiguidade parece ser muito mais que um tipo de configuração espacial

onde duas entidades do mundo físico estão próximas. Se ouvimos dois sons (o soar de um

sino, por exemplo) com intervalo de apenas alguns segundos, inevitavelmente vamos

estabelecer alguma relação entre eles e, sobretudo, conectá­los através de alguma avaliação

mental. Podemos considerar que o primeiro foi mais agudo ou mais logo, ou mesmo de tons

diferentes (soando aos ouvidos como duas notas musicais distintas). Diferentemente, se os

ouvimos com intervalo de três ou quatro horas, muito provavelmente vamos percebê­los como

experiências separadas e não relacionadas . 24

Pode­se afirmar, então, que contiguidade é uma das condições fundamentais para que

possamos estabelecer relações entre duas ou mais entidades (relação espacial), momentos

(relação temporal) ou eventos (relações entre espaço e tempo) . Cabe lembrar, inclusive, que 25

a teoria da Gestalt , cujos principais expoentes são Max Wertheimer, Wolfgang Kohler e Kurt

Koffka, considera contiguidade como um dos princípios básicos que regem as forças internas

de organização . Assim, é plausível considerarmos a noção de contiguidade como superior e 26

regente das noções de parte­todo, contenção, contato e adjacência.

EIs têm se mostrado ferramenta produtiva para a descrição gramatical. Vários

pesquisadores têm mostrado a relação entre esquemas imagéticos e polissemia, como os

trabalhos de Lakoff (1987), sobre a polissemia de over , Sweetser (1990), sobre a polissemia

24 Obviamente, podemos relacionar dois eventos em intervalo de tempo grande com base em algum modelo cultural já estabelecido e conhecido, mas isso exige um nível superior de organização mental. Se ouvimos, por exemplo, a sirene de uma fábrica às 6h e depois às 18h, podemos relacionar esses dois eventos como o período de trabalho dos funcionários da fábrica. Mesmo assim, são eventos que, numa avaliação mais básica e menos complexa e elaborada, são percebidos e avaliados como sendo separados e não diretamente relacionados, pois um marca o início do expediente e o outro o fim. 25 Cabe ressaltar que esta análise vai ao encontro da proposta de P&G, para quem as relações de contiguidade se coadunam a domínios distintos da experiência para formar os mais variados padrões metonímicos. 26 Para uma introdução à teoria da Gestalt, aconselho a obra “Gestalt do objeto: sistema de leitura visual da forma” de João Gomes Filho.

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dos verbos modais em inglês, Soares da Silva (2006), sobre a polissemia do verbo ‘deixar’ e

Pinheiro (2010), sobre a polissemia do verbo ‘ter’ pleno, apenas para citar alguns. O presente

trabalho se alinha aos citados não só por se valer, em geral, do arcabouço teórico da

Linguística Cognitiva, mas também, e, sobretudo, por descrever a polissemia das formações

X­eiro e X­ário a partir da noção de esquema imagético.

Proponho que os esquemas morfológicos abstratos que derivam as palavras X­eiro e

X­ário são estruturados por esquemas imagéticos de contiguidade (parte­todo, contêiner,

contato e adjacência). O ineditismo do presente trabalho, então, está em unir ao componente

semântico (SEM) da morfologia construcional de Booij a noção de esquema imagético como

motivação cognitiva primordial das construções morfológicas aqui analisadas. Tais

construções são o foco do capítulo 5. O próximo capítulo se destina a um debate sobre

relações semânticas entre itens lexicais.

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3. SOBRE RELAÇÕES SEMÂNTICAS

Este capítulo destina­se a debater o conceito de relações lexicais, mais

especificamente as relações de meronímia e hiponímia. Esses conceitos, que nascem na

semântica estruturalista, foram passando por debates e consequentes reformulações, que são

discutidas ao longo deste capítulo. Ao final, advogo que a caracterização de tais conceitos não

pode prescindir da noção de frame semântico. Além disso, proponho que a RCC seja também

ferramenta útil para melhor descrever a relação que as palavras mantêm umas com as outras

no léxico.

3.1. Relações lexicais

Segundo Croft & Cruse (2004, p. 7), a suposição de que palavras denotam conceitos,

ou seja, são unidades de significado, levou à premissa de que tais unidades podem ser

comparadas e contrastadas umas com as outras. Isso resulta, na semântica estruturalista, em:

1. análises de relações semânticas entre palavras. (hiponímia, sinonímia etc.)

2. discriminação/decomposição dos conceitos em traços semânticos.

(GARANHÃO = [EQUINO, MASC.]; ÉGUA = [EQUINO, FEM.])

3. definição de conceitos, em última análise , por suas condições de verdade . 27

Nos estudos das relações semânticas, as palavras são definidas umas em relação às

outras a partir de seus conjuntos de traços semânticos e de tipos de relações que podem

estabelecer umas com as outras no léxico, como relação de equivalência, de oposição, de

inclusão ou de hierarquia, conhecidas, respectivamente, como sinonímia, antonímia,

hiponímia e meronímia.

Na semântica estruturalista, grosso modo, dois ou mais termos são sinônimos se

tiverem o mesmo significado, ou seja, se puderem ser substituídos entre si no mesmo contexto

27 Por que ‘em última análise’? Porque as condições em que se pode dizer que um conceito é ou não verdadeiro aplicam­se de forma adequada a uma situação no mundo. Em outras palavras, condição de verdade se aplica a sentenças e não a palavras. Palavras têm referência e sentido; sentenças são verdadeiras ou falsas. Então a primeira análise seria o nível da palavra e a última análise o nível da sentença.

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sem que se dê uma alteração do significado da frase, estabelecendo assim uma relação de

equivalência. Os pares ‘menino’ e ‘garoto’ são sinônimos, uma vez que a troca de um pelo

outro numa sentença não altera o significado da frase (“O menino chutou a bola”; “O garoto

chutou a bola”). Já a antonímia se refere à relação de sentido existente entre unidades lexicais

que têm significados opostos, como, por exemplo, ‘grande’ e ‘pequeno’, ‘velho’ e ‘novo’.

Hiponímia é a relação semântica não simétrica existente entre duas palavras,

estabelecida segundo critérios de inclusão. Hiponímia é a relação que se obtém entre itens

lexicais específicos e gerais, de tal forma que o significado do específico está incluído no

significado do geral. Assim, na relação de hiponímia existente entre as palavras ‘ poodle ’ e

‘cachorro’, ‘ poodle ’ é o hipônimo, que tem ‘cachorro’ como seu hiperônimo. O item lexical

‘cachorro’, por sua vez, é hipônimo de ‘mamífero’. A relação é não simétrica, porque o mais

específico está incluído no mais geral, mas o contrário não é verdadeiro. Todo poodle é um

cachorro, mas nem todo cachorro é um poodle .

Lyons (1977, p. 291) define hiponímia como “relação paradigmática de sentido que se

mantém entre um lexema mais específico, ou subordinado, e um lexema mais geral, ou

superordenado, como exemplificado pelos pares vaca : animal, rosa : flor, honestidade :

virtude, comprar : obter, carmesim : vermelho”. Acrescenta, também, que a hiponímia tem as

seguintes características: (a) é uma relação de inclusão de classes, (b) é definível em termos

de implicações unilaterais e (c) é transitiva.

“Hiponímia é frequentemente discutida pelos lógicos em termos de inclusão de classe; e, até um ponto, isto é satisfatório o suficiente. Por exemplo, se X é a classe das flores e Y é a classe das tulipas, então, é de fato o caso em que X inclui devidamente Y (X ⊃ Y e Y ⊅ X).” (LYONS, 1977, p. 291) 28

“Hiponímia é definível em termos de implicações unilaterais. Por exemplo, ‘crimson’ é estabelecido como hipônimo de ‘red’ e ‘buy’ como hipônimo de ‘get’ em virtude das implicações “She was wearing a crimson dress” (Ela estava usando um vestido carmesim) ⟶“She was wearing a red dress” (Ela estava usando um vestido vermelho), “I bought it from a friend” (Eu comprei de um amigo) ⟶ “I got it from a friend” (Eu obtive de um amigo).” (LYONS, 1977, p. 292) 29

28 Hyponymy is frequently discussed by logician in terms of class­inclusion; and, up to a point, this is satisfactory enough. For exemple, if X is the class of flowers and Y is the class of tulips, then it is in fact the case that X properly includes Y (X ⊃ Y e Y ⊅ X). 29 Hyponymy is definable in terms of unilateral implication. For exemple, ‘crismon’ is established as a hyponymy ‘red’ and ‘buy’ as hyponymy of ‘get’ by virtue of the implications “She was wearing a crismon dress” → “She was wearing a red dress”, “I bought it from a friend” → “I got it from a friend”.

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“Hiponímia é uma relação transitiva. Se x é hipônimo de y e y é hipônimo de z, então x é hipônimo de z. Por exemplo, ‘vaca’ é hipônimo de ‘mamífero’ e ‘mamífero’ é hipônimo de ‘animal’, portanto, ‘vaca’ é hipônimo de animal.” (LYONS, 1977, p. 30

292)

Cabem, nesse ponto, as reflexões e a proposta de Croft & Cruse (2004) acerca da

hiponímia numa abordagem cognitivista. Para os autores, a hiponímia não deve ser vista como

relação entre itens lexicais, mas como relação entre interpretações particulares de palavras

contextualmente ancoradas. Ressaltam que o fato de as relações de sentido serem dependentes

de contexto já havia sido discutido por Lyons (1968), embora ele próprio tenha abordado as

relações de sentido como propriedades estáveis de itens lexicais individuais. Destacam

também que a Linguística Cognitiva (LC) teve muito pouco a dizer sobre o tema das relações

de sentido. Propõem­se então a examinar as relações de sentido do ponto de vista da

abordagem da interpretação dinâmica do significado ( dynamic construal approach ).

Os autores tentam mostrar que mesmo não tendo sido assunto de muito interesse na

pauta cognitivista, as relações de sentido são objeto de estudo útil e valioso mesmo para a LC.

Argumentam, pois, que existem expressões linguísticas cuja boa formação semântica depende

da relação hiponímica, conforme exemplos dados pelos autores e repetidos aqui:

(9a) Xs are Ys (Koalas are marsupials) / Xs são Ys. (Coalas são marsupiais)

(9b) Xs and other Ys (Koalas and other marsupials) / Xs e outros Ys. (Coalas e outros

marsupiais)

(9c) Of all Ys, I prefer Xs. (Of all fruit I prefer mangoes.) / De todos os Ys, eu prefiro Xs. (De

todas as frutas, eu prefiro mangas)

(9d) Is it a Y?

Yes, it’s an X. (Is it a tit? Yes, it’s a coal­tit.)

Isto é um(a) Y?

Sim, isto é um(a) X. (Isto é um tit? Sim, isto é um coal­tit) 31

(9e) There was a marvelous show of Ys: the Xs were particularly good. (There was a

marvellous show of flowers: the roses were particularly good.) / Houve uma exposição

30 Hyponymy is a transitive relation. If x is a hyponymy of y and y is a hyponymy of z, then x is a hyponymy of z. For exemple, ‘cow’ is a hyponymy of ‘mammal’ and ‘mammal’ is a hyponymy of ‘animal’; therefore ‘cow’ is a hyponymy of ‘animal’ 31 Tit e coal­tit: pássaros de pequeno porte, conhecidos no Brasil pelo nome de ‘pardal’. Tit é um nome mais genérico que engloba várias espécies, ao passo que coal­tit é umas das espécies.

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maravilhosa de Ys: os(as) Xs estavam particularmente boas.

Croft & Cruse passam, então, a discorrer sobre a questão principal: a reformulação do

conceito de hiponímia não em termos de relações entre itens lexicais, mas entre interpretações

contextualmente ancoradas. A partir do exemplo dog ­ pet , classificado por Cruse (1986)

como para­hiponímia , ressaltam os autores que casos como esse não são problemáticos nem 32

geram inconsistência ou incoerência teórica nessa nova abordagem.

“Uma vez que as relações de sentido não se mantém entre as palavras, como tal, mas entre interpretações específicas de palavras, não há incompatibilidade necessária entre a normalidade de dogs and other pets (cães e outros animais de estimação), e a falta de acarretamento entre dog (cão) e pet (animal de estimação)” . (CROFT & CRUSE, 33

2004, p. 143)

“Relações de significado entre interpretações de palavras diferentes no mesmo discurso são importantes porque elas são frequentemente necessárias tanto para a coesão do discurso quanto para a boa formação de padrões de inferência. Vejamos um exemplo simples de um padrão de expressão cuja boa formação depende de uma relação de hiponímia, como X e outros Ys . Consideremos o caso de dogs and other pets (cães e outros animais de estimação), que a maioria dos falantes acha perfeitamente normal. O argumento é que as interpretações de dog (cão) e de pet (animal de estimação), neste contexto, são de tal ordem que dog é um hipônimo de pet , em que a classe de dogs (cães) é uma sub­parte adequada da classe apropriada de pets (animais de estimação). Isto ocorre apesar do fato de a maioria dos falantes julgar que a verdade de This is a dog (Isto é um cão) não garante a verdade de This is a pet (Isto é um animal de estimação).” Como podem estas duas posições aparentemente contrárias ser reconciliadas? Elas são conciliáveis porque duas interpretações diferentes de dog estão envolvidas. A interpretação em This is a dog , therefore it is an animal (Isto é um cachorro, portanto, é um animal) envolve algum tipo de interpretação padrão ( default ) de dog (e de animal ), qualquer uma que emerja em contextos mínimos ou uma que seja desencadeada pelo domínio "lógica" evocada pelo tipo de sentença razoavelmente não familiar.A interpretação em dogs and other animals (cães e outros animais), por outro lado, é fortemente restringida pelo formato X e outros Ys, o que exige que as interpretações de X e de Y devem ser ajustadas de modo que a hiponímia se mantenha. O ajuste pode afetar ou X ou Y ou ambos: o que emerge, se não há outro contexto, é o resultado do ajustamento mais fácil, isto é, envolvendo as interpretações mais facilmente acessíveis (pode haver também um fator adicional do contextualizabilidade do resultado). Por exemplo, a interpretação de dog em dogs and other pets (cães e outros animais de estimação) é provavelmente mais específica do que a interpretação do contexto default zero, mas é facilmente acessível; em handbags and other weapons ,

32 Pet = animal de estimação. Cruse (1986) chama essa relação de para­hiponímia porque Isso é um cachorro não acarreta Isso é um animal de estimação ( It’s a dog does not entail It’s a pet ). Porém, cães e outros animais de estimação é julgada como uma sentença totalmente normal, o que coloca esse par numa zona dúbia, classificada pelo autor de para­hiponímia, 33 Since sense relations do not hold between words as such, but between specific construals of words, there is no necessary inconsistency between the normality of dogs and other pets, and the lack of entailment between dog and pet.

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no entanto, a interpretação de weapons é menos específica do que a interpretação do contexto default zero. (CROFT & CRUSE, 2004, p. 143­144) 34

Entretanto, assumem que a interpretabilidade não é infinitamente flexível. Restrições

convencionais suficientemente fortes podem evitar o surgimento de interpretações

hiponímicas. Dão o exemplo de dogs and other cats (cães e outros gatos) que é virtualmente

não interpretável em qualquer contexto imaginável. D ogs and other dogs (cães e outros cães),

por sua vez, não é aceitável, mesmo que haja leituras de cão que satisfaçam a exigência de

hiponímia.

Em suma, os autores propõem que a hiponímia seja vista como relação entre

significados contextualmente determinados e não entre itens lexicais como categorias

conceitualmente fixas. Isso significa dizer que o julgamento sobre a relação hiponímica em

um par de palavras depende da interpretação que emerge do contexto.

“Relações de sentido têm sido tradicionalmente vistas como relações entre itens que podem ocorrer em um“slot paradigmático” estritamente definido. Este ponto de vista tem validade cognitiva e comunicativa. A escolha de qualquer termo fora de um conjunto paradigmático carrega a informação implícita sobre aspectos do seu significado que são compartilhados com outras opções possíveis, informações sobre os significados que são excluídos, e isso abre um leque particular de significados mais específicos, qualquer um ou todos dos quais pode ser importante para a mensagem a ser transmitida. No entanto, a suposição tradicional de que as palavras têm significados inerentes tem como consequência que conjuntos paradigmáticos e as inter­relações entre os membros têm sido vistas como estruturas relativamente estáveis. Aqui, enquanto o ponto de vista paradigmático é aceito como válido, os itens no paradigma não são itens lexicais, mas interpretações contextuais de itens lexicais e as relações são relações entre uma interpretação particular do item realmente escolhido e interpretações potenciais de outros itens que poderiam ter sido escolhidas

34 Relations of meaning between construals of different words in the same discourse are important because they are frequently necessary for both discourse cohesion and the well­formedness of inference patterns. Take a simple example of an expression pattern whose well­formedness depends on a relation of hyponymy, such as X and other Ys. Consider the case of dogs and other pets, which most speakers find perfectly normal. The claim here is that the construals of dog and pet in this context are such that dog is a hyponym of pet, in that the class of dogs is a proper subpart of the class of pets. This is in spite of the fact that most speakers judge that the truth of This is a dog does not guarantee the truth of This is a pet. How can these two apparently contrary positions be reconciled? They are reconcilable because two different construals of dog are involved. The construal in This is a dog, therefore it is an animal involves some sort of default construal of dog (and animal), either one that emerges in minimal contexts or one that is triggered by the ‘logical’ domain evoked by the fairly unfamiliar sentence type; the construal in dogs and other animals, on the other hand, is strongly constrained by the X and other Ys format, which requires the construals of X and Y to be adjusted so that hyponymy holds. The adjustment can affect either X or Y or both: what emerges if there is no other context is the result of the easiest adjustment, that is, involving the most easily accessible construals (there may also be an additional factor of the contextualizability of the result). For instance, the construal of dog in dogs and other pets is probably more specific than the default zero context construal, but is easily accessible; in handbags and other weapons, however, the construal of weapons is less specific than the default zero context construal.

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nesse contexto.” (CROFT & CRUSE, 2004, p. 145) 35

Já as relações semânticas conhecidas como meronímia e holonímia constituem, grosso

modo, uma relação do tipo parte­todo cuja paráfrase corresponde às seguintes asserções: “X é

uma parte de Y”; “Y tem X”. Assim, para que haja relação de meronímia­holonímia, é

necessário que ambas as asserções sejam satisfeitas, como ocorre, por exemplo, nas palavras

‘tampa’ e ‘caixa’. Essas duas palavras estabelecem entre si uma relação parte­todo que pode

ser parafraseada da seguinte maneira: “ A tampa é uma parte da caixa; a caixa tem uma

tampa ”.

Dentro dos estudos linguísticos acerca das relações meronímicas, três trabalhos podem

ser considerados os mais significativos e basilares, o que os tornou ponto de partida para

inúmeros outros que os sucederam; são eles: as análises de Lyons (1977) e de Cruse (1986)

acerca da relação parte­todo e o trabalho de Winston, Chaffin & Herrmann (1987), que propõe

uma taxonomia para as relações parte­todo. Esses três textos podem ser considerados os

pilares dos estudos das relações parte­todo na linguística contemporânea.

O trabalho de Lyons (1977) destaca­se por levantar várias questões caras à

compreensão da relação parte­todo, a começar pela distinção entre hiponímia e meronímia. O

autor baseia a distinção entre hiponímia e meronímia basicamente na distinção entre ‘tipo de’

e ‘parte de’, respectivamente. Assim, um braço não é um tipo de corpo, mas uma parte do

corpo.

Aponta ainda a estreita ligação entre ‘parte­todo’ e ‘construções possessivas’,

afirmando que as relações parte­todo estão ligadas a uma subclasse particular de construções

possessivas do tipo “ o braço de John ” e “ John tem um braço ”. De fato, a paráfrase com verbo

‘ter’ será a base do teste de identificação da meronímia proposto por Cruse (1986).

Outro aspecto importante é a distinção entre parte­todo no universo biossocial e a

35Sense relations have traditionally been viewed as relations between items potentially occurring in a fairly strictly defined ‘paradigmatic slot.’ This viewpoint has cognitive and communicative validity. The choice of any term out of a paradigmatic set carries implicit information about aspects of its meaning that are shared with other possible choices, information about meanings that are excluded, and it opens up a particular range of more specific meanings, any or all of which may be important to the message being transmitted. However, the traditional assumption that words have inherent meanings has the consequence that paradigmatic sets and the interrelations among members have been viewed as relatively stable structures. Here, while the paradigmatic viewpoint is accepted as valid, the items in the paradigm are not lexical items but contextual construals of lexical items, and the relationships are relations between a particular construal of the item actually chosen and potential construals of other items that might have been chosen in that context.

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categoria linguística conhecida como meronímia. O autor chama a atenção para o fato de

serem realidades distintas e com comportamento distintos, como, por exemplo, a questão da

transitividade entre partes e todos.

“A relação parte­todo que existe entre referentes fisicamente discretos é claramente transitiva: se alguma coisa X é parte de alguma coisa Y que é parte de alguma coisa Z, então x será sempre descritível como parte de Z. Transitividade também existe, tendo devidamente em conta um certo grau de indeterminação na referência de expressões em tais casos, quando os referentes em questão não são objetos físicos, mas pontos ou regiões no espaço físico (ou no espaço de tempo). Se X é ponto ou região que é parte de uma região Y que é parte de uma região Z, então X é parte de Z. O fato de uma entidade poder ser descrita como uma parte de uma outra entidade não implica, porém, que exista uma relação parte­todo existente no vocabulário entre os lexemas usados nas expressões que se referem a estas entidades. Por exemplo, um certo objeto X pode ser referido como ‘the handle’ (a maçaneta) e ser uma parte de um outro objeto Y, que pode ser referido como ‘the door’ (a porta) e ser parte de um terceiro objeto Z, que pode ser referido como ‘the house’ (a casa). X é parte de Z (em virtude da transitividade da relação parte­todo existente entre objetos físicos). Mas sentenças como “The house has a handle” ou “There is a handle on this house” são, no mínimo, estranhas.” (LYONS, 1977, p. 36

312)

A partir da questão da transitividade levantada na passagem citada, Lyons discute a

necessidade de alguns questionamentos, inclusive da própria relevância da relação de

meronímia para a semântica linguística, o que o próprio autor responde:

“Poderia se argumentar que a questão do todo é irrelevante para a semântica linguística: que isso é tudo uma questão do nosso conhecimento geral das relações que existem entre entidades do mundo externo. Mas isso não serve. Podemos muito bem dizer, por exemplo, e da forma mais plausível que possa parecer, que ‘door’ tem um significado particular e ‘house’ um significado particular (analisável em termos de sentido e denotação) e que a relação parte­todo que foi apontada acima para o par lexical ‘door’: ‘house’ deve ser atribuída, não ao nosso conhecimento do fato puramente contingente de que todas as casas (ou todas as casas normais) tem portas. Existem, porém, numerosos lexemas nos vocabulários das línguas cujo significado não pode ser especificado independente de alguma relação de sentido parte­todo. Como poderíamos esperar analisar o significado de ‘sleeve’ ou ‘lapel’ sem evocar a relação parte­todo entre esses lexemas e ‘coat’, ‘jacket’, ‘garment’,

36 The part­whole relationship which holds between physically discrete referents is clarly transitive: if some thing x is a part of some thing y which is a part of some thing z, then x is always describable as a part of z. Transitivity also holds, due allowance being made for a certain degree of indeterminacy in the reference of expressions in such case, when the referents in question are not physical objects, but points or regions in physical space (or space­time). If x is a point or region which is part of a region y which is part of a region z, then x is a part of z. The fact that one entity may be described as a part of another entity does not imply, however, that there is a part­whole relation holding in the vocabulary between the lexemes used in expressions which refer to these entities. For exemple, a certain object x may be referred to as ‘the handle’ and be a part of another object y, which may be referred to as ‘the door’ and be a part of a third object z, which may be referred to as ‘the house’. x is a part of z (by virtue of the transitivity of the part­whole relationship holding between physical entities). But sentences like ‘The house has a/no handle’ or ‘There’s a/no handle on this house’ are, to say the last, peculiar.

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etc. (assim como as diferentes relações que existem entre entre ‘sleeve’ e ‘arm’)? Ainda mais convincentes são os conjuntos de palavras como ‘second’, ‘minute’, ‘hour’, ‘day’, ‘week’, etc. O significado de ‘day’, ‘mouth’ e ‘year’ (e talvez ‘week’) poderia ser explicado, pelo menos parcialmente, sem mencionar alguma relação parte­todo existente dentro do conjunto; e que poderia ser considerado como uma questão do fato contingente de que existem aproximadamente trinta dias em um mês lunar e entre doze e treze meses lunares em um ano. Mas é, em princípio, impossível explicar o significado de ‘second’, ‘minute’ e ‘hour’ sem especificar as relações parte­todo existente dentro do conjunto; e nós não poderíamos distinguir entre meses solares (ou meses do calendário) e meses lunares sem mencionar a relação parte­todo dentro desse conjunto de lexemas.” (LYONS, 1977, p. 313­314) 37

Numa leitura das palavras de Lyons sob outra ótica, fica nítido que o autor aponta,

obviamente de forma não explícita (e provavelmente não intencional), para uma questão cara

à discussão: a necessidade da noção de Frame para a compreensão de muitas relações

meronímicas (senão todas). Não menos importante e/ou intrigante é a questão das fronteiras

entre hiponímia e meronímia. O autor levanta uma série de questões e exemplos que mostram

que muitos casos de nomes concretos de massa, de nomes abstratos, de verbos denotando

atividades e de coletivos apresentam caráter dúbio. Argumenta que esses casos ilustram a

maneira como a relação hierárquica entre lexemas pode ser tratada ora como hiponímia, ora

como meronímia ou “ talvez como relação que é intermediária entre elas e compartilha certas

características com ambas ” . (LYONS, 1977, p. 315) 38

A maleabilidade da fronteira entre meronímia e hiponímia é, sem dúvidas, questão

importante para o melhor entendimento das relações de sentido entre as palavras no léxico.

Entretanto, por fugir demasiadamente ao objetivo central do trabalho, não me deterei na busca

37 It could be argued that the whole question is irrelevant for linguistic semantics: that it is all a matter of our general knowledge of the relations which hold between entities in the external world. But this will not do. We migth well say, for exemple, and plausibly enough it might appear, that ‘door’ has a particular meaning and ‘house’ a particular meaning (analysable in terms of sense and denotation) and the part­whole relation which was assigned above to the lexical par ‘door’ : ‘house’ should be atributed instead to our knowledge of the purely contingent fact that all houses (or all normal houses) have doors. There are, howerver, numerous lexemes in the vocabularies of languages whose meaning cannot be specified independently of some part­whole relation of sense. How could we hope to analyse the meaning of ‘sleeve’ or ‘lapel’ without invoking a part­whole relation between these lexemes and ‘coat’, ‘jacket’, ‘garment’, etc. (as well as the different relation which holds between ‘sleeve’ and ‘arm’)? Even more convincing are sets of words like ‘second’, ‘minute’, ‘hour’, ‘day’, ‘week’, etc. The meaning of ‘day’, ‘month’ and ‘year’ (and perhaps ‘week’) could be explained, at least partly, without mentioning any part­whole relations holding within the set; and it could be regarded as a matter of contingent fact that there are approximately thirty days in a lunar month and between tweelve and thirteen (lunar) months in a year. But it is in principle impossible to explain the meaning of ‘second’, ‘minute’ and ‘hour’ without specifying the patr­whole relations holding within the set; and we could not distinguish between solar months (or calendar months) and lunar months without mentioning the part­whole relations within this set of lexemes. 38 [...] perhaps as a relation which is intermediate between them and shares certain characteristics with them both.

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pela classificação da meronímia como categoria radial ou como polo prototípico num

continuum meronímia­hiponímia, mas apenas a alguns comentários sobre essa zona

intermediária entre ambas, o que será feito na seção 3.3.

Embora preso a uma análise estruturalista de cunho predominantemente descritivo e

preso às noções de referência e denotação , os problemas e, principalmente, as considerações 39

levantadas por Lyons são fundamentais, pois mostram de maneira lúcida (a) a complexidade

do assunto e (b) a necessidade de uma visão que vá além das noções de referência e denotação

nos moldes mais tradicionais, apontando para a urgência das noções de Frame e de

categorização radial. Longe de apresentar respostas ou propor soluções, a análise de Lyons é

basicamente um levantamento de uma série de problemas acerca da relação parte­todo. Tais

questões podem ser consideradas o pontapé inicial para uma série de propostas posteriores.

O trabalho de Cruse (1986), por sua vez, retoma muitos aspectos problematizados em

Lyons (1977), com a pretensão de propor soluções aos problemas das relações meronímicas.

Um avanço fundamental é a definição de meronímia. Para isso, o autor inicia pela distinção

entre ‘part’ (parte) e ‘piece’ (pedaço), em que, para ele, um pedaço:

(a) pressupõe a noção de estabilidade topológica (não se tem pedaço de vapor, por exemplo);

(b) deve ser espacialmente contínuo;

(c) é uma divisão arbitrária de um todo;

(d) não se enquadra em subclasses com regularidade de atributos ou qualidades o suficiente

para rótulos lexicais.

Já a noção de parte, compartilha com a noção de pedaço a estabilidade topológica e a

continuidade espacial. Por outro lado, partes distinguem­se por apresentar:

(a) autonomia;

(b) limites não arbitrários; e

(c) funcionalidade em relação ao todo.

Cruse, assim como Lyons, assume que, embora haja estreita correspondência entre

39O que não poderia ser diferente para a época em que o texto foi escrito e, sobretudo, pelo viés analítico adotado pelo autor.

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uma hierarquia parte­todo extralinguística e a hierarquia lexical correspondente, essas duas

instâncias não podem ser confundidas. O autor fala, então, de meronímia verdadeira,

determinada por critérios puramente linguísticos, e uma “ hierarquia parte­todo etiquetada ”

que são os elementos extralinguísticos, ou seja, os elementos do mundo que formam uma

hierarquia parte­todo. Toma como objeto de discussão a meronímia verdadeira, que define,

então, da seguinte maneira:

“X é merônimo de Y se e somente se sentenças com a forma ‘ Um Y tem Xs/um X’ e ‘ Um X é

parte de um Y’ são normais quando os sintagmas nominais um X e um Y são interpretados

genericamente.” (CRUSE, 1986, p. 160)

Cabe ressaltar que, para se afirmar que um par de palavras mantém relação

meronímica, é preciso que ambas as asserções da definição sejam satisfeitas. Assim, as

palavras ‘roda’ e ‘carro’ mantém relação meronímica, uma vez que o teste é plenamente

satisfeito: “O carro tem roda” e “A roda é parte do carro”. Segundo o autor, essa é uma

condição necessária para que não se inclua pares como esposa­marido, em que apenas uma

das asserções seria gramaticalmente aceita: “A esposa tem um marido”, ?“O marido é parte da

esposa”.

Com relação ao problema da transitividade, questão já levantada por Lyons, Cruse

aponta dois fatores que geram falha nesse parâmetro. O primeiro é o que chama de domínio

funcional , definido como o elemento mais inclusivo dentro do qual uma parte funciona. O

domínio funcional de ‘ handle ’ (maçaneta), por exemplo, é tudo o que se move quando uma

força manual apropriada é aplicada a ‘ handle ’. Argumenta, então, que, embora uma porta

possa ser parte da casa, handle não desempenha qualquer função direta com relação a ela. Já

‘ cuff ’ (punho), tem a função de adornar. Tal função se relaciona tanto à manga, quanto à

jaqueta como um todo, o que, segundo o autor, torna a relação ‘ cuff : jacket ’ transitiva, ao

contrário da relação entre ‘ handle ’ e ‘ house ’, que é intransitiva.

O segundo fator é o que chama de ligamento (attachment ). O autor estabelece 40

oposição entre partes integrais e parte ligadas. Argumenta que a noção do todo será destruída

se estiver faltando uma parte integral, mas o mesmo não ocorre caso esteja faltando uma parte

40 Attachment pode ser definido como “uma parte adicional ou de extensão, que é ou pode ser ligado a alguma coisa para realizar uma função específica” (CRUSE, 1986, p. 167).

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ligada. O exemplo dado por ele é o seguinte:

(10)

­ did you find the whole arm? (você encontrou o braço inteiro?)

­ Yes, but the hand was missing (Sim, mas a mão estava faltando)

­ (?) Yes, but the forearm was missing (? Sim, mas o antebraço estava faltando)

Os critérios para a distinção entre partes integrais e partes ligadas estão sintetizados abaixo:

1. a noção do todo será destruída se estiver faltando uma parte integral, mas o mesmo

não ocorre caso esteja faltando uma parte ligada.

­ did you find the whole arm? (você encontrou o braço inteiro?)

­ Yes, but the hand was missing (Sim, mas a mão estava faltando)

­ (?) Yes, but the forearm was missing (Sim, mas o antebraço estava faltando)

2. é normal que um ligamento seja descrito como “ligado a” uma entidade maior

chamada conjunto . Isso não ocorre com partes integrais.

Uma mão é ligada a um braço.

? A palma é ligada à mão

3. Um ligamento é, tipicamente, uma parte integral do todo em geral, de modo que, por

exemplo, um corpo humano não pode ser descrito como completo, se as mãos estão

faltando, nem as mãos podem ser descritas como sendo ligadas ao corpo.

Cruse, então, propõe como explicação para o problema da transitividade o fato de a

relação de parte ser transitiva apenas quando partes integrais estão em jogo; em outras

palavras, se X é uma parte integral de Y, então uma parte de X será também considerada como

parte de Y. Com ligamentos, porém, essa transitividade não ocorre, pois para ele “ uma parte

de um ligamento não conta como parte do conjunto; daí dedo, por exemplo, não contar como

parte do braço” (CRUSE, 1986, p. 168). 41

(11)

? Um braço tem dedos

41 [...] a part of an attachment does not count as a part of the stok; hence finger, for instance, does not count as part of arm.

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? Um dedo é uma parte de um braço

A falha na transitividade de (11) segue a lógica abaixo:

1. ‘mão’ tem como conjunto ‘braço’.

2. ‘dedo’ é parte de ‘mão’, que não é uma parte integral, mas sim um ligamento.

3. Sendo assim, ‘dedo’ não pode ser parte do conjunto de ‘mão’, ou seja, não pode ser

parte de ‘braço’.

Outra questão para a qual o autor chama a atenção é para o fato de haver uma

centralidade e uma perifericidade nas relações meronímicas. Assim como Lyons, Cruse, sem

ser explícito, aponta para a necessidade de se classificar as relações meronímicas em termos

de prototipicidade e radialidade ­ muito provavelmente sem intenção de fazer referência direta

a esse tipo de abordagem. Embora aponte para essa questão, a discussão se encaminha apenas

para uma espécie de “pré­tipologia” das relações parte­todo.

Estou utilizando o termo pré­tipologia no sentido de destacar dois pontos: o primeiro é

o fato de o autor não se propor explicitamente a fazer uma tipologia das relações parte­todo,

tampouco o faz; mas apenas um levantamento do que chama de ‘parentes próximos’ da

relação parte­todo através de identificação das “ dimensões de variação ”. O segundo é o fato

de muitas das questões levantadas por Cruse serem retomadas e organizadas posteriormente

no trabalho de Winston, Chaffin & Herrmann (1987), que foi, até onde se sabe, a primeira

proposta explícita de uma tipologia das relações parte­todo.

Para o autor, a relação parte­todo nuclear é aquela em que apresenta “ partes bem

diferenciadas e definidas de objetos físicos coesos e claramente individualizados ” (CRUSE, 42

1986, p. 172). Assume quatro dimensões de variação, a saber, concretude, grau de

diferenciação entre as partes, integração estrutural e nomes contáveis vs. nomes de massa .

Essas quatro dimensões, podemos dizer, formariam uma família de relações meronímicas. Em

outras palavras, tais dimensões são responsáveis por diversas relações meronímicas não

prototípicas. Limita­se a fazer, então, breve debate sobre as relações de parte­todo em

entidades abstratas (como tempo, ações, processos e atividades) e coletivas (como grupos,

coleções e classes).

42 [...] well­differentiated parts of clearly individuated and cohesive physical objects.

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Cruse finaliza sua análise distinguindo meronímia e taxonomia ­ mais uma questão já

levantada por Lyons ­ cuja diferença fundamental entre as duas está no modo como retratam

os fatos extralinguísticos, conforme o que segue:

A classe denotada pelos termos em uma taxonomia forma uma hierarquia mais ou

menos isomórfica com a hierarquia lexical correspondente. Por outro lado, as classes

denotadas pelos elementos de uma meronímia (dedos, pernas, cabeças, etc..) não são

hierarquicamente relacionadas, ou seja, a estruturação hierárquica de uma meronímia

não se origina em uma hierarquia de classe;

A meronímia tem ligação mais estreita com a realidade concreta do que a taxonomia;

As classes denotadas pelos termos de um merônimo são formadas mediante associação

com partes análogas (ou seja, o nariz do Pedro, o nariz da Maria, o nariz da Paula,

etc..) de todos isomórficos (o corpo do Pedro, o corpo da Maria, o corpo da Paula,

etc);

Correspondendo a hierarquia taxonômica existe uma hierarquia de classes, ao passo

que correspondendo à hierarquia parte­todo existe uma classe de hierarquias;

A meronímia é menos bem definida e menos bem estruturada do que a taxonomia; e,

por fim,

a meronímia é menos coesa devido à frequência de hipo­ e superrelações (no caso 43

hipo­merônimos e super­merônimos).

Apesar de mais estreitamente ligada ao mundo físico concreto, o autor ressalva que

não se deve subestimar o valor do elemento conceitual da relação parte­todo na relação

meronímia­holonímia. Elas não são apenas propriedades patentes de objetos físicos. Decidir

se dedo é parte do braço não deve ser resolvido observando corpos humanos. Para o autor,

43 Cruse (1986, p. 95) define hipo e super relações nos seguintes termos: “ Suponha que alguma unidade lexical X está em uma relação R para outra unidade lexical Y. Se toda ocorrência de X está em relação R para Y, e toda ocorrência de Y está em relação R para X, então nós dizemos que X é um R congruente de Y. Se toda ocorrência de X está em relação R para Y, mas existem ocorrências de Y que não estão em relação R para X, então dizemos que X é hipo­R de Y e Y é super­R de X. ”. Um exemplo de hipo e super relação com merônimos é o casos de finger (dedo da mão), toe (dedo do pé) e nail (unha). Em português, existe congruência entre ‘dedo’ e ‘unha’, o que nos permite dizer que ‘dedo’ é holônimo de ‘unha’ e ‘unha’ é merônimo de ‘dedo’. Já em inglês, há duas palavras distintas ( finger e toe ) em relação de holonímia com uma única palavra (nail) que é merônimo de ambas. Aplicando o caso à definição de Cruse, temos: Toda ocorrência de finger está em relação R (holonímia) para nail , mas existem ocorrências de nail que não estão em relação R (meronímia) para finger . Então finger é hipo­holônimo de nail e nail é super­merônimo de finger .

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isso é, antes de tudo, uma questão linguística. Super­meronímia e hipo­meronímia, por

exemplo, são questões de semântica lexical em vez de propriedades de objetos físicos.

Com relação às semelhanças, a passagem abaixo é bastante elucidativa.

“Ambas envolvem um tipo de sub­divisão, uma espécie de inclusão entre a entidade que sofreu a divisão e os resultados da divisão; e um tipo de exclusão entre os resultados da divisão. Uma taxonomia pode ser pensada em termo de parte­todo (embora o inverso não seja verdadeiro): uma classe pode ser vista como um todo cujas partes são suas sub­classes. Correspondente a cada um dos nomes comuns constituindo um tipo de taxonomia, existe um nome próprio rotulando a classe como um indivíduo. Assim, ao lado de ‘cão’ e ‘gato’, temos ‘a espécie Cão’ e ‘a espécie Gato’. (...) Uma taxonomia pode, desta maneira, ser transformada em uma meronímia, demonstrando, sem dúvida, que existe uma íntima relação entre as duas. Seria possível que elas sejam manifestações alternativas de um único princípio subjacente?[grifo meu] . Até este ponto, isso é plausível: em ambos os casos, a sub­divisão é realizada de modo a criar elementos em que dois parâmetros são maximizados, a saber, coesividade interna e distintividade externa. No caso de classes, coesividade consiste no grau de semelhança entre membros. Nas partes, coesividade deve ser interpretada como integridade física. Distintividade nas classes significa atributos não compartilhados. Nas partes, significa não conexão. Este princípio duplo trabalha muito bem tanto para meronímia quanto para taxonomia, e expressa, de modo satisfatório, a íntima conexão entre as duas.” 44

(CRUSE, 1986, p. 179)

O trabalho de Cruse (1986) se destaca por ter sido a primeira tentativa mais concreta

de solucionar os problemas das relações meronímicas, propondo uma definição e critérios

objetivos para a classificação da relação semântica entre pares de palavras. Percebe­se,

também, a nítida tentativa de propor uma solução para os problemas apontados por Lyons

(1977), como a questão da distinção entre a relação parte­todo no universo biossocial e a

categoria linguística meronímia, a questão da transitividade e os limites categoriais entre

meronímia­holonímia e hiponímia­hiperonímia. Embora, muitas vezes, prenda­se exatamente

aos mesmos exemplos e problemas de Lyons, como o polêmico caso de ‘ handle’ , avança por

44 Both involve a kind of sub­division, a species inclusion between the entity undergoing division and the results of the division, and a type of exclusion between the results of the division. Any taxonomy can be thought of in part­whole terms (although the converse is not true): a class can be looked on as a whole whose parts are its sub­classes. Corresponding to each of the common nouns constituting a typical taxonomy, there exists a proper noun labelling the class as an individual. Thus alongside 'dog' and 'cat', we have the species Dog ' and the species Cat. (...) A taxonomy can in this way be transformed into a meronymy, demonstrating, surely, that there is an intimate connection between the two. Could it be that they are alternative manifestations of a single underlying principle? Up to a point, this is plausible: in both cases, sub­division is carried out in such a way as to create elements in which two parameters are maximised, namely, internal cohesiveness and external distinctiveness. In the case of classes, cohesiveness consists in the degree of resemblance between members; in parts, cohesiveness is to be interpreted as physical integrity. Distinctness in classes means unshared attributes; in parts, it means unconnectedness. This dual principle works quite well for both meronymy and taxonomy, and expresses in a satisfying way the close connection between the two.

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fazer uma análise muito mais detalhada.

O terceiro trabalho digno de nota é o de Winston, Chaffin & Herrmann (1987) que

tentam avançar em relação ao trabalho de Cruse (1986) ­ com o qual mantêm constante

diálogo ­ no sentido de preencherem algumas lacunas e traçar generalizações mais

interessantes em relação ao último.

Os autores delimitam seu foco de análise da pesquisa na “ relação expressa pelo termo

Inglês 'parte de' como em “O X é parte do Y”, “X é parcialmente Y”, “Xs são partes de Ys”,

“X é uma parte de Y”, “As partes de um Y incluem os Xs, Zs...” e expressões similares (...) ” . 45

(WINSTON et. al., 1987, p. 418). Propõem­se, basicamente, a responder três questões: 1­

Existem muitas famílias distintas de relações meronímicas ou apenas um tipo geral? 2­ Como

as relações meronímicas são distinguidas de outras relações? 3­ Relações meronímicas são

sempre transitivas?

A primeira questão é um problema já timidamente apontado por Cruse no seu debate

sobre ‘parentes próximos’ das relações parte­todo. As outras duas remontam a Lyons e foram

também levantadas por Cruse. Nesse trabalho, porém, recebem a importância de objetivo

central. Outro objetivo da investigação é distinguir meronímia de outras relações semelhantes,

como a posse, a atribuição, e inclusão de classes.

Mediante critérios para distinção entre tipos de relação meronímica, argumentam em

prol da meronímia como um conjunto de relações e não apenas um tipo único. Podemos dizer

que os autores entendem a meronímia como uma família de relações. Propõem seis tipos

distintos, a saber:

1. componente­objeto integral (pedal­bicicleta);

2. membro­coleção (navio­frota);

3. porção­massa (fatia­torta);

4. material­objeto (aço­carro);

5. característica­atividade (pagar­comprar); e

6. local­área (Everglades­Florida).

45 [...] relation expressed by the English term “part of,” as in, “The X is part of the Y,” “X is partly Y,” “X’s are part of Y’s,” “X is a part of Y, ” “The parts of a Y include the Xs, the zs...,” and similar expressions.

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Para os autores, as relações meronímicas diferem de três maneiras: relação entre a

parte e o todo em termos de funcionalidade [± funcional], relação entre a parte e o todo em

termos de identidade [± homeômero] e relação entre a parte e o todo em termos de

separabilidade da(s) parte(s) em relação ao todo [± separável], gerando a taxonomia a seguir:

tipo de relção parte­todo

[funcional] [homeômero] [separável] exemplo

componente­objeto integral

+ ­ + pedal­bicicleta

membro­coleção ­ ­ + navio­frota

porção­massa ­ + + fatia­torta

material­objeto ­ ­ ­ aço­carro

característica­atividade + ­ ­ pagar­comprar

local­área ­ + ­ Everglades­Florida

Quadro 3: Taxonomia das relações meronímicas

Embora não usem explicitamente o termo ‘traços semânticos’, percebe­se,

nitidamente, que é uma proposta baseada em traços. Cabe ressaltar, também, que

funcionalidade, identidade e separabilidade são critérios que mostram o íntimo diálogo entre o

trabalho dos autores e o texto de Cruse (1986). Este, porém, aborda tais características

diluidamente ao longo do texto, mas sem uma amarra final que as caracterize como traços

definidores de classes.

A relação ‘componente­objeto integral’ é aquela em que um tipo particular de todo

(objeto integral) é dividido em componentes, conforme os exemplos apresentados pelos

autores repetidos aqui.

(12a) A handle is part of a cup (A alça é parte de uma xícara).

(12b) Wheels are parts of cars (As rodas são partes de carros).

(12c) The refrigerator is part of the kitchen (O refrigerador é parte da cozinha).

(12d) Chapters are parts of books (Os capítulos são partes de livros).

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(12e) A punchline is part of a joke (Uma punchiline é parte de uma piada) 46

(12f) Belgium is part of NATO. (Bélgica é parte da OTAN ) 47

(l2g) Phonology is part of linguistics (Fonologia é parte da linguística)

Há a seguinte ressalva feita por eles:

Incluídos nesta categoria estão alguns sentidos bastante especializados de "parte", como quando falamos de "a parte da viola" em uma sinfonia, ou uma "parte" em uma peça de teatro. Uma vez que peças de teatro e sinfonias são organizações padronizadas cujas naturezas são definidas por suas estruturas, também chamamos essas "partes" componentes. Objetos que podem ter componentes, nesse sentido, pode ser tanto objetos físicos concretos (xícaras), montagens (bicicletas), objetos de representação (livros, peças de teatro, sinfonias), objetos abstratos (linguística, significados), organizações (IBM, OTAN) ou os componentes de cada um destes tipos de coisas. (WINSTON et. all., 1987, p. 422). 48

No segundo tipo (membro­coleção), “ o membro de uma coleção difere do componente

em não exigir que os membros desempenhem uma função particular ou possuam um arranjo

estrutural particular em relação a si e às suas totalidades ” . (WINSTON et. all., 1987, p. 49

423).

(13a) A tree is part of a forest (Uma árvore é parte da floresta).

(13b) A juror is part of a jury (Um jurado é parte de um júri).

(13c) This ship is part of a fleet (Este navio é parte de uma frota).

Os autores se preocupam em distinguir a relação membro­coleção da relação

membro­classe, pois esta não é, segundo eles, uma relação meronímica como aquela. Dão

46 A frase final ou sentença de uma piada ou história, proporcionando o humor ou algum outro elemento crucial. 47 North Atlantic Treaty Organization: uma associação de países europeus e norte­americanos, formada em 1949 para a defesa da Europa e do Atlântico Norte contra a ameaça de agressão soviética. Em 2005, a aliança foi composta por 26 países, incluindo várias nações da Europa Oriental. O objetivo da NATO é salvaguardar os países membros por meios políticos e militares. 48Included in this category are some rather specialized senses of “part” as when we speak of “the viola part” in a symphony, or a “part” in a play. Since plays and symphonies are patterned organizations whose natures are defined by their structures, we also call such “parts” components. Objects which can have components, in this sense, may be either concrete physical objects (cups), assemblies (bicycles), representational objects (books, plays, symphonies), abstract objects (linguistics, meanings), organizations (IBM, NATO) or the components of each of these types of things. 49 Membership in a collection differs from componenthood in not requiring that members perform a particular function or possess a particular structural arrangement in relation to each other and to their wholes.

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como exemplo de membro­classe “ Fido is a dog ” em que não se tem uma relação expressa 50

por “parte de”, mas por “é um(a)”. Na classe, o membro é determinado com base em

similaridade a outros membros, ao passo que, na coleção, o membro é determinado com base

em proximidade espacial ou por conexão social.

A relação porção­massa difere dos dois tipos anteriores por apresentar partes

homeômeras tanto em relação a outras partes como em relação ao todo, como em “ This slice

is part of a pie (Esta fatia é parte de uma torta)”.

A quarta relação, material­objeto, é expressa por “is partly” (é parcialmente...; é, em

parte, ...). Argumentam que há, nessa relação, a ideia de que um tipo particular de substância

constitui uma porção do material total de que alguma coisa é feita. Quando algo é feito de um

único material, não é possível usar “is partly” como em 14 abaixo:

(14a) The lens is made of glass (A lente é feita de vidro).

(14b) *The lens is partly glass (A lente é, em parte, de vidro)

Para característica­atividade, são dados os seguintes exemplos:

(15a) Paying is part of shopping (Pagar é parte de compras)

(15b) Bidding is part of playing bridge (Lance de carta é parte de jogar bridge ) 51

(15c) Ovulation is part of the menstrual cycle (A ovulação é parte do ciclo menstrual)

(15d) Dating is part of adolescence (Namorar é parte da adolescência)

Segundo os autores, característica­atividade “ é um tipo de relação meronímica

indicada pelo uso de “parte” para designar as características ou fases de atividades ou

processos ” . (WINSTON et. all., 1987, p. 426). Ressalvam que essa relação não se enquadra 52

na definição de meronímia­holonímia de Cruse (1986) porque não pode ser expressa em 53

50 Nome genérico usado para cão de estimação. 51 Um tipo de jogo de carta 52 [...] type of meronymic relation is indicated by the use of “part” to designate the features or phases of activities and processes. 53 Para Cruse (1986), um merônimo deve atender a duas asserções simultaneamente: “X é parte de Y”; “Y tem X”.

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sentenças do tipo “Y tem X”, como * Shopping has paying (*Comprar tem pagar).

O sexto e último tipo (local­área) é exemplificado por:

(16a) The Everglades are part of Florida (Os Everglades são parte da Flórida). 54

(16b) An oasis is a part of a desert (Um oásis é uma parte de um deserto)

(16c) The baseline is part of a tennis court (A linha de base é parte de uma quadra de tênis)

Winston et. all. (1987) se preocupam também em distinguir as relações meronímicas

das relações não meronímicas com as quais geralmente são confundidas, a saber, Inclusão

Topológica, Hiponímia, Atribuição, Ligação e Posse.

A Inclusão Topológica é definida como relação entre um contêiner, área ou duração

temporal e o que está contido nele(a), conforme os exemplos abaixo.

(17a) The wine is in the cooler (O vinho está no refrigerador)

(17b) The prisoner is in the cell (O prisioneiro está na cela)

(17c) West Berlin is in East Germany (Berlim Ocidental está na Alemanha Oriental)

(17d) The meeting is in the morning (A reunião é na parte da manhã)

Argumentam que, nesses casos, o que seriam as partes não têm conexão com seus

respectivos todos . Diferente de uma relação entre coração­corpo, por exemplo, em que o

coração está envolvido pelo corpo, está inserido dentro do corpo, porém mantendo conexão

com este, na relação vinho­refrigerador não há essa conexão.

A Hiponímia se distingue da meronímia por ser expressa por “tipo de”, ao contrário da

meronímia expressa por “parte de”.

(18a) Cars are a type of vehicle. (Carros são um tipo de veículo)

(18b) Roses are flowers (Rosas são flores)

(18c) Theft is a crime (Roubo é um crime)

(18d) Fear is an emotion (Medo é uma emoção)

54 Uma vasta área de sapal e manguezais costeiros no sul da Flórida, parte da qual é protegida como parque nacional.

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Segundo os autores, na relação de Atribuição , a confusão reside no fato de que,

quando os indivíduos são solicitados a listar propriedades de objetos, eles dão tanto atributos

como partes. Um dos exemplos de atribuição dado pelos autores é “ Towers are tall ” (Torres

são altas).

Outra relação posta em contraste com a meronímia é a Ligação (Attachment). Para

eles, pares como brinco­orelha e linha de pesca­gancho podem ser confundidos com

meronímia. Dão os exemplos “ Earings are attached to ears ” (brincos são ligados à orelha) e

“ Fingers are attached to hands ” (Dedos são ligados às mãos). Argumentam que embora

dedos sejam ligados às mãos, são também parte delas, ao contrário do que ocorre numa

relação brinco­orelha. Os autores não deixam explícito, mas parece que o critério de distinção

nesses casos é o da conexão , o mesmo usado na relação vinho­refrigerador (inclusão

topológica).

Em Posse , dão os exemplos “ A millionaire has money ” (Um milionário tem dinheiro)

e “ Jenny has a bicycle ” (Jenny tem uma bicicleta) e afirmam que a confusão com a

meronímia ocorre porque esta pode ser, também, expressa por “tem X”, como em “A bicicleta

tem pedal” e ressalvam:

“Por fim, meronímia pode ser confundida com relação de posse como in, (12a) A milionário tem dinheiro, (12b) O autor tem os direitos autorais, (12c) Jenny tem uma bicicleta. Meronímia também pode frequentemente ser expressa num frame de “tem um(a)”, (12d) Uma bicicleta tem rodas. Mas, em (12a­c) o “tem” é o tem de posse, enquanto que em (12d) o “tem” é, na verdade, elipse de “tem uma parte”. 55

(WINSTON et. al., 1987, p. 429)

Nesse ponto, vale chamar atenção para o fato de que os critérios de distinção

atribuídos pelos autores parecem ser bastante heterogêneos, pois ora se recorre ao conceito de

conexão , ora agarra­se à polissemia do verbo ‘ter’, que nada mais é do que um verbo que 56

aparece numa tentativa de parafrasear uma relação semântica entre dois itens lexicais.

Comparando, por exemplo, “O vinho está no refrigerador” (contêiner) e “Berlim

55 Finally, meronymy can be confused with the ownership relation as in, (12a) A millionaire has money, (12b) The author has the copyright, (12c) Jenny has a bicycle. Meronymy can also frequently be expressed in the “has a” frame: (12d) A bicycle has wheels. But, in (12a­c) the “has” is the has of ownership, while in (12d) the “has” is really elliptical for “has as a part.” 56O conceito de conexão foi muito provavelmente tomado das considerações de Cruse. Entretanto, nem Cruse nem Winston, et. all. definem o que vem a ser exatamente conexão, limitando ao exemplo da maior conexão que os órgãos do corpo têm em relação ao todo, se comparado com objetos no interior de um recipiente.

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Ocidental está na Alemanha Oriental” (área), classificados como Inclusão Topológica, a casos

como “O refrigerador é parte da cozinha” e “Um oásis é uma parte de um deserto”,

classificados, respectivamente, como parte­todo componente­objeto integral e parte­todo

local­área , aponto três grandes problemas: em primeiro lugar, não está bem definido o que

consideram um contêiner, uma vez que a relação entre refrigerador e cozinha e entre oásis e

deserto também pode ser vista como um contêiner. Os autores tentam diferir os dois casos

pelo critério da conexão. Entretanto, não são definidos critérios objetivos para estabelecer se

há ou não conexão entre o contido e o contendo. Afinal, o que torna o par

refrigerador­cozinha mais conexo (ou integrado) que vinho­refrigerador?

Em segundo lugar, e mais importante, a relação parte­todo deve ser plenamente

distinguida da relação de continência, ou, pelo menos, a relação que uma mantém com a outra

deve ficar plenamente explicitada.

O terceiro problema da análise é a distinção de relações semânticas com base num

elemento altamente polissêmico, como é o caso do verbo ‘ter’, e num conceito tão difuso

como o de elipse, uma vez que pressupõem que todos os falantes, uniformemente, interpretam

da mesma forma uma suposta categoria foneticamente vazia. Tais critérios não parecem

sólidos o suficiente para validar a relação de parte­todo entre dois elementos, tampouco

distinguir posse de meronímia. Outras considerações acerca do trabalho de Winston et. al,

assim como de Lyons e Cruse, são feitas na seção 3.3.

Aspecto importante abordado no trabalho de Winston et. al. é o problema da vagueza e

generalidade do termo “parte”. Afirmam que “ o termo ‘parte’ é usado para expressar uma

variedade bastante distinta de relações semânticas ” (WINSTON et. al., 1987, p. 430). 57

Ressalvam que “ parte ” é apenas um termo mais geral que pode ser usado para expressar

vários tipos de relação meronímica. Os autores inclusive preferem usar outros termos para

tratar de algumas relações, como “componente” para partes de objeto integral, “membro” para

parte de coleções e grupos, “porção” para partes de massas, “característica” ( features ) para

partes atividades, “local” para partes de áreas, entre outros. Apontam também a questão do

amplo número de termos altamente especializados, por exemplo, "cacos", "dízimo", "zona" e

cerca de 400 sinônimos para "parte" listados em Roget’s Thesaurus (1962). Para os autores,

termos de parte especializados podem, algumas vezes, serem usados para distinguir relações

57 The term “part” is used to express a variety of quite distinct semantic relations.

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meronímicas, como mostram os exemplos abaixo:

(19a) Simpson is a member of the Philosophy Department (Simpson é um membro do

departamento de filosofia)

(19b) *Simpson is a portion of the Philosophy Department (*Simpson é uma porção do

departamento de filosofia)

(19c) The carburetor is a component of the engine (O carburador é um componente do motor)

(19d) *The carburetor is a member of the engine (*O carburador é um membro do motor)

E sugerem, sem entrar em nenhum detalhe, que “ é possível que termos de parte

especializados correspondam e rotulem relações meronímicas distintas ” . (WINSTON et. al., 58

1987, p. 430).

Estou de acordo com os autores ao afirmarem que a vagueza e a generalidade do termo

‘parte’ traz problemas à classificação. De forma análoga, a polissemia do verbo ‘ter’ também

traz problemas ao teste de Cruse (1986) “X é parte de Y”; “Y tem X”. Essa questão será

abordada com mais detalhes na seção 3.3.

Os autores reservam uma seção destinada a explicar o problema da transitividade

(WINSTON et. al., 1987, p. 431­434). De forma bem simples e sucinta, segundo os autores, o

problema da transitividade surge quando:

(a) diferentes tipos de meronímia ocorrem nas duas premissas de um silogismo (cf. 20);

(b) em relação às premissas, a conclusão de um silogismo contém a relação mais baixa na

hierarquia das relações de inclusão (cf. 21), segundo a seguinte hierarquia proposta:

INCLUSÃO DE CLASSE > INCLUSÃO MEROLÓGICA > INCLUSÃO ESPACIAL 59

(20a) Simpson’s arm is part of Simpson (O braço de Simpson é parte de Simpson)

(20b) Simpson is part of the Philosophy Department (Simpson é parte do Departamento de

Filosofia)

(20c) *Simpson’s arm is part of the Philosophy Department (*O braço de Simpson é parte do

Departamento de Filosofia)

58 It is possible that specialized part terms correspond to and label distinct meronymic relations. 59 Lê­se, inclusão de classe é maior que inclusão merológica que é maior que inclusão espacial.

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(21a) Wings are parts of birds (Asas são partes dos passáros) → inclusão merológica

(21b) Birds are creatures (Passaros são criaturas) → inclusão de classe

(21c) Wings are parts of creatures (Asas são partes das criaturas) → inclusão merológica

(21d) *Wings are creatures (*Asas são criaturas) → inclusão de classe

A explicação para a intransitividade e consequente inaceitabilidade de (20c) é que

entre braço e Simpson há uma relação meronímica do tipo componente­objeto integral, ao

passo que a relação em (20b) é do tipo membro­coleção/grupo. Isso faz com que (20c) seja

inaceitável, já que a transitividade só ocorre com relações meronímicas de mesma natureza.

Já a normalidade de (21c) decorre do fato de a sentença apresentar a relação de

inclusão mais baixa dentre as duas relações das premissas, ao contrário de (21d), em que a

sentença apresenta a relação mais alta, gerando intransitividade e consequente

inaceitabilidade.

O trabalho de Winston et. al. apresenta diversos diálogos com Cruse (1986), que se

expressam na crítica ao conceito de Ligação utilizado pelo autor para dar conta da relação

‘dedo’ > ‘mão’ > ‘braço’ e na tentativa de uma proposta mais abrangente e sistemática do

problema da transitividade e da distinção entre meronímia e outras relações. A própria

classificação em seis tipos de relações meronímicas proposta pelos autores é uma retomada de

questões já levantadas por Cruse como o problema dos ‘parente próximos’, as relações de

parte­todo em entidades abstratas e coletivas e o problema dos locativos. Mesmo numa

abordagem que categoriza discretamente os grupos por meio de conjunto de traços

semânticos, o trabalho se destaca, sobretudo, por propor de forma mais sistemática a noção de

meronímia como família de relações e não como categoria unitária.

3.2. Mais um pouco sobre metonímia: uma pequena digressão necessária

Como exposto na seção anterior, o termo meronímia remonta à semântica lexical

estruturalista. É usado para relações semânticas entre dois itens lexicais cujos respectivos

significados mantêm uma relação de parte e todo, como nos pares ‘roda’ e ‘carro’ ou ‘cabeça’

e ‘corpo’.

Metonímia, por sua vez, difere bastante de meronímia, a começar pelo fato de não se

restringir à relação de parte­todo; há vários tipos de metonímia descritos na literatura

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linguística, a exemplo de conteúdo­continente e produtor­produto, como destacado na seção

2.2. Além disso, e sobretudo, metonímia não é uma relação lexical, ou seja, não é uma relação

semântica entre palavras do léxico.

Segundo Truszczynska (2002, p. 222), uma das definições mais antigas de metonímia

é atribuída ao tratado Rhetorica ad Herennium, de autor anônimo. Nesse tratado, metonímia é

caracterizada como “ um tropo que toma sua expressão de coisas próximas e vizinhas (‘ab

rebus propinquis et finitimis’) pelas quais nós podemos compreender uma palavra que não é

denominada pela sua própria palavra ” (TRUSZCZYNSKA, 2002, p. 222). 60

Percebe­se que essa caracterização, dada no final dos anos 80 a.C., já aponta para a

noção de metonímia em termos de contiguidade e não difere tanto de muitas definições de

metonímias contemporâneas, como a de Geeraerts (1994, p. 2477), que concebe a metonímia

como uma ligação semântica entre dois sentidos de um item lexical que é baseado numa

relação de contiguidade entre os referentes da expressão em cada um dos sentidos.

Ao longo dessa tradição milenar, muitos tipos de metonímia foram postulados, como,

por exemplo, ‘parte pelo todo, ‘produtor pelo produto’, ‘objeto usado pelo usuário’,

‘controlador pelo controlado’, ‘instituição por pessoa responsável’, ‘o lugar pela instituição’,

‘o lugar pelo evento’, entre outros. Quanto a isso, Peirsman & Geeraerts (2006), conforme

discutido na seção 2.2., fizeram um levantamento de 24 tipos de metonímias.

Foi a partir do trabalho de Lakkof & Johnson (1980) que os estudos sobre metonímia

ganharam novos rumos. Em primeiro lugar, metonímia passa a ser vista como propriedade do

pensamento, ou seja, como um processo cognitivo, e não mais apenas como recurso estilístico

ou recurso meramente linguístico. Em segundo, passa­se a diferenciar metáfora de metonímia

em termos de domínios semânticos envolvidos, em oposição à distinção tradicional baseada

em contiguidade vs. similitude.

Nessa nova visão, metonímia passa a ser definida como um processo de transferência

dentro de um mesmo domínio, ao passo que a metáfora transpassa os limites do domínio,

cruzando domínios distintos. A mudança semântica via metonímia, então, se dá por relação

entre significados que estão dentro de um mesmo domínio cognitivo.

Segundo Radden & Kövecses (1999, p. 21) " a metonímia é um processo cognitivo em

que uma entidade conceitual, o veículo, fornece acesso mental a outra entidade conceptual, o

60 [...] is a trope that takes its expression from near and close things (‘ab rebus propinquis et finitimis’) and bay which we can comprehend a thing that is not denominated by its proper word”

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alvo, dentro do mesmo modelo cognitivo idealizado ” . Tal definição pode resumir a noção de 61

‘abordagem do domínio único’ para a metonímia.

A maioria dos linguistas cognitivos adota a abordagem do domínio único; alguns

estudiosos, porém, têm proposto outras abordagens. Ruiz de Mendoza (2000), por exemplo,

propõe que o mapeamento metonímico pode ser reduzido a dois tipos: a fonte da operação

metonímica está no alvo (metonímia fonte­no­alvo) ou o alvo está na fonte (metonímia

alvo­na­fonte).

Um fato importante a ser destacado é que, tanto na abordagem mais tradicional,

quanto em abordagens de vanguarda, metonímia é caracterizada como uma relação ‘ stand

for ’, do tipo X está por Y, em que uma entidade é usada para representar outra, como em (22)

abaixo.

(22) Havia mais ou menos umas cem cabeças naquela festa.

No exemplo acima, a palavra ‘cabeças’ está sendo usada no lugar de e valendo por

‘pessoas’. Em outras palavras, metonímia é o uso de uma entidade para referir a outra a ela

relacionada. Autores como Lakoff & Johnson (1980) e Croft & Cruse (2004) também

consideram metonímia um mecanismo, sobretudo, referencial:

O sanduíche de presunto está à espera de seu cheque. Onde a expressão "o sanduíche de presunto" está sendo usado para se referir a uma pessoa real, a pessoa que ordenou o sanduíche de presunto. Tais casos não são instâncias de metáforas personificação, uma vez que não entendemos "o sanduíche de presunto" imputando qualidades humanas a ele. Em vez disso, estamos usando uma entidade para se referir a outra que está relacionada a ela. Este é um caso do que vamos chamar de metonímia. (...) Metáfora é “principalmente uma maneira de conceber uma coisa em termos de outra, e sua função primária é a compreensão. Metonímia, por outro lado, tem primeiramente uma função referencial, ou seja, nos permite usar uma entidade para representar (stand for) outra.” (LAKOFF & 62

JOHNSON, 1980, p. 35­36)

61 [...] metonymy is a cognitive process where one conceptual entity, the vehicle, provides mental access to another conceptual entity, the target, within the same idealized cognitive model 62 The ham sandwich is waiting for his check. where the expression "the ham sandwich" is being used to refer to an actual person, the person who ordered the ham sandwich. Such cases are not instances of personification metaphors, since we do not understand "the ham sandwich" by imputing human qualities to it. Instead, we are using one entity to refer to another that is related to it. This is a case of what we will call metonymy. (...) Metaphor is principally a way of conceiving of one thing in terms of another, and its primary function is understanding. Metonymy, on the other hand, has primarily a referential function, that is, it allows us to use one entity to stand. for another.

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“Metonímia é, grosso modo, o uso de uma palavra para designar um conceito diferente da sua denotação literal.” (CROFT & CRUSE, 2004, p. 48) 63

“Na metonímia, a função do veículo é meramente identificar a interpretação do alvo. Por exemplo, em (2) não existe uma combinação das características de carros e seres humanos ­ o uso de você é simplesmente uma rota fácil para o referente pretendido, o carro relevantemente associado ao destinatário: (2) Onde você está estacionado?” (CROFT & CRUSE, 2004, p. 193) 64

“Diremos que metonímia envolve o uso de uma expressão E com uma interpretação padrão A para evocar uma interpretação distinta B, onde a conexão entre B e A é inferida por princípios gerais (Isto é, não é um código privado predeterminado entre indivíduos)” (CROFT & CRUSE, 2004, p. 216) 65

Sendo assim, metonímia difere substancialmente de meronímia, uma vez que esta é

uma relação semântica entre itens do léxico.

(23)

Meronímia parte­todo: cabeça ­ corpo

Metonímia parte­todo: Preciso de mais uma cabeça para fechar a equipe.

Embora sejam processos distintos, apresentam pontos de interseção, se levarmos em

consideração que a relação parte­todo pode ser manifesta por ambos os processos. A próxima

seção é destinada à apresentação de uma proposta que possa explicar a semelhança existente

entre esses processos distintos. Argumento que a RCC estrutura não só processos

metonímicos, como mostram Peirsman & Geeraerts (2006), mas também estruturam frames

semânticos.

63 Metonymy is, loosely, the use of a word to denote a concept other than its ‘literal’ denotation. 64 In metonymy, the vehicle’s function is merely to identify the target construal. For instance, in (2) there is no combining of the features of cars and humans – the use of you is simply an easy route to the intended referent, the car relevantly associated with the addressee: (2) Where are you parked? 65 we shall say that metonymy involves the use of an expression E with a default construal A to evoke a distinct construal B, where the connection between B and A is inferable by general principles (i.e. is not a private prearranged code between individuals).

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3.3. (Re)pensando as categorias: a Rede Conceitual de Contiguidade (RCC) nas relações

lexicais

Os três trabalhos apresentados na seção 3.2 podem ser considerados os principais

trabalhos na literatura linguística acerca das relações meronímicas por terem sido os pioneiros

a tratar dessa questão de forma mais detalhada. Além disso, percebe­se um nítido diálogo

entre eles, de modo a formarem uma trajetória gradual e coesa dos estudos sobre meronímia

na Linguística. Cabe, então, nesse ponto, tecer algumas reflexões sobre as possíveis

convergências entre metonímia e meronímia.

Lyons e Cruse afirmam que o nível linguístico e o extralinguístico não devem ser

confundidos. Com relação a essa separação, muito têm contribuído os trabalhos de

comparação entre línguas, como o de Klein (2000), que analisa a relação de meronímia em

dezoito línguas indígenas da baixa região da América do Sul. Um dos exemplos apresentados

pela autora é o da língua Maká, em que o termo ‘koy’ indica a porção do corpo que vai da

mão ao ombro. Em Espanhol, e também em Português, a mesma porção do corpo é designada

por três termos: ‘mano’ (mão), ‘antebrazo’ (antebraço) e ‘brazo’ (braço).

Entretanto, uma classificação de meronímia com base em critérios puramente

linguísticos, como propõe Cruse, deixa de lado o fato de que as experiências que temos com o

mundo influenciam e moldam a linguagem. Obviamente, não é sobre esta base epistemológica

que a análise de Cruse é construída. Diante desse reconhecimento – e sem julgar uma ou outra

análise como melhor ou pior –, assume­se aqui, em consonância com os pressupostos básicos

da LC, que, assim como o nível linguístico e o extralinguístico não devem ser confundidos

como se a língua fosse reflexo ou espelho da realidade objetiva, também não devem ser

rigidamente separados, a ponto de se ter uma proposta de análise com base em critérios

puramente linguísticos.

A dificuldade em ter uma definição mais sólida de meronímia reside justamente nessa

separação rígida entre conhecimento linguístico e conhecimento enciclopédico e na pretensão

de analisar e definir a relação de meronímia do ponto de vista puramente linguístico. Dentre

os três trabalhos, tal pretensão tem seu ponto máximo na proposta de Winston et al. ao

assumirem que um sistema de traços semânticos é suficiente para a classificação e

identificação das relações meronímicas, desconsiderando fatores sócio­culturais e cognitivos.

Levar em consideração fatores sócio­culturais e cognitivos nas análises das relações

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meronímicas requer considerar a importância do conceito de Frame/Domínio/Base e de MCI 66

para tal análise. A necessidade das noções de Frame para a análise das relações meronímicas

foi apontada timidamente por Lyons e merece um pouco mais de atenção.

Fillmore (1982, p. 111) entende Frame como qualquer sistema de conceitos

relacionados de tal forma que, para entender qualquer um deles, é preciso entender toda a

estrutura na qual se encaixam. Sendo assim, o significado das palavras é subordinado a

frames .

De fato, como entender palavras como ‘pedal’, ‘tampa’, ‘capa’, sem relacioná­las a

seus todos? Ou melhor, sem relacioná­las a toda a estrutura conceitual nas quais se encaixam?

O mesmo questionamento vale para palavras de conceitos abstratos como ‘minuto’ e ‘dia’.

Não à toa que para Croft & Cruse (2004) o exemplo canônico da relação base­perfil é a

relação parte­todo. Além disso, estou de acordo com os autores ao afirmarem que

“[n]a verdade, nenhum conceito existe autonomamente : todos são compreendidos para se encaixar em nosso conhecimento geral do mundo, de uma forma ou de outra. O que importa para análise semântica é a relação perfil­base” [grifo meu] (Croft & 67

Cruse, 2004, p. 16).

Outra questão que dificulta a definição meronímia é a própria polissemia das palavras

‘parte’ e ‘tem’ que compõem o teste proposto por Cruse e também adotado em certa medida

por Winston et al. Sobre esse aspecto, muito contribuem as observações de Winston et al., ao

chamarem a atenção para o problema da vagueza e da generalidade do termo ‘parte’,

afirmando que “ a vagueza e a generalidade do termo ‘parte’ faz com que seja muito fácil

para falantes do inglês [e creio que para qualquer falante de qualquer língua] escorregar

para frente e para trás entre os tipos de relações meronímicas” (WINSTON, et. al., 1987, p. 68

430).

Outro comentário digno de nota é a possibilidade de termos especializados de partes

rotularem ou corresponderem a relações meronímicas distintas. De fato, palavras como

66 Croft & Cruse (2004) assumem que o que Langacker (1987) chama de base ou domínio é idêntico ao que Fillmore (1982) chama de Frame. Passam então a usar as palavras base, domínio e frame como sinônimas. 67 In fact, no concept exists autonomously: all are understood to fit into our general knowledge of theworld in oneway or another. What matters for semantic analysis is the profile­base relation. 68 The vagueness and generality of the term “part” makes it very easy for speakers of English to slip back and forth between types of meronymic relationships .

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‘dízimo’ e ‘zona’ nomeiam inerentemente ‘partes de’ (a décima parte de um todo e parte de

uma área espacial maior, respectivamente). Entretanto, apesar dos comentários, parecem

ignorar a polissemia do termo ‘parte’, talvez por considerarem que o sistema de traços é

suficiente para a identificação dos tipos de meronímias. Analisemos alguns exemplos de

relações meronímicas, considerados pelos autores como do tipo característica­atividade.

(24a) Paying is part of shopping (Pagar é parte de comprar)

(24b) Bidding is part of playing bridge (Lance de carta é parte de jogar bridge)

(24c) Ovulation is part of the menstrual cycle (A ovulação é parte do ciclo menstrual)

(24d) Dating is part of adolescence (Namorar é parte da adolescência)

Os exemplos acima, pelo menos em português, ficariam melhor com a expressão “faz

parte”, como “Pagar faz parte do ato de comprar”, “Lance de carta faz parte do ato de jogar

bridge”, “A ovulação faz parte do ciclo menstrual” e “Namorar faz parte da adolescência”.

Porém, a simples substituição de “é parte de” por “faz parte de” não resolve o problema, uma

vez que 24a, 24b e 24c pressupõem a noção de etapas ou fases a serem cumpridas. Já em 24d,

é difícil admitir que namorar seja uma etapa ou fase a ser cumprida na adolescência. A noção

mais adequada, então, seria a de “é típico de” (Namorar é típico da adolescência). Entretanto,

mesmo usando a expressão “é típico de”, ainda assim é difícil admitir que namorar seja uma

parte em relação a um todo que, nesse caso, é a adolescência.

Winston et al. ainda ressalvam que estes casos não se encaixam no teste de Cruse por

não atenderem à segunda asserção, o que torna ainda mais difícil a questão da definição de

meronímia.

(25)

?Comprar tem pagar

?Jogo de bridge tem lance de carta

?O ciclo menstrual tem ovulação

?Adolescência tem namorar

Cruse também aborda casos semelhantes, porém, afirma que esses são casos “ muito

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periféricos e não exibem outras características contextuais típicas das partes ”. (CRUSE, 69

1986, p. 175)

(26a) Being slim is part of being fit (ser magro é parte de estar em forma)

(26b) Self­control is part of maturity (auto­controle é parte da maturidade)

(26c) Christmas pudding is part (feature) of christmas (pudim de natal é parte (característico)

de natal)

(26d) Rebelliousness is a part (feature) of adolescence (Rebeldia é uma parte (característico)

da adolescência)

Os exemplos acima, extraídos de Cruse, apresentam os mesmos problemas apontados

nos exemplos de Winston et al. é realmente difícil enquadrar tais casos no quadro das relações

parte­todo como o fazem Winston et al., ou mesmo em zonas mais periféricas como o faz

Cruse (1986). ‘Pudim de natal’ não me parece uma parte (mesmo em termos metafóricos) de

um todo que é “natal”.

De fato, as relações de parte­todo podem ser expressas por variadas expressões, como

“parte de”, “membro de”, “porção de”, “é parte de”, “faz parte de” etc., além de por palavras

no léxico que por si só já apontam para essa relação. Todas essas expressões são, até certo

ponto, equivalentes ao termo ‘parte’, o que significa dizer que estamos diante de um termo

polissêmico; e pode até parecer lugar comum afirmar isso. A questão que se coloca aqui,

então, é que o problema para análise das relações meronímicas reside, na verdade, não no

simples fato de ‘parte’ ser polissêmico, mas em saber/definir/estipular quais sentidos de

‘parte’ são válidos para avaliação das relações meronímicas.

Separar, porém, os sentidos/usos do termo ‘parte’ pertinentes à avaliação das relações

meronímicas pode ser tarefa bastante difícil se admitimos que os vários significados de uma

palavra não podem ser rigidamente separados, mas formam um continuum que vai da

homonímia à vagueza e que, entre esses dois polos, há uma gama variada de acepções,

conforme apontam trabalhos como os de Tuggy (1993 e 2003), Soares da Silva (2006),

Pinheiro (2010b), apenas para citar alguns.

Tudo se redobra se for considerado que as mesmas reflexões sobre o termo ‘parte’

podem ser estendidas ao verbo ‘ter’ da segunda asserção do teste de Cruse. A exigência de

69 But there are very peripheral and do not display other typical contextual characteristics of parts.

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que ambas as asserções do teste sejam satisfeitas perpassa justamente pela necessidade de se

excluir usos do verbo ‘ter’ que levariam a classificações equivocadas, como ocorre nos pares

‘marido­esposa’ (“A esposa tem marido”, ?“O marido é parte da esposa”),

‘milionário­dinheiro’ (“O milionário tem dinheiro”, ?“O dinheiro é parte do milionário), entre

outros.

Estamos, então, diante do problema da paráfrase . O que estou chamando de problema

da paráfrase é justamente o impasse que reside no fato de que testes para fins taxonômicos

baseados em paráfrases serão sempre imprecisos, uma vez que as palavras são polissêmicas.

Assim, uma paráfrase nunca vai ser abrangente ou definitória o suficiente. Definir uma

palavra ou o valor semântico de uma relação lexical como a meronímia, por exemplo, tem

passado pelo problema de se valer de paráfrases, e lidar apenas com definições parafrásticas

significa lidar com uma gama de imprecisões das quais não se pode escapar.

Uma solução seria buscar o significado esquemático de tais relações, sem, porém,

resumir as definições a esquemas. Assim como as paráfrases podem pressupor casos que

intuitivamente não se encaixam na classe em questão, apenas esquematizações trariam o

mesmo problema. Considero que a junção de ambos os métodos seja uma solução

metodológica viável e adequada.

Quanto a isso, é bem nítido que há um ponto de interseção entre meronímia, hiponímia

e metonímia. Por exemplo, da mesma forma que se define meronímia como relação de

parte­todo, há, paralelamente, a famosa metonímia parte­todo. Hiponímia, por sua vez,

sempre foi definida em termos de contenção; basta lembrarmos de definições tais como X ⊃

Y e Y ⊅ X, dadas pela semântica formal. Paralelamente, há a metonímia conteúdo­continente.

Além disso, na taxonomia proposta por Winston et al., percebe­se que, ao se propor

uma família de relações meronímicas, os autores estendem a meronímia para além de sua

noção mais básica de relação de parte­todo prototípica, de exemplos como cabeça­corpo,

pedal­bicicleta, asa­xícara, entre outros; basta olharmos para os demais tipos de meronímia

propostos pelos autores, como membro­coleção (navio­frota) e material­objeto (aço­carro),

por exemplo. Isso aproxima ainda mais as relações meronímicas das relações metonímicas.

A proposta, então, que se apresenta no presente capítulo desta tese, é que o ponto de

interseção entre essas categorias é o fato de serem sustentadas relativamente pelos mesmos

esquemas de imagem. Assim, uma descrição de meronímia e hiponímia que miniminize o

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problema da paráfrase, ao mesmo tempo em que ressalte a semelhança entre elas, deve incluir

uma caracterização/descrição também no nível mais esquemático. Nessa empreitada, a RCC

parece ser bastante adequada para a resolução do problema. Cabe notar, inclusive, que a

taxonomia de relações meronímicas proposta por Winston, et al. encontra correspondência em

tal rede (cf. figura 6, p. 47). Isso parece decorrer justamente porque tanto relações

metonímicas, quanto meronímicas e hiponímicas se ancoram na mesma rede conceitual,

diferindo, pois, na natureza do processo.

Outro argumento a favor da presente proposta é o fato de que Peirsman & Geeraerts

colocam hiponímia como um tipo de metonímia . 70

O Padrão (23), HIPÔNIMO & HIPERÔNIMO, permite um hipônimo por seu hiperônimo ou vice­versa. Ele é mencionado como uma espécie de metonímia por Kövecses & Radden (1998), mas vamos discutir mais tarde que realmente constitui um caso limite . (Peirsman & Geeraerts, 2006, p. 10) 71

Os padrões metonímicos do nosso conjunto inicial que nós ainda não cobrimos são CARACTERÍSTICA & ENTIDADE, INDIVIDUO & COLEÇÃO, OBJETO & QUANTIDADE, FACTOR CENTRAL & INSTITUIÇÃO e HIPÔNIMO & HIPERÔNIMO. Enquanto todos os padrões metonímicos anteriores poderiam estar relacionados bastante diretamente a uma base espacial ou temporal, a análise dos padrões restantes requer mais um passo: vamos argumentar que esses padrões podem ser vistos como a extensão da relação parte­todo ao domínio dos conjuntos e coleções. (Peirsman & Geeraerts, 2006, p. 36) 72

Os autores parecem, entretanto, desconsiderar que metonímia é uma relação do tipo X

está por Y, em que uma entidade é usada para representar outra, ao passo que hiponímia, pelo

menos se nos mantivermos numa definição que remonte a toda uma tradição, é uma relação

70 É possível também que os autores apenas usem o mesmo termo para se referirem a processos referenciais. Isso porém, não fica explícito. Independentemente, o que deve ser ressaltado é que os autores perceberam que a mesma relação conhecida como hiponímia­hiperonímia aparece em processos referenciais, em que X está para Y. 71 Pattern (23), HYPONYM & HYPERONYM, allows a hyponym to stand for its hyperonym or vice versa. It is mentioned as a type of metonymy by Kövecses & Radden (1998), but we will argue later that it actually constitutes a borderline case. 72 The metonymical patterns from our initial set that we have not yet covered are CHARACTERISTIC & ENTITY, INDIVIDUAL & COLLECTION, OBJECT & QUANTITY, CENTRAL FACTOR & INSTITUTION, and HYPONYM & HYPERONYM. Whereas all previous metonymical patterns could be related fairly straightforwardly to a spatial or temporal basis, the analysis of the remaining patterns requires a further step: we will argue that these patterns can be seen as the extension of the part­whole relationship to the domain of assemblies and collections.

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entre itens lexicais . Em outras palavras, metonímia é um processo, sobretudo, referencial; 73

meronímia e hiponímia, por sua vez, são formas de estruturação de frames semânticos. O

quadro abaixo ilustra tal proposta.

Quadro 4: Esquemas de imagem, metonímia e relações lexicais

Assim, os exemplos (27a) e (27b) estão ancorado na mesma base conceitual, conforme

figura 8.

(27a) ­ Quanto você pagou nesse livro?

­ Ah, comprei barato num sebo do centro… Foi R$ 10,00.

(27b) pagar ­ comprar (meronímia do tipo característica ­ atividade , segudo Winston, et al.)

Figura 8: Representação esquemática da metonímia COMPRAR por PAGAR

e da meronímia ‘comprar : ‘pagar’

73 Assume­se nesta tese a proposta de Croft & Cruse (2004), para quem hiponímia é uma relação entre interpretações contextualmente ancoradas de itens lexicais

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A cor verde representa o domínio das ações/eventos/processos e a figura retangular o

esquema de imagem envolvido. Essa representação, então, sugere que essa base conceitual é

comum tanto ao padrão metonímico sub­evento­evento complexo de Peirsman & Geeraerts,

quanto à relação lexical meronímica característica­atividade de Winston et al. A figura abaixo

é uma proposta de esquematização das relações meronímicas.

Figura 9: RCC como base conceitual das relações meronímicas

Mantiveram­se aqui as relações entre as cores representando domínios distintos (azul ­

domínio material/espacial; verde ­ domínio das ações/eventos/processos; amarelo ­ domínio

das assembleias e coleções) e figuras retangulares representando esquemas de imagem de

contiguidade, como apresentado na seção 2.2. Digna de nota é a explanação de Peirsman &

Geeraerts sobre duas possibilidades de se interpretar os padrões metonímicos HIPÔNIMO

pelo HIPERÔNIMO e HIPERÔNIMO pelo HIPÔNIMO.

Agora que nós estabelecemos que relações parte­todo se aplicam às coleções, bem como a assembleias, podemos passar para o terceiro tipo de relação que nós distinguimos na figura 10, a saber, taxonomias. Mudanças lexicais em taxonomia pode envolver a substituição de um hipônimo por um hiperônimo, ou a substituição de um hiperônimo por um hipônimo. O primeiro processo pode ser ilustrado pela palavra inglesa pill (pílula); o último pela holandesa Kodak. A palavra pill não se refere apenas a todos os tipos de comprimidos médicos, mas a uma instância específica, a saber, a pílula contraceptiva. O hiperônimo aqui se refere a um dos seus hipônimos, geralmente como uma espécie de eufemismo. Por outro lado, a palavra holandesa Kodak refere­se a um tipo de câmera, a saber, aquelas da marca Kodak, mas muito frequentemente usada como sinônimo para a câmera, a sua hiperonímia. Diferentes interpretações destes padrões são possíveis. A interpretação tradicional (que tem estado em voga, pelo menos, desde Paul 1880) não considera que elas sejam casos de metonímia em absoluto, mas assume um tipo distinto de mudança semântica: especialização para "a pílula" e generalização para “Kodak”. No entanto, uma interpretação metonímica não está excluída e pode­se assumir duas formas diferentes, considerando se as categorias

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envolvidas estão previstas a partir de uma perspectiva extensional ou intensional . 74

(PEIRSMAN & GEERAERTS, 2006, p. 42)

Os autores argumentam que, numa frase como “Uma Kodak é uma câmera”, analisada

de uma perspectiva extensional , implica enumerar todos os tipos possíveis de câmera ­ 75

Kodak, Nikon, Minolta, Canon etc. Câmera é definida como uma coleção (estrita) de

instâncias mais específicas, das quais Kodak é apenas um exemplo. Câmera é, portanto, vista

como uma coleção contável, da qual Kodak é apenas um indivíduo. Assim, a metonímia

“Kodak” para "câmera" pode ser interpretada como INDIVÍDUO pela COLEÇÃO

CONTÁVEL, como mostra a figura 10.

Figura 10: Relação Kodak : câmera numa perspectiva extensional

A mesma sentença, porém, considerada de uma perspectiva intensional, implica que

uma categoria não é definida por meio dos tipos de entidades a que se refere, mas pelas

características pelas quais é identificada.

Uma câmera pode então ser definida como "uma peça de equipamento que é utilizada para tirar fotografias, fazer filmes, ou produzir imagens televisivas" (Collins Cobuild 1995: 230), e uma Kodak é “uma câmera da marca Kodak”. Câmera é então uma parte

74 Now that we have established that part­whole relations apply to collections as well as assemblies, we can move on to the third type of relationship that we distinguished in figure 10, viz. taxonomies. Lexical changes in taxonomies may involve the substitution of a hyponym by a hyperonym, or the substitution of a hyperonym by a hyponym. The former process can be illustrated by English the pill, the latter by Dutch een Kodak. The English word pill does not only refer to all kinds of medical tablets, but also to one specific instance, viz. the contraceptive pill. The hyperonym here refers to one of its hyponyms, often as a sort of euphemism. Conversely, the Dutch word Kodak refers to one type of camera, viz. those of the make Kodak, but it is also often used as a synonym for camera, its hyperonym. Figure 14 illustrates these processes. Different interpretations of these patterns are possible. The traditional interpretation (which has been in vogue at least since Paul 1880) does not consider them to be cases of metonymy at all, but assumes a distinct type of semantic change: specialization for ‘the pill’ and generalization for ‘Kodak’. A metonymical interpretation is not excluded, however, and it may itself take two different forms, according to whether the categories involved are envisaged from an extensional or an intensional perspective. 75 Segundo Kenedy & Lira (2012), a distinção INTENSIONAL vs. EXTENSIONAL tem origem na filosofia. “Intensional” diz respeito a tudo o que é interior e próprio a um dado significado, ao passo que “extensional” refere­se à extensão de um dado significado, isto é, diz respeito à classe de objetos a que o significado se refere. Por exemplo, as propriedades físicas que, por si mesmas, definem o espectro de luz que denominamos de “vermelho” são a sua intensionalidade, enquanto os objetos do mundo que materializam a cor vermelha são a sua extensão, aos quais, portanto, o significado “vermelho” faz referência. Assim, a “vermelhidade” é aquilo que faz do vermelho o que o vermelho é – é a sua intensionalidade. Já a cor vermelha que vemos, digamos, numa camisa é a extensionalidade do vermelho.

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da definição intensional de Kodak, e pode, consequentemente, ser metonimicamente focalizada graças ao padrão metonímico ENTIDADE para CARACTERÍSTICA . 76

(Peirsman & Geeraerts, 2006, p. 43) Este processo é mostrado abaixo, em que a linha pontilhada indica

CARACTERÍSTICA, que é uma propriedade ilimitada.

Figura 11: Relação Kodak : câmera numa perspectiva intensional

O ponto mais importante que deve ser destacado acerca dessa explanação é que, a

depender da perspectiva analítica (se intensional ou extensional), o esquema de imagem

envolvido será diferente, já que INDIVÍDUO : COLEÇÃO CONTÁVEL é um padrão que

envolve esquema de contenção, ao passo que CARACTERÍSTICA : ENTIDADE é um padrão

que envolve esquema de parte­todo (ver figuras 6 e 7, respectivamente, p. 47 e 50). Isso

significa que muitos casos de hiponímias são dúbios quanto à sua natureza esquemática. Cabe

(re)lembrar que os comentários de Lyons, expostos na seção 3.1, já levantavam essa questão

acerca caráter dúbio de muitos casos de nomes concretos de massa, de nomes abstratos, de

verbos denotando atividades e de coletivos que, segundo o autor, “ ilustram a maneira como a

relação hierárquica entre lexemas, (...), pode ser tratada pela linguagem como hiponímia ou

como uma relação parte­todo; ou talvez como relação que é intermediária entre elas e

compartilha certas características com ambas ” (LYONS, 1977, p. 315). 77

Outro caso ambíguo é o da meronímia local­área, que pode ser interpretada tanto como

uma relação entre uma parte e seu todo, quanto como uma relação de contenção.

Relações parte­todo como as acima estão intimamente relacionados com o padrão de contenção. Um exemplo, como Tony Blair é o primeiro­ministro da Inglaterra , por exemplo, pode ser explicado de duas maneiras: por um lado, a Inglaterra é uma parte

76 A camera can then be defined as ‘a piece of equipment that is used for taking photographs, making films, or producing television pictures’ (Collins Cobuild 1995: 230), and a Kodak is ‘a camera of the make Kodak’. Camera is thus a part of the intensional definition of Kodak, and can consequently be metonymically focused upon thanks to the metonymical pattern ENTITY FOR CHARACTERISTIC. 77 These few exemples will serve to ilustrate the way in which the hierarchical relationship between lexemes may (...) be treated by language as hyponymy or pat­whole relation; or perhaps as a relation which is intermediate between them and shares certain characteristics with them both.

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do Reino Unido; por outro lado, está também contida por ele. Neste caso, um recipiente é concebido como um todo (funcional, quase experiencial), na base da relação de confinamento com o seu conteúdo, a sua parte . (Peirsman & Geeraerts, 78

2006, p. 14)

Assim, a figura 9, pode ser reformulada conforme abaixo:

Figura 12: RCC como base conceitual das relações meronímicas

A correspondência entre a classificação de Winston et al. e os padrões extraídos de

Peirsman & Geeraerts é forte indício de que há uma rede conceitual ancorada em relações de

contiguidade que tanto estrutura processos referenciais, em que X está para Y (ou seja,

metonímias), como organiza o léxico (estabelecendo relações meronímicas e hiponímicas, ou

seja, estruturando frames ). Tal abordagem resolve inclusive a questão de pares de palavras

como dia­semana, minuto­hora, entre outras. Esses pares estão ligados por uma relação do

tipo parte­todo no domínio temporal.

Figura 13: Relação de parte­todo no domínio temporal

78 Part­whole relations like those above are closely related to the containment pattern. An example such as Tony Blair is the Prime Minister of England, for instance, can be explained in two ways: on the one hand, England is a part of the UK; on the other, it is also contained by it. In this case, a container is conceptualized as a (functional, almost experiential) whole, on the basis of the containment relation with its content, its part.

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Até agora, pode­se ver que a meronímia, pelo menos em sua classificação mais

tradicional, encontra guarida na Rede Conceitual de Contiguidade. Entretanto, como discutido

até então, meronímia se limitaria aos esquemas de imagem de parte­todo e alguns casos

dúbios que podem ser interpretados como contenção, como é o caso das meronímias

membro­coleção e local­área. As conexões que as palavras podem estabelecer entre si, porém,

são muito mais amplas. Argumento, pois, que pares de palavras como ‘doce­doceira’,

‘lixo­lixeira’, ‘papel­papeleiro’ e ‘bagagem­bagageiro’ são evidências de que os EIs de

contenção e contato também estruturam palavras no léxico.

Figura 14: Relação de contenção e contato no domínio espaço­material

Esses casos diferem substancialmente de membro­coleção e local­área.

Primeiramente, não são dúbios quanto sua natureza esquemática, pois a doceira é exatamente

um recipiente e o doce, seu conteúdo; assim como a relação entre ‘bagagem’ e ‘bagageiro’ é

exatamente de contato. Esses casos de palavras derivadas serão mais detalhados nos dois

próximos capítulos. Por ora, servem apenas para corroborar a proposta de que a RCC sustenta

tanto processos metonímicos quanto organiza o léxico, estruturando, assim, frames

semânticos. Afinal, a compreensão de uma palavra como ‘doceira’, por exemplo, perpassa

necessariamente pelo conceito de ‘doce’ e pela sua relação de recipiente com este. Em outras

palavras, ‘doceira’ ativa um frame , em que o conceito de ‘doce’ e a relação esquemática entre

ambos os conceitos constitui um de seus aspectos mais fundamentais.

Em suma, ao que tudo indica, há uma rede conceitual que adquirimos mediante

experiência corpórea ­ uma vez que esquemas de imagem são representações conceituais

corporificadas ­ e linguística ­ uma vez que a própria língua alimenta e fomenta tal rede,

fazendo com que ela fique cada vez mais rotinizada e difundida na língua. Tal rede tem papel

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fundamental na estruturação de frames semânticos.

É lícito, inclusive, afirmar que os estruturalistas perceberam parte dessa rede e deram

o nome de meronímia e hiponímia. As relações lexicais, porém, vão além do que esses

conceitos podem abarcar e a RCC possibilita explicar as várias relações semânticas entre

palavras no léxico que os conceitos de meronímia e hiponímia não suportam. A vantagem

dessa proposta então é que:

a) não exclui a importância de conceitos como meronímia e hiponímia, mas,

b) em consonância com os pressupostos da Linguística Cognitiva, uma vez que as

relações semânticas entre itens lexicais não são tratadas como categorias rígidas,

pode­se incluir, na descrição, casos como ‘dia­semana’, ‘comprar­pagar’, entre outros,

que não se enquadram muito bem na relação parte­todo prototípica.

c) Além disso, assumir que as relações de contiguidade estruturam frames semânticos

possibilita descrever inclusive relações entre palavras que os conceitos tradicionais da

semântica estruturalista não sustentam.

O próximo capítulo é destinado a uma breve revisão acerca dos sufixos ­eiro e ­ário.

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4. OS SUFIXOS ­EIRO E ­ÁRIO EM PORTUGUÊS

4.1. O sufixo ­eiro em Português: breve revisão bibliográfica.

O sufixo ­eiro(a) com certeza é um dos sufixos mais estudados do português, tendo

despertado interesse de pesquisadores de diversas inclinações teórico­metodológicas, seja

num viés formalista, sobretudo de base gerativista, como são os trabalhos de Yacovenco

(1994), Gonçalves & Costa (1997), Rocha (2008), Gonçalves, Costa & Yacovenco (1999) e

Marinho (2004), seja num viés funcionalista, sobretudo de base sociofuncionalista e

cognitivista como os trabalhos de Almeida & Gonçalves (2005 e 2006), Melo (2006), Botelho

(2004), Pizzorno (2010) e Tavares da Silva (2014), apenas para citar alguns. Nos estudos

diacrônicos, destacam­se os diversos trabalhos de Mário Eduardo Viaro e de Maria Gil Condé,

além do recente trabalho de Simões Neto (2016), numa perspectiva construcional, sobre o

sufixo ­eiro do latim ao português arcaico.

Dentre esse vasto material, foram selecionados para servir como referencial, (a) os

trabalhos de base cognitivista, por mais se alinharem com o presente estudo, e (b) o trabalho

de Marinho (2004), pois, embora de base gerativista, apresenta tratamento dos dados como

polissêmicos, em vez da tradicional visão homonímica, além recorrer a aspectos históricos e

funcionais para comprovar a prototipicidade da noção de agente.

Dos trabalhos em morfologia diacrônica, os de Mário Eduardo Viaro e o de Simões

Neto serviram de base para a constituição do capítulo 6, por descreverem muitos aspectos

relacionados a ­eiro e ­ário, desde sua origem no latim, a saber, o sufixo latino ­ arius , a , um ,

formador de adjetivos.

Numa abordagem cognitivista, Gonçalves & Almeida (2006) sugerem que as

formações X­eiro constituem uma construção gramatical, nos termos de Goldberg (1995).

Para os autores as construções agentivas “ constituem uma construção gramatical básica que

permite a realização de uma rede construcional que demonstre a relação não só de várias

acepções de X­eiro, como das outras formações agentivas denominais do português (X­ista,

X­ólogo, X­ógrafo, X­ário) ” (GONÇALVES & ALMEIDA, 2006, p. 234). Centram­se,

porém, apenas na análise das formações X­eiro e as dividem em cinco grupos: agente

profissional (jardineiro, coveiro), agente habitual (fofoqueiro, futriqueiro), agente natural

(‘jambeiro’, ‘abacateiro’), locativos (‘saleiro’, ‘galinheiro’), intensificadores (‘lamaceiro’,

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‘nevoeiro’), modais (‘certeiro’, ‘grosseiro’).

O grupo dos agentes profissionais constitui o centro da categoria, do qual derivam, por

extensão metonímica, os agentes habituais e os naturais. As três categorias de agentivos são

postas hierarquicamente acima na rede polissêmica, uma vez que os agentes profissionais são

o centro e os outros dois derivam diretamente deles pela mesma habilidade cognitiva, a saber,

a conceptualização de um domínio em termos de outro.

Segundo os autores, os grupos locativo e modal derivam por alteração de foco nos

elementos da cena. No primeiro caso, focaliza­se o local pelo agente, ao passo que, no

segundo, o modo ou atributo da ação. Propõem, porém, que os modais derivam dos agentes

habituais e não do centro da rede. Isso decorre do fato de ambos, habituais e modais,

envolverem um caráter atributivo de julgamento. Os intensificadores, por sua vez, derivam do

grupo dos locativos. A justificativa é o fato de haver uma noção de multiplicidade nos

locativos que é refocalizada como excesso nos intensificadores. O esquema abaixo representa

a rede polissêmica proposta pelos autores.

Figura 15: Rede polissêmica de X­eiro segundo Gonçalves & Almeida (2006)

Botelho (2004) faz uma análise das construções X­eiro(a) agentivas. Com base nos

pressupostos da LC, sobretudo, as noções de metáfora, polissemia, construção gramatical e

mesclagem. A autora propõe uma rede polissêmica conectada por elos metafóricos, a qual vai

da categoria radial central de agente­humano (‘padeiro’, ‘jardineiro’), às categorias herdeiras

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de agentes­objetos (‘cinzeiro’, ‘laranjeira’, ‘formigueiro’), e, de forma mais periférica, a

fenômenos, estados, coisas, e atividades, revestidos de certo traço de agentividade

(‘nevoeiro’, ‘bobeira’).

A partir de uma construção agentiva mais ampla/geral e parcialmente especificada [X

FAZER/AFETAR Y], a autora analisa a construção dos agentivos denominais X­eiro que,

segundo ela, emerge dessa construção agentiva geral. Tal construção geral tem como esquema

conceptual básico (cena concebida no mundo) um evento causativo prototípico (agente [ator

volicional] afeta paciente) e, semanticamente (cena linguisticamente correspondente), uma

relação argumental de transitividade agentiva e experiencial, constituindo, portanto, um

predicado de dois lugares.

Para Botelho, esse esquema conceptual­semântico pode ser instanciado por

construções tanto analíticas (sintáticas – Suj. V. Obj.) como sintéticas (morfológicas ­ radical

+ sufixo agentivo), como ilustram os exemplos abaixo:

Construção analítica (Suj V Obj)

Construção sintética (radical + sufixo)

João faz o jardim. jardineiro

João toca viola violeiro

João produz romances romancista

João pratica surfe surfista

Quadro 5: Correspondência entre estrutura analítica e sintética na expressão da agentividade

A escolha pela expressão morfológica implica uma mescla, um processo de

compressão de personificação, ou seja, o evento, a cena e a micronarrativa são comprimidos

em seu protagonista – o agente. Assim, na palavra ‘padeiro’, por exemplo, está comprimida

toda a cena – o agente, a ação, o objeto.

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Figura 16: Processo de formação da estrutura sintética segundo Botelho (2004)

Em síntese, a autora assume a existência de uma protonarrativa, nos termos de Turner

(1996), que antecede a estrutura linguística e se projeta na construção agentiva geral,

semi­especificada X FAZER/AFETAR Y. Essa construção se caracteriza por se constituir de

um predicado de dois argumentos, no qual X é agente (o fazedor) e Y é objeto/paciente (o

feito). Na contraparte formal, também se instancia por uma construção sintética: uma base

nominal (objeto) e um output nominal (agente).

Pizzorno (2010) assume, em consonância com outros trabalhos embasados nos

pressupostos da LC e em oposição aos trabalhos de inflexão gerativista, que o sufixo ­eiro é

polissêmico, com diferentes manifestações de sentido, todos correlacionados e estendidos a

partir de habilidades cognitivas como o processo de categorização e seus efeitos (nível básico

e protótipos) e a capacidade de metaforizar e de metonimizar.

Assim, também considera a acepção agentiva como o centro da categoria radial. Para a

autora, há uma cena básica agentiva, um evento comum que é normalmente composto por um

agente , um local e um objeto , o que resulta nas categorias agente (‘padeiro’), local

(‘galinheiro’) e objeto (‘coqueteleira’), respectivamente. Além dessas acepções, as

construções X­eiro subdividem­se em mais outras três categorias – vegetal, excesso e

anomalia – que se formam pela capacidade que o falante possui de metaforizar e metonimizar.

Pizzorno (op. cit.) argumenta a favor da centralidade da acepção agentiva com base no

teste de aceitabilidade de Marinho (2004) e nas evidências apresentadas por Spinassé (1999),

em seu trabalho sobre aquisição morfológica. Além disso, a autora apresenta um corpus com

66 palavras, em que faz um cruzamento das possíveis acepções ­ a exemplo de ‘biscoiteira’,

que pode ser interpretada como agente, objeto ou excesso, mas não como vegetal ou

anomalia. Mostra a autora que a acepção ‘agente’ é possível em 73% dos casos, superando

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demasiadamente as outras acepções ­ excesso (38%), objeto/local (26%), vegetal (3,5%) e

anomalia (3,5%). Chama a atenção para o fato de o somatório das percentagens de cada

acepção ultrapassar um total de 100%. Isso se deve, justamente, à possibilidade de uma

mesma construção X­eiro (a) assumir diferentes acepções.

Pizzorno salienta a importância do conceito de Modelo Cognitivo Idealizado (MCI)

para a plena descrição da semântica das formações X­eiro(a). Para ela, MCIs têm papel

relevante, pois estão, por exemplo, na base do fato de que os agentes profissionais X­eiro(a),

em geral, designam profissões de baixo status social ou mal remuneradas, como já haviam

sinalizado Gonçalves, Costa & Yacovenco (1999). Segundo a autora,

“Os modelos cognitivos comuns a nossa cultura fazem com que os falantes idealizem, intuitivamente, o formativo –eiro como prototípico para a construção de palavras que se referem a empregos de baixa renda e que normalmente não exigem grande formação intelectual, a exemplo de “jardineiro”, “pedreiro” e “faxineira”, dentre vários outros.” (PIZZORNO, 2010, p. 68)

Por fim, propõe a distribuição das acepções em termos de radialidade e prototipicidade

conforme representado abaixo:

Figura 17: Rede polissêmica de X­eiro segundo Pizzorno (2010)

Figura 18: Continuum de animacidade segundo Pizzorno (2010)

Com base nos esquemas acima, pode­se ver que a autora propõe que todas as acepções

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são derivadas da noção de agente, com exceção de anomalia, que deriva da noção de excesso.

Além disso, tais categorias se distribuem ao longo de um continuum de animacidade.

Dentre os trabalhos de orientação gerativista, destaca­se o de Marinho (2004). Para

tratar da prototipicidade do significado agentivo, o autor recorre ao trabalho de Booij (1986),

intitulado Form and meaning in morphology: the case of Dutch agent nouns , em que este

morfólogo estuda o sufixo –er em derivados deverbais na língua holandesa. O primeiro

propósito da pesquisa é investigar se a variação na interpretação desse sufixo pode ser

analisada com base na teoria da polissemia, possibilitando manter a conexão entre forma e

significado na morfologia. Booij (op. cit.) seleciona três explicações para a polissemia de

palavras derivadas:

(I) a que a interpretação é dada pelo contexto e/ou pelo conhecimento de mundo, não havendo, portanto, uma regra para derivar os outros significados; (II) A que assume um significado prototípico para um processo de formação de palavras e deriva outros significados por regras de extensão; e (III) A que cria nome sujeito e objeto e cuja diferença reside na grade temática do verbo que é a raiz da palavra. Nos nomes sujeitos, o papel temático de tema é associado à posição sujeito do verbo e, nos nomes objetos, o tema é vinculado ao lugar do objeto do verbo. (MARINHO, 2004, p. 34)

Com relação ao segundo caso ( regra de extensão ), Booij propõe que as formas

agentivas podem ser estendidas de acordo com o esquema abaixo:

AGENTE PESSOAL > AGENTE IMPESSOAL > INSTRUMENTO

Um exemplo dado pelo autor é o da palavra zender , que pode ser interpretada como

(a) a pessoa que envia, (b) estação de rádio/TV ou (c) transmissor. Booij assume, então, a

interpretação ‘agente pessoal’ como prototípica, uma que vez que a interpretação primeira de

um agente é humana. Assim, agente impessoal e instrumento são agentes não humanos.

Aqueles, porém, diferem destes por serem de funcionamento automático. Além disso, para o

autor, a interpretação de agente pessoal é sempre possível, mesmo quando o nome não tem

uso consolidado na língua.

Com base nesses argumentos, Marinho (op. cit.) propõe Regras de Formação de

Palavras (RFPs) com Regra de Extensão de Sentido (RES) a elas associadas no intuito de

explicar e descrever a polissemia das formações X­eiro agentivas. O autor separa as

formações X­eiro em onze grupos semânticos, cinco produtivos, a saber, (1) agente

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profissional (‘sorveteiro’), (2) agente habitual (‘fofoqueiro’), (3) árvore frutífera

(‘jameloeiro’), (4) acúmulo/excesso (‘aguaceiro’) e (5) instrumento (‘frangueira’), e seis

improdutivos, (6) locativo (‘farinheira’), (7) objeto de uso pessoal (‘pulseira’), (8)

anomalias/enfermidades (‘boqueira’), (9) qualidade ressaltada (‘costumeiro’), (10) formações

naturais (‘ribanceira’) e (11) gentílico (‘brasileiro’). O critério para a produtividade adotado

pelo autor é o grupo semântico apresentar ou não novas formações.

Marinho se vale de teste de aceitabilidade para corroborar que a acepção agentiva é

sempre possível, mesmo quando o nome não tem acepção de agente atestada na língua. O

teste parte de uma palavra consagrada com acepção locativa, inserida em dois contextos

diferentes, a saber, os que permitem as leituras de agente e de excesso, conforme abaixo:

(28) Coloquei os biscoitos na biscoiteira (locativo)

A biscoiteira me vendeu os biscoitos (agente)

Olha que biscoiteira você deixou cair no chão (excesso)

O intuito é averiguar como os falantes nativos julgam cada uma dessas frases, se

“perfeitamente possíveis” (PP), se “estranhas, mas possíveis (EP) ou se “impossíveis” (IP).

Para o autor,

A comprovação da aceitabilidade de que estamos tratando será irrefutável se os julgamentos PP e EP forem atribuídos a itens com possibilidades ínfimas de aceitação por parte dos falantes de nossa língua. Para tanto, criamos os seguintes agentes não consagrados: “bermudeiro”, “farinheira” (agente habitual), “lixeira” (agente habitual) e “maioneseira” (agente habitual). (MARINHO, 2004, p. 77)

A utilização do item consagrado como locativo é essencial para medirmos a decisão do falante, afinal se, apesar da presença desse vocábulo com essa significação, o informante ainda assim, julgar a acepção agentiva como possível, estaremos diante de uma prova da tese. (MARINHO, 2004, p. 76)

Os resultados dos testes sugerem que, em termos de competência lexical, os falantes

do português acessam com muito mais facilidade a noção agentiva, o que comprova que ­eiro

é hoje primordialmente um formador de agentes.

O autor defende também a primazia histórica da acepção agentiva por meio do Método

Histórico­Comparativo e de pesquisas em dicionários latinos e etimológicos, além de

gramáticas históricas, como as de Said Ali (1964) e Mauer Jr. (1959). Assim, conclui que (a) a

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acepção primeira a surgir em latim é a de agente profissional, e (b) locativos e árvores são

extensões polissêmicas dos agentes.

Em suma, embora o trabalho de Marinho se destaque por ter sido, até onde sabemos, o

único em moldes gerativistas a tecer reflexões no que diz respeito à polissemia das formações

X­eiro, é importante atentar que, segundo o autor, apenas as acepções agente, locativo,

excesso e árvore se relacionam por polissemia. As três primeiras formam o que denomina de

“tríade polissêmica”, as quais inclusive foram utilizadas para o teste de aceitabilidade,

elaborado para a confirmação da categoria agentivo como prototípica. Já a acepção ‘árvore’ se

relaciona às acepções agente e local pelo que denomina de englobamento semântico (cf. 79

MARINHO, 2004, p. 91­92).

As demais acepções são tratadas como homonímicas, característica que difere o

trabalho de Marinho dos de base cognitivista, nos quais a polissemia das formações X­eiro é

vista em termos de rede polissêmica, cujas acepções se relacionam umas às outras por meio

de um centro prototípico, do qual se afastam ou se aproximam, em maior ou menor grau,

todas as outras acepções.

Com relação à abordagem histórica, o fato de uma forma A ser anterior a uma forma B

não significa que B é derivado de A, necessariamente. Apesar dos argumentos do autor com

base na primazia histórica da acepção agentiva e do conceito teórico de englobamento

semântico , a derivação agente > local > árvore não parece encontrar guarida mediante análise

de dados de língua latina. Isso será discutido na seção 6.1.

Cabe, nesse ponto, tecer algumas considerações sobre os trabalhos já feitos acerca das

formações X­eiro(a). Em primeiro lugar, é digno de nota o fato de a maioria focar nas

construções agentivas. Nos trabalhos de base gerativista, isso decorre, sobretudo, de uma

tradição que remonta ao período “transformacionalista”, em que a morfologia não era tratada

como parte autônoma da gramática , passando pelos estudos baseados na Hipótese 80

Lexicalista, cujo principal interesse recai nas relações lexicais, sobretudo entre verbos e

respectivos nomes deverbais. Muitos desses nomes apresentam acepção agentiva, como, por

79 O englobamento semântico pode ser entendido como a capacidade que um novo grupo semântico tem de englobar em si traços semânticos de acepções surgidas anteriormente. Assim, segundo o autor, ‘sorveteiro’ possui o traço [agente] por ter sido a primeira acepção de ­eiro. Já ‘saleiro’ possui os traços [locativo] e [agente], uma vez que englobou o traço agentivo da acepção precedente. Por fim, ‘goiabeira’ possui os traços [árvore], [local] e [agente]. 80 Nesse período, a formação de palavras se inseria nas regras transformacionais da sentença. Sendo o sujeito prototípico um agente, não causa surpresa o foco nas formações agentivas.

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exemplo, os nomes provindos das formações X­dor e X­nte em português.

Em se tratando das formações X­eiro(a), Rocha (2008), por exemplo, no capítulo

intitulado "Um modelo de análise: a regra S → S­eiro”, seleciona apenas os agentivos como

objeto de análise.

Antes de mais nada, é preciso deixar claro que estamos trabalhando com uma regra específica, em que o produto designa um nome agentivo . São formações institucionalizadas do tipo: leiteiro , verdureiro , sanfoneiro , confeiteiro , banqueiro , sapateiro , lixeiro , ou formações recentes ou possíveis, como: doleiro , grafiteiro , frizeira , cegonheiro , roqueiro , metaleiro , faficheiro , motoqueiro , sacoleiro , cambalacheiro , farofeiro , manoteiro , biscaiteiro , bermudeiro , chineleiro , etc. (ROCHA, 2008, p. 125)

A escolha do autor parece ser arbitrária e pautada na referida tradição, uma vez que

não expõe o(s) motivo(s) pelo(s) qual(is) não analisa os demais grupos, ou, mesmo, o porquê

da escolha dos agentivos em detrimento das outras acepções. Outro fator que acarreta a

preferência pelas formações X­eiro(a) agentivas é a questão da produtividade. Em abordagens

de base gerativa, acepções distintas são tratadas como RFPs distintas, analisadas

principalmente pelas suas características formais e distributivas, além de seu caráter produtivo

ou improdutivo na língua. Sobre as produtivas, porém, recaem maior atenção e interesse.

Como ressaltamos anteriormente, Marinho (2004, p. 38) assume como formações

produtivas os grupos (a) agente profissional, (b) agente habitual, (c) árvore frutífera, (d)

acúmulo/excesso e (e) instrumento. Os grupos (a) e (b) são agentivos incontestes. Nas

palavras do grupo (c), segundo o autor,

há presença de semântica agentiva, aproximando o grupo do sentido veiculado por um agente e não do de um locativo, como poderia ser, a princípio, pensado”. Sendo assim, um item como ‘cajazeiro’ está mais próximo de uma palavra como ‘doceiro’ do que de uma como ‘saleiro’, visto que ela é mais bem interpretada como ‘que produz X’ do que como ‘onde fica X’, da mesma forma que o agente profissional citado.” (MARINHO, 2008, p. 50)

Com relação ao grupo (e), o autor não é explícito com relação ao caráter agentivo das

palavras que designam instrumento. Porém, assume a hipótese de Booij (1986), para quem

formas agentivas podem ser estendidas de acordo com o seguinte esquema:

Agente pessoal > Agente impessoal > Instrumento

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Além disso, deixa claro em sua descrição que os instrumentais são os únicos que

podem ser formados também a partir de base verbal (‘frigideira’, ‘assadeira’, ‘britadeira’), ao

lado de formações denominais como ‘cafeteira’ e ‘leiteira’. Isso nos faz crer que, embora não

seja explícito, o autor assume que os instrumentais apresentam, mesmo que em menor grau,

caráter agentivo.

Em suma, à exceção do grupo (d), todos os demais por ele considerados produtivos

têm caráter agentivo. Cabe ressaltar, porém, que o critério utilizado para decidir sobre a

produtividade ou improdutividade dos grupos foi apresentar ou não vocábulos novos.

Entretanto, vê­se nitidamente, no trabalho de Marinho, uma convergência entre grupos de

caráter agentivo e grupos considerados produtivos.

Em análises gerativistas, outro fator que contribui para o veredicto das construções

agentivas como produtivas é o fato de serem as únicas que estabelecem relações

paradigmáticas com outras RFPs. Segundo Gonçalves, Costa & Yacovenco (1999)

A relação paradigma/produção aparece como um dos principais fatores na determinação das condições em que a regra morfológica de formação de agentivos em ­eiro(a) opera, visto que parece haver uma distribuição complementar entre as construções agentivas em ­eiro e as construções agentivas em ­ista. (GONÇALVES, COSTA & YACOVENCO, 1999, p. 54)

Segundo Miranda (1979, p. 84­86), os sufixos ­eiro e ­ista estão em distribuição

complementar, uma vez que preenchem função semelhante no léxico, a saber, a de indicar

profissões ou ofícios. A autora propõe que a distribuição complementar entre as formações

agentivas X­eiro e X­ista decorre do grau de formalidade das duas RFPs. Nesse sentido, a

produtividade de ­ista está centrada nos agentivos de base [­ concreta] e [+ formal], ao passo

que os agentivos em ­eiro teriam a produtividade marcada pelos traços [+ concreto] e [­

formal]. A distribuição complementar entre os dois sufixos pode ser vista nos seguintes dados,

extraídos de Gonçalves, Costa & Yacovenco (1999, p. 56)

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X­eiro X­ista

xeroqueiro copista

doleiro cambista

motoqueiro motociclista

peladeiro futebolista

arteiro artista

manobreiro manobrista

cuteiro cutista

sambeiro sambista

flauteiro flautista

noveleiro novelista

macumbeiro umbandista

prancheiro surfista

muambeiro contrabandista Quadro 6: Distribuição complementar entre X­eiro e X­ista

As formações X­eiro agentivas estabelecem relação paradigmática também com

formas X­aria. Basilio (1980), no intuito de solucionar a inconsistência das Regras de

trucamento de Aronoff (1976) , propõe a regra [Xy] A ↔ [Xw] B , em que “Xy” e “Xw” são 81

formas morfologicamente complexas, criadas a partir de sufixos distintos, em que uma

pressupõe a existência da outra, como ocorre, por exemplo, nos pares abaixo:

81 Devido o modelo proposto por Aronoff ser baseado em palavra, o autor precisa explicar, satisfatoriamente, casos de formações com bases presas. Propõe, então, uma Regra de truncamento que pode ser descrita como [[raiz 1 + A]x 2 B]y 3 → 1 0 3, em que os elementos “raiz”, “A” e “B” são identificados por 1, 2 e 3. Após a aplicação da regra de truncamento, o elemento A, identificado por 2, passa a 0, o que simboliza a supressão. Um exemplo em português é o caso de ‘marceneiro’, que, nessa perspectiva, não seria formado a partir da base presa “marcen­”, mas da palavra marcenaria, conforme [marcen 1 + aria 2 ]s eiro 3 ]s → 1 0 3 marceneiro (cancelamento de ­aria).

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X­ia X­ico

Euforia Eufórico

Economia Econômico

Nostalgia Nostálgico

Afasia Afásico

História Histórico Quadro 7: Relação paradigmática entre X­ia e X­ico

No caso das formações X­eiro(a), as formações agentivas (profissionais especificamente)

mantêm relação paradigmática com formas X­aria (representação em 29), conforme

Gonçalves (1998), que pode ser formulada conforme quadro a seguir:

X­eiro X­aria

Barbeiro Barbearia

Chapeleiro Chapelaria

Enfermeiro Enfermaria

Marceneiro Marcenaria

Serralheiro Serralheria

Pasteleiro Pastelaria

Porteiro Portaria Quadro 8: Relação paradigmática entre X­eiro e X­aria

(29)

[Xy] A ↔ [Xw] B

([X]s → [ [X]s eiro]s) ↔ ([X]s → [ [X]s aria]s)

Em suma, além de uma já consagrada tradição em priorizar sufixações com valor

agentivo, as formações agentivas X­eiro(a) têm tido atenção privilegiada nas abordagens

gerativas por formarem novas palavras (e, nesse sentido, se destacam dos outros grupos

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X­eiro), além de serem as únicas que estabelecem relações paradigmáticas com outras RFPs.

Formações que designam instrumentos muitas vezes se inserem nesse grupo privilegiado, uma

vez que também apresentam, de certa forma, caráter agentivo (posicionamento adotado

implicitamente por Marinho) e podem receber base verbal como em ‘assadeira’, ‘geladeira’ e

’torradadeira’, entre outras.

Já na Linguística Cognitiva, embora haja tratamento de todas as acepções como

relacionadas, em maior ou menor grau, em geral, os trabalhos destinados à análise das

formações X­ eiro (a) colocam o foco nas construções agentivas, pois são assumidas como o

centro prototípico da rede polissêmica a partir do qual irradiam, direta ou indiretamente, todas

as outras acepções.

Com relação ao presente estudo, este se destaca justamente por dar a mesma

relevância às construções denominais não agentivas, por entender que elas formam um grupo

de construções à parte, que podem ser instanciadas por diversos sufixos (­ada, ­al, ­agem,

­aria). Em outras palavras, advogo em prol de um esquema abstrato, nos termos de Booij

(2010), não agentivo que ocupa o nó mais alto da cadeia de formações denominais sufixadas

não agentivas do português. Além disso, mesmo no caso das construções X­eiro(a), em que os

diversos estudos propõem que as construções não agentivas derivam, direta ou indiretamente,

das agentivas, dados históricos contradizem essa visão, como se argumenta no capítulo 6.

4.2. O sufixo ­ário em Português: breve revisão bibliográfica.

Embora não tenha despertado interesse equivalente ao do seu “irmão” ­eiro, o sufixo

­ário também foi digno da atenção de vários autores, seja em exclusividade, como nos

trabalhos de Spinassé (2000), Nogueira (2003), Damulakis (2003) e Souza (2006), seja na

comparação com outros sufixos, como o de Machado (2005), ou mesmo numa perspectiva

histórica como os de Viaro (2005, 2008, 2010, 2011, 2012) e o de Simões Neto & Soledade

(2015).

Souza (2006) faz um estudo sincrônico sobre as formas X­ário e sua produtividade no

português do Brasil, com base no modelo de Aronoff (1976) e Basilio (1980). Ao contrário de

estudiosos como Spinassé (2000), Nogueira (2003) e Damulakis (2003) que dividiram as

formações X­ário em cinco grupos (objeto, locativo, adjetivo, agente e classificador

zoológico), a autora divide o grupo ‘agente’ em três subgrupos: agente profissional, agente

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circunstancial e agente beneficiário.

É nítido que tanto ‘operário’ como ‘estagiário’ designam agentes. Entretanto, pode ser percebida uma sutil diferença entre esses vocábulos. O primeiro nos remete à idéia de um profissional genérico, que quase sempre trabalha em indústrias. O segundo, por sua vez, não contém a idéia de profissão, por se tratar de uma situação em que temporariamente alguém se encontra. Assim, percebeu­se a necessidade de se separar o grupo agente em profissional e circunstancial, pois o segundo representa atividades de caráter transitório, e não uma profissão propriamente dita. Além disso, também pareceu necessária a inclusão do grupo beneficiário para dar conta, entre outras, das formações ‘locatário’ e ‘destinatário’, em que o sujeito possui um caráter mais passivo, ou seja, parece constituir o alvo da ação expressa pela base (e não o detonador). (Souza, 2003, p. 31)

Com isso, chega ao número de sete grupos, dos quais apenas um é considerado

produtivo, a saber, o grupo locativo. Todos os demais são improdutivos, segundo a autora, que

adotou a formação de novas palavras na língua como critério para o julgamento acerca da

produtividade, ou seja, formações recentes são indícios de produtividade.

1 ­ LOCATIVO Antiquário, aquário, armário, confessionário, fraldário, minhocário, planetário, vestiário 2 ­ AGENTE PROFISSIONAL Aeroviário, bibliotecário, discotecário, empresário, ferroviário, operário, publicitário. 3 ­ AGENTE CIRCUNSTANCIAL Adversário, estagiário, falsário, mesário, milionário, presidiário, universitário, voluntário 4 ­ OBJETO Calendário, diário, dicionário, fichário, formulário, glossário, lampadário, refratário 5 ­ ADJETIVO Alfandegário, cambiário, hereditário, lendário, literário, necessário, prioritário, solidário. 6 ­ BENEFICIÁRIO Alugatário, comodatário, depositário, destinatário, indultário, locatário, testamentário 7 – CLASSIFICADOR ZOOLÓGICO Antozoário, cnidário, entozoário, metazoário, metazoário, parazoário, locustário

Entretanto, acerca de algumas formações agentivas recentes, tais como ‘aeroviário’,

‘metroviário’, ‘hidroviário’ e ‘rodoviário’, Souza argumenta:

entendemos que tais exemplos podem ser considerados como casos de analogia (Basilio, 1997), já que todos eles estão relacionados com as formações X­via: aerovia, hidrovia, metrovia e rodovia, entre outras. Como todas as novas formações apresentam a seqüência ­viário, parece razoável uma análise pela analogia, já que, ao que tudo indica, as formas mais recentes se espelham na mais antiga ­ ‘ferroviário’ ­, cuja entrada na língua data, segundo Cunha (1991), do início do século XX. (Souza, 2006, p. 39)

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Com isso, reforça a ideia de que apenas o grupo locativo é produtivo na língua, ao contrário

das formações X­eiro que apresentam mais grupos produtivos . 82

Cabe, então, fazer uma comparação mais detalhada entre as formações X­eiro e X­ário

destacando suas semelhanças e, sobretudo, suas diferenças. Antes, é importante ressaltar que

nem todos os grupos X­ário descritos por Souza (op. cit.) serão aqui analisados, já que este

trabalho se restringe a examinar os substantivos denominais. Sendo assim, os agentes

beneficiários ficam de fora da análise, porque são formados quase em totalidade por bases

participiais ou adjetivais, à exceção apenas de ‘alimentário’, ‘comodatário’, ‘indultário’ e

‘beneficiário’.

Outros grupos que também ficam de fora da análise são os adjetivos e o grupo

denominado classificador zoológico. Os primeiros por fugirem aos objetivos da tese, já que o

foco do presente trabalho recai sobre os substantivos. Já os segundos, são, na verdade,

formações neoclássicas, pois são exclusivas de vocabulário técnico e científico introduzidas

na língua a partir do século XIX. As palavras desse grupo se ligam a radicais eruditos, a

exemplo de ‘fitozoário’, formado a partir do radical grego fito­, “planta”. A maioria absoluta

não apresenta condições para a isolabilidade das bases, que, por seu caráter técnico, são

inteiramente opacas para a maioria dos falantes.

4.3. Embora “irmãos”, bastante diferentes… uma análise comparativa entre ­eiro e ­ário

Comecemos a análise comparativa entre ­eiro e ­ário pelas formações agentivas. Com

relação aos agentes profissionais, cabe elencar algumas diferenças entre esses dois sufixos e a

primeira delas é quanto às características formais. Enquanto os agentes profissionais X­eiro

apresentam bases substantivas concretas, muitos dos profissionais X­ário possuem base

abstrata (dos 24 dados, 12 são de base abstrata). Mesmo no caso de palavras como

‘empresário’, a base ‘empresa’ não remete a um lugar físico, mas a uma instituição, uma

entidade jurídica, ou mesmo um empreendimento para a realização de um objetivo , conforme

Houaiss (2002). O mesmo se pode dizer de ‘aerovia’ (> ‘aeroviário’) e ‘hidrovia’ (>

‘hidroviário’) que não são estradas físicas concretas, mas rotas abstratamente delimitadas,

respectivamente, no espaço aéreo e no mar (ou rio).

82 Em geral, o número de grupos X­eiro considerados produtivos varia entre 5 e 6. Marinho (2004) divide as formações X­eiro em 11 grupos, dos quais 5 são produtivos. Já autores como Gonçalves, Yakovenco e Costa (1998), Gonçalves & Almeida, (2006) e Pizorno (2010) dividem em 6 grupos considerados produtivos.

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Com relação aos produtos da construção X­ário profissional , pode­se dizer que apresentam

fluidez categorial, uma vez que 17 deles podem funcionar tanto como adjetivo, quanto como

substantivo , diferentemente dos profissionais X­eiro, todos substantivos. 83

No que tange a valores semântico­pragmáticos de ambos os sufixos, pode­se afirmar

que ­eiro e ­ário, embora apresentem grupos semelhantes, não são sufixos sinônimos, como

faz parecer a tradição gramatical ao apresentar listas de sufixos e seus valores semânticos

(seja numa perspectiva semasiológica, seja numa perspectiva onomasiológica, cf. seção 5.1) . 84

E, nesse quesito, uma característica importante dos profissionais X­ ário é seu caráter

genérico. Souza (2006), por exemplo, afirma que agentividade expressa por ­ário deve ser

vista como genérica, uma vez que

… o agente resultante não age diretamente sobre o que se especifica na base, como nas formações X­eiro (‘sorveteiro’, ‘sapateiro’) e X­ista (‘dentista’, ‘manobrista’) (...). Nesse sentido, pode ser notado, nas construções X­ário, que as profissões apresentam um caráter genérico, em que o sufixo possui uma função hiperonímica, denominada de “guarda­chuva” por Spinassé (2000). Em outras palavras, ­ário não representa profissões pontuais, como faz ­eiro, já que não remete aos seguintes significados: (a) que produz X; (b) que vende ou negocia X; e (c) que conserta X. Assim, é bastante claro que “rodoviário” constitui um agente, mas não pontual ou específico, e sim um representante de toda uma classe de profissionais. Nesse caso, o termo pode remeter tanto ao motorista do ônibus, como ao cobrador e ao fiscal, entre outros.” (Souza, 2006, p, 37­38)

De fato, no corpus analisado, há 18 agentes de caráter genérico e apenas 6 de caráter

pontual. Souza (op. cit.) defende que o caráter genérico dos profissionais X­ário foi fruto de

uma especialização semântica. Esse caso será mais detalhado na seção 6.2.

Outra característica que difere os profissionais X­eiro e X­ário diz respeito ao nível de

especialização e ao grau de prestígio da profissão. Se, por um lado, profissões como

‘bancário’, ‘bibliotecário’ e ‘publicitário’ pressupõem maior nível de educação

formal/intelectualização, profissões em ­eiro, como ‘chaveiro’, ‘sorveteiro’, ‘jornaleiro’ e

‘porteiro’, são profissões que exigem menor nível de educação formal e, consequentemente,

possuem menor prestígio social . 85

83 As palavras ‘boticário’, ‘discotecário’, ‘escriturário’, ‘empresário’, ‘funcionário’, industriário e ‘secretário’ funcionam apenas como substantivo. 84 Além das gramáticas tradicionais, também Monteiro (1987) considera ­ário um alomorfe de ­eiro, o que não se justifica nem do ponto de vista histórico. 85 Tal característica deve ser entendida em termos de tendência, uma vez que há exceções de ambos os lados. A profissão ‘engenheiro’, por exemplo, pressupõe alto grau de educação formal e possui prestígio na sociedade, ao passo que ‘operário’, pressupõe baixo grau de instrução e menor prestígio.

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Alguns autores já chamaram a atenção para essa diferença entre os agentivos do

português. Gonçalves, Yacovenco e Costa (1998), por exemplo, numa abordagem formalista e

com base em traços semânticos, propõem a seguinte caracterização para os agentivos sufixais:

X­o X­ista X­ário X­eiro

+ prestígio social + especializado + intelectual + formal

+ prestígio social + especializado + intelectual ­ formal

­ prestígio social ­ especializado + intelectual ­ formal

­ prestígio social ­ especializado ­ intelectual ­ formal

Quadro 9: Classificação dos agentivos segundo Gonçalves, Yacovenco e Costa (1998)

Já Rondinini (2004) propõe a seguinte escala de status dos agentes formados por

sufixação em português, que vai do polo com maior status (à esquerda) para o menor status (à

direita):

­ólogo >>> ­ógrafo >>> ­ista >>> ­ário >>> ­eiro

Ao lado dos profissionais, ambos os sufixos apresentam outra categoria de agentes:

agentes habituais, que são formados por sufixo ­eiro, e agentes circunstanciais, formados pelo

sufixo ­ário. Os agentes circunstanciais das construções X­ário, entretanto, não são meros

correspondentes dos agentes habituais X­eiro. Embora apresentem aspectos semelhantes que

os aproximam, também exibem características bastante particulares, sobretudo em termos

semânticos.

No que tange às semelhanças, ambos são formados predominantemente por bases

abstratas (‘fofoca’ > ‘fofoqueiro’; ‘estágio’ > ‘estagiário’). Dos 92 dados de habituais, 78 são

de base abstrata e 14 são de base concreta, ao lado dos circunstanciais com apenas 3 dados de

base concreta de um total de 26 palavras. Uma consequência dessa predileção por bases

abstratas é a abstratização de bases concretas, como é o caso de ‘cachaceiro’ e ‘mesário’. O

termo ‘cachaceiro’ não é utilizado para se referir apenas àquele que tem o hábito de beber

cachaça, mas àquele que tem o hábito de consumir bebidas alcoólicas em geral. Assim,

‘cachaça’ está, metonimicamente, por todas as outras bebidas alcoólicas, o que, de certa

forma, enfraquece o caráter concreto da base, deixando­a mais abstrata. Basta comparar

‘cachaceiro’ e ‘brahmeiro’: o primeiro é dado ao consumo excessivo de qualquer tipo de

bebida alcoólica e não apenas a cachaça. Já o segundo é muito mais específico, uma vez que

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não é sequer o apreciador de cerveja em geral (designado pelo termo ‘cervejeiro’), mas aquele

que aprecia e consome habitualmente a cerveja da marca Brahma, ou seja, a base é, de fato,

concreta.

Já ‘mesa’, em ‘mesário’, não se refere ao objeto físico, mas no período de eleição, ao

indivíduo que fiscaliza e dirige os trabalhos relativos à votação numa seção eleitoral, o que

comprova que a relação com o objeto físico que serviu para cunhar o termo já está bastante

desgastada . Sendo assim, há, novamente, um processo metonímico que torna o significado da

palavra base mais abstrato.

Com relação à categoria do produto, ambos apresentam tendência à flutuação

categorial. Dos 92 dados X­eiro habitual , somente seis funcionam apenas como substantivos

(‘caroneiro’, ‘catimbeiro’, ‘chincheiro’, ‘fanfarreiro’, ‘fogueteiro’ e ‘marreteiro’). Já no grupo

dos agentes cirtunstanciais, dos 26 dados, 4 funcionam apenas como substantivos

(‘credenciário’, ‘estelionatário’, ‘mesário’, ‘vigário’).

No que concerne às diferenças, os agentes habituais, como o próprio nome pressupõe,

expressam uma ideia de habitualidade da entidade designada pelo produto em relação à

entidade designada pela base. O pagodeiro, por exemplo, não é o indivíduo que ouve pagode

esporadicamente e/ou gosta razoavelmente do estilo musical. Para que alguém seja

considerado um pagodeiro, é preciso que este indivíduo goste bastante do gênero e tenha o

hábito de ouvir tal estilo musical. O mesmo se pode afirmar de ‘brahmeiro’, ‘funkeiro’,

‘maconheiro’ e ‘twitteiro’, entre outros. Ao contrário, a ideia de hábito não está presente nos

agentes circunstanciais. Segundo Souza (2006), agentes circunstanciais dizem respeito a

atividades de caráter transitório, que expressam a situação em que alguém se encontra

temporariamente (SOUZA, 2006, p. 42). Por exemplo, ‘estagiário’ referencia alguém que, por

ainda não estar formado, executa, em determinado período de tempo, o aprimoramento de sua

profissão.

Outra diferença diz respeito ao caráter pejorativo que assumem as formações X­eiro,

ao contrário das formações X­ário que tendem a ser de caráter neutro, com exceção dos

termos ‘falsário’, ‘presidiário’ e ‘estelionatário’. A pejoratividade dessas palavras, porém, já

reside em suas bases (‘falso’ ­ no sentido de coisa falsa; ‘presídio’; ‘estelionato’).

O debate sobre a natureza do valor pejorativo de algumas formações sufixadas não é

recente, variando entre aqueles que afirmam que a pejoratividade é herdada da base e aqueles

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que afirmam ser característica do sufixo em si. É dessa opinião Frota (1985), para quem a

pejoratividade está localizada exclusivamente no afixo. Já Gonçalves, Yakovenco & Costa

(1998) argumentam que a pejoratividade é característica da base. Para esses autores,

(a) se a base é negativa (como ocorre na maioria dos casos), o sufixo, ao indicar o agente habitual, não é, de fato, o elemento que imprime pejoratividade à construção, visto que, sendo a base negativa, o elemento dela formado receberá carga negativa, quer a pratique em excesso, quer não; (b) bases positivas ou neutras (como em seresteiro e conselheiro) não têm necessariamente a marca de pejoratividade (Gonçalves, Yakovenco & Costa, 1998, p. 55)

Soledade (2013), ao analisar dados do português arcaico, chega à conclusão

semelhante à de Gonçalves, Yakovenco & Costa:

Acerca do caráter pejorativo que o sufixo ­eir­ parece ter assumido ao longo do tempo, não se pode afirmar que já estivesse presente no PA. As instanciações que apresentam uma noção depreciativa devem esse aspecto à semântica da base e não do sufixo: (p.ex.: aguireiro, fasleiro, mentireiro, usureiro). Em bases neutras, (como braceiro ‘viríl, forte’; praceiro ‘sociável’) observa­se inclusive o valor apreciativo, também, obviamente comum em bases com essa natureza (certeiro, justiceiro, sabedeiro, verdadeiro, vertudeiro). No que se refere aos empregos substantivos referentes a agentes profissionais, vale ressaltar que no PA não há registro de formações em –ista (sufixo que será introduzido posteriormente no português). Assim, ­dor e ­eir­ concorriam para produzir instanciações dessa natureza, sendo os primeiros empregados para formações cuja base é um verbo e o segundo para formações cuja base é um substantivo, os usos desses dois sufixos no PA não parece lincenciar nenhum tipo de inferência quanto a um suposto valor pejorativo de ­eir­, haja vista que profissões de relativo prestígio eram designadas por instanciações com esse sufixo (p. ex.: albergueyro; cavaleiro; despenseiro; mercadeiro; pessoeiro; pousadeiro). (SOLEDADE, 2013, p. 107)

É muito plausível a hipótese de que ­eiro passou, paulatinamente, a assumir valor

pejorativo em decorrência (a) de uma rotinização desse valor devido ao grande número de

bases de carga negativa às quais se anexa e (b) da pressão do princípio da não sinonímia

(GOLDBERG, 1995), devido a concorrência com outros sufixos agentivos. Embora esses

autores afirmem que o caráter pejorativo não é do sufixo em si, mas da palavra base, não se

pode perder de vista o fato de ­eiro imprimir valor negativo quando posto em contraste com

outro sufixo agentivo, desqualificando a atuação profissional do agente, conforme exemplos

abaixo:

(30a) Mario José da Silva fez uso ilegal de sua profissão; não é propriamente um escriturário , mas sim um escritureiro . (O Dia, 17. 08. 1997)

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(30b) Fernando é um pós­moderneiro, isso sim!

Embora o exemplo (30b) tenha sido inventado, é inteiramente possível e passível de

ocorrer em situação real de fala. Outros pares como ‘surfista’ : ‘surfeiro’ e ‘teatrólogo’ :

‘teatreiro’, ‘medalhista’ : ‘medalheiro’, ‘gerativista’ : ‘gerativeiro’, ‘pianista’ : ‘pianeiro’

reforçam o caráter pejorativo de ­eiro em relação a outros sufixos. Outro fator que deve ser

ressaltado é que valores semântico­pragmáticos são codificados na própria construção (cf.

discutido no capítulo 2). A pejoratividade é típica das construções agentivas e não está

presente nas construções não agentivas.

A pejoratividade nas formações X­eiro parece ser um processo ainda em curso, já que

num subesquema específico ­ agentes habituais ­ essa noção parece já estar bem mais

acentuada e menos dependente de contexto, ao passo que no subesquema dos profissionais a

pejoratividade é ainda dependente de contexto, como nos exemplos (30a) e (30b).

Não se pode confundir também profissão de pouco prestígio com pejoratividade. A

pejoratividade é uma emissão subjetiva de juízo de valor expressa pelo falante durante sua

fala, o que caracteriza uma função discursiva de X­eiro agentivo , nos termos de Basilio (1987).

Sabemos que, na nossa sociedade, ‘açougu eiro ’ é uma profissão de baixo prestígio em relação

a muitas outras. Entretanto, o termo não é pejorativo, como ‘fofoqueiro’ e ‘barraqueiro’, por

exemplo.

Ainda na comparação entre ­ eiro e ­ário, cabe comentar as conclusões de Machado

(2005) acerca da competência lexical dos falantes em relação a esses afixos. Seu trabalho é

uma proposta de aproximar a Teoria da Otimalidade (OT) à Gramática das Construções (GC),

cujo objetivo principal é rastrear “ as restrições semântico­pragmáticas pela Linguística

Cognitiva, a partir dos pressupostos teóricos da OT ”. (MACHADO, 2005, p. 51). A autora

faz um levantamento de 8 restrições relevantes na escolha dos sufixos agentivos denominais 86

­eiro, ­ista, ­ário, ­ólogo/­ógrafo. No intuito de neutralizar a interferência de sua subjetividade,

Machado elaborou um teste de aceitabilidade para averiguar como os falantes interpretam as

palavras derivadas por ­eiro, ­ário, ­ista e ­ólogo.

O teste é constituído de sete questões, seguindo o modelo abaixo. A forma consagrada

foi eliminada do teste (no caso abaixo, ‘jardineiro’), mantendo­se apenas os sufixos

86 1. Restrição de evento; 2. Restrição de agente; 3. Restrição de ofício; 4. Restrição de especialização; 5. Restrição de input; 6. Restrição de output; 7. Restrição de base = palavra; 8. Restrição da subjetividade. (MACHADO, 2005, p. 79­116)

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concorrentes. O falante, então, precisava marcar a interpretação que julgasse mais adequada

para cada uma das formas e numerar apenas uma opção para cada item.

Como você interpreta as seguintes palavras?

A) 1. jardinista 2. jardinário 3. jardinólogo ( ) Aquele que trabalha com jardins ( ) Local onde os jardins são expostos ( ) Aquele que vive em jardins ( ) Aquele que entende de jardins ( ) Um péssimo profissional em jardinagem

Com relação a ­eiro e ­ário, o resultado do teste comprovou que o sufixo ­ário

atualmente é interpretado pelos falantes como formador de locativos, ao passo que ­eiro é o

agentivo denominal prototípico, em consonância com o teste de aceitabilidade aplicado por

Marinho (2004). Em outras palavras, a acepção agentiva de ­eiro, em relação às outras

acepções que o sufixo pode expressar, é a mais facilmente acessada pelos falantes. De fato,

vários outros trabalhos colocam a acepção agentiva de ­eiro como a mais produtiva.

Nesse ponto, cabe revisitar a distinção feita por Viaro (2007), e adotada neste trabalho,

entre produtividade e prolificidade. A quantidade de palavras por si só não é indício de

produtividade; é, na verdade, prova cabal apenas de sua prolificidade. A prolificidade é

sempre resultado de uma produtividade, mas o que importa para dizer que um esquema

abstrato é prolífico é o número resultante de derivações. Já a produtividade tem a ver com a

capacidade de um esquema gerar, sincronicamente, palavras novas. Assim, a prolificidade

pode ser obtida pela soma do resultado da produtividade em diversas sincronias. Por outro

lado, produtividade tem a ver com vivacidade. Em outras palavras, um esquema morfológico

é produtivo se ainda estiver “vivo”, ou seja, ativo na atual sincronia.

Com relação aos não agentivos, as construções X­ eiro subdividem­se em cinco

grupos: locativos (20 dados), objetos recipientes (64 dados), objetos não recipientes (20

dados), angiospermas (100 dados) e excesso de X (29 dados). À exceção deste último, os

demais são formados por bases concretas para criar substantivos também concretos. As

palavras que designam entidades em excesso como ‘aguaceira’, por exemplo, possuem bases

concretas, mas o produto é de caráter abstrato.

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Já os não agentivos X­ário se dividem em apenas dois grupos: locativo e objeto . A 87

base dos locativos é, predominantemente, concreta ­ das 35 palavras do corpus , 25 são

formadas por base concreta e 10 por base abstrata. Todos os seus produtos, porém, são

substantivos concretos. Já o grupo objeto se constitui de 20 dados, sendo 17 formados por

bases abstratas e apenas 3 por bases concretas. Assim como os locativos, todos os seus

produtos são substantivos concretos.

Com relação aos objetos, muitos derivam da noção “conjunto de X”. Dos 20 dados, 15

veiculam essa acepção, sendo que 11, por metonímia, passaram a designar objetos, a exemplo

de ‘glossário’, ‘anedotário’, ‘fabulário’ e ‘fichário’. No caso de ‘devocionário’, ‘evangeliário’,

‘anuário’ e ‘obituário’, tudo indica que essas palavras já surgiram com a noção de “livro onde

se constam/registram X”, já que o dicionário Houaiss não registra a acepção “conjunto de X”

para essas entradas. Isso significa que essas palavras se formaram como objetos sem ter

passado antes pela noção de coleção. Entretanto, a acepção “conjunto de X” está implícita nos

quatro casos.

Outro ponto importante a se destacar é a mudança categorial pela qual os objetos

passaram. A maior parte constitui extensão de adjetivos, a exemplo de ‘diário’ (aquilo que é

relativo ao dia ­ trabalho diário , corrida diária etc.), que, por metonímia, passou a designar o

livro onde se tomam notas diariamente, e, consequentemente, a ser usado também como

substantivo. Na verdade a fluidez categorial é típica das construções X­ ário Ao contrário das

construções X­eiro, em que a possibilidade do uso substantivo ou adjetivo só ocorre nos

agentes habituais, tal flutuação está presente em quase todas as formações X­ário, com

exceção apenas dos locativos.

Em suma, embora tenham a mesma origem, ­eiro e ­ário diferem bastante em diversos

aspectos, tanto formais, quanto semântico­pragmático. O próximo capítulo é destinado à

apresentação da proposta principal da presente tese: a descrição das construções X­eiro e

X­ário mediante integração da Rede Conceitual de Contiguidade (RCC) com a Morfologia

Construcional (MC).

87 Manteve­se aqui o nome ‘Objetos’, não só por ser a nomenclatura já consagrada, mas também por ser predominante o número de objetos nesse grupo. Há, porém, palavras que não são objetos, como ‘itinerário’. Todas ficam reunidas, pois, numa análise em nível mais esquemático, já que compartilham a acepção de coletividade.

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5. APRESENTAÇÃO DA PROPOSTA CENTRAL

O presente capítulo tem como ponto central a apresentação e o detalhamento da

proposta de unir a RCC ao componente semântico da morfologia construcional. Antes, porém,

faz­se necessário um debate sobre como a relação entre forma e conteúdo na sufixação tem

sido abordada em diversas linhas teóricas e sobre a vantagem da RCC como ferramenta útil na

descrição de tais relações, o que será feito na seção 5.1. As duas seções seguintes (5.2 e 5.3)

são destinadas justamente à aplicação da referida proposta aos dados de ­eiro e ­ário.

5.1 Um breve apanhado sobre a relação forma e conteúdo na sufixação

Sufixos são formas presas que se adjungem à direita de uma base. Juntamente com os

prefixos, são elementos morfológicos que participam de processos de formação de novas

unidades lexicais. Em relação aos prefixos e às bases (radicais livres e presos), são

considerados unidades prototípicas da derivação, conforme mostram estudos que tratam da

natureza contínua das categorias derivação­composição. (BAUER, 2004; KASTOVSKY

2009; RALLI 2010; GONÇALVES, 2011a, 2011b, 2011c; GONÇALVES & ANDRADE,

2012, ANDRADE, 2013; TAVARES DA SILVA, 2013; apenas para citar alguns). Tavares da

Silva (2013) elenca algumas características que distinguem os sufixos dos prefixos:

1. apresentam posição fixa à direita;

2. podem gerar produto de etiqueta lexical distinta da etiqueta da base;

3. podem atribuir gênero, seja alterando essa informação (‘a mulher’ > ‘o mulherão’; ‘a

rã’ > ‘o ranário’), seja atribuindo gênero ao se adjungir a uma base desprovida de tal

especificação (‘abater’ > ‘o abatimento’; ‘coroar’ > ‘a coroação’);

4. geralmente, são cabeças semânticas das formações, à exceção de ­inho, ­ão e demais

marcadores de grau;

5. podem se anexar tanto a palavras quanto a radicais, ao contrário dos prefixos, que só

se anexam a palavras;

6. geralmente, afetam a acentuação das bases ( den te > den tis ta; mar te lo > marte la da;

co po > co pi nho), ao contrário dos prefixos, em que isso nunca ocorre;

7. podem apresentar função discursiva (BASILIO, 1987), servindo, ao falante, como

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veículo para exteriorização de suas impressões a respeito de algo ou alguém, ao

contrário dos prefixos que não se prestam a esse papel (GONÇALVES, 2005) . 88

Com relação a uma descrição semântica mais geral e que englobe todos os sufixos ou,

ao menos, um número considerável deles, fica nítida a dificuldade e a vagueza ao se tratar do

assunto. Autores como Basilio (1987), Sandmann (1985 e 1989) e Rocha (2008) não vão além

da observação de que afixos expressam uma ideia geral, ao passo que a base expressa uma

ideia particular ou menos geral.

Sandmann (1989, p. 34), por exemplo, afirma que a derivação se forma por uma base e

um afixo, “ cabendo a este expressar uma ideia geral e à base uma ideia particular ou menos

geral ”. Mais adiante (p. 34­35), ao falar dos sufixos, afirma que estes têm

(...) significado mais abstrato por não se referirem sozinhos ou isoladamente a entidades do nosso universo biofisicopsicossocial. A propósito, comparem­se, por exemplo, eira/eiro (banana + eira = bananeira, abacate + eiro = abacateiro) com árvore, planta ou arbusto: árvore que dá bananas/abacates, arbusto que dá amoras, planta que dá tomates. ­Eira/eiro é mais genérico, mais abstrato, não tem sozinho conotações, no que se diferencia de árvore, arbusto, planta, erva, etc. Outro exemplo seria ­ada no sentido de golpe: facada, coronhada, p. ex., em que a semântica exata do todo está condicionada à característica da base: a faca fura ou corta, a coronha não, sem levar em conta outros significados de ­ada (churrascada, noitada, colherada, etc.).

Para Rocha (2008, p. 106) “ o sufixo se distingue de uma base pelo fato de não

apresentar significação e/ou função (S/F) própria, autônoma, independente. Essa S/F só será

explicitada se o sufixo estiver anexado a uma base. A rigor deve­se falar, portanto, na S/F do

produto e não na S/F do sufixo. ” Colnaghi (2001, p. 89­90) afirma que não há uma

regularidade quando se tem uma base + um sufixo derivacional, pois as propriedades

semânticas do novo item lexical não são perfeitamente dedutíveis a partir da base primitiva.

Essa dificuldade de descrever o valor semântico dos sufixos se dá, em primeiro lugar,

pelo fato de a tradição ver as estruturas linguísticas como composicionais, excluindo, assim,

de sua descrição, a noção de construção. Entretanto, paradoxalmente, reconhece­se que um

sufixo, por si só, não tem valor semântico ou função específicos. A solução para esse impasse

é atribuir valor semântico diretamente ao produto, como o fazem Rocha (2008) e gramáticos

tradicionais em geral. Em segundo lugar, elementos da derivação apresentam alta tendência à

88 Essa máxima também não é livre de contraexemplos. Alguns poucos prefixos, como super­, mega­, ultra­ e hiper podem servir à expressão de valores subjetivos do falante.

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geração de redes polissêmicas, ao contrário dos elementos da flexão, que se caracterizam por

apresentar maior estabilidade semântica , nos termos de Gonçalves (2005, 2011).

Nas gramáticas tradicionais, a junção de uma análise composicional com uma intensa

e empiricamente constatada variabilidade semântica resulta na criação de listas com diversos

grupos semânticos que ora são apresentadas onomasiologicamente, ou seja, partindo de um

significado específico para os diversos sufixos que podem formar palavras com aquele

significado; ora são apresentadas semasiologicamente, ou seja, partindo de um sufixo

específico para os vários significados que pode expressar na relação base­sufixo.

Além disso, tais listas também classificam os sufixos de acordo com a sua função na

relação base­sufixo, dando informações sobre a categoria lexical da base e do produto (ex.,

formadores de adjetivos a partir de substantivos; formadores de nomes a partir de verbos;

etc.). Rocha Lima, por exemplo, classifica os sufixos segundo apenas sua função, pois, para o

gramático, sufixos são vazios de significado.

“Ao contrário dos prefixos, que, como vimos, guardam certo sentido, com o qual modificam, de maneira mais ou menos clara, o sentido da palavra primitiva, os sufixos, vazios de significação, têm por finalidade formar séries de palavras da mesma classe gramatical. Assim, por exemplo, o único papel do sufixo ez é criar substantivos abstratos, tirados de adjetivos: altivo ­ altivez; estúpido ­ estupidez; surdo ­ surdez, etc.” (LIMA, R. 1976, p. 180­181)

A descrição de Rocha Lima é criticada por Sandmann (1989, p. 11), para quem os

sufixos não são vazios de significados nem mais vazios do que os prefixos, e correspondem

semanticamente, muitas vezes, a lexemas: ‘violeiro’, uma derivação sufixal, corresponde

semanticamente ao grupo sintático ‘tocador de viola’, por exemplo.

Cunha & Cintra (2001) não fazem nenhum comentário acerca da sufixação tampouco

sobre a semântica dos sufixos. Limitam­se a expor uma lista com sufixos e as possíveis

acepções para cada um deles, seguidos de dois ou três exemplos. Bechara (2006) vai um

pouco além ao afirmar que

“sufixos dificilmente aparecem com uma só aplicação; em regra, revestem­se de múltiplas acepções (...). Ao lado dos valores sistêmicos, associam­se aos sufixos valores ilocutórios intimamente ligados aos valores semânticos das bases a que se agregam, dos quais não se dissociam.” (BECHARA, 2006, p. 357)

Pode­se depreender desse trecho que, para o autor, a semântica de uma palavra derivada por

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sufixação é composicional e obedece à seguinte equação:

SP = VSb + VSs [valores sistêmicos + valores ilocutórios].

SP: Semântica da palavra VSb: Valores semânticos da base VSs: Valores semânticos do sufixo

Após breve comentário sobre a semântica dos sufixos, Bechara (2006) limita­se a

apresentar listas de valores semânticos e os sufixos que atualizam tais valores na relação 89

base­sufixo. A mera apresentação de listas sem uma sistematização e maior detalhamento

acerca da sufixação, característica encontrada em todas as gramáticas tradicionais, é bastante

criticada em Rocha (2008, p. 56­60). O autor, ao ir contra a tradição gramatical, afirma que

esta “ deixa a impressão de que o estudo da sufixação consiste apenas na apresentação de

uma lista ”.

Numa breve análise dessas listas, fica realmente nítido que se resumem à apresentação

de formações já consagradas na língua, sem tomar como base de sua descrição toda a

potencialidade e produtividade dos processos de formação de palavras, excluindo, inclusive,

formações não dicionarizadas. Essa característica decorre, principalmente, de dois fatores.

O primeiro deles é o fato de as gramáticas normativas ainda serem muito presas à

tradição. Mais uma vez, Rocha (2008, p. 49) traz comentário bastante elucidativo ao afirmar

que “ os compêndios gramaticais vigentes são cópias de gramáticas antigas, que, por sua vez,

são cópias da gramática latina, que, por sua vez, é cópia da gramática grega ”. De fato, não

há muita inovação no que concerne aos conteúdos expostos nas gramáticas mais recentes se

comparadas às mais antigas.

O segundo diz respeito à noção de formação de palavras adotada por esse tipo de obra.

Segundo Basilio (1987, p. 15­16), o termo ‘formação’ tem duas interpretações: uma ativa, em

que o termo ser refere ao processo de formar palavras, e uma mais passiva, atribuída à

maneira como as palavras são constituídas. Para a autora, as gramáticas normativas seguem a

segunda interpretação. Procuram, assim, dar conta apenas das características das formas já

construídas.

O fato de as gramáticas tradicionais serem marcadas pela ausência de detalhes sobre

89 Embora não haja nada explícito, infere­se que esses valores sejam os chamados pelo autor de ‘sistêmicos’.

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questões de produtividade dos processos de formação, sobre regularidades semânticas, sobre

previsibilidade de possíveis combinações e, principalmente, sobre a capacidade que o falante

tem de criar novas palavras a partir de um paradigma já estabelecido na língua confirma que

formação de palavras é empregada no sentido passivo, nos termos de Basílio.

Nos estudos linguísticos, as correntes estruturalistas e gerativistas trouxeram, sem

dúvida, avanços notáveis à descrição das estruturas morfológicas. Porém, pautadas numa

análise composicional e no privilégio da forma, deram foco demasiado à homonímia,

relegando à polissemia papel secundário.

No estruturalismo, por exemplo, sobretudo o norte americano, houve grande

preocupação em segmentar, depreender e classificar os morfemas. Em sua tarefa de descrição

de línguas indígenas, o estruturalismo americano vai operar com a identificação de morfemas

por meio da análise comparativa (via testes de comutação e substituição), buscando, assim,

estabelecer essas unidades irredutíveis, sua ordenação linear e os padrões que regem a sua

combinação.

Cabe ressaltar que a abordagem estruturalista preocupa­se apenas com a determinação

da estrutura das palavras já formadas, caracterizando­se por ser uma abordagem em que o

termo ‘formação de palavras’ tem uma interpretação passiva. Além disso, a análise

morfológica estruturalista se caracteriza por ser composicional. Assim, no caso da sufixação,

uma base (que pode ser uma forma livre ou presa) de significado X se junta a um sufixo (que

é uma forma presa) de significado Y para formar uma palavra derivada, cujo significado é

resultado da soma de X e Y.

A noção de morfema, então, é primordial, uma vez que este é visto como unidade

significativa mínima. Em outras palavras, é o significado mínimo recorrente que autoriza o

analista atribuir estatuto de morfe a uma forma não mais segmentável. Uma vez que um

significado recorrente mínimo leva à determinação de um morfema, significados recorrentes

distintos levam a morfemas distintos. Portanto, o ideal de univocidade entre forma e conteúdo

das estruturas morfológicas privilegia o conceito de homomorfia (conceito de homonímia

aplicado a morfemas, como em Gonçalves & Almeida, 2008), em detrimento da polissemia.

A homomorfia se aplica sem problemas a casos como ­ s (elemento que expressa

plural, nos nomes) em contraste a ­s (marca de 2ª. p. sing.), ­a (marca de gênero feminino) em

contraste a ­a (vogal temática de 1ª. conjugação), entre outros. Entretanto, gera bastante

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controvérsia em casos de sufixos como ­eiro, ­ada e ­agem, que podem apresentar mais de um

significado recorrente.

A teoria gerativa, por sua vez, trouxe importante contribuição aos estudos da

linguagem no que concerne à mudança de perspectiva em relação ao estruturalismo, uma vez

que o objeto de descrição linguística passa a ser a gramática da competência. Essa mudança

de perspectiva é fundamental para o caso da formação de palavras, pois o foco passa a ser o

processo, em vez da constituição de formas já feitas. Em outras palavras, passa­se a ter o

estudo da formação de palavras no sentido ativo.

Segundo Basilio (1980, p. 7), “ numa abordagem gerativa, podemos dizer que a

morfologia derivacional é parte da gramática que dá conta da competência do falante nativo

no léxico de sua língua ”. Rocha (2008, p. 30) também tece comentários acerca da morfologia

numa perspectiva gerativa, cujo foco está em explicitar a capacidade ou competência que um

falante nativo tem com relação ao léxico de sua língua, ou seja,

“ a sua capacidade de formar novas palavras [caráter criativo] , de rejeitar outras [infalibilidade da gramática, que nunca gera estruturas agramaticais] , de estabelecer relações entre itens lexicais [principal tese da Hipótese lexicalista, segundo a qual estruturas nominais que são geradas por regras de base e relação entre verbos e nomes acontecem no próprio léxico.] , de reconhecer a estrutura de um vocábulo [por meio de Regra de análise estrutural ­ RAE] , etc .” [grifos meus]

Entretanto, assim como no estruturalismo, a abordagem gerativa prioriza a homonímia

em detrimento da polissemia. A primazia da homonímia decorre do fato de a análise

semântica das palavras, numa abordagem gerativa, partir do pressuposto de que as estruturas

linguísticas são composicionais. Assim, as análises que tentam dar conta da relação forma e

significado das palavras morfologicamente complexas fazem­na de maneira a considerar dois

ou mais significados de uma mesma forma como casos de homonímia e, consequentemente,

como entradas distintas no léxico. O resultado é o estabelecimento de uma Regra de

Formação de Palavra (RFP) para cada significado.

Segundo Gonçalves & Almeida (2008, p. 46), “ a homonímia prolifera a partir de

escolhas teóricas dessas escolas [estruturalismo e gerativismo] por privilegiar a ‘langue ’, o

sistema, a independência do conhecimento linguístico em si (dissociado do enciclopédico), o

reconhecimento de um significado básico, primário ”. Em suma, o gerativismo se afasta do

estruturalismo na maneira como trata o processo de formação de palavras, mas se concilia

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com este no tratamento dado à relação forma e conteúdo das estruturas morfológicas. Assim,

em abordagens formalistas, a junção de uma análise composicional com uma intensa

variabilidade semântica resulta na primazia da homonímia.

Gonçalves & Almeida sugerem que estratégias homonimistas (SOARES da SILVA,

2006, p. 29) são contraintuitivas, já que

“a observação da língua em uso, com produções não­dicionarizadas, evidencia novas criações lexicais que lançam mão do sufixo para veicular este ou aquele conteúdo. São criações relativamente recentes ‘pagodeiro’ e ‘funqueiro’, que podem expressar agente profissional ou habitual, assim como ‘brameiro’, que só designa, pela própria natureza da atividade (consumir uma determinada marca de cerveja), agente habitual. Se há extensão regular dos significados dos sufixos para determinadas acepções, é lícito pensar, pois, que se trata de polissemia e não de homonímia. E mais, que tais extensões formam redes motivadas por processos metafóricos ou metonímicos” (GONÇALVES & ALMEIDA, 2008, p. 47)

Ao contrário das correntes formalistas, a Linguística Cognitiva trata das estruturas

linguísticas não com um olhar composicional, mas como estruturas gestálticas, cujos

significados não podem ser depreendidos simplesmente a partir da soma de suas partes

constituintes. Desde os trabalhos pioneiros de Lakoff (1977) e Fillmore (1979), o princípio da

composicionalidade tem sido alvo de críticas por pesquisadores alinhados à LC (ver seção

2.1).

A não composicionalidade, a não separação rígida entre léxico e gramática e entre

conhecimento linguístico e enciclopédico ­ pressupostos caros à LC ­, além do foco na

semântica (ao contrário das correntes formalistas, cujo foco recai sobre a forma), possibilitam

um tratamento mais econômico às estruturas morfológicas. A preferência pela homonímia,

por exemplo, cede lugar à polissemia. A noção de rede polissêmica torna a análise das

estruturas linguísticas mais enxuta e mais condizente com a observação do funcionamento da

língua em situações reais de uso, uma vez que é mais comum o falante partir de estruturas e

significados já existentes para a criação de novas significações, em vez de criações ex nihilo .

Tomemos como exemplo palavras como ‘maconheiro’, ‘brahmaeiro’ e ‘cachaceiro’,

em que os falantes, a partir de uma construção já consagrada, a saber, os agentes profissionais,

começam a criar nomes de agentes que, se por um lado, não podem ser considerados

profissionais, por outro, caracterizam­se por apresentar caráter agentivo e habitualidade.

Afinal, a habitualidade não deixa de ser uma característica da prática profissional, uma vez

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que um ofício é exercido cotidianamente/rotineiramente. Essa é uma das principais

características do processo de extensão: novas formas herdam propriedades de sua

forma­mãe, ao mesmo tempo em que apresentam propriedades exclusivamente próprias . 90

Assim, num processo de extensão, a recorrência de formações novas resulta em um

novo padrão que

(a) não foi uma criação ex nihilo ;

(b) por isso mesmo, não é totalmente distinto do padrão que lhe deu origem; e

(c) apresenta características formais e semânticas que autorizam ao analista

considerá­lo um grupo à parte, porém, relacionado/ligado a outro.

Exemplo idêntico é o de palavras como ‘feijoada’, ‘bacalhoada’, ‘rabada’,

‘macarronada’ e ‘laranjada’, que foram criadas a partir do padrão já existente “conjunto de

X”, que engloba palavras como ‘boiada’, ‘papelada’, ‘mulherada’ e ‘garotada’, entre outras.

Assim, uma rede polissêmica pressupõe noções de categorização radial e

prototipicidade. A categorização radial prevê que as categorias não são discretas, mas formam

um continuum . Se representantes de uma mesma categoria se distribuem em termos de

membros mais centrais e mais periféricos, subcategorias também podem se distribuir em torno

de uma subcategoria prototípica.

O Núcleo de Estudos Morfológicos do Português (NEMP) tem se dedicado ao

mapeamento e descrição dessas subcategorias morfossemânticas. Diversos trabalhos no

âmbito do NEMP, como os de Gonçalves et al. (2010) e de Alves (2011), sobre polissemia do

sufixo ­ão, Andrade (2013), sobre continuum derivação­composição, Tavares da Silva (2013),

sobre a categorização do formativo eletro­, de Higino da Silva (2016), sobre o formativo

agro­, além de diversos outros trabalhos de Gonçalves e Gonçalves & Almeida, têm mostrado

que subcategorias semânticas giram em torno de uma categoria prototípica.

Tomemos como exemplo o caso do aumentativo português. Algumas obras de cunho

mais tradicional ­ como mostram Gonçalves et al. (2010, p. 142) ­ destacam que “ ­ão e outros

sufixos, como ­aço e ­arrão, denotam apenas tamanho (CUNHA & CINTRA, 1975), chegando

a afirmar que grau é possibilidade de indicar o tamanho do ser que nomeia (LUFT, 1979:

42 ” . Em oposição a essa visão mais tradicional, Gonçalves et al. (2010) argumentam que ­ão

expressa não só tamanho, mas também quantidade, intensidade e avaliação positiva, entre

90 Tais propriedades, tanto as herdadas, quanto as novas, podem ser de natureza formal ou semântico­pragmática.

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outros significados. Cada um desses pode ser considerado uma subcategoria semântica de ­ão,

que forma uma rede polissêmica radialmente estruturada. Assim, todas as subcategorias estão

conectadas em maior ou menor grau ao centro prototípico da rede, como na figura abaixo:

Figura 19: Rede polissêmica do sufixo ­ão proposta por Gonçalves et al. (2010)

A figura acima mostra que a categoria semântica prototípica de ­ão é “tamanho”.

Todas as outras acepções estão diretamente ligadas ao centro (quantidade, avaliação,

contiguidade/imitação e semelhança) ou indiretamente ligadas a ele (intensidade, agente

frequentativo e contiguidade/imitação). A divisão em grupos semânticos, porém, não é

consensual. Alves (2011), por exemplo, propõe a seguinte categorização para as formações

X­ão:

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Figura 20: Rede polissêmica do sufixo ­ão proposta por Alves (2011)

Encontrar propostas divergentes acerca da configuração e distribuição dos grupos

semânticos de uma rede polissêmica é bastante comum. As análises de Botelho (2004),

Marinho (2004), Gonçalves & Almeida (2006) e Pizzorno (2010) para formações X­eiro, por

exemplo, são divergentes nesse aspecto (cf. seção 4.1.).

Separar em grupos semânticos é traçar generalizações, ou seja, constitui tentativa de

englobar, sob o mesmo conjunto de características formais e semânticas, um número

considerável de palavras. A questão é que o número de grupos semânticos, assim como sua

configuração e distribuição na rede polissêmica, depende, até certo ponto, do olhar do analista

e dos critérios por ele escolhidos.

Botelho (2004), por exemplo, não faz a distinção entre agente profissional e habitual,

colocando todos sob o rótulo de ‘agentivos’, ressaltando apenas que há vários tipos de ação

(fazer, produzir, cuidar, guiar, operar, entre outras). Palavras como ‘cafeteira’, ‘pipoqueira’,

‘lixeira’, ‘galinheiro’, ‘sapateira’, ‘pulseira’ e ‘chuteira’, ora são agrupadas sob o rótulo de

objetos, ora separadas em objetos e locativos. Há ainda os que usam o rótulo ‘instrumentos’

para objetos que servem para fazer algo, como ‘cafeteira’, ‘pipoqueira’ e ‘inhoqueira’.

De fato, tomar decisões sobre como distribuir as palavras em grupos semânticos não é

tarefa fácil, uma vez que as categorias não são discretas. Isso pode ser visto facilmente em

julgamentos baseados em paráfrases. Afinal, a sapateira é um objeto para guardar sapatos ou

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um lugar onde se guardam sapatos? O cinzeiro é um objeto usado para colocar cinzas ou um

lugar onde se põem cinzas? Creio que, nesses casos, ambas as paráfrases estejam corretas, o

que mostra que nem sempre a paráfrase pode servir de critério confiável. Como já discutido, é

preciso, pois, ter em mente que não há paráfrase generalizante o suficiente, de modo que

temos sempre de lidar com certa gama de imprecisões.

Vejamos, por exemplo, o que salienta Becker (2014) sobre a semântica dos sufixos e

de seus derivados:

não podemos esquecer que os sufixos podem impor regras de subcategorização muito específicas. Por exemplo, para caracterizar o sufixo ­al que forma coletivos, do tipo pinhal “extenso aglomerado de pinheiros em determinada área” (Houaiss), não é suficiente mencionarmos o pertencimento da base lexical à classe dos substantivos, mas também especificarmos que esses substantivos N designam as frutas das árvores ao conjunto das quais os derivados em ­al referem. Podemos, portanto, descrever a regra de formação da seguinte maneira: N (fruta de uma árvore) → N­al (conjunto de árvores), “pinho” → “pinhal”, “laranja” → “laranjal”. (BECKER, 2014, p. 119­120)

Mesmo essa especificação proposta por Becker (2014) não é generalizante o

suficiente. O que dizer de “roseiral” e “bambuzal”, cujas bases não são frutos? Formariam

grupo à parte? Que tipo de especificação receberia N nesses casos? É bem provável que

qualquer falante nativo coloque ‘roseiral’, ‘bambuzal’, ‘laranjal’, ‘pinhal’ e ‘bananal’ num

mesmo grupo.

Caso semelhante ocorre com o sufixo ­eiro(a) nas formações comumente designadas

pela maioria dos autores como grupo dos vegetais. Apesar de a maioria das formações

obedecerem ao padrão [ N(fruta de uma árvore) → N­eiro(a) (árvore que dá o fruto expresso

em N) ], há palavras que fogem a esse padrão, como ‘roseira’, ‘alecrineiro’, ‘palmeira’ e

‘bambueiro’, cujas bases também não designam frutos.

Diante de tais dificuldades, deve­se então abandonar esse tipo de análise? Obviamente

não, pois é de suma importância para compreensão e descrição da interface

morfologia­semântica da língua. A questão é que há vários tipos e níveis de análise, todos

igualmente válidos e importantes. Há análises que, de tão específicas, são válidas apenas para

uma palavra, ou restritas a pequeno número de palavras.

Como exemplo do primeiro caso, podemos citar a palavra ‘passeador’, utilizada em

referência a pessoas que recebem remuneração para levar animais de estimação, geralmente

cachorros, para andar nas ruas (GONÇALVES & ALMEIDA, 2014, p. 176). Perceba que a

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simples descrição como agentivo formado por base verbal mais sufixo ­dor não é suficiente

para entendermos o real significado da palavra, uma vez que ‘passeador’, nesse caso, não é

qualquer indivíduo que passeia. É fundamental, por exemplo, a noção de MCI para a plena

descrição desse significado.

O segundo caso pode ser exemplificado pelas palavras ‘mineiro(a)’ e ‘brasileiro(a)’,

os únicos gentílicos formados pelo sufixo ­eiro(a) em português. O valor semântico dessas

duas palavras só pode ser plenamente entendido e descrito dentro de uma abordagem

diacrônica que leve em conta o papel da extensão semântica, da metonímia e das condições

sócio­históricas e culturais que permitiram a emergência dessas formações. Caso semelhante é

os das palavras ‘vendedor’, ‘comprador’, ‘cobrador’, ‘mercador’, que se destacam dentro do

grupo das palavras X­dor por ativarem o frame de evento comercial (FILLMORE, 1982, p.

116­117).

Há análises, porém, que conseguem ser bastante abrangentes, mesmo que deixem de

abarcar alguns casos mais específicos. A essa diferença Soares da Silva (2006, p. 69­70)

chamou de puxar o significado para cima ou para baixo :

A flexibilidade do significado e a instabilidade da polissemia implicam que puxemos o significado tanto para cima como para baixo. Puxar o significado para cima é procurar o significado esquemático de um item, mesmo que ele não exista. Foi justamente puxando o significado do verbo deixar para cima que pudemos encontrar os principais factores da sua coerência semântica: as suas dimensões estruturantes, as suas imagens conceptuais esquemáticas (Silva 1999a e capítulo 7 do presente estudo). (...) Puxar o significado para baixo é puxá­lo para o nível dos usos contextuais específicos, psicologicamente (mais) ‘reais’, para o nível dos usos periféricos, mas importantes para se apreender a flexibilidade característica dos itens polissémicos. Mas se a análise privilegiar este nível, corre também sérios riscos: o da explosão de sentidos, o de perder a ‘estrutura’ da categoria, o da falácia da polissemia. Para os evitar, deverão os diferentes nós do modelo da rede representar, não necessariamente sentidos distintos ou representações mentais distintas, mas diferentes áreas em sobreposição num determinado espaço semântico. Em suma, nem o nível ‘superior’ é mais importante do que o ‘inferior’ , ao contrário da ideia tradicional de que “o abstracto é o melhor”, nem o nível ‘inferior’ é mais importante do que o ‘superior’, ao contrário do que certas análises cognitivas podem sugerir em nome da adequação psicológica. Ambos os níveis são necessários. E a transição entre os dois níveis faz­se através do centro prototípico: é este que mostra o modo como o centro relativamente estável de uma categoria se transforma em múltiplas interpretações. (Grifo meu)

Assim, com o objetivo de descrever algumas formações sufixadas denominais, o foco

principal da presente tese, então, é puxar o significado para cima, para alcançar o nível mais

esquemático das construções denominais sufixadas de modo que possamos traçar

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generalizações mais consistentes e econômicas. Observem­se os pares base­produto abaixo:

Quadro 10: Formação de holônimos a partir de ­eiro, ­ada, ­agem, ­al e ­aria

Esses exemplos mostram que há uma relação regular entre base e produto, de modo

que a base representa sempre uma entidade que é o membro e o produto um conjunto ou

coleção. Em outras palavras, esses seis sufixos criam produtos que são holônimos em relação

às palavras­matrizes, que passam a ser seus merônimos. Com base na discussão do capítulo 3,

a relação que esses pares de palavras mantêm no léxico pode ser esquematicamente

representada da seguinte forma:

Figura 21: Representação esquemática da meronímia membro­coleção

Na figura, a cor amarela representa o domínio das assembleias/coleções e a figura

retangular ao centro, o esquema de imagem de contenção. A meronímia prototípica

(parte­todo) também é atualizada pelos sufixos ­eiro(a) e ­ada:

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Quadro 11: Formação de holônimos a partir de ­eiro e ­ada

Figura 22: Representação esquemática da meronímia parte­todo

Argumento que essa regularidade entre base e produto decorre justamente dos

mecanismos cognitivos que subjazem os processos de formação que geram esses produtos.

Isso será especificado com mais detalhes no próximo capítulo. Cabe, agora, apenas ressaltar

que buscar o nível esquemático subjacente aos processos de formação de palavras favorece

consideravelmente a descrição linguística, na medida em que não apenas propicia tratamento

mais enxuto, como também potencializa a compreensão dos mecanismos cognitivos mais

básicos por trás desses processos.

Por exemplo, com relação ao sufixo ­ada, palavras que comumente são separadas sob

os rótulos semânticos de “multidão, coleção” (‘boiada’), “porção contida num objeto”

(‘colherada’) e “porção alimentar, bebida” (‘laranjada’), podem ser reunidas se as

descrevemos num nível mais esquemático. Para isso, vamos tratar das formações denominais

sufixadas aliando todo o arcabouço teórico discutido nos capítulos anteriores ao modelo

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construcional desenvolvido por Geert Booij. Em outras palavras, objetiva­se incorporar a

RCC ao componente SEM da Morfologia Construcional, como forma de refinamento do polo

semântico das construções morfológicas.

Essa nova abordagem será aplicada em especial à análise das formações X­eiro e

X­ário. A escolha desses sufixos, como ressaltado, decorre do fato de ser o primeiro ser o

sufixo mais polissêmico do português; o segundo não podia deixar de se fazer presente, pois,

além de ­eiro e ­ário terem a mesma origem, apresentam semelhanças no que diz respeito à

relação semântica entre base e produto, conforme destacado no capítulo 4.

A relação entre ­eiro e ­ário, porém, não é livre de controvérsia. Estudiosos como

Câmara Jr. (1970, 1975) e Elson & Picket (1973), numa senda estruturalista, tratam ambos os

sufixos como alomorfes, pois provêm de um mesmo étimo, às vezes apresentam o mesmo

valor linguístico e, segundo estes, estão em contextos de distribuição complementar. Numa

abordagem historicista, autores como Soledade (2001, 2005) e Viaro (2008) tratam da relação

entre ­eiro e ­ário como morfemas divergentes, uma vez que cada um seguiu seu próprio rumo

e apresenta comportamento bastante particular. Já Rio­Torto (2014) prefere o termo morfemas

cognatos , uma vez que se diferenciam pelo grau de erudição das suas formações, em que o

­ário seria [+ erudito] e o ­eiro [­ erudito]. A presente tese se alinha à segunda visão, pois

entende que as diferenças entre ­eiro e ­ário estão para além de uma polaridade [+ erudito] vs.

[­ erudito]. Além disso, o comportamento particular de cada um inviabiliza o tratamento

destes como meros alomorfes.

Por fim, cabe ressaltar que a proposta de uma análise alternativa com base na

Morfologia Construcional e no refinamento do polo semântico aqui proposto difere das

diversas já feitas por buscar descrever a semântica das construções X­eiro no nível mais

esquemático, utilizando abordagens teóricas até então não utilizadas na descrição do sufixo.

As duas próximas seções se destinam, pois, às formações X­eiro e X­ário, respectivamente.

5.2. Construções X­eiro(a): uma nova abordagem

Na tentativa de explicar os vários significados das formações X­eiro(a) de maneira

econômica e o mais abrangente possível, busco analisar a semântica dessas construções

morfológicas no nível mais esquemático. Para isso, argumento, ao longo desta seção, que os

subesquemas que dão origem às palavras X­eiro(a), tanto as não agentivas como as agentivas,

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são conceitualmente estruturados pela RCC, rede conceitual constituída, da inter­relação entre

EIs de contiguidade (parte­todo, contenção, contato e adjacência) e domínios cognitivos.

Os conceitos subjacentes a tal rede já estão codificados nas próprias construções,

sendo cada construção ancorada por uma parte da RCC. Isso significa dizer que a RCC é

constitutiva do componente SEM. Assumo, então, em consonância com os pressupostos da

Linguística Cognitiva, que tais formações podem ser descritas a partir de relações semânticas

e suas contrapartes formais.

O objetivo principal deste trabalho é mostrar que a regularidade semântica e a

polissemia das formações X­eiro(a) é motivada pelos esquemas imagéticos de contiguidade.

Como visto na seção 2.1.2, Gonçalves & Almeida (2014) propõem [ [X] X Y] Y como o

esquema geral da sufixação. Subordinados a ele, estão o esquema geral dos denominais e o

esquema das formações X­eiro(a), conforme o ilustração abaixo.

Figura 23: Hierarquia da construção X­eiro denominal

O polo semântico de uma construção hierarquicamente mais alta deve conter uma

especificação geral o suficiente para abarcar as diversas possibilidades de significação

provenientes dos subesquemas imediatamente abaixo. É exatamente por isso que estou

propondo que o polo semântico da construção [[X] S eiro(a)] S é motivado pela noção mais

geral de contiguidade, uma vez que essa é capaz de abarcar todas as outras (parte­todo,

contenção, contato e adjacência), conforme discutido na seção 2.3.

[[X]s i eiro(a)]s j ↔ [SEM i em contiguidade com SEM i ].

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O esquema construcional acima abarca todas as formações analisadas. Os

subesquemas a ele subordinados formam a rede polissêmica das construções X­eiro(a). Para

explicar e descrever tal rede, uso os pressupostos da Morfologia Construcional, incorporando

ao seu componente semântico (SEM) a RCC.

5.2.1. Formações X­eiro(a) não agentivas

A rede polissêmica das formações X­eiro(a) não agentivas é formada por quatro

subesquemas. Esses subesquemas são estruturados por três esquemas imagéticos, a saber,

parte­todo, contenção e contato. Passo a descrever cada um deles.

Angiospermas (Parte­todo) – Motivadas pelo esquema imagético de parte­todo, estão todas

as palavras que designam uma entidade do grupo das angiospermas: ‘abacateiro’, ‘roseira’,

‘alecrineiro’, entre tantas outras. Nesses casos, a base representa sempre a parte (‘caju’, por

exemplo) e o produto, o todo (‘cajueiro’), conforme esquema abaixo:

No polo formal da representação acima, [X] indica o slot a ser preenchido pela base e

­eiro o sufixo da construção, o que a caracteriza como uma construção parcialmente fixa. A

letra S subescrita indica a categoria lexical da base e do produto, ou seja, ambos são

substantivos. As letras i e j marcam as coindexações com o polo semântico. No polo

semântico, estão as relações de sentido especificadas que vão limitar/restringir/condicionar a

semântica da base durante o processo de compatibilização . Assim, SEMi significa “semântica

do elemento formal marcado por i”, nesse caso, a base, ao passo que SEMj significa

“semântica do elemento formal marcado por j”, ou seja, o produto. A relação entre ambas

(SEMi e SEMj) é especificada na própria construção, que, nesse caso, é uma relação de

parte­todo.

Assim, temos em português uma construção morfológica que serve para formar nomes

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de árvores e plantas, em que utilizamos um substantivo que designe uma parte dessa planta

(fruto ‘goiaba­eira’, flor ‘rosa­eira’, caule ‘palmito­eiro’ ou folha ‘palma­eira’) para formar o

nome da planta (o todo). Os dados coletados comprovam a sistematicidade da relação

semântica entre base e produto. Foram coletados 100 dados de nomes de plantas em que a

base designa uma parte da planta (ver Anexo III).

Objetos recipientes (Contenção) – O esquema imagético conteúdo­contêiner é bastante

atuante no processo de formação das palavras X­eiro(a) e resulta num número considerável de

palavras que designam recipientes, tais como ‘lixeira’, ‘doceira’ e ‘biscoiteira’, entre tantas

outras. Nesse subesquema, a base será sempre o conteúdo e o produto, sempre o contêiner.

A representação acima mostra que utilizamos um substantivo concreto para formar o

nome de um recipiente, também concreto, a ele relacionado. Há, no corpus, 64 dados que

comprovam a sistematicidade descrita.

O enfraquecimento da força de contato fica perceptível quando se comparam ‘roseira’

e ‘doceira’. Para se separar a rosa da roseira, é necessária uma força que a arranque. Já o doce

pode ser mais facilmente removido da doceira. Cabe, porém, ressaltar que o grau de

integração não deve ser entendido como princípio derivativo. Em outras palavras, os EIs não

derivam uns dos outros por força de contato , tampouco o subesquema dos objetos recipientes

deriva das formações que designam angiospermas. O grau de integração deve ser entendido

mais como a constatação de que nossa apreensão das relações espaciais é gradiente. Isso fica

nítido em casos dúbios como os discutidos na seção 3.3.

Objetos não recipientes (Contato) – O subesquema que forma palavras como ‘bagageiro’,

‘prateleira’ e ‘papeleira’ se sustenta no EI de contato e conta com 20 dados que lhe corrobora

a sistematicidade. A diferença dessas formações para as do tipo ‘doce’ – ‘doceira’ é que as

entidades mantêm apenas uma relação de contato. O bagageiro é uma superfície sobre a qual

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se colocam as bagagens. A papeleira é um suporte, onde se pendura, por exemplo, o papel

higiênico. A doceira, diferentemente, é um pote onde se colocam os doces – é exatamente um

recipiente.

Cabe frisar a importância de uma análise diacrônica para a total validação da proposta.

A base de prateleira, ‘pratel’, hoje opaca, ou no mínimo desconhecida por muitos, significa

pequeno prato. A prateleira, em sua origem, era um objeto para se colocar/expor pratéis. Com

o passar do tempo, sua funcionalidade foi estendida para usos mais amplos. Assim, uma

análise estritamente sincrônica colocaria em xeque a relação base­produto aqui proposta.

Cabe ressaltar também que buscar o significado esquemático da construção

morfológica resolve problemas descritivos acerca da categorização em grupos semânticos.

Marinho (2004), por exemplo, coloca em grupo à parte palavras como ‘caneleira’, ‘chuteira’ e

‘cotoveleira’, entre outras, sob o rótulo de “objetos de uso pessoal”. Porém, se buscarmos o

significado esquemático que subjaz essas construções, vemos que não diferem de palavras

como ‘bagageiro’, ‘prateleira’ e ‘chaveiro’ entre outras: são palavras cuja entidade designada

pela base estabelece uma relação de contato com a entidade designada pelo produto. Palavras

rotuladas como “objetos de uso pessoal” têm em comum o fato de suas bases designarem

partes do corpo, e, obviamente, no processo de compatibilização, o frame de corpo humano

será ativado, assim como a ativação de informações pragmáticas (muitas delas, por exemplo,

designam objetos que servem para proteger uma parte do corpo durante uma prática

esportiva).

A vantagem do modelo booijiano é justamente o pressuposto de que SEM se constitui

de informações tanto estritamente semânticas, como pragmáticas. Tais informações já estão

codificadas na própria construção ou vêm à tona via compatibilização. Entretanto, numa

análise em que se proponha alcançar uma generalização o mais abrangente possível para que

se possa fugir do problema da paráfrase , a busca pelo nível mais esquemático é a solução

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ideal.

A proposta de unir a RCC ao arcabouço da morfologia construcional demanda não só

identificarmos, mediante análise dos dados, os esquemas de imagem envolvidos em cada

subesquema, mas também o domínio cognitivo envolvido. Assim, por se tratarem de

construções cujas bases são substantivos concretos para formar substantivos também

concretos, pode­se afirmar que o domínio que ancora a rede conceitual dessas construções é o

material/espacial. A figura a seguir resume os três subesquemas descritos.

Figura 24: Rede polissêmica dos denominais X­eiro(a) não­agentivos

A figura acima mostra a relação entre o esquema geral dos denominais (o nó mais alto

da rede), o esquema do denominal X­eiro(a) (o nó imediatamente inferior), seus subesquemas

(os nós derivados do esquema denominal) e algumas instanciações possíveis (os exemplos). A

cor azul representa o domínio espacial/material. O esquema denominal X­eiro(a) é

instanciado por três subesquemas, cada um motivado por um dos EIs de contiguidade

(parte­todo, contêiner e contato). Os três subesquemas se relacionam entre si por serem

derivados do mesmo nó hierarquicamente superior.

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Entidade em excesso (Contenção) ­ A partir das construções objetos recipientes, emerge o

subesquema que dá origem a palavras como ‘geleira’, ‘cabeleira’ e ‘formigueira’, ou seja,

palavras com nítido sentido de excesso. Tal subesquema está ancorado no domínio das

assembleias/coleções e é um caso de herança por metáfora. Segundo Gonçalves & Almeida

(2014, p. 180)

A ligação por extensão metafórica, segundo apontada por Goldberg (1995), constrói­se a partir da projeção do sentido da construção primitiva para outro domínio na nova construção. Em Linguística Cognitiva, a metáfora é compreendida como projeção entre domínios diferentes, mantido o Princípio da Invariância.

Palavras como ‘aguaceira’, ‘cabeleira’, ‘geleira’, entre outras, ilustram bem a situação

de herança por metáfora. Nesse grupo, aqui denominado entidades em excesso , a base é um

substantivo concreto indicando um elemento unitário, ao passo que o produto é um

substantivo de caráter mais abstrato que pode ser parafraseado como “excesso de X” ou “X

em excesso”.

O esquema imagético envolvido é o de contêiner. O subesquema das entidades em

excesso é derivado do subsquema [[X] Si eiro(a)] Sj ↔ [SEM i é conteúdo da SEM j ] no domínio

espacial/material. Tomo por base duas características dessas construções para sustentar a

proposta de herança por metáfora:

1. O esquema envolvido nessas construções é o de contêiner, assim como nas formações

que designam recipiente. Segundo Peirsman & Geeraerts (2006, p. 36), padrões de

parte­todo e contenção podem ser projetados no domínio denominado pelos autores de

assembleias e coleções. Palavras como ‘geleira’, ‘cabeleira’ e ‘aguaceira’, entre

outras, são formadas por uma base substantiva que designa uma entidade concreta e

delimitada e criam um substantivo de caráter abstrato e ilimitado. Essa relação entre

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base e produto converge com o padrão indivíduo limitado ­ coleção ilimitada

proposto pelos autores (ver figura 6, p. 47).

2. A presença de vogal ­a, em vez de ­o, é típica dessas construções, assim como é nas

formações que designam recipiente.

A primeira característica é uma condição para haver uma herança por metáfora: a

manutenção da topologia cognitiva no domínio fonte, ou seja, a manutenção da mesma

estrutura de esquema imagético em outro domínio. A segunda aproxima o subesquema “X em

excesso” das palavras que designam recipiente, uma vez que são os únicos grupos de palavras

não agentivas que se caracterizam pela forte presença da vogal ­a.

A importância da vogal ­a deve­se ao seu papel no reenquadre morfológico, nos

termos de Nascimento (2006). Tanto nas formações que designam objetos recipientes quantos

nas que indicam excesso, é comum a presença da vogal temática ­a, gerando uma

especialização semântica. Assim ‘arruaceiro’ (“aquele que faz arruaça”) pode reenquadrar­se

em ‘arruaceira’, uma palavra masculina que passa a feminina.

Como proposto por Nascimento, essas formas se especializam conforme o princípio da

não sinonímia (GOLDBERG, 1995). Segundo esse princípio, se duas construções são

sintaticamente distintas devem ser semântica e pragmaticamente distintas. Esse princípio pode

levar à eliminação ou à especificação semântica de uma das formas concorrentes . Tal

especificação pode ser de dois tipos: restrição no valor semântico ou extensão figurativa.

O que ocorre nas formações X­eiro(a), na verdade, são os dois casos. Uma forma do

tipo ‘arruaceiro’ (“aquele que faz arruaça”) sofre um reenquadre morfológico passando a

‘arruaceira’, forma com duas interpretações possíveis: a de “aquela que faz arruaça” e

“excesso de arruaça”. A restrição semântica, então, leva essa forma ao significado feminino

(“aquela que faz arruaça”). A extensão figurativa, por sua vez, gera o significado “excesso de

arruaça”. O mesmo ocorre em palavras como ‘biscoiteira’ e ‘merendeira’, que podem ser

interpretadas tanto como feminino de ‘biscoiteiro’ e ‘merendeiro’, como objetos recipientes.

É importante notar que a restrição semântica ocorre nas formações agentivas e a

extensão figurativa nas não agentivas. Esse é também um dos motivos pelos quais, ao meu

ver, formações não agentivas devem ser analisadas distintamente das agentivas. É muito

provável que essa diferença tenha sua origem nas formações X­ ariu , ainda no latim vulgar.

Embora diversos pesquisadores (MARINHO, 2004; ALMEIDA & GONÇALVES,

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2006; BOTELHO, 2004 e 2009; PIZZORNO, 2010; entre outros) afirmem que as formações

não agentivas derivam, direta ou indiretamente, das agentivas, por entenderem que as

formações agentivas são o centro prototípico da rede polissêmica das construções X­eiro(a),

dados históricos apontam para uma origem relativamente diferenciada, pois, apesar de ambas

as construções (agentivas e não agentivas) terem sua origem no sufixo latino ­arius, ­a, ­um,

as formas agentivas derivam do masculino ­arius, ao passo que as não agentivas derivam do

neutro ­arium e, em menor escala, do feminino ­aria, conforme se pode depreender a partir

estudos de Mário Eduardo Viaro (2005, 2006, 2007, 2008, 2010, 2011a e 2012).

Outra característica típica de construções não agentivas é noção de coletividade e/ou

excesso. Essa também encontra respaldo histórico, uma vez que a noção de coleção estava

associada à forma do neutro plural ­aria e posteriormente à forma feminina. No processo de

redução dos três gêneros do latim (masculino, feminino e neutro) a dois gêneros no português

(masculino e feminino), a marca de neutro plural foi reinterpretada como feminino, devido,

dentre outros fatores, ao fato de serem sufixos homônimos. Entretanto, em muitos casos, esse

feminino, fruto dessa reinterpretação, passou a carregar o valor semântico de coletivo ou não

contável, formando palavras com especificações semânticas.

Detalhes da trajetória ­ariu > ­eiro são discutidos nas duas seções de cunho histórico

(6.1 e 6.2). Por ora, basta frisar que a relação entre a semântica da base e a semântica do

produto no grupo “entidade em excesso” aponta para uma relação do tipo indivíduo limitado ­

coleção não (de)limitada. O esquema que dá origem, então, às palavras desse grupo é

extensão metafórica do esquema dos aqui chamados objetos recipientes . A figura 25, a seguir,

representa o subesquema “entidade em excesso” em seu nível esquemático.

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Figura 25: Representação esquemática do grupo ‘entidade em excesso’

Os quatro subesquemas descritos formam a rede construcional não agentiva. A

próxima seção trata das construções agentivas.

5.2.2. Formações X­eiro(a) agentivas

Na RCC, o único domínio capaz de gerar palavras com acepção agentiva é o das

ações/eventos/processos (ver figuras 6 e 7, respectivamente, p. 47 e 50). Sendo assim, por se

tratar de palavras com nítida acepção agentiva, pode­se afirmar que é essa parte da RCC que

ancora a semântica dessas palavras. Nessas construções, o único esquema imagético

envolvido é o de contato, uma vez que os agentes X­eiro(a) se caracterizam pelo contato

direto com a entidade designada pela base. Os agentivos subdividem­se em dois esquemas

relacionados por polissemia: agentes profissionais e agentes habituais.

Como exposto na seção 2.1.3, esquemas são sínteses de componentes formais,

semânticos e pragmáticos mais estáveis e importantes, abstraídos das nossas experiências de

contato com a língua em situações de uso concreto. Em esquemas, o que é variável pode ser

abstraído em forma de slots a serem preenchidos, ao passo que o que é recorrente pode ser

fixado na construção. Justamente por isso, o modelo booijiano pressupõe que o significado da

construção é especificado. Nesse caso, o significado “agentivo” é especificado na própria

construção e, em cada subesquema, é codificada uma noção agentiva específica: profissional e

habitual.

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As formações ‘X­eiro(a) ↔ agente profissional’ são compostas por substantivos

concretos tanto na base quanto no produto. Esse subesquema está na gênese de palavras como

‘açougueiro(a)’, ‘enfermeiro(a)’, ‘jornaleiro(a)’ e ‘merendeiro(a)’, entre outras, e responde

por novas formações, a exemplo de ‘dogueiro(a)’ (“aquele(a) que vende cachorro­quente”) e

‘blogueiro(a)’ (“que cria blogs ). Há, no corpus, um total de 134 dados coletados.

Uma característica das palavras morfologicamente complexas é que elas herdam

propriedades tanto de seu nó dominante quanto da palavra­base com a qual se

compatibilizam. Assim, a base dos agentivos profissionais X­eiro(a) pode indicar o objeto

principal de seu ofício (sapato, sorvete, jornal) ou o local onde se realiza o ofício (açougue,

copa, gol), resultando em dois significados tipicamente encontrados nesse grupo de palavras:

“profissional que trabalha com X” ou “profissional que trabalha em X”.

O subesquema ‘agente habitual’ é um caso de herança por polissemia. Booij (2010)

afirma que uma abordagem polissêmica deve partir de um significado prototípico como ponto

de partida para os demais significados existentes. No caso dos agentivos X­eiro(a), o

significado prototípico é o de agente profissional, já que historicamente surge primeiro e se

consolida como um esquema bastante produtivo ainda em língua latina, como aponta Marinho

(2004).

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Para Gonçalves & Almeida (2014, p. 179) “ a polissemia não é propriedade da

palavra individual, mas do esquema construcional, (...) o que leva à criação de um

subesquema . (...) O esquema geral sanciona algumas opções e os subesquemas expressam

quais delas são usadas produtivamente na formação de novas palavras ”. Os autores afirmam

ainda que subesquemas podem ser interpretados como extensões metafóricas ou metonímicas.

Nas formações ‘X­eiro(a) ↔ agente habitual, a base pode ser tanto concreta quanto

abstrata. Apesar da dupla possibilidade, há uma forte preferência por bases abstratas

(conforme discutido em 4.3.). A base dessas formações indica sempre aquilo que é o alvo da

apreciação e/ou da prática habitual do agente (o produto). Palavras como ‘cervejeiro(a)’,

‘orkuteiro(a)’, ‘pagodeiro(a)’, ‘brahmeiro(a)’, ‘arruaceiro(a)’, ‘barraqueiro(a)’ e

‘fofoqueiro(a)’, dentre tantas, outras fazem parte desse grupo.

Sendo extensões da construção prototípica, herdam dela a acepção agentiva, ao mesmo

tempo em que emergem propriedades semânticas que lhes são inteiramente novas e

exclusivas, como a noção de habitualidade e de apreciação. Como apresentam tendência à 91

base abstrata, ressalta­se o papel da delimitação, uma vez que a entidade representada pela

base é não delimitada. A figura a seguir resume a rede das construções agentivas.

91 A habitualidade já está, de certo modo, nos profissionais. Afinal, no nosso modelo cultural, todo profissional tende a exercer seu ofício com habitualidade. Essa acepção, porém, subfocalizada nos profissionais, vai ser mais proeminente nos habituais.

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Figura 26: Rede polissêmica dos agentivos X­eiro

Esquemas relacionados por polissemia resultam, muitas vezes, em palavras

polissêmicas. Assim ‘cervejeiro’ pode ser interpretado como “profissional que fabrica

cerveja” ou como “aquele que aprecia cerveja”, ficando sua real acepção a cargo do contexto.

Em suma, a plena interpretação da palavra morfologicamente complexa depende do conjunto

de características formais, semânticas e pragmáticas codificadas tanto na construção quanto

na base com a qual a construção se junta.

Segundo Ferrari (2011, p. 59),

as estruturas semânticas (...) são caracterizadas em relação a DOMÍNIOS , que podem incluir experiências perceptuais, conceitos, complexos conceptuais e sistemas elaborados de conhecimento. A descrição semântica de uma expressão, portanto, parte de uma concepção integrada de abrangência complexa e, possivelmente, enciclopédica [grifo meu].

Uma estrutura semântica é caracterizada em relação a um domínio ou a uma matriz de

domínio. Sendo assim, mais uma vez, não é equivocado afirmar que construções agentivas

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são distintas das construções “não agentivas”. Em primeiro lugar, isso decorre porque cada

uma é compreendida em um domínio diferente ­ construções agentivas são compreendidas

contra o domínio das ações/eventos/processos, ao passo que construções não agentivas são

compreendidas contra o domínio espacial/material. Dessa forma, construções agentivas e não

agentivas se relacionam pelo fato de estarem subordinadas ao esquema mais geral [[X] Si

eiro(a)] Sj ↔ [SEM i em contiguidade com a SEM j ], conforme figura a seguir.

Figura 27: Rede polissêmica dos denominais X­eiro

5.3. Aplicação do modelo às construções X­ário

5.3.1. Formações agentivas

Cabe agora apresentar a descrição das construções X­ário com base na Morfologia

Construcional. Assim como foi feito com ­eiro, o intuito aqui é buscar o nível esquemático

das construções denominais X­ário. Não é demais relembrar que a hipótese aqui defendida é a

de que a RCC sustenta o polo semântico das construções denominais. Uma vez que o polo

semântico do esquema hierarquicamente mais alto deve ser geral o suficiente para abarcar os

diversos subesquemas a ele subordinados, pode­se afirmar que o nó mais alto da construção

[[X] S ­ário] S tem sua contraparte semântica idêntica à de ­eiro, e, ao longo deste capítulo,

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veremos que isso não é incoerente.

[ [X] S ­ário] S ↔ [SEM i em contiguidade com SEM i ].

Em suma, as construções X­ário agentivas apresentam as seguintes características:

a) são formadas por bases predominantemente abstratas;

b) o produto, por sua vez, é um substantivo concreto; e

c) a relação entre as entidades envolvidas (a designada pela base e pelo produto) é de

contato, caracterizada pelo contato direto entre a entidade agente e a entidade

designada pela base;

d) por se tratar de construções agentivas, o domínio envolvido é o das

ações/eventos/processos.

Ao contrário dos agentivos X­eiro, é mais difícil comprovar que os circunstanciais são

extensões polissêmicas dos profissionais. A história dessas formações, na verdade, aponta

mais para um surgimento em paralelo. Assim, optou­se pela representação esquemática

abaixo:

Figura 28: Rede polissêmica dos agentivos X­ário

A despeito de todas as particularidades já detalhadas, a análise centrada no nível mais

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esquemático mostra que os agentes X­eiro e X­ário não apresentam diferenças (figura 29),

principalmente se desconsiderarmos a flutuação entre entidades (de)limitadas e não

(de)limitadas, que tanto em X­eiro quanto em X­ário vai estar condicionada à natureza da

base. As diferenças estão, pois, nos níveis dos usos mais contextuais (semântico­pragmáticos),

conforme figura 30. Em outras palavras, as diferenças entre ambas as construções são

encontradas quando “puxamos o significado para baixo”.

Figura 29: Construções agentivas X­eiro e X­ário no nível esquemático

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Figura 30: Valores semântico­pragmáticos codificados nas construções agentivas X­eiro e X­ário

É importante frisar que a figura 30 se refere apenas às especificações

semântico­pragmáticas das construções X­eiro e X­ário. Porém, não se pode esquecer que há

especificações morfossintáticas que também diferem essas construções, como a natureza da

base, por exemplo. Assim, diante da necessidade de nomear uma nova profissão, tanto fatores

semântico­pragmáticos, quanto morfossintáticos vão condicionar as escolhas do falante . 92

5.3.2. Formações não agentivas

Os não agentivos X­ário se dividem em dois subesquemas: “locativos” e “objetos”. O

fato de os locativos serem todos substantivos concretos que designam entidades físicas e

estáticas é argumento suficiente para se afirmar que o domínio que ancora essas construções é

o material/espacial. Em se tratando do EI envolvido, a maior parte dos locativos de base

concreta remete a contêineres incontestes (‘aquário’, ‘armário’, ‘hostiário’). Há, porém,

alguns casos que parecem transitar numa zona intermediária entre contenção e contato

(‘bicicletário’, ‘berçário’). Já os de base abstrata não configuram contêineres, atuando muito

92 Os sufixos ­ eiro e ­ário não são os únicos que formam agentes denominais em português. Sendo assim, as escolhas do falante serão condicionadas pelas características formais e semânticas não só de ­eiro e ­ário, mas também de ­ista, ­ólogo e ­ógrafo. Para uma leitura mais detalhada acerca da competição entre esses cinco sufixos, aconselho o trabalho de Machado (2005).

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mais numa zona entre contato e adjacência (‘cenário’, ‘confessionário’).

No caso dos objetos, pode­se afirmar que o EI em jogo é o de contenção, já que em

todas as palavras está presente (em maior ou menor grau) a noção de “conjunto de X” (o

glossário é o conjunto de glossas; o anuário é o conjunto das atividades que ocorreram durante

o ano). Todas as palavras desse grupo são substantivos concretos que designam objetos físicos

e estáticos, o que justifica dizer que o domínio envolvido é o espacial/material.

Apesar das diferenças, numa análise em nível mais esquemático, ambos os grupos

podem ser reunidos, uma vez que tanto locativos quanto objetos se ancoram no esquema de

imagem de contenção.

Figura 31: Rede polissêmica dos não­agentivos X­ário

No nível esquemático, a única diferença entre as construções é o caráter (de)limitado

ou não (de)limitado da entidade conteúdo, associados, respectivamente, à base concreta ou

abstrata. Não se pode esquecer, porém, que o caráter concreto/abstrato da base, além de ser a

única diferença, é uma questão de tendência e não um dado categórico.

Toda análise aqui feita, corrobora a ideia de que a RCC sustenta processos de

formação de palavras. Além disso, compreender uma palavra como ‘hinário’, por exemplo,

perpassa necessariamente pelo conhecimento do que é um hino e que o hinário contém vários

hinos. Isso mostra que essas palavras são conectadas no léxico pelas mesmas relações

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esquemáticas do esquema construcional que as geram. Isso é forte argumento de que léxico e

gramática são muito mais integrados do que se possa supor. O próximo capítulo é destinado a

uma análise diacrônica de ­eiro e ­ário, com o intuito de sustentar, a partir de dados históricos,

as questões defendidas neste capítulo.

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6. ENTENDENDO O PRESENTE A PARTIR DO PASSADO

Este capítulo apresenta um panorama histórico de ­eiro e ­ário desde a sua origem

latina até o português moderno, com o intuito de corroborar

(a) a autonomia dos não agentivos em relação aos agentivos;

(b) a implementação da mudança sonora ­ariu > ­eiro como um processo de difusão

lexical; e

(c) o caráter de produção in vitro das formações X­ário do português arcaico.

Para isso, muito contribuíram os trabalhos de cunho histórico de Viaro (2005, 2006,

2007, 2008, 2010, 2011a, 2012) e o estudo de Simões Neto (2016) sobre as construções

X­eiro do latim ao português arcaico. Primeiramente, pelo vasto número de palavras latinas

não dicionarizadas, extraídas diretamente de textos de autores latinos como Plauto, Horácio,

Catão, Cícero, Virgílio, dentre outros. Em segundo lugar, pelos vários comentários e

considerações acerca da origem, do comportamento léxico­semântico e da categorização da

construção latina X­ariu formadora de substantivos, derivada do sufixo formador de adjetivos

­arius, a, um. Esses dados, aliados às considerações e análises dos autores acerca do processo

de formação de substantivos X­ariu, foram de suma importância para melhor compreender o

comportamento de tais construções em termos de produtividade e categorização

léxico­semântica, pois apenas os dados coletados de dicionários latinos não são suficientes

para se chegar a conclusões mais próximas de como essas construções latinas eram de fato

categorizadas, conduzindo, assim, a conclusões equivocadas, ou, no mínimo, limitadas.

Em vários pontos, serão feitas menções a fases da língua portuguesa. Os recortes

temporais aqui adotados se espelham na periodização do quadro a seguir:

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Época Leite de Vasconcelos

Silva Neto Pilar V. Cuesta Lindley Cintra

até s. IX (882) pré­histórico pré­histórico pré­literário

pré­literário

até +/­ 1200 (1214­1216)

proto­histórico proto­histórico

até 1385/1420

português arcaico

trovadoresco galego português

português antigo

até 1536/ 1550

português comum

português pré­clássico

português médio

até s. XVIII português moderno

português moderno

português clássico

português clássico

até s. XIX/XX português moderno

português moderno

Quadro 12: Diferentes propostas de periodização da língua portuguesa (IVO CASTRO, 1988)

Assim, adotou­se aqui o termo ‘pré­literário’ para todo o período anterior ao século

XIII. O recorte que vai século XIII ao XVI será denominado ‘português arcaico’. Por fim,

adotou­se ‘português clássico’ para os séculos XVII e XVIII e ‘português moderno’ para os

séculos XIX e XX.

Duas análises de viés diacrônico são feitas: uma na seção 6.1, na qual argumento que

as construções X­eiro não agentivas não são filhas das construções agentivas, mas sim, suas

irmãs, e outra na seção 6.2, destinada a tratar da especialização semântica de ­eiro e ­ário à luz

dos dados históricos, em que defendo que a implementação da mudança fonética de ­ariu se

deu por difusão lexical e que a produtividade de ­ário em português, ao contrário de seu irmão

­eiro, emerge de formações resgatadas do latim.

6.1. Construções agentivas e não­agentivas como construções irmãs: reflexões a partir de

dados históricos.

O sufixo ­eiro vem de ­ arius , a , um , formador de adjetivos em latim. Isso significa que

o sufixo sofreu uma mudança categorial, uma vez que passa de formador de adjetivos (um

modal, de conteúdo mais esvaziado, portanto) para formador de substantivos. Tal mudança

decorre da confluência de diversos fatores e o primeiro a ser destacado é a elipse do

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substantivo no complexo N+Adj. Sobre isso, Viaro (2011) comenta:

Já a forma coquinarius (que gerou a palavra cozinheiro em português pelo acusativo do latim vulgar) era um adjetivo que significava simplesmente “que é da cozinha”, “que é relativo à cozinha”, ou na sua forma abstrata, “que é de X” ou “que é relativo a X” (sendo X a base), que é seu significado básico. Como adjetivo, podia flexionar­se em masculino, feminino e neutro, singular ou plural ou em quaisquer casos, gerando, em teoria, trinta e seis flexões distintas. O significado do sintagma nominal, contudo, conduziu a uma simplificação por eliminação do substantivo (tido contextualmente como óbvio) que o transformou de adjetivos em substantivos. Esses substantivos se mostraram bastante peculiares em muitas simplificações, formando, frequentemente, o que chamamos de galhos isolados numa suposta árvore genealógica. Alguns desses galhos, porém, possivelmente devido à frequência de uso de determinadas palavras, serviram de moldes para outros neologismos. Esses neologismos, por sua vez, se devem a uma reinterpretação do significado da palavra de modo que uma parte desse significado foi atribuído ao significado do sufixo, mudando assim, sua carga semântica de tal modo que se torna detectável num estudo diacrônico. (...) Posteriormente, abstraiu­se um significado produtivo e gerador de neologismos “homem que trabalha em X” e, após novas abstrações ainda mais genéricas, “homem que V em X” e “Y que V em X”. (VIARO, 2011, 131)

Assim, a partir do comentário do autor, subentende­se que havia construções como

Servus coquinarius (“servo que trabalha na cozinha”) e Vir coquinarius (“homem que trabalha

na cozinha”). Num segundo momento, o substantivo foi suprimido e passou a ser

subentendido ( coquinarius – “servo ou homem que trabalha na cozinha”), tal qual aconteceu

em português com os sintagmas telefone celular > celular, forno micro­ondas > micro­ondas,

empregada doméstica > doméstica, guarda de segurança > segurança, entre tantos outros.

O fato de outros adjetivos e outros substantivos serem intercambiáveis nesses

complexos N+Adj. criou um contexto de relações sintagmáticas e paradigmáticas, de onde é

abstraída noção mais geral “que trabalha com X”, típica do esquema dos agentivos. Cabe,

porém, notar que palavras como coquinarius , ferrarius e caballarius são formas

morfologicamente complexas. O que acontece é que, com a elipse do substantivo, parte da

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paráfrase encontra total relação de identificação com a base, ao passo que a outra parte passa a

ser codificada no esquema X­ ariu . 93

Assim, o adjetivo ferrarius , que podia ser parafraseado como “relativo ao ferro”, tal

qual paráfrase proposta por muitos morfólogos para palavras X­al em português (‘paternal’,

“relativo ao pai”; ‘maternal’, “relativo à mãe”; ‘estrutural’, “relativo à estrutura”), após a

eliminação do substantivo no complexo N+Adj., passou a ter a paráfrase equivalente a

“aquele que trabalha com ferro”, além de sofrer mudança categorial, passando a substantivo.

Parece que a noção de “trabalhar com/na” é a noção mais geral que emerge nesse

processo de mudança categorial e semântica das formações X­ariu. Obviamente, cada

instanciação vai ter sua paráfrase completa após compatibilização com a base. A palavra

caballarius , por exemplo, tinha paráfrase equivalente a “Aquele que cuida de cavalos”. A

noção de “trabalhar com/na”, então, é o significado codificado na construção, se

desconsiderado o papel da compatibilização com a base. Esse significado foi, segundo Viaro

(2007), a primeira acepção derivada da noção “relativo a X”.

Em seu trabalho intitulado “ Estudo diacrônico da formação e da mudança semântica

dos sufixos eiro/eira na língua portuguesa ”, Viaro (2007) se propõe a traçar uma genealogia

das formações X­eiro. O autor assume algumas posturas metodológicas e epistemológicas, a

saber:

93 Para Viaro (2007, p. 13­14), três significados devem ser distinguidos: o significado da base, do sufixo e da palavra derivada: “ Há portanto que se diferenciar o significado da palavra­base (muitas vezes apagado com o tempo), o significado do sufixo (que, quando perde a produtividade, também pode se tornar apagado) e o significado da palavra derivada (que é, muitas vezes, imprevisível). ” É preciso ratificar que, neste trabalho, adota­se um modelo baseado em palavra; logo, não se fala em significado do sufixo, mas em significado da construção.

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1. o significado válido para se traçar uma genealogia é aquele que vigorava na época em

que a palavra surgiu. (...) o que importa para atingirmos o significado do sufixo quando a palavra ainda era um neologismo é o significado que tinha na época de sua criação. Interpretações posteriores à perda da consciência de sua formação são demasiadamente intuitivas e variáveis. (VIARO, 2007, p. 21) Pelo exemplo de chuveiro, fica fácil entender que as palavras mudam de sentido e o que interessa, para flagrar o sentido do sufixo não é o significado total da palavra, nem o mais conhecido na sua etapa atual, mas o significado que o sufixo tinha no momento em que um antecedente serviu de base para produzir o neologismo. (VIARO, 2007, p. 15)

2. método indutivo.

Em suma, é nosso objetivo descrever por meio dos indícios semânticos e históricos e não interpretar a partir de abstrações primitivas. (VIARO, 2007, p. 16)

3. cada significado facilmente caracterizável e, sobretudo, destacável, forma um núcleo

semântico. Em outras palavras, “Aquele que trabalha com ferro”, “Aquele que cuida de cavalos” e “Aquele que fabrica sapatos”, embora relativamente diferentes, não formam três núcleos semânticos distintos, mas compõem um único núcleo. Ao contrário, os significados “Aquele que fabrica sapatos” e “Árvore que produz laranja” estão ligados a núcleos semânticos distintos.

4. Embora não faça referência direta, nem se posicione explicitamente, os vários

significados das formações X­eiro se distribuem em termos de radialidade e prototipicidade.

Há palavras que não integram totalmente esses núcleos, nem estão totalmente desgarrados deles, mas se comportam como que orbitando à sua volta. (VIARO, 2007, p. 16)

Nossa postura não é de ver cada núcleo semântico (ou acepção) do sufixo como um caso de homofonia. Não são dois sufixos, mas o mesmo sufixo. O fato de serem muito distintos do ponto de vista do significado não justifica dizer que não se trata de um caso de polissemia, que é o que justamente se tenta explicar nesta pesquisa: como significados tão distintos se derivaram um dos outros? (VIARO, 2007, p. 21)

5. ­ariu e ­eiro são o mesmo sufixo.

É interessante observar que um sufixo como ­arius dispunha de certo significado, produtividade e mudança categorial no latim e foi herdada, ao lado das inovações, no sufixo ­eiro. Do ponto de vista diacrônico, não só se pode afirmar que ­eiro vem de ­arius, mas que ­arius e ­eiro são a mesma coisa. A divisão rígida dos sistemas conduzem a uma dificuldade de interpretação dos dados linguísticos. (...) Assim, para nós, o sufixo ­eiro está presente não só em sapateiro, mas também em primeiro: nem a opacidade do radical, nem a multiplicidade semântica do sufixo devem afastar o fato de que o sufixo ­arius, produtivo no momento da formação de primarius, se tenha tornado ­eiro e, trazendo consigo primeiro, formado no latim, tenha servido de base para formação de outras palavras, como sapateiro. (VIARO, 2007, p. 12)

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Viaro destaca 25 núcleos semânticos. Abaixo, seguem as paráfrases que caracterizam cada um

dos núcleos.

(A) X­eiro = que é de X. O autor ressalta que esse caso já traz sua produtividade desde o latim (por exemplo, coquinarius significa “que é da cozinha”). É o significado mais próximo da origem adjetiva do sufixo “relativo a X”. (B) X­eiro = pessoa que V X. O autor ressalta que, no lugar de V, postula­se um verbo entre “vender”, “trabalhar com”, “consertar”, “cuidar de”, “conduzir”, “entregar”, “fabricar”, “negociar”, “tocar”, “usar” ou o mero “fazer”. Alguns exemplos dados pelo autor são carvoeiro (IX), barqueiro (X), vaqueiro (XI), sapateiro (XII), escudeiro, mensageiro, jornaleiro e enfermeiro, dentre muitos outros. (C) V­eiro = pessoa que V (com freqüência). Alguns exemplos são parideira (XVIII), namoradeiro (XIX), dadeira, faladeira (sem datação). (D) X­eiro = pessoa que (gosta de) V X. Alguns exemplos são mexeriqueiro (XV), noveleiro, aventureiro (XVI), trapaceiro, lambisqueiro e embusteiro (XVII), dentre outros. Segundo Viaro, a partir de arteiro (XII), desenvolveram­se, para um V variável (“fazer”, “ver”, “dar”, “ir em” etc.). Chama a atenção para a tendência a um valor negativo nessas palavras. (E) X­eiro = pessoa que provém de X. Os exemplos dados são mineiro, brasileiro, campineiro (XVIII) e pantaneiro (XX). (F) X­eiro = árvore que produz X. Chama a atenção para o fato de essas formações remontam ao latim, de modo que a forma *piraria (árvore de pêras) apresenta correspondente em muitas línguas românicas (engadino, pairer; friulano = perar; francês = poirier; provençal = perier; catalão = perera). (G) X­eiro = que é X. O autor assume que é um caso de redundância, uma vez que apenas estende o significado do antecedente, que pertence normalmente da classe dos adjetivos, de forma a não modificar ou apenas modificar ligeiramente, por metaforização, o seu sentido. São os casos de certeiro (XIII), grosseiro (XVI), raseiro (XIX), canhoteiro (XX). (H) X­eiro = pessoa que V em X. Nestes casos, X é sempre um lugar. O V normalmente se entende como “trabalhar”, mas pode simplesmente ser “agir”, como em guerrilheiro (XIX), “viver”, como em roceiro (XVI).

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(I) X­eiro = pessoa que possui X. Alguns casos são fazendeiro, granjeiro, banqueiro e quitandeiro. (J) X­eiro = que está em X. Fazem parte desse grupo as palavras traseira, dianteiro (XIII), rabeira (XVII), prisioneiro (XIV, decalcando francês), cueiro (XV), pulseira (XVII) e cabeceira (sem datação). (K) X­eiro = objeto em que se V X. É um grupo bastante prolífico. Cuscuzeira (XVI), churrasqueira, coqueteleira (XX), chocolateira e cafeteira (XVIII) são apenas alguns, dentre tantos outros exemplos. (L) V­eiro = objeto em que se V. O autor ressalta que as formas deverbais da lista são todas femininas e tendem desde muito cedo a um molde fônico em ­deira: engomadeira (XVIII), namoradeira, escarradeira, espreguiçadeira, chocadeira (XIX), penteadeira e geladeira (XX) são alguns exemplos. (M) X­eiro = objeto em que há X. Alguns exemplos: cancioneiro (XV), fogareiro, braseiro (XVI), romanceiro (XIX, via espanhol). (N) X­eiro = lugar em que se V X. Os casos mais representativos são os do tipo “em que se guarda (X)”: galinheiro (XV), chiqueiro (XVI, com base opaca). (O) X­eiro = objeto com que se V X. O autor cita as palavras joelheira (XIII, “objeto com que se protege o joelho”), focinheira (XVII), tornozeleira, munhequeira (XX), caneleira, cotoveleira (sem datação), bombardeiro (XV), ratoeira (XVII), escumadeira (XVI). Assim, V pode variar entre “proteger”, “lançar”, “captura” e “retirar”. (P) V­eiro = objeto com que se V. Alguns exemplos são batedeira, frigideira, nadadeira, mamadeira, enceradeira, atiradeira, e britadeira. (Q) X­eiro = lugar em que há muito X. Exemplos: pedreira (XIII), formigueiro, vespeiro (XVI), bicheira (XVIII), cupinzeiro, pulgueiro e puteiro (sem datação). (R) X­eiro = lugar em que há X. Exemplos: letreiro (XIV) e oveira (sem datação). (S) X­eiro = muito X Exemplos: cabeleira (XV), barreira (XVI), sangueira (XVIII), poeira, catarreira, buraqueira,

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barulheira, chiadeira (XIX), desgraceira, sujeira (XX). (T) X­eiro = pessoa que tem muito X Exemplos: interesseiro (XVI), peidorreiro (XVIII), fricoteiro (XX). (U) X­eiro = X intenso Exemplos: nevoeiro (XIII), aguaceiro (XVI), fumaceira, preguiceira (XIX). (V) V­eiro = estado em que algo se V intensamente. Exemplos: quebradeira (XIX), roubalheira, berreiro (XIX) (W) V­eiro = estado em que uma pessoa V intensamente. Exemplos: bebedeira, (XIX), tremedeira (XX), suadeira, gemedeira (sem datação). (X) X­eiro = estado em que uma pessoa é X. Melhores exemplos: cegueira (XV) e gagueira (XVIII). (Y) X­eiro = ato típico de X. Exemplos: ladroeira (XVI), asneira, tonteira (XVIII), besteira (XX), bobeira, doideira (sem datação).

Com base em sua própria intuição (critério que o autor assume ser subjetivo, porém,

inevitável) e nas datações (critério objetivo), Viaro propõe a árvore genealógica das

formações X­eiro(a) (conforme figura 32), que representa a seguinte hipótese de percurso

histórico traçada pelo autor, conforme o quadro a seguir.

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Século Sucessão histórica da extensão semântica de ­eiro

ANTES DO SÉCULO XIII Núcleos semânticos b , f , h .

Pelo latim ­arius, sabe­se que a também estava presente nessa época.

Nesse período, o sufixo apenas designava

adjetivos , nomes de árvores e profissões .

SÉCULO XIII Emergem os núcleos semânticos g , j , o e q .

Aparecem documentadas várias palavras problemáticas (muitas herdadas do latim) como: primeiro , terceiro , cordeiro , ligeiro , dinheiro , poleiro , janeiro , padroeiro , matreiro , solteiro , caldeira , palmeira , maneira , peneira , fogueira e caveira .

SÉCULO XIV

Dá­se início à produção dos núcleos semânticos p , r e a .

Generalizam­se ainda mais os núcleos o e q .

SÉCULO XV Surgimento da forma modalizada do agentivo (d).

Reforçam­se os locativos (m, n).

Destaca­se a questão da intensidade (s, u).

Surgimento de palavras marcando estado (x).

SÉCULOS XVI e XVII Surgimento dos núcleos t , y e k .

SÉCULO XVIII Surgem os núcleos e e c .

Generaliza­se o núcleo l .

SÉCULO XIX A grande novidade são os núcleos v e w .

SÉCULO XX Não há formação de novo núcleo semântico, porém o número de palavras X­eiro aponta para a produtividade do sufixo nesse século e consequente prolificidade.

Quadro 13: Percurso histórico de ­eiro segundo Viaro (2007)

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Figura 32: Árvore genealógica de ­eiro segundo Viaro (2007)

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Em sua genealogia, Viaro coloca o grupo dos vegetais como provindo diretamente do

significado primário de ­ariu, e não como derivado dos agentivos. Viaro (2012), em seu

trabalho intitulado “ A formação do significado agentivo de ­eiro ”, polemiza o caráter agentivo

das formações que designam angiospermas:

“Podemos dizer que uma árvore é um agentivo como um ser humano? Tudo depende da nossa postura enquanto pesquisador da língua. Um cientista da linguagem de viés dedutivo não terá dúvida em agrupar o ­eiro de cozinheiro junto com o ­eira de pereira, pois os verbos empregados nas interpretações (“trabalhar em” e “produzir”) não são muito distintos semanticamente. No entanto, isso é, como se pode perceber, um interpretação a posteriori que não requer uma reconstrução mental do momento da criação da palavra. De fato, ao reconstruirmos a interpretação do falante em sincronias pretéritas e os contextos enunciativos, jamais alguém pode afirmar seguramente que um falante, a não ser imbuído de um animismo muito profundo (o que não parece acontecer no Ocidente) ou de um naturalismo anacrônico e acadêmico do biólogo moderno, poderia ver da mesma forma um ser humano e uma árvore. O antropocentrismo do nosso raciocínio poderia fazer ver, de forma metafórica, um árvore agindo ao produzir frutos. Nesse sentido, é possível derivar semanticamente um sentido agentivo para o setor das árvores frutíferas. O que dificulta esse tipo de análise são os dados: não é fácil provar por meio de corpora latinos que o ­arius agentivo veio antes do ­arius designador de árvores frutíferas (Como se sabe, o latim vulgar é simultâneo ao clássico e não um desenvolvimento desse, pois ambos nascem do latim arcaico). Se este deriva semanticamente daquele ou se nasce novamente da produtividade ainda inesgotada do primitivo valor relacional (como ainda veremos nos séculos seguintes como em hoteleiro, verdadeiro, rotineiro) é questão de investigação.” (VIARO, 2012, p. 3)

Formulações dedutivas precipitadas não corroboráveis pela história das palavras são, na verdade, acientíficas, mas parecem adquirirem vitalidade e gozarem de tolerância junto com todo e qualquer modelo possível que se debruce sobre os dados. A busca de interseções de todos os valores semânticos pode conduzir a abstrações extremamente amplas e artificiais que não condizem com a reconstrução verossímil da neologia. Para contornar esses problemas inevitavelmente surgem soluções ad hoc que enfraquecem os modelos ou nos dão a sensação que é tudo uma questão subjetiva. O que seria então o nomen agentis a que se referem as gramáticas com relação a sufixos como ­eiro, ­ista, ­or, ­nte? Decerto não são dendrônimos ou gentílicos. O agente de uma ação é, antes de tudo, na lógica natural das línguas com visão de mundo não amista um ser vivo, mais especificamente um animal e, prototipicamente, um ser humano . (VIARO, 2012, p. 3)

Mediante tais reflexões, assume, em seu trabalho, que “ o eiro denotador de árvores

frutíferas será visto como independente ” (VIARO, 2012, p. 3). Porém, a questão animista que

o autor diz não haver na visão de mundo romana pode ser refutada. Segundo Faria (1958), os

três gêneros latinos são um desenvolvimento secundário de um período anterior, em que os

nomes se dividiam em animados e inanimados. Estes se referiam às coisas, aqueles, aos seres

vivos.

Assim, o animado se cindiu em masculino e feminino e o inanimado passou a

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corresponder ao gênero neutro. Até aí, a questão parece pacífica. O autor, porém, afirma que,

se por um lado, o gênero neutro é denominação de um ser inanimado, o contrário não é

necessariamente verdadeiro, por conta de haver nomes que designam objetos pertencendo ao

gênero animado, masculino ou feminino. Segue a explicação do autor para esse fato.

A razão desse fato repousa em antigas concepções dos povos de civilização muito remota, como foram os que se serviam do indo­europeu como língua para transmissão do pensamento, sendo que não só tais concepções muitas vezes diferem grandemente das concepções modernas, como também, em geral, já se tinham obscurecido ao tempo dos mais antigos textos latinos , o que vem constituir uma dificuldade a mais na compreensão na categoria gramatical do gênero, em latim. Assim, em geral, pode­se dizer que pertencem ao gênero animado todos os seres animados considerados concretamente ou abstratamente, incluindo­se, neste último grupo, por exemplo, os nomes de árvore, considerando­se a árvore como um ser produtivo , bem como as forças da natureza, os elementos, os astros (considerados como possuidores de um poder divino e por isso divinizados), os nomes das partes ativas do corpo , nomes relacionados a raízes verbais que exprimam um processo. Exs.: pirus “pereira”, ficus “figueira”, humus “terra” (e os nomes da terra), aqua “água” e unda “água em movimento, água agitada”. [grifos meus] (Faria, 1958, p. 64)

Segundo Faria, então, nomes de árvores são de gênero feminino (nomes de árvore

eram todos femininos) porque pertenciam ao gênero animado, uma vez que árvores, nessa

concepção animista, eram consideradas seres produtivos. Entretanto, o próprio Faria afirma

que essa concepção “ já se tinha obscurecido ao tempo dos mais antigos textos latinos ”. Ora,

as formações X­ariu para designar nomes de plantas é inovação do latim vulgar e datam do

período em que o gênero já havia assumido configuração tripartida e não mais dividido em

animado e inanimado.

Pode­se argumentar, porém, que em todo processo de mudança a forma inovadora

guarda resquício da sua categoria de origem. Apesar de ser verdadeiro, no caso das formações

X­ariu angiosperma , não é possível provar que o caráter agentivo foi o resquício que sobreviveu na

forma mais nova. A questão é que, em se tratando da língua latina, parece difícil assumir

categoricamente, sem risco de falhas, que os falantes latinos conceberam, em algum

momento, árvores como agentes e, sobretudo, que essa concepção motivou realmente o

processo de formação do grupo X­ariu angiospermas . Porém, mesmo que se assuma que a resposta é

positiva, o caráter agentivo das palavras que designam vegetais parece diferir bastante, não só

sincronicamente, mas também em sua origem, do caráter agentivo das palavras que designam

agentes humanos (profissionais e habituais). Viaro (2011) também faz críticas com relação a

essa diferença:

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... os hiperagrupamentos dos significados dos sufixos (como considerar árvores como agentivos tanto quanto profissões) se deve meramente a uma falta de método e ao desprestígio anacrônico da história, sobretudo nas correntes linguísticas após a década de 50 do século XX. Tem postura redutiva e reducionista, nada tendo a ver com o falante nativo, que não hesitaria em definir uma mangueira como “uma árvore que produz manga” e não como “agentivo” da mesma forma que lavadeira. (VIARO, 2011, p. 120)

Assim, se é possível (em oposição a impossível) que um dia as formações

X­ariu angiospermas tenham tido caráter agentivo herdado da antiga bipartição animado­inanimado,

a hipótese de que tenham sido extensão metafórica dos agentes profissionais já parece muito

pouco provável. Seguem abaixo alguns argumentos dos quais me valho para sustentar a

subdivisão das formações denominais X­eiro em dois grandes grupos: agentivos (profissionais

e habituais) e não agentivos (angiospermas, objetos recipiente e objetos não­recipiente).

1) A interpretação das construções X­eiro angiospermas .

Sincronicamente, não parece haver interpretação agentiva em palavras como

‘mamoeiro’ e ‘roseira’, o que significa que esse caráter, se houve um dia, se desgastou. Na

verdade, pode­se afirmar que, atualmente, o possível e controverso caráter agentivo dessas

construções só vem à tona em paráfrases do tipo “Árvore que dá X”. Entretanto, já discutimos

o problema de se basear apenas em paráfrases. Outras construções concorrentes como “pé de

X” (pé de jaca, pé de manga, pé de mamão etc.) também não apresentam qualquer caráter

agentivo.

É também possível que no início, ou seja, no surgimento das primeiras formações

X­arius angiospermas , o caráter agentivo não estivesse presente sequer na paráfrase. Uma paráfrase

apontada por Viaro (2012, p. 2) é “árvore de pêra” (em oposição à árvore de qualquer outro

fruto), cuja metaparáfrase, segundo o autor, é “ quanto à pera, (refiro­me à) árvore ”. Essa

paráfrase é coerente uma vez que (a) as construções X­arius, a, um apresentavam caráter

relacional, pois eram formadoras de adjetivos e (b) os nomes de árvores derivam diretamente

das construções adjetivas e não dos substantivos agentes, conforme se argumenta ao longo

desta seção.

Deixando de lado por ora a questão do possível caráter agentivo, o que deve se tornar

ponto primordial agora é o conceito esquemático dessas formações. É comum, em várias

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línguas, nomes de frutos, flores, caules e raízes serem expressos por expressões meronímicas.

Conforme Klein (2000, p. 83), “ esta relação semântica [parte­todo] tem sido lexicalizada em

muitas línguas e pode ser usada apropriadamente em alguns contextos e não em outros ” . A 94

autora se propõe a discutir as relações de parte­todo em algumas línguas indígenas da baixa

região da América do Sul.

Na língua Toba, os nomes são divididos em nomes possuídos e não possuídos. Do

ponto de vista estrutural, a relação é expressa por nomes compostos, em que o primeiro termo

é o possuidor e o segundo termo, o possuído. Além disso, nomes possuídos devem ter prefixo

pessoal “l”. Do ponto de vista semântico, nomes possuídos consistem de partes do corpo,

partes da casa, roupas, itens manufaturados e termos de parentesco.

Já na língua Pilagá, a divisão é entre (a) nunca possuídos, (b) sempre possuídos e (c)

algumas vezes possuído. Nomes de árvores não são possuídos, termos de parentesco são

possuídos, enquanto partes do corpo e roupas são passíveis de serem possuídos. Embora a

autora frise que nomes de árvores não são possuídos nessa língua, não faz nenhuma menção

explícita aos nomes de frutos, caules, folhas ou raízes . 95

Porém, ao descrever a língua Eyiguayegi­Mbaya, afirma que esta apresenta a mesma

ordem das palavras compostas encontradas em Toba e em Pilagá (possuidor­possuído) e que a

mesma estrutura usada para formar palavras que designam partes do corpo é usada para

designar parte de plantas.

94 [...] this semantic relation has been lexicalized in many languages and can be used appropriately in some contexts and not in others 95 Pela lógica apresentada pela autora, pode­se subentender que nomes de frutos, caules, folhas e raízes sejam ‘sempre possuídos’ ou ‘algumas vezes possuídos’.

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partes do corpo a)

ligilagi ­ nigichodi

(garganta) (sino)

‘uvula’

b)

nibaagadi ­ liguigo

(mão) (palma)

‘palma da mão’

partes de plantas c)

niale ­ litodi

(árvore) (raiz)

‘raiz da árvore’

d)

niale ­ libigue

(árvore) (ramo, galho)

‘galho da árvore’

e)

ela ­ liguocote

(flor) (broto)

‘broto da flor’

Quadro 14: Nomes de partes de corpo e partes de plantas na língua Eyiguayegi­Mbaya

Os dados apresentados pela autora relativos às línguas Eseejja e Amahuaca são ainda

mais interessantes, pois, além de apresentar a mesma estratégia linguística (palavras

compostas cuja ordem é possuidor­possuído), fazem uso metafórico de partes do corpo.

Língua Eseejja Língua Amahuaca

akui ­ iáa (árvore) (braço)

‘ramo, galho’

jii ­ pónyan (árvore) (braço)

‘ramo, galho’

Quadro 15: Nomes de partes de plantas nas línguas Eseejja e Amahuaca

Klein apresenta também outro tipo de categorização dos nomes. Algumas línguas

categorizam os nomes com foco sobre as qualidades semânticas de alienável e inalienável . Os

alienáveis não são necessariamente possuídos, mas podem ser, ao passo que os inalienáveis

são os nomes obrigatoriamente possuídos. Afirma que “ esses conceitos são ligados às noções

de parte­todo porque posse inalienável é geralmente baseado em uma parte de corpo da

pessoa, enquanto que posse alienável é uma combinação tanto da noção de parte acrescida

de uma relação parte­todo não inerente ” (KLEIN, 2000, p. 89). Um exemplo é a língua 96

96 These concepts are linked to the part­whole issue because inalienable possession is often based on ‘a part of a person’s body’, whereas alienable possession is a combination of both the notion of part plus a non­inherent part­whole relationship

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Mataco. O quadro abaixo resume a disposição dos nomes em Mataco, segundo as categorias

alienável e inalienável.

Inalienável Alienável

Termos de parentesco Nomes referentes a humanos que não implicam relações de parentesco

Objetos manufaturados por humanos de propriedade pessoal

Outros objetos

Parte de um todo: Parte do corpo dos animais Parte das plantas Parte dos objetos

Elementos do mundo físico: Árvores e plantas Animais

Quadro 16: Divisão dos nomes em alienável e inalienável na língua Mataco

Em suma, há, em várias línguas, uma relação entre ‘posse’ e ‘meronímia’ (inclusive 97

em português, ex., o braço da Julia), em que “ o possuidor é geralmente também traduzido

como equivalente ao “todo”, enquanto que o possuído é geralmente traduzido como

equivalente à ‘parte ’” (KLEIN, 2000, p. 88). Além dessa relação, seu trabalho sobre línguas 98

indígenas da baixa região da América do Sul comprova outras relações sistemáticas

concernentes a termos de partes:

Parte :

possuído

porção

parte do corpo

termos de parentesco

parte das árvores

parte de objetos

Todo :

possuidor

matéria

nomes não relacionados à relação de parentesco

nome das árvores

nomes de alguns objetos

97 Tal relação é apontada também por Wierzbicka (1996), Lyons (1977) e Cruse (1986) 98 The possessor is usually also translated as equivalent to ‘whole’, whereas the possessed is usually translated as equivalent to ‘part.’

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Analisando termos que designam plantas e suas partes em português à luz do trabalho

de Klein, pode­se afirmar que o funcionamento é muito semelhante (senão idêntico, no caso

da estrutura composta). Com relação a estratégias morfológicas, o português apresenta duas

opções: sufixação e composição. Na seção 5.2.1., argumentei que, na sufixação, há uma

relação sistemática entre base e produto, em que a base será sempre a parte e o produto,

sempre o todo. Propus também que isso decorre do fato de o esquema de imagem de

parte­todo ser subjacente à construção [[X] Si eiro(a)] Sj ↔ [SEM i é parte da SEM j ].

Já na composição, há a estrutura “pé de X” (pé de jaca, pé de acerola etc.). Argumento

aqui que essa estratégia é muito próxima dos dados apresentados em Klein (2000), uma vez

que são palavras compostas, cuja relação entre os constituintes é de posse. A única diferença é

que o português se vale de um composto do tipo “N de N”, ao contrário dos dados de língua

indígena que apresentam a estrutura N­N. Ademais, como nas várias línguas indígenas

estudadas por Klein, no nome composto “pé de X”, o primeiro termo marca o todo/possuidor,

ao passo que o segundo marca a parte/possuído.

É possível que a preposição ‘de’ dos compostos “pé de X” tenha função semelhante ao

prefixo “l” em Toba, mas essa comparação demanda estudo mais aprofundado de ambas as

estruturas, o que foge ao objetivo da presente seção. Por ora, basta atentarmos para as relações

entre os nomes na estrutura “pé de X” e, para isso, não se pode perder de vista que a relação

de posse é uma das relações tipicamente marcadas pela preposição “de”, conforme estudo

sobre as preposições do português do Brasil feito por Ilari, et al. (2015).

Em sentenças como essas, a expressão complexa formada pela preposição mais os dois substantivos que ela liga (“o pai de Pedro”, “o sucessor do Pedro das Quantas”) constitui um sintagma nominal completo, como mostra o artigo que o precede e, por assim dizer, o fecha. Interessa perceber uma característica que todos esses sintagmas nominais têm em comum: trata­se do fato de que o primeiro dos dois substantivos é, invariavelmente, o que poderíamos chamar de “substantivo relacional”. Como o próprio nome indica, trata­se de um substantivo que por seu próprio sentido exprime uma relação , seja ela “de parentesco” (como e óbvio para “( ser ) pai”) ou uma relação criada pelo fato de que os dois indivíduos ocupam o mesmo cargo em tempos diferentes (como em “ ser sucessor ”), uma relação afetiva (como em “ser torcedor”) e assim por diante. Em todos esse exemplos a preposição de introduz o segundo termo da relação. (ILARI, et al., 2015, p. 235)

(...) os substantivos relacionais (que ocupam a primeira posição do sintagma) são principalmente termos de parentesco (marido, mãe, esposa, afilhado, irmão), mas também encontramos termos que exprimem relação diferenciada, como dono, chefe, além de termos que evocam a relação parte­todo, ou algum tipo de localização espacial estabelecida a partir de um termo de referência. (ILARI, et al., 2015, 236)

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(...) ao lerem “o cabeçote do motor”, muitos leitores estarão propensos a lembrar que o cabeçote pertence ao motor, e o verbo pertencer tem sido associado tradicionalmente à noção de “posse”, mas é claro que aqui tudo não passa de uma relação parte­todo. (ILARI, et al., 2015, 242)

Sem a intenção de fazer uma descrição do uso da preposição “de” no português do

Brasil, esses trechos estão aqui apenas para corroborar que há estreita relação entre parte e

possuído, que se manifesta tanto em estruturas sintáticas “Det N de N” quanto no composto

“pé de X”.

Toda essa explanação serviu para mostrar que muito antes de se conceber a relação

entre árvore e seus frutos como uma relação entre um agente e seu produto, a análise de várias

línguas aponta para uma concepção ancorada na noção de parte­todo, seja em termos mais

concretos, seja em projeções metafóricas a partir desse esquema, como na relação de posse ou

mesmo como na relação de parentesco. Lakoff, inclusive, na seção destinada à descrição do

esquema parte­todo, menciona a relação de parentesco como exemplo de metáfora.

Exemplo de metáforas: Famílias (e outras organizações sociais) são entendidas como todos com partes. Por exemplo, o casamento é entendido como a criação de uma família (um todo) com os cônjuges como partes. O divórcio é visto como uma divisão ( splitting up ) . Na índia, a sociedade é concebida como um corpo (o todo) com castas como partes 99

­ casta mais elevada, sendo a cabeça e a casta mais baixa sendo os pés . (LAKOFF, 100

1987, p. 273­274)

Assim, se houve um dia um caráter agentivo nas construções X­ariu angiospermas ,

parece­me mais coerente que essa agentividade esteja vinculada a uma concepção de árvore

como um corpo constituído de partes ou mesmo como “uma mãe” e seus “filhos/frutos”

(numa concepção metafórica da estrutura familiar).

99 O termo splitting up é um dos “sinônimos” do termo divórcio . 100 Sample metaphors: Families (and other social organizations) are understood as wholes with parts. For example, marriage is understood as the creation of a family (a whole) with the spouses as parts. Divorce is thus viewed as splitting up. In India, society is conceived of as a body (the whole) with castes as parts­the highest caste being the head and the lowest caste being the feet.

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2) A origem das formações X­eiro angiospermas

Como apontam os estudos de Viaro (2011), o grupo das angiospermas derivou

diretamente do significado relacional de ­ariu, ou seja, do sufixo formador de adjetivos. Isso

decorreu de forma muito semelhante ao caso dos agentivos profissionais, a saber, pela

omissão do substantivo núcleo ­ arbos piraria > piraria .

Um dos sentidos adjetivais que será mais produtivo nas línguas românicas, sobretudo no português, é uma especialização para o significado vegetal, sobretudo árvores frutíferas. Esse fenômeno já desponta no latim vulgar, em que, por meio da elisão do substantivo, ocorre a incorporação do valor semântico “árvore” pelo sufixo, como em arbor piraria > piraria > pereira. O valor de X é, preponderantemente, um fruto, mais raramente uma flor ou outra parte do vegetal. (VIARO, 2011, p. 140)

Assim, à semelhança do esquema montado para as formações agentivas, pode se sugerir o esquema abaixo.

Essa origem diretamente relacionada ao formador de adjetivos ­ arius , a , um , proposta

por Viaro, vai ao encontro da hipótese de que as formações agentivas e não agentivas provêm

de origens relativamente distintas, o que é o foco do próximo argumento apresentado.

3) Especificação semântica, já no latim, entre masculino e agente e feminino/neutro e

não agente.

Embora ambas as construções (agentivas e não agentivas) tenham sua origem no

sufixo latino ­ arius , a , um , as formas agentivas derivaram do masculino ­ arius , ao passo que

as não agentivas derivaram das formas do feminino e do neutro, respectivamente, ­ aria e

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­ arium , conforme apontam estudos de Mário Eduardo Viaro:

Algumas palavras se relacionam a substantivos homônimos de gênero gramatical distinto. Dessa forma, commentarium ou commentarius aparecem como sinônimos em Cícero. Como a maior parte das palavras em ­arium referem­se a coisas, tais formas terminadas em ­arius parecem absolutamente excepcionais (colocando­os muitas vezes sob suspeição de serem casos de erros à luz da ecdótica) e somente as formas em ­arium são consideradas. Chama a atenção o fato de que a forma masculina apiarius é o apicultor enquanto o neutro apiarium é a colmeia. Mostrando uma relação ainda visível entre o elemento animado e o masculino. As formas neutras em ­arium, dessa forma, jamais indicam agentes como ocorrem com as formas masculinas em ­arius. (VIARO, 2011, p. 128)

Além de Viaro, O dicionário Houaiss também cita a relação entre gênero masculino e

significado agentivo e entre os gêneros feminino e neutro e o significado não agentivo de

­eiro.

­eiro : dos suf. lat. ­arius , a , um formador de adjetivos, e de seus der. ­arius , ii , ­aria , ae e ­arium , ii , formadores de subst. que passam a ocorrer independentemente da existência de um adj. conexo, o primeiro denotando ‘o que produz e/ou negocia, ou cuida; trata de (coisa designada pelo rad.lat.)’ (ferrarìus, i­ 'ferreiro'), o segundo e o terceiro, ger., ‘um lugar, local (por vezes receptáculo)’ (ferraria, ae 'mina de ferro', calvaria, ae 'crânio', caldarium, ii 'casa de banho'), em virtude da estreita ligação ocorrente já no lat., de modo que, em port., não há por quê, nem como, estremar o suf. formador de adjetivos dos formadores de substantivos; neste dicionário, registram­se, numa única entrada, os voc. adj. e subst. orign. latinos. (Houaiss, 2002, versão eletrônica)

O trecho acima aponta também para uma questão controversa: a origem da formação

dos comumente considerados objetos e locativos. Viaro (2011) coloca os objetos e os

locativos (grupos O, P, K, Q, R, L, M e N; ver figura 32, p. 161) derivados direta ou

indiretamente do grupo dos agentivos (B/H). Cabe ressaltar, entretanto, que a genealogia

proposta pelo autor é das palavras do português. Isso fica claro pelo título da obra ­ A

derivação sufixal do português: elementos para uma investigação semântico­histórica , pelo

título da seção que trata mais especificamente da cronologia do sufixo em questão ­ Uma

cronologia do sufixo ­eiro(a)(s) em português , pelas datações postas na árvore, que começam

a partir do século XIII, e por vários indícios e posicionamentos ao longo do texto.

Conforme posto no quadro 10, para o autor, antes do século XIII, havia apenas nomes

de profissões (B/H), árvores (F) e adjetivos (A e G). Assim, uma vez que outros significados

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presentes atualmente nas formações X­eiro também são atestados no latim, conclui­se que o

autor se refere especificamente ao ­eiro, ou seja, ao sufixo já foneticamente modificado. O

próprio Viaro cita alguns desses significados na seção destinada a questões relativas ao sufixo

­ arius , a , um no sistema latino. O mais produtivo parece ser o grupo ‘locativo’. O quadro a

seguir reúne alguns dados apresentados pelo autor sob esse rótulo.

PERÍODO 101 LOCATIVOS (palavra / significado / fonte)

Latim 1 coc(h)learium ­ local onde se criam caracois ( cochlea ) ­ (fonte: Plauto) columbarium ­ local para criação de pombas ( columba ) ­ (fonte: Plauto) glirarium ­ abrigo para arganazes ( glis ) ­ (fonte: Plauto) granarium ­ local onde se guardam grãos ­ (fonte: Plauto) carnarium ­ gancho onde se pendura carne ­ (fonte: Plauto) vinarium ­ vaso onde se coloca vinho ­ (fonte: Plauto) turdarium ­ lugar de criação de tordos ( turdus ) ­ (fonte: Varrão) mellarium ­ colmeia (← mel) ­ (fonte: Varrão) saginarium ­ local onde se faz a engorda (sagina) dos animais ­ (fonte: Varrão) nubilarium ­ local onde se guarda/protege o trigo da chuva (← nubilum) ­ (fonte: Varrão) panarium ­ cesto onde se coloca o pão ­ (fonte: Varrão) seminarium ­ local onde se plantam sementes ( semen ) ­ ­ (fonte: Catão) aquarium ­ onde há agua ­ ­ (fonte: Catão) frig(i)darium ­ local frio, lugar onde há frio ­ (fonte: Lucílio)

Latim 2 aviarium ­ local onde se guardam aves ­ (fonte: Cícero) vir(i)d(i)arium ­ horta (do adjetivo substantivado viridia “verdura” ­ (fonte: Cícero) tabularium ­ “arquivo público (← tabula )” ­ (fonte: Cícero) armamentarium ­ local onde se guardam armas ­ (fonte: Cícero) emissarium ­ escoadouro, i.e. local onde estão as coisas jogadas fora (emissa) ­ (fonte: Cícero) sacrarium ­ local onde há coisas sagradas (sacra) ­ (fonte: Cícero) librarium ­ caixa de papéis, i.e. onde se guardam livros (liber) ­ (fonte: Cícero)

101 Latim 1 ­ período de dois séculos (III a.C. ­ II a.C.); Latim 2 ­ equivale ao período clássico (I a.C. ­ I d.C.); Latim 3 ­ abarca o período tardio (II d.C. ­ IV d.C.); Latim 4 ­ compreende, sobretudo, o período cristão dos séculos IV a VIII.

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vaporarium ­ calorífero, i.e. aparelho onde se produz vapor ­ (fonte: Cícero) æstuarium ­ local de grande calor (æstus) ­ (fonte: César) graphiarium ­ estojo onde se guardam os estilos ­ (fonte: Marcial) rosarium ­ campo de rosas ­ (fonte: Virgílio) donarium ­ local onde se depositam as oferendas (donum) ­ (fonte: Virgílio) ulmarium ­ plantação de ulmos (ulmus) ­ (fonte: Plínio) pomarium ­ local onde se vendem frutas (pomum) ­ (fonte: Plínio) ostrearium ou ostriarium ­ local onde há ostras ­ (fonte: Plínio) trigarium ­ campo de corrida de trigas ­ (fonte: Plínio) 102

sanctuarium ­ local onde ficam as coisas sagradas ­ (fonte: Plínio) cetarium ­ viveiro de peixes ( cetus ) ­ (fonte: Horácio) ferrarium ­ “celeiro (←far “farinha”)” ­ (fonte: Vitrúvio) immissarium ­ reservatório, i.e. local onde as águas são jogadas dentro (immissa) ­ (fonte: Vitrúvio) tepidarium ­ sala de banhos quentes (← tepidus) ­ (fonte: Vitrúvio) vivarium ­ local de caça (←vivus “ser vivo, animal”) ­ (fonte: Sêneca) cal(i)darium ­ “forno, caldeira, caldeirão” (← calidum “calor”) local onde se produz/há calor ­ (fonte: Sêneca) vigil(i)arium ­ “guarita, i.e. local onde se faz a guarda (vigilia) ­ (fonte: Sêneca) spoliarium ­ local onde se colocam os despojos dos animais (spolium) ­ (fonte: Sêneca) valetudinarium ­ hospital, enfermaria, correspondente neutro de valetudinarius “doente” (← valetudo “má saúde”) ­ (fonte: Sêneca) fumarium ­ quarto onde há fumaça (fumus), i.e. para defumar ­ (fonte: Columela) pelearium ­ local onde se guarda a palha ­ (fonte: Columela) veterinarium ­ local onde se cuida das bestas. Correspondente neutro de veterinarius (← veterinus) ­ (fonte: Higino) clipeolarium ­ depósito de pequenos escudos (clipeolum) ­ (fonte: Notas Tiron.)

Latim 3 apiarium ­ colmeia ­ (fonte: Aulo­Gelio) hastarium ­ “venda” (reforço do significado já contido em hasta “venda”) ­ (fonte: Tertuliano) doliarium ­ celeiro onde se guarda o vinho em vasos (dolium) ­ (fonte: Gaio) cloacarium ­ local onde há esgotos (← cloaca ) ­ (fonte: Ulpiano)

102 Triga ­ carro puxado por três cavalos.

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oss(u)arium ­ vaso/urna onde se depositam ossos ­ (fonte: Ulpiano) fabatarium ­ vaso onde se cozem as favas (← fabata “purê de favas”) ­ (fonte: Lâmpridas) pennarium ­ estojo onde se guardam as penas ­ (fonte: Teodoro Prisciano)

Latim 4 suarium ­ “chiqueiro (← sus )” ­ (fonte: Glossarium Isidori) porcinarium ­ “chiqueiro” ­ (de porcinus ) ­ (fonte: Glossarium Isidori) scrutarium ­ “antiquário, adelo” (← scruta “velharias”) ­ (fonte: Glossarium Isidori) seplasarium ­ “perfumaria” (← seplasium “tipo de perfurme”) ­ (fonte: Glossarium Isidori) cucumerarium ­ plantação de pepinos ­ (fonte: S. Jerônimo) encautarium ­ “arquivo público (← encautum )” ­ (fonte: Cod. Theod.) roborarium ­ “paliçada (← robur “carvalho”) ­ (fonte: Vulgata) atramentarium ­ tinteiro, i.e. vaso em que se guarda a tinta negra (atramentum) ­ (fonte: Vulgata) viscarium ­ “armadilha, i.e. local/laço onde se usa visco (viscum) ­ (fonte: Sto. Agostinho) unguentarium ­ vaso para perfumes (unguentum) ­ (fonte: Sto. Agostinho) congiarium ­ vaso que contém um congius (unidade de medida) ­ (fonte: Digesta) salsarium ­ recipiente onde se põe o molho (← salsus “comida condimentada”) ­ (fonte: Apício)

Extraídos de glossários 103

pomarium ­ pomar (de pomum ) plantarium ­ viveiro de plantas malarium ­ “pomar (← mala )” calcearia ­ “sapataria” furnaria ­ “padaria” ærarium ­ local onde se depositam coisas de bronze (æs) cinerarium ­ sepultura, i.e. lugar onde se guardam cinzas (cinis) (CIL ­ Corpus Inscriptionum Latinarum farinarium ­ “celeiro” (farina) viverrarium ­ local onde se criam furões (viverra) scænarium ­ local da cena (scæna) (CIL) subseliarium ­ local onde ficam os bancos (subselia) dos magistrados no teatro (CIL) ollarium ­ nicho de sepultura (← olla ), urna funerária muscellarium ­ ratoeira (← *musce llus em vez de musculus )

103 Dentre os vários textos que serviram de fonte o autor cita o Glossarium Isidori, o Glossarium Graeco­Latinum, o Corpus Glossariorum Latinorum e o Glossarium Cyrillianum. Ao analisar os dados, porém, usa apenas a abreviatura Gloss. sem indicar exatamente de qual dos glossários foi extraído o dado.

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chrismarium ­ vaso de reliquias (← chrisma “unção”)

Quadro 17: Locativos X­ariu

Com base nos dados, percebe­se uma variedade de significados, todos, porém, sob o

rótulo de “locativos”. Entretanto, algumas dessas palavras estão numa zona intermediária

entre local e objeto (salsarium e ærarium, por exemplo) e entre objeto e instrumento

(viscarium e carnarium), o que significa que essa dubialidade já existia em latim. Além disso,

já vimos o quanto a classificação meramente por meio de paráfrases é deficiente. Assim,

numa análise nos moldes propostos no capítulo 5, pode­se distribuir essas palavras segundo

sua significação esquemática, o que resultaria em dois grandes grupos: recipientes (objetos e

locais) e não recipientes (objetos e locais). Salsarium e ærarium estariam no grupo dos

recipientes, ao passo que viscarium e carnarium, no grupo dos não recipientes. Cabe ressaltar

também que, conforme datação, esses sentidos estavam presentes no latim, pelo menos desde

o século III a.C (latim 1). O autor faz ainda o seguinte comentário:

Como visto acima, ­arium é simplesmente a forma do neutro dos adjetivos denominais latinos em ­arius. Já o sentido básico do substantivo em ­arium revela, desde cedo, alguns núcleos claramente definidos. Um dos mais antigos reflete um “local onde se V X”: gallinarium, encontrado já em Plauto, por exemplo, é o étimo da palavra galinheiro em português. O substantivo neutro com o qual o adjetivo concordava em gênero e que foi subentendido promoveu a translação do adjetivo gallinarius “de galinha” para o substantivo gallinarium “local onde estão/ se criam/ se guardam as galinhas”. O verbo, por não estar explícito, precisa ser decifrado pelo ouvinte e, por isso, não são raros os casos de múltipla interpretação. (VIARO, 2011, p. 133­134)

O comentário da citação acima é mais um indício que aponta para a estreita relação

entre significado locativo e gênero neutro. Além do locativo, o trabalho de Viaro também

menciona os significados ‘instrumento’ (ex., bracchionarium (← bracchium) ­ “bracelete, i.e.

objeto para se usar/enfeitar o braço), ‘móvel’ (ex., armarium ­ local onde se guarda os

utensílios/arma) e ‘imposto’ (ex., columnarium ­ imposto por coluna), todos do gênero neutro

e também presentes já no latim 1.

Além de Viaro, Simões Neto (2016) também atesta vários significados atualmente

encontrados tanto em X­eiro quanto em X­ário já presentes em latim, ou seja, na construção

precedente [X­ariu] S . Os significados atestados pelo autor na construção latina são: Agente

(profissional, habitual, circunstancial e beneficiário), Objeto (utensílio, recipiente e máquina),

Local (onde há e onde se faz) e Quantidade (coletivo e medida/quantia).

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Das 336 palavras X­ariu coletadas (ver Anexo I), 108 são de substantivos agentivos e

100 de substantivos não agentivos. A análise do corpus levantado confirma a relação entre o

gênero masculino e a acepção agentiva e entre os gêneros feminino e neutro e as acepções não

agentivas. Dos 108 dados de agentes, 99 são de palavras masculinas (X­arius, i) e apenas 9

são femininas (X­aria, ae). Dentre as femininas, apenas 3 não apresentam um correspondente

masculino. Há também a presença de 2 adjetivos com acepção agentiva. A tabela abaixo

sistematiza os dados das formações X­ariu agentivas.

Agente profissional (total: 76) Formas femininas: 5 (apenas duas sem correspondente masculino)

unguentārĭa , ­ae ­ Arte de perfumaria; perfumista. (< unguēntum, ­ī ­ Perfume (líquido), essência, óleo perfumado). OBS: há um correspondente masc. unguentārĭus, ­ī. saccārĭa , ­ae ­ Profissão de carregador de sacos. (< saccus, ­ī ­ Saco, alforje; Saco para filtrar, coador.) quasillārĭa , ­ae ­ Fiandeira. (< quasīllum, ­ī ­ Cestinho, cesto de pôr a lã.) operarĭa, ­ae ­ A que trabalha, operária. (< opĕra, ­ae ­ Atividade (do trabalhador), trabalho, ocupação.) OBS: há um correspondente masc. operārĭus, ­ī. naviculārĭa, ­ae ­ Navicularia, profissão de armador ou comércio marítimo. (< nāvicŭla, ­ae ­ Navio pequeno.) OBS: há um correspondente masc. naviculārĭus, ­ī

Agente habitual (total: 18) Formas femininas: 2 (apenas uma sem correspondente masculino)

2 adjetivos com acepção agentiva.

glabārĭa, ­ae ­ Mulher que gosta de escravos imberbes. (< glaber, ­brī ­ Escravo imberbe (favorito).) necessārĭa, ­ae ­ Amiga íntima, parenta. (< necēsse ­ Sempre usado com esse ou habere (necessário).) OBS: há um correspondente masc. necessārĭus, ­ī centonārĭus, ­a, ­um ­ Trapeiro, que anda em farrapos. (< centō, ­ōnis ­ Espécie de manta de retalhos.) OBS: Adjetivo com noção agentiva consillārĭus, ­a, ­um ­ Que dá conselhos, prudente. (< consilĭum, ­ī ­ Bom conselho, opinião) OBS1: Adjetivo com noção agentiva OBS2: Já havia um substantivo

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correspondente consillārĭus, ­ī ­ O que aconselha; conselheiro.

Agente circusntancial (total: 7) Formas femininas: 2 (ambas com correspondente masculino)

adversārĭa, ­ae ­ Antagonista, adversária e inimiga. (< advērsus, ­a, ­um ­ Em sentido oposto, em frente, contra) OBS: há um correspondente masc. adversārĭus, ­ī vicārĭa, ­ae ­ Substituta. (< vicis, gen.do desusado vix ­ Lugar ocupado por alguém.) OBS: há um correspondente masc. vicārĭus, ­ī

Beneficiário (total: 7) (todos masculinos)

Sem formações femininas

Total: 108 dados

Palavras masculinas (X­arius, i): 99 dados

Palavras femininas (X­aria, ae): 9 dados

Adjetivos com acepção agentiva (X­arius, a, um): 2 dados

Quadro 18: Distribuição por gênero das palavras X­ariu agentivas

Com relação aos não agentivos, todas as formações X­ariu são neutras, constando de

apenas 3 palavras femininas (aerārĭa, arenārĭa e ferrārĭa), num total de 100 dados, divididos

conforme se segue:

GRUPO Quantidade / Gênero

OBJETOS (recipientes) 26 dados (todos do gênero neutro)

OBJETOS (conjunto de X) 9 dados (todos do gênero neutro)

OBJETOS (contato) 4 dados (todos do gênero neutro)

LOCATIVOS (todos os locativos) 61 dados (58 dados: gênero neutro / 3 dados: gênero feminino)

Quadro 19: Distribuição por gênero das palavras X­ariu não agentivas

Todos esses dados colocam em xeque a sucessão ‘agentivos’ → ‘locativos/objetos’

proposta por Viaro (2011), assim como por diversos outros autores. Embora a datação reflita

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bastante sobre trajetórias semântico­lexicais, é difícil afirmar, com base apenas em datações,

que um determinado significado B derivou de um dado significado A.

No caso de X­eiro, especificamente, a datação (obviamente aliada a outros fatores) só

poderia indicar a trajetória ‘agentivos’ → ‘locativos/objetos’ se esta fosse atestada ainda no

latim. Como tal trajetória não é atestada, a genealogia proposta em relação apenas ao sufixo já

foneticamente modificado só teria lógica se a semântica do sufixo voltasse a um estágio zero,

ou seja, se a modificação na forma “reiniciasse” semanticamente o sufixo, e , a partir daí,

passasse a sofrer novas extensões.

Se isso fosse possível (o que sabemos que não é), teríamos de admitir, no mínimo,

duas hipóteses: uma vez que vários significados de ­eiro também são atestados em ­ariu,

(a) ou os mecanismos cognitivos de extensão semântica são inequívocos e operam de

modo infalível;

(b) ou houve uma extrema coincidência no fato de o sufixo reinicializado ter sofrido

mudança semântica quase idêntica ao seu precedente ­ariu.

A primeira hipótese deve ser descartada pelo fato de tornar os processos cognitivos

lexicogênicos demasiadamente poderosos e por anular outras influências como as de fatores

sócio­histórico­culturais, ao passo que a segunda é totalmente acientífica.

Mesmo quando, além de mudança semântica, há também mudança categorial,

significados presentes na nova forma podem ser encontrados na forma de origem. Simões

Neto (2016), por exemplo, atesta os significados ‘agente’, ‘local’ e ‘origem’ no sufixo ­ariu

como formador de adjetivos:

O segundo ponto ainda a ser considerado sobre as construções X­ārĭu adjetivais está na constatação de que há palavras que, embora representadas como adjetivos no dicionário e aqui classificadas como relativas, apresentam significados germinais para outros subesquemas, como se pode ver com clitellārĭus (LL051: que traz albarda de carga), consillārĭus (LL058: que dá conselhos), oraculārĭus, (LL153: que profere ou emite oráculos), promptuārĭus (LL174: onde se guarda, onde se conserva fechado, e daí, prisão) e taenārĭus (LL202: tenário, de Tênaro, da Lacônia, de Esparta). Esses casos mostram que as informações de agentividade (tanto no sentido de ‘trabalho’ quanto de ‘hábito’), locatividade e origem, que, frequentemente, são expressas pelas construções X­ārĭu substantivas já podiam ser percebidas, de certa forma, em algumas construções adjetivas. Entretanto, há de se pensar a relevância do significado do input em algumas dessas formações, pois parece haver uma espécie de extensão de sentido que se presume ou herda da palavra base, e isso não obrigatoriamente faz com que o significado relacional deixe de ser constatado. Isso é dizer, por exemplo, que, em taenārĭus, dado o fato de a base ser Taenărus, uma

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cidade, pode­se presumir uma especificação do significado relacional, estendendo­o metonimicamente para uma relação de origem, interpretando­se essa palavra como um possível gentílico. Algo parecido pode ser visto em clitellārĭus, cuja base clitēllae (albarda, carga (de animal)) se refere a uma sela própria para resguardar o lombo dos animais de carga. Nota­se que o adjetivo correspondente a essa base apresenta um significado para além do relacional, especificando­se uma relação de função. (SIMÕES NETO, 2016, p. 172)

Esses três exemplos apresentados e discutidos por Simões Neto (op. cit.) mostram que

algumas acepções presentes nas construções substantivas já apareciam em alguns adjetivos. A

diferença é que, no caso dos adjetivos, essas acepções parecem não fazer parte do significado

esquemático da construção X­ariu formadora de adjetivo, mas sim de usos mais contextuais e,

principalmente, condicionados à presença de algumas bases. Com a mudança

semântico­categorial de X­ariu, esses significados passaram a ser codificados e, por isso,

previsíveis no esquema construcional X­ariu substantivo . Tais casos são apenas mais um indício de

que a mudança é sempre contínua e, no caso de ­arius → ­eiro, como afirma o próprio Viaro

(2005, p. 12), “ do ponto de vista diacrônico, não só se pode afirmar que ­eiro vem de ­arius,

mas que ­arius e ­eiro são a mesma coisa ”.

4) Relação entre construção não agentiva e a noção de coletividade

A noção de coletividade e/ou excesso é característica típica de construções não

agentivas. Isso também encontra respaldo histórico, uma vez que a noção de coleção estava

associada à forma do neutro plural e, posteriormente, à forma feminina. 104

O processo de redução dos três gêneros do latim (masculino, feminino e neutro) a dois

gêneros no português (masculino e feminino), sem aprofundar a questão, pode ser resumido

como se segue:

Perda das marcas casuais e simplificação do sistema de classes temáticas

Das 5 declinações, a 4 a e a 5 a declinações praticamente desapareceram, cujas

palavras foram incorporadas às três primeiras. Nesse processo, houve a

tendência de as palavras de 4 a declinação ser incorporadas às de 2 a e as de 5 a

declinação incorporadas às da 1 a ou 3 a declinação.

Isso resultou na simplificação do sistema de classes temáticas, passando a 3

104 Mesmo no caso do neutro singular, já havia a possibilidade de noção coletiva. Vide o grupo OBJETOS (conjunto de X) do Quadro 19, p. 178.

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classes em latim vulgar (nomes de tema em ­a, ­o e ­e), o que permaneceu no

português.

Simplificação dos gêneros (Latim C.: masc./fem./neut. → Latim V.: masc./fem.)

Juntamente às mudanças no sistema de classes, houve uma tendência a associar

a vogal temática ­a de 1 a declinação com a noção de feminino, já que a maior

parte das palavras de 1 a declinação era feminina, com poucas exceções.

De forma análoga, uma vez que a maior parte das palavras de 2 a declinação era

masculina (havia poucas exceções), houve tendência a associar a vogal

temática ­o à noção de masculino.

Na 3 a declinação, havia nomes masculinos femininos e neutros. Como a maior

parte das palavras de 3 a declinação se enquadrava nas formas de tema em ­e, o

gênero não podia ser inferido da terminação. Isso fica nítido em português, em

que palavras de tema em ­e podem ser masculinas ou femininas (a torre, o

pote) sem uma tendência para um ou para outro gênero. Além disso, os

adjetivos de tema em ­e são invariáveis (homem/mulher forte ). Muitas outras

palavras se enquadraram no grupo das atemáticas (ex., Animal , is → Animal).

Na 4a declinação, havia palavras dos três gêneros, mas era um grupo composto

por poucas unidades. Além disso, deve­se considerar que essa declinação foi

incorporada pela 2 a e, consequentemente, a maior parte de suas palavras

assumiu o gênero masculino.

A 5a declinação também era composta de poucas palavras, e o gênero destas

era feminino, com exceção de dies .

Ressalta­se ainda que, em geral, havia maior número de palavras masculinas e

femininas em oposição ao baixo número de palavras de gênero neutro. Assim,

o gênero neutro das 2a, 3a e 4a declinações foi absorvido pelo masculino ou

pelo feminino.

Esses fatores contribuíram para uma correlação (não categórica, porém muito

expressiva) entre a marca ­o e masculino e a marca ­a e feminino. É importante frisar o papel

dos adjetivos nessa correlação. No âmbito dos adjetivos de 1 a classe (os mais numerosos),

havia uma correlação mais direta entre a marca ­a e o gênero feminino e a marca ­o e o gênero

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masculino, já que o feminino seguia o paradigma da 1 a declinação e as formas masculina e

neutra seguiam o paradigma da 2 a declinação. A correlação era mais direta, porque o adjetivo

em latim concorda em gênero, número e caso, mas não em declinação (até porque, declinação

é apenas classe temática).

Por fim, houve uma reinterpretação da marca ­a de neutro plural (nominativo ou

acusativo) como feminino singular. Porém, como em todo processo de mudança, tal marca de

feminino manteve resquício de sua antiga categoria, o que resultou, em muitos casos, no valor

semântico de coletivo ou não contável, formando assim femininos com especificações

semânticas . 105

Assim, muitas das formas em ­aria (neutro plural) foram reinterpretadas como

feminino singular, com acepção coletiva ou não contável. Cabe ressaltar que o contrário

também ocorreu, ou seja, “ uma forma feminina singular terminada em ­a podia ser

interpretada como um neutro plural em ­a (produzindo assim uma ideia coletiva) e gerar

analogicamente um substantivo neutro em ­um no singular. ” (VIARO, 2011, p. 129)

Se, como se argumenta aqui, as formas masculinas deram origem às construções

X­eiro agentivas e as formas femininas e neutras às não­agentivas, fica claro porque a noção

de coletivo é restrita às formas não agentivas.

(...) em alguns casos, um elemento sufixal, como vogal temática, morfema de gênero e de caso, pode modificar, de maneira impactante, o significado de uma palavra. Assim, embora haja aerārĭus, ­ī, como o cidadão que pagava uma taxa, a forma aerārĭa, ­ae não, obrigatoriamente, significa a cidadã que paga a mesma taxa, sendo, nesse caso, uma mina de cobre, o que mostra que as palavras seguiram percursos semântico­históricos diferentes. Há, entre os dados coletados, muitas situações que envolvem flexão de gênero, mas, diante do observado, deve­se tomar cuidado para que isso não seja tomado como uma regra. (SIMÕES NETO, 2016, p. 161) A terceira e última consideração a ser feita sobre os adjetivos formados pelo esquema X­ārĭu toca à relação que esses estabelecem com as instanciações geradas pelos esquemas substantivais. Constatou­se, no corpus, que há 47 adjetivos com substantivos correspondentes. São exemplos os pares mulierārĭus (LL134: de mulher) e mulierārĭus (LL135: homem que gosta de mulheres, mulherengo)’, ‘operārĭus, a, um (LL151: relativo ao trabalho, de trabalho, de trabalhador) e operārĭus (LL152: trabalhador, operário) e vestiārĭus, a, um (LL225: relativo à vestimenta) e vestiārĭum (LL224: guarda­roupa, vestiário)’.

A primeira citação ressalta a distinção entre o ­aria feminino de ­arius e o ­aria com

105 É importante ressaltar que coletivo e plural são noções distintas (PIZA, 2001). Entretanto, não se pode perder de vista que ambas partilham a noção de “mais de um”

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valor locativo. Em latim, havia o substantivo æs (“bronze”) e quatro formas dele derivadas, a

saber, o adjetivo ærarius, a, um “De bronze, de cobre”, o substantivo masculino ærarius, i

“Cidadão que não tinha o direito de votar e que pagava apenas uma taxa fixada pelos

censores”, o substantivo feminino æraria, ae “Mina de cobre” e o substantivo neutro ærarium,

i “Sent. próprio: Tesouro público, erário”. Fica nítida, nesse caso, a relação entre masculino e

agente e feminino/neutro e não agente. A segunda citação ressalta tal relação em mulierarius e

operarius (agentes) e vestiarium (local/objeto)

Pode­se considerar que o atual comportamento distinto das formações agentivas e não

agentivas das construções X­eiro aqui analisadas encontra respaldo nesses fatores, uma vez

que o feminino, nos agentivos, leva à restrição semântica, ao passo que nos não agentivos leva

à extensão figurativa, conforme discutido na seção 5.2.1., mais especificamente na pág. 141.

Todos esses fatos históricos nos fazem refletir melhor sobre a consagrada primazia das

formações agentivas e, sobretudo, o caráter derivado das formações não agentivas em relação

às agentivas. Assim, toda a explanação feita nesta seção corrobora a hipótese aqui proposta de

que construções agentivas e não agentivas são construções irmãs, e que a única origem de fato

comum a ambas as construções é o formador de adjetivos latino ­arius , a , um .

6.2. Especialização semântico­lexical de ­eiro e ­ário: reflexões a partir de dados

históricos

Como apontam estudos de Viaro (2011), embora ­ário e ­eiro tenham vindo do mesmo

sufixo latino ­ariu, as palavras cultas em ­ário não vêm do acusativo, mas do nominativo, pois,

“ sendo cultas, eram empregadas por quem conhecia minimamente as declinações (o mesmo

se pode falar para formas medievais semicultas com airo) (VIARO, 2011, p. 122)”. O ­arium

acusativo, caso lexicogênico do português, gerou apenas as formas em ­eiro no português.

Acrescenta ainda que “ o sufixo culto ­ário apenas aportuguesou sua terminação ” (VIARO,

2011, p. 143), ao contrário de ­eiro, que sofreu metátese do iode (­airo) e consequente

assimilação parcial, alçamento e fechamento da vogal aberta (­eiro).

O sufixo –ário ocorre em português já no século IX em textos de latim. A única palavra desse século (antifonário) revela bem o caráter erudito de sua forma, uma vez que se trata simplesmente de um aportuguesamento do latim medieval antiphonarium. Nela, aparece o sentido coletivo “objeto em que há muitos X”. (VIARO, 2011, p. 143)

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Em suma, segundo o autor, as formas ­arius e arium, respectivamente nominativo

masculino e nominativo neutro, deram origem a ­ário, ao passo que o acusativo masculino

­arium e seu homônimo ­arium (acusativo neutro) deram origem ao ­eiro português. O corpus

que serviu de análise mostra que, à exceção do grupo denominado por Souza (2006) de

Classificador Zoológico, todos os significados presentes hoje tanto em X­eiro quanto em

X­ário já estavam presentes na construção latina X­ariu.

A questão que se coloca então é a seguinte: por que a alguns valores semânticos

sucederam­se também modificações formais? Em outras palavras, por que alguns

subesquemas X­ariu sofreram alteração na forma (metátese do iode e consequente assimilação

parcial, alçamento e fechamento da vogal aberta: ­ariu > ­airo > ­eiro) e outros passaram

apenas por um aportuguesamento da terminação (­ariu > ­ário)?

A hipótese que se defende aqui é a de difusão lexical. Argumento, ao longo desta

seção, que a mudança fonético­fonológica ­ariu > ­eiro atingiu apenas os subsesquemas

X­ariu que apresentavam determinadas características léxico­semânticas. Para corroborar tal

hipótese, apresentar­se­á um panorama comparativo entre as formas latinas e as portuguesas,

no intuito de delinear a evolução ­ariu > ­eiro. Antes, porém, faz­se necessária a apresentação

do conceito de difusão lexical, o que é feito a seguir.

6.2.1. Neogramáticos e Difusionistas: breve apresentação de uma antiga polêmica

A proposta neogramática foi formulada em oposição à proposta dos dialetologistas,

que sustentavam a tese de que cada palavra tem a sua própria história. Os neogramáticos, por

sua vez, assumiam que, diante de condições estruturais específicas, a mudança sonora iria

afetar todas as palavras da língua que apresentassem as mesmas condições estruturais. Por

condição estrutural, entende­se o ambiente ou contexto que condiciona a mudança sonora em

questão, que podia ser um som específico, um traço, um conjunto de traços etc. 106

Tomemos como exemplo o fenômeno da lenição que ocorreu no latim falado na

România Ocidental. Esse fenômeno ocorria sempre que uma consoante oclusiva se encontrava

em contexto intervocálico. Assim, oclusivas geminadas passavam a simples (ca tt u > ga t o),

106 Obviamente é um anacronismo falar em traços fonético­fonológicos para se referir aos neogramáticos do séc. XIX. Estou, pois, dando a explicação sob uma ótica contemporânea, mediante o que já se sabe hoje em termos de fatores condicionantes.

181

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oclusivas surdas, a sonoras (vi t a > vi d a) e as sonoras sofriam síncope (se d ere > seer > ser).

Numa ótica neogramática, então, todas as palavras latinas que apresentassem oclusivas

intervocálicas passariam, obrigatoriamente, por esse processo de abrandamento.

Na visão neogramática, a mudança sonora é vista como regular, sistemática e

obrigatória. Isso significa dizer que, se uma mudança é aplicada a determinado som em

determinado ambiente, tal mudança será implementada com regularidade e sem exceções a

todas as palavras que apresentam as mesmas condições. Percebe­se que era uma teoria muito

forte e, por isso, não tardou em receber críticas fundamentadas em inúmeros contraexemplos.

A alguns casos, os neogramáticos atribuíam o papel da analogia ou do empréstimo linguístico,

que, para eles, eram os únicos fatores capazes de gerar exceções às leis fonéticas. Entretanto,

vários casos de mudança sonora não podiam ser explicados por meio de leis fonéticas

infalíveis, ao mesmo tempo em que não se enquadravam nos moldes de uma mudança por

analogia, tampouco eram empréstimos.

A teoria da Difusão Lexical surge em oposição ao modelo Neogramático. Segundo

Cristófaro­Silva (2001), para os difusionistas

uma mudança ocorre inicialmente em algumas palavras e propaga­se para outras palavras com estrutura sonora semelhante. Em alguns casos a difusão lexical deixa algumas palavras permanentemente sem ter alteração sonora. Em outros casos a mudança atinge a todas as palavras da língua que potencialmente poderiam sofrer a mudança sonora. (CRISTÓFARO­SILVA, 2001, p. 3)

Isso significa dizer que, segundo a teoria da difusão lexical, uma mudança sonora é

aplicada a algumas palavras do léxico e pode atingir (ou não) o léxico como um todo.

Portanto, é a palavra que muda em relação a sons específicos. Esta proposta prevê que a

mudança sonora é foneticamente abrupta e lexicalmente gradual, ao contrário da proposta

neogramática, que prevê que a mudança é foneticamente gradual e lexicalmente abrupta.

Uma das contribuições mais importantes que o modelo difusionista trouxe para os

estudos da linguagem foi a reflexão acerca do papel que o léxico desempenha na mudança

linguística, mostrando que o mesmo pode ser relevante em processos fonológicos.

Vários trabalhos em dados de diversas línguas têm apontado a relevância do léxico na

variação e mudança linguística (WANG, 1969; WANG & CHENG, 1977; JANSON, 1977;

KRISHNAMURTI, 1978; LABOV, 1981; apenas para citar alguns). No Brasil, pode­se citar

trabalhos como os de Oliveira (1991) e Bortoni et al. (1992), sobre o alçamento da vogais

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médias pretônicas, e o de Auler (1992), que estuda os fatores lexicais envolvidos na pronúncia

aspirada do /s/ pós­vocálico no dialeto do Rio de Janeiro.

Há também as pesquisas de Madureira (1997 e 1999), sobre variação da lateral palatal

no português de Belo Horizonte, de Cristófaro­Silva (2001), que analisa três processos

fonológicos, a saber, a vocalização da lateral (/ l / → [w]), a palatalização de oclusivas

alveolares (/t, d/ → [tʃ, dʒ]) e a quebra de encontros consonantais do tipo ele[tri]cista ~

ele[ti]cista, além do trabalho de Cristófaro­Silva et al. (2012), que discutem a palatalização

das oclusivas alveolares no português brasileiro, a partir do contraste da variedade

palatalizante de Fortaleza (Ceará) e das variedades não palatalizantes de Afonso Bezerra e

Guamaré (Rio Grande do Norte).

Cabe ressaltar que a aplicação da teoria da Difusão Lexical não se restringe ao estudo

dos processos fonológicos em variação. Autores como Mollica (1989 e 1992) e Leal (1992)

estendem a análise nos moldes difusionistas para o nível da sintaxe. Mollica (1989) analisa o

queísmo e o dequeismo e constata que “ a estrutura dequeísta é considerada como

prestigiada, e nada mais coerente do que se pensar que ela venha a acompanhar itens lexicais

'menos comuns', 'mais formais', que substituem termos mais corriqueiros .” (MOLLICA, 1989,

p. 83)

Com relação aos fatores que fazem do item lexical uma variável relevante na análise

da mudança linguística, a frequência de uso é, sem dúvida, um dos principais condicionadores

do processo de difusão. Entretanto, outros fatores precisam ser levados em conta, uma vez que

nem sempre a frequência é capaz de explicar o processo. É isso que mostra Oliveira (1994),

ao observar que, se por um lado, há palavras de baixa frequência com alçamento categórico

(ex., aperfeiç o amento, d e stinado, re e ncarnação), por outro lado, há palavras de alta frequência

cujas pretônicas nunca são alteadas (c o mício, m o leza, pr o blema).

O autor destaca, então, a importância de se estabelecerem certas restrições ao

parâmetro, como a consideração da frequência relativa do item (contexto de uso). Isso

significa que o fator frequência pode se submeter a outros condicionamentos, como os de

ordem semântico­pragmática, por exemplo.

É nessa linha que Madureira (1997) ilustra a atuação de fatores semântico­pragmáticos

junto ao fator frequência na implementação de processos por difusão lexical, mostrando que,

apesar de a vocalização da lateral palatal responder a fatores sociais, sendo característica de

183

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grupos sociais mais baixos, o processo é também realizado na fala de grupos sociais mais

altos, que, além de condicionado lexicalmente, submete­se ao fator frequência. A atuação

desse último, porém, aparece condicionada a contexto de fala afetivo.

É com base nas principais premissas da teoria da difusão lexical, portanto, que se

pretende abordar a mudança ­ariu > ­eiro, pois a análise dos dados latinos, juntamente com os

dados de ­eiro e ­ário no português desde o período conhecido como português arcaico até a

atualidade, apontam para um processo de mudança nos moldes difusionistas. Veremos que a

frequência, o contexto de uso, a classe formal, além de questões de ordem

semântico­pragmático foram fatores condicionantes das mudanças fonéticas ocorridas no

sufixo latino ­ariu.

6.2.2. Panorama geral das construções latinas e portuguesas e a evolução ­ariu > ­eiro

O corpus de língua latina analisado distribui­se como apresentado no quadro a seguir:

Agentes Não­agentes

Profissionais 76 dados Objetos recipiente 26 dados

Habituais 18 dados Objetos Conjunto de X 9 dados

Circunstanciais 7 dados Objetos Contato 4 dados

Beneficiários 7 dados Locativos 61 dados Quadro 20: Distribuição dos corpora latinos

Em se tratando das formas agentivas, as construções X­ariu já apresentavam as quatro

acepções atestadas hoje em português, a saber, agente profissional ( ferrārĭus , ­ī ), agente

habitual ( mulierārĭus , ­ī ), agente circunstancial ( adversārĭus , ­ ī ) e beneficiário ( beneficiārĭus ,

­ ī ).

Das 76 palavras que designam profissionais, três devem ser desconsideradas por serem

formas femininas de agentes masculinos (ver quadro 18). Das 73 restantes, apenas operārĭus

e mercenārĭus apresentam caráter genérico; todas as outras podem ser consideradas profissões

de caráter pontual. Isso é forte indício de que agentes profissionais de caráter genérico não

formavam um grupo à parte, não passando de característica específica de algumas poucas

184

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palavras . 107

Além disso, em termos de características formais, os profissionais X­ariu são

formados predominantemente por bases concretas. Apenas 13 deles são formados por base

substantiva abstrata (actuārĭus, argentārĭus, elementārĭus, emissārĭus, falsārĭus, ferentārĭus,

libitinārĭus, mercenārĭus, naumachiārĭus, operārĭus, tesserārĭus, togātārĭus, voluntārĭus), além

de 1 formada por base verbal (aurigārĭus) e 1 por base participial (effractārĭus).

Dos 18 dados de agentes habituais, apenas necessārĭa é forma feminina com

correspondente masculino. Dos 17 dados restantes, 10 são de base abstrata, ou seja, mais da

metade dos dados. Essa é a principal diferença entre os habituais e os profissionais X­ariu.

Importante relembrar que essa ainda é uma característica marcante que difere os habituais dos

profissionais no português contemporâneo.

Com relação aos circunstanciais, 2 palavras são correspondentes femininos de formas

masculinas (ver quadro 18), restando apenas 5 palavras analisáveis. Essas cinco, porém, não

parecem formar um grupo coeso a ponto de se considerar um subgrupo à parte. As bases são

de natureza variada: adversārĭus vem do adjetivo advērsus, ­a, ­um “Em sentido oposto, em

frente, contra”, valetudinārĭus (< valētūdō, ĭnis “Doença, mau estado de saúde”) tem base

substantiva abstrata, ao passo que incendiārĭus (< incendium, i “incêndio, fogo, abrasamento”)

e verbenārĭus (< verbēna, ­ae “Ramo de alecrim; qualquer ramo”) têm base substantiva

concreta. Já vicārĭus vem do genitivo de vix (vicis). Assim, tudo indica que a noção de

atividade de caráter transitório não passa de característica de poucos agentes.

Por fim, foram coletadas 7 palavras que designam sujeitos que são o alvo da ação

(alimentārĭus, beneficiārĭus, donatārĭus, depositārĭus, duplicārĭus, legatārĭus e vicesimārĭus).

Dentre as sete, apenas vicesimārĭus não apresenta correspondente em português; as demais

resultaram em formas X­ário. Acredito, pois, ser mais coerente dizer que a acepção

beneficiário era característica de poucas palavras e, assim como o profissional genérico e o

agente circunstancial, não configurava um grupo semântico à parte, constituindo apenas um

embrião do que veio a ser o beneficiário X­ário do português.

Um argumento plausível, além do baixo número de dados, é o fato de a noção de

sujeito como alvo da ação ser o único ponto de interseção entre essas palavras. Como exposto,

os beneficiários ficaram de fora da análise por serem predominantemente de base verbal

107 No corpus , há apenas as duas citadas. Entretanto, como todo corpus é limitado, admite­se a possibilidade de que houvesse mais alguma(s) palavra(s) de caráter genérico, sem, porém, configurar um subgrupo semântico.

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(sobretudo, particípios). Porém, apenas duplicārĭus , depositārĭus e donatārĭus apresentam essa

característica. As demais são oriundas de bases substantivas.

No que tange à evolução das palavras X­ariu, chama a atenção certas correspondências

entre as formas latinas e as portuguesas. Dos 13 profissionais X­ariu de base abstrata, 10

resultaram em formas X­ário . Desses 10, 8 apresentam flutuação categorial, ou seja, podem 108

ser substantivos ou adjetivos (actuārĭus, argentārĭus, emissārĭus, falsārĭus, mercenārĭus,

naumachiārĭus, operārĭus, voluntārĭus). Os outros três (libitinārĭus, naumachiārĭus e

togātārĭus) não apresentam nenhum correspondente em português. A exceção do caráter

pontual da maioria delas, as demais características reunidas por essas 10 palavras latinas são

as mesmas dos profissionais X­ário do português contemporâneo.

Com relação às palavras de base concreta, 18 dos profissionais X­ariu evoluíram para

formas X­eiro e as 9 sublinhadas apresentam flutuação categorial: balĭstārĭus , caprārĭus,

camerārĭus, carpentārius , carbōnārĭus , caballarius, cubicullārĭus , coquinarius , ferrārĭus ,

furnarĭus, gallinārĭus, librārĭus , lignārĭus, linārĭus, marmorārĭus , materiārĭus, testamentārĭus e

vitreārĭus.

Já no grupo dos habituais, apenas 1 evoluiu para X­eiro ( consillārĭus > ‘conselheiro’).

As palavras aerārĭus, falsārĭus, necessārĭus e usurārĭus resultaram em formações X­ário e

apenas falsārĭus não funciona como adjetivo. Cabem também as considerações de Simões

Neto (2016) acerca do caráter dúbio de alguns agentes:

No corpus, foram observados casos de agentes que geraram dúvidas se deveriam ser categorizados como profissionais ou habituais, sendo, em geral, duplamente classificados. São os casos de effractārĭus (LL069: o que rouba, arrombando portas), falsārĭus (LL079: falsário, falsificador) e testamentārĭus (LL206: o que altera testamento, falsificador de testamentos). Destaque­se, nesses casos, a avaliação depreciativa e o caráter ilícito das atividades, que, segundo Gonçalves, Yacovenco & Costa (1998) e Marinho (2004), são características que ajudam a diferenciar as categorias de agentes profissionais e de agentes habituais, uma vez que só o segundo grupo as apresenta. Ainda que se aceite tal postura, nada impede que effractārĭus, falsārĭus e testamentārĭus possam ser categorizados como agentes profissionais, pois, em todas essas atividades, demanda­se esforço físico, conhecimento e técnica, além de ser possível, por meio delas, ter remuneração e garantir subsistência. (SIMÕES NETO, 2016, p. 176)

Embora não se possa afirmar categoricamente que agentes como effractārĭus, falsārĭus

e testamentārĭus apresentassem dupla interpretação, é bastante plausível a hipótese de que a

108 Metade dessas palavras já caiu em desuso no português ou são de uso muito restrito. As palavras ‘emissário’, ‘falsário’, ‘mercenário’, ‘operário’ e ‘voluntário’ são de uso amplo na língua.

186

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flutuação profissional ~ habitual já existisse em latim.

Em suma, a análise das palavras latinas torna possível já ver que determinadas

palavras X­ariu que apresentavam algumas características em comum tenderam a X­eiro, ou

seja, passaram por um processo de mudança da forma, ao passo que outras palavras com

outras características tiveram apenas sua terminação aportuguesada. Os quadros abaixo

resumem tais correspondências.

Tipo de profissional Características

Profissionais X­ariu Base concreta (61 dados, dos quais 18 resultaram formas X­eiro) Base abstrata (13 dados, do quais 10 resultaram formas X­ário) Base verbal/participial (2 dados) Caráter pontual (76 dados) Caráter genérico (2 dados) 26 palavras com flutuação categorial, das quais 12 resultaram em formas X­ário, 3 em X­eiro e 11 não apresentam correspondente

em português

Profissionais X­eiro no português contemporâneo

Bases predominantemente concretas Caráter pontual Sem flutuação categorial

Profissionais X­ário no português contemporâneo

Bases predominantemente abstratas Caráter genérico Marcados pela flutuação categorial

Quadro 21: Características e correlações entre os profissionais X­ariu, X­eiro e X­ário

Tipo de habitual Características

Habitual X­ariu Base concreta (8 dados) Base abstrata (7 dados) Base verbal/participial (3 dados) 9 palavras com flutuação categorial, das quais 4 resultaram em

formas X­ário, 1 em X­eiro e 4 não apresentam correspondente em português

Habitual X­eiro no português

contemporâneo

Bases predominantemente abstratas Caráter pontual Marcados pela flutuação categorial

Quadro 22: Características e correlações entre os habituais X­ariu e X­eiro

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Em relação ao total de agentes (108 dados), o número de palavras que evoluíram para

X­eiro, somado aos que apenas aportuguesaram sua forma, é bem baixo (38 dados). Na

verdade, a maior parte das palavras no corpus levantado não resultou nem em X­eiro, nem em

X­ário, ou seja, não apresentam correspondentes em português. Das que sobreviveram,

algumas caíram em total desuso; outras, correspondem a palavras formadas com outros

sufixos, como mulierārĭus (“homem que gosta muito de mulheres”), que hoje é consagrada na

forma ‘mulherengo’, ou mesmo marmorārĭus > ‘marmoreiro’, que perdeu espaço para a forma

marmorista.

O fato mais interessante é que muitas palavras latinas foram substituídas por outras de

mesmo valor semântico, porém produzidas a partir de bases vernáculas dentro de um esquema

X­eiro. No grupo dos profissionais, esse é o caso de aquārĭus (“Escravo que vai à água”),

substituído por aguadeiro ~ aguateiro; de argentārĭus (“Banqueiro, cambista, cobrador”), em

que a própria definição dada no dicionário mostra as substituições em ­eiro, ­ista e ­dor; de

aurigārĭus, substituído por ‘cocheiro’; de calceolārĭus, formado a partir da base calcĕus

(calçado), que deu lugar a ‘sapateiro’; de ostiārĭus, de base ostĭum (entrada, abertura),

substituída por ‘porteiro’; de quasillārĭa (< quasīllum “Cestinho, cesto de pôr a lã”) por

‘fiandeira’; e de sagittārĭus, de base sagītta (Seta, flecha), por ‘flecheiro’.

Cabe ressaltar a especialização do significado nesse último caso. Pode­se afirmar que

‘sagitário’ hoje é associado exclusivamente a signo do zodíaco. Ao fazer uma busca no

Google , o site rastreou aproximadamente 3.920.000 resultados, todos relacionados a

horóscopo. No grupo dos habituais, centonārĭus (< centō “Espécie de manta de retalhos”) deu

lugar a ‘trapeiro’ e tabellārĭus, de base tabēlla, “Tábua votiva, carta”, foi substituído por

‘mensageiro’.

Isso explica, em boa parte, porque poucas palavras X­ariu mudaram para X­eiro, a

exemplo de ferrarius > ‘ferreiro’. Já muito cedo, o esquema que formava profissionais

começou a preferir bases vernáculas. Esses dados confirmam o caráter mais popular das

formações X­eiro em relação a X­ário, que, como se argumenta adiante, não têm nada de

populares.

Esses dados vão, inclusive, ao encontro do comentário de Viaro (2011) acerca das

palavras X­ariu por ele analisadas: " Na passagem do latim para o português, pouquíssimas

dessas palavras sobreviveram, contudo, é possível detectar nelas o germe que causará futuras

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produtividades " (VIARO, 2011, p. 141). É esse germe que, já no português arcaico, vai

moldar as formações X­eiro, tal qual as conhecemos hoje.

Os dados do português arcaico revelam que, no caso dos agentivos, a mudança ­ariu >

­eiro se difundiu apenas nos subsquemas X­ariu profissionais e X­ariu habituais . Do corpus levantado

por Simões Neto (2016) referente ao português arcaico, selecionei apenas as palavras que

interessam para esta pesquisa (substantivos denominais), obtendo os seguintes números:

Agentes profissionais X­eiro (português arcaico): 107 dados; 98 base concreta / 9 base

abstrata (agoireiros, cabeçeira, feitiçeiro, husureyro, marỹeiro, medianeiro, onzaneiro,

pregoeiro, sesmeyros, sorteira e vozeira); apenas um de caráter genérico (cééyro).

Agentes habituais X­eiro (português arcaico): 27 dados; 11 base concreta / 16 base abstrata.

Beneficiários X­eiro (português arcaico): 6 dados (comemdadeira, herdeira, merceeiros,

pessoeyro, quinhoeiro e raçoeiro); nenhum de base verbal.

Agentes circunstanciais X­eiro (português arcaico): 3 dados: guerreiro, omezieyra e

prisioneiro.

Esses números mostram que, no português arcaico, a especificação léxico­semântica

dos agentivos X­eiro já estava consolidada, apenas se mantendo até os dias de hoje. Cabe

ressaltar que dos seis dados de beneficiários, apenas ‘herdeiro(a)’ tem uso amplo ainda hoje,

ao contrário dos demais que caíram em total desuso. Assim como no caso dos beneficiários,

pode­se afirmar que os circunstanciais ‘guerreiro’ e ‘prisioneiro’ são apenas resquícios desse

processo de consolidação das características formais e semântico­pragmáticas da construção

X­ eiro agentiva.

Com relação aos nomes que designam angiospermas, foram coletados apenas 6 dados

de construções X­ariu, a saber aminariu (amieiro), ficariu (figueira), nucaria (nogueira),

salicariu (salgueiro), piraria (pereira) e pinariu (pinheiro). Os dados latinos são poucos e, para

levantarmos hipóteses acerca desse baixo número de palavras latinas que designam plantas, é

preciso analisar alguns fatos sobre nomes de plantas em latim.

Primeiramente, deve­se atentar para o fato de que a maior parte das árvores possuíam

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nomes que lhes eram próprios, como salix, icis para ‘salgueiro’, amygdalum, i ou amygdala,

ae para ‘amendoeira’, pinus, i ou pinus, us para ‘pinheiro’, dentre outros. Os nomes de

árvores morfologicamente simples, então, foram aos poucos substituídos por nomes

derivados. Para levantarmos hipóteses acerca dessa mudança, é preciso analisar outros fatos

sobre nomes de plantas em latim.

Havia palavras que designavam tanto o fruto quanto a árvore. Esse é o caso de

amygdalum, i ~ amygdala, ae. Outras, por sua vez, designavam a árvore e seu fruto por nomes

de mesma raiz, mudando apenas a declinação e o gênero. Esse é o caso de pirus , palavra

feminina de quarta declinação, que designava a árvore da pêra, em paralelo a pirum, palavra

neutra de segunda declinação, que designava a pêra . 109

Segundo Viaro (2011, p. 2), “ o uso crescente do acusativo lexicogênico de pirus (a

saber, pirum) se confundiu com o nome da fruta e criou a necessidade do reforço semântico

do conceito de árvore, por meio de torneios como *arbos piraria ”. A partir daí, a palavra 110

arbos passou a ser subentendida e piraria passou a assumir o significado do complexo N+Adj

(cf. seção 6.1). De fato, Houaiss também sinaliza para a elipse da palavra arbor em outros

casos como em amoena (arbor) , substituída por amoenarium (amendoeira) no latim vulgar.

Outro caso semelhante é o substantivo neutro malum, i (maçã), cuja árvore era

designada pela palavra feminina malus, i (macieira). Isso significa que, assim como pirum

(fruto) : pirus (árvore), é provável que tenha havido confusão entre o acusativo de malum

(malum) e o acusativo de malus (malum). Acontece que, àquela época, malum já havia se

estendido para se referir a qualquer fruto de caroço ou pevides, o que fez com que malum (no

sentido de fruta) pudesse vir seguido de um adjetivo que o delimitasse, a exemplo de malum

persicum (maçã da Persia), malum granatum ou punicum (romã ) malum aureum (marmelo) 111

mala matiana (maçãs da Matia) . Esses complexos de N+Adj também sofreram elipse do 112

substantivo núcleo e, a partir daí, os adjetivos passaram a designar as frutas, sofrendo

109 Pode­se afirmar, portanto, que a correlação era muitas vezes marcada por processo flexional, como sinaliza Marinho (2004). 110 Segundo o Dicionário de latim­português da editora Porto (1966) e o Dicionário escolar latino­português de Ernesto Farias (1962), arbos é variante de arbor, oris (árvore). 111 Para a romã, havia também o complexo mala romana (maçãs romanas). 112 Pela evolução fonética, é muito provável que a palavra maçã tenha derivado do neutro plural matiana , em vez do singular matianum .

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consequente mudança categorial (malum persicum > persicum > pessêgo; mala matiana >

matiana > maçã).

A hipótese aqui levantada, então, é a de que a possibilidade de se criar nome de

árvores a partir de um esquema X­ariu decorreu da necessidade de se evitar homônimos em

confluência com a de designar novas plantas. Seja pela designação de frutas e árvores pelo

mesmo nome (amygdala), seja pela confusão gerada pelas marcas casuais ­ pirum (árvore ou

fruto?), malum (árvore ou fruto?) ­ o fato é que o número de homônimos devia ser

relativamente grande. Soma­se a isso o surgimento de novos nomes de frutas pela elipse de

malum, além da descoberta de novas plantas mediante contato com outros povos . É muito 113

provável, portanto, que todos esses fatos linguísticos e extralinguísticos tenham impulsionado

a produtividade do esquema abstrato X­ariu angiosperma e sua consequente prolificidade.

De fato, já no período denominado pré­literário o número de dados basicamente dobra

(13 dados), e do período referente ao português arcaico foram coletados 26 dados. O quadro

abaixo ilustra a crescente prolificidade das formações que designam plantas em português.

Aumento gradativo da prolificidade das formações X­eiro angiospermas

Período pré­literário (13 dados) pereira (830), amieiro (907), nespereira (959), figueira (967), loureiro (969), cidreira (986), nogueira (séc. X), salgueiro (séc. X), pinheiro (1050), pimenteira (1058), espinheiro (1086), carvalheira (1136), ervedeira (1137). Português arcaico (26 dados) séc. XIII avelaneira, amoreira, castanheira, laranjeira, macieira, palmeira. séc. XIV amendoeira, ameixeiro, azinheira, oliveira séc. XV agulheira, cerejeira, pessegueiro, roseira, uveira.

Português clássico (19 dados) séc. XVII aboboreira, cajazeiro, coqueiro, goiabeira, jenipapeiro, lentilheira, mostardeira, pitangueira. séc. XVIII abieiro, algodoeiro, cacaueiro, caramboleira, damasqueiro, ingazeiro, jambeiro, jasmineiro, mamoeiro, maracujazeiro, oitizeiro. Português moderno (29 dados) séc. XIX abacateiro, abricoqueiro, açaizeiro, alecrineiro, cafezeiro, cambucazeiro, canforeira, corticeira, framboeseiro, jujubeira, lentisqueira, macaibeira, macajubeira, maçarandubeira, mamoneira, melancieira, moscadeira, meloeiro,

113 Esse é o caso, por exemplo, do algodão (do árabe al­qutun), planta introduzida na Andaluzia no século XII.

191

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séc. XVI abrunheiro, ananaseiro, araçazeiro, bananeira, cajueiro, jaqueira, limeira, limoeiro, mangueira, medronheiro, pitombeira.

morangueiro, quiabeiro, romãzeira, tamarindeiro, tulipeiro, tomateiro. séc. XX abacaxizeiro, apuizeiro, caquizeiro, guaranazeiro, maxixeiro.

Palavras sem datações registradas (13 dados) açacuzeiro, açafreiro, aguaizeiro, bambueiro, caramboleira, chuchuzeiro, cupuaçueiro, ervilheira, jameloeiro, jerimunzeiro, jaboticabeira, mexeriqueira, palmiteiro.

Quadro 23: Distribuição das palavras X­eiro angiospermas do século IX ao XX

Importante também atentar para a imprecisão de se trabalhar com dados históricos,

gerando, muitas vezes, certa dificuldade na análise dos dados. Como já mencionado, a análise

diacrônica com base exclusivamente em datações pode gerar incoerências e contradições. Os

6 dados latinos, por exemplo, têm seus primeiros registros em língua portuguesa já no período

pré­literário, entre os séculos IX e XI. Entretanto, ‘cidreira’ (986), por exemplo, foi atestada

no mesmo período, mas seu correspondente latino não foi encontrado em nenhuma das fontes

consultadas. O mais curioso é que, segundo Houaiss, ‘cidra’ (do latim citrea , ae "limoeiro" ) 114

tem seu primeiro registro em português em 1131, ou seja, supostamente posterior à palavra

derivada.

Caso semelhante é o de ‘pimenteira’ (1058), aparentemente também formada em

português, uma vez que não foi atestada a palavra na língua latina. Entretanto, ‘pimenta’ data

de 1118 e vem do latim pigmenta , orum (plural de pigmentum , i "cor, corante, cosmético, cor

para pintar, sumo das plantas"). Há também o termo ‘algodão’, que tem seu primeiro registro

atestado no século XIII. Já a palavra ‘algodoeiro’ data do século XVIII. Embora não seja

impossível, é no mínimo estranho achar que o nome ‘algodoeiro’ levou cinco séculos para se

formar a partir da base ‘algodão’, principalmente considerando que o esquema X­eiro angiospermas

já se mostra bastante produtivo no português arcaico.

Said Ali (1964) resume muito bem o problema do aparecimento dos fatos linguísticos

e da complexidade de sua organização:

Ignora­se a data ou o momento exato do aparecimento de qualquer alteração linguística. Nesse ponto, nunca será a linguagem escrita, dada a sua tendência

114 A palavra citrea, ae significava "limoeiro", ao passo que citreum, i significava "limão". Como mencionado, (a) alguns nomes de árvores e seus frutos apresentavam a mesma raiz, mudando apenas o gênero e a declinação; e (b) os nomes de árvores simples foram substituídos por palavras derivadas.

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conservadora, espelho fiel do que se passa na linguagem falada. Surge a inovação, formulada acaso por um ou poucos indivíduos; se tem a dita de agradar, não tarda a generalizar­se o seu uso no falar do povo. A gente culta e de fina casta repele­a, a princípio, mas com o tempo sucumbe ao contágio. Imita o vulgo, se não escrevendo com meditação, em todo o caso no trato familiar e falando espontaneamente. Decorrem muitos anos, até que por fim a linguagem literária, não vendo razão para enjeitar o que todo mundo diz, se decide também a aceitar a mudança. Tal é, a meu ver, a explicação, não somente de fatos isolados, mas ainda do aparecimento de todo o português moderno.” (SAID ALI, 1964, p. 8)

Sendo assim, datações devem ser tomadas como norteadoras sempre em conjunto com

outros critérios e nunca como critério balizador altamente confiável. Diante disso, embora

haja, no corpus , apenas 6 palavras latinas complexas para designar plantas, é altamente

possível que o número de palavras já formadas em latim, na realidade, seja maior, não sendo,

portanto, inconsistente afirmar que o esquema abstrato X­ariu angiospermas já havia se consolidado

no latim, mantendo sua produtividade e ganhando prolificidade em português e nas demais

línguas românicas.

Os objetos recipientes e os locativos são os não agentivos mais produtivos em latim.

Há 26 dados de recipientes X­ariu, dentre os quais 22 são de base concreta, 3 de base abstrata

e 1 de base participial; 6 tiveram a forma aportuguesada (aquarium, armarium, apiarium,

oss(u)arium, sacrarium e vestiārĭum) e apenas 1 evoluiu para X­eiro (caldārĭa > ‘caldeira’).

Esses são dados do que podemos considerar recipientes incontestes. Excetuando­se os

recipientes, as demais palavras podem ser divididas em três grupos: palavras que designam

objetos com nítida noção coletiva (9 dados), locativos incontestes (61 dados) e palavras 115

cujas entidades estabelecem mera relação de contato (4 dados).

Os 9 dados X­ariu que designam ‘objetos’ resultaram em X­ário. As bases são

predominantemente abstratas (apenas itinerarium e herbarium possuem bases concretas) e a

maior parte das palavras designa “livro que registra Xs”. Essas são as mesmas características

das palavras X­ário objetos do português contemporâneo e esse caso será detalhado mais adiante.

Cabe destacar a palavra herbarium , que é descrita no dicionário como “obra que trata de

botânica”, era, no entanto, um livro em que se reuniam descrições e ilustrações de plantas,

com indicações sobre suas propriedades medicinais (HOUAISS, 2002). A acepção de local

para cultivo/exposição de plantas é posterior e surgiu no português.

Isso não significa, porém, que a acepção mais geral “local para cultivo/exposição de

115 Assim como com os dados de língua portuguesa, optou­se pela nomenclatura ‘objetos’.

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X” não estivesse presente já no latim. Dos 61 dados de locativos, 12 podem ser contemplados

por essa paráfrase: viverrarium, plantarium, porcinarium, suarium, cetarium, ostrearium,

seminarium, turdarium, columbarium, coc(h)learium, gallinarium e aviārĭum. Ressalta­se

ainda um número considerável de locativos que designam mais especificamente “coleção de

X”: arenārĭa, ulmārĭum, viridārĭum, vitiārĭum, columbarium, rosarium, trigarium,

cucumerarium e malarium. Essa acepção, por sua vez, não sobreviveu nem nas formações em

­eiro, nem nas em ­ário, ficando sob a responsabilidade do sufixo ­al. Basta observar que

basicamente a metade dessas palavras latinas foi substituída por palavras portuguesas X­al

com o mesmo significado: arenārĭa foi substituída por ‘areal’, columbarium por ‘pombal’,

rosarium por ‘roseiral’, trigarium por ‘trigal’ e cucumerarium por ‘pepinal’ . Ulmārĭum e 116

vitiārĭum foram substituídas por ‘olmedo’ e ‘vinhedo’, respectivamente.

No geral, os locativos X­ariu apresentam as mesmas características dos locativos em

­ário do português moderno: são predominantemente de base concreta (52 de 61 dados),

muitas indicando, basicamente, “locais para cultivo/exposição/demonstração de X”. Há,

obviamente, palavras que não se enquadram nessa paráfrase, a exemplo de hastarium “venda”,

clipeolarium “depósito de pequenos escudos” e veterinarium “local onde se cuida das 117

bestas”, correspondente neutro de veterinarius. Porém, ao se analisarem num nível mais

esquemático, pode­se afirmar que tanto as construções latinas quanto as portuguesas são

ancoradas pelo esquema de contenção, com algumas palavras figurando numa zona entre

contenção e contato. Das 61 palavras, 7 foram aportuguesadas e 5 evoluíram para X­eiro.

X­ariu > X­ário X­ariu > X­eiro

aviário (aviārĭum), cenário (scænarium), estuário (aestārĭum), prontuário (promptārĭum), santuário (sanctuarium), seminário (seminarium), solário (solārĭum).

celeiro (cellarium), galinheiro (gallinarium),

palheiro (pelearium), terreiro (terrarium),

viveiro (vivarium).

Quadro 24: Palavras X­ariu e seus correspondentes em português

116 Outro fato que não se pode perder de vista é a relação entre ­eiro e ­al, em que o primeiro sufixo forma plantas e o segundo forma plantações, a partir das mesmas bases (laranjeira : laranjal; pepineiro : pepinal; abacateiro : abacatal, dentre muitas outras.). Em alguns poucos casos, a própria formação X­eiro é base para uma palavra X­al, a exemplo de roseiral. 117 Vale notar que veterinarium não gerou locativo em português. Hoje, usa­se tanto ‘veterinária’ quanto ‘veterinário’. O primeiro é elipse de clínica veterinária , ao passo que o segundo é uma metonímia do tipo localização pelo localizado (ver figura 6, p. 47), como em “Vou levar o cachorro no veterinário”.

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Há nítida confusão entre os autores ao tratarem dos objetos e dos locativos. Marinho

(2004), por exemplo, coloca sob o rótulo de locativos tanto palavras como ‘açucareiro’,

‘biscoiteira’ e ‘farinheira’, quanto palavras como ‘cativeiro’, ‘puteiro’ e ‘banheiro’. No nível

esquemático, porém, tanto um objeto quanto um local podem ser ancorados pelo esquema de

contenção, como nas palavras ‘puteiro’ (local / contenção) e ‘açucareiro’ (objeto / contenção).

Cabe ressaltar que é comum, entre locativos, encontrar palavras numa zona fluida entre

contenção e contato.

A distinção entre objeto e local é fundamental para analisar a evolução das formações

X­ariu não agentivas. No português arcaico, X­eiro formava tanto objetos recipientes quanto

locativos ancorados no esquema de contenção. A partir do século XVII, as formações X­eiro

foram gradativamente se especializando na direção dos objetos recipientes, ao passo que os

locativos foram perdendo força até deixar de ser uma construção produtiva. O quadro abaixo

mostra a especificação semântica de ­eiro na direção dos objetos recipientes.

Especificação semântica de ­eiro na direção dos objetos recipientes

Objeto/contenção Local/contenção

Português arcaico : 12 dados areeiro (1258) armeiro (séc. XIII) caldeira (séc. XIII, lat.) roupeiro (séc. XIII) masseira (séc. XIII) mealheiro (séc. XIV) saleiro (séc. XIV, lat.) bicheiro (séc. XV) açucareiro (1535) abelheiro(a) (1553) faqueiro (1562) tinteiro(a) (1600)

Português arcaico : 10 dados celeiro (1032, lat.) lagarteira (1097) palheiro (1124) cativeiro (sec. XIV) estaleiro (séc. XIV) esterqueira (séc. XIV) galinheiro (séc. XV, lat) formigueiro (1529) pesqueira (1537) chiqueiro (1547)

Português clássico : 14 dados frasqueira (1624) merendeira (1634) pimenteiro(a) (1634) mostardeira (1643) salseira (1662)

Português clássico : 5 dados cocheira (1619) viviero (1662, lat.) leoneira (1690) coelheira (1712) carvoeira (1712)

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chocolateira (1706) alpisteiro (1712) paliteiro (1720) torteira (1721) carteira (1727) cristaleira (1771) cartucheira (1775) esponjeira (1776) cinzeiro (1789)

Português moderno : 24 dados leiteira (1813) chapeleira (1836) compoteira (1836) papeleira (1836) manteigueira (1844) galheteiro (1858) medalheiro (1858) saladeira (1858) petisqueira (1877) cigarreira (1881) farinheira (1881) licoreiro (1881) floreira (1890) garrafeira (1890) alfineteiro(a) (1899) charuteira (1899) garfeira (1899) biscoiteira (1913) boquilheiro (1913) garrafeiro (1944) lixeira (1958) coqueteleira (1975) saboneteira (1881) bomboneira (séc. XX)

Português moderno : 1 dado banheiro (1871)

Palavras sem datação registrada agulheiro, azeiteiro(a), baleiro, bengaleiro, bilheteira, boleira, escoveira, fosforeira, iogurteira, lancheira, paneleiro, pãozeira, queijeira, sapateira.

Palavras sem datação registrada alevineiro, aranheiro, bezerreiro, cupinzeiro, puteiro, roupeiro, salitreira. Obs: Ressalta­se que alevineiro concorre com alevinário.

Quadro 25: Distribuição dos Objetos e Locativos X­eiro do século XI ao XX

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Mesmo que se possa comprovar que, dentre os locativos sem registro de data, há

outra(s) palavra(a) referente(s) ao português moderno além de ‘banheiro’, a própria diferença

na quantidade entre objetos e locativos não deixa dúvidas de que a construção X­eiro objetos

recipientes se consolidou e ganhou força na língua, ao passo que a construção X­eiro locativo caiu em

desuso. Isso se deve ao fato de que o sufixo ­ário passou a ser formador de locativos por

excelência, o que será detalhado adiante.

Por fim, os objetos não recipientes X­ariu não se tornaram tão prolíficos em português

quanto os demais grupos, limitando­se a um tímido conjunto de 20 palavras (ver Anexo III).

Não foram encontradas datas para a maioria delas; apenas 4 são do português arcaico –

‘poleiro’ (séc. XIII), ‘joelheira’ (séc. XIII), ‘caneleira’ (1446) e ‘ombreira’ (1595); as demais

não apontam para uma trajetória muito coesa.

Em suma, os subesquemas X­ariu que foram atingidos pela mudança fonética foram os

profissionais, os habituais, as angiospermas, os objetos recipientes e os locativos recipientes.

Estes últimos, porém, perderam força na concorrência com ­ário por volta do século XVII.

Com relação à mudança ­ariu > ­eiro, a análise dos dados aponta para um processo nos

moldes difusionistas. Como mencionado anteriormente, a teoria da difusão lexical preconiza

que condicionamentos semântico­lexicais podem ser fatores de atuação para a mudança

fonológica. No caso da mudança em questão, seguem alguns condicionamentos de caráter

geral para a mudança X­ariu > X­eiro:

Classe formal : A classe formal foi um fator relevante nesse processo de mudança, uma vez

que palavras em ­eiro vieram do acusativo

É uma prática tão antiga quanto abusiva, indicar o étimo pelo acusativo latino, uma vez que as formas no acusativo refletem apenas palavras do latim vulgar, mas nem todas as palavras de origem latina tiveram um único modo de transmissão. Dessa forma, somente os termos em latim popular mereciam esse tipo de notação (nesse caso, tampouco se indica a apócope do ­m), uma vez que formas cultas, medievais e científicas não passaram pelas mesmas regras fonéticas das formas populares e, portanto, deveriam ser indicadas no nominativo. (VIARO, 2011, p. 105)

Categoria lexical : A categoria lexical também pode ser considerada fator relevante, já que as

formas X­ário vieram de adjetivos ou de palavras com flutuação categorial, ao contrário de

X­eiro que teve origem em substantivos mais prototípicos.

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Uso : Foram as palavras X­ariu de uso mais geral e mais popular que deram origem a X­eiro.

Frequência : Por serem mais populares e de uso mais geral, pode­se prever que eram também

mais frequentes. O grande número de dados X­eiro já no português arcaico corrobora tal

hipótese.

Além dos condicionamentos de caráter mais geral, deve­se levar em consideração que

as alterações fonético­fonológicas não atingiram todos os subesquemas X­ariu, mas apenas

aqueles com determinadas características léxico­semânticas. Assim, ao lado dos fatores que

condicionaram vários subesquemas, deve­se considerar como condicionante também a

característica de cada subesquema, como sistematizado no quadro a seguir.

X­ariu profissional * Base concreta * Caráter pontual * Substantivos mais prototípicos * Indicação de agentes mais prototípicos, marcados pelo contato direto com a entidade designada pela base.

X­ariu habitual * Predileção por bases abstratas * Caráter pontual * Substantivos marcados pela flutuação categorial * Indicação de agentes menos prototípicos, caracterizados pela habitualidade.

X­ariu angiospermas * Bases concretas * Substantivos mais prototípicos * Designação de nomes de plantas, marcados pela relação de parte e todo entre a palavra base e a palavras derivada.

X­ariu objetos recipientes * Bases concretas * Substantivos mais prototípicos * Designação de nomes de recipientes, marcados pela relação de contenção entre a palavra base e a palavras derivada.

X­ariu locativos

* Bases concretas * Substantivos mais prototípicos

* Designação de nomes de recipientes, marcados pela relação de contenção entre a palavra base e a palavras derivada.

Nota: Não se pode esquecer que os locativos só perderam força no séc. XVII, logo devem ser incluídos neste quadro.

Quadro 26: Subesquemas X­ariu atingidos pela mudança fonético­fonológica e suas características

Diante de toda explanação ao longo desta seção, pode­se afirmar que o modelo da

difusão lexical não só é compatível com o modelo da Morfologia Construcional (MC), mas

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também importante para confirmação da noção de léxico hierárquico, pois

(a) sendo a MC um modelo que aborda a noção de construção no nível lexical, pressupostos

difusionistas enfatizam o papel que o léxico e suas unidades desempenham na mudança

linguística;

(b) o modelo booijiano trabalha com a noção de construção, entendida como pareamento entre

forma e significado. Assim, uma palavra é uma construção; esquemas parcialmente fixos

como X­eiro e X­ário são construções; esquemas abertos como [[X] X Y] Y são construções.

Dessa forma, a mudança pode atingir qualquer um desses níveis (aberto, fixo ou parcialmente

fixo) e se espalhar para as construções e/ou níveis semelhantes, podendo atingir ou não toda a

rede construcional. Em outras palavras, sendo o léxico hierarquizado, a difusão não é

aleatória, tampouco se propaga apenas com base em semelhança sonora, mas atinge partes

estruturadas do léxico.

6.2.3. De latinismos a construções produtivas: o caso de ­ário

O caso de ­ário é bem diferente de seu irmão ­eiro. Para ilustrar a diferença, podemos

usar a seguinte analogia spielbergiana: imaginemos uma população de répteis que evoluiu

naturalmente ao longo de milênios. Essa espécie manteve algumas características de seu

ancestral, ao mesmo tempo em que desenvolveu características próprias, o que autoriza

qualquer biólogo afirmar que se trata de outra espécie. Digamos que um grupo de cientistas,

mediante DNA de um fóssil, conseguiu reproduzir in vitro uma pequena população de 20

exemplares do réptil extinto. Após período de observação e já prontos para viver em ambiente

natural, esses répteis são lançados na natureza e começam a se reproduzir.

Essa pequena alegoria serve para afirmar que ­ário, ao contrário de ­eiro, foi uma

produção in vitro . Obviamente, não podemos cair no equívoco dos estudos linguísticos do

século XIX de ver a língua à luz da biologia darwiniana, tampouco de reduzir o processo de

formação de palavras em ­ário à simples manufatura. Os processos lexicogênicos são muito

mais complexos, mas tal analogia, ressalvada suas limitações, ilustra bem o caso do sufixo

­ário.

O fato é que várias palavras em ­ário foram retomadas do latim pela via erudita e só

depois de já haver um número razoável de palavras na língua é que pequenos núcleos

semânticos ganharam produtividade, formando novas palavras. Para ilustrar esse processo,

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será feita, então, uma análise da trajetória de todas as palavras X­ário coletadas referentes ao

português arcaico . 118

As palavras mais antigas presentes no corpus são ‘antifonário’, ‘denário’ e ‘breviário’,

que, segundo Viaro (2008), são claros latinismos. Em seu trabalho intitulado “ Os sufixos ­eiro

e ­ário: história de sufixos divergentes ”, o autor descreve o desenvolvimento semânticos dos

sufixos ­eiro e ­ário, a partir das palavras mais frequentes do português atual (VIARO, 2008,

p. 1) . Segundo ele, 119

“o sufixo –ário ocorre em português já no século IX em textos de latim. A única palavra desse século (antifonário) revela bem o caráter erudito de sua forma, uma vez que se trata simplesmente de um aportuguesamento do latim medieval antiphonarium. Nela, aparece o sentido coletivo “objeto em que há muitos X”. Do século XII até hoje sobreviveram outras duas palavras com o mesmo comportamento, breviário e denário, o primeiro com o mesmo sentido coletivo (derivado de algum valor substantivado de brevis) e o segundo, com valor adjetival “que (vale) X (asses)” (de deni). (VIARO, 2008, p. 2)

A partir do século XIII, é atestado um número maior de palavras: ‘aniversário’,

‘calendário’, ‘contrário’, ‘necessário’, ‘salário’, ‘santuário’, ‘vigário’, ‘vestiário’, ‘templário’,

‘falsário’, ‘notário’, ‘ternário’ e ‘eletuário’. Segundo Viaro (op. cit), as palavras em ­ário no

século XIII ainda são latinismos. De fato, todas as palavras citadas já existiam no latim.

‘Aniversário’ vem de anniversārĭus, ­a, ­um e não apresenta correspondente substantivo,

sendo este inovação do português (O aniversário da Júlia é quinta­feira). Para ‘calendário’,

atesta­se tanto o adjetivo quanto o substantivo latinos. Para o português, porém, o dicionário

Houaiss só apresenta o uso substantivo, com datação do séc. XIII.

Em latim, além do adjetivo contrarius, a, um, havia o substantivo contrarius, i "rival,

inimigo" e o substantivo contrarium, i "o contrário, o inverso". O dicionário Houaiss

apresenta as três acepções para o correspondente português. Entretanto, a acepção primeira

dada pelo dicionário é de adjetivo. Pode­se concluir que o uso adjetivo foi o primeiro na

língua . Já para ‘necessário’, além do adjetivo, há o substantivo necessārĭus, ­ī "amigo 120

íntimo, parente". Esse significado/uso, porém, não sobreviveu em português. Não há registro

118 Para uma trajetória de ­ário do português arcaico ao moderno, ver Anexo V. 119 O autor divide a sua investigação em três partes: do português pré­literário ao português renascentista (séculos IX­XIV), do português renascentista ao português moderno (séculos XV­XVIII) e português contemporâneo (séculos XIX e XX). 120 Cabe ressaltar que a maior frequência de ‘contrário’ atualmente é em locuções como “ao contrário (de)”, “do contrário”, “em contrário”, “pelo contrário”.

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desse uso no dicionário Houaiss, tampouco parece familiar ao falante atual.

Além do adjetivo salarius, a, um, havia o substantivo masculino salarius, i

"Negociante de carne ou peixe salgado" e o substantivo neutro salarium, i "quantia paga aos

soldados para comprar sal". Este último foi o sentido que entrou no português e parece ser o

mais frequente desde o início, uma vez que o dicionário Houaiss não atesta a acepção

adjetiva. Isso converge com o comentário de Viaro (2008, p. 3), ao afirmar que “ o termo

salarius possui o significado básico do sufixo “que é de X”, no entanto seu uso mais

frequente, provindo do neutro salarium possui especificação do sentido geral da palavra .”

Nos dois dicionários latinos consultados, só há a forma substantiva sanctuarium, i

"local sagrado; local onde ficam as coisas sagradas". O dicionário Houaiss também não

apresenta uso adjetivo para essa palavra em português. Já para o adjetivo vicarius, a, um "que

fez a vez de, que substitui." há o substantivo correspondente vicarius, i "substituto", assim

como vestiarius, a, um "de roupa, relativo às roupas" tem o correspondente vestiarium, i

"vestiário, guarda­roupa". Para ambas as palavras, porém, o dicionário Houaiss só apresenta

o uso substantivo. Com relação a ‘templário’, não há registro da palavra nos dicionários

latinos. O Houaiss define a palavra como “ subst. Cavaleiro do templo ”. Isso significa que

‘templário’ na verdade era adjetivo (cavaleiro templário) e por elipse do substantivo passou a

substantivo. Segundo a seção de etimologia do Houaiss, ‘templário’ vem do latim medieval

templarius (séc. XII), como se segue:

lat.medv. templarius (sXII) 'ordem religiosa dos cavaleiros do Templo', instituída em 1118, em Jerusalém, nas proximidades do Templo de Salomão, por Hugues de Payns, para defender o Santo Sepulcro; dissolvida c1317 pelo papa Clemente V. (HOUAISS, 2002)

O termo ‘falsário’ é mais um que já apresentava flutuação categorial em latim

(falsarius, a, um "falso" / falsarius, i "falsário, falsificador"), e assim se manteve até o

português atual. Não foram encontradas palavras latinas para ‘notário’, ‘ternário’ e ‘eletuário’

nos dicionários consultados. Segundo a seção de etimologia do Houaiss, ‘notário’ vem de

notarius, i, que significa "estenógrafo, secretário" e, segundo o mesmo, mantém esse

significado atualmente. Já ‘ternário’ vem de ternarius, a, um “que contém três, triplo, relativo

a três” e, em, português também só funciona como adjetivo. Por fim, para ‘eletuário’, a obra

apresenta a seguinte origem: l at.tar. electuarium,ii 'eletuário, preparação farmacêutica';

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f.hist. sXIII leitoairo, sXIII leitoario, 1726 electuario . Tal palavra manteve seu significado.

Cabe notar também que é a forma mais opaca na relação base­produto.

As palavras do corpus referentes ao século XIV são ‘ordinário’, ‘proprietário’,

‘tributário’, ‘armário’, ‘adversário’, ‘inventário’, ‘incendiário’, ‘sudário’, ‘solitário’,

‘questionário’, ‘testamentário’, ‘boticário’, ‘relicário’ e ‘sacrário’. Segundo Viaro, (2008, p.

4), “ no século XIV, continua o valor latino básico nas palavras mais frequentes” e a análise

dos dados corrobora a afirmativa do autor. O dicionário Houaiss classifica ‘ordinário’ apenas

como adjetivo, o que converge com seu étimo latino, uma vez que em latim só havia o

adjetivo ordinarius, a, um. Não há, em nenhum dos dicionários latinos, o correspondente para

‘proprietário’. Segundo Houaiss, ‘proprietário’ vem de proprietarius, a, um “pertencente a

alguém”; em português funciona tanto como adjetivo quanto como substantivo.

O adjetivo tributārius, a, um foi encontrado nos dois dicionários. Manteve­se como

adjetivo até os dias atuais. Já armarium, i "armário", assim como em português, só aparece

como substantivo. A classificação de ‘adversário’, segundo Houaiss, é adjetivo e substantivo,

seguindo, portanto seus correspondentes latinos (adversarius, a, um / adversarius, i).

‘Inventário’ também mantém sua categoria, já que vem do latim imperial inventarium, i, do

radical inventum, supino de invenire (“achar”);

Outras duas palavras também convergem com as categorias das formas latinas:

‘incendiário’ já apresentava a forma adjetiva e substantiva em latim (incendiarius, a, um "de

incêndio; incendiário" / incendiarius, i "incendiário") e ‘sudário’ manteve­se como

substantivo (sudarium, i (< sudor) "lenço; pano para limpar o suor do rosto; sudário"). Já

‘solitário’, hoje adjetivo e substantivo, vem de sōlitārĭus, ­a, ­um "Isolado, separado,

solitário", sem registro de forma substantiva nos dicionários consultados.

Em relação a ‘questionário’, Houaiss indica a origem latina quæstionarius, i “carrasco,

verdugo, o que aplica a tortura”. Segundo Viaro (2008, p. 4), "quæstionarius era “pessoa que

(faz) perguntas”, mais especificamente, numa sessão de tortura; hoje, ‘questionário’ é um

objeto (em) que (há) questões, ou seja, uma prova. As formas latinas testamentārĭus, ­ī "O

que altera testamento, falsificador de testamentos." e testamentārĭus, ­a, ­um "Relativo aos

testamentos, testamentário" resultaram em palavras diferentes em português . 121

121 Digna de nota é a precedência de ‘testamenteiro’ (1297) em relação a ‘testamentário’ (séc. XIV).

202

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Testamentário (datação ­ séc. XIV) adjetivo

1. m.q. testamental substantivo masculino

2. herdeiro por testamento 3. livro ou tomo dos testamentos

relativos a qualquer instituição (hospital, igreja etc.)

Etimologia : lat. testamentarius,a,um 'de ou relativo a testamento, determinado ou disposto em testamento'; ver 2test­

Testamenteiro (datação: 1297 ) adjetivo e substantivo masculino

1. que ou o que cumpre ou faz cumprir as disposições de um testamento.

2. diz­se de indivíduo a quem o testador incumbe expressamente de cumprir as suas disposições de última vontade.

3. que ou o que está sempre a redigir testamentos

Etimologia : lat. testamentarius, i 'o que redige um testamento'; ver 2test­; f.hist. 1297 testameeteiros, sXV testamenteyros

Segundo Cunha (1982), ‘boticário’ vem do latim appothecarius, i “escravo

encarregado do armazém, adega”, da base appotheca “depósito, armazém, botica”. O termo

‘botica’ era utilizado para lojas em geral, incluindo farmácias. De acordo com o Índice do

Vocabulário do Português Medieval , de Antônio Geraldo da Cunha, o primeiro registro de

‘botica’ como “lugar onde se vendiam remédios e afins” data de 1460. Porém, o efetivo uso

de ‘botica’ para farmácias deve ser anterior. O autor também indica as palavras riliquiarium e

sacrarium como étimos de ‘relicário’ e ‘sacrário’, respectivamente.

Referentes ao século XV são as formas ‘aquário’, ‘centenário’, ‘comentário’,

‘extraordinário’, ‘secundário’, ‘sumário’, ‘voluntário’, todas formadas em latim clássico.

Além dessas, há ‘plenário’, ‘secretário’ (ambas do latim medieval), ‘donatário’, ‘temerário’ e

‘concubinário’.

‘Aquário’ apresentava três formas em latim: o adjetivo aquārĭus, ­a, ­um “Relativo à

água”, o substantivo masculino aquārĭus, ­ī “Escravo que vai à água, aguadeiro” e o

substantivo neutro aquārĭum, ­ī “onde há água”. Segundo a seção etimológica do Houaiss, a

acepção de ‘aquário’ como signo do zodíaco é derivada da forma agentiva.

Cabe notar que o agente foi substituído pela forma X­eiro com base vernácula

(aguadeiro ~ aguateiro), atestada já no séc. XIII, comprovando, mais uma vez, a deriva natural

das formas X­eiro. ‘Aquário’ como recipiente, por sua vez, é atestada apenas no século XV.

Isso talvez porque objetos recipientes são de encargo das construções X­eiro e não X­ário.

Sendo as formações em ­ário erudutismos, fica claro porque ‘aquário’ só aparece no séc. XV e

203

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com o mesmo sentido de aquarium em latim, a saber, “reservatório de água”.

A língua, porém, parece evitar esses conflitos e, se por um lado, ‘aquário’ continua

sendo, esquematicamente falando, um recipiente (ou seja, puxando o significado para cima),

curiosamente passa a designar “local para criação de peixes”. O local para criação de peixes

era designado pela palavra piscina, ae "Viveiro de peixes" de base piscis, is "peixe".

Entretanto, já em latim piscina também significava "reservatório de água para nadar; piscina".

Acontece que a palavra ‘piscina’ ficou apenas com o segundo significado, ao passo que

‘aquário’ assumiu o primeiro. A acepção de ‘aquário’ como local para criação de peixes é do

século XVI, segundo o Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa de Antônio Geraldo da

Cunha e, segundo Houaiss, mais especificamente de 1588, o que comprova que no século XV

o significado era o mesmo do seu étimo latino.

No Dicionário de latim­português (1966), foi encontrada apenas a forma centenarius,

a, um adj. “em número de cem; que perfazem cem; centenário; de cem anos”. ‘Comentário’

manteve sua categoria de origem, já que em latim só havia a forma commentārĭum, ­ī " Livro

de notas ou apontamentos, notas, memoriais.”, assim como ‘extraordinário’ (<

extraordinārĭus, ­a, ­um) que só funciona como adjetivo. Em latim, havia as formas

voluntārĭus, ­ī "Soldado voluntário" e voluntārĭus, ­a, ­um "Que procede livremente,

voluntariamente". Em português, ‘voluntário’ funciona tanto como adjetivo quanto como

substantivo. Os significados são exatamente os mesmos das formas latinas e ambos do século

XV, o que é forte indício de que a palavra foi, de fato, resgatada do latim.

Apresenta também o mesmo significado e categoria de origem da forma latina a

palavra ‘secundário’ (< secundarius, a, um "de segunda ordem; secundário"), ao passo que

‘sumário’ (summarium, i "sumário, resumo") possui usos adjetivos em português. ‘Plenário’

(< plenarius, a, um "completo") hoje apresenta uso substantivo com valor “conjunto de X”,

provavelmente derivado do significado adjetivo. Já ‘secretário’ manteve o significado e

estatuto categorial do étimo latino secretarius, i “confidente, conselheiro particular, secretário,

escriba”. ‘Donatário’ e ‘temerário’ são palavras que também têm o mesmo significado e

categoria do étimo; a primeira de donatarius, i “aquele a quem se dá alguma coisa” e a

segunda de temerārĭus, ­a, ­um “Que é devido ao acaso, temerário, imprudente; Fortuito”. A

palavra ‘concubinário’, com base em todas as fontes consultadas, foi formada em português.

Por fim, no século XVI, têm­se as seguintes formações: ‘imaginário’, ‘judiciário’,

204

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‘prontuário’, ‘seminário’, ‘temporário’, ‘veterinário’, ‘dicionário’, ‘itinerário’, ‘abecedário’,

‘antiquário’, ‘confessionário’, ‘arbitrário’, ‘hereditário’, ‘literário’, ‘mercenário’,

‘veterinário’, (provenientes do latim), ‘bancário’, ‘penitenciário’, ‘escriturário’ (formadas em

português).

Tanto ‘imaginário’ quanto ‘judiciário’ são adjetivos. De fato, em latim, só havia os

adjetivos imaginārĭus, ­a, ­um " Imaginário, falso." e judiciārĭus, ­a, ­um "Relativo à

justiça.". Sobre ‘prontuário’, Viaro comenta:

Promptuarius, formado sobre o particípio promptus (do verbo promĕre) “retirar” tem valor locativo “lugar onde se X (Y)”. Em Plauto tem o sentido de “prisão”, mas no latim tardio, a forma neutra promptuarium “lugar de onde se X” pode significar “armário, loja”.(VIARO, 2008, p. 6)

Segundo Houaiss, a atual acepção de ‘prontuário’ como “manual de informações úteis;

ficha que contém os dados pertinentes de uma pessoa” é derivada da acepção locativa. O

termo ‘seminário’ em português pode significar

1. instituição educacional onde se formam os eclesiásticos, 2. conjunto dos educadores e dos alunos dessa instituição, 3. congresso científico ou cultural, com exposição seguida de debate, 4. grupo de estudos em que os estudantes pesquisam e discutem tema específico, 5. aula dada por um grupo de alunos em que há debate acerca da matéria exposta por cada um dos participantes. (HOUAISS, 2002)

A acepção 1 é deriva do significado original de seminarium, i "local onde se plantam

sementes" de base semen “semente”. Isso significa que a escola é vista como lugar e os

futuros clérigos como sementes. As demais acepções são desta derivadas.

No Dicionário de latim­português (1966), há apenas o adjetivo temporarius, a, um “1.

que dura apenas algum tempo; 2. dependente das circunstâncias, variável, inconstante”. Em

português, ‘temporário’ tem as mesmas acepções e categoria, assim como ‘veterinário’, que

vem de veterinarius (< veterinus) "médico que cuida das bestas”. Não há nos dicionários

consultados o correspondente de ‘dicionário’. Segundo Houaiss, vem do latim medieval

(1220) dictionarium ou dictionarius “repertório de dictiones” (frases ou palavras)'. Segundo

Viaro (2008, p. 6), dictionarius, do latim medieval, é um adjetivo denominal que passa a ser

usado como substantivo, passando do valor primitivo ao coletivo quando utilizado na forma

neutra dictionarium . É com esse valor coletivo que entra no português no século XVI.

‘Bancário’ e ‘penitenciário’, ao que tudo indica, foram formadas em português. A primeira é

205

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um agente profissional de caráter genérico e a segunda um circunstancial.

Outras palavras X­ário do século XVI que também remontam ao latim são as

seguintes: ‘depositário’, de depositarius, i “o que recebe ou o que faz um depósito”;

‘abecedário’, do latim tardio abecedarium, i “alfabeto”; ‘mercenário’, de mercenārĭus, ­ī

“mercenário, o que trabalha por salário”; ‘itinerário’ de itinerarium “mapa, i.e., conjunto de

caminhos (iter)”; ‘sumário’ do latim summarium, i “sumário, resumo, epítome, compêndio”;

‘antiquário’ de antiquarius, i “aquele que ama antiguidades”, de base adjetiva antiquus, a, um

(“antigo”). Além desta, vale citar os adjetivos ‘arbitrário’ (arbitrarìus, a,um), ‘hereditário’

(hereditarius, a, um) e ‘literário’ (litterarius, a, um).

Toda essa exposição serviu para mostrar que, a exceção de ‘concubinário’, ‘bancário’,

‘escriturário’ e ‘penitenciário’, todos os dados X­ário referentes ao português arcaico são

formas aportuguesadas do latim, num total de 52 palavras. Segundo os dados, somente a partir

do século XVII é que começam a ser formadas, produtivamente, palavras X­ário com bases

vernáculas (ver anexo V). Além disso, cabe ressaltar que os latinismos não são restritos ao

português arcaico. Nos períodos referentes ao português clássico (séc. XVII e XVIII) e ao

português moderno (séc. XIX e XX), há um total de 37 dados X­ário que remetem a

formações latinas. Os comentários de Said Ali (1964) reforçam as constatações aqui expostas:

Os nomes que em latim clássico tinham o elemento formativo ­ariu­ passaram para o português, ao tempo em que este idioma se constituiu, geralmente como essa terminação alterada em ­eiro: primeiro (primariu­), celeiro (cellariu­), dinheiro (denariu­), ribeiro (ripariu­), etc. (...) Ocorrem todavia em português antigo alguns termos, uns por se terem introduzidos ulteriormente, outros por constituírem exceção à regra geral, nos quais ­ariu­ aparece com a forma ­airo: sudairo, contrairo, fadairo, vigairo, boticairo, etc. Sob a influência erudita foi­se desfazendo a metátase, volvendo tais vocábulos à forma primitiva, e enriqueceu­se o idioma com outros termos em ­ário, tomados à língua mãe . Este processo de haurir diretamente na fonte latina ou de criar vocábulos novos segundo a norma latina tomou incremento em português moderno e ainda em nossos dias se recorre a ele com frequência . [grifo meu] (SAID ALI, 1964, p. 241)

O quadro abaixo resume a distribuição das palavras X­ário nos três períodos da língua

portuguesa.

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Periodização do português Resgatadas do latim Formadas em português

Período pré­literário (até séc. XIII) 3 ­­­­­

Português arcaico (do séc XIII ao XVI) 52 4

Português Clássico (séc. XVII e XVIII) e Moderno (séc. XIX e XX)

38 81

Total 93 85 Quadro 27: Distribuição das palavras X­ário nos quatro períodos da língua portuguesa

Em suma, a análise mais minuciosa dos dados revela que X­eiro seguiu um curso

natural, ao passo que X­ário foi uma produção que podemos chamar de in vitro . Assim como

os répteis da analogia se reproduziram, o resgate massivo de palavras latinas fez com que se

criassem pequenos núcleos semânticos (ver anexo V) que funcionaram como ponto de partida

para a criação de novas palavras. Alguns ganharam produtividade a partir do século XVII e,

ao que tudo indica, estagnaram no início do século XX. O único ainda produtivo, como

aponta Souza (2006), é o grupo locativo. Cabe lembrar que o teste aplicado por Machado

(2005) indica ­ário atualmente como um formador de locativos.

Não à toa também, os grupos X­ário apresentam as mesmas características de

subgrupos X­ariu. Basta ver as correspondências sintetizadas nos quadros 20 e 21 (pág. 188 e

191, respectivamente). Entretanto, a simples comparação entre os dados do português e do

latim, sem uma análise mais acurada da trajetória e da entrada dessas palavras no português,

pode levar à falsa conclusão de que, assim como ­eiro, ­ário seguiu uma evolução natural.

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7. MUDANÇA LINGUÍSTICA, PANCRONIA E REDE CONSTRUCIONAL: ÚLTIMAS REFLEXÕES

O presente trabalho teve por objetivo analisar e descrever construções do tipo [[X]s

Y]s, com base nos principais pressupostos da Morfologia Construcional (MC). O modelo

booijiano, embora tenha trazido avanços para os estudos morfológicos, ainda carece de

refinamentos e reformulações. Como contribuição principal, este trabalho trouxe alguns

refinamentos semânticos à proposta seminal de Booij (2005, 2007, 2010).

O primeiro foi a incorporação da Rede Conceitual de Contiguidade (RCC) ao polo

semântico das construções denominais. Como discutido no capítulo 2, a MC preconiza que o

polo semântico das construções hierarquicamente superiores deve ser o mais abrangente

possível a ponto de abarcar todas as acepções hierarquicamente subordinadas. Tal

abrangência, porém, não é detalhada e não vai além de paráfrases vagas.

Assim, a RCC se mostrou o nível esquemático ótimo para se alcançar generalizações

coerentes. Primeiramente porque resolve o problema da paráfrase . Em segundo lugar, e não

menos importante, a RCC é estruturada por esquemas imagéticos, conceito já consagrado na

literatura e demonstrado por diversos autores como sendo o esqueleto da linguagem.

Mesmo assim, é preciso ter a cautela de evitar subjetividades excessivas e propostas

meramente teóricas. Para fugir de tais subjetividades, unir a RCC ao arcabouço da morfologia

construcional requer a identificação do esquema de imagem e do domínio envolvido a partir

da análise de dados quantitativamente relevantes. Isso significa dizer que são os dados da

língua que devem determinar a coerência e aplicação da proposta e não o inverso.

Os sufixos ­eiro e ­ário foram os candidatos selecionados para demonstrar a validade

da tese de que a semântica das construções denominais é ancorada em EIs de contiguidade.

Não é demais lembrar que essa nova abordagem aplicada a ­eiro e ­ário pode ser estendida a

outros sufixos denominais. Tomemos como exemplo o caso de ­ada. Palavras que comumente

são separadas sob os rótulos semânticos de “multidão, coleção” (‘boiada’), “porção contida

num objeto” (‘colherada’) e “porção alimentar, bebida” (‘laranjada’) podem ser reunidas se as

descrevemos num nível mais esquemático, conforme figura abaixo.

208

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Figura 33: Representação esquemática das construções X­ada com noção coletiva

No nó mais alto, está o esquema da construção denominal. Imediatamente abaixo está

o esquema X­ada cuja contraparte semântica indica que o significado da base é uma unidade

em relação ao significado do produto, sua coleção ou conjunto. O esquema de imagem é o de

contenção e a cor amarela indica o domínio das assembleias e coleções. Esse modelo não só

dá conta da polissemia de um sufixo, como também descreve a relação entre sufixos

denominais distintos, como se vê na figura a seguir:

Figura 34: Representação esquemática das construções coletivas X­ada, X­agem, X­al e X­aria

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A figura 34 demonstra que as construções X­ada, X­agem, X­al e X­aria apresentam

subsquemas com o mesmo esqueleto. Essas construções diferem, pois, quando puxamos o

significado para baixo.

Outra contribuição do presente trabalho foi demonstrar que a mesma rede esquemática

que ancora o processo de formação de palavras subjaz também a conexão que a palavra base e

a derivada estabelecem no léxico (conforme discutido no capítulo 3). Isso significa dizer que a

matriz esquemática de [ [X] Si ­ada ] Sj ↔ [SEM i unidade da SEM j ] é a mesma do par

‘cachorro’ : ‘cachorrada’. Isso pode parecer circular. Entretanto, quando vemos que pares de

palavras simples estabelecem as mesmas relações (‘peixe’ : ‘cardume’), fica clara a validade

da proposta.

Figura 35: RCC como base conceitual de processos de formação de palavras e de relações lexicais

Para dar conta de dados que aparentemente não se encaixam na descrição proposta,

fez­se imprescindível uma análise de base diacrônica. Assim, em vários dados, embora

sincronicamente a relação base­produto tenha se esgarçado, o retorno às origens da formação

resgata sua motivação inicial, corroborando mais uma vez a validade da RCC como base

cognitiva de processos de formação de palavras. Esse é o caso, por exemplo de ‘carpinteiro’,

posto de lado em muitas análises formalistas devido à opacidade da base. ‘Carpinteiro’ vem

de carpentārius que significa “construtor de carruagens”. Essa carruagem era denominada

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carpentum e era fabricada de madeira. Do ponto de vista formal, carpentārius é formado a

partir da base carpentum + ­ ārius ; semanticamente, era o profissional que construía a

carruagem. Logo, a palavra se formou como os demais profissionais X­ariu.

Por outro lado, o significado das palavras não se resume a um significado

esquemático. Palavras são unidades conectadas a uma rede de sentidos altamente complexa.

Assim, o carpentārius não era meramente o construtor de carruagem, mas também aquele

que, por exigência do ofício, dominava técnicas de corte e construção com madeira. Com o

tempo, o termo se estendeu para o profissional que lida com madeira em geral.

Isso torna necessário tocar num ponto que não pode ser negligenciado: os processos

lexicogênicos são variados e se interferem mutuamente. Como mecanismos geradores de

extensão semântica, destacam­se a metáfora e a metonímia. Tomemos os comentários de

Viaro (2011) para ‘chuveiro’:

As primeiras abonações de chuveiro remetem a uma chuva forte (sentido ainda verificável diatopicamente, mas desconhecido da fala de muitos falantes) e não a um objeto. Em Frei Luís de Sousa (1631 Anais de Dom João III) se diz “Cessou aquele espanto e terror; mas logo sobrevêo outro, que foi um chuveiro de água tão grossa e tão extraordinária” (VIARO, 2011, p. 49)

O termo ‘chuveiro’, então, surge com a acepção de “excesso de X” e depois, por

relação de similitude, ou seja, por metáfora, passa a designar o objeto que usamos para tomar

banho. Outro caso é o de ‘diário’, adjetivo com sentido “que se faz ou acontece todos os dias;

cotidiano”. Com o aumento do uso de livros para registro de acontecimentos diários, o livro,

por metonímia, passou a ser designado pela palavra ‘diário’. Inclusive a direção adjetivo >

substantivo é recorrente nas palavas X­ário, sobretudo nas que têm valor coletivo.

A sequência “adjetivo > substantivo” opõe­se à máxima de que a mudança semântica

parte dos sentidos mais concretos para os mais abstratos e/ou do menos gramatical para o

mais gramatical. A própria recategorização do sufixo latino ­ariu, originalmente formador de

adjetivos, passando a formador de substantivos, é um exemplo.

Outro exemplo que vai de encontro a noções lineares e unidirecionais é o caso dos

agentes profissionais e habituais. Para Soledade (2015), qualquer agente habitual, em tese,

pode ser recategorizado como agente profissional. Essa recategorização, segundo a autora, é

uma questão de conceptualização que depende de vários fatores, como o uso, a necessidade

expressiva do(s) falante(s) e das relações interacionais e socioculturais em dada comunidade.

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Exemplos recentes comprovam a afirmativa da autora. O termo ‘blogueiro’ surge

como um habitual. Hoje, com os avanços tecnológicos, com os indivíduos cada vez mais

conectados em rede e com o aumento expressivo do microempreendedorismo individual, já é

possível ver pessoas fazendo dos blogs uma atividade profissional. Há vários sites e tutoriais

no Youtube explicando “como ser blogueiro profissional” , “como ser um blogueiro de 122

sucesso” , “como ganhar dinheiro com blogs” , dentre outros do gênero. Esse é um nítido 123 124

caso em que fatores extralinguísticos variados estão impulsionando uma recategorização de

um termo no sentido inverso do tradicionalmente esperado. Entretanto, como discutido no

capítulo 6, a flutuação profissional ~ habitual não é recente e, ao que tudo indica, agentivos

X­ariu já apresentavam uma dupla leitura.

Com relação às semelhanças encontradas entre as formações latinas e portuguesas, a

análise comparativa entre os dados do português em diversas sincronias e do latim revelou

que significados mais abstratos e considerados derivados já estavam presentes nas construções

X­ariu. Revelou também que processos de extensão que hoje ocorrem visíveis e descortinados

aos olhos de qualquer pesquisador, já ocorriam na língua latina, a exemplo de ‘armarium’ que,

segundo Viaro (2011, p. 145) “ já era usada para móveis que guardassem outras coisas e não

só armas ”.

Assim, buscar entender o presente a partir do passado revelou a vantagem de um

tratamento pancrônico para a plena compreensão e descrição de fatos concretos da língua.

Cunha, Oliveira e Votre (1999) definem pancronia como

processo que apresenta uma perspectiva diacrônica, já que envolve mudança, e uma perspectiva sincrônica, já que implica variação que pode ser descrita como um sistema sem referência a tempo. Uma vez que um elemento linguístico ­ palavra ou construção ­ é capaz de adquirir e reter novos sentidos e usos sem perder os antigos, seu estudo requer uma perspectiva pancrônica. Nesse sentido, dizemos que a lingüística funcional é essencialmente pancrônica, pois os princípios que a norteiam podem ser aplicados quer aos padrões fluidos do uso da língua que se observam num corte sincrônico, quer aos processos de mudança que se depreendem na trajetória diacrônica. (CUNHA, OLIVEIRA e VOTRE, 1999, p.3)

Questões como a relativa autonomia das construções não agentivas em relação às

agentivas, as especificações semânticas de ­ eiro e ­ário em sentidos semântica e

pragmaticamente complementares, a mudança fonético­fonológica de ­ariu em determinados

122 http://reidarenda.com/como­se­tornar­um­blogueiro­profissional/ 123 http://www.mulheresempreendedoras.net.br/como­se­tornar­uma­blogueira­de­sucesso / 124 https://www.youtube.com/watch?v=WIHlo2AeFrE

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subesquemas e não em outros, além da revitalização das formações X­ário a partir de dados

produzidos, na metáfora aqui utilizada, in vitro , são fatos linguísticos que só a análise

comparativa de caráter pancrônico puderam revelar.

Não se pode perder de vista o fato de que, apesar da grande variabilidade presente nas

construções aqui analisadas, há também um caráter de grande estabilidade que se mantém já

atravessando milênios. Basta ver que a RCC se aplica confortavelmente também aos dados de

X­ariu. Isso reforça a ideia de que, ao lado de mudanças que podem ocorrer em todos os

níveis de sua estrutura, a língua também apresenta, em todos os níveis, padrões de

estabilidade. Bybee (2010) bem ilustra essa tensão entre continuidade e estabilidade na

metáfora das dunas de areia:

As dunas de areia têm regularidades aparentes de formato e estrutura, contudo elas também exibem considerável variação entre instâncias individuais, assim como gradiência e mudança ao longo do tempo. Se quisermos entender fenômenos que são tanto estruturados quanto variáveis, é necessário olharmos para além das formas superficiais mutáveis e considerarmos as forças que produzem os padrões observáveis. A língua também é um fenômeno que exibe estrutura aparente e regularidade de padrões enquanto ao mesmo tempo mostra variação considerável em todos os níveis . (BYBEE, 2010, p. 1) 125

Em se tratando de estabilidade, a RCC, ao que tudo indica, é o fator gerador de

estabilidade na formação de vários denominais. Bybee (2010) mostra em inúmeros casos

analisados que fenômenos estruturais observados na gramática das línguas naturais são

derivados de processos cognitivos de domínio geral. Esses processos são “ as forças que

produzem os padrões observáveis ”. Pode­se afirmar que esquemas de imagens estão no rol

desses processos de domínio mais geral, uma vez que estruturam nossas experiências tanto

linguísticas como não linguísticas.

Por fim, diante de toda variabilidade que se sobrepõe ao caráter estável, cabe um

último questionamento: até que ponto elementos de uma rede (não) se influenciam

mutuamente durante o processo de criação de uma palavra? Não condiz com o efetivo uso da

língua o pressuposto de que os falantes têm na mente esquemas e subsquemas relativamente

125 Sand dunes have apparent regularities of shape and structure, yet they also exhibit considerable variation among individual instances, as well as gradience and change over time. If we want to gain understanding of phenomena that are both structured and variable, it is necessary to look beyond the mutable surface forms to the forces that produce the patterns observed. Language is also a phenomenon that exhibits apparent structure and regularity of patterning while at the same time showing considerable variation at all levels.

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autônomos e que formam novas palavras acessando um (e apenas um) esquema A, B ou C,

respeitando integralmente os limites morfossêmanticos e pragmáticos previstos por esse

esquema. É justamente esse pressuposto que ainda aproxima o modelo Booijiano dos modelos

gerativos baseados em RFPs.

As representações lineares ainda são nitidamente limitadas. Assim, diante de toda

complexidade das relações entre os vários significados de uma peça morfológica (afixos,

afixoides, splinters , dentre outras), representações nos moldes de redes neurais utilizadas no

âmbito da inteligência artificial parecem mais adequadas. É isso que propõe Soledade (2013),

ao tratar da polissemia do sufixo ­eiro no português arcaico:

A teia de significados desse sufixo, já no português arcaico, não parece admitir um desencadeamento contínuo da polissemia, mas apresentaria uma rede de relações semelhante ao nosso sistema neuronal. E se se pretende estabelecer esquemas que de fato representem, imageticamente, as relações entre os diversos sentidos de um sufixo como o –eir­, e provavelmente de qualquer outro sufixo, as formulações teriam de se aproximar de algo como as redes neurais ou neuronais utilizadas no âmbito da inteligência artificial. Ainda que careçam da tridimensionalidade que um esquema construcional de formação de palavras deveria supor, esse tipo de representação imagética poderia cumprir, ainda que parcialmente, a função de explicitar a complexidade da teia polissêmica de um dado elemento linguístico. Uma organização dos esquemas construcionais em rede revelaria que as relações entre os sentidos dos sufixos ­ ao mesmo tempo que mais plurais, no sentido de muliplicidade de relações ­, são mais estreitas porque se unificam todos os usos do sufixo em torno de uma rede interligada ­ nem sequencial nem radial, mas sim multipolarizada. (SOLEDADE, 2013, p. 108)

Por isso, aponto algumas reflexões acerca da noção de léxico hierárquico de Booij,

que aqui assumem tom de reflexões finais e direcionamentos possíveis para pesquisas futuras:

1. Embora haja uma hierarquia entre esquemas e subesquemas, eles se influenciam

mutuamente. Não me refiro, pois, à mútua influência já prevista no mecanismo

‘compatibilização’. A mútua influência aqui referida é entre esquemas abstratos e

subesquemas e entre subesquemas irmãos;

2. Não menos importante é a noção de que a base, por si só, deve ser assumida como

uma rede de conceitos altamente complexa que, ao se compatibilizar com o esquema,

pode gerar significados no produto que fogem demasiadamente ao esperado.

Um bom exemplo é o de ‘fraldário’. A palavra ‘fralda’, ao se compatibilizar com o

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esquema X­ário locativo , gera um produto que destoa consideravelmente do previsto, uma vez

que a própria base está sendo usada metonimicamente. ‘ Fraldário’ não é um local que tem

fraldas, ou para a exposição de fraldas, mas sim um local destinado a trocar a fralda da

criança. A base é metonímica, porque ‘fralda’ representa a higienização da criança. Dessa

forma,

3. deve­se admitir que o papel da compatibilização é mais poderoso e atuante do que se

pode prever;

4. assumir que tanto os esquemas quanto as bases são redes de conceitos altamente

complexas é assumir que ambos (esquema e base) só podem ser plenamente

compreendidos e descritos, se levados em consideração o papel dos frames e MCIs,

metáforas e metonímias, possíveis compressões de significado, possíveis mesclagens,

ajustes focais, dentre tantos outros fatores;

5. como consequência desta última, a busca pelo significado esquemático codificado no

esquema é a maneira mais eficaz de se chegar a generalizações mais consistentes,

como defendido ao longo desta tese.

A análise no nível mais esquemático, entretanto, é apenas um recorte e, sobretudo,

uma opção do analista dentre inúmeras outras e, por isso, não deve negar ou atravancar os

outros níveis de análise. Como bem aponta Soares da Silva (2006), tanto o nível esquemático

quanto o nível dos usos contextuais são de suma importância.

Todas essas reflexões deixam claro que o tratamento dos significados em rede ainda

carece de propostas que tratem de maneira eficaz a natureza multipolarizada da polissemia.

Esta tese, pois, foi apenas um dos passos que ainda precisa ser dado nessa direção.

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