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INTRODUÇÃO O presente trabalho não é pretensioso a ponto de querer esmiuçar toda a trajetória do Direito Civil brasileiro na profundidade que ele verdadeiramente apresenta. Ater-nos-emos a traçar um panorama histórico e ideológico de nossa juscivilística, de modo a viabilizar o entendimento crítico da atual realidade de nosso Direito Civil. Isto porque para compreendermos as tendências apontadas na contemporaneidade, precisamos pesquisar as razões históricas, ideológicas, políticas, econômicas e sociais que as impulsionaram ao longo dos tempos. Somente assim, será possível questionar o caminho traçado pelo legislador do Código Civil em vigor, que não se coaduna com as necessidades sociais e jurisdicionais de nosso país. Por estas razões, iniciaremos nosso trajeto pesquisando as influências do ordenamento jurídico que se instalou em nossas terras com o descobrimento de nosso país. Estudaremos como ocorreu a transição das Ordenações Filipinas para o Código Civil de 1916, o movimento de codificação e seu contexto histórico. Logo após, deteremo-nos em pesquisar as características do Código de Bevilácqua, suas influências ideológicas e literárias. Veremos qual a estrutura adotada na sua elaboração e a forma como ela reflete exatamente o pensamento da sociedade contemporânea à sua formulação. Louvaremos seus méritos. Passaremos a entender a evolução paradigmática que o Direito Civil brasileiro sofreu no último século e como a complexidade da sociedade superou de forma incontrolável os dogmas do positivismo e da codificação. Adentraremos em todos os aspectos da denominada "crise" do Direito Civil. Traçaremos seu conceito, seus contornos e suas razões. Neste capítulo, dedicado à "crise", nos muniremos, então, dos argumentos para questionarmos a elaboração e a promulgação de um código civil na atualidade. Após, delinearemos os contornos juscivilísticos da contemporaneidade e concluiremos pela total inadequação do novo diploma legal à sua realidade. O tema é longo, intrincado e polêmico. Confesso, que, por vezes, o desânimo e a vontade de desistir me tentaram. Mas a angústia que me causa um novo código civil em nossos tempos que, não bastasse sua

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INTRODUÇÃO

O presente trabalho não é pretensioso a ponto de querer esmiuçar toda a trajetória do Direito Civil brasileiro na profundidade que ele verdadeiramente apresenta. Ater-nos-emos a traçar

um panorama histórico e ideológico de nossa juscivilística, de modo a viabilizar o entendimento crítico da atual realidade de nosso Direito Civil.

Isto porque para compreendermos as tendências apontadas na contemporaneidade, precisamos pesquisar as razões históricas, ideológicas, políticas, econômicas e sociais que as

impulsionaram ao longo dos tempos. Somente assim, será possível questionar o caminho traçado pelo legislador do Código Civil em vigor, que não se coaduna com as necessidades

sociais e jurisdicionais de nosso país.

Por estas razões, iniciaremos nosso trajeto pesquisando as influências do ordenamento jurídico que se instalou em nossas terras com o descobrimento de nosso país. Estudaremos

como ocorreu a transição das Ordenações Filipinas para o Código Civil de 1916, o movimento de codificação e seu contexto histórico.

Logo após, deteremo-nos em pesquisar as características do Código de Bevilácqua, suas influências ideológicas e literárias. Veremos qual a estrutura adotada na sua elaboração e a

forma como ela reflete exatamente o pensamento da sociedade contemporânea à sua formulação. Louvaremos seus méritos.

Passaremos a entender a evolução paradigmática que o Direito Civil brasileiro sofreu no último século e como a complexidade da sociedade superou de forma incontrolável os

dogmas do positivismo e da codificação.

Adentraremos em todos os aspectos da denominada "crise" do Direito Civil. Traçaremos seu conceito, seus contornos e suas razões. Neste capítulo, dedicado à "crise", nos muniremos,

então, dos argumentos para questionarmos a elaboração e a promulgação de um código civil na atualidade.

Após, delinearemos os contornos juscivilísticos da contemporaneidade e concluiremos pela total inadequação do novo diploma legal à sua realidade.

O tema é longo, intrincado e polêmico. Confesso, que, por vezes, o desânimo e a vontade de desistir me tentaram. Mas a angústia que me causa um novo código civil em nossos tempos

que, não bastasse sua total inadequação histórica e ideológica, não contou sequer com a participação discursiva de seus destinatários, me desafiou pela sua conclusão.

Perdoem-me pela brevidade por vezes adotada em alguns tópicos, mas ela foi necessária para se manter o correto alinhamento metodológico e fidelidade ao tema central.

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1) RAÍZES DO DIREITO CIVIL BRASILEIRO

Remontar as origens históricas de nosso Direito Privado é imprescindível para a exata compreensão dos contornos juscivilísticos da contemporaneidade. Na fala de Luiz Edson

Fachin "... busquemos, nas origens, aspectos do legado histórico para o Brasil contemporâneo, principiando pela formulação colonial cuja análise não pode descurar da

herança colonial do Estado brasileiro".(FACHIN, 2003, p.439)

Giordano Bruno Soares Roberto emenda:

Não é possível compreender o momento atual do Direito Privado brasileiro sem olhar para sua história. Para tanto, não será suficiente começar com o desembarque das

caravelas portuguesas em 1500. A história é mais antiga.

O Direito brasileiro é filho do Direito Português que, a seu turno, participa de um contexto mais amplo. (ROBERTO, 2003, p. 5)

Portanto, para esboçarmos um breve histórico da civilística brasileira, nos parece impossível dissociá-lo da história do Direito Português, em um primeiro momento, e do Direito Europeu,

como um todo, em um segundo momento.

Durante toda o período de colonização, o "direito brasileiro" se resumia ao que era posto pelas Ordenações do Reino de Portugal. Em outras palavras, nossos direitos civis não passavam de

simples extensão dos direitos de nossos colonizadores, cuja influência em nosso ordenamento jurídico não pode ser relegada ao desentendimento.

1.1) Evolução histórica: Das Ordenações Filipinas ao Código Civil de 1916

Antes de iniciarmos este tópico, é necessário consignar que a fase do Brasil colônia é marcada por um certo obscurantismo, sendo difícil pesquisar o delineamento do ordenamento jurídico que aqui se instalou naqueles tempos, sendo pouquíssimos os autores que cuidam do

tema.

As Ordenações Filipinas eram uma compilação jurídica marcada pelas influências do Direito Romano, Canônico e Germânico, que juntos constituíam os elementos fundantes do Direito

Português. E como não poderia deixar de ser, foram forjadas em tom patriarcalista e patrimonialista.

A fase do Brasil-Colônia caracteriza-se pela aplicação das Ordenações Filipinas, legislação Portuguesa que já era, no dizer de Coelho da Rocha, "atrasada,

retrógrada", mantendo em vigor, na época moderna, regras do século XV. Trazidas para o Brasil, consolidou-se aqui esse atraso.(AMARAL, 2003, p. 126)

Foram compiladas durante os reinados de Filipe I e Filipe II e publicadas no ano de 1603. Vigeram desde o início do século XVII até a proclamação da independência brasileira em

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1822. Regeram o ordenamento jurídico privado no Brasil por mais de 300 anos, portanto. Foi quando, finalmente, o Direito privado brasileiro teve que se emancipar e trilhar rumo próprio.

Portugal foi um dos países europeus que mais demorou a ceder às influências do Iluminismo, movimento iniciado por volta do século XVIII e que significou verdadeira renovação do direito, pois pregava a luta da razão contra o autoritarismo e visava abolir velhas tradições jurídicas e

o império do Direito Natural.

O primeiro Código Civil português foi promulgado em 1867. Foi o fim das Ordenações Filipinas como regramento da civilística no "além mar". No Brasil, a codificação levou mais tempo para

se implementar e corporificar. As Ordenações vigeram, ainda, por algum tempo.

Havia muitas barreiras que deveriam ser ainda ultrapassadas. O atraso originado do fato de nosso país continuar ser regido pelas Ordenações, o inchaço legislativo causado pela

infinidade de leis e outras formas normativas que foram editadas para complementá-las e a busca por identidade jurídica que atendesse às necessidades dos jurisdicionados brasileiros

eram algumas delas.

Neste contexto, o primeiro Código Civil brasileiro só vigorou a partir do ano de 1917. Foram noventa e dois anos de processo de elaboração. De autoria do jovem Clóvis Bevilácqua,

renovou o direito brasileiro, dentro de uma filosofia marcada pelo liberalismo político e econômico.

Dentre outras características marcantes, foi saudado pela crítica nacional e internacional por sua clareza e boa técnica. Vinha estruturado da seguinte maneira:

O projeto de Clóvis Bevilácqua compunha-se de uma lei de introdução, uma parte geral dividida em três livros, pessoas, bens, nascimento e extinção de direitos, e uma

parte especial, desdobrada em quatro livros, direito de família, direito das coisas, direito das obrigações e direito das sucessões. Caracterizava-se pela "harmonia entre

a ordem e a liberdade, entre a tradição e o progresso". Adotava a concepção de Ihering em matéria de posse, embora não exclusivamente, e disciplinava o direito de

propriedade sem o absolutismo do direito romano. Apresentava algumas idéias novas, como o reconhecimento de filhos ilegítimos de qualquer espécie, a investigação de paternidade, a insolvência civil, a igualdade jurídica dos cônjuges, idéias essas não-

aceitas pela primeira comissão revisora, que modificou um pouco o sistema originário do autor. (AMARAL, 2003, p. 129)

Vigorou durante quase um século em nosso país. Apesar de todos os seus méritos, não havia nenhuma chance de continuar regendo a complexa vida social da pós-

modernidade. O código começou a ruir desde sua entrada em vigor. A multiplicidade da sociedade hodierna fez com que o valioso diploma de Bevilácqua caísse no

inevitável obsoletismo.

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O ordenamento juscivilístico reclamava reforma, urgentemente. Surge diante de nós - quase que caído dos céus - um novo código. A esperada renovação. Será?

1.2) Movimento de Codificação

O movimento de codificação é fruto do jusracionalismo. Conforme lição de Francisco Amaral, a codicização pode ser resumida nas seguintes palavras:

Em senso estrito, significa o processo de elaboração legislativa que marcou os séculos XVIII e XIX, de acordo com critérios científicos decorrentes dos jusnaturalismo e o

iluminismo, e que produziu os códigos, leis gerais e sistemáticas.

Sua causa imediata é a necessidade de unificar e uniformizar a legislação vigente em determinada matéria, simplificando o direito e facilitando o seu conhecimento, dando-lhe ainda mais certeza e estabilidade. Eventualmente, constitui-se em instrumento de reforma de sociedade como reflexo da evolução social. Seu fundamento filosófico ou ideológico é o jusracionalismo, que vê nos códigos o instrumento de planejamento global da sociedade pela reordenação sistemática e inovadora da matéria jurídica,

pelo que se afirma que os "os códigos jusnaturalistas foram atos de transformações revolucionárias". (AMARAL, 2003, p. 122 e 123)

1.2.1) Breve histórico

A tendência à codificação encontra seu primeiro indício no Direito Romano, sobretudo no Corpus Iuris Civile, que apesar de não se tratar de um típico texto codificado, constitui-se em importante síntese jurídica compilada pelo Imperador Justiniano e um dos mais importantes

legados do Direito Romano.

O movimento de codificação propriamente dito tem seu lugar a partir da Idade média, através da gradativa substituição da autoridade papal e do imperador pela soberania dos Estados

Nacionais. Foi sustentado por correntes sociais e impulsionado por alguns fatores estratégicos, de cunho político, econômico e intelectual.

Entendamos por fator político o fato de os soberanos enxergarem na promulgação de seus códigos nacionais um componente essencial para a implementação de políticas de unificação

de seus Estados, que passavam a assumir a missão de garantir o bem estar de seus cidadãos.

O fator econômico, a seu turno, revelava os códigos nacionais como resposta adequada às reivindicações por liberdade e responsabilidade da burguesia, uma classe média que emergia e lutava pela abolição das barreiras discriminatórias do feudalismo. Ademais, com o passar do tempo, o direito codificado provou ser excelente instrumento para suprir as necessidades da

economia capitalista de classe média do século XIX.

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Por fim, devemos analisar a influência do fator intelectual que se resumia à rejeição de velhos dogmas e tradições religiosas, no intuito de colocar o homem e seu bem estar no centro da

filosofia iluminista. Novas concepções surgiram e a idéia de que o homem era um ser criado a imagem de Deus e colocado acima da natureza não se coadunava com as balizas do novo

discurso científico.

Os primeiros códigos foram fruto do chamado Despotismo Esclarecido, a exemplo do Código da Prússia, em 1794, considerado o primeiro código moderno, e o Código da Áustria, em

1786.

Contudo, o divisor de águas da era da codificação foi o Código Civil Francês, fruto do trabalho - encomendado por Napoleão Bonaparte - de uma comissão de quatro juristas, Tronchet,

Bigot du Prémameneu, Portalis e Malevile.

O Code Civil recebeu elogios por sua linguagem clara e precisa; seu conteúdo foi aplaudido devido à sua moderação, equilíbrio e praticidade. O tom era individualista e patrimonialista: o

principal escopo era tutelar e proteger os direitos dos proprietários.

O diploma francês rompeu fronteiras. Foi modelo para a feitura de códigos nacionais por toda a Europa e sua influência somente foi mitigada com o surgimento do Código alemão (BGB - Burgeliches Gesetzbuch), em fins do século XIX, apesar da enorme resistência teórica de

alguns de seus juristas, ilustrada pelo histórico embate entre Thibaut e Savigny.

Nosso país trilhou esse mesmo caminho, e sob todas essas influências, promulgou o primeiro Código Civil no ano de 1916, tendo como principal idealizador Clóvis Bevilácqua, que ninguém ousa negar que constitui uma grande obra, de conteúdo extraordinário, de primeira qualidade.

1.2.2) Pano de fundo da Codificação

Sempre houve dúvidas nos sistemas jurídicos modernos em relação à necessidade ou não de codificar o Direito Privado. Como dito acima, tal questionamento remonta à polêmica suscitada

acima entre Savigny e Thibaut (1).

Não há que se olvidar que a codificação traz inúmeras vantagens, como a de facilitar a visualização dos institutos jurídicos. Mas também traz desvantagens, já que muitas vezes,

estático que é, o código não consegue acompanhar as alterações pelas quais passa a sociedade e nem prever a multiplicidade de relações que dela podem emergir.

Contudo, como mencionado, existem razões históricas, políticas e econômicas que apontaram a codificação como a melhor alternativa para assegurar a soberania dos Estados Nacionais e

o bem estar de seus cidadãos, justificando o movimento e sua respectiva prevalência nos últimos séculos.

O Iluminismo pode ser considerado um marco na história do Direito e por conseqüência, da codificação. Colocou em xeque a estrutura e os dogmas do ancién regime.

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Combateu, primordialmente, a desigualdade dos homens perante a lei e as limitações às pessoas e à propriedade. Nas palavras de Caenegem "´liberdade´ e ´igualdade´ eram,

portanto, exigências essenciais tanto nos programas políticos dos déspotas esclarecidos quanto na Revolução Francesa" (CAENEGEM, 1999, p. 162).

O movimento das Luzes criticou, ainda, o absolutismo, a exclusão popular, a autoridade da Igreja e suas ligações com o Estado. Em resumo, significou:

O velho mundo passou por uma renovação radical, guiada pelos princípios da razão humana e pelo objetivo de alcançar a felicidade do homem. A realização desse

objetivo parecia requerer agora que o fardo dos séculos precedentes fosse rejeitado. Aplicado ao direito, esse programa significava que a proliferação de normas jurídicas deveria ser drasticamente reduzida, que o desenvolvimento gradual do direito deveria ser substituído por um plano de reforma e por uma abordagem sistemática, e, por fim, que não se deveria emprestar autoridade absoluta nem aos valores tradicionais, como direito romano, nem aos juristas e juízes eruditos, que se proclamavam "oráculos" do

direito.

Os velhos costumes e os livros autorizados deveriam ser substituídos por um novo direito livremente concebido pelo homem moderno, cujo único princípio diretor fosse a razão. Esse novo direito deveria ser isento de qualquer obscurantismo. Ele constituiria

um sistema claro e aberto, compreensível para o povo, pois, de agora em diante, o direito deveria estará serviço do povo. (CAENEGEM, 1999, p.163)

Tudo isso apontava a busca por um ordenamento jurídico marcado pela sistematização, pela unicidade e coerência, que assegurasse, acima de tudo o desenvolvimento racional da

sociedade. De acordo com Francisco Amaral:

Ao Iluminismo ligava-se diretamente o racionalismo, a doutrina segundo a qual a única fonte do conhecimento seria a razão. No campo jurídico, o racionalismo embasava a

doutrina do direito natural, rectius, do jusracionalismo, que defendia a racionalização e a sistematização do direito, isto é, a reunião dos princípios e regras num corpo unitário

e coerente, o sistema jurídico. A razão iluminista preconizava, assim, a idéia de sistema no direito, do que resultaram os códigos e as constituições do séc. XVIII e XIX. Diz-se, por isso, que a ligação do iluminismo com o jusracionalismo produziu a

primeira onda de codificação moderna os códigos são a representação da sistematicidade do direito e levam ao desenvolvimento do pensamento sistemático na

realização do direito. (AMARAL, 2003, p. 68)

Perseguia-se, sobretudo, segurança jurídica. A criação de um novo sistema jurídico baseado em um único corpo normativo despontava como a solução almejada, pois na "codificação,

idéias e ideais repousam, estabilizam e conservam. Um código fotografa valores e os preserva". (FACHIN, 2000, p. 199)

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Os códigos representariam uma ruptura da velha ordem, através do estabelecimento racional de uma nova. Seriam esperança de segurança jurídica, efetivada através de uma seqüência ordenada e sistematizada de artigos, que tratassem de forma igualitária todos os cidadãos.

Além disso, pareciam revelar um sistema jurídico auto-suficiente, onde outros corpos normativos não seriam mais necessários.

Nas célebres palavras de Giselda Hironaka:

Desta era – da era da racionalização da vida jurídica – resultou, como conseqüência imediata, a concepção do direito como um sistema. E, como tal, o processo de

codificação se tornou imperioso, visando unificar e uniformizar a legislação vigente, emprestando-lhe um sistema, uma ordem, uma carga didática, uma possibilidade

melhor, ou maior, de compreensão destas próprias regras e de comparação destas com outros povos.

Esta foi a importante fase de organização codicista, que atendeu às necessidades e reclamos de uma época que visava superar a insegurança. E apresentou suas vantagens, entre elas – uma que desejo citar – a de traduzir-se, o código, em

instrumental de garantia das liberdades civis. (HIRONAKA, 2003, p. 97)

Outro fator relevante que estimulou a codificação foi a garantia de separação entre a sociedade civil e o Estado. Os cidadãos procuravam proteção para os abusos causados pelas

interferências estatais em sua esfera privada.

A dogmática iluminista estabeleceu a dicotomia entre Direito Privado e Direito Público. Ao Direito Público caberia promover a proteção do cidadão em face do Estado, através de

mecanismos definidos na lei. Por sua vez, o âmbito do direito privado, seria aquele onde a autonomia da vontade reinaria absoluta, sem interferências. A pretensão dos códigos civis era

atuar neste segundo segmento, ordenando as condutas jurídico-privadas dos cidadãos, tornando-se o centro desse regramento.

Assim, dentro dessa visão segmentada do Direito, fazia todo sentido apontar o Código Civil como centro do ordenamento do direito privado, restando à Constituição a função de carta

política regulamentadora do Estado; suas normas eram exclusivamente dirigidas ao legislador.

1.3) Características do Código Civil de 1916

Uma vez proclamada a independência do Brasil, uma lei editada em outubro de 1823 determinou a manutenção das Ordenações Filipinas em nossas terras, bem como demais

formas normativas emanadas dos imperadores portugueses que vigoravam até a data de 26 de abril de 1821.

A Constituição do Império de 1824 estabeleceu que fossem organizados um código civil e também um criminal, em caráter de urgência. Pois bem. Nosso diploma civil passou por uma

série de fases e demorou quase um século para ser elaborado, aprovado e promulgado.

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Informação de extrema relevância, pois nos força a analisar o fato de que nosso Código fora confeccionado em um tempo – e para esse tempo - e acabou por regrar um momento

histórico, político, econômico e social completamente distinto, fundado em princípios quase que opostos aos de sua feitura.

Ou seja, o Código Civil foi elaborado ainda, dentro da dogmática que apartava o Direito Público do Direito Privado, envolto pelos ideais de liberalismo e individualismo.

Quando foi promulgado, essa realidade já estava em crise, tendo em vista a enorme quantidade de demandas sociais que exigiam a intervenção estatal. O voluntarismo puro não

mais se enquadrava no cenário que ora se apresentava.

A esse respeito, o Prof. César Fiúza ilustra: "O Código Civil foi elaborado sob a inspiração do Estado Liberal burguês, do século XIX. Não se adequava, evidentemente, às aspirações do emergente Estado social, instalado no Brasil já no início do século XX". (FIÚZA, 2003, p. 30)

Francisco Amaral também retrata com muita clareza:

O Código Civil de 1916 era um código de sua época, elaborado a partir da realizada típica de uma sociedade colonial, traduzindo uma visão do mundo condicionado pela

circunstância histórica, física e étnica em que se revela. Sendo a cristalização axiológica das idéias dominantes, detentores do poder político e social da época, por

sua vez determinadas, ou condicionadas, pelos fatores econômicos, políticos e sociais.(AMARAL, 2003, p. 131)

Pois bem. A despeito da inadequação temporal, adentremos ao conteúdo e ideologia do diploma. O Código Bevilácqua foi fruto das influências da Escola da Exegese (2) . Era

inspirado nos ideais de completude e unicidade, com vistas a promover segurança social e jurídica.

Além disso, foi instituído como norma exclusiva das relações privadas. Desta forma, corroborou a tese Iluminista que estabeleceu marcada dicotomia entre as esferas do Direito

Público e do Direito Privado.

Tutelava o sujeito, enquanto proprietário, pois era fundado em teorias individualistas e voluntaristas. Dava enorme liberdade ao princípio da autonomia da vontade, facilitando a

transferência e o acúmulo de riquezas. Prof. Gustavo Tepedino resume:

O código civil, como se sabe, quando entrou em vigor, em 1917, refletia o pensamento dominante das elites européias do século XIX, consubstanciado no individualismo e no liberalismo jurídicos. O indivíduo, considerado sujeito de direito por sua capacidade de ser titular de relações patrimoniais, deveria ter plena liberdade para a apropriação, de tal sorte que o direito civil se estruturava a partir de dois grandes alicerces, o contrato

e a propriedade, instrumentos que asseguravam o tráfego jurídico com vistas à aquisição e à manutenção do patrimônio. (TEPEDINO, 2003, p.116)

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E independentemente da inadequação do código ao seu tempo, às reivindicações de seus destinatários ou de sua ideologia, o Código Civil brasileiro de 1916 teve seus méritos.

Importante característica foi sua originalidade ou nacionalidade. Seu mentor soube aproveitar as contribuições das ciências jurídicas de outros povos. Adaptou o que se enquadrava em

nossa realidade; rejeitou o que não nos servia, criando algo, por muitas vezes, genuinamente brasileiro.

Destacou-se, ainda, por sua forma literária, por sua pureza de linguagem. Brilhou por apresentar uma correção de conceitos ímpar. Giordano Bruno S. Roberto assinala:

Sua forma literária também merece elogios. As correções feitas a partir das críticas de Rui certamente contribuíram para a pureza da linguagem. Para Pontes de Miranda,

"poucos artistas da palavra, em Portugal e no Brasil, poderiam comparar qualquer de suas obras ao Código".

Outra característica do Código é a sua preocupação com a correção da linguagem e dos conceitos do que com as possibilidades de aplicação prática dos preceitos.

(ROBERTO, 2003, p. 72)

1.3.1) O trinômio fundamental: estrutura do Código

O Código de 1916 fora estruturado em um trinômio fundamental que se resume aos elementos propriedade, autonomia da vontade e família. Revelava, como consignado, a

ideologia liberalista representativa dos interesses da classe burguesa mercantil.

De irretocável síntese do Prof. César Fiúza, extraímos preciosa lição:

As instituições de Direito Civil foram tradicionalmente aprisionadas em quatro grandes ramos, quais sejam, o Direito das Obrigações, o Direito das Coisas, o Direito de Família e o Direito das Sucessões. Assim está disposta a matéria das grandes codificações dos séculos XIX e XX, assim é ensinada nos cursos de Direito. Na

verdade, procedendo a um corte epistemológico, descobre-se que o sustentáculo desses quatro grandes ramos é, tradicionalmente, a autonomia da vontade, a

propriedade e a família. (FIÚZA, 2003, p. 24)

O diploma possuía inspiração estritamente individualista e garantia, por conseqüência, o direito de propriedade e de liberdade contratual, como frutos do liberalismo econômico

dominante. "O Código Civil brasileiro, em suma, é o espelho fiel do patrimônio como valor nuclear privado tradicional. O patrimônio é, nele, uma esfera composta de coisas suscetíveis

de apropriação e trânsito jurídico."(FACHIN, 2001, p. 69)

Até mesmo o mais pessoal dos direitos civis, o da família, era marcado pelo predomínio do patrimônio.

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O Código Bevilácqua apresentava um Direito de Família que se assentava em um arcabouço patriarcalista e hierarquizado. Era fruto inevitável da sociedade onde se originou, marcada

pela monogamia, que nada mais era do que forma de preservar o patrimônio construído: "A preocupação da sociedade do início do século passado era estritamente de caráter

patrimonial, e o casamento foi a maneira encontrada para garantir a transmissão de bens a quem é ‘sangue do meu sangue’". (DIAS, 2004, p.16)

Tanto o afeto quanto o amor não eram elementos preponderantes para a caracterização de uma família; aquele não era visto como valor jurídico. Nossa doutrina jurídica herdou a

estrutura familiar do Direito Romano "como unidade jurídica, econômica e religiosa, fundada na autoridade de um chefe, tendo essa estrutura perdurado até os nossos tempos".

(PEREIRA, 2004, p. 640)

A família do Código Bevilácqua era, assim, uma comunidade instaurada pelo matrimônio – seu componente essencial - e unida por laços de sangue. Por esta razão, a lei facilitava o

acesso ao casamento.

Bem, apesar da indiscutível importância desse trinômio na base de nossa civilística, um olhar mais profundo na sistemática adotada pelo diploma nos revela que a propriedade sempre fora

a verdadeira pedra angular, sobre a qual o ordenamento jurídico se apoiou.

O patrimônio era a dimensão econômica da personalidade; garantia de proteção e preservação do indivíduo frente ao Estado; o sujeito somente existia na medida que possuía e

se possuía; era protegido enquanto proprietário, contratante, marido ou herdeiro. Nesta esteira, Taísa Maria Macena de Lima acentua:

O antigo Código Civil brasileiro – influenciado pela doutrinas voluntaristas – dava ênfase ao indivíduo, porém nos papéis de proprietário e contratante. Noutros termos, o

legislador de 1916 ocupou-se mais das relações jurídicas patrimoniais que das relações jurídicas existenciais, dando relevo ao direito de propriedade. (LIMA, 2003,

p.250)

Portanto, os valores existenciais foram relegados a segundo plano pelo Código Civil de 1916. Só começaram a assumir merecida posição de destaque com o advento da Constituição

Federal de 1988 e a instauração do Estado Democrático de Direito, que erigiu a dignidade da pessoa humana como princípio fundamental da República, momento em que os institutos jurídicos passaram a ser funcionalizados para a promoção do desenvolvimento pleno do

homem, como estudaremos adiante.

Prof. Cézar Fiúza nos adianta o tema, em mais de uma de suas brilhantes sínteses:

Vive-se hoje no Brasil os alvores do Estado Democrático de Direito. Este é o momento da conscientização desse novo paradigma. Só agora assumem a devida importância

os princípios e os valores constitucionais por que se deve pautar todo o sistema jurídico. Constitucionalização ou publicização do Direito Civil entram na temática do

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dia. O Código Civil não seria mais o centro do ordenamento civil. Seu lugar ocupa a Constituição, seus princípios e valores. Diz-se que os pilares de sustentação do Direito

Civil, família, propriedade e autonomia da vontade, deixaram de sê-lo. O único pilar que sustenta toda a estrutura é o ser humano, a dignidade da pessoa, sua promoção espiritual, social e econômico. Este pilar sta, por sua vez, enraizado na Constituição.

Tudo isso, não há dúvidas, dá o que pensar. (FIUZA, 2003, p. 29)

1.3.2) Influência positivista: a busca por segurança jurídica

Um dos principais objetivos do Direito sempre foi promover segurança jurídica, que, de forma genérica, significa paz e estabilidade; certeza na realização do Direito. Dentro da visão

moderna, era, acima de tudo, a busca do cidadão por proteção em relação aos abusos do Poder Público em sua esfera privada.

Procuraremos entender, agora, qual a origem de sua relação com o positivismo jurídico e suas influências no Código Civil de 1916. Partiremos das palavras de Francisco Amaral:

A segurança jurídica, significando a estabilidade nas relações e a garantia de sua permanência, justifica o formalismo no direito e encontra no positivismo o seu principal fundamento teórico. Apresenta-se tanto como uma segurança de orientação, que se refere ao conhecimento que os destinatários têm das respectivas normas de direito,

como também uma segurança de realização, ou confiança na ordem, que é a certeza do exercício dos direitos e do cumprimento dos deveres. Significa, portanto a possibilidade de cada um compreender o que é e o que não é lícito, podendo,

conseqüentemente, regular seus atos e seu comportamento. Constitui-se, por isso, no mais antigo valor, na premissa de todas as civilizações. (AMARAL, 2003, p. 118-19)

Desenvolvido nos séculos XIX e XX, o positivismo jurídico - exprimido pelo pensamento da Escola da Exegese - procurava interpretar o direito como um sistema fechado, exaustivo e

casuístico, a ponto de ser capaz de prever e regular todas as relações sociais que, por ventura, emergissem. A esse respeito, leciona Marcelo Galuppo:

...[ ] a Escola da Exegese pressupõe uma onisciência que lhe permite, por meio da construção de um sistema, presente explicitamente no próprio código, regular todas as

ações humanas possíveis, também de forma racional. E, em caso de omissão de norma explícita, por ser um sistema, o Código permitiria aplicação de uma lógica

dedutiva por intermédio da qual se extraísse, de outras normas, a norma adequada ao caso concreto. (GALUPPO, 2003, p. 171-172)

Assim, esse pensamento sistemático, onde o Direito é concebido como conjunto de normas jurídicas racionalmente elaborado, marcado pela unidade, plenitude, coordenação e

subordinação de seus elementos, encerraria em si todas as soluções para os problemas surgidos na vida social. Na fala de César Fiúza:

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A idéia dominante no positivismo jurídico, que imperou no Brasil até a década de 1970/1980, era a de ser possível uma legislação a tal ponto exaustiva e completa que enclausurasse o sistema, colocando-o a salvo de qualquer arroubo criativo que não

tivesse origem no próprio Poder Legislativo. (FIUZA, 2003, p. 29-30)

A ideologia fundante do positivismo foi acirrada no Normativismo de Hans Kelsen, para quem o Direito se resumiria àquele colocado pelo Estado. A legitimidade dessas normas seria

sempre uma outra, hierarquicamente antecedente, de maneira sucessiva, até se alcançar a Norma Fundamental, que confere legitimidade a todo o ordenamento jurídico.

Portanto, fica fácil vislumbrar como o Direito, concebido sob a visão do positivismo jurídico, seria capaz de promover a tão perseguida segurança jurídica: através da exaustão e da

previsibilidade. Os parâmetros para toda a esfera privada já estariam previamente traçados.

Tendo em vista a completude da norma, ao intérprete era atribuída tão somente a função de revelar seu conteúdo. Sua atividade hermenêutica era esvaziada, evitando soluções no caso

concreto que não estivessem cabalmente enquadradas na letra da lei. Jurisprudência e doutrina não eram fontes válidas de Direito. Francisco Amaral resume:

Em primeiro lugar a segurança, valor fundamental dos códigos civis do século passado, que consagrando a separação entre a sociedade civil e o Estado, visavam proteger a liberdade do indivíduo na sua vida particular contra a ingerência do poder público. Desse valor nasceu a pretensão de estabilidade dos Códigos, considerados

como capazes de abarcar em todo seu sistema a multiplicidade das relações jurídicas privadas. (AMARAL, 2003, p. 151)

A justiça era consectário lógico da aplicação da lei, feita através de procedimento quase que mecânico, de subsunção da norma ao caso concreto.

Contudo, existe uma realidade histórica por trás de toda essa ideologia, que sempre procurava se atracar em portos seguros, erigindo a segurança jurídica como prioridade

absoluta. Giselda Hironaka a explicita muito bem:

Os paradigmas fundamentais que erigiram a modernidade foram paradigmas que precisaram se impor, primeiro, à face do absolutismo que marcou a finalização do

período medievo e, depois, paradigmas que precisaram superar os horrores de uma Primeira Grande Guerra. Tempos de alterações profundas e de busca de uma

superação de injustiças e desigualdades enormes, esses tempos foram aqueles em que a prioridade era a conquista da segurança jurídica, da preservação dos direitos,

do estabelecimento das igualdades e da consideração máxima ao indivíduo.

Por tudo isso e por isso mesmo, os paradigmas deste tempo pretérito oram os paradigmas da lei e da jurisdição, a significar que a segurança pretendida e ansiada devesse resultar de uma construção normativa que fosse suficientemente abstrata

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para ser universal, e que fosse suficientemente clara para ser abrangente de todas as hipóteses realizáveis. (HIRONAKA, 2004)

O Código Civil de 1916 foi elaborado no século XIX e promulgado no século XX. É indiscutivelmente filho do positivismo jurídico, tendo se assentado, portanto, na busca por

segurança jurídica, que fora priorizada em relação à realização da justiça.

Neste aspecto, ouso fazer humilde consideração para afirmar que, talvez, a justiça não tenha sido simplesmente relegada a segundo plano. A concepção de justiça é que era diferenciada.

Isto porque, dentro da ótica positivista, a aplicação da lei gerava , infalivelmente, decisões justas. Assim, garantir a segurança jurídica seria, indiretamente, de alguma forma, promover

justiça.

Acontece, que, apesar da incessante busca por um sistema fechado, capaz de promover segurança jurídica, através do estabelecimento de ideais liberalistas e positivistas, a verdade é que esta estrutura não conseguiria se manter e não se sustentaria com o passar do tempo e

diante da complexidade social. O sistema começou a ruir assim que foi instaurado. César Fiúza consigna brilhantemente:

Se observamos o comportamento dos tribunais, através dos tempos, chegaremos à conclusão de que o sistema sempre foi aberto. O tratamento sempre foi casuístico. A interpretação sempre foi argumentativa. O medo da arbitrariedade de um judiciário sem freios e sem preparo técnico é que levou os juristas, em vão à tarefa de tentar

fechar o sistema. Mesmo na época da Escola da Exegese, os Tribunais franceses não se fecharam às inovações hermenêuticas, baseadas em pura argumentação jurídica.

(FIUZA, 2003, p. 35)

Assim, a "crise" do Direito Civil, que estudaremos no capítulo a seguir, vem ocorrendo há séculos. Na atualidade, perante os novos paradigmas que surgiram, sobretudo, com o

advento do Estado Democrático de Direito, ela atinge seu ápice e nos força a questionar a dogmática que colecionamos com o tempo. Prof. César Fiúza acrescenta, concluindo nosso

pensamento:

O temor da arbitrariedade judicial é absolutamente absurdo, em nossos dias, dados os mecanismos de segurança do próprio sistema jurídico. São limites impostos pela

dogmática, pela Constituição, pelos valores e princípios vigentes, como o duplo grau de jurisdição. Ademais, a argumentação deve ser racional e jurídica. Isso significa que

o intérprete partirá do sistema, adequando a norma ao caso concreto, co base em valores e princípios constitucionalmente aceitos, para que a justiça prevaleça no caso

concreto. (FIUZA, 2003, p. 35)

2) "CRISE" DO DIREITO CIVIL

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O Direito é fenômeno histórico e social. É mutante por natureza, pois reflete o ideário e as aspirações de um povo em um determinado espaço de tempo. A inércia, portanto, não deve

integrar seu conceito.

A constatação da existência de crise no Direito Civil moderno é inequívoca. Sua dogmática envelheceu; foi sucateada por nossa sociedade mutante. Mas, em primeiro lugar,

imprescindível que pontuemos o conceito desde fenômeno.

Claro que, de forma alguma, significa seu fim, pois não há como negar que a juscivilística constitui o substrato do ordenamento jurídico de toda e qualquer sociedade. "É

verdadeiramente a espinha dorsal de toda a ciência jurídica, como se tem dito e registrado ao longo dos tempos, desde a origem romana do Direito Civil". (HIRONAKA, 2003, p.94)

O termo deve ser compreendido simplesmente como superação de paradigmas (3), que se revela na inadequação dos institutos jurídicos do Direito moderno aos nossos tempos, assim

como nos ensina Fachin:

Embora não seja unívoco, o termo paradigma vem aqui colacionado para simbolizar ruptura e transformação. É possível que não se tenha uma percepção exata do

desenho desse novo fenômeno, mas, por certo, tais reflexões revelaram que aquela arquitetura anterior está corroída em pontos fundamentais. Esses pontos escolhidos

não arbitrariamente, embora intencionalmente, foram o contrato, o patrimônio e a família. Centrada nesses vértices, a moldura do Direito Civil Clássico se revelou

superada, embora seus novos contornos ainda não estejam definidos. (FACHIN, 2000, p. 222)

Dentro desta concepção, portanto, devemos analisar separadamente quais os paradigmas que estão sendo superados e quais estão sendo instaurados, em substituição. Para tanto,

tomaremos emprestada a metodologia do Prof. César Fiúza que divide o fenômeno em "crise" das instituições do Direito Civil, "crise" da sistematização e "crise" da interpretação:

A crise do Direito Civil pode ser analisada sob diversos aspectos. Em primeiro lugar, a crise das instituições do Direito Civil, basicamente de seus três pilares tradicionais: a

autonomia da vontade, a propriedade e a família. Em segundo lugar, a crise da sistematização. Em terceiro lugar, a crise da interpretação.(FIUZA, 2003, p. 24)

2.1) Crise das Instituições do Direito Civil. O paradigma do Estado Democrático de Direito

A ideologia fundante do liberalismo - assim como o estado de coisas por ele definido no campo jurídico - se mantém intacta até fins do século XIX e início do século XX, quando surge,

então, o denominado Estado Social em substituição ao Estado Liberal.

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Através de um gradativo intervencionismo estatal na esfera privada – processo que se iniciou com o advento da 1ª Grande Guerra - o contrato e a propriedade sofreram impactos em sua

estrutura e, assim, o sustentáculo fundamental do liberalismo sofre seu primeiro abalo.

A Revolução Industrial, oriunda da ideologia liberal, iniciada no século XVIII, gerou como subprodutos a massificação das relações e a concentração urbana. Tais fenômenos têm reflexos diretos na principiologia contratual e colocam em xeque a autonomia da vontade.

César Fiúza explica:

Como se pode concluir a mesma Revolução Industrial que gerou a principiologia clássica, que aprisionou o fenômeno contratual nas fronteiras da vontade, esta mesma

Revolução trouxe a massificação, a concentração e, como conseqüência, as novas formas de contratar, o que gerou, junto com o surgimento do estado social, também

subproduto da Revolução Industrial, uma checagem integral na principiologia do Direito dos Contratos. Estes passam a ser encarados não mais sob o prisma do

liberalismo, como fenômenos da vontade, mas antes como fenômenos econômico-sociais, oriundos das mais diversas necessidades humanas. A vontade que era fonte,

passou a ser veio condutor. (FIUZA, 2003, p. 27)

A Revolução também afeta o Direito de Família; ela conduziu "a mulher para o mercado de trabalho, retira o homem do campo, proletariza as cidades, reduz o espaço de coabitação

familiar, muda o perfil da família-padrão".(FIUZA, 2003, p.28-29)

O Estado intervencionista modifica as funções do Direito Civil e a moldura individualista começa a não se enquadrar em uma sociedade que passa a exigir a permanente integração

do homem. O Direito Privado se apropria de instrumentos tradicionalmente de Direito Público. As normas constitucionais passam a ter aplicação direta nas relações jurídicas privadas.

A partir da promulgação da Constituição Federal de 1988 e da instauração de um Estado Democrático de Direito em nosso país, completou-se o ciclo de transformações sofridas no

ordenamento jurídico, que adquiriu novas feições durante todo o último século.

O Direito Civil adquiriu novos contornos e seus institutos basilares foram repaginados. E mais importante: deixaram de ser basilares. A base passou a ser o homem e sua dignidade. Todo o resto deve estar funcionalizado para promoção do desenvolvimento do ser humano em todos

os seus aspectos.

A propriedade, que nos últimos séculos, possuía um caráter de absoluteidade incontestável é relativizada e recebe conteúdo de função: "... passa a ser situação jurídica consistente na relação entre o titular e a coletividade (não-titulares) da qual nascem para aquele diretos (usar, fruir, dispor e reivindicar) e deveres (baseados na função social da propriedade)."

(FIUZA, 2003, p. 28)

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O dogma da autonomia da vontade é superado nas relações contratuais, colocando-se de lado o princípio liberal de igualdade formal para permitir a intervenção estatal regulando

desequilíbrios e disparidades.

A família. Esta se multiplicou; pluralizou. É encarada "como direito vivido, e não mais como direito imposto e imaginário" (FACHIN, 2000, p. 314). Não é mais apenas matrimonializada; é

também informal.

Ela é "repersonalizada". Ao Estado não mais interessa tutelar simplesmente os interesses de um grupo organizado como esteio da sociedade; procura-se proteger a família como ambiente

ideal para o surgimento de condições que permitam o pleno desenvolvimento da pessoa humana.

Desta forma, surge a "família-instrumento", funcionalizada ao desenvolvimento de seus membros, onde o afeto é erigido a valor jurídico e os laços biológicos e patrimoniais assumem

aspectos secundários.

O Direito de Família é regido por novos princípios: princípio da dignidade da pessoa humana, da solidariedade, da afetividade, do melhor interesse do menor e da paternidade – ou

parentalidade, melhor dizendo – responsável.

Além disso, é marcada pela igualdade dos gêneros e dos filhos e pela pluralidade de entidades familiares: casamento, união estável, família monoparental, e tantas outras que possam vir a surgir na complexidade da atualidade em que vivemos e que merecem igual

proteção.

2.2) Crise da Sistematização. Fragmentação em microssistemas.

Como já estudamos, a codificação foi um movimento que representou ideais políticos, econômicos e históricos da sociedade moderna. Assim, dentro dessa ideologia, durante a

vigência do Estado Liberal, o Código Civil era o núcleo do Direito Privado.

Contudo, uma vez estabelecidos os Estados Nacionais, a dicotomia entre Direito Público e Direito Privado, a prevalência dos ideais econômicos liberais e a conseqüente superação de

todos esses modelos, os códigos começaram a se tornar obsoletos.

Isto porque estático que é, o Código Civil não consegue acompanhar as alterações pelas quais passa a sociedade. Isso faz com que, ao lado da codificação privada, ocorra uma explosão legislativa, com o objetivo de suprir eventuais deficiências que emergem com o

próprio surgimento da codificação.

A história nos demonstra a falibilidade do sistema codificado do Positivismo Jurídico, pois a sociedade humana é dinâmica, mutante, e força o Direito a acompanhar suas transformações.

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A dinâmica é o movimento que gera sua própria vida e busca contemplar eventual transformação. Tal circunstância se dá quando a regra não cobre mais com sua

juridicidade positivada todas as circunstâncias. Cogita-se, então, de relações contratuais de fato, para mostrar exatamente que há determinadas relações das quais

emergem efeitos jurídicos e que não correspondem a um dado paradigma que foi tipificado ou codificado ao final desse processo de refinamento que a codificação

opera. Esses espaços de "não-direito" geram fatos que, em certos casos, acabam se impondo ao jurídico, o que gera um a transformação naquilo que foi refinado pela

ordem jurídica. Desta certa mudança sem ruptura vem a nova ordem, e o ciclo produtivo das passagens se mantém. Lacunas convertem-se em regras. (FACHIN,

2000, p. 268)

O Código Civil de 1916 teve sua ideologia fundante - completude, centralidade e unicidade - abalada com poucos anos de vigência. Já nas décadas de 20 e 30, começaram a surgir leis extravagantes, frutos do crescente intervencionismo econômico e do dirigismo contratual do

Estado, no intuito de disciplinar matérias não dispostas no corpo codificado.

Disciplinas que, longe de estarem revestidas de qualquer caráter emergencial, tratavam simplesmente de matérias não previstas pelo legislador codificador. Uma legislação

extravagante que regulava novos institutos – surgidos com a evolução da sociedade – e que possuíam alto grau de especialização, formando, paralelamente ao Código, um direito

especial.

Com o tempo, essa legislação extravagante passou a ser conhecida como legislação especial e representou profunda alteração na dogmática do Código Civil.

Este movimento forçou, então, a abertura do sistema. Surgiram outros sistemas, menores e específicos, que, por sua vez, se tornaram o centro para cada um daqueles setores que

passaram a regulamentar de forma interdisciplinar, pois traziam não só normas de direito civil, mas de direito penal, administrativo, etc. Paulo Lôbo nos ensina que:

Proliferaram na década de setenta deste século, e daí em diante, as legislações sobre relações originariamente civis caracterizadas pela multidisciplinaridade, rompendo a peculiar concentração legal de matérias comuns e de mesma natureza dos códigos. Nelas, ocorre o oposto: a conjunção de vários ramos do direito, no mesmo diploma legal, para disciplinar matéria específica, não se podendo integrar a determinado

código monotemático. Utilizam-se instrumentos legais mais dinâmicos, mais leves e menos cristalizados que os códigos – embora, às vezes, sejam denominados

"códigos", em homenagem à tradição, a exemplo do código do consumidor dotados de natureza multidisciplinar. (LÔBO, 2003, p. 204)

Assim, gradativamente, o Direito Civil deixa de ser baseado só em uma lei codificada, mas em muitas outras leis específicas que se aplicam a diversos setores da ordem privada.

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Ao redor do código surgem microssistemas, cujo surgimento "se verifica em razão de instalação de nova ordem protetiva sobre determinado assunto, com princípios próprios,

doutrina e jurisprudências próprias, autônomos ao Direito Comum." (SÁ, 2003, p.189)

Além disso, concomitantemente à expansão da legislação especial, os textos constitucionais passam, progressivamente, a definir princípios relacionados a temas de Direito Privado,

dantes exclusivamente reservados ao Código Civil: "função social da propriedade, os limites da atividade econômica, a organização da família, matérias típicas do Direito Privado, passa a

integrar uma nova ordem pública constitucional" (TEPEDINO, 2004, p. 07)

E, assim, conforme Ricardo Luís Lorenzetti, "os códigos perderam a sua centralidade, porquanto esta se desloca progressivamente. O Código é substituído pela

constitucionalização do Direito Civil, e o ordenamento codificado pelo sistema de normas fundamentais". (LORENZETTI, 1998, p. 45).

Neste diapasão, Maria Celina Bodin de Moraes acrescenta:

Diante da nova Constituição e da proliferação dos chamados microssistemas, ... [ ] é forçoso reconhecer que o Código Civil não mais se encontra no centro das relações de direito privado. Tal pólo foi deslocado, a partir da consciência da unidade do sistema e

do respeito à hierarquia das fontes normativas, para a Constituição, base única dos princípios fundamentais do ordenamento. (MORAES, 1993, p.....)

A Constituição Federal toma o lugar antes ocupado pelo Código Civil e passa a ser o estatuto central da sociedade civil e política. Seu advento significa o fim da centralidade sistêmica do Código Civil apesar de ainda existir relutância por parte da doutrina em admitir o necessário

fim da dicotomia público-privado.

Assim, apesar da armadura imposta pela codificação, o Direito Civil foi forçado a acompanhar as transformações da sociedade contemporânea, superando a teoria liberal clássica. A própria codificação, trouxe em si, a semente para sua ruína ao tentar aprisionar a multiplicidade social

dentro de um código engessado.

Hodiernamente, não podemos chegar à outra conclusão senão de que os códigos tornaram-se obsoletos e, mais grave, constituem óbices ao desenvolvimento do direito civil e da sociedade.

A complexa vida contemporânea não se coaduna com a rigidez imposta pelas regras codificadas.

2.3) Crise da interpretação. Mudança dos paradigmas hermenêuticos.

A "crise" do Direito na contemporaneidade operou verdadeira revolução nos paradigmas hermenêuticos utilizados até então, sobretudo, tendo-se em vista a superação da idéia de

sistema fechado preconizada pelas escolas positivistas, com a conseqüente instauração da mentalidade de sistema aberto lecionada pelos pós-positivistas.

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A crítica ao Positivismo reside, acima de tudo, neste fato: na pretensão de um controle cognitivo absoluto da realidade; na ousadia de tentar aprisionar o espírito humano dentro de

um sistema fechado, enclausurado.

O Pós-positivismo possui traços característicos básicos. Trata-se de um conjunto de idéias plurais que ultrapassam os limites do legalismo estrito do positivismo e do normativismo, sem,

contudo, recorrer à razão subjetiva do Direito Natural.

Prof. César Fiúza define:

O chamado pós-positivismo consiste em um movimento de meados do século XX, que, contrapondo-se, principalmente, ao normativismo, acredita que o direito só existe

de forma concreta na medida em que compõe interesses. Seu valor potencial, enquanto conjunto de normas abstratas e genéricas, não tem qualquer interesse

prático, digno de ocupar o tempo do estudioso. (FIÚZA, 2003, p.44)

É marcado, ainda, pela ascensão dos valores, pelo reconhecimento da normatividade dos princípios e a essencialidade dos direitos humanos fundamentais. A discussão ética volta ao

centro do direito.

Surge, portanto, uma nova hermenêutica, fundada em um pluralismo epistemológico, onde está presente a reelaboração teórica, filosófica e prática do Direito.

Para dirimir as questões, os Pós-positivistas têm como ponto de partida o caso concreto. Ou seja, a lógica positivista é invertida: não se parte mais do sistema para o caso concreto.

Isso significa que a aplicação da lei não se trata mais de enquadrar em sua moldura estreita, as particularidades de cada caso, restando ignoradas e decotadas todas aquelas que não

caibam dentro de seu esquadro. A realidade é o parâmetro para se conjugar ideais de justiça e segurança jurídica.

Partindo-se do caso concreto, preocupando-se com suas particularidades, o intérprete adequará a norma ao caso – e não o contrário. Prof. César Fiúza escreve:

Ao entrar em contato com as peculiaridades do problema prático, o intérprete buscará adequar a norma, amoldando-se às necessidades do caso. Para tanto, conjugará o

texto legal com os princípios e valores vigentes no ordenamento. A solução encontrada passará a integrar o sistema, que, assim, estará retroalimentando-se.

(FIÚZA, 2003, p. 35)

Um dos primeiros mentores do pós-positivismo foi Recaséns Siches, que preconizou que o intérprete da pós-modernidade enfrenta três problemas ao se deparar com o caso concreto

(FIUZA, 2003, p. 45): o primeiro é eleger a norma adequada para o caso concreto; o segundo é converter os termos gerais da norma aos termos particulares do caso; o terceiro é escolher

o método correto para trata-lo.

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É uma metodologia ainda muito enraizada na segurança jurídica, mas a justiça já é colocada como objetivo maior do Direito. Recaséns Siches deu grande contribuição no que tange à importância do papel da Filosofia do Direito e à idéia de se buscar, a partir do problema, a

axiologia do Direito.

Na esteira de Recaséns, várias obras são publicadas em contraposição à lógica formal do positivismo jurídico. São as chamadas Teorias da Argumentação (FIÚZA, 2003 p. 46), que

apesar de suas diferenças, possuem todas o mesmo fundamento: o preceito de que a interpretação jurídica deve ser baseada na argumentação, evitando a aplicação dura e fria da

lei.

As Teorias da Argumentação preconizam um sistema aberto, sobretudo, onde seja possível aprimorar mecanismos de interpretação capazes de promover justiça, de dar a resposta

correta para o caso concreto.

No que diz respeito à normatividade dos princípios do Direito preconizada pelo Pós-positivismo, também existem teorias que procuram explicar o que são estes princípios e qual a

forma de sua aplicação.

Bobbio e Del Vecchio preconizam que princípios são normas generalíssimas do sistema, alcançadas por meio de crescente generalização de outras normas do ordenamento. Dentro dessa teoria, por conseqüência, não há que se falar em conflito de princípios, tendo-se em

vista que, por serem normas generalíssimas, eles possuem aplicação universal.

Esser criticou essa teoria afirmando que não é a generalidade que distingue o princípio da regra, pois princípios não se formam através de processo de generalização. Para ele, a

generalidade não é causa do conceito do princípio, mas conseqüência.

Marcelo Galuppo sintetiza as críticas a essa primeira teoria:

Desde Kelsen sabemos, no entanto, que essa tese dificilmente é sustentável, pois, aprendemos com ele, como o sistema jurídico é um sistema dinâmico, não é possível deduzir de conteúdos (mais gerais) outros conteúdos normativos (mais particulares).

Como Esser, já observara, não é a maior ou menor generalidade que distingue o princípio da regra. A generalidade não é um critério adequado para a distinção,

porque, apesar de muitas vezes os princípios serem normas com elevado grau de abstração, eles não se foram por um processo de generalização (ou de abstração)

crescente. (GALUPPO, 1999, p. 192)

A segunda teoria pertence a Robert Alexy (4). Para ele, a aplicação universal de princípios é irrealizável no caso concreto. Alexy entende que princípios são mandados de otimização, ou sejam, são normas que dizem algo que deve ser realizado na maior medida possível, dentro

das possibilidades jurídicas e fáticas existentes.

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Sendo assim, podem ser aplicados em diferentes graus, pois contém mandados prima facie, que comandam a análise do caso concreto e de todas as suas circunstâncias para sua

aplicação. As regras, ao contrário, contêm mandados definitivos, sendo aplicáveis ou não no caso concreto. "Portanto, o que diferencia basicamente princípio de regras seria o fato de os

primeiros serem razões prima facie, enquanto as segundas seriam razões definitivas" (GALUPPO, 1999, p. 193)

No caso de colisão entre princípios, Alexy preconiza que ambos os princípios conflitantes não deixam de ser válidos e que tal conflito se dá na dimensão do peso, o que nos conduz,

invariavelmente, a uma idéia de hierarquização entre eles, ponto mais criticável da sua teoria.

Alexy preconiza que não se trata de hierarquização absoluta. Ocorre tão somente no caso concreto e é estabelecida através de um procedimento de ponderação, o qual possibilita a descoberta de qual dos interesses, abstratamente do mesmo nível, possui maior peso no

caso, tendo-se em vista a existência de condições que implicam a precedência de um princípio sobre o outro.

A teoria de Alexy é muito criticada. Autores como Habermas (5) e Günther (6) afirmam que ele esvazia o caráter normativo dos princípios, pois entra em contradição com a compreensão

deontológica do Direito que pretende defender.

Habermas afirma que a concepção da lei de ponderação e da lei de colisão de Alexy conduz a uma axiologização do Direito, pois tal ponderação só é possível à medida que preferimos um

princípio em relação a outro e quando fazemos isso – ou seja, quando preferimos – os aproximamos de valores e não de normas. Na fala de Marcelo Galuppo:

Habermas entende que a maneira pela qual Alexy concebe as leis de colisão e de ponderação implica uma concepção axiologizante do direito, pois a ponderação, nos moldes pensados por Alexy, só é possível porque podemos preferir um princípio a

outro, o que só faz sentido se os concebermos como valores. Pois é apenas porque são concebidos como valores que os seres podem ser objetos de mensuração por

meio de preferibilidade, constitutiva do próprio conceito de valor, uma vez que o valor, conforme aponta Lalande, pode ser entendido como o "caráter das coisas consistindo

em que elas são mais ou menos estimadas ou desejadas por um sujeito ou, mais ordinariamente, por um grupo de sujeitos determinados" (Lalande, 1960:1183. Grifos

meus). Ao assumir tal posição, Alexy confunde normas jurídicas (em especial os princípios) com valores, o que torna a sua teoria inconsistente. (GALUPPO, 1999,

p.196)

Alexy se preocupa em encontrar mecanismos racionais de ponderação e afirma que a fundamentação racional é aquela capaz de apontar suas razões, ou seja, as razões de

preferibilidade.

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Habermas, por sua vez, afirma que é necessária uma fundamentação deontológica, que leve em consideração a correção normativa, que pressupõe a possibilidade de fundamentar em

termos racionais e definitivos uma determinada ação.

Para este autor, uma fundamentação baseada em valores nos dita aquilo que é bom para nós, enquanto uma fundamentação em normas dita aquilo que é universalmente correto.

Ronald Dworkin (7) afirma, a seu turno, que princípios são modelos que devem ser observados, independentemente do fim que sua aplicação poderá atingir, mas porque é

simplesmente uma exigência da justiça ou de imparcialidade ou de qualquer dimensão de moralidade.

O conceito de Integridade do Direito (8) elaborado por Dworkin é aproveitado nas teorias de Klaus Günther e de Habermas para formulação do conceito de princípios e do procedimento

de solução de conflitos entre eles, no caso concreto.

Estes dois autores consignam que a diferença entre princípios e regras reside no fato de serem normas que possuem razões distintas de fundamentação das ações. Os primeiros, possuem razões comparativas (consideradas todas as circunstâncias, a ação deve ou não deve ser executada) e as segundas possuem razões prima facie (a ação deve ou não deve

ser executada).

Para eles, princípios são fluidos e abstratos e necessitam ser densificados no caso concreto, não se aplicando a toda e qualquer situação que reproduza suas circunstâncias de aplicação.

Günther leciona que os princípios são aplicados através de procedimento argumentativo, que obriga a considerar todas as características da situação em exame. Leva-se em conta um

juízo de adequabilidade; um princípio pode excepcionar outro e a exceção se faz pelo próprio caso, onde o juiz deve realizar a exigência da Integridade.

Para ele, ao contrário de Alexy, princípios não estão em relação de subordinação, mas sim de coordenação.

Independentemente das divergências entre os autores citados acima, o que devemos ter em mente é que dentro desta concepção de sistema aberto, os princípios assumem papel importantísismo no sentido fornecer decisões coerentes e justas, integrando o sistema

jurídico. Além disso, por serem normas, princípios não podem ser hierarquizados, tampouco podem ser objeto de preferências.

3) REPERSONALIZAÇÃO DO DIREITO CIVIL. CONSTITUIÇÃO FEDERAL E CLÁUSULAS GERAIS. CÓDIGO CIVIL DE 2002.

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Antes de enfrentarmos os temas propostos neste capítulo, é necessário fazermos algumas considerações de cunho metodológico, imprescindíveis para a compreensão da

constitucionalização do Direito Civil, fenômeno que parece carregar em si verdadeiro paradoxo.

Para tanto, devemos compreender, em primeiro lugar, que a dicotomia da dogmática do século XIX, restaurada pelo Iluminismo, que estabeleceu uma profunda separação entre

Direito Público e Privado não mais parece fazer sentido hodiernamente.

Todas as normas infraconstitucionais – que caracterizam uma pluralidade de fontes normativas – devem se submeter aos princípios e valores que a sociedade brasileira identifica

como prevalentes, quais sejam, os princípios e valores constitucionais.

Com a queda da dicotomia que segmentava o Direito Privado do Público, é um contra-senso afirmar que as normas constitucionais se destinam somente ao legislador. Todas elas têm aplicação direta. Seus princípios atuam tanto no plano da justificação quanto no plano da

aplicação, e são, inclusive, auto-executáveis.

Diante disso, a Constituição da República se situa no ápice do sistema normativo. Possui, um papel unificante tendo em vista o amplo compromisso social que suas normas representam.

Conforme nos ensina o Prof. Gustavo Tepedino (TEPEDINO, 2003, p. 119-120), a sociedade contemporânea alcançou três conquistas fundamentais no campo jurídico.

A primeira dessas conquistas seria a descoberta do significado relativo e histórico dos conceitos jurídicos, que sempre foram encarados como neutros e absolutos. Hoje, inclusive,

nos parece óbvio que nenhum direito, dever ou construção jurídica seja revestido de absoluteidade. Cada instituto jurídico se torna insuficiente fora de um contexto histórico ou

cultural.

A segunda conquista elencada pelo Prof. Gustavo Tepedino é a superação da dicotomia entre Direito Público e Direito Privado. Esta classificação não serve para atender reivindicações sociais, onde é necessário funcionalizar as relações patrimoniais a valores constitucionais,

tendo em vista o amplo compromisso social de nossa Constituição Federal de 1988.

Por fim, a terceira conquista se traduz na absorção definitiva pelo texto constitucional de valores que presidem a iniciativa privada e seus institutos (família, propriedade e contrato).

Por tudo isso, fala-se, atualmente, em Direito Civil-Constitucional. A atividade interpretativa do Direito passa necessariamente por esta perspectiva, onde os princípios constitucionais

deixaram de ser, há muito, meros princípios políticos.

3.1) Ser humano e sua dignidade: centro epistemológico do ordenamento jurídico.

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Neste contexto, onde a dignidade da pessoa humana é colocada como fundamento da República Brasileira, sendo valor essencial de nosso sistema jurídico, encontramos mais uma razão para que a dicotomia público-privado seja superada, tornando-se possível alcançar a

plena tutela da pessoa humana.

No estado Democrático de Direito, delineado pela Constituição Federal de 1988, que tem como entre seus fundamentos a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, o antagonismo público-privado perdeu definitivamente

o sentido. (MORAES, 1993, p. 26)

Assim, os valores existenciais estão no vértice do ordenamento jurídico. A pessoa humana é o valor que deve orientar todo e qualquer ramo do Direito. Todos – absolutamente todos – os institutos jurídicos devem ser funcionalizados com o objetivo de promover o pleno e integral

desenvolvimento do homem.

Desta feita, a "patrimonialização" tradicional das relações civis, que ainda persiste em nosso novo Código Civil, é totalmente incompatível com os valores constitucionais fundados no

princípio da dignidade da pessoa humana. A primazia da pessoa humana é condição essencial de adequação do direito à realidade e aos fundamentos constitucionais vigentes.

Diante disso, fala-se em "repersonalização" das relações civis, movimento que objetiva recolocar o ser humano no centro do Direito Civil, lugar que sempre deveria ter ocupado, ao

invés do patrimônio, que norteou nosso ordenamento juscivilístico até então.

Nesse aspecto, cumpre fazermos algumas ponderações para indagarmos se esse fenômeno não seria melhor denominado como "personalização" do Direito Civil.

O breve histórico que fizemos de nossa civilística e daquelas que a influenciaram nos revela que o ser humano e os valores existenciais jamais ocuparam o centro do Direito Civil. Tal

posição sempre fora inegavelmente reservada ao patrimônio, considerado, por muito tempo, a verdadeira medida do homem.

A proposta do atual movimento não é confundível nem mesmo com o antropocentrismo preconizado pelo Iluminismo, razão pela a denominação "personalização" do Direito Civil

parece mais adequada aos fins que o fenômeno representa.

Neste sentido, Luiz Edson Fachin defende, ainda, a existência de um patrimônio personalíssimo, relacionado com a "verificação concreta de uma esfera patrimonial mínima,

mensurada pela dignidade humana à luz do atendimento de necessidades básicas ou essenciais". (FACHIN, 2001, p. 03)

A tese de Fachin é muito interessante, pois propõe a colocação da pessoa e suas necessidades fundamentais, em primeiro plano e coaduna-se, portanto, com as tendências de

"despatrimonialização" ou "personalização" do Direito Civil.

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Fachin fundamenta suas formulações na tutela constitucional ao direito à vida, prevista no artigo 5º, bem como no artigo 170 da Carta Magna, que comanda o condicionamento da

ordem econômica à garantia de uma existência digna a todo ser humano.

Este autor preconiza que a defesa da vida, plena e digna, é a única seiva que pode animar o Direito e busca, em sua tese, uma nova conceituação do patrimônio, capaz de colocar a

pessoa humana e seus valores personalíssimos no centro das relações jurídicas.

3.2) Nova técnica legislativa: Cláusulas Gerais

Antes de adentrarmos no conceito das cláusulas gerais, sua função e natureza jurídica, é necessário que pontuemos alguns preceitos de interpretação da lei em nosso sistema jurídico

contemporâneo.

A esta altura, não restam dúvidas a respeito da supremacia absoluta dos princípios e regras constitucionais sobre todo o ordenamento jurídico, nem tampouco de que a estrutura

legislativa adotada por nossa Carta Magna forma um sistema que rege tanto as relações jurídicas públicas quanto as privadas.

Entendido este ponto, devemos considerar que a interpretação das normas constitucionais e da legislação infra-constitucional não pode ser estática. Ao contrário, deve ser dinâmica para se adaptar à realidade social do momento da aplicação da norma, pois o significado de um

texto legal pode variar no tempo e no espaço.

Todas estas premissas são de extrema relevância para analisarmos a harmonia do Código Civil de 2002 – e de sua técnica legislativa - com a Constituição Federal de 1988.

Bem, a lei, em sua forma tradicional, se apresenta com conteúdo rígido e fechado; completamente estático, a ponto de não abrir espaço algum para o juiz interpretar e aplicar a

lei em face do caso concreto. Contudo, conforme leciona Joaquim Augusto Delgado:

Essa técnica legislativa, na época contemporânea, não se coaduna com as exigências impostas pelas relações jurídicas vividas pelos membros da sociedade humana, haja vista a complexidade que as envolvem e as constantes mutações a que se submetem

durante o curso da produção dos seus efeitos. (DELGADO, 2003, p. 395)

Diante disso, o novo Código Civil é composto por um sistema de regras móveis que não se deixam envelhecer com o transcorrer do tempo, tendo em vista a possibilidade de sua

adaptação, no momento da aplicação, através da interpretação.

Delgado, então, ensina que ’‘a técnica legislativa moderna se faz por meio de conceitos gerais indeterminados e cláusulas gerais, que dão mobilidade ao sistema, flexibilizando a rigidez dos

institutos jurídicos e dos regramentos do direito positivo. (DELGADO, 2003, p. 395)

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Assim, as cláusulas gerais se afiguram como fórmulas genéricas que determinam comportamentos não pormenorizados, ao contrário das regras, destinadas a regular,

especificamente, hipóteses fáticas determinadas. Tratam-se de normas orientadoras e se dirigem ao julgador, dando-lhe certa liberdade para decidir, preenchendo seu conteúdo diante

do caso concreto.

Possuem natureza jurídica de norma jurídica, pois é fonte criadora de direitos e obrigações. Não podem, por conseqüência, ser consideradas como princípios ou regras de interpretação.

Constituem técnica legislativa muito útil para a atualidade, pois o legislador é ciente de sua impotência para regular a complexidade de fatos sociais que surgem no seio da sociedade

contemporânea, extremamente pluralizada e multifacetada.

Porém, a despeito de revelarem algumas vantagens, vez que evitam o engessamento do Direito, apresentam alguns riscos, sobretudo, na atividade interpretativa. Podem ser campo

fértil para o subjetivismo exacerbado dos órgãos jurisdicionais, a quem resta a tarefa de preencher seu conteúdo em face do caso concreto.

A solução para evitar o subjetivismo e a discricionariedade dos julgadores é condicionar a aplicação das cláusulas gerais à normatividade constitucional. Por esta razão, no início deste

tópico, frisamos os preceitos interpretativos da lei na contemporaneidade.

Assim, é forçoso entender que ao juiz é dada certa discricionariedade ao preencher os conteúdo da cláusula geral, mas tal discricionariedade encontra limites impostos pela

normatividade constitucional.

Sua função é de instrumentalizar o Direito e "atuam com o objetivo fundamental de cumprir preceitos constitucionais de valorização da dignidade da pessoa humana e da cidadania..."

(DELGADO, 2003, p. 397)

Deste modo, levando-se em consideração os limites constitucionais para a interpretação e aplicação das cláusulas gerais e atentos ao fato de que um sistema mais aberto contribui para

a ocorrência de soluções mais justas e corretas no caso concreto, devemos concluir pela perfeita compatibilidade dessa nova técnica legislativa com a Constituição Federal e com as

exigências sociais da contemporaneidade.

3.3) Código Civil de 2002

Dentre as diretrizes fundamentais, elencadas pelos elaboradores do novo diploma civil brasileiro como orientadoras de sua feitura, estão a compreensão do código como lei básica e

não global do direito privado e a manutenção da estrutura do código anterior, no sentido de preservar, sempre que possível, a redação do Código Beviláqua.

A esse respeito, J. M. Othon Sidou escreve:

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É natural e óbvio que as leis de grande abrangência, tal o Código Civil, absorvam inovações pertinentes, do mesmo modo como, ao inverso, mantenham institutos já desfigurados e que bem mereciam o repouso no arquivo da História do direito. Num

caso, a ânsia da renovação; noutro, o apego à tradição. (SIDOU, 2003, p. 361)

A comissão de elaboradores, do alto de seu brilhantismo, que me perdoe: mas, na minha profunda ignorância, ouso dizer que um Código Civil, no contexto político, econômico e social

de nossa contemporaneidade não carrega impertinências: revela-se como uma verdadeira impertinência.

Seus mentores justificaram a atualização do código civil com o objetivo de superar os pressupostos individualistas que condicionaram o diploma de 1916, bem como para dota-lo de

novos institutos jurídicos, reclamados por nossa sociedade contemporânea.

Aqui, somos forçados a fazer nova pausa, tendo em vista a impossibilidade de deixar de comentar tamanha incoerência. Os códigos são fruto da ideologia liberal, profundamente marcada pelo individualismo, e expressão do positivismo jurídico, que leciona um sistema

fechado e exausto em si. A meu ver, é impossível pretender fabricar um novo código que não esteja inserido neste contexto e marcado por tais ideologias. Contudo, sigamos adiante.

Nortearam-se pela premissa de não tutelar institutos jurídicos que não estivessem "sedimentados" na sociedade e justificaram tal fato alegando deixar para a "legislação aditiva"

a disciplina destas questões, em virtude das mutações sociais em curso.

Paradoxalmente, mesmo confessando não desejar erigir o Código Civil ao centro do ordenamento privado, elegeram o objetivo de incluir em sua sistemática as matérias reguladas

pelas leis especiais promulgadas após 1916 - o que chega a nos arrepiar.

Além da tarefa hercúlea de aglutinar os institutos do código de 1916 e os das leis especiais vigentes desde então, desejaram acolher modelos jurídicos elaborados pela jurisprudência

durante todo o último século – o que intensifica ainda mais nosso arrepio.

Depois de tudo isso, afirmam que procuraram dar ao Código Civil um sentido operacional, estruturando instrumentos capazes de promover paz social e desenvolvimento.

Parecem ter esquecido que a lei codificada, engessada, estática no tempo, ao contrário de promover desenvolvimento social, o paralisa e causa atraso.

Justamente no instante em que o ordenamento juscivilístico começa a se ressistematizar, pelo empenho da doutrina e da jurisprudência, justamente no instante em que ganha contornos de algo simétrico e inteligível, surge o fantasma de um novo Código Civil, que ameaça ruir todos os esforços de ressistematização envidados até o

presente.

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É um código que já nasce de costas para o presente, ao menoscabar o paradigma do Estado Democrático de Direito. Em outras palavras, nascerá já necessitando de releitura urgente. Salta aos olhos que seria muito mais sábio proceder-se a uma

reforma paulatina do Código de 1916, à semelhança do que se vem fazendo com o Código de Processo Civil. (FIUZA, 2003, p. 33)

3.3.1) O Código e seus destinatários no contexto da descodificação

Toda norma imposta pelo Poder Público deve estar adequada aos costumes e às aspirações que formam o substrato de uma sociedade, sob pena de ser cunhada pela ilegitimidade,

sobretudo, no Estado Democrático de Direito em que vivemos.

Depois de se arrastar no Congresso nacional por décadas, o texto que agora a nós é imposto para o devido cumprimento, é um desconhecido para a grande maioria de seus destinatários.

Nenhuma das partes do processo de elaboração, aprovação e promulgação do novo Código Civil foi objeto de discussão com a sociedade que ele se destinaria a regular.

O que é de causar espanto é que dentre as diretrizes fundamentais da comissão elaboradora, elencou-se a "consulta" de entidades públicas e privadas, representativas dos diversos

círculos de atividades e interesses, objeto da disciplina normativa, a fim de que a nova lei, além de se apoiar nos entendimentos legislativos, doutrinários e jurisprudenciais, tanto

nacionais como alienígenas, "refletisse os anseios legítimos da experiência social brasileira, em função de nossas peculiares circunstâncias".

Infelizmente tal diretriz não foi cumprida. Ausente a discursividade, que deveria envolver um projeto desta envergadura, nos resta estudar, entender e procurar adequar a lei - que nos fora

friamente imposta - à realidade atual, na maior medida possível.

Ademais, já sabemos como a codificação limita e restringe. Os valores postos são apenas aqueles válidos para um determinado momento histórico, que não podem se transportar

através do tempo e se adaptar às mutações sociais que se operam.

Por esta razão, severas são as críticas de nossa doutrina em relação à codificação, sobretudo, na contemporaneidade, que nos apresenta uma sociedade complexa e plural: "...[ ]

o momento histórico e sócio-jurídico que vivenciamos, às vésperas do Terceiro Milênio, não comporta o engessamento, a própria petrificação de instituições tão importantes, em plena

ebulição". (FRANÇA, 1999, p. 19)

Em sua esteira, o Prof. Gustavo Tepedino complementa:

... [ ] uma codificação não surge por acaso. Expressa momento de unificação política e ideológica de um povo, fazendo prevalecer o conjunto de regras que o sintetiza. Assim foi o século XIX, após a revolução Francesa, assim se deu na Europa do pós-guerra,

com a derrubada dos governos totalitários.

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Tais circunstâncias históricas não mais existem: deram lugar a cenário inteiramente diverso, pluralista e multifacetado, onde os grupos políticos emergentes manifestam-se

através do robusto conjunto de leis especiais, que regula de maneira setorial a atividade privada e parece insuscetível de unificação no plano das leis ordinárias.

(TEPEDINO, 2004, p.499-500)

Cabe a nós, operadores do Direito, a assunção de um pensamento crítico perante o caminho traçado por nosso legislador, pois somente a partir dele será possível reformular o Direito Civil brasileiro de modo que satisfaça às reais necessidades de seus destinatários, tendo em vista

a irrelevante função do Direito Civil na vida humana, por ser aquele que rege a vida do homem comum e suas relações jurídicas cotidianas, desde as mais simples até as mais intrincadas e

complexas.

CONCLUSÃO

Traçado este sintético panorama da juscivilística brasileira, concluímos, de maneira inegável, que o Direito Civil contemporâneo vem atravessando uma fase de profundas transformações

em seus valores constituintes.

Essa fase turbulenta, recheada de incertezas, deu origem à chamada "crise" do Direito Civil que, como já dito, nada mais é que a superação de antigos paradigmas e a instauração de

novos, em substituição.

A sociedade contemporânea tem novas exigências e se estrutura em novos padrões de organização social, política e econômica. Portanto, a dogmática jurídica colecionado durante

toda a modernidade não mais nos serve.

Dentre as inúmeras alterações que se vislumbram no cenário de mutação que ora nos apresenta, devemos destacar algumas, reportadas fundamentais para a compreensão do

Direito Civil que vem se amoldando em nossos tempos.

A primeira delas é o fim - ou ao menos a relativização - da dicotomia entre Direito Público e Direito Privado, tendo em vista a interpenetração do Direito Civil com o Direito Constitucional,

para a perfeita tutela dos interesses existenciais, tendo em vista que essa só pode ser garantida à luz dos princípios fundamentais constitucionais e do amplo compromisso social

assumido por nossa Carta Maior.

O fim dessa compartimentação do Direito significa, ainda, a inadequação de um sistema jurídico que vise a promoção de segurança jurídica, que na concepção moderna representa a

garantia de proteção da liberdade individual contras ingerências do Estado.

A história nos mostrou a necessidade da intervenção estatal na economia, que não é capaz de se autogerir e solucionar os problemas que causa. Sendo assim, a necessidade de códigos

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que representassem estabilidade e completude deixou de ser imperativa. Ao contrário, se mostrou inadequada em nossos tempos.

Hodiernamente, a busca precípua de um ordenamento jurídico deve ser a realização da justiça, sobretudo, de justiça social, através da permanente contribuição de todos os cidadãos

para o bem comum.

É indispensável a existência de um sistema aberto, que não feche as portas para a complexidade da sociedade contemporânea, evitando que fatos sociais se situem à margem do regramento jurídico, exigindo uma hiperatividade legislativa, que ao contrário de revelar

uma sociedade organizada, significa desorganização e subdesenvolvimento.

Um sistema aberto exige, ainda, pluralismo de fontes, restando superada a idéia positivista de que só a lei é fonte de direito. Aos princípios jurídicos é atribuída importância nunca dantes

conferida. Assumem em definitivo papel no plano da aplicação.

O intérprete possui função diferenciada. Não lhe cabe somente subsumir a norma ao caos concreto, mas sim analisar todas suas circunstâncias, para aplicar aquela que melhor se

adeque à produção de uma decisão justa e correta. Neste contexto tomam corpo as denominadas Teorias da Argumentação, que procuram encontrar mecanismos racionais desta

adequação.

O Direito Civil é fragmentado, desagregado em uma série de corpos jurídicos autônomos: os microssistemas, dotados de princípios, que já não buscam vida no Código Civil, mas na

própria Constituição Federal. A era da descodificação se amoldura.

Os pilares tradicionais da dogmática civil, autonomia da vontade, propriedade e família, perdem seu status. O direito civil é personalizado e seu centro epistemológico é ocupado pela ser humano e por sua dignidade, elevados, pela Constituição Federal à categoria de princípios

fundamentais de nossa República.

Diante de tudo isso, não sabemos onde encaixar um novo código civil... Mas ele se impõe a nós e assim temos a tarefa de tentar minimizar seus impactos desastrosos na gradativa

reestruturação que nosso Direito vinha sofrendo, por méritos da doutrina e da jurisprudência.

NOTAS

1. Tendo o Direito Alemão optado pela codificação - para tristeza de Savigny -, o que culminou com a promulgação do BGB, código que inspirou muitos outros que surgiram

em sua esteira. 2. A escola da Exegese, inspirada no racionalismo setecentista, preconizava o Direito

como sistema de regras lógico-dedutivas. A lei seria fonte única e suficiente que dispensava interpretações, por sua clareza e completude.

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3. Thomas S. Khun, mentor da teoria dos paradigmas, preconiza que um paradigma é aquilo que os membros de uma comunidade partilham e, inversamente, uma

comunidade científica consiste em homens que partilham um paradigma. 4. ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madri: Centro de Estudios

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University of New York, 1993. 7. DWORKIN, Ronald. Life´s dominion. Nova Iorque. Alfred A Knopf, 1993.

8. Conceito central da teoria de Dworkin responsável pela atribuição de legitimidade ao sistema jurídico, relacionado, ainda, com as razões que constituem o substrato das normas jurídicas e se conecta diretamente ao conceito de justiça, imparcialidade e

igualdade. Para Dworkin, uma decisão justa respeita a integridade do sistema e fornece a resposta correta para o caso.

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