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Introdução “A reunião entrou em colapso”. A informa- ção foi transmitida aos jornalistas pelo diplomata queniano George Ogwar pouco depois das 15 ho- ras. Ele não estava enganado. Minutos mais tarde, em sua condição de presidente dos trabalhos, o chanceler mexicano, Luís Ernesto Derbez, dava por encerrada a Conferência Ministerial de Can- cún, por avaliar que o impasse produzido em tor- no dos chamados “temas de Cingapura (investi- mentos, política de concorrência, compras gover- namentais e facilitação de comércio) não seria su- perado em tempo hábil. Acolhido com manifestações ruidosas de re- gozijo pelos ativistas de movimentos alternativos e organizações não governamentais que se encontra- vam na sala de imprensa do Centro de Convenções da cidade, esse desfecho suscitou reações discre- pantes nos protagonistas da história que se fazia na- quela hora. “Cancún fracassou. O que ocorreu aqui é um grave problema para a OMC (Organização Mundial do Comércio) e, ao mesmo tempo, uma oportunidade perdida para todos”, afirmou Pascal Lamy, comissário de Comércio da União Européia que nos dias anteriores esteve na berlinda pela de- fesa da política de subsídios agrícolas da União Eu- ropéia e pela insistência em negociar os referidos temas de Cingapura. Em sua opinião a OMC, com os seus 148 membros e suas regras decisórias, esta- va se convertendo em uma “organização medieval”. ESTADO E MERCADO: a OMC e a constituição (incerta) de uma ordem econômica global* Sebastião C. Velasco e Cruz RBCS Vol. 20 nº. 57 fevereiro/2005 * Este trabalho foi desenvolvido no contexto do Pro- jeto Temático “Reestruturação Econômica Mundial e Reformas Liberalizantes nos Países em Desenvolvi- mento”, coordenado pelo autor, que agradece à Fa- pesp, pelo apoio a esta pesquisa, e a Andrei Koer- ner, pela leitura atenta do texto e por seus comentários. Artigo recebido em dezembro/2004 Aprovado em janeiro/2005

ESTADO E MERCADO: a OMC e a constituição (incerta) de uma … · 2005-05-05 · por encerrada a Conferência Ministerial de Can-cún, ... vejo a reunião de Cancún menos como um

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Introdução

“A reunião entrou em colapso”. A informa-ção foi transmitida aos jornalistas pelo diplomataqueniano George Ogwar pouco depois das 15 ho-ras. Ele não estava enganado. Minutos mais tarde,em sua condição de presidente dos trabalhos, ochanceler mexicano, Luís Ernesto Derbez, davapor encerrada a Conferência Ministerial de Can-cún, por avaliar que o impasse produzido em tor-no dos chamados “temas de Cingapura (investi-

mentos, política de concorrência, compras gover-namentais e facilitação de comércio) não seria su-perado em tempo hábil.

Acolhido com manifestações ruidosas de re-gozijo pelos ativistas de movimentos alternativos eorganizações não governamentais que se encontra-vam na sala de imprensa do Centro de Convençõesda cidade, esse desfecho suscitou reações discre-pantes nos protagonistas da história que se fazia na-quela hora. “Cancún fracassou. O que ocorreu aquié um grave problema para a OMC (OrganizaçãoMundial do Comércio) e, ao mesmo tempo, umaoportunidade perdida para todos”, afirmou PascalLamy, comissário de Comércio da União Européiaque nos dias anteriores esteve na berlinda pela de-fesa da política de subsídios agrícolas da União Eu-ropéia e pela insistência em negociar os referidostemas de Cingapura. Em sua opinião a OMC, comos seus 148 membros e suas regras decisórias, esta-va se convertendo em uma “organização medieval”.

ESTADO E MERCADO: a OMC e a constituição (incerta) deuma ordem econômica global*

Sebastião C. Velasco e Cruz

RBCS Vol. 20 nº. 57 fevereiro/2005

* Este trabalho foi desenvolvido no contexto do Pro-jeto Temático “Reestruturação Econômica Mundial eReformas Liberalizantes nos Países em Desenvolvi-mento”, coordenado pelo autor, que agradece à Fa-pesp, pelo apoio a esta pesquisa, e a Andrei Koer-ner, pela leitura atenta do texto e por seuscomentários.

Artigo recebido em dezembro/2004Aprovado em janeiro/2005

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Não menos acerba foi a reação do represen-tante comercial dos Estados Unidos. Na conferên-cia de imprensa que deu logo depois de anuncia-do o fracasso da cúpula, Robert B. Zoellick afirmouque “a lição mais importante de Cancún” é que “oconsenso útil entre 148 países requer a disposiçãoséria para concentrar-se no trabalho e não na retó-rica [...]”. Ele reconheceu que a agricultura haviasido o tema mais “crítico da reunião, mas atribuiuo fracasso da mesma aos países em desenvolvi-mento, por sua recusa a discutir novas regras parareduzir os “obstáculos ao comércio”.1

Cerca de uma semana depois, Zoellick vol-taria a expressar esses juízos, agora de forma maisarticulada, em artigo de grande repercussão pu-blicado no Financial Times: “Os Estados Unidosnão vão esperar”. Sob esse título, o representantecomercial da Casa Branca dava sua versão dosacontecimentos e fazia carga pesada contra ospaíses em desenvolvimento, com menção espe-cial para o Brasil.

Importantes países em desenvolvimento de nívelmédio empregaram a retórica da resistência comotática para pressionar os países desenvolvidos e,ao mesmo tempo, desviar a atenção de suas pró-prias barreiras comerciais. Depois que os EstadosUnidos pressionaram a União Européia a desen-volver um sistema agrícola capaz de efetuar cor-tes de subsídios agrícolas e tarifas muito superio-res aos alcançados na última negociação docomércio global, pedimos que o Brasil e outraspotências agrícolas trabalhassem conosco. O Bra-sil recusou-se, voltando-se em vez disso para aÍndia, que nunca apoiou a abertura de mercados,como que para enfatizar a divisão norte-sul, enão a reforma agrícola global (Zoelick, 2003).

Ao externar esse ponto de vista, o alto fun-cionário norte-americano a um só tempo exerciapressão adicional sobre um interlocutor importan-te, que surpreendeu pela renitência na “má con-duta”, e expressava um sentimento generalizadonos círculos dirigentes de seu próprio país.2

O contraste com as avaliações que emana-vam dos representantes dos países interpeladosnão podia ser mais gritante. Vale lembrar como oministro Celso Amorim, alvo principal do mau hu-mor do representante comercial dos Estados Uni-dos, caracterizou o episódio vivido em Cancún:

Independentemente das análises que venham a serfeitas sobre a reunião de Cancún, pode-se afirmar,desde já, que ela marca um ponto de inflexão nadinâmica interna da Organização onde, tradicional-mente, o que era decidido pelas grandes potênciascomerciais era visto como o consenso inevitável.Graças a um esforço conjunto de 22 países em de-senvolvimento, coordenados pelo Brasil, do qualparticiparam países grandes e pequenos de trêscontinentes, as postulações da maior parte da hu-manidade não puderam ser ignoradas. Apesar daausência de resultados imediatos, vejo a reunião deCancún menos como um fim do que como o co-meço de uma nova etapa na vida da OMC, em queas negociações se processarão de maneira maisequilibrada e menos unilateral.3

Do outro lado do globo, opinião semelhanteera manifestada por Arun Jaitley, ministro do Co-mércio e Indústria da Índia, que chefiou a delega-ção de seu país na Conferência de Cancún. Emsuas palavras, “a Índia não cedeu em nenhumaquestão na Ministerial da OMC, e o fato de que te-nha trazido para o centro do palco as preocupa-ções dos países em desenvolvimento refletiu o su-cesso da conferência”. Em sua avaliação, o fatormais importante no desempenho da diplomaciaindiana no conclave foi a “o apoio unânime daopinião nacional à posição geral adotada pelo go-verno depois de amplas consultas, antes da Minis-terial, com partidos políticos, sindicatos, associa-ções da indústria e outras partes interessadas”.4

Em sua avaliação calorosa dos resultadosobtidos em Cancún o ministro era secundado peladireção da Confederação Indiana das Indústrias,que, pela voz de seu presidente, Anand Mahindra,não economizava adjetivos:

Cancún representa um divisor de águas nas nego-ciações comerciais. Elas nunca mais serão mais asmesmas. Os países em desenvolvimento agorasão uma força reconhecida. A Índia, liderada peloMinistro do Comércio, foi uma das principais res-ponsáveis pela união de muitos países em tornode uma plataforma comum.5

O fracasso da quinta Conferência Ministerialnão constitui uma experiência nova na curta his-tória da OMC. Antes dela houve o fiasco de Seat-tle, que trouxe o movimento anti-globalização de-finitivamente para as manchetes dos jornais em

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todo o mundo. E se incluirmos o acervo do GATT(General Agreement on Tariffs and Trade) emnosso balanço, vamos constatar que os impassesnas conferências ministeriais da organização sãomais comuns do que poderíamos imaginar pelasimples leitura da cobertura da imprensa. No en-tanto, alguns elementos dão ao episódio de Can-cún um significado especial:

1. Como observaram prontamente os melhores ana-listas, a conferência de Cancún foi palco de umainédita movimentação entre países em desenvolvi-mento, que lograram fortalecer suas respectivas po-sições negociadoras ao exibirem um nível notávelde mobilização e ao se reforçarem mutuamente porintermédio de um conjunto muito diversificado dealianças. Algumas delas foram criadas ainda no iní-cio da década, na fase preparatória para a Conferên-cia de Doha. Esse é o caso do Grupo Africano, doGrupo de Países da África e do Caribe Pacífico,do Grupo dos Países Menos Desenvolvidos, do gru-po conhecido como Economias Pequenas e Vulne-ráveis e do Grupo dos Países Afins (Like MindedGroup). Outras tinham formação mais recente e fi-zeram seu début no balneário mexicano – caso doGrupo 20, constituído em torno da aliança estabe-lecida alguns meses antes pelo Brasil, Índia e Áfri-ca do Sul (cf. Narlikar e Tussie, 2003).2. Essas alianças tinham a seguinte particularida-de: nenhuma delas estava centrada em um únicotema. Pelo contrário, assumiam características debloco – coalizões relativamente estáveis que mo-dulam suas agendas em função das ocorrênciasque marcam os processos de negociação nosquais estão envolvidas. Ademais, entre elas haviaum considerável grau de interseção, devido à so-breposição freqüente dos múltiplos vínculos deboa parte de seus membros. Estava ressuscitada,assim, no sistema multilateral de comércio inter-nacional, a clivagem Norte-Sul que parecia tersido sepultada na Rodada Uruguai, na segundametade da década de 1980.3. A despeito das flutuações, essas alianças esta-vam centradas em alguns temas críticos, entre osquais cabe ressaltar o velho tema da agricultura eos chamados temas de “Cingapura”. Por razõesdistintas, em seu conjunto eles representam umenorme desafio para a OMC. Podemos vislumbrar

a natureza e o alcance do repto quando levamosem conta que, na questão agrícola – introduzidana agenda do GATT na Rodada Tóquio, nos idosdos anos de 1970 – uma fração significativa dospaíses membros invoca o princípio do tratamentoespecial e diferenciado reservado aos mais fracose reclama isenção para seus produtos estratégi-cos, sem provocar por isso o veto de aliados, quesão grande exportadores agrícolas.4. Mais do que em qualquer outro momento, aconferência de Cancún trouxe à baila a questãodos procedimentos. Há, na OMC, uma tensão es-trutural entre a regra majoritária inscrita em seusestatutos e o peso extremamente desigual de seusmembros, o qual se faz sentir vigorosamente nosprocessos reais de tomada de decisão. Essa con-tradição se expressa por um conjunto de procedi-mentos informais e pela aquiescência geral aosresultados obtidos por esses canais. Essa disposi-ção faltou em Cancún, e na ausência dela é a pró-pria natureza da instituição que foi posta em de-bate (cf. Kwa, 2002).

Embora propositalmente sumário, esse relatocontém elementos suficientes para justificar a ques-tão genérica com a qual abrimos o presente estu-do: levando em consideração o fato de que a atualrodada de negociações comerciais é a primeira ase realizar nos quadros da OMC e a primeira des-de o final da Guerra Fria; considerando ainda queseu lançamento ocorreu em um período de incer-teza econômica (crises financeiras no final da dé-cada de 1990, recessão na economia norte-ameri-cana, quebra de confiança provocada pelosescândalos corporativos) e em um momento decrise nas relações internacionais, quando as rever-berações do atentado terrorista de 11 de setembroeram extremamente fortes (a conferência ministe-rial de Doha ocorreu em novembro de 2001), quesignificado atribuir às tensões expressas no decur-so desta rodada?

O problema de fundo

Como entender as tensões afloradas no de-curso da rodada Doha? Que significado atribuir ao

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fracasso da conferência de Cancún? Antes de abor-dar essas questões, convém fazer uma pausa pararefletir sobre a natureza do desafio intelectual queelas representam e sobre as ferramentas mais ade-quadas para lidar com ele.

Tratando-se de perguntas relativas a fenôme-nos inscritos no sistema multilateral de comércio,uma alternativa óbvia seria tomar, como referên-cia para o exercício proposto, a vasta literaturaexistente no campo das Relações Internacionaissobre o tema dos “regimes”. Vários motivos, con-tudo, nos levam a evitar esse expediente. O prin-cipal deles pode ser exposto de maneira brevepor meio de um comentário sobre a definição ca-nônica sugerida na obra coletiva organizada porStephen Krasner:

Os regimes podem ser definidos como conjuntosde princípios, normas, regras e procedimentos detomada de decisão, implícitos ou explícitos, emtorno dos quais as expectativas do ator conver-gem em uma área determinada das relações inter-nacionais (Krasner, 1989).

O debate em torno do tema dos regimes in-ternacionais é conhecido; não vamos revisá-lo. Di-remos apenas que ele gira em torno dos dois ele-mentos combinados nessa definição: 1) a natureza,a efetividade ou a função dos regimes em sua con-dição genérica de regimes, vale dizer, como insti-tuições – nessa linha, a produção teórica sobre otema dissolve-se na literatura mais ampla sobre aemergência e o papel das normas sociais; 2) aspec-to que nos interessa mais de perto – aquilo que fazdesses regimes mais do que simples regimes, pre-cisamente regimes “internacionais”.

Mesmo nos melhores textos sobre o assunto,nem sempre essa distinção é observada: os autorestendem a passar de um aspecto a outro sem se da-rem conta, aparentemente, de que estão a falar decoisas distintas. Podemos observar essa ocorrênciana pena, ou melhor, nas teclas, de um autor tão so-fisticado quanto Oran Young. No artigo que publi-cou na coletânea antes referida, Young examina adiferença entre os regimes internacionais com baseem uma classificação em termos de três tipos de“ordem” – “espontânea”, “negociada”, e “imposta”.Ordens espontâneas são aquelas que, produzidas

embora pelo agir humano, não resultam da coor-denação consciente entre os participantes, dispen-sam a aceitação explícita dos agentes e são alta-mente resistentes a esforços concertados paramoldá-las. Ordens negociadas caracterizam-se pelofato de envolverem esforços conscientes visando àprodução de acordos sobre suas determinaçõesprincipais, consentimento explícito por parte dosagentes concernidos, e à expressão formal de seusresultados. Ordens impostas são criadas delibera-damente pelo poder dominante, ou por uma coa-lizão de dominantes, dispensados o consentimentoexplícito dos atores subordinados e a expressãoformal de suas regras.

Young tem o cuidado de indicar que essasformas não são excludentes e que tendem a secombinar no processo empírico de formação dosregimes internacionais. Como “tipos”, elas selecio-nam e exageram certos traços das instituições his-toricamente existentes, combinando-os em repre-sentações estilizadas que, por isso mesmo, nosajudam a compreender as articulações observadasna realidade. Com essa ressalva, podemos fazeruso deles na caracterização dos objetos. É o que oautor faz na seguinte passagem:

Nesta discussão sobre a dinâmica do regime in-ternacional, convém diferenciar dois tipos de or-dens impostas. A hegemonia aberta ocorre quan-do o ator dominante cria arranjos institucionais,aberta e explicitamente, e obriga os atores maisfracos a se conformarem com eles. As estruturasfeudais clássicas, assim como muitos dos grandessistemas imperiais exemplificam esse padrão(Young, 1989, p. 100).

Ele faz referência, igualmente, a inúmeros re-gimes internacionais que podem ser descritosapropriadamente como “ordens negociadas”. Cu-rioso é que, ao falar da “ordem espontânea”, seusexemplos são o “mercado” e a “linguagem”. Emmomento algum ele se detém para indagar se, emum universo dotado de número relativamente re-duzido de unidades com pesos respectivos tão di-ferentes, como o sistema internacional, a idéia de“ordem espontânea”, mesmo teoricamente, fazsentido. O único caso mencionado de ordem es-pontânea nessa esfera é o regime que regulou por

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muito tempo a pesca internacional, até o momen-to em que foi formalizado por um contrato “cons-titucional” em 1958, data de celebração da Conven-ção de Genebra sobre a Plataforma Continental(Idem, p. 102). Em outros termos, um “regime”que, ao ser incorporado à lógica da coordenaçãoentre Estados, deixou de ser um caso ilustrativo da“ordem espontânea”.

Princípios e normas, regra e procedimentossão ubíquos porque os indivíduos e os grupos de-pendem deles para coordenar suas ações em con-textos em que a busca de interesses estreitamentedefinidos conduz a resultados insatisfatórios. Aouniverso denotativo recortado por essa proposição,o conceito de “regime internacional” apõe duasrestrições: as normas em questão não são difusas,ou de alcance generalizado, elas têm como focoproblemas que emergem tipicamente em áreasfuncionalmente diferenciadas. E não em quaisqueráreas: apenas naquelas que se situam no âmbitodas “relações internacionais”.

Relações inter-nacionais. Importa frisar estetermo, porque implícita nele está a idéia crucialde que os regimes se afiguram como aspectos deum sistema mais amplo, o qual – como os pró-prios regimes – envolve princípios, normas e pro-cedimentos próprios, bastando pensar na força danorma da imunidade e no lugar reservado a elana instituição da diplomacia para se dar conta dis-so. Esse universo inclusivo – o sistema internacio-nal – tem como princípio constitutivo básico oprincípio da soberania.

Ora, a questão que os temas incorporados naagenda do GATT/OMC nas duas últimas décadassuscita não diz respeito exclusivamente aos princí-pios e às normas prevalentes nesta ou naquela“área de problemas”, neste ou naquele regime. As-sim como outros desenvolvimentos recentes – aentronização da democracia representativa comomodelo político de validade universal e sua con-versão em “quase-direito” subjetivo de todos os ha-bitantes da Terra (Velasco e Cruz, 2004) e a criaçãodo Tribunal Penal Internacional, por exemplo –,esses temas põem em questão o relacionamentoentre os novos regimes emergentes e os princípiosestruturantes da ordem internacional.

Se é assim, a literatura que toma Estados esistema internacional como “dados” não pareceser a mais útil. Essas noções deverão reaparecer,forçosamente, na análise – e ainda teremos muitoa aprender com os estudos substantivos sobre oregime multilateral de comércio internacional.Devemos, contudo, partir de outro lugar.

Esse “lugar”, vamos encontrá-lo na idéia cor-rente segundo a qual a integração da economiacapitalista em escala planetária atingiu um patamartão elevado que devemos concebê-la como uma“economia global”. Admitida para efeito de racio-cínio esta premissa, o problema de fundo com quenos defrontamos é o de como entender o proces-so político de criação de instituições adequadas auma tal economia. E se considerarmos que, antesmesmo de sua plena configuração como econo-mia capitalista, a atividade de seus personagensprincipais já era “internacional”, julgamos justifica-da a decisão de abordá-la em uma perspectiva his-tórica de longo prazo.

Excurso histórico: Estado, direito ecapitalismo

Ao final do capítulo “A economia e as diver-sas ordens”, que abre a segunda parte da obraEconomia e sociedade na edição organizada porJohannes Winckelmann,6 deparamos com a se-guinte observação:

[…] a aceleração moderna da atividade econômicareclama um direito de funcionamento rápido e se-guro, garantido por uma força coativa da mais altaeficácia, e, sobretudo, a economia moderna des-truiu por sua pecualiaridade as demais associaçõesque eram portadoras de direito e, portanto, garan-tida do mesmo. Esta é a obra do desenvolvimentodo mercado […] a estensão do mercado […], emvirtude de suas conseqüências imanentes, favore-ce o monopólio e a regulamentação da força coa-tiva “legítima” por meio de um instituto coativouniversal, destruindo todas as estruturas coativasparticulares, que descansam, na maioria das vezes,em monopólios econômicos, estamentais ou deoutra classe (Weber, 1977, p. 272).

Comprimidos nessa passagem estão váriosséculos de história legal. Na linha do tempo que

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ela descreve encontramos, em uma de suas extre-midades, a Europa do alto medievo, época emque a diminuição da ameaça dos povos “bárbaros”(mouros e vikings), a multiplicação de contatoshumanos propiciada pelas Cruzadas e a reabertu-ra das rotas com o Oriente permitiram o reflores-cimento do comércio e da vida urbana. No outroextremo, a moderna economia capitalista, talcomo a conheceram Max Weber e seus contempo-râneos. Voltando nossos olhos para a primeira de-las, podemos observar a lenta emergência de umdireito novo, que aprende com as instituiçõesnunca de todo olvidadas do direito romano, masdele se separa radicalmente pela intenção que oanima e pela natureza dos dispositivos a que dáforma. Esse direito é produzido pela atividade co-dificadora das corporações de mercadores, sobre-tudo aquelas radicadas nas cidades italianas maisprósperas, que trabalham sobre material normati-vo diverso sob a orientação desta regra de ouro:boa é a fórmula jurídica que dá segurança aoscontratos e acelera o ritmo dos negócios.

As fontes do ius mercatorum eram os estatutos dascorporações mercantis, o costume mercantil e a ju-risprudência da “cúria” dos comerciantes. Nos esta-tutos confluíam vários materiais normativos: 1) ojuramento dos comerciantes; 2) as deliberações doconselho formado por comerciantes antigos, e 3)os princípios consolidados pelo costume e pela ju-risprudência. Ao mesmo tempo, uma magistraturade comerciantes, chamados estatutários, ocupava-se da compilação e atualização dos estatutos. Ocostume nascia da constante prática contratual doscomerciantes: a modalidade contratual que consi-deravam vantajosa se convertia em direito; as cláu-sulas contratuais se transformavam, uma vez gene-ralizadas, no conteúdo legal do contrato. Porúltimo, os comerciantes, designados pela corpora-ção, compunham os tribunais que decidiam as con-trovérsias contratuais (Galgano, 1981, p. 48).

Mesmo não tendo sido criação original sua,devemos ao pragmatismo desses mercadores a di-fusão de alguns instrumentos jurídicos na ausên-cia dos quais seria impossível imaginar o dinamis-mo da economia moderna. Entre estes, cabe citara letra de câmbio, que deixa de funcionar comosimples documento que prova o depósito para as-sumir as características de uma ordem de paga-

mento a terceiros, e a nota promissória, promessade pagamento emitida pelo devedor, a ser cum-prida no prazo convencionado, gerando um direi-to que o credor pode transferir a terceiros. Nego-ciabilidade: aí reside o elemento inovador doinstituto. Sem ela a importância da nota promissó-ria como instrumento de crédito seria muito redu-zida. Mas, a negociabilidade não é um atributo in-trínseco desse tipo de documento, ela deriva danorma jurídica que reconhece o direito do porta-dor do título avalizado, sempre que de boa fé,contra toda pretensão de prioridade que possa sermanifestada por outros indivíduos. Não há nadade evidente nessa norma, e até bem entrado noséculo XIX ela foi rejeitada pelos tribunais em vá-rios lugares (cf. Horowitz, 1977, pp. 212 ss.).

A menção à cláusula restritiva da boa fé re-mete-nos a outro aspecto da produção normativados mercadores de então. Não era apenas no de-senho de novas formas de contrato que a comu-nidade de mercadores inovava. No afã de produ-zir soluções expeditas para os problemas quesurgiam cotidianamente na prática do comércio,esse direito pressupunha a boa fé para levar aefeito sua tarefa de simplificação drástica das re-gras de evidência e dos procedimentos judiciais.Esse aspecto é bem salientado pelo autor de umtrabalho clássico sobre o tema, que, ao resumir ascaracterísticas distintivas desse direito enumera,entre outras, as seguintes:

1. Embora uma obrigação solene, assumida emdocumento notarial, tivesse em geral precedênciaa um documento assinado manualmente, essa re-gra não se aplicava aos mercadores. A razão ale-gada para isso era o fato de que entre os merca-dores a boa fé consistia um valor supremo, e nãoreforçado pelo atestado notarial.2. Admitia-se o testemunho oral para contradizerum documento escrito, onde a soma em disputafosse superior a 100 libras, embora o testemunhoisolado da parte interessada fosse insuficiente.3. A propriedade da coisa vendida passava aocomprador na ausência da entrega.As associações verbais eram suficientes. Emborahouvesse ordenanças locais na França, que exi-giam contratos escritos para esse fim, foi apenascom a Ordenança Real de março de 1673 que essaregra se tornou geral.

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4. Sendo universal entre os mercadores o costumede escriturar suas operações, tanto sob a forma dediários como de livros-mestres, essas peças eramadmissíveis como prova adequada de regularida-de em favor de seus donos (Bewes, 1923, 19 ss.).

Tendo como berço os centros comerciaismais importantes – Florença, Gênova, Milão, Ve-neza, Lyon –, o direito mercantil medieval irradia-se por toda Europa pelo mimetismo das comuni-dades menos desenvolvidas, que tomam estatutosdaquelas cidades como modelos para seus pró-prios estatutos. Cristalização dos usos e costumesoriginados em uma atividade desenvolvida em re-des com malhas longas, que transcendiam demuito as fronteiras do universo cristão, ele era, jáem sua origem, transnacional.

Em outro plano, esse direito, feito por e paraos mercadores – ius mercatorum ou lex mercato-ria na linguagem culta dos juristas da época –, ti-nha duas características, uma interna e outra ex-terna, que importa registrar.

O elemento intrínseco é dado por seu cará-ter estamental. “Direito dos mercadores”, ele re-pousa em um suposto particularista: seus disposi-tivos aplicam-se a todas as transações que tenhamum comerciante, em sua qualidade de comercian-te, como parte – suas relações extra-mercantis (re-lações de família, de sucessão, relações patrimo-niais de caráter imobiliário etc.) continuavamsendo regidas pelo direito comum da terra. A qua-lificação não altera a essência do suposto. Comele, a comunidade dos mercadores proclama a suapretensão de regular seus próprios negócios, bemcomo suas relações com a sociedade circundante.

A característica extrínseca é que ele coexis-tia nessa sociedade com vários outros direitos ecom eles competia: o direito canônico, o direitofeudal, o direito régio – alimentado permanente-mente pelo trabalho dos “legistas”, que mobiliza-vam em favor da autoridade real o patrimônioinestimável do direito romano (Tigar e Levy, 1978,pp. 23-63).

Na luta pela afirmação de suas normas pró-prias e pela aceitação da natureza executória dasdecisões de suas cortes, os mercadores valiam-sede recursos de poder que detinham.

[...] o não comerciante ou estrangeiro que renun-ciasse à jurisdição mercantil perdia no futuro o di-reito de invocar a seu favor o ius mercatorum e ajurisdição mercantil, e em algumas cidades ficavaincapacitado para realizar qualquer tipo de co-mércio com membros da corporação mercantil(Galgano, 1981, p. 48).

Mas não podiam contar apenas com suas for-ças. Eles buscavam o favor dos “senhores” e dosreis, de quem obtinham, freqüentemente, prote-ção e franquias pela promessa de incremento nasrendas do tesouro que a atividade aplicada de co-merciantes e artesãos envolvia.E convém esclare-cer, para evitar o risco de um mal entendido: fran-quia nesse contexto nada tem a ver com a idéia deliberdade como ausência de constrangimento ex-terno à realização da vontade do indivíduo. Elatem conteúdos substantivos bem determinados,convertendo-se em sinônimo de privilégio. Comoos concedidos às feiras, que além de garantia adi-cional para a sanção dos julgados de seus tribu-nais próprios, eram favorecidas por disposiçõestais como a que vedava o comércio fora de seuslimites (Bewew, 1923, pp. 89-90, 105).

Nascidos nos “poros da sociedade feudal”,esses corpos estranhos ampliaram seus espaçosnela, desempenhando um papel de importânciacrescente nos conflitos que a dinamizavam, e cul-minariam por transformá-la em seus alicerces.Mas esta já é outra história.

No outro extremo de nossa linha, vemos umquadro muito diferente. Aqui, divididos em umsem-número de categorias – empresários, investi-dores; industriais, banqueiros, comerciantes; ata-cadistas, varejistas –, os sucedâneos daqueles mer-cadores operam sob o império de uma lei que sedeseja abstrata e universal. No ordenamento jurí-dico que ela conforma, o direito comercial surgecomo parte do direito privado, mas este – como odireito público – é um direito do Estado, que oproduz e o administra por intermédio de institui-ções especializadas – o Legislativo e o Judiciário.Nos termos desse direito, o “homem de negócios”perde sua especificidade, dissolvendo-se na cate-goria abstrata de indivíduo portador de direitos: ci-dadão. Em suas lides diárias, ele opera, ao contrá-rio de seus ancestrais do medievo, no contexto de

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um sistema jurídico “objetivo”, posto que referido,não à pessoa do comerciante, mas aos “atos de co-mércio”, definidos pela lei, pouco importando aorigem social de quem os efetue. Naturalmente,esse sistema não desconhece a existência de seg-mentos da sociedade cuja atividade profissional éa realização de atos desse tipo, e para os mesmosele reserva um conjunto de regras específicas. Masesse fato não o transforma em um direito corpora-tivo, pois, em contraste com o que ocorria no pas-sado, quando os mercadores constituíam umaclasse rigidamente fechada, o exercício do comér-cio sendo uma prerrogativa dos inscritos na corpo-ração, agora a condição de comerciante está aber-ta a todos os interessados, desde que disponhamde recursos (materiais e sociais) e tirocínio para seestabelecer duradouramente nessa posição.

Decerto, a forma universal e abstrata enco-bre nesse direito um outro particularismo. Nutrin-do-se do material normativo que emana perma-nentemente das práticas desenvolvidas no campoque pretende regular – o “mundo dos negócios” –,o direito comercial preserva na forma e na subs-tância de seus dispositivos o espírito que anima-va a velha lex mercatoria. Dos princípios que ca-racterizam o direito comercial – afirma umespecialista no ramo –,

[...] ressalta, em primeiro lugar, a onerosidade. Emgeral, as operações comerciais são onerosas, nãoadmitindo o direito mercantil operações a títulogratuito [...]. Há igualmente a questão das provas:sendo o direito mercantil um direito dinâmico,para justamente poder acompanhar a intensidadeda vida comercial necessita de meios de prova rá-pidos e destituídos das formalidades que em ge-ral revestem as provas do direito civil [...]. Tam-bém o direito comercial se caracteriza pela boa féem que, sem formalismo, são considerados justosos atos praticados por quem ignorava que o doloou a má fé os viciava. Esse princípio da boa fé aimperar sobre os atos comerciais dá maior rapi-dez às operações mercantis e maior segurançaaos que delas participam (Martins, 1990, p. 34).

Direito não mais de mercadores, mas deuma sociedade na qual o móvel que impelia a es-tes ganhou indiscutida preponderância, o particu-larismo do direito comercial reside em sua ten-

dência a subordinar, ao imperativo da acumula-ção, qualquer outro objetivo.7

A adaptação do direito mercantil aos reque-rimentos da economia capitalista moderna se deude forma diferente segundo os países. Em todoseles a tendência foi muito forte no século XIX desistematizar a legislação sobre a matéria em códi-gos de comércio. Na Europa, dois modelos com-petiam: o francês e o alemão. Eles serviram debase para a elaboração de códigos nessa e nasmais diversas regiões do mundo (no Brasil – assimcomo em Portugal, Rússia, Japão, entre outros paí-ses, prevaleceu a versão alemã) (Braithwait e Dra-hos, 2000, p. 49). Mesmo na Inglaterra e nos Esta-dos Unidos, onde a tradição do common law erapoderosa, o impulso em direção à codificação sefazia sentir e dava origem a códigos parciais – a leide Letra de Câmbio inglesa, de 1882, a lei federalde Instrumentos Negociáveis, nos Estados Unidos,em 1896, por exemplo. Neste último país, o movi-mento referido traduz-se também em ampliaçãoda jurisdição federal nesse campo, mantido até en-tão sob a competência das cortes estaduais (Fied-man, 1985, pp. 532-553). Histórias nacionais e tra-dições distintas; diferentes caminhos, direitosdiversos. Em todos, porém, a conjugação de trêsvetores – centralização, unificação, racionalização– definia uma mesma dinâmica básica.

Direitos nacionais e uma economia interna-cional com graus crescentes de integração. Essequadro sinótico dos marcos institucionais do capi-talismo na dobra do século XX ficaria incompletose não incluísse três outras referências.

A primeira diz respeito aos mecanismos decoordenação setorial, estabelecidos por intermé-dio de associações empresariais de diferentes paí-ses, ou impostos diretamente ao conjunto do se-tor pela firma dominante – ou por uma coalizãodelas. Disseminados pelos mais variados segmen-tos da atividade econômica, em algumas delas es-ses arranjos surgiram mais cedo e desfrutaram demaior estabilidade. O caso do transporte marítimointernacional é ilustrativo. Na década de 1870, odesenvolvimento do navio a vapor e a aberturado canal de Suez tiveram forte impacto na organi-zação do setor, que passou a enfrentar graves

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problemas de capacidade ociosa e de concorrên-cia predatória sob a forma de guerra de preços. Aresposta não tardou muito. Já em meados da dé-cada realizava-se a primeira de uma longa sériede conferências da marinha mercante, com obje-tivo de estabelecer padrões, fixar taxas e traçar ro-tas que seriam partilhadas entre os participantes.

As conferências de marinha mercante são com-postas de linhas de navegação independentesque entram em acordos secretos para estabelecertaxas e usualmente para dividir mercados em ro-tas determinadas; freqüentemente elas se empe-nham em acordos de repartição de rendas [...].Uma estratégia comum utilizada pelas conferên-cias para manter a lealdade dos armadores aosnavios da conferência é o uso de arranjos restriti-vos ou contratos de lealdade. Os contratos delealdade incluem geralmente a promessa dos ar-madores de fornecer cargueiros às linhas da con-ferência e promessas das linhas da conferência dedar descontos e taxas mais baratas aos armado-res, tudo isso com base na justificativa de que taisprocedimentos reduzem o risco, promovem a re-gularidade do serviço e reduzem os custos (Za-cher e Sutton, 1996, p. 68).

No final do século XIX, o transporte marítimointernacional era dominado por alianças interna-cionais cujo núcleo era formado por armadores,bancos comerciais e firmas seguradoras (Goldapud Cuttler, 1981, p. 306). Em 1897 os esforços decoordenação nesse setor levaram à criação do Co-mitê Marítimo Internacional, organização privadacomposta por especialistas em direito marítimo,inspirados pelo objetivo comum de promover aunificação das leis e das práticas nesse campo deatividade. Do trabalho desse organismo resultou aadoção de vinte convenções, que cobriam temastais como responsabilidade dos armadores, coli-sões marítimas, segurança naval, seguro marítimo earbitragem marítima internacional, entre outros.Em outros setores, a coordenação internacional foiassegurada pela constituição de organismos quepunham em relação firmas e agências governa-mentais de diferentes países, com a cobertura deseus respectivos governos. Esse é o caso da UniãoTelegráfica Internacional, fundada em 1865, daUnião Postal Universal, de 1874, da União Radiote-

legráfica, fundada em 1906, por exemplo.8 Sejacomo for, estruturados em torno de organizaçõespúblicas ou de arranjos, mais ou menos formaliza-dos, de caráter privado, os mecanismos internacio-nais de coordenação constituíam um aspecto sa-liente do perfil institucional da economia capitalistanaquele período.

A segunda referência concerne à importânciado direito internacional privado na viabilização dosfluxos característicos de uma tal economia. Comefeito, dada a heterogeneidade dos sistemas jurídi-cos nacionais, a movimentação internacional debens e de pessoas seria obstada se os referidos sis-temas não estivessem dotados de normas destina-das a responder a perguntas do seguinte tipo:como ajuizar da validade e da exeqüibilidade detítulos de crédito firmados no exterior? Como lidarcom os efeitos da falência de uma empresa inter-nacional, decretada pela autoridade judicial dopaís onde tem sede, sobre suas filiais estabelecidasem território doméstico? Que norma aplicar naatribuição de prioridades entre reivindicações con-correntes de direito? No trato com questões dessaordem, o direito privado internacional aciona nor-mas de origens diversas – legislativa, doutrinária,ou jurisprudencial; interna ou internacional – e denatureza distinta. Em geral essas normas são indi-retas: elas indicam que elementos do direito inter-no aplicar ao caso em consideração. Outras, po-rém, são diretas, materiais, e informam a sentençaque soluciona o conflito. No âmbito do direito co-mercial, muitas dessas normas, em ambas as cate-gorias, provêm de tratados e convenções interna-cionais. As primeiras resultam de convenções queestabelecem normas de conexão indicadoras dasleis aplicáveis, isto é, que unificam regras de solu-ção do conflito de leis; as segundas, de conven-ções que uniformizam instituições jurídicas de al-cance internacional, como a compra-e-venda, ostítulos de crédito, os transportes, as comunicaçõese a propriedade intelectual.9 Tendo adquirido con-tornos definidos em meados do século XIX, o di-reito internacional privado foi polarizado desde osseus começos pelo embate entre nacionalistas,ciosos da supremacia da lei interna, e cosmopoli-tas alimentados pela noção pré-figurativa de umacomunidade jurídica do gênero humano (cf. Hal-

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périn, 1999). No presente, essa última visão vemganhando força, e no campo que nos interessamais diretamente alimenta os esforços de organi-zações tais como a Uncitral (United Nations Com-mission on International Trade Law) e o Unidroit(Institut International pour l’Unification du Droit),que vêm se dedicando com afinco à tarefa de uni-formizar as leis nacionais de comércio guiadaspelo sonho de um código comercial único paratodo o mundo. A distância que as separa de seusprecursores no século XIX é grande. Não importa.Tanto ontem como hoje o direito internacional pri-vado é um elemento constitutivo da economia eda sociedade, e já naquela época dava alguns pas-sos nessa direção.

Chegamos, enfim, à terceira referência. O di-reito internacional privado foi permanentementealimentado, como vimos, por normas estabeleci-das em convenções. Muitas delas incluíam o reco-nhecimento do instituto da arbitragem. Mecanis-mo privado de resolução de controvérsias commáxima economia de tempo e de custos, a arbi-tragem repousa na disposição expressa das partesenvolvidas de submeter disputas atuais ou poten-ciais à decisão de um tribunal de sua escolha co-mum. Compostos por um ou mais árbitros, essestribunais observam normas e procedimentos, quevariam no tempo e no espaço, mas que se asse-melham por derivarem dos princípios gerais quecaracterizam esse instrumento. Entre eles, pode-mos destacar: a) especialização dos árbitros namatéria em causa; b) eleição da lei aplicável – am-pla autonomia das partes interessadas na decisãosobre as normas jurídicas que deverão ser usadasna solução da disputa; c) caráter terminativo dolaudo arbitral – as decisões do árbitro são defini-tivas e obrigatórias para as partes; d) livre escolhado local da arbitragem, facultada a decisão porterritórios neutros; e) privacidade e confidenciali-dade (cf. Etcheverry, 1998). Potência militar eeconômica dominante, dona da maior frota mer-cante, centro comercial mais importante e maiormercado de seguros do mundo, no século XIX aInglaterra fornecia o idioma em que os contratosinternacionais de comércio eram redigidos e o di-reito pelo qual as pendências suscitadas tendiama ser resolvidas. É que a essa altura Londres se

transformara também em sede de arbitragem pre-ferida. Para esse resultado, vários desenvolvimen-tos legais contribuíram. Primeiramente, houve adisposição crescente dos tribunais ingleses de re-conhecer o compromisso arbitral e de fazer exe-cutar os laudos deles decorrentes. Depois veio atransposição desse entendimento para a lei escrita,com a lei de arbitragem de 1889, que daria ensejo,três anos mais tarde, ao estabelecimento da Câma-ra de Arbitragem de Londres (London Chamber ofArbitration), agora conhecida como a Corte de Ar-bitragem Internacional de Londres – LCIA, (Law,1988, p. 212).

No século passado – com ímpeto cada vezmaior depois da Segunda Guerra Mundial – a ar-bitragem internacional se desenvolveu muito, ten-do se transformado hoje em um mercado de ser-viços diversificado e bastante competitivo. Marcosimportantes nesse processo foram o Protocolo deGenebra sobre Cláusulas Arbitrais, de 1923, a Con-venção de Genebra sobre a execução de sentençasarbitrais, de 1927, e a Convenção de Nova York so-bre o mesmo tema, de 1958, que inverte o ônus daprova, atribuindo-o à parte que pretenda resistirao reconhecimento ou à execução do laudo arbi-tral. Alguns autores chegam a ver na jurisprudên-cia das cortes arbitrais uma nova lex mercatoria,ordem jurídica diferente e autônoma, fundamentode um direito comercial futuro inteiramente globa-lizado. Voltaremos ao tema em outra parte desteestudo; por ora, basta registrar que, embora me-nos difundida – na realidade, objeto de forte con-trovérsia –, a arbitragem internacional era um ele-mento importante no contexto dos negóciosinternacionais no período em consideração.

Direito corporativo da comunidade de merca-dores, na Idade Média; direito positivo de caráterestatal, no capitalismo da era vitoriana. Entre umponto e outro, uma cena curiosa. Nela observamoso dueto entre um poder real, cioso de seu mono-pólio dos meios de coerção, e mercadores reco-nhecidos em seu ser coletivo, como corporação,mas convertidos em agentes do poder público.

A classe mercantil deixa de ser artífice de seupróprio direito. O direito mercantil experimentauma dupla transformação: era direito de classe e

ESTADO E MERCADO 93

se converte em direito do Estado; era direito uni-versal e se converte em direito nacional. Suasfontes são as leis do Estado vigentes nos limitesnacionais [...]. A jurisdição mercantil passa [...] dasantigas magistraturas mercantis, no seio das cor-porações, aos tribunais do Estado, concebidos,entretanto, como tribunais especiais: os magistra-dos, eleitos por uma assembléia de comerciantes,são, não obstante, nomeados pelo rei e investidosde poder soberano (Galgano, 1981, p. 68).

É no hibridismo próprio a esse ambiente que

vão surgir as primeiras leis orgânicas sobre a maté-

ria (as ordenanças francesas sobre o comércio, de

1673, e sobre a marinha, de 1681), e é nele tam-

bém que se assistirá ao nascimento de uma insti-

tuição destinada a desempenhar papel de máximo

relevo na história do capitalismo: a “sociedade

anônima”, matriz da qual vai se desenvolver mais

tarde a moderna sociedade anônima por ações.

Com essas indicações telegráficas queremos

evocar o período histórico de formação do Estado

territorial e de vigências das políticas mercantilis-

tas. Mencioná-lo pareceu necessário, porque por

esse meio podemos introduzir a contra-face do

processo que vem nos ocupando nestas páginas,

a saber, a centralização extraordinária de poder

que pôs fim ao longo ciclo de conflitos militares,

verdadeira guerra civil européia, desencadeada no

início do século XVI pelo desafio às estruturas de

autoridade vigentes lançado pelo protestantismo.

O processo de centralização dos meios de

coerção na Coroa e de consolidação territorial

conseqüente começa bem antes; e são razoavel-

mente conhecidos os fatores que o impulsionam,

embora sua combinação exata seja motivo de viva

controvérsia (cf. Tilly, 1975, 1994; Poggi, 1990;

Giddens, 1987; Mann, 1986). Não vamos nos de-

ter no assunto. Para efeitos do argumento que es-

tamos esboçando aqui, basta chamar a atenção

para três aspectos: 1) a importância decisiva da

pacificação interna para a expansão do capitalis-

mo; 2) o caráter internacional do pacto que asse-

gurou a estabilização das relações políticas em

cada unidade territorial; e 3) a centralidade nesse

processo do princípio da soberania.

A idéia dessa relação constitutiva entre paci-ficação interna e reconhecimento recíproco, pelospoderes territoriais concorrentes, de sua condiçãocomum como entes juridicamente iguais e inde-pendentes, que se expressa no conceito de sobe-rania, é formulada com clareza por Giddens:

A soberania do Estado-nacional não precede o de-senvolvimento do sistema europeu de Estados [...].Pelo contrário, o desenvolvimento da soberania doEstado depende, desde seu início, de um conjun-to de relações reflexivamente monitoradas entre osEstados [...]. As “relações internacionais” não sãoconexões formadas entre Estados preestabeleci-dos, que poderiam manter seu poder soberanosem as mesmas: elas são a base sobre a qual o Es-tado-nacional existe (Giddens, 1987, pp. 263-264).

A adoção do modelo de “livre-mercado” noséculo XIX se fez em estrita observância desseprincípio. Nesse período, assistimos, na Europa (etambém nos Estados Unidos) a um esforço con-centrado de reforma visando à adequação dosmarcos institucionais internos ao dinamismo daeconomia capitalista moderna. Por toda parte, ospaíses despojavam-se de restrições corporativasmultisseculares, redefiniam mais ou menos sutil-mente direitos consagrados de propriedade e for-javam novos entes jurídicos. A sociedade anônimaé um deles. Entes dotados de personalidade jurí-dica própria e de sucessão perpétua, as socieda-des anônimas eram conhecidas desde o séculoXVII, tendo servido de modelo para as sociedadesholandesas de exploração ultramarina das quais aCompanhia das Índias Ocidentais é a mais conhe-cida. Até meados do século XIX, porém, além deraras, essas instituições tinham caráter semi-ofi-cial. Vistas como expressão de um privilégio, jus-tificável apenas por razões de interesse coletivo,sua criação dependia, em toda parte, de autoriza-ção expressa do poder público. Esse quadro co-meça a mudar, em 1856, com a promulgação, naInglaterra, da lei que facultava o estabelecimentode companhias incorporadas por simples registro.Aberto o precedente, outros países rapidamentetomaram o mesmo caminho. O trecho citado a se-guir ajuda-nos a entender-lhes os motivos:

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[...] elas [as companhias inglesas] podiam manterseus estabelecimentos na França, porque a lei de30 de maio de 1857, votada para as sociedades bel-gas, permitia que o mesmo favor fosse acordado,por decreto imperial, a todos os outros países. Otratado de 30 de abril de 1862 havia estendido essaconcessão à Inglaterra. Então, as companhias ingle-sas livremente formadas seriam livres entre nós, en-quanto as sociedades anônimas francesas não po-diam ser criadas sem autorização? Era precisoencontrar um compromisso (Ripert, 1951, p. 61).

Como nos relata Ripert, o compromisso foibuscado mediante a criação, em 1863, de umnovo tipo de sociedade – de responsabilidade li-mitada –, uma imitação da Private Company Limi-ted inglesa. Mas a tentativa não foi bem-sucedida.Ante o clamor que crescia no mundo dos negó-cios e nos círculos intelectuais a ele vinculados,em 24 de julho de 1867 foi aprovado o projeto delei do governo que dispensava de autorizaçãoprévia a formação de sociedades anônimas naFrança. A partir daí, a novidade se difunde cele-remente. Seguindo com algum atraso as pegadasda França, o Brasil acolhe a inovação com decre-to imperial, n° 3.150, de 3 de outubro de 1882.

Mas esta é apenas uma parte da história. Ten-do conhecido longo período de fechamento, que seestendeu por um bom tempo depois de terminadasas guerras napoleônicas, a partir de 1850 as princi-pais economias européias começam a derrubar osobstáculos que embaraçavam o intercâmbio com osseus parceiros comerciais mais importantes. Comoindica David Landes, o processo de liberalizaçãocompreendeu três movimentos conjugados: 1) a re-moção ou a redução de taxas cobradas sobre o trá-fico em vias fluviais, como o Danúbio, o Reno, oElba; 2) a simplificação do sistema cambial; e 3) umasérie de tratados comerciais que reduziram substan-cialmente as barreiras tarifárias entre as principais na-ções industriais da Europa – Inglaterra-França, 1860;França-Bélgica, 1861; França-Prússia, 1862; Prússia-Bélgica, 1863 e 1865; Prússia-Inglaterra, 1865; Prús-sia-Itália, 1865, entre outros (Landes, 1969, p. 200).Com efeitos multiplicados pela operação da cláusulada nação-mais-favorecida neles incluída, esses trata-dos criaram um regime de comércio internacionalextremamente aberto, o qual, associado ao sistema

monetário e cambial do padrão ouro e à ampla liber-dade de circulação de indivíduos, constituía um doselementos centrais da Grande Transformação de quenos falava Karl Polanyi.

Esse amplo movimento de reformas foi im-pulsionado por alguns fatores gerais. Entre eles,cabe citar a prolongada atmosfera de paz produ-zida pelo Concerto Europeu, o dinamismo deriva-do da difusão da revolução industrial aos paísesdo continente, o encurtamento das distâncias pro-porcionado pela invenção do telégrafo sem fio epor um meio de transporte revolucionário: a fer-rovia. Mas a adoção das medidas concretas que oalimentavam se deu em circunstâncias que varia-vam muito de um país a outro. Nesse, como emoutros domínios, a Inglaterra havia tomado adianteira com a campanha pela revogação da Leide trigo, que projetou os nomes de Cobden e deBright – expoentes do laissez-faire – no espaçopúblico inglês e nos meios “cultivados” de todo omundo. A essa altura, o livre-câmbio convertera-se no emblema de um movimento ideológicotransnacional poderoso. Sua influência pode serintuída quando levamos em conta o fato de queo tratado de livre comércio celebrado pela Ingla-terra e a França em 1860 leva o nome de Cobdene Chevalier, dois de seus paladinos.

Kindleberger sintetiza nestes termos as con-clusões do estudo que fez sobre as mudançasoperadas nesse período:

O fato de que Luis Napoleão e Bismarck tenhamusado tratados comerciais para fins de política ex-terior sugere que o livre comércio era valoradoem si mesmo e que medidas em seu favor gran-jeariam apoio. Vistos nesta perspectiva, os paísesda Europa não deveriam ser considerados econo-mias independentes, cujas reações a vários fenô-menos podem ser adequadamente comparadas,mas antes uma entidade singular que se move emdireção ao livre comércio por razões ideológicasou doutrinárias. Manchester e os economistas po-líticos ingleses persuadiram a Grã-Bretanha, quepersuadiu a Europa – com preceitos e exemplo(Kindleberger, 1978).

Devemos enfatizar a última sentença dessejuízo. “By precepts and example”. Embora, nesse

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momento, fosse detentora de indiscutível suprema-cia econômica e militar – naval, mais especifica-mente –, a Inglaterra estava à testa de um sistemamultipolar, regido pela lógica do equilíbrio de po-der. A consideração mais cuidadosa dos fatos dapolítica internacional nessa quadra histórica e oexame dos indicadores comumente empregados naaferição das relações de poder entre grandes potên-cias levam-nos a rejeitar a suposição presente nosensaios de periodização do sistema internacionalem termos de “ciclos de hegemonia” e a concordarcom o juízo de Michael Mann, segundo o qual

A Grã-Bretanha era apenas a potência líder, quefixava as regras internacionais em negociaçãocom as outras potências. A Grã-Bretanha não eratão poderosa quanto afirmam os teóricos da he-gemonia. O Ocidente era hegemônico no mundo,mas era ainda uma civilização com estrutura depoder multipolar (Mann, 1993, p. 266).

A sabedoria da política britânica consistiaem evitar o surgimento em território continentalde uma potência suficientemente forte para amea-çar a sua posição como primus inter pares nessesistema – e de não avançar além desses limites.Mesmo se quisesse, a Inglaterra não teria meiospara induzir as grandes nações européias a ado-tar políticas comerciais de sua preferência, se es-sas nações não definissem como de seu interessetais políticas.

Mudança institucional em uma economia que se globaliza

Embora muito condensada, a apresentaçãoque acabamos de fazer contém os elementoscomparativos de que necessitamos para refletirsobre a regulação da econômica internacional –mais precisamente, sobre a questão de como sedá o processo de mudança nas instituições quearticulam a economia nesse mundo tão diferenteque habitamos hoje.

Tomemos, para iniciar, a maneira como otema da mudança institucional é tratado por umautor influente como Douglas North, que dedicou

ao mesmo uma de suas obras mais significativas.Julgamos não cometer nenhuma violência ao afir-mar que o argumento central do livro Institutions,institutional change, and economic performancepode ser resumido assim:

1. As instituições econômicas mudam ao longo dotempo como resultado de ações desencadeadaspor agentes individuais – empresários econômicosou políticos – em reação aos incentivos emanadosda infra-estrutura institucional na qual operam.2. Os principais determinantes da mudança insti-tucional são a alteração dos preços relativos e, empermanente interação com esse fator, a mudançanos gostos, ou nas preferências. Mas não só. Osmovimentos de preços chegam até nós por meiode esquemas mentais, que determinam a percep-ção que temos deles e nossa maneira de interpre-tá-los. Este o terceiro fator de mudança: as idéias,os conceitos, os quadros cognitivos e normativosque medeiam nossa relação com a realidade.3. A mudança institucional é basicamente incre-mental: ela se verifica à margem, como resultadoagregado da ação descentralizada dos agentes.Dada uma variação de preços e/ou de preferên-cias, surge um desequilíbrio parcial no mercadocorrespondente, o qual é corrigido por meio dereadaptações nos termos dos contratos firmadosentre particulares. Mas as regras formais da estru-tura institucional que valida os contratos e assegu-ra o cumprimento de seus termos não podem seralteradas dessa forma. Para mudá-las é precisoalgo mais: o desencadeamento de ações concerta-das voltadas a esse fim.4. A mudança institucional ocorre quando os in-centivos para agir nesse sentido superam os cus-tos antecipados. Em última instância, a mudançadas instituições formais resulta dos cálculos maxi-mizantes dos indivíduos. A partir daí, o que deci-de o curso do processo – se a mudança vai seproduzir, e com que alcance – é o poder de bar-ganha das partes envolvidas (os que têm a ganhare os que têm a perder com a mesma).5. Mudanças institucionais podem ser causadaspor acontecimentos traumáticos, como conquis-tas, revoluções, ou grandes catástrofes naturais, e

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afigurar-se como grandes rupturas. Mas o impac-to da quebra das regras formais costuma ser bemmenor do que se imagina, pois as normas cultu-rais se alteram muito mais lentamente do que ospreços ou as regras formais. A situação de dese-quilíbrio criada pelas transformações dramáticasserá corrigida no decurso do tempo, mediante aco-modações sucessivas – em ambas as direções –,cujo resultado tende a ser, tipicamente, uma so-ciedade muito menos distinta.6. A relação entre instituições e atores é interati-va. O arcabouço institucional determina em gran-de medida a estrutura de incentivos que prevale-ce em uma determinada sociedade. Buscandotirar o maior proveito possível das oportunidadesque o contexto institucional lhes oferece, os agen-tes individuais e coletivos desenvolvem conheci-mentos e habilidades que refletem essa estrutura,e são desigualmente recompensados segundo ograu em que são bem-sucedidos. Essa relaçãosimbiótica é compatível com a mobilização deenergias para a introdução de mudanças margi-nais, mas – no tocante aos atores mais bem situa-dos, ao menos – exclui qualquer disposição paramudanças radicais. Daí a persistência das organi-zações socioeconômicas falidas.

Reproduzimos aqui, com algumas modifica-ções, a apresentação que fizemos do argumentode North em outro lugar (Velasco e Cruz, 2003).Nesse texto, criticamos o determinismo contidoem seu esquema – a passagem direta entre poderde barganha e resultados dos embates pela defini-ção/redefinição de regras – e sua abstração exces-siva, que o leva a deixar do lado de fora esse ele-mento fundamental para a inteligência dosprocessos reais de mudança institucional, a saber,a pluralidade das ordens jurídicas nacionais e asrelações assimétricas prevalentes entre elas. Noque vem a seguir, vamos retomar a segunda des-sas observações críticas, porque ela nos conduz aocerne do problema que nos ocupa neste ensaio.

Integração espacial das relações econômicasno contexto de um sistema político territorialmen-te fragmentado: este o substrato da economia in-ternacional. Em um quadro assim, diversos comopossam ser em sua origem, os processos de mu-

dança institucional confluem para e se resolvemtodos no âmbito dos sistemas decisórios nacio-nais. É nos marcos desses sistemas que regras for-mais são alteradas ou abolidas, e outras tomam oseu lugar.

Contudo, o fato de ter como espaços privile-giados os sistemas decisórios nacionais não signi-fica que o processo de gestação de normas nessaeconomia esteja contido no interior das fronteirasque delimitam seus respectivos territórios. Comovimos, muitas das instituições que tipificaram ocapitalismo liberal na era vitoriana foram implan-tadas de maneira quase simultânea em diversaspartes do globo. Como as breves referências his-tóricas feitas neste artigo sugerem, elas se devemà ação conjugada de alguns fatores, entre os quaiscaberia destacar:

a) Mimetismo – busca mais ou menos sistemática,mais ou menos autônoma, de modelos institucio-nais ajustados aos fins perseguidos pelas elites deuma determinada sociedade. O caso mais extre-mado nessa linha talvez seja o Japão de Meiji. For-çado a abrir seus portos ao comércio internacio-nal, em 1854, pela presença ameaçadora em seulitoral dos navios de guerra sob as ordens do co-mandante Perry, pouco tempo depois o Japão selançava em um intenso programa de reformas,cujo mote foi a ocidentalização. Comitivas viajavamàs principais capitais do mundo para observar emprimeira mão o funcionamento de instituiçõeseconômicas e políticas, a fim de que os dirigentespudessem escolher dentre elas, com conhecimen-to de causa, as que mais facilmente se adaptariamàs condições de sua sociedade. Em outras circuns-tâncias, e em outra medida, este foi também o mo-delo adotado no fim do século XVIII pela jovemrepública norte-americana, modelo que encontrouexpressão lapidar na imagem do juiz Jesse Rootpara quem a justiça norte-americana deveria ope-rar como uma “colméia republicana”, cujas abe-lhas colhem o néctar de inúmeras flores mas pro-duzem um mel de sabor todo próprio (cf.Fiedman, 1985, p. 111). A consideração desse as-pecto nos leva a adicionar às duas que menciona-mos acima, mais uma observação crítica ao esque-ma de North. Neste, o vetor da mudança parte da

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sociedade e chega ao Estado. Contudo, quandoentendemos este último, não como um sistema fe-chado, mas como elemento de um sistema – o sis-tema interestatal – fica fácil constatar o caráter li-mitado daquela representação. Como unidadesdesse sistema, os Estados são induzidos a emularos padrões organizacionais dos Estados mais exi-tosos. Ora, ao fazer isso eles adotam normas e po-líticas que estão em dissonância com os padrõesdominantes nas sociedades correspondentes. Nes-se sentido, mais do que responder a pressões so-ciais por mudanças, os Estados agem propositada-mente com o fim de transformar suas respectivassociedades. Encontramos aqui a problemática doEstado desenvolvimentista. E falaríamos, então,em isomorfismo mimético, para retomar a noçãoexposta por DiMaggio e Powell (1991).b) Introdução em um contexto nacional dado deinovações institucionais induzidas pela presençaneste de agentes econômicos oriundos de outrassociedades e organizados de acordo com as leisnelas vigorantes. Tocamos aqui em um lugar co-mum na literatura sobre investimento estrangeiro:o papel da empresa internacional na difusão depacotes tecnológicos e na propagação de normase padrões operacionais mais dinâmicos na econo-mia dos países hospedeiros. Mas o elemento quedesejamos salientar é mais sutil e, ao mesmo tem-po, mais profundo: ele diz respeito às mudançaslegais condicionadas por essas empresas em virtu-de de sua simples presença. No breve relato quefizemos, esse elemento transparece na influênciaque as sociedades anônimas inglesas tiveram nacriação do ambiente que levaria à reforma da le-gislação societária na França. Obstada a mudança,os grupos empresariais franceses estariam em fran-ca desvantagem vis-à-vis os concorrentes britâni-cos com atuação em seu mercado interno. Nesseplano, também, a emulação desencadeia o proces-so que leva à mudança. Mas agora ele opera na re-lação entre os capitais; a relação destes com o Es-tado é de outra natureza.c) Em conexão estreita com os dois itens prece-dentes, o processo de difusão de normas ao lon-go das relações assimétricas estabelecidas entre ocentro metropolitano e sua periferia. Aqui, vamos

nos deparar com duas situações distintas. De umlado, casos em que a mudança se opera mediantea combinação de incentivos e sanções de nature-za político-econômica, sob direção das elites lo-cais. Em diferentes situações históricas, quandodecidem promover seus interesses por meio daexploração das oportunidades que a inserção maisprofunda na economia capitalista mundial lhesoferece, essas elites passam a se defrontar comexigências cujo cumprimento depende de sua ca-pacidade de mudar, em maior ou menor medida,a face de suas respectivas sociedades. Novos qua-dros materiais; novas instituições; usos e costu-mes, normas e valores renovados. Em todos essesplanos, a ação transformadora de tais elites e dosgrupos sociais a elas associados passa pela incor-poração em grande escala de recursos oriundosdos centros mais avançados. Deles provêm, emmedida variável, os capitais mobilizados para amontagem da infra-estrutura de transporte e decomunicações requerida pelos “novos tempos” epara a edificação de um ambiente urbano condi-zente com os padrões, agora mais elevados, de“vida civilizada”. Deles provêm as normas de con-sumo e o estilo de vida a que esses grupos sociaispassam a aspirar. Deles vêm ainda os padrões depolítica e modelos jurídicos a serem implantados.Esta a situação referida pelos teóricos da depen-dência décadas atrás. A outra situação típica con-siste na imposição das instituições econômicas docentro dominante a sociedades mantidas sob con-trole direto deste nas diferentes figuras assumidaspelo elo colonial. Foi nessa condição que se deua incorporação da África e de boa parte da Ásia naeconomia capitalista moderna.10 Não deixa de serirônico o fato de que hoje a Ásia apareça comonovo centro mundial de acumulação, passível deameaçar em futuro não muito distante a suprema-cia econômica dos Estados Unidos.d) Ações mais ou menos concertadas, porém con-vergentes, de grupos cuja identidade se define emtermos culturais. Tocamos nesse elemento aomencionar o papel importante desempenhado,em meados do século XIX, pela pregação dosarautos do livre-comércio, e devemos registraragora a enorme influência em nosso tempo de

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seus sucedâneos, os ideólogos neoliberais. Nopresente, como no passado, esses grupos e movi-mentos estruturam-se em redes que atravessam asfronteiras dos Estados, constituindo-se em ele-mentos dinâmicos do que pode ser tido comouma “sociedade civil internacional”. Hoje, comoontem, eles dividem esse espaço com outras cor-rentes de opinião, que tendem também a se estru-turar internacionalmente, e mantêm com elas re-lações mais ou menos intensas de rivalidade. Emgrande medida, o debate sobre políticas e estatu-tos legais em cada país é travado com base emconceitos e idéias que circulam nesse espaço.Não caberia introduzir aqui a questão, que temsido tão discutida hoje, sobre o papel das idéiasna explicação dos fatos sociais. Mas é à influênciadelas que Kindleberger alude ao sugerir que to-memos a Europa da segunda metade do séculoXIX com uma unidade.e) Busca de soluções efetivas para resolver proble-mas que dependiam da coordenação entre gruposde interesses e Estados. Reencontramos aqui oproblema das organizações e dos regimes, queafloramos no início deste texto, e retomamos soboutro ângulo ao falar dos cartéis internacionais.

Com tudo isso, a centralidade do Estado per-manece como o elemento distintivo do processode mudança no contexto de uma economia inter-nacional. Permeáveis, porosos, miméticos, é pormeio dos diferentes sistemas estatais que as nor-mas econômicas se afirmam como direito positi-vo, normas erga omnes, universalmente vinculan-tes, e não restritas em sua efetividade ao círculodos interessados e seus dependentes. Essa carac-terística, como vimos, não é incompatível com aconvergência. Mas confere grau mais ou menoselevado de contingência a ela. Alteradas as cir-cunstâncias que levaram às decisões geradorasdesse estado de coisas, nada garante que as dife-rentes “unidades de decisão” do sistema irão res-ponder da mesma forma aos novos estímulos pro-venientes do ambiente comum que as envolve. Éo que aconteceu no último quartel do século XIX,e acentuadamente no entre-guerras. No primeirodesses períodos, a crise internacional levou al-guns países à adoção de políticas protecionistas,

assentadas internamente no estabelecimento dealianças às vezes muito sólidas entre forças políti-cas e sociais. A referência inescapável aqui é àAlemanha bismarckiana e à aliança entre a peque-na nobreza junker e os industriais do aço. Em ou-tros, o ajuste às novas condições foi buscado pormeio da reiteração das velhas pautas, a despeitodas pressões em contrário, e ainda que ao preçode alguns ajustes não desprezíveis (caso da Ingla-terra). Em condições incomparavelmente maisdramáticas, no segundo período a busca de solu-ções nacionais para os problemas gerados pelacrise econômica internacional levaria a trajetóriasmuito mais discrepantes e a uma polarizaçãoideológica sem paralelo.11

No contexto de uma economia integrada so-breposta a um sistema territorialmente fracionadode autoridade política, a mudança institucional en-volve processos que atravessam fronteiras. Mas osEstados nacionais continuam como instâncias es-truturantes: é no quadro definido por eles e pelasrelações mútuas que estabelecem entre si – cujaexpressão jurídica é dada pelas fórmulas do direi-to internacional – que a ordem espontânea ou ne-gociada dos outros elementos se desenvolve.

No caso de uma economia plenamente glo-balizada essa condição não se verifica. Logo vere-mos por quê. Mas antes disso convém explicarmelhor o que, em nosso entender, caracterizauma tal economia.

Quando falamos em “economia global” refe-rimo-nos a um tipo ideal12 definido pela conjuga-ção dos seguintes traços: 1) supressão dos obstá-culos físicos e institucionais que insulam aseconomias nacionais, sob o efeito dos avanços re-volucionários nas tecnologias de transporte e co-municação, bem como de reformas legais que as-seguram a livre circulação, em escala global, decapitais, bens, serviços e indivíduos, garantindo-lhes ainda, em toda parte, proteção contra todotipo de tratamento discriminatório por parte dopoder público. Persistem na economia global asdiferenças decorrentes de particularismos lingüísti-cos e culturais, mas ficam drasticamente reduzidosos custos de transação envolvidos nas relaçõeseconômicas que se multiplicam exponencialmenteem todos os níveis, daí derivando, 2) a unificação

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dos mercados – de capitais, produtos e serviços –,que passam a se integrar em um espaço econômi-co do tamanho do globo, povoado por grandesempresas transnacionais, isto é, que cortaram osantigos vínculos com seus países de origem. Talespaço não é indiferenciado. Nele continuam aoperar fatores econômicos e sociais conducentes àespecialização das atividades econômicas no pla-no funcional (características técnicas e organiza-cionais dos processos de produção) e espacial(dotação de recursos naturais, aglomeração depessoal qualificado, existência ou não redes so-ciais facilitadoras de soluções para problemas decoordenação), levando ao surgimento – ou possi-bilitando a continuidade – de diferentes “sistemassociais de produção” (cf. Hollingsworth, 1998),cuja persistência dependerá do grau de maleabili-dade, da capacidade de adaptação a mudançasque puderem demonstrar, pois 3) na economiaglobal o sistema econômico ganha autonomia ex-traordinária e impõe globalmente sua lógica e seusmovimentos, contra as demandas e imperativosque provêm do domínio da política e do mundoda vida – esfera onde a comunicação alimenta asrelações sociais e as identidades individuais sãodefinidas. Em uma economia assim, na qual as ca-deias de interdependência se estendem ao máxi-mo e se entrecruzam numa infinidade de pontos,que rompeu todo e qualquer laço com a morali-dade tradicional, em que a impessoalidade é anorma e as trocas, no fundamental, são efetuadasentre estranhos, a incerteza e o risco envolvidosna interação com o outro seriam magnificados aolimite do inaceitável se não fossem contidos pelaefetividade da norma jurídica. Assim, 5) esta eco-nomia supõe o desenvolvimento de um direitoigualmente global, com a garantia coativa do po-der político.13

Esse último ponto requer um comentário,porque parece estar em franca dissonância com te-ses muito difundidas sobre a globalização. Comefeito, é um lugar comum na literatura sobre otema a idéia de que a globalização tem como co-rolário a crise do Estado, que sofre com ela per-das pesadas em sua capacidade de regular as ati-vidades econômicas e de desenvolver políticas.No limite, o Estado se esvaziaria, subsistindo de

forma residual, sujeito passivo das forças incon-troláveis dos mercados globais. Nesse contexto,assistiríamos a um processo de encolhimento e defragmentação do direito doméstico e a uma priva-tização acentuada do direito no âmbito da “eco-nomia-mundo”. Esse processo seria alimentado,de um lado, pela intensa atividade normativa aque se entregam as empresas transnacionais vi-sando a assegurar seus padrões próprios de ope-ração e a garantir a integração entre as múltiplasáreas em que atuam, e, de outro lado, pela juris-prudência das cortes privadas chamadas a resol-ver as disputas que surgem permanentemente en-tre essas empresas – os tribunais de arbitragem ea nova lex mercatoria por eles produzida (cf., porexemplo, Faria, 1999).

Existe nessa representação algo do mito daseparação entre Estado e sociedade, caro aosdoutrinadores do laissez-faire que Walter Lipp-man, em sua condição de liberal esclarecido, des-montava com observações desse tipo:

O título de propriedade é uma construção da lei.Os instrumentos são contratos legais. As empre-sas são criaturas legais. É falso, por isso, pensarnelas como coisas de algum modo existentes forada lei, e perguntar então se é permissível “inter-ferir” nelas. [...] A propriedade de qualquer espé-cie, os contratos de qualquer espécie, as empre-sas de qualquer espécie, só existem porque hácertos direitos e imunidades que podem ser ga-rantidos, uma vez tendo sido legalmente estabe-lecidos, invocando-se a autoridade do Estado. Fa-lar em deixar as coisas a si mesmas é, por issomesmo, usar uma expressão sem sentido e enga-nosa (Lippman, 1961, p. 234).

Tomando o cuidado de colocar provisoria-mente entre parêntese o termo Estado, podemosinserir essa observação no contexto da discussãoque estamos travando. Com efeito, a economia in-ternacional constitui-se como um entrelaçamentoinfinitamente complexo de relações jurídicas. Éverdade que as empresas, as corporações, geramnormas quando fixam padrões de organização in-terna e quando estabelecem relações contratuaisumas com as outras. Mas elas próprias são “criatu-ras legais”, e nem a regularidade de suas práticas,nem a segurança de seus contratos seriam imagi-

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náveis em um mundo que não estivesse dotado denormas legais sustentadas em sua efetividade pelapossibilidade de recurso ao aparato coativo do po-der público.

Não é preciso avançar na indagação sobre amaneira como essa exigência poderia vir a seratendida na situação idealizada que estamos aconsiderar aqui. Admitida a existência nela dasunidades políticas que denominamos Estados,aquele resultado poderia ser alcançado por diver-sas vias – tratados internacionais, aplicação extra-territorial da lei, harmonização –, mas, em qual-quer desses casos, presenciaríamos a instauraçãode um ordenamento legal cuja jurisdição teria o ta-manho do mundo.

Admitida a existência de unidades políticasque denominamos Estados, dissemos. Mas nãoseriam mais Estados no sentido próprio do termo.Em uma economia assim, os Estados nacionais sedissolvem, em sua qualidade de centros de poderindependentes, ainda que subsistam como reali-dades administrativas mais ou menos relevantes.No limite, poderiam ser tratados como equivalentesfuncionais de províncias de um sistema imperial, oude entidades subnacionais de uma organização fe-derativa. Nessa qualidade, continuam a exercer fun-ções importantes, em seu triplo papel de agênciasnormativas, reguladoras e provedoras de serviços.Mas a legalidade que produzem é subordinada:inscreve-se como elemento particular da ordemjurídica inclusiva.

Em uma configuração, sob tantos aspectos,sumamente complexa como essa, o processo demudança institucional adquire uma forma, curio-samente, mais simples. Isso porque estão ausen-tes dela todas as complicações criadas pela plura-lidade dos sistemas decisórios independentes. Emum quadro assim não cabe falar em relações in-ternacionais, nem em política externa. Ao seremprocessados pelo sistema público de tomada dedecisões, os problemas que surgem no intercursoeconômico e social se traduzem em questões depolítica interior. Cai por terra, portanto, a segun-da observação crítica que dirigimos a DouglasNorth. Em uma economia plenamente globalizadaa mudança das instituições formais seria determi-nada – numa das pontas da cadeia causal – pelo

movimento dos preços e dos padrões de gosto, e– na outra – pela distribuição de poder entre osagentes. Ficaria de pé a objeção ao determinismode seu esquema. Mas este é um outro assunto.

Ao falar da forma que assume a mudança ins-titucional na economia globalizada estamos cientesde que entramos no terreno da ficção. A economiaglobal, tal como definida, não existe. É um tipoideal, uma obra da imaginação. Mas é mais do queisso: é também um vetor a indicar o que fazer, ummodelo normativo implícito. Abraçado com grausvariáveis de consciência por seus aderentes, a pre-sença desse modelo se manifesta de mil formas nodebate público, no discurso de intelectuais e tec-nocratas, em documentos de organizações interna-cionais e em exposições de motivo que acompa-nham medidas de política pública. Nesse sentido,ele não interpela ninguém em particular. A difusãodesse modelo é universal, mas seu alvo privilegia-do são os grupos estrategicamente situados, commeios para traduzir seus pontos de vista em polí-ticas de Estado.

E não poderia ser de outra maneira. Pois osEstados – alguns Estados – estão na origem demuitas das iniciativas que produziram o contextogeral em que esse modelo se torna plausível, e de-pende dos Estados a criação das condições paraque avanços em direção a ele sejam possíveis.

A construção do sistema multilateral de co-mércio no pós-guerra é uma evidência da primei-ra afirmativa; outra é o esforço continuado de al-guns Estados no sentido de garantir – pelo uso dacoerção direta, ou por meio de acordos interna-cionais – os direitos de propriedade de capitaissediados em seu território quando investidos emterritórios sob a jurisdição de outros Estados (cf.Silva, 2003). A segunda afirmativa pode ser justi-ficada com uma breve referência à enorme ex-pansão da arbitragem internacional nas últimasquatro décadas, fenômeno que muitos autores in-terpretam como uma nova lex mercatoria, núcleodo direito global em formação.

Tal juízo, como se poderia imaginar, é contro-verso. A opinião dos especialistas divide-se entre aperspectiva autonomista – que sustenta a indepen-dência do direito produzido pela atividade contra-tual das empresas e pelo labor dos árbitros – e a

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perspectiva positivista, que mantém, apesar detudo, o primado do direito estatal. Mas não é pre-ciso entrar no debate. Para nossos propósitos bas-ta esclarecer um ponto em particular. Como vi-mos, um dos atributos fundamentais do institutoda arbitragem é a liberdade que ele reserva àspartes na escolha do direito nacional a que o con-trato estará referido e que será usado no julga-mento das eventuais controvérsias que ele venhaa suscitar. Na ausência de manifestação explícita aesse respeito, cabe aos árbitros dispor sobre a ma-téria, o que eles fazem com a ajuda de doutrinasextraídas da tradição do direito internacional pri-vado. Munidos desses recursos, eles decidem sevão aplicar no exame da pendência o direito des-te ou daquele país. Mas podem decidir ainda queo melhor a fazer é aplicar o direito comercial in-ternacional. Vale dizer, o conjunto de princípios enormas que compõem o quadro não codificadoda lex mercatoria. Em qualquer dos casos, porém,a sanção de seus julgados depende do reconheci-mento dos mesmos pelas autoridades judiciais dopaís em que a sentença será executada. A fre-qüência em que isso vem ocorrendo em todaspartes do mundo não é resultado de mudança nainclinação subjetiva dos juízes em cada país, masproduto de alterações no direito doméstico e deconvenções internacionais.

A constituição de uma economia plenamenteglobalizada, com o seu complemento obrigado – acriação de um ordenamento jurídico igualmenteglobal –, depende, pois, da disposição dos Esta-dos nacionais de abrir mão de poderes que foramtradicionalmente entendidos como atributos es-senciais aos mesmos como unidades soberanasdo sistema internacional.

Trata-se, portanto, de um processo genuina-mente constitucional. Mas um processo muito pe-culiar, posto que:

1. É parcelado, fragmentado em um sem-númerode decisões, de todo afastada a possibilidade deuma grande assembléia de nações que decidiriada nova arquitetura jurídica do mundo. Por issomesmo,2. é diferido – impossível dizer exatamente quan-do começou, e somente no futuro os historiado-

res poderão julgar quando se concluiu, na hipó-tese duvidosa de que ele chegue ao final.3. Envolve atores coletivos de natureza diversa –públicos e privados (Estados, organizações inter-governamentais, grupos e associações empresa-riais, organizações não-governamentais, movimen-tos sociais e correntes de opinião) – e com pesosmuito diferentes. As relações entre eles são contin-gentes; vale dizer, não dão lugar a blocos dura-douros e coerentes. Mas não são aleatórias: apesardas variações observáveis ao longo do tempo e napassagem de uma a outra questão, é possívelconstatar a existência de certos padrões de alinha-mentos, que tornam possível a identificação decampos diferenciados no espaço mais amplo ondeo processo transcorre.4. Desenvolve-se em arenas distintas, em cadauma das quais o processo envolve subconjuntosdiversos de atores, move-se sob o efeito de con-dicionamentos específicos, avança em ritmos e di-reções que lhes são próprias.5. Depende, em cada uma dessas instâncias, do re-sultado de negociações delicadas. Nessas negocia-ções conta, antes de tudo, o poder relativo das par-tes. Mas não só isso. Na disputa pela afirmação deseus interesses e na defesa das soluções institucio-nais a eles mais adequadas, em cada caso em par-ticular, os atores envolvidos invocam princípiosmais ou menos amplamente aceitos, que funcio-nam como tópos, pontos de apoio firmes a partirdos quais os argumentos podem ser formulados edefendidos com maior ou menor eficácia. “Não dis-criminação”, “soberania”, “reciprocidade”, “transpa-rência”, são alguns desses princípios. Mas eles nãosão harmônicos, freqüentemente se acomodamcom dificuldade, e não raro são de todo contraditó-rios. O fato de serem admitidos em bloco como ba-lizamento torna o debate possível e dá ao mesmoforma estruturada. Ainda que muitos desses princí-pios sejam rejeitados liminarmente por alguns, osatores que assim o fazem tendem a se posicionar àmargem. A diferença entre os ocupantes das posi-ções centrais no debate é marcada, não pela im-pugnação desse ou daquele princípio, mas pela for-ma diversa de hierarquizá-los.6. Reserva a uma categoria de atores coletivos umpapel de todo especial. Esses atores são os Esta-

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dos. Eles não são apenas diferentes dos demais:em sua dupla condição de atores – quando, combase no monopólio da representação política quedetêm, negociam diretamente acordos uns com osoutros, ou quando interagem em organizações in-ternacionais – e de arenas decisórias – quando setrata de formular as normas do direito domésticoe de definir as posições negociadoras em fórunsinternacionais –, os Estados estão no centro detodo o processo, que é por eles articulado.7. Expressa, por isso mesmo, as profundas assi-metrias que marcam o sistema internacional.

Esse processo está em curso, e a OMC é umadas arenas mais importantes entre as muitas emque ele se desenvolve.

Do GATT à OMC: direito transnacio-nal em expansão e conflito político

Normas globais para uma economia que seglobaliza. Essa, a idéia reguladora que parecia in-formar os trabalhos na rodada Uruguai do GATT.Aberta em 1986, ao cabo de quatro anos de vivacontrovérsia, a previsão era a de que no final dadécada ela estaria concluída. As dificuldades deavançar satisfatoriamente no terreno pedregosoda negociação agrícola prolongaram-na por váriosanos ainda. Mas a rodada Uruguai chegou a ter-mo, e seu resultado já foi definido como uma ver-dadeira reforma constitucional.

Uma referência rápida a dois de seus elemen-tos é o bastante para confirmar o acerto dessa ava-liação. A primeira, sobre o acordo alcançado naárea de propriedade intelectual. Seus dispositivosenvolvem, não apenas padrões gerais a serem ob-servados pelas legislações nacionais, mas tambémdisposições detalhadas sobre os procedimentosque deverão ser aplicados para sancionar direitosindividuais (e corporativos) de propriedade. Essetraço exemplifica um fenômeno geral: o desloca-mento do foco do regime de comércio, cujas disci-plinas, mais do que limitar as práticas restritivasdos governo, passam a regular positivamente polí-ticas nacionais (cf. Ostry, 2002).

A segunda, sobre a criação da OMC, com omecanismo judicial de que ela é dotada. O GATTtambém dispunha de um mecanismo institucionalde resolução de disputas, mas sua importância fi-cava extremamente reduzida pela exigência deconsenso que devia ser atendida para que o mes-mo fosse acionado. Como o país responsável emsituação irregular podia bloquear a abertura depainéis, o funcionamento do sistema favoreciamuito a busca de soluções negociadas por meiode barganhas, onde falava mais alto, evidentemen-te, a voz do mais forte. Esses incentivos não desa-pareceram de todo na OMC – a fase de consulta emediação continua sendo o primeiro estágio noprocesso de resolução de controvérsias. Mas ago-ra a possibilidade de bloquear um painel não maisexiste. Ultrapassado um limite fixo de tempo (60dias), se as partes não tiverem resolvido a pendên-cia, o Organismo de Resolução de Controvérsias(Dispute Settlement Body) pode solicitar o estabe-lecimento de um painel, o que se dá automatica-mente. Concluído o trabalho dos árbitros, que de-vem observar igualmente prazos predeterminados,se a parte perdedora considerar inaceitável o seuveredicto ela pode impetrar um recurso junto auma corte permanente de apelação, que dará apalavra final. Caso as recomendações não sejamimplementadas, depois de esgotadas as tentativasde acordo sobre compensações devidas, a partedemandante pode pedir autorização para retaliar(cf. Hoeckman, e Kostecki, 1995, p. 47). Como adiferença entre geração e interpretação de normasé sabidamente fluida, a operação desse mecanis-mo tem resultado em um processo de produçãolegal que já há algum tempo vem sendo objeto deestudo como um aspecto relevante do processomais amplo de judicialização das relações econô-micas internacionais.14

Organização intergovernamental, estruturadacom base no princípio da soberania – refletido naregra que assegura voto igual a todos seus mem-bros –, a OMC está programaticamente voltadapara a produção de normas destinadas a limitar acapacidade dos Estados de regular a atividadeeconômica e implementar políticas de desenvolvi-mento de acordo com os seus próprios critérios.

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A OMC tornou-se o foco principal de um amploprocesso de regulação da atividade econômicaglobal freqüentemente denominado “reforma re-gulatória” [...]. Ninguém com um mínimo de ex-periência sobre o modo de operação dos organis-mos públicos pode duvidar de que a reformaregulatória é muito desejável [...]. Entretanto, apredominância da OMC nesse processo cria sé-rios riscos. A OMC apóia-se em obrigações deacesso a mercado, cuja tendência é tratar as dife-renças regulatórias como obstáculos indesejáveis.Assim, suas “disciplinas” [...] tendem a requerer aremoção dos regulamentos nacionais existentes ea criar restrições significativas para os processosregulatórios nacionais (Picciotto, 2003, p. 385).

Reforma constitucional, pois. Mas incompleta.Com efeito, o balanço das realizações da rodadaUruguai acusava ganhos limitados em várias áreas –como “serviços” e “medidas comerciais relaciona-das a investimentos”, por exemplo – e áreas intei-ramente descobertas – caso, entre outros, de com-pras governamentais. Não surpreende, pois, que adisposição de manter o ímpeto reformista tenha so-brevivido a ela. E que continuasse a gerar viva con-trovérsia, como a que se acendeu na reunião mi-nisterial de Cingapura, em 1996, e terminou nadecisão salomônica de criar grupos de trabalhocom a missão de estudar quatro novos temas (“in-vestimentos”, “política de concorrência”, “comprasgovernamentais” e “facilitação de comércio”), comvistas à sua incorporação eventual na agenda denegociações de uma futura rodada. Havia ainda aintenção proclamada de trazer para o fórum daOMC os temas sensíveis dos direitos trabalhistas eda proteção ambiental – o que provocava, namaior parte dos países em desenvolvimento, Brasilincluso, reações indignadas.

Apesar das resistências localizadas, em mea-dos dos anos de 1990, o roteiro parecia estar traça-do. O que se discutia não era se, mas quando: maiscedo, ou mais tarde, a agenda globalização seriacumprida. Nos últimos anos da década passada,porém, dois eventos abalaram as certezas e acon-selharam a adoção de uma atitude mais sóbria.

Um deles foi a seqüência estonteante de cri-ses cambiais e bancárias que varreu a Ásia entre1997, passou pela Rússia em meados do ano se-guinte, bateu no Brasil em setembro e atingiu o

centro nervoso do sistema com a insolvência da fir-ma de capital de risco Long-Term Capital Manage-ment, forçando a autoridade monetária norte-ame-ricana a organizar uma operação urgente e nadaortodoxa de resgate. A volatilidade dos mercadosfinanceiros não era uma novidade no capitalismofin de siècle. Antes dos episódios que menciona-mos houve os ataques especulativos que levaram àdesvalorização da lira e da libra esterlina, em 1992,e depois, o colapso do peso mexicano, no final de1994. Mas a impressão causada por esses aconteci-mentos foi passageira: vencido o susto, os agentesvoltaram à sua rotina e continuaram a operar comtranqüilidade. O choque produzido pela débâcledas economias asiáticas foi de outra ordem. Nãoapenas pela reação em cadeia que desencadeou,mas também por ter atingido países que até diasantes eram apresentados pelos donos do saber edo dinheiro como casos exemplares de economiassaudáveis. Por ambos os motivos, as crises desseperíodo abriram um debate áspero sobre o papeldas instituições multilaterais (em especial, do FMI),e, em termos mais amplos, sobre a arquitetura dosistema financeiro internacional.

O outro evento foi o fracasso estrepitoso daconferência ministerial da OMC, que se realizouem novembro de 1999, na cidade de Seattle. Eleficará na história por seu aspecto espetacular: asmanifestações de protesto, que mobilizaram maisde 70 mil pessoas, perturbaram significativamen-te os trabalhos dos negociadores e garantiram aochamado movimento antiglobalização, em todo omundo, um espaço reservado nas manchetes dosjornais. A partir desse momento, não havia maiscomo desconhecer a presença de atores sociais –de algumas ONGs, em particular – nos processosde negociação de acordos econômicos. Eles vie-ram para ficar.

Mas não foram os responsáveis pelo impasseem Seattle, nem representam o aspecto mais im-portante do que se passou naquele local. Prejudi-cada por erros bisonhos de condução, o malogroda conferência se deveu, fundamentalmente, àsdiscordâncias profundas que dividiam seus partici-pantes oficiais. Diferenças entre as posições defen-didas pelos Estados Unidos e pela União Européia

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na questão agrícola – o que estava longe de cons-tituir uma novidade –; diferenças entre ambos e ospaíses em desenvolvimento, que sustentavam seuspontos de vista com firmeza e preparo insuspeita-dos (cf. Odell, 2002; Howse, 2002; Ostry, 2002). Aessa altura, a tensão, referida no início deste artigo,entre a regra majoritária que prevalece na OMC eo peso muito desigual de seus membros já era vi-sível. Em Doha e, sobretudo, em Cancun ela semanifestou de forma mais contundente.

Como dissemos, essa tensão é estrutural. Mas,ela é exacerbada por uma circunstância que nãopassou desapercebida aos analistas mais finos. AOMC é uma organização de fronteiras móveis. Suacompetência abrange o comércio internacional e te-mas a ele relacionados, isto é, outros tipos de me-didas suscetíveis de traduzir-se em tratamento dis-criminatório contra os produtores externos. Ora,como economia e sociedade formam, em conjunto,um sistema de elementos interdependentes, emprincípio, os mais diferentes temas podem ser trazi-dos para a jurisdição da OMC. Foi assim em suapré-história: a inclusão de “novos temas” – “servi-ços”, “propriedade intelectual” e “medidas de inves-timento relacionadas ao comércio”. Continua sendoassim no presente, como já vimos, com a disputaacirrada em torno da inclusão na rodada Doha dos“temas de Cingapura”. Pois bem, na medida emque expande sua jurisdição e passa a legislar sobrematérias tradicionalmente situadas na esfera da po-lítica doméstica, a importância da OMC cresce ex-ponencialmente no cálculo dos mais diversos ato-res (estatais e não estatais), que fazem o possívelpara atuar em seu âmbito com máxima efetividade.A contrapartida desse movimento é que a OMC ten-de a absorver os conflitos multidimensionais, super-postos e cruzados, em que esses atores se encon-tram lançados.

A dinâmica que associa ampliação do papelregulador e aumento da demanda por decisõesvinculantes sobre questões controversas é conhe-cida, e resulta com freqüência em fortalecimentoda instituição que é objeto da mesma. Essa pro-posição sintetiza uma parte não desprezível doprocesso que conduz à constituição dos Estadosnacionais modernos. Mas, aí reside o problema.Os Estados são entes caracterizados pelo controle

exercido sobre territórios – vale dizer, sobre aspopulações que os habitam. Dessa condição de-corre um conjunto de conseqüências que há maisde dois mil anos tem sido a seiva do pensamentopolítico. Porque as relações entre o Estado e osgrupos sobre os quais o seu poder é exercido sãoduradouras, elas podem se traduzir em vínculossubjetivos de pertencimento e alimentar senti-mentos fortes – de adesão ou rechaço. Aludimos,por aí, ao tema da legitimidade.

Ora, a OMC é uma entidade abstrata. É difí-cil imaginá-la como objeto de identificação paraquem quer que seja. Na medida em que passa ainternalizar conflitos em dose crescente, ela tendea enfrentar problemas de legitimidade cada vezmais graves... e não tem meios para enfrentá-los.

Mas, não poderia vir a adquiri-los? Essa é aquestão que vem sendo debatida por atores polí-ticos e analistas de diferentes áreas. As posiçõesdivergem, em um espectro que vai da proposta deconstitucionalização de direitos econômicos pormeio da articulação dos regimes de direitos hu-manos e de comércio internacional, até a defesade um claro estreitamento da agenda da organiza-ção. Não seria o caso no espaço restrito deste ar-tigo examiná-lo de perto. Mas a simples mençãoao debate nos permite enunciar a proposição quese segue: seja qual for a direção da mudança nes-se domínio, a produção de normas econômicasinternacionais tende a se dar no futuro medianteum processo cada vez mais politizado.

Será tanto mais assim quanto maior for a re-distribuição de poder operada no âmbito da eco-nomia internacional, e quanto mais graves foremos problemas por ela enfrentados.

Convém indicar, por “problemas” estou enten-dendo aqui dois aspectos combinados: a ocorrênciade desequilíbrios e distorções que se traduzam emresultados tidos por negativos sob diferentes pon-tos de vista (perda de dinamismo, queda generali-zada no ritmo de crescimento, tendência pronun-ciada à concentração regional, agravamento detensões sociais, impacto deletério sobre o meio am-biente, por exemplo) e a percepção socialmente va-lidada das conexões causais envolvidas nesses fe-nômenos. Insistir sobre este segundo aspecto éimportante, porque ele põe em realce o papel ati-

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vo dos Estados, das ONGS e dos movimentos so-ciais no processo político que define um conjuntode fenômenos como item da agenda de “proble-mas” para os quais soluções hábeis devem ser en-contradas. Isso depende da capacidade que tenhamos atores de mobilizar recursos materiais e simbóli-cos para a promoção de seus respectivos pontos devista. Há, portanto, uma relação íntima entre essesdois fatores.

Há boas razões para acreditar que os proces-sos em curso, em ambos os planos, venham a re-forçar a aludida tendência à politização das nego-ciações econômicas internacionais. O que suscita,naturalmente, a pergunta sobre as perspectivasfuturas da OMC. Mas, esta é uma questão quetranscende os limites do presente artigo. Com ela,saímos do domínio da análise e ingressamos noterreno da estratégia, em que a vontade – umavontade, contra outras vontades – dirige a inteli-gência na definição de fins e na busca de solu-ções factíveis para problemas práticos.

NOTAS

1 “Cumbre de Cancún”, La Jornada, 15/9/2003.

2 “Senador dos EUA: Brasil levou Cancún ao fracas-

so”. O Estado de S. Paulo, 18/9/2003; “Setor priva-

do dos EUA vê Brasil nos anos 70”, Folha de S.

Paulo, 13/9/2004.

3 Discurso do ministro de Estado das Relações Exte-

riores, embaixador Celso Amorim, por ocasião do

Dia do Diplomata (Brasília, 18/9/2003,

www.mre.gov).

4 “India didn’t yeld on any issue”, The Economic Ti-

mes, 16/9/2003.

5 “CII lauds the role of developing countries at Can-

cún”, The Economic Times, 16/9/2003.

6 Para uma análise do processo de produção dessa

obra e um comentário crítico sobre a edição cita-

da, ver Mommsen (2000).

7 Elaborada em outros termos, esta é a tese exposta

por Galgano no livro que tomamos como uma das

referências básicas para a elaboração desta parte. É

também uma síntese “heróica” da história detalha-

da que encontramos no trabalho grandioso de

Morton Horowitz (1977).

8 Sobre esse movimento geral, ver Murphy (1994).

Para uma apresentação crítica dessa obra, ver Ve-

lasco e Cruz (2000).

9 Para essa caracterização sumária, utilizamos o livro

de Jacob Dolinger (2003).

10 A esse respeito, ver Fieldhouse (1973), Clarence-

Smith (1999) e Rothermund (1986).

11 O contraste entre os dois períodos – e destes com

as respostas à crise da década de 1970 – é o tema

central justamente do livro aclamado de Goure-

vitch (1987).

12 Inspiramo-nos aqui no procedimento adotado por

Hirst e Thompson em seu conhecido livro sobre a

globalização, embora deles nos afastemos na des-

crição do tipo (cf. Hirst e Thompson, 1996).

13 Coincidimos, neste ponto, com a conclusão do au-

tor de um estudo muito instigante sobre as relações

entre direito e globalização. Cf. Wiener (1999).

14 Cf. os artigos reunidos por Judith Goldstein, Miles

Kahler, Robert O. Keohane e Anne-Marie Slaughter

no número temático sobre esse tema da revista In-ternational Organization, 54 (3), 2000.

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206 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 20 Nº. 57

ESTADO E MERCADO: A OMC E A CONSTITUIÇÃO (INCERTA) DE UMA ORDEM ECONÔMICA GLOBAL

Sebastião Vellasco e Cruz

Palavras-chaveOMC; Globalização; Regimes in-ternacionais; Direito comercial;Estado nacional.

Identificando como raiz das tensões

que vêm aflorando nas negociações

comerciais em curso o problema ge-

ral de como conciliar a demanda

por normas econômicas globais e a

realidade de um sistema político

centrado nos Estados, este artigo

busca na história do direito comer-

cial subsídios para refletir sobre o

papel contraditório da OMC na

construção das bases institucionais

de uma economia globalizada.

STATE AND MARKET: THEWTO AND THE CONSTITU-TION (UNSURE) OF A GLOAL ECONOMICAL ORDER

Sebastião Vellasco e Cruz

KeywordsWTO; Globalization; Internatio-nal regimes; Commercial law;National State.

This article aims at finding subsidies

in the history of commercial law to

reflect on the contradictory role of

WTO in building institutional bases

of a global economy by identifying

the general problem of conciliating

the demand for global economic ru-

les and the reality of a political sys-

tem centered in States as the core of

tensions that have been flourishing

amid ongoing commercial dealings.

ÉTAT ET MARCHÉ: L’OMC ET LA CONSTITUTION (INCERTAINE) D’UN ORDRE ÉCONOMIQUE GLOBAL

Sebastião Vellasco e Cruz

Mots-clésOMC; Globalisation; Régimesinternationaux; Droit commercial;État national.

Concilier la demande pour des nor-

mes économiques globales et la réa-

lité d’un système politique centré

dans les États : tel est le problème

général identifié lors des négocia-

tions commerciales en cours. Cet ar-

ticle cherche, à partir de l’histoire du

droit commercial, des clefs qui mè-

nent à une réflexion à propos du

rôle contradictoire de l’OMC dans la

construction des bases institution-

nelles d’une économie globalisée.