6
41 T Resumo: O artigo trata da relação entre Estado e saúde apresentando as dificuldades para a sua conceituação e a retomada da sua trajetória na Europa e no Brasil. Mostra aspectos para a reflexão desta relação com a consagração da saúde como direito social e dever do Estado pela Constituição Federal e indica os desafios postos ao Sistema Único de Saúde. Palavras-chave: política de saúde; política social; Sistema Único de Saúde. Abstract: This article deals with the connection between State and Health regarding to the difficulties of conception and concerning to the retaking of its trajectory, both in Europe and Brazil. It also provides elements to the reflection that Health is not only a social right but also a State’s duty guaranteed by Federal Constitution. This paper also points out the challenges set to the United Health System. Key words: Health Politics; Social Politics; United Health System. PAULO EDUARDO ELIAS SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 18(3): 41-46, 2004 ratar das relações entre Estado e saúde é um de- safio intelectual de porte, pois Estado admite várias conceituações segundo as distintas cor- rentes e escolas sociológicas e políticas (BOUDON; BOURRICAUD, 2001), enquanto a noção de saúde ain- da carece de definição satisfatória, isto é, fundada para além das referências à doença ou à linearidade biologis- ta e histórica contida na clássica formulação da Organi- zação Mundial de Saúde – OMS, por representar “o com- pleto bem-estar físico, psíquico e social”. Até porque as conexões entre Estado e saúde não se estabelecem de forma linear, mecânica, e não constituem vínculos de tipo causal. Antes, compõem relações complexas de nature- za socioeconômica e histórica. Desse modo, o esforço a ser desenvolvido neste tra- balho é o de buscar situar tal relação, ainda que generi- camente, a partir de uma breve recomposição dessa tra- jetória desde a emergência do Estado moderno na Europa, tomado como referência maior da natureza dessa liga- ção. A seguir, a recomposição contemplará o caso brasi- leiro até as conjunturas mais recentes e os desafios que desta perspectiva se colocam ao Sistema Único de Saú- de – SUS. Neste trabalho, o SUS é entendido como a principal política pública para o setor de saúde e o projeto maior do movimento sanitário brasileiro. No momento históri- co atual tem o desafio principal de efetivar-se como Po- lítica de Estado. Isso representa (re)significar o SUS como expressão da negociação Estado/sociedade consa- grada na Constituição Federal e, portanto, imune em seus fundamentos às naturais alternâncias de poder. É um gran- de desafio, a julgar as práticas políticas históricas e cor- rentes, vigentes nas três esferas de governo, de partida- rização da máquina pública e apropriação das políticas sociais pelos governantes em prol da lógica de sua re- produção política. Ao se recompor a trajetória do setor saúde no Brasil, serão apontados fenômenos que expres- sam a natureza dessa relação Estado/saúde. ESTADO E SAÚDE os desafios do Brasil contemporâneo

Estado e Saúde

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Estado e Saúde

Citation preview

41ESTADO E SADE: OS DESAFIOS DO BRASIL CONTEMPORNEOTResumo: O artigo trata da relao entre Estado e sade apresentando as dificuldades para a sua conceituaoearetomadadasuatrajetrianaEuropaenoBrasil.MostraaspectosparaareflexodestarelaocomaconsagraodasadecomodireitosocialedeverdoEstadopelaConstituioFederaleindicaosdesafiospostos ao Sistema nico de Sade.Palavras-chave: poltica de sade; poltica social; Sistema nico de Sade.Abstract:ThisarticledealswiththeconnectionbetweenStateandHealthregardingtothedifficultiesofconception and concerning to the retaking of its trajectory, both in Europe and Brazil. It also provides elementsto the reflection that Health is not only a social right but also a States duty guaranteed by Federal Constitution.This paper also points out the challenges set to the United Health System.Key words: Health Politics; Social Politics; United Health System.PAULO EDUARDO ELIASSO PAULO EM PERSPECTIVA, 18(3): 41-46,2004ratar das relaes entre Estado e sade um de-safiointelectualdeporte,poisEstadoadmitevrias conceituaes segundo as distintas cor-renteseescolassociolgicasepolticas(BOUDON;BOURRICAUD, 2001), enquanto a noo de sade ain-da carece de definio satisfatria, isto , fundada paraalm das referncias doena ou linearidade biologis-ta e histrica contida na clssica formulao da Organi-zao Mundial de Sade OMS, por representar o com-pleto bem-estar fsico, psquico e social. At porque asconexesentreEstadoesadenoseestabelecemdeforma linear, mecnica, e no constituem vnculos de tipocausal. Antes, compem relaes complexas de nature-za socioeconmica e histrica.Desse modo, o esforo a ser desenvolvido neste tra-balho o de buscar situar tal relao, ainda que generi-camente, a partir de uma breve recomposio dessa tra-jetria desde a emergncia do Estado moderno na Europa,tomadocomorefernciamaiordanaturezadessaliga-o. A seguir, a recomposio contemplar o caso brasi-leiro at as conjunturas mais recentes e os desafios quedesta perspectiva se colocam ao Sistema nico de Sa-de SUS.Neste trabalho, o SUS entendido como a principalpoltica pblica para o setor de sade e o projeto maiordo movimento sanitrio brasileiro. No momento histri-co atual tem o desafio principal de efetivar-se como Po-lticadeEstado.Issorepresenta(re)significaroSUScomo expresso da negociao Estado/sociedade consa-grada na Constituio Federal e, portanto, imune em seusfundamentos s naturais alternncias de poder. um gran-de desafio, a julgar as prticas polticas histricas e cor-rentes, vigentes nas trs esferas de governo, de partida-rizao da mquina pblica e apropriao das polticassociaispelosgovernantesemproldalgicadesuare-produo poltica. Ao se recompor a trajetria do setorsade no Brasil, sero apontados fenmenos que expres-sam a natureza dessa relao Estado/sade.ESTADO E SADEos desafios do Brasil contemporneoSO PAULO EM PERSPECTIVA, 18(3) 200442O ESTADO E A SADEPara apresentar os pressupostos que orientam esta abor-dagem, cabe explicar a noo de Estado utilizada. Comoj assinalado, definir Estado uma tarefa quase imposs-vel,umavezqueoseuconceitonouniversal,comonos ensina Schiera (1998), mas serve apenas para indicare descrever uma forma de ordenamento poltico surgidana Europa a partir do sculo XIII na base de pressupostose motivos especficos da histria europia, que se esten-deu a todo mundo civilizado, libertando-se das condiesoriginais e concretas de nascimento.A histria do surgimento do Estado moderno a hist-riadatensodocomplexosistemadepoderdossenho-riosdeorigemfeudalpolicntricoe,emdecorrncia,pulverizado indo at o Estado territorial concentrado eunitrio, por meio da racionalizao da gesto do poder eda prpria organizao poltica imposta pela evoluo dascondies histricas materiais. Segundo Weber (1980), talcentralizao se traduz no monoplio da fora legtima,apontandoadimensopropriamentepolticadoEstadoparaalmdeseuaspectoorganizativoefuncional.IssoimplicaapesquisadeforashistricasparaMarx,aburguesia e o proletariado que interpretaram o novo cursoesetornaramportadorasdosnovosinteressespolticosem jogo. Assim, o Estado tambm expressa relaes depoder entre interesses sociais conflitantes.Com o advento da era moderna, a sade torna-se mat-ria de Estado, isto , das polticas pblicas. justamenteno grande movimento compreendido pelo processo hist-rico do sculo XV ao XIX, em que se estabelece a ordemcapitalista na Europa, que a sade passa a ser objeto daintervenoestatalpormeiodepolticaspblicas(FOUCAULT, 1977).Esse processo histrico se caracteriza pela transio deuma lgica territorial materializada no feudo e nas rela-es sociais dele decorrentes para uma lgica setorial assinalada na formao das categorias profissionais disso-ciadas do territrio, materializada nas corporaes profis-sionaisenasrelaessociaisoriginadasporelas,queimpera a partir do sculo XIX. Da perspectiva da economiapoltica(SINGER,1975),essapassagemtraduzadisso-ciaoentreproduoereproduoeassimestabeleceacontradio entre lgicas globais e setoriais. Em tal situao,a poltica pblica torna-se o mecanismo de intermediaoentre o global (todo) e o setorial (as categorias profissionais),transformando-se em instrumento privilegiado do Estadopara minimizar as contradies e os conflitos sociais geradospelo confronto entre as duas lgicas.Por esse aspecto, as polticas pblicas constituem instru-mentosparaaatuaodoEstadoeaPolticaSocialcentral para a regulao estatal. J os pressupostos tericosdo Estado para se pensar a rea social esto centrados nareproduo da fora de trabalho. Dessa forma, a PolticaSocial como tipo particular de Poltica Pblica promovea regulao entre Estado, economia e sociedade, e ao seformularem as polticas de sade pblica, como as do SUS, exatamente esta a natureza da regulao envolvida. Em suma, a gnese da relao Estado/sade na era mo-derna a expresso da regulao estatal da sade para anova ordem social e econmica emergente a ordem bur-guesaecentradanareproduodaforadetrabalho.No entanto, tal regulao expressa as contradies e con-flitos entre o global (todo) e o setorial (parte).Assim,naInglaterra dosculoXVII, soclssicosostrabalhos iniciais de William Petty indicando a importnciadoestudoquantitativodofatosocialeincentivandoseuamigo John Graunt, comerciante londrino de roupas masculi-nas, a se colocar como um dos pioneiros da estatstica comsua obra sobre mortalidade publicada em 1662. Ela envolvea busca de regularidades matemticas em acontecimentoshumanos como nascimentos, mortes e incidncia de doenas.Em 1714, Bellers publica um tratado no qual estabelece umplano para um servio nacional de sade, que caracterizaos primrdios da estatstica vital (REGONINI, 1998).Posteriormente, no sculo XIX, a Lei dos Pobres (1834)documentaumadasprimeirasincursesdoEstadomo-derno no campo da sade. Mediante essa edio, o Esta-do provia esses indivduos por consider-los tendencial-mente perigosos para a ordem e higiene pblicas. tambmclssico o projeto levado adiante na Prssia entre 1883 e1889, por Bismark, para a construo de um sistema deseguridade social voltado para o proletariado e centradonas corporaes profissionais (lgica setorial), que con-templava a assistncia mdica individual. Tal movimentoabrange outros pases europeus, como Frana, Itlia, pa-ses nrdicos, mas na Inglaterra do incio do sculo XX,no perodo entre 1905 e 1919, que, sob um alinhamentopoltico progressista de inspirao igualitria, institui-seum seguro nacional de sade aliado a um sistema fiscalfortemente progressivo.No conjunto da Europa, a relao Estado/sade ter suaexpresso mais notvel aps a Segunda Guerra Mundial,com a constituio do Welfare State, representando o de-senvolvimento desse tipo particular de Estado que se de-nominaEstadoSocialeaindahojemuitovigorosona-quele continente. Seu princpio fundamental expresso pelopostuladodeque,independentementedarenda,todosos43ESTADO E SADE: OS DESAFIOS DO BRASIL CONTEMPORNEOcidados tm direito a ser protegidos, com pagamento emdinheiro ou servios, contra situaes de dependncia lon-ga, tais como velhice ou invalidez, e curta, como doena,desemprego e maternidade. O slogan dos trabalhistas in-glesesem1945,participaojustadetodos,resumeoconceito do universalismo da contribuio que o funda-mento do Welfare State (REGONINI, 1998).A explicao para a gnese desse tipo particular de Es-tadodivideosautoresemduascorrentesprincipais:osqueressaltamopapeldesempenhadopelosfatoreseco-nmicos(ocrescimentodaeconomiacomoseuimpul-sionador) e aqueles que acentuam a poltica (a ameaa ordemcapitalistarepresentadapelaRevoluode1917na Rssia), tema para outra oportunidade. Importa assi-nalar aqui que os estudiosos consideram o desenvolvimentodo Welfare State uma quebra da separao entre a socie-dade (ou mercado, ou esfera privada) e o Estado (ou pol-tica,ouesferapblica),talcomoconcebidonomodelode sociedade liberal.Nos pases capitalistas perifricos esse movimento re-percute desigualmente em funo das especificidades pre-sentes em cada um deles; no entanto, em todos apresentaumpadromitigadoperanteomovimentooriginrio(LAURELL, 1995). Desse modo, desenvolvem-se siste-mas de proteo especficos geralmente vinculados ao mer-cado formal de trabalho, compondo na maioria das vezessistemas previdencirios solidrios sob a gide do mto-do de repartio simples.No caso brasileiro, como veremos, o esmaecimento daseparao entre a esfera privada e a pblica explicita-seno mbito do econmico, quando o Estado se apresentacomo uma espcie de scio do capital privado, ainda quenoplanodaspolticaspblicasnosetenhaverificadonenhuma iniciativa comparvel ao modelo do Estado deBem-Estar Social.QuantorelaoEstado/sade,oadventodoEstadodeBem-EstarSocialsignificaadesmercantilizaodasade com a elevao de seu estatuto a direito universal enuclear para a cidadania plena.A RELAO ESTADO/SADE NO BRASILNoBrasil,apesardeaintervenoestatalnosetordasade ocorrer desde o perodo colonial, mais precisamentenoinciodosculoXIX(MACHADOetal.,1978),asformasmaisincisivasdaintervenosedoapartirdoperodo republicano. Na dimenso coletiva da sade, soexemplos clssicos da especificidade da regulao Estado-sociedade-economia,asintervenessanitrio-urbanasrealizadas no incio do sculo XX nas cidades dos principaisportos brasileiros Rio de Janeiro e Santos e as campanhaspela erradicao da febre amarela, que na poca assolavaessas cidades, resultando na insurgncia popular conhecidacomo revolta da vacina e a fria dos moradores dirigida aseu idealizador, o sanitarista Oswaldo Cruz (COSTA, 1985).Dados os interesses mais especficos em jogo, na di-menso individual da sade representada pela assistnciamdica que a relao Estado/sade vai revelar melhor asua especificidade no caso brasileiro.A origem da interveno estatal na assistncia sadeno Brasil tem na Lei Eli Chaves um significativo marco.Editada em 1923 perodo no qual o Estado Social j seconsolidara na Europa, e aps as movimentaes oper-rias do perodo 1910 a 1920 , estabelecia os marcos re-gulatrios para as aposentadorias, penses e assistnciamdica, numa espcie de arremedo ao que se passava naEuropa desde o sculo anterior.Vejamososmotivosdessaqualificao.Talqualosmodelos europeus, essa poltica pblica nasce vinculadaao mundo do trabalho, portanto submetida lgica seto-rial corporativa. Entretanto, no caso brasileiro, no se efe-tivouparaabrangeroconjuntodostrabalhadores,masapenaspartedeles:justamenteaquelesvinculadosaosplos mais dinmicos da economia, como os ferroviriose os porturios. Seu financiamento dava-se exclusivamentepor desconto compulsrio na folha de salrio, sem qual-quer participao de recursos fiscais do Estado.Assim, a assistncia mdica previdenciria emerge noBrasil mercantilizada sob a forma de seguro, no qual a garan-tia do acesso aos servios de sade feita com pagamentomediante desconto compulsrio, ao mesmo tempo em queseestruturaumsistemaurbanodeassistnciaquandoamaioria da populao era rural. Da mesma forma, configu-ra-se segmentado e socialmente excludente, isto , privilegiaa populao urbana em detrimento da maioria rural. Na reaurbanaatingeapenasaforadetrabalhoe,entreostrabalhadores, favorece os vinculados aos plos dinmicosdeacumulaocapitalista.Asadeassimestruturadaconcorre para o padro de regulao social denominada porSantos (1979) de cidadania regulada, mantendo-se pratica-mente intocada at o final da dcada de 80.Esse modelo centrado na lgica setorial (corporaes)tem sua expresso mais completa nos anos 30 e 40. Inicial-mente, com a estruturao dos Institutos de Aposentado-rias e Penses IAPs por categoria profissional, foi man-tida a contribuio compulsria sobre a folha de salrio e avinculaoaotrabalhoformal,possibilitandoumduplopadro na relao pblico/privado. So exemplos, o InstitutoSO PAULO EM PERSPECTIVA, 18(3) 200444deAposentadoriaePensesdosBancriosIAPB,queinvestia em servios prprios, e o Instituto de Aposentadoriae Penses dos Industririos Iapi, que comprava serviosdeterceiros.Eisatensoqueirmarcarosistemaprevidencirio brasileiro, com a poupana previdenciriaservindo de base para a reproduo do capital pela via daassistncia sade, que desta maneira inicia seu processode mercantilizao.Nos anos 40, o modelo setorial estendido aos traba-lhadores do setor pblico por meio dos sistemas de previ-dnciafechadosnasdiferentesesferasdegoverno,taiscomo o do Instituto de Previdncia dos Servidores Ipase,no mbito federal, e o do Instituto de Assistncia MdicadoServidorPblicoEstadualIampse,abrangendoosfuncionrios paulistas.A configurao pblico/privado na sade como expres-sodasuamercantilizaotemsuaexpressomaiornacriao do Instituto Nacional da Previdncia Social INPS(ps-golpemilitarde1964),quepormeiodaimple-mentaodepolticasvoltadasparaosetorprivadodasadeseconstituirempotenteinstrumentoparaaampliao da dinmica de acumulao no setor (COHN,1980). Esse novo ajuste revela a organicidade da relaoEstado/sadeemproldosinteressesdosprodutoresprivados, pois ao Estado se reservava a funo de organizara clientela, financiar a produo de servios e subsidiar oinvestimentoprivadoparaampliaodacapacidadeinstalada (COHN, 1995). Eis a o processo sociopolticoe histrico que engendra a privatizao precoce do sistemadesadebrasileirocomaconseqenteestruturaodaproduodeserviosdesadeemmoldesprivadoselucrativos, fenmeno que na Amrica Latina se iniciarapenas na dcada de 80 com o golpe militar no Chile.A CONTEMPORANEIDADE E OADVENTO DO SUSNo Brasil, o movimento de consolidao do setor pri-vado na sade ganha velocidade a partir do final da dca-da de 80, com o fechamento do ciclo de industrializaopropiciado pelo projeto nacional desenvolvimentista queorientou a ao estatal desde os anos 30.Pois justamente nesse momento histrico de grandeindefinio para o projeto econmico do Estado e em plenoprocesso de sada da ditadura militar com a redemocrati-zaodarelaoEstado/sociedade,queanoodeseguridade social consagrada na Constituio Federal.TalfatoassinalaumimportantepontodeinflexonasPolticas Pblicas de sade vigentes.Pela primeira vez nas Cartas Constitucionais brasilei-ras, a de 1988 apresenta uma seo especfica para a sa-de, consagrando-a como direito do cidado e dever do Es-tado. Esse procedimento desloca a noo de seguro social,vigente desde os anos 20, pela de seguridade, isto , se-melhana do que ocorre no Estado de Bem-Estar Social,est previsto que o acesso pleno ao sistema de sade pas-sa a no depender da renda, buscando-se garantir um novopadro de cidadania.Tal deslocamento, ao mesmo tempo em que constituium ponto de apoio para a redefinio radical das polti-caspblicas,porexigiradesmercantilizaodasade,revela-se fonte de enormes tensionamentos e conflitos aose confrontar com a realidade do acelerado processo demercantilizaodasadecomotendnciamundial.NoBrasil, esse movimento se expressa no crescimento rpi-do do sistema privado de sade (BAHIA; VIANA, 2002).Emescalaprogressiva,areadasadevaisefirmandocomo fonte para acumulao de capital.Ademais,otemadareformadoEstado,emmoldesprevistos pelo Consenso de Washington ou pela denominadaAgendaNeoliberal,comeaafazerpartedotemriodapolticabrasileirajnoinciodosanos90(OLIVEIRA,1999). A entrada se principia justamente pelo ajuste fiscaldo Estado, o que resulta em violento desfinanciamentodas polticas sociais e particularmente das de sade.O SUS, a mais ambiciosa e abrangente poltica pblicadesadejformuladanopas,emergecompletamentesitiado pela disposio da relao Estado/sociedade nessemomento histrico. De um lado, acossado pelo que pode-ramos denominar de a nova agenda de problemas, expressodaatualconformaodoEstado,representadapeloacolhimento da mercantilizao da sade caracterizada,sobretudo, pela regulamentao do sistema privado de sade(planoseseguro-sade),pelaticadoconsumidorcompletamente margem do SUS, pela adoo de parme-tros de gesto permeados pela noo de custo/efetividadeou custo/benefcio e pela flagrante insuficincia do financia-mento perante os compromissos previstos na ConstituioFederal na rea da sade (COHN; ELIAS, 2003).De outro, assomam os tradicionais problemas que com-pem persistentemente a agenda do Estado brasileiro, ex-pressos pelo patrimonialismo, pela reproduo das iniqi-dades sociais nas polticas pblicas, pela persistncia deum padro infenso a qualquer forma de controle pblico,pelaineficinciasocialdamquinapblicaeporsuasdebilidades na regulao de reas e setores estratgicosparaaemancipaosocial,comoobjetivodemitigaraimensa dvida acumulada com amplos setores da popula-o (OLIVEIRA, 1999).45ESTADO E SADE: OS DESAFIOS DO BRASIL CONTEMPORNEOComo construo poltica e histrica, vinculado ao pro-jeto de desenvolvimento do capitalismo, o SUS permeiae permeado por essas contradies em sua trajetria deafirmao como poltica pblica. Nessa medida, seme-lhana do Welfare State, no se presta a constituir um meiopara o questionamento da ordem social capitalista, comoimaginado por setores do movimento da reforma sanit-ria brasileira (ESCOREL, 1998).Ademais,durante67anosajustou-seumarelaoEstado/sadefundadananoodeseguroenoacessocontra pagamento dos servios, construindo uma culturada sade como mercadoria a ser mediada pelo mercado,realandoopagamentocomofontedelegitimaodoservio prestado e transformando o usurio em consumidorem detrimento do seu estatuto de cidado. H apenas 17anos, desde 1988, intenta-se a mudana nessa cultura oquedemandahorizontesdotempohistricopormeiodanoodeseguridadeedaafirmaodasadecomodireito universal, ainda que, como se viu, sem contar coma conformao de um Estado voltado para estes objetivos.No entanto, a efetivao do SUS tem apenas 12 anos,iniciando-se com a implementao da Norma Operacio-nal Bsica NOB 01-93, significativamente intitulada Aousadia de cumprir e fazer cumprir a Lei, marcando tam-bm um ato de vontade poltica do movimento pela muni-cipalizao da sade. Em complemento a esse processo,somente a partir de 1998, com a efetivao da NOB-01-96, ampliam-se as transferncias financeiras fundo a fun-do,isto,doFundoNacionaldeSadeparaosfundosestaduaisemunicipais,oqueircaracterizarograudeautonomia dos entes subnacionais e qualificar a descen-tralizao da sade em curso.Portanto,oSUSconstituiumapolticapblicacujoprincpiofundamentalaconsagraodasadecomodireito universal. Em razo de seu pequeno curso histri-co, encontra-se em estruturao e, por isso, vulnervel atoda sorte de investidas para consagr-lo ou para abort-lo em seu fundamento maior.A efetivao da sade, portanto, em conformidade comosditamesconstitucionais,exigeprovidnciasdevriasordens,acomearpelareformadoEstadoparatorn-locapaz de realizar a sade como direito universal. A conse-cuodesseobjetivoexigirdoEstadoaformulaodepolticasvoltadasdesmercantilizaodasadeoqueno mbito mais imediato da assistncia mdica implica oincentivo a formas no lucrativas, em detrimento das mo-dalidades lucrativas na produo de servios , e buscaincessante de novas modalidades de gesto na relao p-blico/privado, capazes de viabilizar a eficcia social do sis-tema de sade.Somente dessa maneira se criam as condies para aconstruo de uma nova e potente conscincia sanitria,fundada na noo da sade como necessidade social a serprovida nos marcos da regulao estatal e, portanto, emcontraposio ao iderio corrente da sade como bem aser satisfeito nos parmetros de mercado.A exigncia dessa nova conscincia sanitria univer-salista e cidad torna-se indispensvel para que o projetode mudana na sade, com o pleno desenvolvimento doSUS,aconteaancoradoembasessociaisslidasenoem imposio do Estado por meio de estratos polticos eoudetcnicosiluminados,encasteladosnoaparelhodeEstado. A nova conscincia sanitria ser o elemento defortalecimento da relao Estado/sociedade renovada e emproldaefetivaodasadecomodireitouniversal,im-portante passo para a vigncia de um outro padro de ci-dadania na sociedade brasileira. Ao contrrio do ideriovigente em algumas instncias decisrias do governo, oprojeto mudancista passa tambm por uma regulao decartersetorial,abarcandoascorporaesmdicosfrente sem ultrapass-las ou neg-las, a fim de efetivarum tipo de regulao que, ao englobar o conflito, seja tam-bm capaz de afirmar o interesse geral sobre o particularem prol da eficcia social da ao estatal.No entanto, nos anos 90 acentuam-se os conflitos quan-do a agenda passa a ser pautada por uma certa reforma doEstado influenciada pelo movimento da globalizao e pe-los postulados do neoliberalismo. Principalmente no terofinaldadcadade90,essareformapromoveoesmae-cimento da linha que separa o Estado do mercado, influen-ciada por iniciativas internacionais de parceria ou, me-lhor dizendo, de verdadeira sociedade entre os entes pblicoe privado, como a expanso das linhas de metr em Lon-dres e a construo de rodovias em Portugal e Espanha. Ilus-tra essa tendncia a recente Lei Federal que institui normasgerais para a parceria entre os setores pblico e privado,denominada de Parceria Pblico-Privado PPP, inicialmen-te dirigida para as reas de infra-estrutura. Transpostas paraa rea da sade, essa nova configurao representaria umaampliaodoconceitovigentenasOrganizaesSociaisde Sade OSS ou mesmo das Ocips federais que funcio-nam sob os fundamentos da concesso. No caso do estatu-to da PPP, trata-se do compartilhamento no investimento,que resulta em participao na propriedade do equipamen-to da a designao de sociedade , situao at o mo-mento inexistente no mbito das polticas sociais atuais. Taltendncia denota a crescente aproximao Estado/capita-lismo, revelada com grande crueza para os padres liberaisvigentes at meados do sculo XX, talvez expresso dessemomento histrico em que os capitais privados se impemdiante dos Estados nacionais (FURTADO, 2000).SO PAULO EM PERSPECTIVA, 18(3) 200446CONSIDERAES FINAISNo que toca mais de perto a sade, verifica-se o acirra-mento das contradies perante o processo de globalizaoem curso, no qual o complexo mdico-industrial a indstriafarmacutica, a de equipamentos e a de insumos mdicos destaca-se como um dos mais ativos plos do capitalismo,pressionando pelo crescimento da sade como mercadoriae como setor de realizao do lucro (GADELHA, 2003).No entanto, para afastar o ceticismo exacerbado e o des-nimo paralisante, convm assinalar que a poltica e sua aono se esgotam na razo, pois a poltica no uma cinciaexatacomoensinaBismark.Antesdetudoelamovidapor emoo, sangue, vontade frrea, utopias e projetos.O SUS, desafiando racionalidades, vem se mantendocomo um projeto que busca avanar na construo de umsistema universal de sade na periferia do capitalismo, numpas continental populoso e marcado por enorme desigual-dade social, caso raro ou talvez nico entre as naes. Noentanto, as possibilidades para a sade no futuro mais ime-diato encontram-se inexoravelmente atreladas ao xito doEstadonaformulaodepolticaspblicasvoltadasaoenfrentamento da excluso social, de longe a maior ma-zelabrasileira.IssoenvolveareformulaodopadrohistricodecompromissosdoEstadobrasileirocomosinteresses do capital, no momento atual implicando a dis-cussopolticamaisamplaparaoencaminhamentodasformulaes possveis na rea econmica em detrimentodo tratamento essencialmente tecnicista vigente nas esfe-ras governamentais.Na situao de manuteno ou mesmo de aprofunda-mento da excluso social, tem-se a persistncia do atualsistema de sade segmentado, seletivo no acesso aos ser-vios segundo padres de mercado, seguindo-se no SUSauniversalizaodaassistnciabsicacomoPisodaAssistncia Bsica PAB. Esse piso serve de mecanismode controle de gastos e racionalizao do setor, resultan-do em baixa eficcia social e num verdadeiro apartheidsocialnasade.NoplanodarelaoEstado/sadeessetipo de arranjo configura uma certa desresponsabilizaodo Estado para com a sade, ao mesmo tempo em que secristaliza a mentalidade privada no setor.Na situao de enfrentamento da excluso social, o SUSganhagrandealentocompondoumprojetoparaareasocial centrado na distribuio de renda e articulador, pelomenos, das funes estatais na educao, na sade e nosaneamento bsico, a fim de promover a aproximao entreas razes social e econmica, que significa resgatar a eco-nomia para o plano da poltica.Nesse ltimo caso o SUS pode representar uma enor-me contribuio genuinamente brasileira para a AmricaLatinaeparaospasesemergentesogrupodepasesque compem o G20 , alm de manter acesa a chama daesperana por uma outra sociedade possvel, justa, equ-nime e emancipadora para os seres humanos.REFERNCIAS BIBLIOGRFICASBAHIA, L.; VIANA, A.L. Introduo. In: BRASIL. Ministrio da Sade.AgnciaNacionaldeSadeSuplementar.Regulao&sade:estrutura, evoluo e perspectivas da assistncia mdica suplemen-tar. Rio de Janeiro: ANS, 2002.BOBBIO, N.; MATTEUCCI, N.; PASQUINO, G. Dicionrio de pol-tica. 11. ed. Braslia: Editora Universidade de Braslia, 1998.BOUDON,R.;BOURRICAUD,F.Dicionriocrticodesociologia.2. ed. So Paulo: tica, 2001.COHN, A. Previdncia social e processo poltico no Brasil. So Pau-lo: Moderna, 1980.________.MudanaseconmicasepolticasdesadenoBrasil.In:LAURELL, A.C. (Org.). Estado e polticas sociais no neolibera-lismo. So Paulo: Cortez, 1995.COHN,A.;ELIAS,P.E. SadenoBrasil:polticaseorganizaodeservios. 5. ed. So Paulo: Cortez/Cedec, 2003.COSTA, N.R. Lutas urbanas e controle sanitrio: origens das polti-cas de sade no Brasil. Petrpolis - RJ: Vozes, 1985.ESCOREL, S. Reviravolta na sade: origem da articulao do movi-mento sanitrio. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz, 1998.FOUCAULT,M.Onascimentodaclnica.RiodeJaneiro:ForenseUniversitria,1977.FURTADO, C. Teoria e poltica do desenvolvimento econmico. SoPaulo: Paz e Terra, 2000.GADELHA, C.A.G. O complexo industrial da sade e a necessidadede um enfoque dinmico na economia da sade. Cincia & SadeColetiva, Rio de Janeiro, v. 8, n. 2, p. 521-535, 2003.LAURELL, A.C. Avanando em direo ao passado: a poltica socialno neoliberalismo. In: LAURELL, A.C. (Org.). Estado e polticassociais no neoliberalismo.SoPaulo:Cortez,1995.MACHADO,R.etal.Danaodanorma.RiodeJaneiro:EdiesGraal,1978.OLIVEIRA, F. Privatizao do pblico, destituio da fala e anulaoda poltica: o totalitarismo neoliberal. In: OLIVEIRA, F.; PAOLI,M.C. (Org.). Os sentidos da democracia Polticas do dissenso ehegemonia global. Petrpolis - RJ: Vozes, 1999.REGONINI, G. Estado do Bem-Estar. In: BOBBIO, N.; MATTEUCCI,N.; PASQUINO, G. Dicionrio de poltica. 11. ed. Braslia: Edi-tora Universidade de Braslia, 1998.SANTOS, W.G. Cidadania e justia. Rio de Janeiro: Campus, 1979.SCHIERA, P. Estado Moderno. In: BOBBIO, N.; MATTEUCCI, N.;PASQUINO,G.Dicionrio de poltica.11.ed.Braslia:EditoraUniversidadedeBraslia,1998.SINGER, P. Introduo economia poltica. So Paulo: Forense, 1975.WEBER,M.Ospensadores.2.ed.SoPaulo:AbrilCultural,1980.(Coleo Os Pensadores Textos Selecionados).PAULO EDUARDO ELIAS: Professor do Departamento de Medicina Preven-tiva da Faculdade de Medicina da USP e Pesquisador do Cedec.