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Estado entregou a americanos colecção de arte do Novo Banco Espólio vale 50 milhões e inclui pintura, fotografia e moedas raras. Estado perdeu oportunidade de ficar com colecção na venda aos novos donos Economia, 16/17

Estado entregou a americanos colecção de arte do Novo Banco · Estado deixa património cultural do BES nas mãos dos americanos 0 conjunto de moedas raras, pinturas e fotografias

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Estado entregoua americanoscolecção de artedo Novo BancoEspólio vale 50 milhões e inclui pintura, fotografia emoedas raras. Estado perdeu oportunidade de ficarcom colecção na venda aos novos donos Economia, 16/17

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Estado deixa património culturaldo BES nas mãos dos americanos0 conjunto de moedas raras, pinturase fotografias pode ser vendido, mas nãopode sair do país, para já. Estado perdeuoportunidade de ficar com um espólioavaliado já em 50 milhões de euros

BancaCristina Ferreira

Depois de aplicar 3,9 mil milhõesde euros no Novo Banco e de abrir a

porta a injectar outro tanto, o Estadodeixou para o fundo de investimentonorte-americano Lone Star 50 mi-lhões de euros em moedas raras, fo-

tografias contemporâneas, pintura,mapas portulanos e livros quinhen-tistas. Um património cultural quecorresponde a 5% do que os texanosinvestiram na instituição liderada porAntónio Ramalho e que, fora do perí-metro público, fica à mercê da estra-

tégia cultural de cada Governo.Mais valiosa do que a colecção de

fotografia contemporânea, que foi o

motor do marketing cultural do BES,e é agora do Novo Banco, o que sedestaca no balanço do grupo domi-nado pelo fundo norte-americano é

o acervo de numismática.Da leitura dos números inscritos

em balanço percebe-se qual é o pesode cada uma das colecções: as moe-das raras estão registadas por 29 mi-lhões de euros; a fotografia por 10 mi-lhões; a pintura (94 obras) e mapasportulanos (quatro) por 10 milhões;e a Biblioteca de Estudos Humanís-ticos (Biblioteca Pina Martins) por900 mil euros. As parcelas somam50 milhões de euros, ou seja, 5% dosmil milhões que os norte-americanos

injectaram no Novo Banco para con-trolarem 75% do capital.

A colecção de numismática, com

exemplares anteriores à fundaçãodo Reino de Portugal (1139) até à im-

plantação da República (1910), incluium total de 13 mil moedas e cédu-las antigas. Há peças dos períodoshispano-romano, suevo, visigodo e

árabe, e ainda da época medieval,dos descobrimentos e dos anos doouro do Brasil.

Para além de peças dos reinados deD. Fernando, como a Dobra Pé Ter-ra, e de D. Afonso V, com o escudo,um projecto pessoal do rei, no NovoBanco ficou uma moeda em ouro,com um diâmetro de 32 milímetrose peso de 14,32 gramas, cunhada porD. Pedro I, rei do Brasil (1822-1831),

para marcar a sua coroação.E sobre o seu destino há episódios

que se contam no Banco de Portugal(BdP). Antes de o BES falir, o entãopresidente Ricardo Salgado sugeriuao supervisor a aquisição desta colec-

ção que o banco ainda guarda em co-fres expositores criados para o efeitona cave do edifício-sede, em Lisboa.Contactos que o PÚBLICO confirmou

junto de fonte do BdP.Um quadro bancário envolvido no

processo evoca que o BdP "não deuandamento depois de receber pare-ceres negativos". Mas o que registaainda hoje não é tanto o sentido da

resposta, mas um dos argumentos:"O BdP disse que já tinha no seu acer-vo exemplares idênticos aos do BES.E isto ainda que os dedos de uma

mão sejam mais do que suficientes

para contar as peças conhecidas emtodo o mundo." O que o leva a ironi-zar: "Portanto, para o BdP, era sufi-ciente ter na sua posse um exemplarraríssimo, pois ter dois já era umafartura." O que ainda hoje lhe causa

perplexidade é o que levou o Gover-no e o BdP, via Fundo de Resolução,a incluírem no pacote vendido ao Lo-ne Star um acervo que estava no seu

perímetro e que conta quase dois milanos de História.

Fotografia e arteA colecção do Novo Banco com maiornotoriedade pública é a de fotogra-fia contemporânea, registada por 10

milhões de euros, e com quase mil

peças de 300 artistas nacionais e in-ternacionais. Em Janeiro, o seu desti-no mais provável parecia ser o reno-vado Convento de São Francisco, emCoimbra. Tanto o Ministério da Cul-tura como a autarquia confirmaramentão que esse cenário estava a ser

negociado, mas até hoje não houve

quaisquer desenvolvimentos.O Novo Banco ficou ainda com 98

obras de arte, entre as quais quatrocartas náuticas portuguesas antigas

e 94 pinturas que datam desde o sé-

culo XVI até aos dias de hoje. A esco-la flamenga está bem representada,nomeadamente com uma pinturade Pieter Brueghel, o Jovem (filho),o Banquete na Aldeia, onde se podever uma ceia com muitos persona-gens e num canto, meio escondidas,duas figuras numa relação íntima.

A obra de Pieter Brueghel é a maisvaliosa da colecção de pintura (valerácerca de cinco milhões) e encontra-va-se na sala particular de RicardoSalgado, ao lado do seu gabinete, on-de este recebia os seus convidados e

clientes. E servia para o antigo ban-

queiro aliviar o "clima", mostrandoa cena mais picante.

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Outro exemplar da escola flamen-

ga está assinado por Quentin Metsys:Financeiros (1620), como a designouo banco, embora também seja conhe-cida como Agiotas. No lote de artis-tas nacionais estão José Malhoa, Silva

Porto, Josefa de Óbidos, Sousa Pinto,Helena Vieira da Silva, Árpád Szenes,

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Júlio Pomar, José Pedro Croft, João

Hogan, Nikias Skapinakis, José Gui-marães, Graça Morais, Jorge Pinhei-

ro, Júlio Resende e Angelo de Sousa.Cerca de uma vintena de obras foramemprestadas a museus nacionais, es-tando em curso novos depósitos em

instituições públicas.

Hoje, depois de o banco passarpara os norte-americanos, e se An-tónio Costa quisesse reforçar o pa-trimónio cultural do Estado comas várias colecções do Novo Banco,seria mais difícil, pois já há valori-zações no balanço da instituição.Ainda há seis meses, a colecção de

numismática estava avaliada em 25milhões de euros, mas entretanto jásubiu quatro milhões. Os 50 milhõescontabilizados em bens culturais eartísticos ajudaram António Ramalhoa valorizar o activo do banco e a me-lhorar o capital. Teria sido diferentese as autoridades tivessem excluídodo negócio o património cultural,sobretudo quando durante as con-

versações com o Governo os texanoscondicionaram a entrada na institui-

ção ao apoio dos contribuintes até3,9 milhões de euros (tendo já sido

injectados 790 milhões).O Fundo de Resolução, o vende-

dor do Novo Banco, liderado por LuísMáximo dos Santos, constata agoraque se "estes activos fossem retira-dos do balanço do Novo Banco, teria

que existir a devida compensação"e esta "situação não foi prevista nas

negociações de venda ao Lone Star"rubricadas em Novembro de 2017.Contratos que incluem dois impedi-mentos: os acervos herdados do BES

não podem ser vendidos para fora doterritório nacional sem que o Estado

autorize; e não podem ser partidos,para não se desvalorizarem.

A vendado NovoBanco aosamericanosdo LoneStar foiformalizadaem Outubrodo anopassado

Protocolo com a CulturaNas conversações, Sérgio Monteirofoi a escolha do BdP. E declinou pres-tar declarações ao PÚBLICO sobre odossier. No entanto, instado a expli-car as razões que o levaram a arras-tar para o negócio os 50 milhões de

euros de activos culturais, disse: "OMinistério da Cultura esteve envolvi-do na negociação desde o primeirominuto e a preocupação foi garantirque as colecções não são vendidas

para fora de Portugal, o que só po-de acontecer se o Estado autorizar.Mas não há impedimento à venda

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se ficarem no país." Admitiu aindaque, "como qualquer contrato, estetambém pode ser mudado".

O acordo inicial acabou por ser afi-nado já este ano, com a realizaçãode um inventário das peças avulsase a sua formalização em conjuntos.Neste quadro, o ministro da Cultura,Luís Filipe Castro Mendes, e AntónioRamalho, presidente do banco, es-tabeleceram que, "por forma a queeste património permaneça em Por-

tugal", o Novo Banco assume o com-promisso de "não o alienar, venderou ceder" sem que o Estado dê auto-

rização "prévia e por escrito". E, naperspectiva do Governo, o interesse

público fica salvaguardado.Mas na prática pode não ficar. Isto

porque os acordos que foram rubri-cados não estão blindados aos cicloseconómicos e políticos. E um Gover-no com outra sensibilidade pode teroutro entendimento. Ao PÚBLICOo Fundo de Resolução admite-o: "A

política cultural do país é da compe-tência exclusiva dos diferentes gover-nos", daí que embora "os acordos"

prevejam "expressamente que as

colecções de arte deverão sempreser mantidas em Portugal", há a pos-sibilidade de "o Estado Português"poder tomar outra decisão.

Há até exemplos. Em 2012, o inves-

tidor Miguel Paes do Amaral era pro-prietário de um obra de 1486, assina-

da pelo mestre veneziano Cario Cri-velli e que constava da lista de bensde interesse patrimonial do Estado,não podendo sair de Portugal. A suarelevância justificou um empréstimotemporário ao Museu Nacional deArte Antiga, em Lisboa.

Ora, Paes do Amaral queria vendera pintura em Paris, o Governo de Pas-

sos Coelho levantou as protecçõeslegais e a obra Virgem com o Menino,que estava em Portugal desde o finaldo século XIX, acabou por viajar até

Paris, onde foi arrematada por trêsmilhões de euros. E nem estava em

causa encaixe para o Estado.E sobra sempre o caso BPN. É

que o destino das pinturas que lhe

pertenciam, ou por compra ou pordação em pagamento, e que estão

agora na Parvalorem, continua porfechar. Passos Coelho deu orienta-

ções a Francisco Nogueira Leite, o

ainda presidente do veículo público,para colocar em mercado 283 obrasde arte que ali estavam parqueadas,com o argumento de que o Estadonecessitava de encaixe financeiro.

Na altura, na oposição, o PS travoujudicialmente a venda de 84 obras do

pintor catalão Joan Miro, a agora de-

signada Colecção Miro (que em 2017foi oficialmente integrada no Esta-

do). Mas "esqueceu-se" das restantes195 pinturas (com preço de balançode 3,5 milhões), a maioria de artistasnacionais (Amadeo de Souza Cardo-

so, Vieira da Silva, Paula Rego, entremuitos outros), que a Parvalorem,tutelada por Mário Centeno, mantémcom a indicação de venda.

Interpelado, o Novo Banco decli-nou fazer comentários. Mas o Fun-do de Resolução deixou um recado:"Dentro do enquadramento dado pe-los poderes enquanto accionista, o

Fundo de Resolução acompanha de

perto todos os assuntos relacionadoscom o Novo Banco, nomeadamentea questão do acervo cultural."[email protected]

Peças expostas emmuseus nacionais

Contrato

foi assinado já esteano entre o Ministério daCultura e o Novo Bancocom vista "à fruição

pública":

Museu Nacional dos Coches,Lisboa: pintura a óleo doséc. XVII, Entrada Solene, em

Lisboa, do Núncio ApostólicoMonsenhor Giorgio Cornaro.

Museu Francisco TavaresProença Júnior, CasteloBranco: obra do pintorflamengo Jan Fyt do séc. XVIINatureza-Morta de Flores.

Museu Nacional de ArteAntiga (MNAA), Lisboa: obrade Elisabeth Louise Vigée Le

Brun, séc. XVIII Retrato deAnneCatherine Le Preudhomme,Condessa de Verdun(permanente).

Museu da Guarda: cincoobras de artistas portuguesescontemporâneos, Nikias

Skapinakis, José de Guimarães,Júlio Resende, Luís PintoCoelho e João Hogan(permanente).

Museu José Malhoa, Caldasda Rainha: duas obras de JoséMalhoa, Ao cair da Tarde e UmColeccionador (permanente).

Museu e Centro de Artes deFigueiró dos Vinhos: obrade José Malhoa, Cuidados deAmor (permanente).

Paço dos Duques deBragança, Guimarães: obrade Jean Baptiste NicolasPillement, Paisagem comCamponeses e Rebanho.

Câmara Municipal de Setúbal:três obras de pintores dosséculos XVIII e XIX, de JoséAntónio de Faria e Barros

(Morgado de Setúbal) e JoãoVaz, e uma pintura do seu

professor e amigo, António daSilva Porto.

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A biblioteca

ABiblioteca de EstudosHumanísticos (Bibliotecade Pina Martins) encontra--se neste momento em

depósito na Faculdade de Letrasda Universidade de Lisboa

(FLUL), para que seja alvo deestudo. Integra 1100 livros

antigos, como, por exemplo,nove incunábulos, 600 peçasdo século XVI, a primeira edição

(1585) das Obras Completasde Sá de Miranda, Os Lusíadas(1613), ou as cartas régias deD. Afonso V (1432-1481) e deD. Manuel I (1469-1521). NoNovo Banco ficou igualmentemobiliário de época, mas há

muitas réplicas encomendadaspelo antigo BES à FundaçãoEspírito Santo, entidadeespecializada no restauro.