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NAO,SOCIEDADE CIVIL,ESTADO E ESTADO-NAO:UMA PERSPECTIVA HISTRICA
LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA
Junhode 2009
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TEXTO PARA DISCUSSO 189 JUNHO DE 2009 1
Os artigos dos Textos para Discusso da Escola de Economia de So Paulo da Fundao GetulioVargas so de inteira responsabilidade dos autores e no refletem necessariamente a opinio daFGV-EESP. permitida a reproduo total ou parcial dos artigos, desde que creditada a fonte.
Escola de Economia de So Paulo da Fundao Getulio Vargas FGV-EESPwww.fgvsp.br/economia
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_____________Luiz Carlos Bresser-Pereira professor emrito da Fundao Getlio [email protected] www.bresserpereira.org.br
NAO, SOCIEDADE CIVIL, ESTADOE ESTADO-NAO: UMA PERSPECTIVA HISTRICA
Luiz Carlos Bresser-Pereira
Verso de 18 de maro de 2008.
Abstract. Nation and civil society are forms of politically organized societies, the state, thecentral institution, and the nation-state the basic territorial-political unity that the CapitalistRevolution originates. Each country of a nation-state is formed of a nation or a civil society, astate, and a territory. Each state is the expression of its respective form of politically organized
society, but the relation between the state and society is explicitly dialectic in so far as eachnational society creates its state to regulate it. Since these definitions are historical, the formsof society and, correspondently, the forms of state change historically. The paper sumarizesthese historical forms.
Key-words: nation civil society State nation-state historical forms
Resumo: Nao e sociedade civil so formas de sociedades politicamente organizadas, oestado, a instituio central, e o estado-naco a unidade poltico-territorial que se formaram apartir da Revoluo Capitalista. Cada pas de um estado-nao constitudo de uma nao ouuma sociedade civil, um estado e um territrio. Cada estado a expresso de sua respectivaforma de sociedade politicamente organizada, mas a relao entre estado e sociedade explicitamente dialtica, uma vez que cada sociedade nacional cria seu estado para que este a
regule. Considerando-se que essas definies so histricas, as formas de sociedade e,correspondentemente, as formas de estado se transformam de acordo com a histria. Estetrabalho apresenta de forma sumria estas formas histricas.
Palavras-chave: nao sociedade civil Estado estado-nao formas histricas
Classificao JEL: O10 N01 N10
A instituio fundamental das sociedades capazes de produzir permanentemente excedente
econmico o Estado. Esta instituio tanto normativa quanto organizacional situa-se no
cerne das unidades poltico-territoriais, tanto as dominantes na antiguidade (os imprios e
as cidades-estado) como aquelas prprias do mundo moderno: os estados-nao. Estado e
estado-nao so, portanto, duas coisas diferentes, como so tambm diferentes nao e
sociedade, as duas formas de sociedade politicamente organizada. Existe, entretanto,
grande confuso em torno desses quatro conceitos na teoria poltica. Para uns o Estado
uma organizao com poder de legislar e tributar, para outros tambm o sistema
constitucional-legal, e para outros ainda, confunde-se com o estado-nao. A primeira
acepo, redutora, aquela que faz parte da linguagem corrente; a terceira empregada
especialmente na literatura sobre relaes internacionais. A segunda o Estado o
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sistema constitucional-legal e a organizao que o garante aquela que proponho. Na
medida em que o Estado a principal instituio de qualquer sociedade nacional, ele
compartilha as duas formas que as instituies assumem: normativa e organizacional.
Enquanto sistema normativo com poder coercitivo o Estado a ordem jurdica e o sistema
poltico; enquanto organizao o aparelho ou administrao pblica que garante o
sistema constitucional-legal. O estado-nao, tambm denominado Estado nacional ou
pas, uma unidade poltico-territorial; no deve, portanto, ser confundido com o Estado,
porque este um de seus componentes ao lado da nao ou da sociedade civil e do
territrio. Nao e sociedade civil so as duas formas atravs das quais as sociedades
modernas se organizam para controlar o Estado e realizar seus objetivos polticos.
Raramente so colocadas lado a lado, e o entendimento a respeito de seu conceito
sempre confuso. Neste trabalho, apresentarei minha viso sobre esses quatro conceitos, e
procurarei mostrar, de forma sumria, como eles se relacionam, e como se materializam
em formas histricas de sociedade e de Estado.
Revoluo Capitalista
A Revoluo Capitalista a transformao tectnica por que passou a histria na medida
em que as aes sociais deixavam de ser coordenadas pela tradio e pela religio para o
serem pelo Estado e pela principal instituio econmica por este regulada o mercado;
o processo histrico que d origem aos estados-nao que, gradualmente, vm a substituir
os imprios como forma de ocupao poltico-territorial da superfcie da terra; a
transformao poltica que separa o pblico do privado e d origem nao, sociedade
civil e ao Estado moderno; a transformao econmica que separa os trabalhadores dos
seus meios de produo e d origem, inicialmente, burguesia e classe operria, e mais
adiante classe profissional ou tecnoburocrtica; , finalmente, a transformao cultural
que torna a razo e a cincia as fontes legtimas de conhecimento em substituio
revelao e tradio. A idia de progresso e mais tarde a idia correlata de
desenvolvimento econmico constituem-se em realidade histrica a partir da Revoluo
Capitalista. Os imprios egpcio, romano e chins conheceram muitos momentos de
prosperidade, mas no havia a idia de progresso ou de desenvolvimento econmico,
porque o progresso tecnolgico era lento, de forma que no ocorria uma crescente
racionalizao econmica acompanhada por democratizao da vida poltica como
aconteceu nos pases que realizaram sua revoluo industrial. No havia condies,
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portanto, para que, primeiro os filsofos polticos, e depois os economistas e os socilogos
pudessem identificar um processo contnuo e relativamente auto-sustentado de realizao
dos objetivos polticos de liberdade, bem-estar, justia social e proteo da natureza.
O estado-nao o principal resultado poltico da Revoluo Capitalista. Esta, no planoeconmico, deu origem ao capital e s demais instituies econmicas fundamentais do
sistema capitalista: o mercado, o trabalho assalariado, os lucros, a acumulao de capital e
o desenvolvimento econmico. No plano social, surgem as trs novas classes sociais:
inicialmente, a burguesia e os trabalhadores assalariados, e, em uma segunda fase, a classe
profissional ou tecnoburocrtica. No plano poltico, alm do estado-nao, surgem a nao
e a sociedade civil. O Estado assume carter moderno e gradualmente se separa do setor
privado; torna-se, assim, expresso da sociedade organizada como sociedade civil oucomo nao, ao invs de ser mero instrumento de poder da oligarquia que domina o
prprio Estado. Os grandes objetivos polticos das sociedades modernas alm da
segurana (que j era objetivo do Estado antigo) so definidos sucessivamente liberdade
e liberalismo, autonomia nacional e nacionalismo, desenvolvimento econmico e
racionalidade instrumental ou eficientismo; justia social e o socialismo; a proteo da
natureza e o ambientalismo dos quais o Estado se torna principal instrumento.
Para que a Revoluo Capitalista pudesse se desencadear, a partir do sculo XII, na
Europa, foi necessrio que primeiro houvesse uma transformao tcnica fundamental da
agricultura, que, at o sculo XI, estava limitada quase exclusivamente a terras de aluvio;
foi o uso de arados com lminas de ferro e outras ferramentas capazes de cortar terras
duras que viabilizou a explorao das terras altas e frteis da Europa (Landes, 1999: 41).
S graas a esse progresso tcnico decisivo foi possvel produzir o excedente econmico
necessrio para que trabalhadores pudessem ser transferidos para o comrcio e a indstria
e tambm para que pudessem ser construdas as grandes catedrais gticas, quase todasdatadas do sculo XII. Celso Furtado (1961), usando com liberdade conceitos de Marx e
de Weber, identificou dois grandes momentos histricos na Revoluo Capitalista, ambos
relacionados com o processo de racionalizao crescente que caracterizar o mundo
moderno. O primeiro momento o da Revoluo Comercial a primeira sub-revoluo da
Revoluo Capitalista. Nesse longo perodo que ganha impulso nas cidades-Estado da
Itlia no sculo XIII, a racionalidade social se revelar pela definio do lucro como
objetivo econmico definido com clareza, e pela adoo da acumulao de capital comomeio de atingi-lo. O excedente originado do aumento da produtividade agrcola foi
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inicialmente investido em catedrais, em palcios e na guerra. Entretanto, a nova classe
burguesa que ento est surgindo descobre que pode lucrar e ascender socialmente atravs
do comrcio de bens de luxo realizado de forma sistemtica, ao mesmo tempo em que se
organiza sua manufatura realizada ainda de forma tradicional. A busca do lucro e a adoo
do meio racional para alcan-lo a acumulao de capital quando este primeiro
momento se define um momento no qual a unio da manufatura tradicional ao comrcio
de luxo de longa distncia d origem s cidades-estado burguesas e comerciais do Norte
da Itlia, e, depois, do resto da Europa, principalmente da Alemanha e dos Pases Baixos.
Em um segundo momento, com a Revoluo Industrial, que ocorre primeiro na Inglaterra
na segunda metade do sculo XVIII, a racionalidade social d mais um passo decisivo e
passa a se expressar atravs da escolha de um mtodo lgico de alcanar o lucro alm da
acumulao de capital: a incorporao sistemtica de progresso tcnico produo - o
progresso tcnico sistemtico. A partir de ento, no apenas o excedente econmico
passava a ser reinvestido produtivamente, mas este reinvestimento se tornava parte
necessria, inevitvel, do processo econmico na medida em que a competio econmica
tornava a incorporao de progresso tcnico condio de sobrevivncia das empresas.
Assim, somadas as duas revolues, o fenmeno histrico do desenvolvimento econmico
se configurava, e definia-se a forma por excelncia de alcan-lo: o investimento
combinado com inovao.
Entretanto, nessa anlise histrica falta uma terceira transformao fundamental que
ocorreu entre as duas citadas: a Revoluo Nacional, ou seja, a formao das naes ou
das sociedades civis nacionais e, em conseqncia, dos modernos estados-nao, Estados
nacionais ou pases.1
As trs sub-revolues da Revoluo Capitalista daro origem s
economias capitalistas ou economias de mercado. Os mercados que antes eram locais
transformam-se em mercados nacionais, e aos poucos ganham carter mundial na medidaem que, desde o sculo XVII, se forma o que Immanuel Wallerstein (1974) chamou de
sistema-mundo. Conforme assinala Karl Polanyi (1944), no houve nada de natural na
passagem dos mercados locais para os nacionais. Os mercados so instituies, so o
resultado de uma construo social. A formao dos grandes mercados nacionais foi o
resultado de estratgias polticas nacionais que, de um lado, institucionalizaram a
competio, e, de outro, foram um captulo da formao dos estados-nao. Atravs da
1Expresses que uso como sinnimas.
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compensao, um conceito particularista que inclui os cidados do pas e exclui os
estrangeiros, enquanto que a sociedade civil tem uma conotao universal e democrtica. 2
O Estado moderno uma construo social da nao ou da sociedade civil. Estas se
distinguem do povo porque este constitudo pelo conjunto dos cidados com direitosiguais, enquanto que na nao ou na sociedade civil seus membros no dispem de fato de
poder igual, mas de poder proporcional sua riqueza, a seu conhecimento e a sua
capacidade de organizao as trs origens bsicas do poder. A nao a forma de
sociedade cujos membros compartilham uma histria e um destino comum; a sociedade
politicamente organizada que conta com um Estado para realizar seus objetivos de ordem
e segurana, de autonomia nacional e de desenvolvimento econmico; a sociedade civil,
por sua vez, a sociedade politicamente organizada que luta pela liberdade individual,pela justia social e pela proteo do ambiente. O poder de cada membro da sociedade na
nao ou na sociedade civil diferente, porque est relacionado com a forma pela qual os
indivduos desenvolvem e usam seu conhecimento, seu capital e sua capacidade de
organizao. Se os usam principalmente para garantir a autonomia nacional e
desenvolvimento econmico, tero mais poder na nao; se para garantir a liberdade, a
justia e o desenvolvimento sustentvel, tero mais poder na sociedade civil.
O Estado existe desde a antiguidade, desde a formao dos primeiros imprios, sendo
apenas necessrio distinguir o Estado antigo do moderno; j nao, como a sociedade civil
e o estado-nao, so conceitos modernos so produtos da Revoluo Capitalista. A tese
da existncia de naes nas sociedades pr-capitalistas hoje uma tese amplamente
refutada por toda uma literatura ampla e recente sobre nao e nacionalismo. Eric
Hobsbawm (1990) especialmente enftico a respeito, mas o mesmo pode ser lido nos
principais analistas contemporneos do nacionalismo como Ernest Gellner (1983),
Benedict Anderson (1991), Miroslav Horsh (1993), Anne-Marie Thiesse (2001), e mesmoem Anthony D. Smith (1986, 2003) que foi durante algum tempo tentado pela tese da
existncia imemorial, de bases tnicas, da nao, mas j a abandonou. Para que haja uma
nao no basta que compartilhe uma histria e um destino comum, como sugeriu Otto
Bauer (1926), preciso tambm que disponha ou tenha condies de vir a se dotar de um
2 Observe-se que estou usando aqui a expresso sociedade civil em seu sentido clssico.Modernamente essa expresso tem sido confundida com organizaes da sociedade civil, cuja
presena aumentou muito nas sociedades atuais. Estas organizaes pblicas no-estatais deadvocacia ou controle poltico so, sem dvida, importantes em ampliar a democratizao dasociedade civil.
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Estado e de um territrio e assim formar um estado-nao. Uma nao sem Estado um
projeto de nao que s se transformar em realidade se tiver foras suficientes,
geralmente atravs de um processo violento de liberao e afirmao nacional. A
existncia da nao pressupe uma solidariedade bsica entre classes quando se trata de
competir internacionalmente. Empresrios, trabalhadores, burocratas do Estado,
profissionais de classe mdia e intelectuais podem entrar em conflito, mas sabem que
comungam de um destino comum e que esse destino depende de seu envolvimento
competitivo vitorioso no mundo dos estados-nao. A nao exige, portanto, um acordo
nacional, um contrato social bsico que d origem a ela prpria e a mantm forte e coesa.
Quando Hobbes pensou o contrato social de uma forma hipottica, ele estava ao mesmo
tempo testemunhando o processo histrico por meio do qual a Inglaterra se transformava
em uma nao atravs de um acordo social entre as classes sociais. Todos os grandes
estados-nao europeus constituram-se a partir de acordos nacionais histricos ocorridos,
e no de um hipottico contrato social original. O contrato inicial foi entre o soberano
central que precisava dos recursos da burguesia para afirmar seu poder sobre um territrio
maior e uma burguesia que precisava de segurana para suas atividades comerciais e
principalmente industriais em um espao geogrfico maior do que o da cidade-estado. O
objetivo desse acordo no era evitar a situao de guerra permanente que caracterizaria o
estado de natureza da teoria contratualista, mas constituir uma nao e um Estado
capazes de se defender em um mundo sempre hostil e de promover o interesse nacional.
Na medida em que, a partir desse acordo inicial, a sociedade foi se expandindo e se
tornando complexa, dando origem a uma classe operria urbana e, depois, a uma classe
profissional ou tecnoburocrtica, o acordo nacional foi sendo gradualmente ampliado. No
sem conflitos, que, embora permanentes, eram de alguma forma suspensos quando se
tratava da segurana e da concorrncia internacional. As naes europias formaram-se a
partir da desorganizao do Imprio Romnico-Germnico; j as demais naes tiveramque realizar lutas de liberao nacional contra imprios mercantis (da Espanha e de
Portugal) ou industriais (da Inglaterra e da Frana). O grande acordo nacional que se
estabeleceu a partir de 1930 no Brasil, cujo desenvolvimento ocorreu no quadro da
dominao imperial e do correspondente subdesenvolvimento, unia a burguesia industrial
nacional nascente nova burocracia ou aos novos tcnicos estatais, aos trabalhadores
urbanos e aos setores da velha oligarquia mais orientados para o mercado interno, como os
pecuaristas. Seus adversrios eram o imperialismo, representado principalmente pelosinteresses britnicos e norte-americanos, e a oligarquia agrrio-exportadora associada. O
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acordo estratgico em um estado-nao em desenvolvimento o acordo entre empresrios
industriais e a burocracia do Estado que inclui tambm polticos, trabalhadores e classes
mdias. E sempre haver os adversrios internos, de algum modo identificados com o
imperialismo ou com o atual neo-imperialismo sem colnias, ou com grupos locais
colaboracionistas ou globalistas.
A ideologia que serviu e continua a servir de base para os acordos nacionais o
nacionalismo. Uma nao sempre nacionalista na medida em que o nacionalismo a
ideologia da formao do estado nacional e de sua permanente reafirmao ou
consolidao. Outra maneira de definir nacionalismo afirmar, como o fez Ernest Gellner
(1983), que a ideologia que busca a correspondncia entre a nao e o Estado que
defende a existncia de um Estado para cada nao.3
Essa tambm uma boa definio,mas tpica de um pensador da Europa central que via as diversas naes sob o jugo do
Imprio Austro-Hngaro e, mais a Leste, do Imprio Russo; uma definio que se esgota
assim que o estado-nao se forma, ou seja, que nao e Estado passam a coincidir sobre
um determinado territrio. No consegue, porm, levar em conta a celebrada frase de
Ernest Renan de 1882: uma nao um plebiscito dirio, ou seja, a nao fruto de uma
luta cotidiana para mant-la viva e unida.4
E tambm no explica como um estado-nao
pode formalmente existir na ausncia de uma verdadeira nao, como no caso dos paseslatino-americanos que, no incio do sculo XIX, viram-se dotados de um Estado no
apenas em razo dos esforos patriticos de grupos nacionalistas, mas tambm em
consequncia dos bons servios da Inglaterra, cujo objetivo era substituir a Espanha e
Portugal no domnio efetivo dos pases da regio. Desse modo, como sua dependncia
cultural era grande e seu nacionalismo, fraco, esses pases viram-se dotados de um Estado
sem possurem verdadeiras naes; deixaram de ser colnias e se tornaram semicolnias
dependentes da Inglaterra, da Frana e, mais tarde, dos Estados Unidos. Para que existauma verdadeira nao, as vrias classes sociais precisam, apesar dos conflitos que as
3Ernest Gellner, um filsofo tcheco que se refugiou do comunismo na Inglaterra, foi
provavelmente o mais arguto analista do nacionalismo na segunda metade do sculo XX.4
Ernest Renan (1882 [1992: 55]). No trecho imediatamente anterior, Renan escreveu: Uma nao
uma grande solidariedade, constituda pelo sentimento dos sacrifcios feitos e daqueles que as
pessoas ainda esto dispostas a fazer. Supe um passado; resume-se no presente por um fatotangvel: o consentimento, o desejo claramente expresso de continuar a vida comum.
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separam, serem solidrias quando se trata de competir internacionalmente. Alm disso,
devem tomar decises polticas, sobretudo aquelas relativas a reformas institucionais,
poltica econmica e relaes internacionais, de acordo com critrios nacionais, ao invs
de seguirem os conselhos e presses do exterior. Nos pases que se desenvolveram
originalmente, como os europeus e os Estados Unidos, assim como nos pases em
desenvolvimento que no passado foram imprios, como o caso da China ou do Ir, o
nacionalismo forte e tcito, de forma que ningum tem dvida que dever do governo
defender o trabalho, o capital e o conhecimento nacionais. J nos pases latino-americanos
a ambigidade de suas elites, ora identificadas com a nao, ora associadas s elites dos
pases ricos uma constante (Bresser-Pereira 2008).
A sociedade civil a sociedade politicamente organizada voltada para os objetivos deliberdade individual, justia social e proteo do meio-ambiente. O conceito, portanto,
amplo, tendo origem em Hegel e na sua sociedade burguesa. Ao estudar o Estado, Hegel
percebeu no seu tempo, quando o liberalismo estava em plena expanso, que estava
ocorrendo a separao entre o pblico e o privado. Era um fenmeno semelhante ao da
separao entre os trabalhadores e os meios de produo que, no plano econmico, Marx
identificaria mais tarde. O conceito do Estado absoluto estava sendo desafiado por liberais
e democratas que rejeitavam a confuso do soberano com o Estado. No tempo do Estadoabsoluto em que essa confuso prevalecia, a expresso sociedade civil era usada como
sinnimo de sociedade poltica e, portanto, de Estado. No Estado liberal, porm, era
fundamental distinguir o Estado ou a sociedade poltica da sociedade civil que Hegel viu
com acerto ser a sociedade politicamente organizada fora do Estado e, naquele momento,
principalmente a sociedade burguesa.
Nos anos 1980, provavelmente como reao defensiva crtica ao Estado que a ideologia
neoliberal ento realizava com xito, alguns intelectuais adotaram uma perspectiva aomesmo tempo ambiciosa e reducionista de sociedade civil. Ambiciosa porque, no limite,
supuseram que ao invs de se substituir o Estado pelo mercado como queriam os
neoliberais, seria possvel substituir o Estado pela sociedade civil. claro que nenhuma
das duas substituies poderia ser feita, mas mesmos os representantes mais realistas das
esquerdas que reagiam com o neoliberalismo revelaram uma esperana utpica nas
potencialidades democrticas das organizaes da sociedade civil. Por outro lado,
procedia-se um reducionismo ao se identificar a sociedade civil com os movimentossociais e particularmente com as sociedades pblicas no-estatais de advocacia poltica e
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de servio social que geralmente so denominadas ONGs.5
Os movimentos sociais e as
organizaes de advocacia poltica so sem dvida uma parte importante da sociedade
civil, mas ela mais ampla, abrangendo todos os cidados que com seu conhecimento,
com seu capital, e com sua capacidade de organizao influenciam as decises tomadaspelo governo que dirige o Estado.
A sociedade civil, como a nao, parte integrante da esfera pblica. E ser tanto mais
parte desta esfera e no da esfera privada na medida em que seja mais forte e mais
democrtica.6
Os pases mais avanados ou mais desenvolvidos so aqueles que no
apenas possuem Estados fortes, capazes, mas tambm possuem sociedades civis ou naes
fortes, vibrantes, crticas, participativas e democrticas. O desenvolvimento ou o progresso
de uma sociedade pode ser medido pela sua aproximao paulatina aos seus grandes
objetivos polticos, mas para isto necessrio que sua nao e sua sociedade civil sejam
fortes e democrticas e constituam um Estado capaz. O que uma sociedade civil
democrtica? No evidentemente a mesma coisa que um Estado democrtico; uma
sociedade na qual os poderes polticos de seus membros so mais razoavelmente iguais ou,
pelo menos, no muito desiguais; uma sociedade na qual as diferenas de renda e de
riqueza no so grandes; uma sociedade na qual embora sempre haja os mais e os menos
poderosos, todos, alm de serem iguais perante a lei, dispem de poderes razoavelmenteiguais quando se trata de cobrar a execuo das leis. Naturalmente, quanto mais
democrtica for a sociedade civil, mais democrtico ser o Estado.
Estado
O Estado o sistema constitucional-legal e a organizao que o garante; a organizao
ou aparelho formado de polticos e burocratas e militares que tem o poder de legislar e
tributar, e a prpria ordem jurdica que fruto dessa atividade. O Estado tem, portanto,uma dupla natureza: ao mesmo tempo uma instituio organizacional a entidade com
capacidade de legislar e tributar uma determinada sociedade , e uma instituio
normativa a prpria ordem jurdica ou o sistema constitucional-legal. Neste caso, seu
5Organizaes no-governamentais. Esta uma expresso confusa, primeiro por que usa o
conceito de Estado americano (government): no-estatais uma expresso mais correta para alngua portuguesa; segundo, porque existem organizaes que so no-estatais mas no so
pblicas e sim corporativas, como o caso dos sindicatos e dos clubes.6
Discuti estas idias mais amplamente em Bresser-Pereira (1998).
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papel o de coordenar as aes sociais, tendo o mercado como instituio auxiliar mas
fundamental na tarefa de coordenao econmica. O Estado a instituio soberana
constituda de polticos, servidores pblicos e militares que dispe do poder de legislar e
tributar. , portanto, a instituio que tem o poder final de julgar e punir. Na medida em
que o Estado tem esse poder, ele a organizao que detm o poder extroverso ou
seja, um poder que se estende alm de seus membros, alm mesmo dos seus cidados, para
toda a populao presente no seu territrio. Max Weber (1919: 56) ofereceu uma definio
clssica O Estado uma comunidade humana que pretende, com xito, o uso legtimo
da fora fsica dentro de um determinado territrio , portanto, a organizao que tem,
portanto, capacidade de impor sua vontade final decidindo conflitos e punindo o que a lei
definir como crime.
Alm dessas definies descritivas, podemos definir o Estado pelo seu papel. Nessa
perspectiva, o Estado a instituio abrangente que a nao ou a sociedade civil usam
para promover seus objetivos polticos; o instrumento por excelncia de ao coletiva da
nao ou da sociedade civil. Quando afirmo que o Estado o instrumento por excelncia
de ao coletiva da nao, surge imediatamente a questo: ao invs disso, no seria ele,
conforme propuseram Marx e Engels, comit executivo da burguesia? No h, porm,
conflito entre as duas definies se pensarmos a primeira como mais geral, ou ento, comoassociada ao Estado democrtico. No sentido mais geral, o Estado, a partir da antiguidade,
foi sempre a expresso daqueles que tm poder na sociedade. Um poder que,
dialeticamente, acaba tendo tambm origem no prprio Estado, mas cuja origem principal
deve ser pensada externamente. Na antiguidade, aqueles que na sociedade controlavam a
fora, a religio e a tradio constituam uma oligarquia que dominava o Estado. Na
primeira forma de Estado capitalista, o Estado Liberal o Estado que Marx conheceu e
viveu o poder ainda estar nas mos da aristocracia, mas j est sendo transferido para a
burguesia. No Estado Democrtico dos nossos dias, a classe profissional e a classe
trabalhadora tambm partilham do poder. Podemos, assim, pensar em naes ou em
sociedades civis mais ou menos democrticas; quanto mais democrticas forem, mais
democrticos sero os respectivos Estados. Enquanto em um Estado democrtico todos os
cidados so iguais perante a lei, a sociedade civil ou a nao ser tanto mais democrtica
quanto menores forem as diferenas de poder real entre seus membros quanto menores
forem as diferenas decorrentes do dinheiro, do conhecimento, e mesmo da capacidade de
organizao ou mobilizao social.
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Quando eu defino Estado como o sistema constitucional-legal e a administrao pblica
que o garante, fica claro que Estado e Direito so quase sinnimos. O Estado mais amplo
do que o Direito na medida em que soma ordem jurdica a organizao concreta dotada
de pessoal e patrimnio que o aparelho do Estado ou administrao pblica. No por
outra razo que os grandes filsofos do Direito so sempre tambm filsofos polticos. As
teorias do Estado so, tambm, teorias do Direito; a questo fundamental da filosofia
poltica a da justificao do poder do Estado ou da legitimidade da lei; uma questo,
portanto, poltica e jurdica. A filosofia poltica busca tambm definir o contedo dos
grandes objetivos polticos o que a liberdade, o que a justia. Mas esses objetivos vo
afinal se transformar em norma ou em lei, e vo atribuir a um poder o poder do Estado
a responsabilidade pela sua consecuo. Por isso, quando procuramos identificar e
classificar as teorias do Estado, o critrio que as distingue essencialmente o da
legitimidade uma legitimidade que no apenas jurdica: tambm social e poltica. A
legitimidade aqui, portanto, entendida no seu sentido weberiano como a fonte social do
poder. Uma norma tem legitimidade quando tem o apoio necessrio da sociedade civil
para que tenha vigncia real.
A partir do critrio da legitimidade, podemos distinguir as teorias de Estado. A teoria
tradicional a teoria teolgica. O poder do Estado deriva da delegao divina de poder aosoberano. Com a renascena e a modernidade, a teoria teolgica completada pela teoria
do direito natural: o soberano detm o poder tradicional porque o responsvel pela
garantia do direito natural partilhado por todos os seres humanos, seus sditos. Hobbes e
os contratualistas provocam uma reviravolta na teoria do Estado ao afirmarem que este
tem origem em um contrato. Assim, segundo a teoria contratualista do Estado, a origem
do seu poder est no povo nos sditos que comeam a se tornar cidados. Estes,
necessitando de segurana ou de ordem pblica, cedem uma parte de sua liberdade ao
soberano para que este a garanta. No sculo XIX, Hegel formula uma terceira teoria do
Estado a teoria ideal do Estado. Hegel distingue com clareza o povo da sociedade civil e
esta do Estado, e v este como a realizao mxima da razo humana. Todo o esforo
humano se traduz na construo racional da polis. Marx e Engels, mais realistas, do
origem a uma quarta teoria do Estado quanto sua legitimidade: a teoria sociolgica ou
histrica do Estado. Concordam com os contratualistas que a origem do poder do Estado
est no povo, ou, mais precisamente, com Hegel, que esta origem est na sociedade civil
na sociedade politicamente organizada mas, pessimistas, a vem totalmente dominada
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antes pela aristocracia, e, no seu tempo, pela burguesia. Uma quinta teoria do Estado a
teoria positivista do Estado principalmente a teoria de Hans Kelsen, mas tem ampla
aceitao: o poder do Estado tem origem nele prprio, na lei positiva. Certos analistas
supem que Karl Schmitt ofereceu uma sexta teoria do Estado a teoria decisionista
segundo o poder do Estado ou a legitimidade da lei, mas, afinal, segundo ele, a deciso do
soberano deve se adequar idia de ordem uma ordem que, afinal, acaba no se
distinguindo de uma concepo conservadora do direito natural.7
Em ltima anlise, estas cinco teorias podem ser reduzidas a trs, dependendo do mtodo
utilizado para compreender o Estado. Quando buscamos a legitimidade fora da sociedade
em Deus, ou na natureza, ou no prprio Estado estamos usando um mtodo normativo
de acordo com o qual o problema da legitimidade social do poder perde relevncia: o queimporta a legitimidade moral: a teoria do Estado normativa. No caso da segunda teoria
a contratualista , a legitimidade se origina na sociedade, mas deduzida a partir de um
hipottico estado de natureza e da necessidade social de um contrato, de forma que
ficamos sem poder compreender as diversas formas histricas que o Estado assumir. S a
teoria sociolgica do Estado permite essa anlise histrica, porque de acordo com ela o
poder do Estado depende da sua legitimidade social, a qual, por sua vez, depender da
relao de poder entre a elite dirigente desse Estado e a sociedade civil ou a nao, ou, emoutras palavras, depender do grau de democratizao da sociedade civil ou da nao.
Estado-nao
O estado-nao a unidade poltico-territorial prpria do capitalismo; constituda de
uma nao ou uma sociedade civil, de um Estado, e de um territrio. Uso como sinnimos
de estado-nao, Estado nacional e pas. Na literatura sobre relaes internacionais, a
expresso simples, geralmente no plural e em minscula, estados corresponde ao queestou aqui chamando de estado-nao. Nos Estados Unidos principalmente, a palavra
nao corresponde ao estado-nao. Tanto em um caso como em outro podemos pensar
que esta simplificao resultado de uma sindoque, de uma figura de linguagem que
toma o todo pela parte: o todo o estado-nao, a parte, o Estado em um caso, a nao, no
outro. A expresso estado-nao apresenta um problema: ela pode sugerir que sob um
7 Segundo Ronaldo Porto Macedo Jr. (2001: 42), O pensamento decisionista, tal comoaparece na histria do direito, est vinculado a uma idia de ordem que pressuposta deciso soberana.
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Estado s pode haver uma nao, o que no necessariamente verdadeiro. A Gr-
Bretanha, a Blgica e a Espanha, por exemplo, at hoje no lograram se constituir em uma
nica nao. Os europeus esto gradualmente construindo um estado-nao que
claramente multinacional. Tem, em compensao, a vantagem de mostrar o carter
composto desta unidade poltico-territorial. E deixa tambm claro seu carter soberano
sua condio de ltima instncia para as decises judiciais. Este carter soberano nunca foi
absoluto, nem mesmo no tempo em que Jean Bodin (1529-96) o identificou nos albores da
formao dos estados-nao.
Para compreender o estado-nao preciso distingui-lo do imprio. Enquanto os imprios
eram a forma por excelncia de organizao poltica territorial da antiguidade, os estados-
nao desempenharo esse papel nos tempos modernos ou capitalistas. verdade quetambm se formaram imprios modernos mercantis (principalmente da Espanha e de
Portugal) e industriais (principalmente da Inglaterra e da Frana), mas estas so formas
poltico-territoriais mistas. H uma diferena fundamental entre o imprio antigo e o
estado-nao moderno. Enquanto o poder imperial se limitava a cobrar impostos da
colnia, deixando intactas sua organizao econmica e sua cultura, os estados-nao
esto voltados para o desenvolvimento econmico e, por isso, diretamente envolvidos na
competio internacional por maior poder e maiores taxas de crescimento. Para isso,buscam homogeneizar sua cultura, dotando-se de uma lngua comum, para, atravs da
educao pblica, poder garantir que padres crescentes de produtividade sejam
compartilhados por toda a populao; e os respectivos governos passam a ser os
condutores do processo de desenvolvimento econmico atravs da definio de
instituies que estimulem o investimento, da adoo de polticas macroeconmica que
garantam a estabilidade de preos, taxas de juros moderadas e taxas de cmbio
competitivas, e de polticas industriais que favoream as empresas nacionais na
concorrncia internacional.
A formao dos estados-nao comea bem depois do incio da Revoluo Capitalista.
Esta comea com o surgimento da burguesia no sculo XII um sculo de grande
prosperidade na Europa , mas s no sculo XVI podemos ver com clareza surgirem os
modernos estados-nao. Isto se explica porque a Revoluo Comercial, sendo baseada no
comrcio de longa distncia, prescindia o territrio extenso e populao numerosa que ir
caracterizar os grandes mercados internos dos estados-nao. A Revoluo Industrial,porm, cujas bases a Inglaterra principalmente comea a construir no sculo XVI, exigir
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um mercado como amplo na medida em que implicava investimentos elevados em capital
fixo que no podiam ficar merc dos azares do comrcio de longa distncia. Assim, o
estado-nao ser fruto da aliana entre uma parte da aristocracia militar e proprietria de
terras aquela associada ao monarca ou ao poder central e a burguesia nascente que para
se tornar industrial e ganhar estabilidade necessitava de grandes mercados internos.
Charles Tilly (1975, 1992) foi um dos muitos historiadores e socilogos que analisaram
com clareza essa aliana. Atravs do demorado processo de institucionalizao poltica e
econmica que o da formao do estado-nao, empresrios, polticos, burocratas
pblicos e trabalhadores formam a nao. A constituio dos Estados nacionais e,
portanto, de mercados amplos e seguros para os empresrios investirem na indstria foi,
por sua vez, a condio da Revoluo Industrial, inicialmente na Inglaterra, na Blgica e
na Frana. A partir da a industrializao se confundir com o prprio desenvolvimento
econmico na medida em que ser a forma pela qual as sociedades aumentaro seu valor
adicionado per capita atravs da transferncia da mo-de-obra da agricultura para
atividades industriais exigindo pessoal mais qualificado. Para que a industrializao
ocorresse, no bastou, portanto, que houvessem surgido na Europa cidades-estado
burguesas; foi necessria a formao concomitante dos grandes estados-nao com seus
grandes mercados nacionais.
Os estados-nao so o pressuposto bsico das anlises econmicas e polticas e o mtodo
histrico-dedutivo, atravs do qual se estuda como se comportam as economias nacionais
e a economia mundial o mtodo adequado. Quando os economistas mercantilistas
buscavam entender o sistema econmico, esse sistema era o existente no quadro de um
pas. Para Adam Smith, ao estudar a riqueza das naes, o que realmente o interessava
era a riqueza ou o desenvolvimento econmico da Gr-Bretanha. Os modelos dos
economistas clssicos do sculo XIX, porm, eram pouco formalizados e foi isto que
levou os economistas neoclssicos, inspirados por Stuart Mill, a pensar na alternativa
equivocada de usar o mtodo hipottico-dedutivo para analisar os sistemas econmicos.
Deixaram, assim, de pensar em termos de estados-nao, mas s custas da compreenso de
como de fato se comportam as economias modernas. Keynes e Kalecki, porm, ao
fundarem nos anos 1920 e 1930 a macroeconomia, voltaram novamente o foco dos
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economistas para as economias nacionais, e deram teoria econmica forte contedo
prtico.8
Formas histricas do EstadoQuando defino o Estado como o sistema constitucional-legal e a organizao que o garante
estou afirmando que o Estado ou define o regime poltico. Este ser democrtico ou
autoritrio, ser monrquico ou republicano, ou ento ser absoluto, liberal ou novamente
democrtico, dependendo do que determinar de forma legtima a constituio e as demais
leis do pas. Existe hoje uma imensa bibliografia sobre a democracia, mas esta no existe
de forma abstrata; o que existe, no mundo capitalista do sculo XXI, o Estado
democrtico ou ento o Estado autoritrio. O fato de serem monrquicos ou republicanosno tem muita importncia, porque as monarquias podem ser constitucionais e
democrticas.
Em cada sociedade nacional o Estado a instituio fundamental porque define o sistema
constitucional-legal ou da ordem jurdica, ao mesmo tempo em que se constitui nesse
prprio sistema constitucional-legal. Alm disso, a matriz das demais instituies
formais com fora coercitiva de lei, mas no o agente principal. Este papel tambm no
cabe ao indivduo, como pretende a teoria liberal, nem cabe ao povo, em que todos soiguais como a fico democrtica que est por trs da democracia afirma, mas cabe
nao ou sociedade civil na qual os poderes so diferenciados e ponderados.9
Ao invs
de agente, o Estado o instrumento da sociedade nacional na busca dos seus objetivos
polticos. J os mercados e o dinheiro so apenas as duas principais instituies
econmicas que complementam o papel do Estado de, atravs da lei, coordenar as aes
sociais; so instituies reguladas pelo Estado a servio da sociedade. Portanto, quando se
fala em Estado e em mercado, no se est falando de instituies concorrentes, mas deinstituies complementares voltadas para a coordenao social e para a consecuo dos
objetivos polticos de cada sociedade e da sociedade mundial que est se formando.
8Entretanto, como a formalizao permitida por modelos histricos era pequena, os economistas
neoclssicos desenvolveram uma macroeconomia e uma teoria do crescimento altamentematematizadas, mas equivocadas e inteis porque desligados da realidade histrica e nacional dos
sistemas econmicos. (Bresser-Pereira 2009).9
Sobre a fico democrtica, ver a notvel anlise histrica de Pierre Rosanvallon (1998).
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Quando se fala em regime poltico, est-se pensando como se organiza o poder da
sociedade sobre o Estado.
Os regimes polticos so as formas histricas do Estado. Quais so elas, e o que as
determina? Na medida em que defini o Estado moderno como o instrumento de aocoletiva da nao ou da sociedade civil, o que estou afirmando que o Estado a
expresso da sociedade que o agente da histria a sociedade politicamente organizada.
A relao, entretanto, no linear, mas dialtica, e o de forma explcita. Geralmente as
relaes dialticas esto numa rea de obscuridade e de indeterminao. Neste caso,
porm, a sociedade cria o Estado para que este a regule, para que este exera poder sobre
ela. O movimento causal , portanto, um movimento nos dois sentidos. principalmente
no sentido da sociedade para o Estado, mas tambm deste para a sociedade. Quandodiscuti algumas pginas acima as teorias do Estado as teorias da legitimidade ou do
poder do Estado eu estava adotando uma teoria sociolgica do Estado segundo a qual
este se reveste de formas histricas. A cada forma histrica de sociedade ao grau de
desenvolvimento econmico, poltico e social de uma determinada sociedade nacional
corresponde uma forma histrica de Estado. Quais so essas formas histricas
correspondentes? Em um esforo de sntese de valor sempre duvidoso, tomando como
referncia os pases que primeiro se desenvolveram, elas esto no Quadro 1. Como oEstado no apenas sistema constitucional legal mas tambm aparelho, organizao ou
administrao pblica, o quadro tem trs colunas.
Tabela 1: Tipos histricos de sociedade e de Estado
Sociedade Estado(Sistema constitucional-legal)
Administrao pblica(Aparelho do Estado)
Aristocrtica e mercantil(sculos XVI-XVIII) Absoluto Patrimonialista
Capitalista clssica(sculo XIX)
Liberal Burocrtica pblica
Capitalista moderna(1. metade do sculo XX)
Democrtico Liberal Burocrtica pblica
Capitalista-profissional(desde meados do sculo XX)
Democrtico social Gerencial pblica
Observao: esta periodizao e tipologia tomam como base os pases que primeiro sedesenvolveram, como a Gr-Bretanha e a Frana.
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No posso, neste trabalho, desenvolver toda a anlise necessria para sustentar a
periodizao e as respectivas formas histricas ou tipos ideais que o quadro contm. Fiz
uma anlise mais completa (mas sempre discutvel porque h nela uma simplificao que
muitos podero considerar excessiva) no livro Construindo o Estado Republicano (2004).
Aqui me limito a assinalar que as sociedades aristocrticas e mercantis da Europa que vo
presidir grande parte da Revoluo Capitalista deram origem primeira forma histrica de
Estado moderno o Estado Absoluto ao qual correspondeu, no plano do aparelho do
Estado, a administrao patrimonialista. Nestas duas formas a sociedade no distinguia o
pblico do privado. O patrimnio do soberano e o patrimnio pblico eram a mesma
coisa.
Na medida, entretanto, que a formao do Estado nacional se completa e que a RevoluoIndustrial ocorre, o poder da burguesia aumenta, enquanto diminui, at desaparecer, o da
aristocracia. A sociedade se configura Capitalismo Clssico o capitalismo que Marx
identificou e analisou de forma insupervel. Neste capitalismo j existe uma sociedade
civil, mas esta quase exclusivamente burguesa, de forma que podemos entender porque
Marx e Engels disseram no Manifesto Comunista que o Estado era o comit executivo da
classe dominante. O Estado, nesse perodo, o Estado liberal um Estado que j garante
os direitos civis, os direitos liberdade, propriedade e ao respeito, mas ainda umEstado autoritrio porque os direitos polticos no esto garantidos: no existe o sufrgio
universal que uma condio da democracia. Durante o sculo XIX ocorrem as principais
reformas burocrticas ou weberianas, de forma que o aparelho do Estado j burocrtico
pblico.
O desenvolvimento econmico, entretanto, continua a ocorrer e, com ele, o
desenvolvimento social e poltico, de forma que na transio do sculo XIX para o XX
afinal surgem no capitalismo os primeiros Estados democrticos. A sociedade civilcontinua a ser principalmente burguesa, mas a movimentao poltica intensa dos
trabalhadores e dos polticos socialistas leva gradualmente extenso do direito de voto
at que se chega ao sufrgio universal. A partir desse momento, j podemos falar em um
Estado Democrtico-Liberal, ainda que a democracia seja mnima, uma democracia de
elites, como Schumpeter (1942) a definiu, na qual os eleitores elegem representantes das
elites que no lhes prestam contas a no ser nos momentos de reeleio. A forma de
organizar o Estado, entretanto, no muda o suficiente para que se possa falar em uma novaforma de administrao pblica: ela continua burocrtica.
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O desenvolvimento, entretanto, continua a ocorrer, porque o capitalismo uma forma de
organizar a sociedade eminentemente ativa, e por que as demandas sociais dos mais
pobres ganharam agora uma dinmica prpria. A Segunda Guerra Mundial, por sua vez,
dar um forte impulso democracia na medida em que houve uma mobilizao poltica de
toda a sociedade nos pases democrticos para lutar contra o horror em que o autoritarismo
nazista se transformara. O autoritarismo, que at o final do sculo XIX era considerado
algo normal ou aceitvel desde que associado garantia dos direitos individuais liberais,
perde a partir de ento legitimidade. Por outro lado, a luta dos trabalhadores e dos polticos
e intelectuais socialistas por uma sociedade mais justa no esmorecia. Pelo contrrio, era
fortalecida pelo fato de que agora todos os trabalhadores tinham direito a voto. O
resultado, aps a guerra, a transio do Estado Democrtico Liberal para o Social: a
enorme ampliao do Estado em termos de despesa pblica e carga tributria para que ele
possa garantir os direitos sociais a uma velhice segura, sade universal, educao
bsica e assistncia social aos pobres. O Estado liberal que representava menos de 10%
representar agora 40% do PIB. Esta mudana ocorre principalmente nos pases da Europa
Ocidental e do Norte, que se transformam em Estados Democrticos Sociais. Entretanto os
Estados Unidos que, nesse momento, j o pas mais poderoso e rico do mundo, no faz
essa transio: sua democracia continua liberal. E talvez influenciada por esse fato as
democracias modernas continuam a ser chamadas de democracias liberais quando, na
verdade, na Europa, elas j deram um passo alm, e a forma poltica do Estado j seja a do
Estado Democrtico Social. O avano do Estado se d, ento, no apenas porque os
direitos sociais comeam a ser mais bem garantidos, mas porque a democracia deixa de ser
uma democracia de elites e passa a ser uma democracia social ou uma democracia de
opinio pblica. Ento, a voz dos eleitores, que era um pouco mais ouvida fora das
eleies, passa agora a se manifestar atravs das sondagens de opinio, e atravs de um
enorme aumento das organizaes pblicas no-estatais de advocacia poltica, inclusiveaquelas de base (grass roots organizations). Enquanto no Estado liberal e no Estado
liberal-democrtico a responsabilizao dos polticos e altos servidores era mnima, agora
aumenta substancialmente. Ainda que a fico democrtica do governo do povo no tenha
ainda desaparecido, no se pode mais falar que o Estado o representante exclusivo da
classe capitalista. Ainda que na sociedade civil o peso do capital ou do dinheiro continue a
ser muito grande, a sociedade civil tambm se democratizou, e as diferenas de poder
entre seus membros diminuram sem deixarem de continuar elevadas. Por outro lado,embora as sociedades europias houvessem realizado um grande avano poltico, a crtica
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interna ao seu Estado e s suas instituies continuou forte e vibrante o que assegura a
continuidade do desenvolvimento poltico.
Quanto forma da organizao do Estado, esta, a partir dos anos 1980, comeou a sofrer
uma grande reforma a meu ver a segunda reforma administrativa fundamental do Estadomoderno: a reforma gerencial ou reforma da gesto pblica. Atravs dessa reforma, que
est hoje ocorrendo em todos os pases desenvolvidos e em alguns de renda mdia,
comeam a ocorrer duas mudanas fundamentais: primeiro, garante-se mais autonomia
decisria aos servidores pblicos, ao mesmo tempo em que se aumenta sua
responsabilizao perante seus superiores e a sociedade atravs da administrao por
resultados e do incentivo aos mecanismos de participao e responsabilizao social.
Segundo, procede-se uma mudana estrutural na organizao administrativa do Estado aose manter dentro dela apenas os polticos e os altos servidores pblicos civis e militares, e
se descentraliza de forma competitiva (competio por excelncia, no por lucros) a
prestao de servios sociais e cientficos para organizaes pblicas no-estatais de
servio. Como a reforma burocrtica demorou de 30 a 40 anos para poder ser considerada
completa, esta tambm demorar esse tempo, mas acontecer porque ela uma resposta
ao Estado democrtico social. Enquanto o Estado era liberal ou liberal-democrtico, ele
era muito pequeno e podia ser administrado apenas segundo o critrio da efetividade, que o critrio da administrao burocrtica; entretanto, quando se transformou em um Estado
muito maior o Estado Democrtico Social , envolvendo uma despesa pblica quatro a
cinco vezes maior, o critrio da eficincia tornou-se imperativo, e a reforma gerencial,
necessria.
A reforma gerencial tornou-se tambm inevitvel no nvel do Estado porque o capitalismo
afinal no produziu apenas duas classes novas a burguesa e a trabalhadora como Marx
sups analisando corretamente seu tempo, mas trs. Com o surgimento das grandesorganizaes privadas, surgiu tambm uma nova classe mdia: a classe mdia profissional
ou tecnoburocrtica. Enquanto a organizao da produo capitalista estava limitada
fundamentalmente a empresas familiares, a sociedade capitalista podia caracterizar-se por
duas classes sociais: uma de proprietrios do capital e outra, de proprietrios do trabalho.
Entretanto, quando a produo passa a ser realizada principalmente em grandes
organizaes burocrticas, os proprietrios do conhecimento tcnico, organizacional e
comunicativo que as administram ou assessoram passam a ter um papel social novo efundamental. A prpria burocracia do Estado, que era apenas um estamento no capitalismo
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clssico, agora se soma tecnoburocracia privada para formar uma imensa classe
profissional. Estas classes no se confundem porque na classe capitalista existem camadas
altas e mdias, na trabalhadora, camadas baixas e mdias, e na profissional, as trs
camadas esto presentes. Com a transformao da burocracia pblica em parte da classe
profissional ou burocrtica mais ampla, e como os integrantes dessa classe se legitimam
essencialmente atravs da sua capacidade de dotar de eficincia as organizaes que
dirigem, era inevitvel que tambm tratassem a aplicar os princpios da boa gesto no
Estado.
Esta nova classe trar um problema fundamental para a sociologia poltica. Quando era
razovel pensar em duas classes apenas, podamos pensar com razovel clareza os partidos
polticos (as organizaes para-estatais que existem entre a sociedade politicamenteorganizada e o Estado para eleger representantes) como principalmente identificados com
capitalistas ou com trabalhadores; entretanto, quando surge uma nova e profundamente
heterognea classe como a classe profissional, o quadro poltico das classes sociais
torna-se muito mais complexo e indeterminado, e se torna difcil saber quais classes e
quais interesses esto mais efetivamente representados nos Estados, nos governos que os
dirigem, e nos partidos que servem de veculo para a eleio dos dirigentes polticos. Isto
no impede, porm, que o desenvolvimento poltico continue a ocorrer e que cada Estadov se tornando mais representativo de seu povo e mais com ele identificado. A sociedade
continua a ser uma sociedade de classes, e o conflito social continua uma realidade, mas as
demandas polticas ganham paulatinamente autonomia em relao posio de classe na
medida em que nas classes superiores idias e comportamentos republicanos,
razoavelmente independentes dos interesses de classe, passam a se tornar mais freqentes
ou usuais.
No final do sculo XX o Estado Democrtico Social e, mais amplamente, o processo dedesenvolvimento poltico foram desafiados por uma nova ideologia: o neoliberalismo. O
objetivo era diminuir o tamanho do Estado: faz-lo voltar sua condio de Estado
Democrtico Liberal. Embora essa ideologia possa ser apenas definida como uma
radicalizao do liberalismo econmico, o que a faria semelhante ao liberalismo, , na
verdade uma ideologia muito diferente. Isto fica claro se a pensarmos do ponto de vista
histrico: enquanto o liberalismo no sculo XVIII foi a ideologia de uma classe mdia
burguesa contra uma oligarquia de militares e senhores de terra e contra um Estadoautocrtico, o neoliberalismo, a partir dos anos 1980 quando se torna dominante, foi uma
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ideologia dos ricos contra os pobres e contra o Estado democrtico e social. Esta ideologia
reacionria, entretanto, ainda que tenha conseguido algum xito em reduzir a proteo
garantida diretamente pelas empresas a seus trabalhadores, no logrou xito em reduzir o
tamanho do Estado e cortar sua proteo social. Entretanto, na medida em que, apoiada na
teoria econmica neoclssica, promoveu a desregulao dos mercados e o
enfraquecimento do Estado, logrou, a partir de 2007, provocar uma crise que comeou
bancria nos Estados Unidos, se transformou em financeira global, e acabou por ser a mais
grave crise econmica desde a Grande Depresso dos anos 1930. Tudo indica, portanto,
que, passado o tempo deste retrocesso histrico que foi o neoliberalismo, as sociedades
podero voltar ao processo de desenvolvimento econmico, social e poltico que, de uma
forma ou de outra, presidiu os duzentos anos de sociedades capitalistas e de formas de
Estado cada vez mais democrticas.
A Revoluo Capitalista deu origem tambm a cinco grandes ideologias ao mesmo tempo
complementares e contraditrias: o liberalismo, o nacionalismo, o socialismo, o
eficientismo e o ambientalismo. O liberalismo a ideologia que nasce com a burguesia,
a ideologia da liberdade; o nacionalismo a ideologia que nasce com o estado-nao, a
ideologia da autonomia e do desenvolvimento econmico nacional; o socialismo a
ideologia que nasce com os trabalhadores; a ideologia da igualdade ou da justia social;o eficientismo a ideologia que nasce com a classe profissional, a ideologia da
eficincia ou, novamente, do desenvolvimento econmico; finalmente, o ambientalismo
a ideologia da defesa do meio ambiente; no uma ideologia que se possa relacionar com
clareza com as classes embora esteja identificada principalmente com as camadas mdias
burguesas e profissionais. Todas essas ideologias esto relacionadas com o
desenvolvimento poltico, so idias que a nao ou a sociedade civil adotam para, atravs
do Estado, promover seus grandes objetivos polticos.
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