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Estados autoritários e totalitários e suas representações Coordenação Luís Reis Torgal Heloísa Paulo Coimbra 2008 Versão integral disponível em digitalis.uc.pt

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Estados autoritários e totalitários e suas representaçõesCoordenação

Luís Reis TorgalHeloísa Paulo

Coimbra • 2008

Estados autoritários e totalitários e suas representações

ISBN 978-989-8074-53-9

9789898

074539

Os textos apresentados correspondem às comunicações do seminário internacional “Estados

autoritários e totalitários e suas representações”, realizado em Coimbra em Novembro de

2008.

Foi mais um espaço de debate sobre um tema que, na sua linha básica — “Estados autoritários

e totalitários” —, já foi abordado, noutras perspectivas, por esta equipa de investigação e por

outros historiadores em Bolonha e S. Paulo.

A ideia que presidiu a este encontro foi sobretudo a de pensar os projectos totalitários e

autoritários tal como foram vistos pelas suas testemunhas e actores, pelas imagens políticas

que se formaram ou pela sua historiografia, considerando que a História também interroga as

memórias, os escritos políticos e didácticos de época ou a escrita da história.

Os seus coordenadores optaram por apresentar estes textos na língua e na forma que os autores

lhes deram, com os seus critérios próprios, sem intervirem fundamentalmente no sentido de

uma uniformização. Se, assim, se perde em termos de uniformidade editorial, ganha-se —

julga-se — na espontaneidade, completando assim um colóquio aberto à comunidade, que

pretendeu ser o mais possível um seminário de debate.

Alberto De Bernardi

Luís Reis Torgal

Fernando Rosas

Matteo Passeti

António Rafael Amaro

Joana Brites

Álvaro Garrido

Sérgio Neto

José Luís Lima Garcia

Maria Luiza Tucci Carneiro

Boris Kossoy

Federico Croci

Alberto Pena

Carlos Cordeir

José Maria Folgar de la Calle

Fernanda Ribeiro

Clara Serran

Augusto José Monteiro

Maria das Graças Ataíde de Almeid

Nuno Rosmaninho

Massimo Morigi

Stefano Salmi

Elizabeth Cancelli

Andrea Rapini

Daniele Serapiglia

Armando Malheiro da Silva

Heloísa Paulo

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Estados autoritários e totalitáriose suas representaçõesPropaganda, Ideologia, Historiografia e Memória

Coordenação

Luís Reis TorgalHeloísa Paulo

Coimbra • 2008

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COORDENAÇÃO EDITORIAL

Imprensa da Univers idade de CoimbraEmail: [email protected]

URL: http://www.uc.pt/imprensa_uc

CONCEPÇÃO GRÁFICA

António Barros

PRÉ-IMPRESSÃO

SerSilito • Maia

EX ECUÇÃO GRÁFICA

ISBN

978-989-8074-53-9

DEPÓSITO LEGAL

281045/08

OBR A PUBLICADA COM O APOIO DE:

© SETEMBRO 2008, IMPR ENSA DA UNI V ERSIDADE DE COIMBR A

ISBN DIGITAL

978-989-26-0810-5

DOI

http://dx.doi.org/10.14195/978-989-26-0810-5

OBR A PUBLICADA COM A COLABORAÇÃO DE:

Apoio do Programa Operacional Ciência, Tecnologia, Inovação

do Quadro Comunitário de Apoio III

ILUSTRAÇÃO DA CAPA

SerSilito • Maia

Foto extraída de desenho de cartaz de Gonçalo Luciano

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Actas do Seminário Internacional realizado em Coimbra

no Arquivo da Universidade

nos dias 28, 29 e 30 de Novembro de 2008

Encontro organizado no contExto dE um protocolo dE invEstigação quE EnvolvE as sEguintEs instituiçõEs:

Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX da Universidade de Coimbra (CEIS20) – Grupo de Investigação “Arquivo da Memória e História do Século XX”

Departamento de História da Universidade de BolonhaDepartamento de História da Universidade de São Paulo (USP)

Colóquio acreditado para Professores dos Grupos 200, 400 e 410 (Registo n.º CCPFC/ACC – 48806/07)

Conselho CientífiCo

Luís Reis Torgal (CEIS20), Alberto de Bernardi (Universidade de Bolonha) e Maria Luiza Tucci Carneiro (USP)

Comissão organizadora

Luís Reis Torgal, Heloísa Paulo, Isabel Maria Luciano e Marlene Taveira

apoios

Universidade de CoimbraArquivo da Universidade de Coimbra

Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT)Fundação Calouste Gulbenkian

Fundação Engenheiro António de Almeida

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AUTORES

Alberto De bernArDi – Universidade de Bolonha

luís reis torgAl – CEIS20

FernAnDo rosAs – Universidade Nova de Lisboa

MAtteo PAsseti – Universidade de Bolonha

António rAFAel AMAro – Universidade Católica Portuguesa / CEIS20

JoAnA brites – Doutoranda da Universidade de Coimbra / CEIS20

ÁlvAro gArriDo – Universidade de Coimbra / CEIS20

sérgio neto – Doutorando da Universidade de Coimbra / CEIS20

José luís liMA gArciA – Instituto Politécnico da Guarda / CEIS20

MAriA luizA tucci cArneiro – Universidade de São Paulo

boris Kossoy – Universidade de São Paulo

FeDerico croci – Universidade de São Paulo

Alberto PenA – Universidade de Vigo

cArlos corDeiro – Universidade dos Açores / CEIS20

José MAriA FolgAr De lA cAlle – Universidade de Santiago de Compostela

FernAnDA ribeiro – Universidade do Porto

clArA serrAno – Doutoranda da Universidade de Coimbra / CEIS20

Augusto José Monteiro – CEIS20

MAriA DAs grAçAs AtAíDe De AlMeiDA – Universidade Federal Rural de Pernambuco

nuno rosMAninho – Universidade de Aveiro / CEIS20

MAssiMo Morigi – Doutorando da Universidade de Coimbra

steFAno sAlMi – Doutorando da Universidade de Coimbra / CEIS20

elizAbeth cAncelli – Universidade de São Paulo

AnDreA rAPini – Universidade de Bolonha

DAniele serAPigliA – Doutorando da Universidade de Bolonha

ArMAnDo MAlheiro DA silvA – Universidade do Porto

heloísA PAulo – CEIS20

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índiCe

NOTA DE APRESENTAÇÃO ....................................................................... 7

Alberto De Bernardiil FAscisMo e le sue storie .................................................................... 9

Luís Reis Torgal“o FAscisMo nuncA existiu…”. reFlexões sobre As rePresentAções De sAlAzAr .............................................................................................. 17

Fernando Rosaso sAlAzArisMo e o hoMeM novo. ensAio sobre o estADo novo e A questão Do totAlitArisMonos Anos 30 e 40 ....................................... 31

Matteo Pasettiscritti contro il FAscisMo. note sullA bibliogrAFiA Dell’AntiFAscisMo itAliAno (1926-1943) .............................................. 49

António Rafael Amaroo MoDelo De PreviDênciA sociAl Do estADo novo (1933-1962) ........ 65

Joana BritesAMAr A PÁtriA, servir A ArquitecturA: Funções e ProgrAMAs iconogrÁFicos DAs «Artes DecorAtivAs» nAs FiliAis DA cAixA gerAl De DePósitos, créDito e PreviDênciA ...................................................... 81

Álvaro Garridoo estADo novo e As PescAs – A recriAção historicistA De uMA “trADição MArítiMA nAcionAl” ............................................................ 99

Sérgio NetorePresentAções iMPeriAis n’ O MundO POrtuguês ............................ 119

José Luís Lima GarciaProPAgAnDA no estADo novo e os concursos De literAturA coloniAl. o concurso DA AgênciA gerAl DAs colóniAs / ultrAMAr (1926-1974) ............................................................................................. 131

Maria Luiza Tucci Carneiro / Boris KossoyProPAgAnDA e revolução – os cAMinhos Do iMPresso Político, 1930-1945 ................................................................................................ 145

Federico Croci“Faccetta nera”. os PriMeiros PAssos DA ProPAgAnDA FAscistA eM são PAulo 1922-1924 ........................................................................ 167

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Alberto PenalA creAción De lA iMAgen Del FrAnquisMo en el PortugAl sAlAzAristA .................................................................. 183

Carlos Cordeiro“o estADo novo – coMo o DeveMos coMPreenDer”. uM DebAte rADioFónico eM 1937 ......................................................... 199

José Maria Folgar de la Calleel control Del cine Por el FrAnquisMo: De lA guerrA civil A los Años 60 ......................................................... 209

Fernanda RibeiroA insPecção DAs bibliotecAs e Arquivos e A iDeologiA Do estADo novo ............................................................ 223

Clara Isabel Serranoo estADo novo. (re)visitAnDo os MAnuAis De históriA Portugueses ......................... 239

Augusto José Monteiro“As verDADes que convêM à nAção”: coMo cArneiro PAcheco reescreveu os livros De leiturA Do ensino PriMÁrio ....................... 255

Maria das Graças Ataíde de AlmeidaA verDADe AutoritÁriA: Discurso, censurA e AutoritArisMo no estADo novo vArguistA ................................................................... 277

Nuno RosmaninhoAntónio Ferro e A ProPAgAnDA nAcionAl AntiMoDernA ................... 289

Massimo Morigi / Stefano SalmiArte e MoDernitA’. i Due Percorsi coMuni Del FAscisMo e Dell’estADo novo .............................................................................. 301

Elizabeth CancelliA irA e A AlteriDADe: o testeMunho e o sentiDo ético ................... 319

Andrea Rapinii giovAni nellA crisi Di regiMe Del FAscisMo ...................................... 333

Daniele Serapiglia1926. lA conDAnnA Del vAticAno Dell’ actiOn Française in PortogAllo. il cAso «neMo» (FernAnDo De sousA). .................... 343

Armando Malheiro da Silvanorton De MAtos e A Auto-DeFesA FAce à históriA coevA e FuturA . 355

Heloísa PaulouMA MeMóriA Dos oPositores sobre o regiMe e sobre A oPosição .. 377

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nota dE aprEsEntação

Os textos aqui apresentados são os originais das comunicações do seminário internacional que teve o mesmo nome do título deste livro.

Foi mais um espaço de debate sobre um tema que, na sua linha básica – “Estados autoritários e totalitários” –, já foi abordado, noutras perspectivas, por esta equipa de investigação, e por outros historiadores, em seminários realizados nos anos de 2005 e 2006, respectivamente em Bolonha e em São Paulo, cujas actas foram publicadas (Progetti corporativi tra le due guerre mondiali, Roma, Carocci, 2006) ou se encontram no prelo (Intolerância em tempos de Fascismo, São Paulo, EDUSP / Imprensa Oficial / Arquivo do Estado). Desta forma, concluímos o primeiro ciclo destes seminários, que, numa segunda fase, se reiniciarão na Universidade dos Açores, em Ponta Delgada, desta vez sob o tema “Autoritarismos, totalitarismos e respostas democráticas. Ideologias, programas e práticas”.

A ideia de chamarmos “seminários” a este tipo de encontros científicos não foi uma mera casualidade verbal. Um seminário é, acima de tudo, um lugar privilegiado para a troca de experiências de investigações e para o debate de ideias, tendo em vista o germinar de novos conhecimentos e de novos problemas. E como o conhecimento não se deve limitar ao meio universitário e deve contribuir para a actualização de quem, noutros sectores de ensino, trabalha com a História, este encontro foi creditado, graças ao apoio do Dr. Nicolau Borges, para a formação de professores do ensino básico e secundário, que compareceram às sessões, formularam interrogações e, depois, apresentaram os seus relatórios, subsequentemente avaliados. Deste modo, o que aqui é publicado não espelha totalmente o que se passou nos dias 28 a 30 de Novembro, no Arquivo da Universidade de Coimbra, onde se verificou, por parte de todos os participantes, um vivo debate. E igualmente não se encontra neste livro o relato de uma visita de estudo intitulada “Museu, casas e ruínas da memória”, que complementou este seminário e que se efectuou no dia 1 de Dezembro. Contou com o apoio das Câmaras Municipais de Penacova (onde se evocou a figura republicana de António José de Almeida) e do Carregal do Sal – Junta de Freguesia de Cabanas de Viriato, local privilegiado para se recordar Aristides de Sousa Mendes, o que foi feito sobretudo pela Mestre Lina Madeira, que prepara uma tese de doutoramento em que a análise desse diplomata ocupa um lugar fundamental. Também o Museu do Caramulo, da Fundação João e Abel Lacerda, mereceu uma visita guiada.

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Os textos aqui publicados são, obviamente, da inteira responsabilidade dos seus autores, pois optámos por não interferir neles sequer do ponto de vista formal, mantendo em cada um a sua língua, a sua escrita e os seus critérios de transcrição e de citação. Apenas tentámos completar o trabalho de revisão de provas que os autores, como é natural, nem sempre levaram a cabo de forma perfeita.

Resta-nos agradecer o contributo das entidades que nos ajudaram a erguer este encontro, preparado, no âmbito do Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX (CEIS20), coordenado cientificamente pela Doutora Maria Manuela Tavares Ribeiro, e do grupo de investigação “Arquivo da Memória e História do Século XX”, a que pertencemos, o qual teve sequência neste livro, publicado pela Imprensa da Universidade de Coimbra, dirigida pelo Doutor José Faria e Costa e pela Dr.ª Maria João Padez, cuja colaboração, selada institucionalmente por um protocolo geral de colaboração com o Centro, importa registar. Recordemos, assim, o Arquivo da Universidade, dirigido pela Doutora Maria José Azevedo Santos, onde se realizou o encontro e que sempre recebe estas iniciativas com entusiasmo e simpatia, a Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) e a Universidade de Coimbra, a que o CEIS20 está ligado, a Fundação Calouste Gulbenkian e a Fundação Engenheiro António de Almeida, as quais, com o seu mecenato, permitiram que se realizasse este encontro com a dignidade que o justificava. Finalmente, uma palavra de apreço ao Governo Civil de Coimbra, na pessoa do Dr. Henrique Fernandes, que, confirmando a hospitalidade portuguesa e coimbrã, nos ajudou a retribuir a forma pela qual fomos recebidos nos anteriores encontros, organizados na Universidade de Bolonha e na Universidade de São Paulo. A todos agradecemos a colaboração prestada.

Todavia, o essencial de um livro é a sua recepção por parte do leitor. Esperamos que ele contribua para o esclarecimento das questões aqui sondadas, as quais devem ser analisadas com espírito crítico e não de uma forma passiva, como costuma suceder com leitura de obras de ocasião, que actualmente, como uma espécie de moda, se publicam sobre estes temas de grande complexidade.

Coimbra, 6 de Agosto de 2008

Luís Reis TorgalHeloísa Paulo

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Alberto De Bernardi

Il fASCISmO E lE SUE STORIE

Le modalità con cui abbiamo concepito e mantenuto questi nostri incontri, che si sviluppano tra ascolto, proposta e riflessione attorno ad idee e punti di vista eterogenei, ulteriormente arricchiti dalla periodicità con cui le nostre singole comunità scientifiche hanno scelto di incontrarsi e dalla particolare attenzione nei confronti delle diverse generazioni di storici, anche in quest’occasione mi ha permesso di ripensare, riordinare e mettere nuovamente in discussione sotto una nuova luce idee e pensieri su cui ormai da tempo indugio in veste di storico. Così, arricchito e stimolato nuovamente, cercherò anche in questa occasione di dare contributo e seguito a questo nostro progetto collaborativo, che iniziato ormai da qualche tempo rivela ormai chiaramente il suo duplice destino ed obiettivo: da una parte stimolo alla discussione e alla polemica storica, dall’altro e soprattutto occasione per ottimi risultati in termini di apporto alla conoscenza storica.

Disattendendo il proposito iniziale, ossia offrire un breve ed esaustivo inquadramento sulla storia della storiografia fascista, scelgo, grazie agli spunti dei colleghi, un approccio più specifico e comparativo, tenuto conto sia del fatto che l’esperienza del fascismo è “comune” a molti paesi, quantomeno declinata a diverse realtà, e poi del fatto che è esistita in Italia una storiografia sul fascismo fatta da storici fascisti che non è né semplicemente adulatoria, né scientificamente sterile.

Nel processo di costruzione del regime la definizione di una politica culturale capace di stimolare e promuovere un rapporto sempre più stretto tra gli intellettuali e il fascismo ha ricoperto un ruolo tanto particolare quanto ignorato. L’alta cultura non era infatti impermeabile alla penetrazione dell’ideologia fascista, come per lungo tempo ha sostenuto la storiografia antifascista e come hanno smentito ricerche ormai relativamente recenti, e di questo occorre tener conto soprattutto per prendere atto della complessità e della differenziazione che hanno caratterizzato l’insieme delle relazioni tra il mondo della cultura e il regime mussoliniano. Si tratta di un rapporto biunivoco in cui accanto allo sforzo del regime di conquistarsi il consenso degli intellettuali per inglobarli ed utilizzarli nella sua politica di fascistizzazione della società, sta il groviglio difficilmente districabile dei percorsi soggettivi che hanno portato questi studiosi a scegliere il fascismo e a tendere al medesimo fine fascistizzante col loro apporto propagandistico.

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Prese di posizione antifasciste, dunque, non interruppero il flusso di adesioni al fascismo da parte della maggioranza degli intellettuali e degli accademici che proseguì non soltanto perché questi erano tradizionalmente adusi a un rapporto conformista con il potere politico, ma perché erano stati progressivamente persuasi e conquistati dall’autoritarismo nazionalista del fascismo, fino a renderli disponibili a “passare sul corpo della dea libertà” senza eccessivi drammi interiori.

Essi salutarono con unanime entusiasmo la riforma scolastica promossa da Gentile nel 1923, quando assunse la carica di ministro della Pubblica istruzione, così come con fervore parteciparono nel 1925 alla stesura della Enciclopedia Treccani, varata dallo stesso Gentile e ritenuta da Mussolini la più significativa impresa culturale del regime, e sottoscrissero il Manifesto degli intellettuali italiani fascisti agli intellettuali di tutte le nazioni, lanciato nell’aprile dello stesso anno, infine ad accettare di buon grado di svolgere il loro magistero scientifico all’interno delle nuove istituzioni culturali proposte dal fascismo. Non sarebbe altrimenti comprensibile il fatto che, nel novembre 1931, la totalità dei professori universitari – salvo dodici – giurarono fedeltà al regime, quando essa fu loro obbligatoriamente richiesta.

Da questo punto di vista, la vicenda della cultura storica appare emblematica. Tra il 1923 e il 1930 il regime costruì una vasta rete di istituzioni deputate all’organizzazione degli studi storici, sotto l’alta direzione di Gioacchino Volpe che, in questo ambito, svolse la stessa funzione ricoperta in quello più generale e teorico da Giovanni Gentile attraverso l’Istituto fascista di cultura. Nel 1923 venne costituita la Scuola storica nazionale per la raccolta e la pubblicazione delle fonti medievali; nel 1925, per iniziativa diretta dello stesso Volpe, nacque la Scuola di storia moderna e contemporanea, cui seguirono le fondazioni dell’Archivio storico della Svizzera italiana, dell’Archivio storico della Corsica, dell’Archivio storico della Dalmazia, nonché l’istituto di studi romani. L’opera si compì, con la creazione nel 1934 della Giunta degli studi storici, alle cui dipendenze fu posta l’intera rete di istituzioni culturali attive in questo campo disciplinare, e poi con la definitiva integrazione nell’Istituto fascista di cultura di Trino della più prestigiosa rivista storica italiana, la «Rivista storica italiana» fondata nel 1884 da Costanzo Rinaudo), con un intento dichiaratamente militante a favore del nazionalismo e della difesa della “italianità” della cultura storica nazionale.

Possiamo dunque dire che questa storiografia, nel caso italiano, è stata fatta soprattutto da una scuola storica fondata e diretta da Gioacchino Volpe, che a ragione può essere considerato uno dei più grandi storici italiani del Novecento, valutazione peraltro suffragata dal fatto che le sue idee hanno superato i confini nazionali per emigrare all’estero – troviamo i suoi libri anche tra i volumi della biblioteca dell’Università di Coimbra che ci ospita per questo nostro incontro. Uno storico, dunque, di tutto rispetto, la cui interpretazione del fascismo costituisce senza dubbio un punto di riferimento.

Accanto a Gioacchino Volpe, vorrei proporre alla vostra attenzione un’altra figura di rilievo dell’intellettualità fascista, quella del giurista e politico Francesco Ercole, uno storico meno noto ma non meno importante che ha scritto quella che possiamo considerare la prima storia del fascismo, uscita in Italia nel 1936 col titolo molto interessante di La rivoluzione fascista, e ripubblicata nel 1939 in due volumi, con

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il nuovo nome di Storia del fascismo.1 Ercole è un personaggio importante anche per il suo “curricula” fascista: iscrittosi nel 1923 al Pnf, fu membro nel 1924 delle commissioni dei Quindici e nel 1925 delle commissioni dei Diciotto per le riforme istituzionali, quindi tra il 1929 e il 1939 deputato, dal 1932 al 1935 membro del Gran consiglio, ma soprattutto fu ministro dell’Educazione nazionale (dal 1932 al 1935) e fondatore della “Giunta di Studi Storici”, un organismo di controllo, promozione ed organizzazione degli studi storici in Italia, che esiste ancora oggi.

Partiamo innanzitutto da Gioacchino Volpe. Volpe, nato nel 1876 si è affermato come storico del medievo medievista, come anche il suo antagonista culturale Gaetano Salvemini, una delle figure più importanti dell’antifascismo; quando nel 1922 il fascismo prende il potere, ha più di quarant’anni ed è già un’autorità scientifica assoluta, diversamente da Ercoli che, nato quasi dieci anni dopo di lui, nel 1922 è uno giovane studioso, ai primi passi della carriera universitaria.

Innanzitutto vorrei sottolineare l’operazione politico-culturale che Volpe mette in atto. Volpe coglie che la prima guerra mondiale ha segnato un cambiamento d’epoca storica imponedo agli studi storici di confrontarsi con la contemporaneità, di leggere il presente in chiave storica. Egli intuisce cioè che i processi che si sono messi in moto nell’Italia e nell’Europa tra il 1910 e il 1920 richiedono una loro narrazione, un impegno supplementare di analisi e di indagine da parte degli storici, per fornire all’opinione pubblica sintesi interpretative che entrino nel merito del dibattito politico.

Possiamo quindi dire che Gioacchino Volpe per primo capisce la necessità di un uso pubblico della storia: non di una storia ancella della politica politica, di una agiografia dei vincitori, nel senso di una elaborazione e di una analisi piegata agli interessi del fascismo. Anche se Volpe è un intellettuale fascista, si cimenta con il presente mantenendo sempre la sua fisionomia di storico; Volpe però ritiene che il suo mestiere debba allargarsi e assumere un ruolo civile, oltre che scientifico, diventando strumento della formazione dell’opinione pubblica nell’epoca della società di massa.

In questa veste dunque, egli vira e riorienta tutti gli studi storici italiani con il risultato che per circa quarant’anni, dagli anni Venti fino agli anni Sessanta, la storiografia italiana di dedicò prevalentemente alla storia del Risorgimento e dell’Italia liberale. Gioacchino Volpe fu l’artefice di una generazione di storici che, nati quasi tutti medievisti, diventarono contemporaneisti; e dunque in questo senso Volpe inventa e costruisce la storia contemporanea che sino ad allora in Italia non c’era perché era considerata un “argomento secondario” rispetto al nocciolo duro della riflessione storiografica rappresentato dalla storia del medioevo e dell’età moderna.

Volpe, dunque, ribalta l’opinione che al tempo si nutriva nei confronti dei contemporaneisti; cosicchè mentre prima della lezione di Volpe solo uno studioso del medioevo poteva aspirare a diventare uno storico di vaglia, dunque solo un medievista poteva fare carriera all’Università, dopo l’ operazione volpiana la storia contemporanea entra di diritto tra le discipline accademiche. Questo cambiamento di rotta si verifica

1 Tra gli scritti dell’autore, citiamo: Francesco Ercole, Dal nazionalismo al fascismo: saggi e discorsi, Roma, De Alberti, 1928; La rivoluzione fascista, Palermo, Ciuni, 1936; Storia del Fascismo: vol. 1.: Dai fasci di azione rivoluzionaria alla marcia su Roma, 1915-1922; vol. 2.: Dalla marcia su Roma alla creazione dello stato fascista corporativo e alla proclamazione dell’Impero, 1922-1936, Milano, Verona, A. Mondadori, 1939.

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Estado Social que começavam a desenvolver-se, em especial depois da II Guerra, nas democracias ocidentais.

Assim, em jeito de balanço final do percurso feito pela previdência social, no período aqui considerado, talvez seja possível fazer duas leituras: se tivermos em linha de conta apenas aquilo que existia antes de 1935 e aquilo que passou a existir, não há dúvida que alguma coisa se fez, não deixando mesmo de impressionar a coerência ideológica do projecto inicial de previdência social; porém, nesta área como em muitas outras, os resultados concretos acabam por deitar por terra mesmo os edifícios teóricos mais perfeitos, sobretudo quando os temos que comparar, como é o caso, com aquilo que se ia construindo nos países democráticos. E a realidade dura e crua evidenciava que, na década de sessenta, os resultados apresentados por Portugal, ao nível da segurança social, comparativamente ao de outros países europeus, era de um atraso tão evidente que não tinha defesa mesmo entre os principais responsáveis pelo regime.

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Joana Brites

AmAR A páTRIA, SERvIR A ARqUITECTURA: funções e programas iConográfiCos das «artes deCorativas»

nas filiais da Caixa geral de depósitos, Crédito e previdênCia

“É assim, precisamente, que a obra de arte mais independente, mais orgulhosa, mais solitária se torna decorativa, queira ou não,

porque iluminou e deu expressão a esta sala ou àquele escritório.”

António Ferro1

“Recorde-se que em todas as épocas que tiveram dois tipos de arte, um para as minorias

e outro para a maioria, este último foi sempre realista.”

José Ortega y Gasset 2

1. Introdução

A hierarquia entre as denominadas «belas-artes», enunciada pelo menos desde Platão, conheceu ao longo dos séculos diversas oscilações que, não obstante, subscreveram a validade de uma escala valorativa e de categorias estanques onde se arrumavam os fenómenos artísticos. No século XX, a cartilha estética ocidental questionou, pela primeira vez, de maneira irreversível, não o lugar que este ou aquele género arrematava no pódio, mas o concurso em si, o júri e até a plateia. As «belas-artes» assistiram à deposição de dois conceitos até então operativos e estruturantes: «belo» e «arte».

De forma significativa, todos os regimes ditatoriais modernos resistiram a esta fragmentação conceptual. A graduação conservou-se e, no topo, colocou-se a arte que outrora Kant3 rebaixara: a arquitectura. Longe de serem menosprezadas, as restantes disciplinas plásticas, sobretudo a escultura e a pintura, continuaram a ser alvo da encomenda oficial. Simplesmente, o objectivo que em geral lhes era reservado – o de «decorar» – pressupunha a existência de um sujeito anterior – o edifício –, a sua razão

1 António Ferro, Artes Decorativas, Lisboa, Edições SNI, 1949, p. 24-25.2 José Ortega y Gasset, A Desumanização da Arte, trad. do espanhol, 2.ª ed., Lisboa, Veja, 2003, p. 70-71.3 John Rajchman, Construções, trad. do inglês, Lisboa, Relógio D’Água Editores, 2002, p. 16.

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de ser, perante o qual assumiriam uma posição secundária. A função desempenhada ultrapassava, todavia, a de mero adorno. Pelo contrário, competia-lhes complementar a arquitectura, clarificando ou acrescentando substância à mensagem a transmitir. Por conseguinte, do mesmo modo que a sua presença necessita de ser descodificada, a sua ausência ou retirada deve suscitar interrogações.

O presente artigo procura analisar, no universo concreto das filiais construídas para a Caixa Geral de Depósitos, Crédito e Previdência (CGDCP), o lugar e o papel das esculturas e pinturas encomendadas. Na qualidade de «estabelecimento de crédito» do Estado – profundamente remodelado, em 1929, de forma a constituir um “instrumento admirável de restauração da economia nacional”4 –, a CGDCP encerra um património-chave para a compreensão dos enunciados artístico-ideológicos que caracterizaram o Portugal salazarista. Tendo em vista a sua «descodificação», parte-se duma caracterização global das obras de arte presentes nas dependências da instituição, examinando, em seguida, tipologia a tipologia, os discursos iconográficos dominantes e respectivas conexões com a cartilha estadonovista. A terminar, expõe-se uma leitura interpretativa do processo mediante o qual estas mesmas obras de arte foram banidas dos imóveis a partir da década de quarenta.

2. As «artes decorativas» nas filiais da CGDCP: caracterização global

No universo das filiais da CGDCP, foram adjudicados trabalhos escultóricos e/ou pictóricos para os imóveis erguidos nas seguintes capitais de distrito: Porto, Bragança, Santarém, Viana do Castelo, Angra do Heroísmo, Ponta Delgada, Viseu, Portalegre, Castelo Branco, Guarda, Horta e Beja. À excepção de Beja – cujo projecto, riscado por Francisco Augusto Baptista entre 1957 e 1959, previu um mosaico na fachada principal – todas as restantes encomendas se situam, quer ao nível da concepção, como da execução, em data anterior à criação da Comissão Administrativa das Obras da Caixa Geral de Depósitos, Crédito e Previdência (23 de Outubro de 1942), a qual recebeu do Governo a missão de administrar e fiscalizar as obras de construção, ampliação e conservação dos edifícios da CGDCP5. A sede, na capital, obedece também a esta cronologia: Jorge Colaço, o último artista a ter compromissos no Palácio do Calhariz, recebe, a 7 de Junho de 1941, a última parcela da quantia fixada em contrato6; a única incumbência decorativa posterior a esta data – um retrato do Presidente da República entregue em 1960 ao pintor Guilherme Felipe – foi rejeitada7.

4 30 Anos de Estado Novo. 1926-1956, Lisboa, José de Oliveira, 1957, p. 48.5 Dependente do Ministério das Obras Públicas e Comunicações através da Direcção-Geral dos

Edifícios e Monumentos Nacionais, esta Comissão foi criada pelo Decreto-Lei n.º 32 337 de 23 de Outubro de 1942 e extinta pelo Decreto-Lei n.º 693/70 de 31 de Dezembro de 1970.

6 Comunicação dirigida por Jorge Coelho, chefe da Repartição da Secretaria da Administração da CGDCP, ao administrador geral da CGDCP. Lisboa, 7 de Junho de 1941. Arquivo Histórico da Caixa Geral de Depósitos [doravante identificado como AHCGD], Sede – caixa n.º 2, processo 9 (Lisboa: Calhariz).

7 Ofício n.º 842, dirigido pelo engenheiro José de Figueiredo e Castro ao pintor Guilherme Felipe. Lisboa, 19 de Outubro de 1960. AHCGD, Sede – caixa n.º 3, processo 18 (Lisboa: Calhariz); Ofício 6k/1202,

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Ressalvando o painel bejense, os azulejos de Colaço na sede e, na filial portuense, os mosaicos cerâmicos executados por Ricardo Leone, bem como a clarabóia de vidro policromo, desenhada a par com a serralharia artística pelo arquitecto Pardal Monteiro, todas as obras comissionadas para as dependências da Caixa são pinturas ou esculturas. Os painéis pictóricos concentram-se, sistematicamente, no rés-do-chão, na designada «sala do público» ou, no caso do Porto, no gabinete do gerente. Por sua vez, os motivos escultóricos convergem para o exterior do imóvel. As estátuas fixam-se sempre nas fachadas. Os baixos-relevos tendem a seguir o mesmo caminho, conquanto no Porto sejam empregues cumulativamente no interior e, em Angra do Heroísmo, ocupem em exclusivo esta área.

A supremacia da arquitectura é exercida por prerrogativas que garantem, à partida, a subserviência das outras artes. É o autor do edifício a estabelecer, na fase do projecto, o seu lugar e, na maior parte dos casos, o tema. É ele quem orienta a execução, autoriza o pagamento das prestações combinadas, avalia em primeira-mão o resultado final e, frequentemente, chega a sugerir ou convidar os artistas. O virtuosismo técnico, o formalismo rebuscado ou complexo são reprimidos. Pretende-se que a obra possibilite uma concretização rápida e pouco dispendiosa, veicule conteúdos acessíveis e, acima de tudo, mantenha uma “composição simples”, “carácter que é indispensável imprimir (…) para bem se harmonizar com a arquitectura”8.

Ao nível iconográfico, a aparente espontaneidade com que se remete a pintura e a escultura, comissionadas para os edifícios da Caixa, para as duas vias temáticas possíveis – universalismo e/ou nacionalismo – comporta propósitos endoutrinadores. Estes, aliados a um figurativismo omnipresente, a um comedimento formal obediente às leis da gravidade e a um naturalismo apaziguador sem concessões a qualquer realismo revolucionário, revelam a especificidade do encomendante e o peso da matriz sociocultural.

2.1 As esculturas de vulto: Economia, uma senhora regrada, sóbria e pudica

A «abundância» e a «economia» – enunciadas diferenciadamente ou em conjunto; substituídas ou coadjuvadas pelas congéneres noções de «riqueza» ou «fortuna» – são os conceitos abstractos que dominam a escultura de vulto. A cornucópia, ou corno da abundância, recheada de cereais e frutos, símbolo de fecundidade e felicidade na tradição greco-romana e distintivo de diversas divindades, como Baco, Ceres ou Fortuna, é o emblema mais vezes requisitado para os transmitir9. Os ramos de árvore e folhas, os frutos e as espigas de trigo, o cacho de uvas e a coroa de hera constituem

dirigido pelo director geral do Ensino Superior e das Belas-Artes ao director geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais. 2 de Maio de 1962. AHCGD, Sede – caixa n.º 3, processo 19 (Lisboa: Calhariz).

8 Carta do arquitecto chefe da Secção de Obras e Edifícios da CGD, Porfírio Pardal Monteiro, ao administrador geral da CGD. 28 de Outubro de 1925. AHCGD, Filiais – caixa n.º 21, processo 135 (Porto).

9 Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, Dicionário dos Símbolos, s. v. “Corno da abundância”, trad. do francês, Lisboa, Editorial Teorema, 1994, p. 231; Lucia Impelluso, Héroes y dioses de la Antigüedad, trad. do italiano, 3.ª ed., Barcelona, Electa, 2004, pp. 70-72.

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suplementos ou alternativas à cornucópia, assegurando a representação da fertilidade e abastança.

Invariavelmente, esculpem-se figuras femininas – jovens de corpo inteiro e em pé, idealizadas o suficiente para não quebrar o efeito alegórico – às quais se apõem os atributos referidos. A nudez é progressivamente contida sob vestes clássicas que, a despeito de consentirem o vislumbre de massas anatómicas, lhes confere a «moralidade» indispensável para a pertença a uma edificação estatal. Deste modo, um «desvario» como sucedeu em Santarém – onde, tendo como mote a abundância e a riqueza, Ruy Gameiro giza, em Setembro de 1933, uma mulher de peito descoberto para a fachada principal e outra, destinada a decorar o volume circular do alçado lateral, completamente despida – não mais se exibiria. Na filial construída em seguida, a de Viana do Castelo, o arquitecto António Maria Veloso Reis Camelo surge já como o guardião da «decência», de acordo com o exigido pela Administração:

“Para a estátua, convidei eu próprio o Sr. António da Costa a quem dei as indicações que verbalmente V. Ex.ª me transmitiu, como sendo o parecer geral do Ex.mo Conselho, acerca das roupagens dessa estátua, quase nulas segundo o desenho de pormenor. O esboceto ou maquette que ele vem submeter à apreciação do Ex.mo Conselho, mantém o carácter decorativo do desenho mas atende perfeitamente às recomendações que lhe fiz, satisfazendo-me bastante a finura e delicadeza com que está tratada. A figura representa a «Fortuna» concebida em termos ou formas moderadas evidentemente, e não segundo o espírito de outras épocas em que essa deusa era tratada por uma forma mais exuberante de carnes, cornucópia farfalhuda e retorcida, as clássicas moedas e notas de banco, provocante e quase ofensiva.” 10

As excepções ao quadro temático acima exposto acabam por o confirmar. É o caso de Ponta Delegada, para onde Ruy Gameiro, convidado a modelar a estátua da frontaria, opta por uma Minerva, com os seus habituais objectos de guerreira, acompanhada, curiosamente, dos símbolos distintivos de Ceres. Quando, a 19 de Dezembro de 1934, o arquitecto Veloso Reis Camelo, ao submeter à apreciação do Conselho de Administração o “esboceto” entregue pelo escultor, caracteriza a figura e a sua função no edifício, deixa claro os dois conjuntos de virtudes que Ruy Gameiro procurou conciliar:

“Nesta figura, meramente decorativa, quanto à sua forma e interpretação, representa Minerva, deusa das artes e das ciências, tendo numa das mãos um ramo de frutos, como símbolo da abundância e na outra a lança e o escudo, como símbolos da força e valor, e tem para o edifício, sob o ponto de vista arquitectónico, grande importância, sendo ela que estabelece com o letreiro (Caixa Geral de Depósitos Crédito e Previdência) o eixo da composição da fachada, ao mesmo tempo que lhe dá um certo claro escuro e, com o seu ar um tanto clássico, uma expressão estadual mais acentuada”11.

Viseu e Portalegre corporizam os dois outros exemplos de «variações», à primeira vista desalinhados da leitura global defendida sobre a iconografia das estátuas, mas

10 António Maria Veloso Reis Camelo, “Informação”, Lisboa, 9 de Abril de 1935. AHCGD, Filiais – caixa n.º 27, processo 186 (Viana do Castelo).

11 Carta do arquitecto Veloso Reis Camelo ao administrador geral da CGDCP. Lisboa, 19 de Dezembro de 1934. AHCGD, Filiais – caixa n.º 17, processo 109 (Ponta Delgada).

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afinal acabando por a reforçar. Com efeito, se por um lado asseveram a existência de propostas que se desviam da clássica antropomorfização da «abundância», comprovam, por outro, que estas foram sempre postas de lado. Em segundo lugar, permitem corroborar a nítida preferência verificada, neste tipo de escultura, pela coisificação de ideias universais, em detrimento do móbil regionalista. Este, quando apresentado de forma isolada, é reprovado; se conjugado com um acessório alegórico – a cornucópia – é aceite.

A 10 de Dezembro de 1937, o Conselho de Administração da CGDCP decide – num acto irrepetível no conjunto das filiais e sede – promover um concurso a fim de determinar a quem adjudicaria as peças escultóricas previstas para Viseu e Portalegre. Reunido a convite do Conselho de Administração, na sede da CGDCP, no dia 31 de Março de 1938, o júri era composto pelos seguintes elementos: Reinaldo dos Santos (presidente da Academia Nacional de Belas-Artes), João Rodrigues da Silva Couto (director do Museu Nacional de Arte Antiga) e o arquitecto Raul Lino (secretário da mencionada Academia). Achavam-se igualmente presentes, na qualidade de administradores da CGDCP, Raul do Carmo e Cunha e o engenheiro Leovigildo Queimado Franco de Sousa.

Em Portalegre, a escolha recaiu sobre Salvador Barata Feyo, o qual submetera à competição duas propostas para a mesma imagem: “uma de 0,48 representando uma figura da região segurando um braçado de trigo e um ramo de carvalho; outra de 1m simbolizando a cidade de Portalegre [agarrando na mão o brasão do município], coroada de hera e trazendo a cornucópia da abundância”12. Entre os dois estudos sujeitos a concurso e de novo mostrados, já mais trabalhados, ao Conselho de Administração em fim de Julho/início de Agosto de 1938 – um exclusivamente regionalista, interpretando uma “mondadeira”; outro nacionalista, associado a símbolos míticos13 –, coube à intervenção de João Simões, arquitecto autor do edifício, a inclinação para o segundo14.

No que diz respeito à filial viseense, a maqueta vencedora para a escultura de vulto foi a de Álvaro João de Brée15, tendo o contrato com o artista sido firmado a 21 de Setembro de 193816. A obra, ultimada no início de Fevereiro do ano seguinte17, inscrevia-se na convencional citação da Antiguidade Clássica, que o autor pretendeu, não obstante, ler à luz da realidade nacional:

12 Carta de Salvador d’Eça de Barata Feyo aos administradores da CGDCP. Barcarena, 30 de Março de 1938. AHCGD, Filiais – caixa n.º 19, processo 119 (Portalegre).

13 Carta do escultor Salvador d’Eça Barata Feyo ao administrador-geral da CGDCP. s/d [fins de Julho/inícios de Agosto de 1938]. AHCGD, Filiais – caixa n.º 19, processo 119 (Portalegre).

14 Carta do arquitecto João Simões ao administrador geral da CGDCP. Lisboa, 6 de Agosto de 1938. AHCGD, Filiais – caixa n.º 19, processo 119 (Portalegre).

15 “Auto”. 7 de Abril de 1938. AHCGD, Filiais – caixa n.º 19, processo 119 (Portalegre).16 Contrato celebrado entre a Administração da CGDCP e o escultor Álvaro João de Brée. Lisboa, 21

de Setembro de 1938. AHCGD, Filiais – caixa n.º 31, processo 205 (Viseu).17 Ofício n.º 608, dirigido pelo chefe da repartição da Secretaria da Administração da CGDCP à firma

“Viseu Industrial, Ltd.ª”. 6 de Fevereiro de 1939. AHCGD, Filiais – caixa n.º 31, processo 205 (Viseu).

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“Representa a figura a Economia, a Abundância e a Riqueza.A Economia e a Abundância, simbolizadas pela vinha e pelo trigo, que a figura segura

com a mão direita, em atitude de protecção, por serem estas culturas, as maiores riquezas do país. A primeira por resultar da sua exportação, a entrada de ouro, a segunda, pelo cultivo nacional, e a não saída de ouro.

Tanto um como outro julgo serem símbolos inerentes à Caixa Geral, pela acção por esta exercida, em empréstimos, aos vinicultores e lavradores, dando assim possibilidades de amanho e cultivo daqueles dois elementos que são a economia e a riqueza da nação.

A cornucópia, símbolo clássico da abundância e riqueza, que se vê à esquerda, e que a figura segura, não numa atitude de esbanjamento, mas sim de reserva, o que representa o equilíbrio financeiro.

O casco nada tem de guerreiro, mas sim de força e firmeza.A figura pelas suas grandes linhas e simplicidade de forma, foi estudada atendendo

a execução em granito, a que ela é destinada, volumes e planos estão estudados para que haja um completo equilíbrio e igual distribuição de peso. A simplicidade da forma julgo-a adequada ao granito, matéria esta incompatível a tudo que não seja sóbrio e simples. Pretendi também integrá-la na arquitectura do edifício, pois julgo que a arquitectura é o de dentro da escultura e a escultura o seu prolongamento.”18

Partindo das memórias descritivas das peças dos outros concorrentes, constata-se, entre as que se conservam, que Anjos Teixeira, sendo “facultativa a escolha da execução da estátua representando a abundância ou a economia”, preferiu a segunda, “colocando um cofre nas mãos da figura”, com o qual procurou “justificar o título da mesma”, pois desconhecia “se existe algum símbolo clássico para a representação da economia”19. Celestino Tocha enveredou pela personificação da abundância, “simbolizada por uma figura de mulher de linhas sóbrias segurando do lado direito uma cornucópia contendo flores e mantendo com a mão esquerda um ceptro que poderá representar a justiça na abundância e finalmente outra cornucópia junto aos pés da figura e de lado oposto à primeira espalha o dinheiro”20.

Os dois participantes que denotam maior vontade de romper com a tradicional iconografia alegórica – Albuquerque de Bettencourt e Salvador Barata Feyo – vêem os seus trabalhos também preteridos, pese embora a argumentação com que se escudaram, como em seguida, respectivamente, se observa:

“Na composição de uma figura «Abundância» entendemos por bem não empregar o batido motivo da cornucópia, hoje esteticamente desactualizado. Por isso, representamos a nossa figura, tendo do lado direito um molho de 7 espigas – símbolo bíblico – e frutos caindo a espalhar-se sobre a base, imagem da abundância e da riqueza do solo. A mão

18 Álvaro João de Brée, “Memória descritiva do estudo que apresento para o edifício da vossa filial em Viseu”, Lisboa, 3 de Fevereiro de 1938. AHCGD, Filiais – caixa n.º 31, processo 205 (Viseu).

19 Anjos Teixeira (filho), “Memória descritiva dos trabalhos destinados à filial da Caixa Geral de Depósitos, Crédito e Previdência. Viseu”, Lisboa, 31 de Janeiro de 1938. AHCGD, Filiais – caixa n.º 31, processo 205 (Viseu).

20 Carta de Celestino Augusto Tocha ao Conselho de Administração da CGDCP. s/d [início do ano de 1938]. AHCGD, Filiais – caixa n.º 31, processo 205 (Viseu).

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esquerda pousa sobre o coração, num gesto de amor pelo próximo, pois que sem ele a abundância só seria nociva.

Além disso, não demos à nossa figura o carácter de «matrona romana» como é de uso mas sim o de uma mulher nova e forte, radiante de vitalidade, por considerarmos que a mais desejável abundância é feita de força viva e ascendente e não de calma estabilidade. A composição da nossa figura fizemo-la num bloco, e a sua modelação simples por necessidade estética do material a que se destina.”21

“Parece-nos que, dado o renascimento forte do amor à pátria que se observa já em algumas das actividades espirituais da nação, cabe, cremos nós, também aos artistas portugueses, nomeadamente escultores e pintores, como força intelectual de elite, procurar resolver toda a plástica da sua esfera de acção com os olhos postos no alto daquele ressurgimento. Abstendo-nos de nos alongarmos em mais considerações a este respeito – por importuno o lugar – ficam as linhas que deixamos acima para explicar o critério e directriz que tivemos e nos conduziu às soluções que com a devida vénia, temos a honra de sujeitar ao alto critério de V.as Ex.as.

Pondo de parte a representação convencional das chamadas figuras simbólicas de deuses e deusas do Olimpo, e isto porque muito simplesmente, só podemos compreender a intervenção de um Deus na nossa vida e na nossa morte, debruçamo-nos sobre a região da Beira Alta de que Viseu é a capital e colhemos no labor da sua gente e na sua próprio gente, os elementos queridos das nossas composições. (…) A estátua é a região da Beira Alta representada numa figura da mesma Beira, tendo na mão direita uma mão de espigas de centeio e na esquerda uma romã que se nos afiguram expressar com certa felicidade, respectivamente, o corporativismo e a assistência da Caixa Geral dos [sic] Depósitos, Crédito e Previdência.”22

2.2. Os baixos-relevos: o «mundo feliz» da economia nacional

Os baixos-relevos encomendados para as filiais da CGDCP elegem, como tema, os três pilares económicos de referência – agricultura, comércio e indústria –, tratados em conjunto e perspectivados em trâmites pátrios e não mitológicos. A partir deles decalca-se o simulacro de um país auto-suficiente, ruralista por opção, onde se protege a indústria «caseira» e «familiar», onde o comércio por troca directa adquire o pitoresco de uma sã continuidade, onde as relações de trabalho são idílicas e a figura do operário fabril – que nunca se vê e suspeita-se afinal não existir – aparece substituído pelo dócil camponês, o qual, no máximo, troca a enxada pelo martelo ou pelo fiado.

Eis, em pedra e em bronze, o mundo feliz do corporativismo alcançado, orquestrado pela mão paternalista e assistencial do Estado que, ao invés de «abafar», antes incentiva e dirige com justiça. Não por acaso, a reforma do crédito – vértebra da política

21 Memória descritiva redigida pelo escultor Albuquerque de Bettencourt acerca das propostas apresentadas para a filial de Viseu. s/d [início de ano de 1938]. AHCGD, Filiais – caixa n.º 31, processo 205 (Viseu).

22 Salvador d’Eça Barata Feyo, “Memorial”, Barcarena, 31 de Janeiro de 1938. AHCGD, Filiais – caixa n.º 31, processo 205 (Viseu).

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pela Liga Anti-comunista, segmento da extrema-direita atuante em São Paulo na década de 1930.27

A propaganda da oposição

Treinados para identificar indícios de desordem, os “homens do DEOPS” tinham plena consciência do material que deveriam procurar, identificar, confiscar e tirar de circulação28. A apreensão de impressos ditos “perigosos a ordem instituída” e a sistemática prisão de seus produtores e impressores deve ser avaliada como a formulação de uma resposta institucional à ameaça representada por aqueles que atentavam contra a estabilidade das elites dominantes. A partir do momento em que o Estado criou um órgão dedicado a reprimir idéias sediciosas, caçar a palavra impressa e penalizar seus mentores, anulava-se a noção de sociedade civil. Para as autoridades da repressão, o “produtor de um jornal” era apenas o outro, elemento provocador que, como tal, deveria ser isolado. Como conseqüência temos o retorno da razão do Estado que, em nome da segurança pública e bem estar da nação, pode colocar fim no Estado de direito.

Ao mesmo tempo em que as autoridades policiais transformaram os impressos em provas do crime político, elas também preservaram, por ironia do destino, a memória da intolerância. Os periódicos estrangeiros confiscados, por exemplo, permitem – tanto para nós historiadores como para a Polícia Política – desvendar a trama de relações que persistiam entre as várias comunidades étnicas, nacionais e políticas radicadas na América Latina, nos Estados Unidos e na Europa. Esta documentação retira do anonimato os “agentes da subversão” expondo suas matrizes ideológicas (anarquista, anarco-sindicalista, comunista, sionista, nazista, fascista e/ou anti-fascista). Os impressos, de uma forma geral, davam visibilidade às ações e representações coletivas expressando fragmentos dispersos da cultura política brasileira.

A linguagem inflamatória e convocatório dos impressos anunciavam logo seu propósito: conscientizar seu público-alvo das mazelas do Estado e da Igreja Católica, dos abusos dos patrões burgueses, dos interesses do imperialismo estrangeiro. Como vivemos numa sociedade de subversão de valores, tais “chamadas” se prestavam para expressar os desejos daqueles cidadãos (brasileiros e estrangeiros radicados no Brasil) que estavam insatisfeitos com a realidade social. Percebemos – ao analisar a linguagem adotada pelos grupos de resistência ao Estado republicano ou a ditadura varguista – que os seus produtores pretendiam dilatar sua esfera pessoal ou coletivo (espaço vital) conquistando objetos e status que pertenciam a esfera do Outro. Alguém era sempre culpado pela miséria e pelo atraso vivenciado pelo homem negro, pela mulher ou pelo trabalhador nacional que, asfixiados pelos patrões ou pelo Estado interventor, não conseguiam alcançar a felicidade plena29. A felicidade, no entanto, deverá ser

27 Panfleto “Como evitar esta tragédia”, São Paulo, Liga Anti-comunista, s.d., Prontuário n.º 2239; Fundo DEOPS/SP.APESP.

28 Ver Maria Luiza Tucci Carneiro. Livros Proibidos, Idéias Malditas. O Deops e as Minorias Silenciadas. 2.ª ed. São Paulo, Ateliê Editorial, 2002.

29 Para os casos dos regimes totalitários e autoritários pode-se aplicar o conceito de inimigo-objetivo desenvolvido por Hannah Arendt em O Sistema Totalitário. Trad. Roberto Raposo, Lisboa, Publicações

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“conquistada” através do esforço coletivo, idéia alimentada por um sistema de motivações a ser elaborado (e colocado em prática) pelos líderes comunitários30. Daí encontrarmos nos jornais e panfletos, uma série de convocatórias para encontros políticos disfarçados no “formato” de piqueniques, peças teatrais, churrascos, shows musicais, cerimônias religiosas e quermesses animadas por bandas comunitárias, sorteios de rifas, jogos de tômbola e futebol31.

Temos que considerar que a propaganda política, em qualquer esfera de circulação, alimenta a imagem de um mundo fictício capaz de competir com o mundo real. O caos, a desordem, a miséria, a fome, a exclusão e a injustiça social serão, segundo as mensagens sedutoras, superadas pela revolução que promete paz, felicidade, igualdade social etc. O mundo fictício – proposto pelos revolucionários de esquerda, por exemplo – distingue-se daquele idealizado pelos nazi-fascistas ao criticar o acúmulo da força, o abuso do poder e o uso da violência. No entanto, isto não os impede de, no futuro, ocuparem o lugar do Outro e se transformarem em “ditadores obstinados”.32

Por que o panfleto foi amplamente utilizado pelos grupos da oposição ? Acreditamos que – além de ser impresso em papel – é fácil de manusear, guardar, esconder ou eliminar. É de baixo custo e pode transmitir rapidamente uma mensagem para um grande público. Pode ser mimeografado ou impresso, com ou sem imagem, instigando o leitor a pensar, discutir e agir na vida prática, diária. Tem o poder de alterar a realidade ou reforçar o status quo colaborando para a mobilização ou a persistência da inércia, entenda-se aqui apatia ou conformismo. Folheto não tem capa (cobertura dura) e nem encadernação. Na sua maioria são confeccionados em uma única folha de papel cortada ou dobrada pela metade, em terços ou em quartos. Pelo seu formato “portátil”, o folheto tornou-se um importante instrumento de propaganda política favorecendo a circulação da crítica e do protesto proibido. Diferente do livro, o panfleto não para em pé: deve ser lido rapidamente e, se guardado, deve ser “enrolado”, “dobrado” ou “mantido na horizontal”. Por esta característica particular favorece as ações políticas clandestinas, proibidas, revolucionárias.

Folheto de uma única página, o panfleto é chamado “voador” ou “relâmpago”: anuncia, convoca e promete felicidade em troca da adesão. Um panfleto político voador é, quase sempre, portador de uma mensagem relâmpago que, por sua natureza instintiva, deve causar impacto e mobilizar as massas. Confeccionado em uma única folha de papel, tem o poder de convocação, de chamada, de denúncia ou de alerta. Ao mesmo tempo é coletivo e introspectivo favorecendo a inserção social de certas indivi-dualidades, pois os textos e as imagens traduzem particularidades das visões de mundo

Dom Quixote, 1978.30 Este conceito é amplamente desenvolvido por Abraham Moles em O Cartaz. Trad. De Miriam

Garcia Mendes. São Paulo, Perspectiva; Edusp, 1974 (Coleção Debates, 74).31 Estes eventos (libertários) foram analisados, de forma mais detalhada, no estudo desenvolvido por

Raquel de Azevedo, A Resistência Anarquista: Uma Questão de Identidade, 1927-1937. São Paulo, Imprensa oficial; Arquivo do Estado, 2000 (Coleção Teses & Monografias). Um contraponto pode ser feita com o trabalho de Maria Auxiliadora Guzzo Decca, A Vida Fora das Fábricas. O Cotidiano Operário em São Paulo, 1920-1934. Rio de Janeiro, Paz e Terra,1987.

32 Hannah Arendt, ob. cit., pp. 454-457.

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do autor do panfleto, além de refletir per-pectivas coletivas e político-partidárias33. Enquanto impressos volantes têm vida cíclica pressupondo distintas fases que vão da sua criação à morte para depois renascer graças à revitalização das idéias. Retomo aqui a epígrafe do livro de Domingos Braz: Morrem os Homens...mas a idéia fica!. 34

Multiplicado aos milhares, passa de mão em mão, sendo distribuido nas praças, nas ruas ou em ambientes fechados. Colados nos postes, nos muros, nas portas ou nas paredes chamam a atenção do público-alvo que, movido por algum interesse, pára para ler ou arrancá-lo, num ato de repúdio ou conivência. Uns carecem de criatividade; outros brilham por serem irreverentes e por estarem “fora da ordem”. Enquanto instrumento de propaganda política são seculares e universais; e enquanto registro ideológico são temporais, expressão de um momento específico da história do país.

Valendo-se de um pequeno texto cons-truído em tom convocatório, os panfletos da oposição raramente usam a imagem. Favorecendo a leitura dinâmica, convocam o individuo à rebelião procurando quebrar a apatia, cristalizada pelo discurso oficial. Com frases curtas compostas com palavras emprestadas do linguajar popular, denunciavam as injustiças da Justiça brasileira dedicada, em vários momentos, a calar a voz dos rebeldes. Abriram espaço para a ação dos grupos de resistência ao autoritarismo rompendo com os preconceitos de cor, gênero, classe e religião. Mobilizaram – numa frente única em prol dos direitos humanos – estudantes, operários, intelectuais, artistas plásticos, músicos, caricaturis-tas e editores, homens e mulheres. Denunciaram a podridão das prisões brasileiras, a inadimplência das autoridades policiais, a desobediência as leis trabalhistas, a expulsão de estrangeiros e a censura oficial.

Parte desta memória pode ser reconstituída através dos jornais, panfletos e livros confiscados pela Polícia Política de São Paulo que, no seu conjunto, se prestam

33 Endossamos aqui as categorias sugeridas por Lincoln de Abreu Penna que classifica os panfletos em três modalidades principais: “os que retratam perspectivas coletivas, próprias dos movimentos sociais; os que refletem perspectivas políticos-partidárias; e, os que traduzem visões de mundo de indivíduos que se batem e prol de bandeiras com as quais sinalizam a inserção social de suas individualidades. Lincoln de Abreu Penna, ob. cit., p. 84.

34 Domingos Braz, Dos Meus Momentos de Lazer: Morrem os Homens...Mas a Idéia Fica!, s.d. Anexado ao Pront. n.º 493, de Domingos Braz, Vol. 2. DEOPS/SP. APESP. Sobre livros confiscados ver Maria Luiza Tucci Carneiro, Livros Proibidos, Idéias Malditas, 2.ª ed., São Paulo, Ateliê Editorial, 2002.

8 – Dos meus momentos de lazer.... Livreto confiscado de Domingos Braz. Prontuário nº 493, vol. 2. Fundo DEOPS/SP. APESP.

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como mostruário dos diferentes segmentos políticos que atuaram no Brasil entre 1924-198335. Se cruzados com os registros policiais, estes periódicos nos oferecem a oportunidade de reconstituir as estratégias de ação dos grupos da resistência e a lógica que regia o aparato repressivo estatal. Nos permitem também repensar: o papel do Estado republicano que, ao longo da sua trajetória, amordaçou os grupos produtores de uma cultura política, assim como atrofiou o processo de conscientização política nacional. Anexados aos prontuários pessoais e institucionais que compõem o Fundo DEOPS sob a guarda do Arquivo Público do Estado de São Paulo, estes impressos revelam o fantástico universo da palavra e da imagem impressas na clandestinidade. Improvisados, muitas vezes, em gráficas clandestinas, esses impressos mal chegaram até o seu público-alvo sendo desviados para os arquivos policiais. Hoje, nos oferecem

elementos para reconstituir como se processavam e circulavam as informações proibidas pela censura entre os grupos da oposição.

Identificando os caminhos trilhados por estes panfletos – do porto para a cidade, da capital para o interior ou da cidade para o campo – estaremos pontuando os espaços e as comunidades de leitores distintas por sua identidade étnica, nacional ou ideológica. Enquanto impressos convocatórios para a ação revolucionária, os panfletos invadiram [clandestinamente] as residências onde foram lidos por todas as classes, sem exceção: leitores curiosos, leitores pervertidos, leitores malditos. Aliás, é raro quem não tenha experimentado, um dia, o sabor de uma leitura proibida ! Seguindo os trilhos de ferro, a “panfletagem subversiva” foi levada, às escondidas, até as cidadezinhas do interior incomodando o sossego das elites regionais, adeptas do coronelismo. Incomodaram, certamente, empresários, políticos, coronéis e fazendeiros acostumados ao mando, por tradição.

Discursos anarquistas, comunistas, socialistas e anti-fascistas foram lidos, ainda que rapidamente, pelos pacatos (mas nem tanto) habitantes de Taquaritinga, São José do Rio Preto, Bauru, Taubaté, Catanduva, Pindorama, Jundiaí, apenas para citar algumas do interior do Estado de São Paulo.36 Cumprindo com os seus objetivos – de gerar

35 Ver o primeiro volume desta coleção: Imprensa Confiscada pelo DEOPS, 1924-1954, organizadores Boris Kossoy e Maria Luiza Tucci Carneiro, São Paulo, Ateliê Editorial; Imprensa Oficial; Arquivo Público do Estado, 2004.

36 Ver Série Inventários Deops, organizados por Maria Luiza Tucci Carneiro publicados, numa primeira fase, pela Imprensa Oficial e, a partir de 2005, pela Associação Editorial Humanitas. Autores e títulos citados no final deste livro.

9 – “Violência policial”. Ilustração publicada no jornal A Plebe, novembro de 1934. Prontuário nº 3653, de Justiniano Pereira Bispo. Fundo DEOPS/SP. APESP.

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impacto imediato e irradiar conteúdos ideológicos – os panfletos refletem perspec-tivas políticas partidárias, além de traduzir visões de mundo individualizadas. Sem respeitar porteiras, mata-burros, pastos e córregos, os panfletos sediciosos produzidos no século XX invadiram as fábricas e as fazendas como se fossem pragas incontro-láveis. Se para os fazendeiros, os jornais e os panfletos eram “ervas daninhas”, para os partidos políticos eles funcionavam como “adubos para fazer a revolução crescer”. Mas, os impressos produzidos pelos mili-tantes de esquerda não estavam sozinhos nesta cruzada política. Os periódicos e panfletos integralistas assim como aqueles produzidos por organizações católicas e anti-fascistas, também procuravam garantir suas praças de leitores dispostos a empu-nhar a bandeira em nome de Deus, Pátria e Fámília. Livres de qualquer suspeita, estes impressos circulavam garantidos pelo poder local (conservador e católico, por tradição) dedicados a enfrentar o Anti-Cristo, personagem simbólico identificado com os males da modernidade: liberalismo, maçonaria, judaísmo e comunismo 37.

Para a Polícia Política, o “perigo” não estava em quem vestia camisa verde ou batina preta, e sim naqueles que portavam bandeira vermelha, a foice, o martelo ou enxada. Assim, até o final do Estado Novo, imperou o “abaixo a toda e qualquer manifestação anti-clerical”, postura radical sustentada tanto pelos anarquistas como os comunistas, em geral. Foram incluídos nesta onda de repressão os panfletos produzidos pelos “hereges da Fé” – os “Quebra-Santos” – que perturbavam o culto da religião católica. 38

Cada impresso, enfim, nos oferece múltiplas possibilidades de investigação. A medida em que conseguirmos identificá-los e agrupá-los segundo categorias distin-tas, chegaremos a centenas de “aldeias políticas”. Uma vez digitalizadas em banco de dados, as informações nos permitem análises comparativa e diacrônica, microsocial e nominativa. Com a incorporação de impressos inéditos poderemos estabelecer seqüên-cias temporais e definir, com exatidão, as áreas produtoras dos impressos delimitadas pelos itinerários e circularidades da repressão. Assim, poderemos situar – em outra dimensão – a história do impresso no Brasil tendo em vista a “revolução anunciada”,

37 Maria Luiza Tucci Carneiro. O Veneno da Serpente. Questões acerca do anti-semitismo no Brasil. São Paulo: Perspectiva, 2003. Coleção Kronos; Rodrigo Patto Sá Motta. Em Alerta Contra o Perigo Vermelho. São Paulo, Perspectiva, 2005.

38 Pront. n.º 43.707, Sociedade Torre de Vigia. DEOPS/SP. AESP. Cf. Inventário de Eduardo Góes de Castro. Os “ Quebra-Santos”. Repressão ao Anti-Clericalismo no Brasil República (1924-1945), São Paulo, Associação Editorial Humanitas; Fapesp, 2007 [Inventário DEOPS, 14].

10 – Contra o “Vale” e o “ Barracão”. Panfleto produzido pela Associação Agropecuária de São José do Rio Preto, 30 de outubro de 1946. Prontuário nº 6585. Fundo DEOPS/SP.

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recorrendo aqui a uma expressão empregada por Roger Chartier39. Ainda que limitado e descontínuo, chegaremos ao mundo fechado das letras subversivas.

Editados em português, na sua maio-ria, os panfletos expressam as plataformas políticas dos mais distintos grupos sociais. Serviam como provas comprometedoras do crime político, de acordo com a lógica da desconfiança adotada pelas autoridades policiais cientes do poder das palavras de ordem. Um slogan ou uma imagem eram suficientes para transformar aquelas pá-ginas de papel em manuais de revolução. Sobre os produtores – interpretados como mentores intelectuais do crime político – recaia a culpa pela infração: eles haviam ultrapassado os limites do permitido. Se reincidentes transformavam-se em “reféns do seu próprio passado”, distinção formal decorrente do estigma da criminalização, do labelling approach ou teoria do etique-tamento. 40

A apreensão dos panfletos ditos perigo-sos, o registro fotográfico dos documentos confiscados e a sistemática prisão de seus

produtores (impressores e distribuidores) deve ser avaliada como a formulação de uma resposta institucional à ameaça representada por aqueles que atentavam contra a estabilidade das elites políticas. Daí considerarmos esta “literatura” como efêmera, dada a sua curta trajetória enquanto meio genuíno de comunicação de massas. Para as autoridades dominantes, um “produtor de panfleto” era apenas o elemento provo-cador que, como tal, deveria ser isolado 41. As fotografias dos impressos confiscados anexadas aos prontuários policiais atestam que as autoridades, além de identificar o cidadão-suspeito, também se preocupavam em comprovar o crime político. As imagens registradas pelo Laboratório Técnico do Gabinete de Investigações assim como os impressos apreendidos como “revolucionários”, nos permitem reconstituir os limites entre dois mundos distintos: o da legalidade e da ilegalidade.

Cabia às autoridades policiais desvendar os segredos daqueles que como “arquitetos de um complô secreto internacional” se dedicavam a minar a ordem estabelecida. Competia ao investigador do “Serviço Secreto” e ao fotógrafo policial, ligado ao Gabinete de

39 Roger Chartier. A Ordem dos Livros. Brasilia, EunB, 1999, p. 97.40 Sobre esta questão ver Francisco Brissoli Filho, Estigmas da Criminalização: dos Antecedentes à

Reincidência Criminal. Florianópolis: Editora Obra Jurídica, 1998.41 Olgária Chain Féres Matos, “ Espaço público e tolerância política” in: Wander Melo Miranda,

Narrativas da Modernidade (org.), Belo Horizonte: Autêntica, 1999, p. 343.

11 – Abelha e Zangão [rubrica R.M]. Postal anti-clerical confiscado de Kalkyria Naked em 1936. Prontuário nº 2844. Fundo DEOPS/SP. APESP.

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Investigações, o reconhecimento dos espaços da sedição com o objetivo de identificar e comprovar as táticas adotadas pelos “subversivos da ordem”. Um minucioso “relatório de investigações”, acompanhado dos “autos de busca e apreensão” se prestavam para explicar as razões da investida, relacionar e identificar as provas do crime. A fotografia completava a descrição dando à narrativa uma imagem visual. Este raciocínio justifica o grande número de fotografias anexadas aos autos policiais que, enquanto documento-verdade, se prestavam para “editar” o conceito de crime contra o Estado. Se avaliados no seu conjunto, levando-se em consideração a forma como se encontram dispostos dentro de um prontuário, estes documentos (escritos e iconográficos, policiais ou confiscados) expressam o raciocínio das autoridades policiais dedicadas a “construir” a sua versão acerca do agente do delito. 42

Raros foram os momentos em que a sociedade brasileira como um todo vivenciou momentos de total liberdade. Os relatórios de investigação e os autos de busca e apreensão demonstram que, na maioria das vezes, o julgamento das autoridades policiais se faziam baseada em suposições. Estas – orientadas pela lógica da desconfiança e valores preconceituosos – procuravam purificar a sociedade das idéias incômodas. A “pena dos escribas” e a “palavra dos revolucionários” assumiram, no julgamento dos ordenadores, um poder igualável ao fogo. Certas doutrinas foram classificadas de incendiárias; seus princípios tachados de inflamáveis (desorganizadores e dissociáveis); e seus editores transformados em destruidores da ordem, da tranqüilidade e da união nacionais.

Uma nova linguagem tomou conta de ambos os discursos – do ordenador e do revolucionário – sendo que este último levava a pecha de “desordenador da o rdem púb l i c a” . Os pan f l e to s , geralmente desafiavam os estatutos da ordem funcionando como uma espécie de prolongamento da ação subversiva. E como sempre, desordem requer controle; controle atrai censura que, por sua vez, culmina com repressão física e simbólica. O circulo é vicioso e, como todo vício, atrofia o exercício da cidadania.

Uma solução totalitária

Uma questão que intriga os pesquisadores que lidam com os arquivos da repressão e da resistência diz respeito à “morte do documento”: que fim tiveram os impressos confiscados enquanto prova do crime político e, entre eles, milhares de panfletos? Atra-vés das fotografias produzidas pelo Laboratório Técnico do Gabinete de Investigações,

42 Ver Boris Kossoy. Fotografia e História, 2ed. Revista. São Paulo, Ateliê Editorial, 2001; Realidades e Ficções na Trama Fotográfica. São Paulo, Ateliê Editorial, 1999; Os Tempos da Fotografia. O Efêmero e o Perpétuo. São Paulo, Ateliê Editorial, 2007.

12 – Material de propaganda comunista apreendida pelo DEOPS. São Paulo, 19 de maio de 1936. Prontuário. nº 2259, Typographia Communista. Fundo DEOPS/SP. APESP.

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responsável pelo registro das buscas e confiscos, é possível visualizarmos o volume do material apreendido durante um auto de busca e apreensão. Os impressos – selecio-nados segundo seu conteúdo revolucionário – eram expostos de forma a compor um cenário espetacular, capaz de expressar a “veracidade dos fatos” e a “dimensão do peri-go”. Livros, Panfletos, manifestos, boletins, circulares e jornais eram arrumados sobre móveis velhos e caixotes tendo ao lado, quando possível, o maquinário utilizado para a impressão. Estandartes coloridos, álbuns de fotografias, medalhas de honra militar, mapas e diplomas em língua estrangeira complementavam a amostragem selecionada segundo critérios policialescos.

Documentários cinematográficos sobre a periculosidade dos impressos sediciosos chegaram a ser produzidos pelo DIP- Departamento de Imprensa e Propaganda, com a finalidade de serem exibidos ao grande público brasileiro. Alguns títulos do CineJornal Brasileiro produzidos pelo DIP se prestam para ilustrar a ação preventiva e punitiva do governo de Getúlio Vargas: “Defesa nacional: as polícias do Rio e São Paulo”; “Defesa Nacional-São Paulo; a Polícia anula a ação do Eixo”; “Exposição do Estado Nacional”. 43

A imagem que persiste é a de uma nação forte que, através do seu braço repressor – a Polícia Política se defende de perigos multifacetados. Como partidários do proibicionísmo, as autoridades policiais procuravam hierarquizar as idéias submetendo- -as diariamente a um processo seletivo com o objetivo de “purificar” a sociedade. Diabolizados em momentos distintos, o comunismo e o nazismo foram “materializados” através dos objetos e impressos apreendidos, simbolizando a ação purificadora das autoridades oficiais. Na telinha do cinema, em horários nobres, o poder entrava em cena exibindo suas virtudes salvacionistas. Cada imagem – congelada pela foto fotografia ou em movimento pela técnica cinematográfica – se prestava para alimentar mitos políticos, dentre os quais o do complô comunista internacional.44

Apesar de todo este espetáculo direcionado para as maiorias silenciadas, raros são os registros que ilustram a eliminação do impresso sedicioso, entre os quais os panfletos subversivos. No entanto, a somatória de algumas informações nos permite afirmar que o material apreendido pelo DEOPS teve uma solução final: após a seleção “criteriosa”, um exemplar era anexado aos autos como prova do delito político e as cópias (se localizadas) retiradas de circulação e guardadas na sala de Depósito do Material do Deops/SP. Em São Paulo, este local ocupava o espaço onde funcionava a secção de “Bagagem” da antiga Estação Sorocabana.45

43 Defesa nacional: as polícias do Rio e São Paulo”, CJB, v.2, n.117;“Defesa Nacional-São Paulo; a Polícia anula a ação do Eixo”, CJB, v.2, n.º 119; “Exposição do Estado Nacional”, CJB, v.1, n.º 11. Catálogo da Cinemateca Brasileira, São Paulo. Cf. pesquisa realizada por Rodrigo Archangelo, PROIN, 2003.

44 Raoul Girardet, Mitos e Mitologias Políticas, São Paulo, Companhia das Letras, 1987; Rodrigo Patto Sá Mota, “O mito da conspiração judaico-comunista” in: Revista de História, FFLCH-USP, Departamento de História (138), 1998, pp. 93-106; Taciana Wiazovski, Bolchevismo & Judaismo: A Esquerda Judaica Sob a Vigilância do Deops. Inventário Deops: Módulo VI- Comunistas, São Paulo, Imprensa Oficial; Arquivo do Estado, 2001; “O mito da conspiração judaica e as utopias de uma comunidade” in: Maria Luiza Tucci Carneiro (org.), Minorias Silenciadas. História da Censura no Brasil, São Paulo, Edusp;Fapesp, 2002, pp. 265-306.

45 Pront. n.º 131.867, Levantamento do Material Existente no Depósito de Material Apreendido. Departamento de Ordem Política, Deops/SP. APESP.

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Por volta de junho de 1957, foi feito um levantamento do material existente no depósito do DEOPS com o objetivo de solicitar autorização para “industrializar ou incinerar” os impressos apreendidos. Registrado no processo n. 15.688 pela Diretoria Geral da Secretaria de Estado dos Negócios da Segurança Pública do Estado de São Paulo, o pedido foi justificado como uma “medida profilática”.46 Constavam da lista, em relação numérica, todos os livros, panfletos e jornais relacionados por autor, apreendidos entre 1939 a 1945.

A relação “Livros no Depósito do DOPS” (incluindo panfletos, jornais e revistas) foi elaborada em três colunas distintas por nome, autor e quantidade, totalizando 64.087 volumes. Restaram naquele departamento, segundo ofício de José Edgar Pinto de Moraes, delegado adjunto do DEOPS/SP, “apenas o material de propaganda e ideologia contrária aos interesses nacionais”. Constavam da relação: “...alguns pertences à pessôas ignoradas, e outros fazem parte de inquéritos já julgados em última instância pelo extinto Tribunal de Segurança Nacional”. 47

Em 6 de junho de 1957, o material destinado para “industrialização” foi encaminhado à Indústria de Papel e Papelão São Roberto S.A., situada a rua Alcântara, n 328, no bairro da Vila Maria em São Pulo. Autorizado por José Edgard Pinto de Moraes, um caminhão foi carregado com milhares de panfletos, jornais, revistas e livros diversos, acondicionados em caixotes, caixas e fardos. Constavam também “amarrados de fotografias (de japoneses, de súditos do Eixo e de comunistas), “impressos da Shindô-Rinmei [sic], bandeirolas comunistas”, diplomas, fichários e carteiras do P.C.B., papéis da Cia de Ferro e Aço, da Siderúrgica São Paulo-Minas, e da Cia. Brasileira de Borracha, cartilhas japonesas, impressos da Cia. Nacional Indústria Pesada, impressos da Congregação Israelita Paulista, discos, selos e propaganda do PCB., mapas, plantas, cartazes de cinema”, entre outras centenas de papéis sediciosos.48 Duas viagens foram realizadas para transportar 11.090 quilos de impressos que, separados das embalagens, renderam 8.190 quilos de “material servível”.49 Uma outra quantidade de materiais “inúteis e inaproveitáveis” foi remetida ao forno incinerador da Prefeitura Municipal de São Paulo em 15 de maio de 1957, “visto ser impossível a contagem de muitos materiais estragados por umidade”.

Ao constarmos a destruição de impressos “subversivos” por ordem de governos definidos como democráticos, torna-se difícil conceituar censura e repressão como posturas características apenas das práticas autoritárias. A “eliminação” de impressos subversivos deve ser interpretada apenas como a “morte simbólica ou física” do

46 Proc. n.º.15688, Ano 1957. Secretaria de Estado dos Negócios da Segurança Pública do Estado de São Paulo. Interessado: Departamento de Ordem Política e Social da capital, São Paulo. Assunto: Autorização. Anexo ao Pront. n.º 131.867, Levantamento do Material...Deops/SP. APESP.

47 Ofício de José Edgard Pinto de Moraes, Delegado Adjunto do DOPS para o diretor do DEOPS. São Paulo, 4 de junho de 1957, fl. 41. Pront. n.º 131.867, Levantamento do Material...Deops/SP. APESP.

48 Selecionamos apenas alguns exemplos. A listagem completa pode ser consultada junto ao ofício de José Edgard Pinto de Moraes ao diretor do Deops. São Paulo, 4 de junho de 1947. Pront. n.º 131.867, Levantamento do Material..., fls. 54-56. DEOPS/SP. APESP.

49 Auto de Entrega do Material para Industrialização, por José Edgard Pinto de Moraes, Delegado do Deops. São Paulo, 9 de agosto de 1957. Pront. n.º 131.867, Levantamento do Material.... DEOPS/SP.APESP.

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documento, visto que as idéias em prol da liberdade de expressão dificilmente serão consumidas pelo fogo. Podemos considerar que os papéis confiscados pela Polícia Política brasileira apenas perderam o seu valor de uso que equivale, em parte, à morte social do impresso. Felizmente, nem tudo se perdeu: queimaram-se os impressos, ficaram os homens. Morreram os homens, persistiram as idéias. Ou ainda, como muito bem comentou Robert Darnton, referindo-se ao momento em que o carrasco público rasgou e queimou livros proibidos no pátio do Palais de Justice de Paris, em 1878: “...estava-se, enfim, rendendo tributo ao poder da palavra impressa”.

Recorro a uma outra frase, alias muito oportuna, de Jean Baudrillard: “...o social morre de uma extensão do valor de uso que equivale a uma liquidação. Quando tudo, inclusive o social, se torna valor de uso, o mundo se tornou inerte”. Assim, ao identificarmos o volume de impressos que circularam na clandestinidade entre 1924-1983 no estado de São Paulo, temos certeza de que as maiorias silenciosas souberam se organizar enquanto forças de resistência. Romperam, enfim, o silêncio imposto pelo poder.

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Sobre a questão dos arquivos distritais, o próprio Júlio Dantas manifesta a sua preocupação, num relatório datado de 2 de Maio de 1932, que envia ao Director Geral do Ensino Superior26. Considerando que o diploma de 1931 “representa um notável passo dado no sentido da instituïção da rêde de arquivos distritais que o País reclama”, diz o seguinte: “Quere isto dizer que o decreto n.º 19:952 resolveu o problema dos arquivos distritais em Portugal? Infelizmente não. Decorridos quási dez meses sôbre a sua promulgação, eu apenas pude enviar a V. Ex.ª os projectos de decreto instituindo o Arquivo Distrital de Ponta Delgada, já criado de facto, embora não de direito, por acôrdo entre esta Inspecção e a Junta Geral Autónoma; o Arquivo Distrital do Funchal, que o diploma orgânico n.º 19:952 incluíra no número dos arquivos distritais existentes [artigo 10.º, alínea i)], esquecendo-se, entretanto, de definir e de assegurar as suas condições de organização e de funcionamento; e o Arquivo Distrital de Viseu”27. E mais adiante: “O facto de se haver limitado à criação dos três arquivos, que acabo de citar, a actividade da Inspecção durante quási dez meses, significa que esta Repartição encontrou, por parte das juntas gerais e das comissões administrativas dos municípios, dificuldades que até agora não pôde vencer, e que dizem respeito, quer à cedência de edifícios para instalação dos arquivos distritais, quer à inscrição, nos respectivos orçamentos, das verbas necessárias para ocorrer aos encargos dêsses novos serviços”28.

Seguidamente, o inspector descreve as diligências feitas e os obstáculos encontrados em cada um dos distritos, impeditivos do desenvolvimento da rede de arquivos distritais projectada para o País, para concluir o seu relatório com a convicção de que o que restava fazer só poderia “entrar no domínio das realidades quando as condições do Tesouro Público permitirem que o Estado chame a si todos os encargos administrativos dos arquivos distritais existentes, e daqueles que seja necessário ainda criar”29.

2.3. As iniciativas no plano técnico

Apesar dos constrangimentos e limitações que cercearam a actividade da Inspecção nos anos subsequentes, as iniciativas no plano técnico merecem ser realçadas, embora se devam, quase exclusivamente, a António Ferrão, nomeado para o cargo de sub-inspector em 1929 e provido na chefia máxima da Inspecção, em 1946, após a aposentação de Júlio Dantas.

A acção da Inspecção após a promulgação da importante reforma de 1931 pode ser atestada por diversos escritos, designadamente os memorandos ou crónicas publicados nos Anais das Bibliotecas e Arquivos30 ou os relatórios do Inspector Geral,

26 Este relatório foi posteriormente publicado nos Anais das Bibliotecas e Arquivos (ver: DANTAS, Júlio – Criação e organização dos arquivos distritais (ob. cit.).

27 DANTAS, Júlio – Criação e organização dos arquivos distritais (ob. cit.) p. 10.28 Idem, ibidem.29 DANTAS, Júlio – Criação e organização dos arquivos distritais (ob. cit.) p. 13.30 PORTUGAL. Inspecção Geral das Bibliotecas e Arquivos – Nota sumária de alguns assuntos mais

importantes tratados em ofícios e relatórios... durante os meses de Setembro, Outubro, Novembro e Dezembro de 1931... Anais das Bibliotecas e Arquivos. Lisboa. 2.ª série. 9 (1931) 104-106; PORTUGAL. Inspecção Geral

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relativos a inspecções aos estabelecimentos dependentes, também datados de 193231. Igualmente importante é o testemunho de António Ferrão, dado no relatório que elaborou em Setembro de 1931, referente ao período de tempo em que substituiu, interinamente, o Inspector Júlio Dantas, à frente do organismo coordenador das bibliotecas e arquivos32.

Estes escritos, de par com os textos publicados na época em que António Ferrão assumiu as funções de Inspector são as fontes de informação mais ilustrativas da actividade da Inspecção, em todas as suas vertentes, a qual procurou sempre situar-se dentro do quadro legal do Decreto n.º 19.952, de 1931.

Embora a dinâmica da Inspecção tenha esmorecido ao longo dos anos, a verdade é que, no que toca aos aspectos técnicos e normativos, houve algumas iniciativas dignas de nota, apesar das consequências práticas dessas medidas não se terem feito sentir de forma significativa.

Em matéria de tratamento técnico documental e no sentido de melhorar o estado do acesso à informação, incumbia-se a Junta Consultiva das Bibliotecas e Arquivos, entre outras coisas, de “estudar o regime geral da catalogação, bem como de organização de índices, inventários e roteiros para os estabelecimentos dependentes da Inspecção”33, percebendo-se claramente que as “Regras de Catalogação” elaboradas por Raul Proença e postas em prática na Biblioteca Nacional haviam já sido banidas como instrumento de normalização, se bem que ainda continuassem em uso na instituição onde foram geradas.

Além disto, é ainda de realçar o trabalho desenvolvido com vista à identificação e caracterização dos serviços detentores de documentação: o inquérito às bibliotecas municipais, levado a cabo por António Ferrão, em 1932-1933, o qual permitiu concluir que a sua situação era “lamentável”; o projecto de inquérito, elaborado em 1943, por iniciativa de Júlio Dantas, mas do qual foi encarregado, de novo, o sub-inspector António Ferrão, e que se destinava a todos os organismos detentores de acervos documentais, incluindo as “Ilhas adjacentes” e o “Império Colonial”; e um novo inquérito, promovido em 1946, ocupando já António Ferrão o cargo de Inspector.

Como já sucedera em épocas anteriores, as acções de diagnóstico promovidas pela Inspecção eram levadas a efeito com bastante rigor e empenho, mas as consequências naturais deste trabalho, que deveriam saldar-se em medidas concretas para melhoria da deficiente situação detectada, nunca chegaram a efectivar-se.

Nos anos subsequentes, à excepção do período em que António Ferrão dirigiu a Inspecção das Bibliotecas e Arquivos (1946-1954), nada de relevante merece ser assinalado. Nesta fase, porém, o estudo e a reflexão, plasmados em inúmeros relatórios técnicos enviados à tutela, atingiram um nível nunca antes alcançado, mas não lograram

das Bibliotecas e Arquivos – Alguns assuntos mais importantes tratados em ofícios e relatórios... durante o primeiro semestre de 1932. Anais das Bibliotecas e Arquivos. Lisboa. 2.ª série. 10 (1932) 75-81.

31 DANTAS, Júlio – Relatórios do Inspector Geral : inspecções a arquivos. Anais das Bibliotecas e Arquivos. Lisboa. 2.ª série. 10 (1932) 121-133.

32 FERRÃO, António – Alguns serviços dos arquivos e bibliotecas do Estado : relatorio. Lisboa : [s. n.], 1932. (Originalmente publicado em: Diário do Govêrno. 2.ª série. Lisboa. 13 (16 Jan. 1932) 216-223.)

33 PORTUGAL. Leis, decretos, etc. – Ministério da Instrução Pública : Direcção Geral do Ensino Superior e das Belas Artes : Decreto n.º 19:952 (ob. cit.) art. 25.º, § 6.º, p. 1.258.

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atingir a efectiva concretização, pois o despacho superior exarado nas propostas de António Ferrão, quase invariavelmente, resumia-se a um lacónico “Aguarde”.

2.4. A formação profissional

Um outro aspecto que merece ser relevado é o da reorganização do Curso Superior de Bibliotecário-Arquivista, numa perspectiva muito mais centralista, aliás, em consonância com a generalizada reforma da administração pública. Passava agora a ser um “curso exclusivamente profissional”34, tendo sofrido, em conformidade, uma redução curricular. Passou a ter a duração de apenas dois anos e a incluir um elenco de disciplinas muito mais reduzido35.

Uma outra alteração significativa operada teve a ver com as condições de acesso ao curso (agora inteiramente dependente da Inspecção das Bibliotecas e Arquivos e já não da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa), que passava a ter estatuto de curso de pós-graduação. Contudo, esta maior “profissionalização” do Curso teve uma duração breve, pois em 1935, um novo diploma fê-lo regressar à Universidade (desta vez, à Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra), onde se manteve inalterado durante quase meio século, ou seja, até 1982, ano em que foi extinto. A sua concepção assentava numa visão erudita que revelava que a formação dos bibliotecários e arquivistas continuava a ser moldada pela matriz histórico-tecnicista que desde a Revolução Francesa se fora desenvolvendo e consolidando de forma paradigmática.

A evolução internacional, marcada pelo desenvolvimento da informação científica e técnica e pela associação das novas tecnologias ao tratamento da informação, que, sobretudo após a Segunda Guerra Mundial, passou a influenciar os modelos formativos, quer na Europa, quer nos Estados Unidos da América, tardou a produzir efeitos em Portugal. A situação política do País durante o período do Estado Novo, caracterizada por um isolamento relativamente ao exterior, não favoreceu os contactos internacionais nem o acompanhamento da evolução que se verificava na Arquivística, na Biblioteconomia e em novas áreas como a Documentação e a Ciência da Informação (Information Science), em franco desenvolvimento desde o final dos anos cinquenta do século XX. A consciência do atraso que se vivia em Portugal, nomeadamente por parte da classe profissional, conseguiu impulsionar a criação de um modelo de formação alternativo ao velho Curso de Bibliotecário-Arquivista, que se traduziu na criação, em 196936, de um Estágio destinado à preparação técnica de bibliotecários, arquivistas e documentalistas, o qual conferia também habilitação própria para o desempenho

34 PORTUGAL. Leis, decretos, etc. – Ministério da Instrução Pública : Direcção Geral do Ensino Superior e das Belas Artes : Decreto n.º 19:952 (ob. cit.) p. 1.254.

35 As disciplinas eram as seguintes: Bibliologia (um semestre), Biblioteconomia (um semestre), Arquivologia e Arquivo-economia (um semestre), Paleografia (um ano), Diplomática e Esfragística (um ano), Numismática e Medalhística (um semestre) e Iconografia e Iluminura (um semestre) – cf.: PORTUGAL. Leis, decretos, etc. – Ministério da Instrução Pública : Direcção Geral do Ensino Superior e das Belas Artes: Decreto n.º 19:952 (ob. cit.) art. 160.º, p. 1.267.

36 PORTUGAL. Leis, decretos, etc. – Ministério da Educação Nacional : Direcção-Geral do Ensino Superior e das Belas-Artes : Decreto-lei n.º 49.009 [de 7 de Maio de 1969]. Diário do Governo. 1.ª série. Lisboa. 116 (16 Maio 1969) 537-538.

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das funções que, até então, eram asseguradas somente pelo curso de bibliotecário- -arquivista. Mas, apesar da existência desta outra modalidade de formação, o curso instituído, em 1935, na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, continuava a ser o modelo dominante, mantendo um figurino clássico bem em consonância com a formação académica coimbrã.

3. Da inoperância à extinção

A Lei n.º 1.941, de 11 de Abril de 193637, dera enquadramento a uma reestruturação do Ministério da Instrução Pública, que passara a denominar-se Ministério da Educação Nacional, e criara a Junta Nacional da Educação, órgão técnico e consultivo ao qual competiam os problemas inerentes à formação do carácter, ao ensino e à cultura. Na 6.ª secção, Belas Artes, era incluída uma sub-secção, intitulada “Literatura, Bibliotecas e Arquivos”, cuja vice-presidência cabia ao Inspector Superior das Bibliotecas e Arquivos. A esta sub-secção eram adstritas competências técnicas, em que se inseriam, entre outras, a de promover a inventariação e catalogação das espécies documentais e a elaboração do catálogo colectivo das bibliotecas portuguesas, dois objectivos recorrentes em todas as reformas legislativas promulgadas desde a criação da Inspecção, mas permanentemente adiados na sua concretização.

Contudo, este facto não veio contribuir para que novas medidas de fundo fossem tomadas pela Inspecção. As preocupações historicistas continuavam a ser um dos aspectos dominantes, particularmente no tocante aos arquivos, mas as acções efectivas também não se concretizavam, quer por constrangimentos orçamentais, quer por falta de vontade política. A criação dos arquivos distritais, por exemplo, acontecia a uma ritmo confrangedor.

Após a retirada de António Ferrão do cargo de Inspector, a gestão corrente passou a dominar a actividade da Inspecção, não se concretizando iniciativas dignas de referência. Na verdade, foi esmorecendo paulatinamente, sendo apropriado usar as palavras de Mesquita de Figueiredo aplicadas ao Arquivo Nacional nos princípios do século: o “estado de torpor” instalara-se no organismo tutelar das bibliotecas e dos arquivos.

O dirigente que sucedeu a António Ferrão no cargo de Inspector foi o bibliotecário- -arquivista Luís Silveira, que havia sido Director da Biblioteca Pública de Évora. Procurou, nos primeiros tempos, promover algumas iniciativas, sendo de referir o relançamento dos Anais. Mas, em contraste com o que fora esta publicação no tempo de António Ferrão, a nova série assumiu muito mais o carácter de revista cultural erudita do que o de uma publicação técnico-científica de Biblioteconomia e Arquivística.

Além disso, representou Portugal em diversos encontros internacionais, mas apesar da importância de que se revestiam tais eventos, particularmente num período em que o País vivia isolado da Europa, a verdade é que a participação nessas reuniões internacionais se saldava mais numa presença pessoal do Inspector do que numa representação institucional, não tendo, portanto, quaisquer repercussões nos meios arquivísticos e biblioteconómicos portugueses.

37 PORTUGAL. Leis, decretos, etc. – Ministério da Instrução Pública : Lei n.º 1:941. Diário do Govêrno. 1.ª série. Lisboa. 84 (11Abr. 1936) 411-413.

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Uma outra iniciativa que importa assinalar, nos primeiros anos do seu mandato, foi a tentativa de elaboração de um roteiro completo e actualizado das bibliotecas e dos arquivos de Portugal38, dado que a falta deste roteiro “era grave e impeditiva de progresso firme” dos seus trabalhos no desempenho do cargo de Inspector Superior das Bibliotecas e Arquivos. Mas, a intenção declarada nos Anais – “todos os trabalhos em curso, cujos resultados irão sendo expostos sistemàticamente, abrangem, como fica dito, todas as bibliotecas portuguesas e darão elementos de apreciação e estudo, tanto de ordem quantitativa como qualitativa, tão extensa, completa e desenvolvidamente quanto nos for possível”39 – não passou, na verdade, de isso mesmo: uma intenção.

A partir desta época, não há quaisquer desenvolvimentos ou iniciativas relevantes, tendo a Inspecção entrado numa apatia que acabou por conduzir à reforma legislativa de 1965. Com efeito, dois diplomas datados de 22 de Maio desse ano vão promover uma alteração estrutural ao quadro vigente desde 1931: por um lado, a promulgação do Regimento da Junta Nacional da Educação, em cujas secções se incluía uma especificamente dedicada às bibliotecas e arquivos40; por outro, uma reestruturação “vasta e profunda” neste sector, que extinguiu a Inspecção como organismo autónomo e reequacionou as políticas a pôr em prática daí em diante41.

O elenco de atribuições cometidas à Junta Nacional da Educação é elucidativo do que continuava por realizar, particularmente no que respeitava à disponibilização para consulta pública de documentos que o Estado custodiava e que tinha obrigação de tornar acessíveis. Afinal, a política incorporacionista – iniciada ainda no século XIX, mas prosseguida pela Primeira República e pelo Estado Novo –, ao abrigo da qual tinham passado para a tutela estatal incomensuráveis quantidades de documentação, não vira concretizado um dos seus desideratos fundamentais: tornar público e acessível o que era de todos os cidadãos.

O inconformismo dos profissionais dos arquivos e bibliotecas, relativamente à situação de imobilismo que afectava o sector bibliotecário e arquivístico trouxe à luz os seus efeitos no início da década de 60. Começaram a organizar-se e a tornar públicas as suas preocupações através de uma publicação de carácter técnico – os Cadernos de Biblioteconomia e Arquivística42 –, nascida em 1963, que passou a ser um pólo em torno do qual um grupo desencadeou uma dinâmica tendente a pôr em marcha um processo

38 Foi, pelo menos, a quinta vez que, por iniciativa da Inspecção, se realizou um inquérito de diagnóstico da situação das bibliotecas e dos arquivos.

39 SILVEIRA, Luís – Roteiro das bibliotecas e dos arquivos de Portugal : situação das bibliotecas municipais do continente. Anais das Bibliotecas e Arquivos de Portugal. Lisboa. 3.ª série. 1 (1958) XVIII.

40 PORTUGAL. Leis, decretos, etc. – Decreto n.º 46 349. Diário do Governo. 1.ª série. Lisboa. 114 (22 Maio 1965) 711-718.

41 PORTUGAL. Leis, decretos, etc. – Direcção-Geral do Ensino Superior e das Belas-Artes : Decreto n.º 46 350. Diário do Governo. 1.ª série. Lisboa. 114 (22 Maio 1965) 718-724 (com uma rectificação em: Diário do Governo. 1.ª série. Lisboa. 132 (14 Jun. 1965) 828). Este diploma pode também ser consultado em: Organização dos serviços das bibliotecas e arquivos : Decreto-Lei n.º 46.350. Bibliotecas e Arquivos de Portugal. Lisboa. 1 (1969) 233-255.

42 Esta publicação passou, mais tarde, a designar-se Cadernos de Biblioteconomia, Arquivística e Documentação, título que ainda hoje mantém, sendo abreviadamente referida como “Cadernos BAD”.

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de renovação que se prolongou por muitos anos43 e que, sem dúvida, contribuiu para a promulgação do Decreto-Lei n.º 46.350, de 22 de Maio de 1965, que reformou o sector bibliotecário e arquivístico do Estado.

Este diploma explicita, claramente, no seu preâmbulo, as motivações que estiveram na origem da sua aprovação, nomeadamente a actualização que urgia empreender, visto que o regime legal em vigor tinha já mais de três décadas. Reconhece-se, inequivocamente, o estado de atraso que as bibliotecas e os arquivos conheciam, bem como as deficiências na sua organização e funcionamento, dizendo-se: “… os nossos serviços bibliotecários e arquivísticos estão muito longe de cumprir a sua missão. Núcleos importantes do nosso património documental se encontram espalhados por todo o País sem que se lhes dispensem os mais elementares cuidados de guarda e conservação. Por outro lado, os nossos estabelecimentos continuam a ter os seus fundos incompleta e defeituosamente inventariados e catalogados, quando não estão convertidos em simples armazéns de papéis e livros sobre que não se exerceu ainda o mais leve trabalho de reconhecimento”44.

Para tornar mais eficaz a política que se delineava para o sector, foi decidido alterar a subordinação orgânica dos serviços até então dependentes da Inspecção das Bibliotecas e Arquivos – considerada neste diploma como “um organismo simultâneamente burocrático e técnico” –, passando-os para a dependência directa da Direcção-Geral do Ensino Superior e das Belas-Artes, ou seja, extinguindo a figura da Inspecção como organismo coordenador das bibliotecas e arquivos e de toda a política nesta área45. O legislador assume peremptoriamente a necessidade de alterar a situação vigente: “Tem de modificar-se este regime, que oferece os mais sérios inconvenientes. Por um lado, absorvendo com exigências puramente administrativas grande parte do esforço do pessoal, leva a sacrificar as mais importantes formas de actividade técnica. Por outro, reduzindo frequentemente a Inspecção no domínio burocrático ao papel de mera estância de transmissão, de simples ponte de passagem entre os estabelecimentos e a Direcção-Geral, conduz a inútil duplicação de formalidades e a consequente demora na resolução dos assuntos”46.

Assim, a reforma de 1965 pôs fim a um ciclo em que a Inspecção das Bibliotecas e Arquivos tinha um papel decisivo em tudo quanto a estes organismos dizia respeito. O dinamismo que caracterizara a sua actividade até meados da década de trinta e no período da tutela de António Ferrão contrastou com os últimos anos da sua vigência, pautados pela inoperância e imobilismo que acabaram por conduzir à sua extinção.

43 Sobre a actividade dos profissionais nesta época, ver: REAL, Manuel Luís – Gestão do património arquivístico nacional. In: CONGRESSO NACIONAL DE BIBLIOTECÁRIOS, ARQUIVISTAS E DOCUMENTALISTAS, 2.º, Coimbra, 1987 – A Integração europeia : um desafio à informação : actas. Coimbra : Livraria Minerva, 1987. p. 207-246.

44 Organização dos serviços das bibliotecas e arquivos (ob. cit.) p. 234.45 A Direcção-Geral passava a exercer “todas as atribuições, faculdades e poderes conferidos pela legislação

anterior à Inspecção Superior das Bibliotecas e Arquivos que não tenham passado para outro órgão ou serviço” (cf.: Organização dos serviços das bibliotecas e arquivos (ob. cit.) p. 244).

46 Organização dos serviços das bibliotecas e arquivos (ob. cit.) p. 235.

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Clara Isabel Serrano

O ESTAdO NOvO: (RE)vISITANdO OS mANUAIS dE HISTóRIA pORTUgUESES

1.1. Catalogação e Análise Quantitativa dos Manuais

O estudo efectuado abrangeu as disciplinas de História e Geografia de Portugal do sexto ano (segundo ciclo do ensino básico) e de História do nono ano (terceiro ciclo do ensino básico) e do décimo segundo ano de escolaridade (ensino secundário), tendo sido analisados os manuais de cinco editoras. As editoras foram seleccionadas com base nos seguintes critérios:

– As que apresentam uma política editorial da qual resulta a edição de colecções o mais completas possíveis de manuais e guiões;

– As que se revestem de forte representatividade no mercado para os níveis escolares em consideração.

Os materiais para uso dos alunos foram abrangidos na sua totalidade pela designação de “manuais”.

Nos materiais para uso dos professores constatámos uma diversidade de concepções que podem consubstanciar-se em dois modelos distintos:

a) Um modelo corresponde a materiais que, embora tenham em conta o programa da disciplina, são independentes dos manuais existentes, quer a nível de organização dos conteúdos, quer a nível das metodologias, sendo mesmo de autores diferentes. São livros essencialmente concebidos como instrumentos de auto-formação do professor;

b) O outro modelo abrange materiais que acompanham de perto determinado manual do aluno, ilustrando estratégias a seguir, sugerindo pistas complementares ou alternativas.

Os manuais escolares portugueses, bem como os currículos nacionais1, apontam para uma perspectiva de História Universal e Europeia centrada na História de Portugal e, neste caso, há duas formas de apresentar as matérias: tratar algumas estruturas globais

1 Vide Currículo Nacional do Ensino Básico. Competências Essenciais, Lisboa, Ministério da Educação, Departamento da Educação Básica, 2001, p. 102.

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a partir da História Nacional ou tratar as conjunturas europeias, onde se insere a análise do caso português, que se destaca pela sua especificidade2 (e mostram uma Europa constituída por nações que se desenvolvem num mundo político, económico e cultural diversificado, embora com traços comuns)3. Ou seja, a dimensão europeia é introduzida de forma a esclarecer a História Nacional e/ou mostrar o contributo (decisivo) que um ou vários países deu ou deram à História da Europa.

O estudo do Estado Novo encontra-se incluído no programa oficial da disciplina de História e Geografia de Portugal do sexto ano, no tema “O Século XX”, no segundo subtema “O Estado Novo”4. No programa do nono ano de escolaridade está inserido no tema dez “Da Grande Depressão à Segunda Guerra Mundial”, no segundo subtema “Entre a Ditadura e a Democracia”, na rubrica “Portugal: a ditadura salazarista” e no tema onze “Do Segundo Após-Guerra aos Anos Oitenta”, no terceiro subtema “Portugal: do autoritarismo à democracia”5. No programa do décimo segundo ano6 está inserido no módulo oito “Portugal e o Mundo da Segunda Guerra Mundial ao Início da Década de 80 – Opções Internas e Contexto Internacional”, no segundo tema “Portugal do autoritarismo à democracia”7.

Com as sucessivas reformas curriculares introduzidas regista-se uma visível diminuição do tempo e do espaço dedicados ao estudo da História, em geral e, ao Estado Novo, em particular8. Para formarmos uma ideia muito clara do assunto bastará dizer que, das duzentas e quarenta páginas que em média os manuais portugueses do nono ano de escolaridade têm, apenas trinta e cinco páginas, ou seja, 14,5% do manual, são dedicadas ao Estado Novo. Ademais, podemos constatar que nestas proliferam as ilustrações e as actividades.

Nos manuais portugueses pode-se ainda verificar um processo evolutivo muito claro no que toca à correlação entre os textos propostos pelos autores, os documentos históricos incorporados e as actividades propostas aos alunos. A evolução consiste numa

2 Ana Henggler, “O Ensino da História de Portugal: Um Estudo Comparativo (1936, 2000)” in Ensino da História, Lisboa, III série, n.º 18, Associação de Professores de História/A: P: H:, Outubro de 2000, p. 63.

3 António Simões Rodrigues, “Um manual de História da Europa. A construção de uma utopia?” in: Estudos do Século XX, Europa-Utopia/Europa-Realidade, n.º 2, CEIS 20, coord. de Maria Manuela Tavares Ribeiro, Coimbra, Quarteto Editora, 2002, p. 216.

4 Vide Fátima Costa, António Marques, História e Geografia de Portugal 6.º ano, Porto, Porto Editora, 2005, p. 3.

5 Vide Programa História, Plano de Organização de Ensino-Aprendizagem, Ensino Básico, 3.º Ciclo, volume II, 3.ª edição, Lisboa, DGEBS/INCM, 1994, pp. 71 – 72 e 77.

6 O programa de História A do décimo segundo ano de escolaridade entrou em vigor no ano lectivo de 2005/2006, no quadro do Decreto-Lei n.º 286/89, de 29 de Agosto, que estabelece os princípios gerais da estruturação curricular dos ensinos básico e secundário, estando apenas em vigor os aspectos respeitantes ao ensino secundário, e em turmas residuais.

7 Vide Clarisse Mendes (coord. de), Cristina Silveira, Margarida Brum, Programa de História A. 10.º, 11.º e 12.º Anos. Curso Científico – Humanístico de Ciências Sociais e Humanas. Formação Específica, Lisboa, Ministério da Educação/Departamento do Ensino Secundário, 2002, pp. 53 – 55.

8 A diminuição da carga horária é visível na mudança de cento e oitenta minutos para os actuais cento e trinta e cinco ou até mesmo noventa minutos semanais que a disciplina de História tem no segundo e no terceiro ciclos do ensino básico.

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presença cada vez mais reduzida do texto em benefício das imagens, da transcrição de documentos e da multiplicação de actividades.

Estas transformações no conteúdo e na forma dos manuais devem-se a uma pressão cada vez maior dos currículos oficiais, que conferem ao professor e ao manual o papel de guia na aprendizagem activa dos alunos. Esta tendência conduz, em alguns casos, a uma certa forma de “activismo pedagógico” de duvidosa coerência com os preceitos curriculares oficiais, explicitamente comprometidos com a interiorização progressiva de um ethos científico-investigador por parte dos estudantes do terceiro ciclo do ensino básico e do ensino secundário. Por outras palavras, o tornar os manuais mais apelativos através da proliferação de imagens ou menos fastidiosos para as turmas devido à abundância de actividades heterogéneas, não contribui necessariamente para o desenvolvimento do “espírito científico”. Em certas ocasiões, há que dizê-lo, as actividades propostas pelos manuais e desenvolvidas nas aulas parecem ter mais de lúdico do que de didáctico.

1.2. O Estado Novo nos Manuais de História

Com a inclusão deste tema nos manuais, pretende-se que os discentes:

– conheçam “as condições de institucionalização do “Estado Novo” em Portugal, destacando o papel de Salazar nesse processo”9;

– caracterizem o “Estado Novo” nas suas dimensões repressiva, conservadora, corporativa e colonial”10;

– “expliquem as condições que conduziram nos anos 50 e 60 à aplicação de medidas de fomento industrial e à abertura aos capitais estrangeiros”11;

– “relacionem a estagnação da agricultura com a afluência de população aos grandes centros urbanos e com a fortíssima emigração”12;

– “compreendam as razões da oposição interna ao regime e conheçam figuras e factos relacionados com essa oposição”13;

– “expliquem a eclosão, em Angola, em Moçambique e na Guiné, de movimentos armados a favor da independência, reconhecendo os pesados custos humanos e materiais da guerra colonial”14;

– “identifiquem o marcelismo como uma tentativa de democratização do regime, feita a partir do seu interior e tornada impossível pelas contradições dos grupos de apoio a esse regime”15;

9 Programa História, Plano de Organização de Ensino-Aprendizagem, Ensino Básico, 3.º Ciclo, volume II, 3.ª edição, Lisboa, DGEBS/INCM, 1994, p. 71.

10 Idem, ibidem.11 Idem, ibidem.12 Idem, ibidem.13 Idem, ibidem.14 Idem, ibidem.15 Idem, ibidem.

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quase sempre restringidos ao período posterior ao final da Segunda Guerra Mundial3. A grande maioria utiliza como fontes a documentação provinda dos meios de repressão, nomeadamente a PVDE e a PIDE, os depoimentos dos sobreviventes, ou ainda, os documentos cedidos por grupos ou partidos, para além de impressos e publicações periódicas. Em todos os casos, como ocorre com a maior parte das fontes utilizadas pelos historiadores, estes materiais envolvem problemas de interpretação, alguns mais complexos do que outros, tanto mais se forem disponíveis para o historiador.

No primeiro caso apontado, a documentação proveniente dos relatórios dos agentes de repressão podem conter verdadeiras armadilhas para o historiador: esses agentes ou os informadores em que se apoiam condicionados pela necessidade de manutenção do ideal da “conspiração”, elaboram os seus relatos dentro dos parâmetros do próprio discurso oficial acerca do comportamento dos seus “inimigos”. Mais do que fonte de informações, estes relatórios traduzem a imagem que o regime “constrói” a respeito dos seus opositores, na qual a realidade é enquadrada de acordo com a necessidade do informante de reproduzir o sistema. Assim sendo, a hipérbole e a simples menção a boatos, muitos deles criados pelos próprios informantes, podem induzir leituras equívocas por parte do investigador4.

De igual forma, a memória pessoal dos militantes está condicionada pelo discurso oficial da “história do partido”, o que contribui para a “reelaboração” constante da memória histórica da oposição. À medida que um elemento ou determinado episódio ganham vulto no contexto partidário cresce a sua importância na memória “militante”. A memória individual passa a aceitar como realidade vivida os dados que lhe são apresentados pela história “oficial” ou oficiosa, seleccionando acontecimentos, incorporando como experiência própria as versões que lhe são apresentadas a posteriori5. Pacheco Pereira atesta este processo quando trata da actuação de Álvaro Cunhal nos seus primeiros anos no PCP:

“A viagem de Álvaro Cunhal a Espanha tornou-se, com o tempo, num acontecimento envolto em mistério, sobre o qual o próprio Cunhal e o PCP foram dando versões contraditórias. No entanto, se analisarmos os testemunhos e os documentos acessíveis, o que aparece é uma ‘construção’ dos objectivos da viagem que muda, com o tempo, à medida que a importância de Cunhal no PCP vai aumentando e a sua biografia se vai fazendo e refazendo.6”

3 A grande referência para os estudos da oposição continua a ser o livro de Raby, Dawn Linda. A Resistência Antifascista em Portugal. 1941-1974. Lisboa, Salamandra, 1988. Sobre o movimento socialista e a sua constituição como partido no exílio temos Martins, Susana. Socialistas na Oposição ao Estado Novo. Lisboa, Casa das Letras, 2005.

4 Sobre o tema, ver, entre outros: Paulo, Heloisa. “A imagem Oficial: os Budas e a espionagem salazarista”, comunicação apresentada no Congresso Internacional “Intolerância em tempos de fascismo”, de 20 a 22 de Novembro de 2006, promovido pela Universidade de São Paulo, Ceis 20 e Universidade de Bologna, Universidade de São Paulo, Brasil (Actas no prelo).

5 A memória pessoal é selectiva e passível de reelaboração à medida que novos dados da história colectiva são incorporados como “verdades” oficiais ou oficiosas. Sobre a temática ver, entre outros, Fentress, James e Wickham, Chris. Memória Social. Novas perspectivas sobre o passado, Lisboa, Teorema, 1994.

6 Pereira, José Pacheco. Álvaro Cunhal. Uma biografia política. “Daniel”, o Jovem Revolucionário (1913-1941). Lisboa. Temas e Debates, 1999, p. 190.

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Este processo é comum a todos os grupos de opositores, não se limitando aos partidários. Assim sendo, cada sector da oposição “elabora” a sua própria memória, edificando uma imagem positiva da actuação dos seus membros. O texto em epigrafe é um dos exemplos deste tipo de elaboração, no qual um participante da resistência republicana em Espanha, ele próprio um dos dissidentes do Plano Lusitânia, solicita ao filho do Comandante Jaime de Morais que omita as discordâncias e cissões entre militantes quanto ao rumo da operação militar, de forma a manter uma imagem de consenso entre os participantes7.

Desta forma, cada grupo afirma-se deetentor da veracidade dos factos, apresentando os testemunhos como “provas” incontestáveis de uma história que pretende ser a única versão possível do combate contra o salazarismo. Esta lógica está presente na apresentação feita por Oliveira Pio ao livro de Mário Mendez da Fonseca, um dos principais líderes da oposição emigrada na Venezuela:

“[…]En ellos se reproducen documentos, se narran hechos, se denuncian crimenes, que constituirán elementos decisivos en el proceso contra el salazarismo, el dia en que éste fuera llamado a la barra del grande tribunal de la Historia. Adémas la lucidez de sus conceptos, la claridad de sus observaciones, el detalle con que nos presenta los acontecimentos que mejor caracterizan o definen el sistema salazarista, serán de enorme valia para quienes, en el futuro, pretendan efectuar un estúdio sério, imparcial y verdadero de aquel régimen nefasto e inhumano”8

No que respeita à documentação oriunda das instituições partidárias, os panfletos, jornais etc…, ou seja, o material de propaganda dirigido ao público constitui a fonte privilegiada das investigações. Tal decorre do facto de que os documentos internos dos partidos, tais como relatórios, actas e demais documentação, na sua grande maioria, estarem fora do alcance do investigador. Em alguns casos, como a documentação respeitante ao Movimento Nacional Independente, vinculado aos apoiantes de Humberto Delgado no Brasil, é o próprio local em que se encontram depositados que não garante a manutenção e o fácil acesso aos documentos9. Em resumo, o controlo do acesso à documentação produzida pelos partidos condiciona as análises e a memória da oposição, limitando-as ao recorte definido pelas directrizes partidárias: é o caso, por exemplo, do PCP, que ainda mantém os seus arquivos fechados aos historiadores.

A “história” presente nestes três tipos de documentos é, portanto, repleta de contradições, oscilando e divergindo de acordo com a fonte escolhida, quer seja a das forças da repressão, quer a das diversas versões dentro da própria oposição. Não

7 Mário Fernandes participa do Plano Lusitânia e, segundo o relato de Jaime de Morais em carta para Moura Pinto, ele é um dos que se nega a prosseguir com o planeado após o incidente envolvendo Pedro Rocha, também mencionado no texto, e a morte de um anarquista no Campo de Centelhas onde estavam acantonados. Ver carta de Mário Fernandes endereçada a Óscar de Morais, datada do Porto de 5 de Janeiro de 1984, duas folhas dactilografada. Arquivo da Família.

8 Prefácio de Oliveira Pio ao livro de Mario Mendez Fonseca. 42 años de “Estado Novo”. Pátria sin Hombres y Hombres sin Pátria.Caracas. Ediciones do Movimiento Democrático de Liberacion de Portugal y sus Colonias. 1969, p. 13.

9 O material encontra-se no Museu da República e da Resistência, tendo permanecido durante mais de duas décadas em uma caixa de ferro, a mesma que serviu de transporte da documentação do Brasil para Portugal.

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sendo os opositores um grupo uniforme, dificilmente as interpretações das acções empreendidas possuem a mesma leitura, variando conforme as versões oficiosas de cada um dos grupos envolvidos. A busca de protagonismo é uma tónica presente em todos os discursos, quer de opositores, quer de repressores. A justificação do fracasso é sempre atribuída ao inimigo, salvo algumas excepções, como nos casos dos republicanos que participam dos primeiros movimentos de contestação ao regime ditatorial. Na grande parte das vezes, prevalece a noção de que a oposição, qualquer que fosse a sua directriz ideológica, sempre esteve a um passo da vitória; os fracassos são imputados, invariavelmente, à repressão exercida pelo regime sobre os seus opositores. Este argumento é recorrente na maioria dos relatos dos combatentes do regime, estando presente directa ou indirectamente nas fontes referenciadas.

Uma das grandes lacunas nesta “história da oposição” diz respeito aos exilados políticos e às suas actividades fora do país, que, ainda não possuem um estudo sistemático, malgrado a existência de trabalhos como o de Cristina Clímaco10, ou ainda, obras de cunho mais sociológico, como o trabalho de Douglas Mansur da Silva sobre o Portugal Democrático, jornal de uma parcela da oposição portuguesa em São Paulo, Brasil11. Contribuindo para este “branco” na historiografia, está a falta de “memória histórica” acerca de alguns dos mais combativos opositores do regime, que, ao morrerem fora de Portugal ou/e antes do 25 de Abril, foram alijados da imensa lista de memórias individuais e, aparentemente, fadados ao esquecimento a que foram relegados pelo salazarismo. Nomes como o de Jaime de Morais, Moura Pinto, Abílio Águas, Oliveira Pio e tantos outros cujos escritos e anotações autobiográficas poderiam acrescentar mais uma possibilidade de leitura acerca dos opositores e da sua postura frente aos diversos segmentos da oposição e ao regime.

2. A Oposição republicana e a sua história: novas versões acerca dos movimentos oposicionistas republicanos.

“Permita-se a uma relíquia da velha guarda tentar a defesa da sua dama.” 12

Para os movimentos oposicionistas ao governo da Ditadura Militar, a historiografia contemporânea, fora os trabalhos já clássicos de Oliveira Marques13, conta com investigações temáticas, como a Revolta de Fevereiro de 1927, sublinhada pelo trabalho de Luís Farinha, ou as revoltas da Madeira e dos Açores, tema da publicação de Célia

10 Ana Cristina Clímaco, L’Exil politique portugais en France et en Espagne, 1927-1940. Dissertação de doutoramento em Sociedades Ocidentais, apresentada à Universidade de Paris 7 (Denis Diderot), (Paris: 1998).

11 Silva, Douglas Mansur. A Oposição ao Estado Novo no Exílio Brasileiro 1956-1974. Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 2006.

12 Morais, Jaime. “Rabugices da Velhice”. Notas autobiográficas. Manuscrito dactilografado. p. 1. Arquivo Jaime de Morais. Fundação Mário Soares.

13 Ver, entre outros, Marques, A.H. de Oliveira. A unidade da Oposição à Ditadura (1928-1931), Lisboa, Europa-América, 1973; ou, Marques, A. H. Oliveira. A Liga de Paris e a ditadura militar (1927/1928), Lisboa, Europa-América, 1976.

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Reis14. De uma forma geral, a oposição é considerada como uma força expressiva de resistência ao regime, tomando como referência a actuação organizada de alguns sectores ou partidos em momentos específicos: as revoltas contra a ditadura ou a acção conjunta da oposição nos processos eleitorais, cujo exemplo mais paradigmático é o de 195815.

Ao contrário da produção memorialista da oposição mais recente sobre a sua própria acção, os movimentos do chamado “reviralho” possuem poucos relatos na primeira pessoa. Neste núcleo de memórias, o movimento de 1927, descrito como a primeira tentativa real de afrontamento à ditadura, ganha realce, nomeadamente no relato de Sarmento Pimentel ou nas notas biográficas de Jaime de Morais16. Em todos os casos, e, em especial, no relato “historiográfico” oficioso dos republicanos, realizado por um dos participantes do levantamento – Raul Rêgo, e a sua História da República –, o balanço das razões do fracasso do movimento reflecte os diversos níveis de desarticulação dos opositores. Entre os factores apontados, são destacadas a falta de sincronia dos apoiantes e as divergências políticas dos republicanos, que marcam a trajectória de combates da oposição reviralhista:

“Eu tinha cometido um erro imperdoável, donde ai resultar o nosso desastre. Não trouxe de Lisboa um grupo dos meus brilhantes oficiais de ligação. Se a meu lado estivessem no Porto, e se tivessem percorrido outras cidades do Norte e do Centro, o fracasso que nelas se deu ter-se-ia evitado.”17

“Havia que acabar com a ditadura, pensavam até os mais moderados liberais, mas os políticos da República não se entendiam […]

Após infrutíferas, penosas, irritantes démarches políticas, resolveram os conspiradores ir para a revolução sem qualquer apoio partidário. […]”18

“A Revolução estala em 3 de Fevereiro, no Porto. Não apanhou o Governo de surpresa, já que os ares andavam turvos, mesmo na calma com que decorrera a visita de Carmona ao Porto. O Governo estivera reunido, durante toda a noite de 2 para 3, no Quartel de Artilharia 3. Esperava-se a revolta simultânea, em Lisboa e Porto. Mas não. Daí o desastre. Não sai igualmente com toda a força de que dispunha ou que estava comprometida. A organização poderia e deveria ter ido mais longe, arrostando com as dificuldades dos ronceiros; mas o optimismo, contando com adesões que não vieram e outras que demoraram, foi fatal.”19

14 Ver, Reis, Célia. A Revolta da Madeira e Açores (1931). Lisboa, Livros Horizonte,1990; Farinha, Luís. O reviralho : revoltas republicanas contra a ditadura e o Estado Novo: 1926-1940. Publicação/Produção Lisboa: Estampa, 1998.

15 Ver, entre outros. Delgado, Iva; Pacheco, Carlos; Faria, Telmo (coord.). Humberto delgado, as eleições de 1958, Lisboa, Vega, 1998.

16 Ver, Pimentel, J. Sarmento. Memórias do Capitão. Porto, Editorial Inova, 1974 e as notas biográficas de Jaime de Morais no seu arquivo pessoal depositado na Fundação Mário Soares.

17 Morais, Jaime. “O 3 de Fevereiro de 1927”. Notas autobiográficas. Manuscrito dactilografado. p. XXII. Arquivo Jaime de Morais. Fundação Mário Soares.

18 Pimentel, J. Sarmento. Memórias do Capitão. Porto, Editorial Inova, 1974, p. 206.19 Rego, Raul. P História da República. Volume V. Lisboa, Círculo dos Leitores, 1987, p. 84.

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[…]Recorda-se o J.C., que, do nosso Comité Político inicial, onde JC representava a Seara Nova, chamada a primeiro plano das formações políticas; onde Tamagnini e Feliciano da Costa representavam os nacionalistas; onde António Maria e David Rodrigues representavam os democráticos; onde o cabeludo Lopes de Oliveira falava pelos radicais, e eu, pela legião de conjurados militares autónomos?

E não é verdade que, em face da recusa formal que democráticos (e mesmo nacionalistas?) fizeram de aceitar um delegado de Esquerda, Eu os forcei (contra o desejo deles e mesmo contra a resistência dos próprios interessados, que nunca compreenderam a nossa leal atitude) a aceitarem-me, também, como representante da Esquerda Democrática?

E não é certo que, arrostando contra tudo e quase todos acabei por impor a representação esquerdista em todos os comités regionais e mesmo impus um ministro deste Partido, no Ministério que sairia do 3 de Fevereiro, no caso o Pina de Moraes, na pasta do Comércio, o que tão pouco serviu, não digo para ser agradecido, mas mesmo hostilizado e mais que isso, pelo próprio Pina de Moraes, que nunca acabou por compreender o que se passava e passou?

[…]E lembrar-se-á ainda das ridículas instruções que Afonso nos mandava de paris,

procurando impor nomes que nem o Diabo conseguiria fazer vingar, e opondo vetos de que os nossos colegas se riam a gargalhadas?20

Assim sendo, os depoimentos dos republicanos constatam a divisão interna dos opositores do chamado “reviralho”, atestando uma “continuidade” do clima de instabilidade política dos últimos anos da antiga República. A admissão das dissidências leva à descrição do próprio golpe militar de 1926 como consequência directa da cisão existente no seio do próprio republicanismo. A “Revolução de Maio” seria o fruto de uma escolha mal sucedida, realizada por sectores republicanos, que, no primeiro momento, esperavam o fim das querelas políticas e do caciquismo político da I.ª República:

“No dia e hora marcados, a procissão saiu para rua. Quem especialmente quiser ver a verdade, facilmente reconhece que, nesse dia e hora, apenas se manifestaram unidades comandadas por oficiais republicanos […]

O meu vaticínio resultou certo o 28 de Maio ia ser feito por republicanos exclusivamente […]

Uma coisa, porém, jamais compreendi: a integral inércia do governo presidido por António Maria dos Santos, considerado como o às da preparação de revoluções e bem assim da sua inutilização. Nenhuma resistência parte do governo. Mais ainda faz-se resistência as resistências que surgem espontaneamente.”21

20 Morais, Jaime. Documento solto dactilografado, possível resposta ao pedido de apoio a carta de protesto de Henrique Galvão. p. 3. Arquivo Jaime de Morais. Fundação Mário Soares.

21 Morais, Jaime. “O 28 de Maio”. Notas autobiográficas. Manuscrito dactilografado. p. 2. Arquivo Jaime de Morais. Fundação Mário Soares.

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“A Revolução triunfara em Lisboa com a nomeação de Cabeçadas para a chefia de governo, sem dispara um tiro. Não se compreende como, se em Braga, a 29 à noite, ainda Gomes da Costa está disposto a render-se”.22

A falta de consenso entre os republicanos e a incoerência entre o ideal e a prática política, subentendida nas actuações dos últimos governos anteriores ao 28 de Maio, persistem na análise dos membros da oposição republicana e nas suas tomadas de decisão:

“Não julgue que entre nós, republicanos, havia uma total fraternidade de pensamento e de acção. […]

No nosso clan havia indiscutíveis e indiscutidas vedettes, como hoje se diz. Sem dúvida alguma que Afonso Costa, António José de Almeida, Bernardino Machado, Alexandre Braga. Teófilo Braga, M. de Arriaga, Brito Camacho, eram as personalidades mais destacadas, mais conhecidas do povo e que nos nossos admiráveis comícios eram os verdadeiros ídolos.

Note-se, porém, que se no plano da propaganda eram indiscutíveis, no da organização talvez deixassem muito a desejar.”23

Em 1928, uma nova tentativa revolucionária fracassa. A análise das razões do insucesso retoma as questões anteriores, e, mais uma vez, é realçada a necessidade de uma articulação maior entre os revoltosos perante o endurecimento das forças governamentais:

“O desastre de Julho de 1928 fora irreparável. Nele perdermos preciosos elementos, mas o pior foi que se tinha perdido a fé e a confiança. Dificilmente encontraríamos oficiais que se comprometessem seriamente. A posição do governo era militarmente cada vez mais forte. A supremacia que tínhamos até Maio deste ano desaparecera. Éramos de opinião que uma revolução na base da sublevação de unidades regulares em número suficiente já não era viável”24

A solução apontada para o dilema dos revolucionários é construída a partir destes argumentos. A falta de envolvimento dos oficiais e dos soldados demitidos e “obrigatoriamente na reserva” e a inexistência de material bélico suficiente para os armar passam a ser elementos chaves para explicar o fracasso dos movimentos de 1927 e 1928. A necessidade de mobilizar todos os elementos aquartelados e a angariação de fundos para a compra de armamento25, são medidas a ser tomadas a partir de então:

“[…]como não pretendíamos desmoralizar as Forças Armadas da Nação, as forças atacantes seriam exclusivamente constituídas por militares: oficiais, sargentos, cabos e soldados, fossem do activo, da reserva, reformados ou demitidos. […] friso este pormenor

22 Rego, Raul. P História da República. Volume V. Lisboa, Círculo dos Leitores, 1987, p.18.23 Carta de Jaime de Morais a Sarmento Pimentel, rascunho, sem data. 24 Morais, Jaime. “Últimas fantasias”. Notas autobiográficas. Manuscrito dactilografado, p. 3.ª Arquivo

Jaime de Morais. Fundação Mário Soares.25 Segundo Jaime de Morais, “os republicanos eram, por definição, pobres de pedir”Morais, Jaime.

“Últimas fantasias”. Notas autobiográficas. Manuscrito dactilografado, p. 4.ª Arquivo Jaime de Morais. Fundação Mário Soares.

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pois a sua não compreensão ia ser, em breve, a causa de um desastre que nunca teve solução e que nos arrastou implacavelmente a catástrofe.”26

No entanto, o grande problema entre os opositores republicanos, sempre apontado pelas memorialistas, é o da divisão interna. A mais célebre é a que demarca o grupo de Ribeiro de Carvalho e o do grupo dos “Budas”, composto por Jaime de Morais, Moura Pinto e Jaime Cortesão. A falta de articulação dos revoltosos é o grande tema das divergências. Sarmento Pimentel, a propósito das revoltas de 3 de Fevereiro e 1931, esboça a cisão que demarcara os dois grupos de opositores:

“Quando, passada mais de uma hora, despertei para a triste realidade de foragido da justiça totalitária […] as perguntas vinham de toda gente:

– E Lisboa, por que não saiu?– E o Aires de Abreu e a artilharia de Viana porque não aderiram?– Onde está a coluna do Major Varão?– E os seus companheiros e amigos – o José Mascarenhas, Ribeiro de Carvalho,

Francisco Aragão, Capitão Batista das Metralhadoras, o Cunha Leal, o Pires Monteiro, o Hélder Ribeiro e tantos outros republicanos?

– Não sei, não compreendo, não posso explicar. A política partidária meteu-se no meio, e aqueles que não vieram contra nós, ficaram neutros. Talvez ainda venham a arrepender-se, mas já será tarde.”27

Nas considerações acerca do movimento de 1931, em Lisboa, liderado por Sarmento de Beires e Utra Machado, a cisão e falta de coordenação entre os republicanos torna a ser uma constante. Nos relatos de Sarmento Pimentel, que, na Galiza, espera as ordens de Ribeiro de Carvalho para iniciar a revolta, e de Horta Catarino, que assiste à revolta em Lisboa, a falta de coordenação entre os sectores da oposição republicana é denominador comum mais destacado:

“Não fôramos prevenidos nem convidados para participar daquela revolução, feita, evidentemente, porque quem queria antecipar-se e sobrepor-se à organização de um movimento nacional para o qual estava comprometida a maioria do Exército e da Marinha. Soubemos depois que o comandante Sarmento de Beires e o coronel Utra Machado resolveram, descontentes com os adiamentos ordenados pelo coronel Ribeiro de Carvalho, “por a procissão na rua” por sua conta e risco, invocando aos mais ardidos e inquietos oficiais a falta de decisão daquele oficial. Esse pretexto e as rivalidades entre os republicanos, divididos, afinal, em dois grupos que se digladiavam, consolidou a ditadura por estes 40 anos.”28

“No próprio dia 26 de Agosto era eu cabo da guarda na Amadora e tinha conhecimento de os sargentos da unidade se encontrarem comprometidos a apoiar o Movimento,

26 Morais, Jaime. “Últimas fantasias”. Notas autobiográficas. Manuscrito dactilografado, p. 5.ª Arquivo Jaime de Morais. Fundação Mário Soares.

27 Pimentel, João Sarmento. Ob. cit., p. 218. O único nome que participa e apoia o movimento de Fevereiro e, por desconhecimento da sua prisão, é incorrectamente citado por Sarmento Pimentel é o de Helder Ribeiro.

28 Pimentel, João Sarmento. Ob. cit., p. 342.

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aguardando apenas a chegada do tenente-coronel Sarmento de Beires para os comandar. Infelizmente, os sargentos reunidos secretamente na casa do primeiro-sargento Abrantes, contígua ao quartel, nada puderam fazer por erro de ligação e comunicações entre os conspiradores. Já de madrugada chegou-lhes uma informação errada de que o Movimento fora adiado e afinal ao amanhecer uma parte das unidades comprometidas arrancou, desencadeando a luta, por não terem sido informadas a tempo de tal movimento.”29

“Se o Governo houvesse encomendado zaragata quarteleira para depois fazer a limpeza geral e definitiva, não teria êxito mais completo. […]

Não vale a pena dizer que quando os carros sedeados em Mafra avançaram sobre Lisboa, já a revolução estava perdida pelos republicanos que ali foram comprometidos pela ambição, indisciplina, inconsciência dos líderes cheios de complexos, invejas e incompetência para destruir a máquina poderosa do Estado Novo”30

Outro aspecto destacado é a visão que os diferentes sectores da oposição republicana possuem com relação à participação popular nos movimentos revolucionários. Defendida por Ribeiro de Carvalho, é aceite pelo grupo dos Budas, desde que visasse “fins democráticos”31. O grande problema é a incerteza quanto ao rumo político originado por um movimento revolucionário “popular”:

Os Budas pretendiam fazer uma revolução leal e sincera por cima e evitar, com ela , uma revolução caótica e possivelmente destruidora por baixo.

Pensariam assim ainda por um novo motivo: talvez pensassem que o nosso povo estava muito alquebrado, que dava indícios de reacções defeituosamente coordenadas, que sofrera demasiadamente, que vivia numa miséria excessiva para temerem que um sobressalto mais brusco e mais profundo, em vez de lhe provocar a salvação redundasse na sua morte.”32

No entanto, numa análise mais global e posterior, o fracasso dos movimentos revolucionários é atribuído, por fim, à própria falência dos princípios democráticos na velha Europa. O ideal republicano seria vítima das mudanças ocorridas no cenário político internacional, marcado desde a década de vinte pelo aparecimento de regimes autoritários. A incapacidade dos regimes democráticos de apresentar soluções para os problemas económicos e sociais surgidos no final da Primeira Grande Guerra seria o grande motivo para a sua própria decadência:

“Porque fracassou a democracia do nosso tempo? Porque foi parlamentar e liberal? Estávamos certos de que não. O seu erro consistira em que, sendo evidente a ânsia de reformas sociais nas massas não interveio no terreno económico por forma a criar a possibilidade dessas reformas e gerando com a sua ausência a possibilidade, a inevitabilidade de revoluções sociais.”

29 Catarino, Horta. Falando do Reviralho. Lisboa, Ed. Do Autor, 1977, p. 20.30 Pimentel, João Sarmento. Ob. cit., p. 342.31 Morais, Jaime. “O 3 de Fevereiro”. Manuscrito dactilografado. Sem paginação. Arquivo Jaime de

Morais. Fundação Mário Soares.32 Morais, J. “O pensamento político dos Budas”, Nota Manuscrita, p. I. Arquivo Jaime de Morais.

Fundação Mário Soares.

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Na verdade, o que temos nestas argumentações é a convicção de que só um levantamento bem coordenado de determinados sectores militares seria suficiente para garantir o retorno à ordem constitucional, atendendo à efectiva implantação do, já nos anos trinta, do Estado Novo:

“Este nome de Reviralho, popularizara-se, talvez, com intuitos depreciativos para designar aqueles que combatiam pela Restauração da República Democrática Portuguesa, fazendo com que eu próprio me considerasse um reviralhista, tal como o Capitão Vilhena e muitos outros persistentes nessa luta.

Nas prisões onde os Comunistas passaram a estar sempre em maioria, cantava-se até uma cantiga “O amanhã” para deprimir os que se mantinham animados da esperança de virem a conseguir o Reviralho, recusando-se a enfileirar-se, como eu, nas hostes Marxistas e na sua tese de movimento de massas para conseguir a Revolução, tese que eu sabia impossível de realizar contra um governo em Ditadura.

Não há massas populares que possam resistir ao fogo das armas modernas. A deposição do Salazar, tal como a de qualquer outro ditador, só podia ser derrubada de golpe e de surpresa, por forças devidamente armadas”33

3. As oposições e as suas versões da história: um olhar comum sobre o passado?

“De tal forma a História tem andado ao sabor dos regimes que acabámos amnésicos”34.

“Em Fevereiro de 1927, um organismo militar que eu desconhecia organizou uma revolta no Porto, no dia 3, e em Lisboa, no dia 7. Era para ser no mesmo dia, mas a coisa saiu desfasada. Em Lisboa, o Agatão lança e mais dois ou três oficiais foram ao Quartel de Marinheiros, mandaram tocar a reunir e fizeram um discurso a dizer que era preciso ir para a revolução. Armaram toda a gente, distribuíram carabinas e cartuchos, e marchámos a pé desde a Praça de Armas […] De um lado, nós, os marinheiros, mais uma dúzia de polícias e de guardas da GNR, todos sob o comando de Agatão Lança, e com o reforço de alguns marinheiros […]

Aquilo pode dizer-se que era uma luta entre oficiais. Nós éramos só comandados e quanto a participação de civis era muito reduzida. Havia um grupo de anarquistas que andou pela Rua da Escola Politécnica a arrancar pinhas de ferro das varandas para fazerem bombas. Mais nada. No entanto, quando subimos até ao Largo do Rato, assim como quando descemos até ao Arsenal, as pessoas olhavam-nos com simpatia. Mas participação popular, como no 25 de Abril, isso não houve.

Tudo aquilo acabou assim que os oficiais nos mandaram depor as armas e retirar, senão éramos todos massacrados. […]

33 Catarino, F.H. Ob. cit., p. 101.34 Mónica, Maria Filomena. “Biografia e Autobiografia”, in: Sousa, M. de (coord). Toda a Memória

do Mundo. Lisboa, Esfera do Caos, 2007, p. 25.

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Foram assim os meus primeiros passos revolucionários, mais por espírito de revanche do que com a consciência do que era fazer uma revolução contra o fascismo […] não tinha ainda consciência politica. ”35

A história da oposição ao salazarismo é ainda uma história facetada, onde existem grandes espaços por preencher, quer em termos de novas análises quer de novas investigações36. A predominância do Partido Comunista, como órgão organizado e combativo, ao tempo do 25 de Abril e nos anos imediatos após a Revolução dos Cravos, favoreceu a existência de uma gama diferenciada de publicações memorialistas dos membros do regime, ainda que os estudos historiográficos acerca da sua actuação sejam bem menores do que o número de obras “partidárias”37. Neste quadro, pouco espaço há para a memória dos demais movimentos oposicionistas, que, por vezes, quando aparecem, são analisados pela óptica dos comunistas. No entanto, temos de assinalar a importância da divulgação destes relatos e de trabalho de recolha dados38, já que servem de ponto de partida para o estabelecimento de novas pesquisas e de parâmetros para outras análises.

Assim sendo, o relato historiográfico da oposição republicana é ainda um imenso campo a explorar com a “descoberta” dos arquivos dos seus membros. A documentação existente, cartas, diários, manifestos políticos e outros documentos afins, podem guardar novas versões acerca das dissidências internas dos reviralhistas e das suas actuações revolucionárias, assim como revelar as nuances de opinião dos diversos círculos de opositores.

35 Jorge, Joaquim Pais. Com uma alegria imensa. Notas autobiográficas. Lisboa, Avante, 1984, pp. 17 a 21.

36 Neste quadro, cumpre assinalar o esforço de algumas instituições, como o Museu da República e da Resistência no sentido de divulgarem as obras sobre o tema como As eleições de 1958 e a Imprensa Portuguesa, ; Emídio Guerreiro – Cem Anos de História, ou ainda, o já citado Ventura, A. Memórias da Resistência. Ob. cit. É de mencionar igualmente a extensa bibliografia compilada na Internet, sob o título “Estudos sobre o Comunismo”, abrangendo publicações das mais diversas, desde artigos de jornais, revistas cientificas e livros, sobre os mais diferentes sectores da oposição, apesar da ênfase dada aos trabalhos centrados na actuação do Partido Comunista. Ver, http://estudossobrecomunismo.weblog.com.pt.

37 Em destaque, a obra de Madeira, João. Os engenheiros de Almas. O Partido Comunista e os Intelectuais. Lisboa, Editorial Estampa, 1996.

38 Ver, como exemplo deste tipo de recolha o trabalho de Vilaça, Alberto. Resistências Culturais e Políticas nos Primórdios do Salazarismo. Lisboa, Campo das Letras, 2003.

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