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Estados Unidos e A América Latina - A construção da hegemonia.pdf

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  • Este livro aborda a influncia da poltica externa dos Estados Unidos na trajetria do desenvolvimento latino-americano, destacando as continuidades e as mudan-as nas relaes hemisfricas durante e aps a guerra fria.

    O objetivo aprofundar a discusso de um tema que marca fortemente a hist-ria latino-americana do sculo XX e que continua presente nas preocupaes dos setores crticos da ordem hegemnica: a postura dos Estados Unidos perante os governos cujas opes de poltica inter-na e externa so percebidas como amea-adoras da segurana hemisfrica, defini-da com base numa perspectiva unilateral que no admite questionamentos.

    A histria contempornea da Amrica Latina rica em experincias polticas centradas no questionamento da depen-dncia externa, do subdesenvolvimento e da distribuio desigual da riqueza: o socialismo pela via insurrecional em Cuba e pela via eleitoral no Chile com Salvador Allende, o nacionalismo revolucionrio na Bolvia em 1952 e no Peru em 1968 e o projeto Sandinista na Nicargua, bus-cando combinar economia mista com plu-ralismo poltico, so bons exemplos.

    Essas experincias enfrentaram gran-des dificuldades; algumas foram tragi-camente derrotadas; outras, embora bem-sucedidas quanto a implantao e permanncia no controle do Estado, no conseguiram satisfazer as expectativas suscitadas de incio. No entanto, quan-do aconteceram mudanas de regime, seja pela via do golpe militar seja pela transio institucional, a implementao de polticas radicalmente diferentes no

  • Estados Unidos e Amrica Latina

  • FUNDAO EDITORA DA UNESP

    Presidente do Conselho Curador Jos Carlos Souza Trindade

    Diretor-Presidente Jos Castilho Marques Neto

    Editor Executivo Jzio Hernani Bomfim Gutierre

    Conselho Editorial Acadmico Alberto Ikeda Antonio Carlos Carrera de Souza Antonio de Pdua Pithon Cyrino Benedito Antunes Isabel Maria F. R. Loureiro Lgia M. Vettorato Trevisan Lourdes A. M. dos Santos Pinto Raul Borges Guimares Ruben Aldrovandi Tania Regina de Luca

  • Luis Fernando Ayerbe

    Estados Unidos e Amrica Latina:

    a construo da hegemonia

  • 2002 Editora UNESP

    Direitos de publicao reservados : Fundao Editora da UNESP (FEU) Praa da S, 108 0 1 0 0 1 - 9 0 0 - S o Paulo-SP Tel.: (Oxx11) 3242-7171 Fax: (Oxx11) 3242-7172 Home page: www.editora.unesp.br E-mail: [email protected]

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) (Cmara Brasileira do Livro, SP Brasil)

    Ayerbe, Luis Fernando Estados Unidos e Amrica Latina: a construo da hegemonia /

    Luis Fernando Ayerbe. - So Paulo: Editora UNESP 2002.

    Bibliografia. ISBN 85-7139-405-9

    1. Amrica Latino - Histria 2. Estados Unidos - Histria 3. Estados Unidos - Relaes exteriores - Amrico Latina 4. Poltica mundial 5. Relaes econmicas internacionais 6. Relaes internacionais I. Ttulo.

    02-3768 CDD-327.7308

    ndice para catlogo sistemtico: 1. Estados Unidos: Amrica Latina: Relaes internacionais:

    Cincia poltica 327.7308

    Editora afiliada:

  • memria da minha irm, Patrcia Ayerbe,

    desaparecida na Argentina em fevereiro de 1978,

    vtima da represso poltica.

  • Sumrio

    Apresentao 9

    1 O Ocidente e o "resto": argumentos culturais da nova ordem mundial 17

    O fantasma do Terceiro Mundo e a Amrica Latina 23 Cultura e relaes internacionais: o mesmo discurso da guerra fria? 25 Uma via sem sada? 42

    2 Imperialismo e dependncia estrutural 45 O "hemisfrio ocidental" 48 A era do imperialismo 54

    3 Estados Unidos-Amrica Latina no incio da guerra fria 63

    O padro de desenvolvimento capitalista no ps-guerra 70 A guerra fria na Amrica Latina 75 A nova agenda de segurana 79 O peronismo na Argentina: 1946-1955 84

    7

  • A revoluo boliviana 95 A interveno dos Estados Unidos na Guatemala 103

    4 O perodo Kennedy-Johnson: entre o reformismo e a segurana hemisfrica 115

    A revoluo cubana 126 O golpe militar de 1964 no Brasil 135 A invaso da Repblica Dominicana 144

    5 A crise do capitalismo e o declnio da hegemonia dos Estados Unidos nos anos 70 149

    A gesto da crise: internacionalizao do capital e dvida global 152 O declnio da hegemonia dos Estados Unidos e a ampliao da agenda interamericana 158 O reformismo militar no Peru 165 O governo da Unidade Popular no Chile 177 A comisso trilateral e o governo Carter 190

    6 Os anos Reagan e o recrudescimento da guerra fria 195

    A economia dos Estados Unidos 197 A agenda latino-americana 203 A desestabilizao do governo sandinista 215

    7 O desenvolvimento da Amrica Latina em perspectiva comparada com o Sudeste Asitico 225

    Amrica Latina e os Tigres Asiticos 227 A trajetria econmica do socialismo cubano 243

    8 Segurana nacional e hegemonia regional na poltica externa dos Estados Unidos 257

    Realismo e interesse nacional 257 Isolacionismo, hegemonia e equilbrio do poder: o debate ps-guerra fria 265 Defesa e segurana num mundo em transio: Estados Unidos e a percepo da Amrica Latina 271 Esquerda versus direita: fim da guerra fria, fim da histria? 280

    Referncias bibliogrficas 285

  • Apresentao

    A histria contempornea da Amrica Latina rica em ex-perincias polticas centradas no questionamento da dependn-cia externa, do subdesenvolvimento e da distribuio desigual da riqueza: o socialismo pela via insurrecional em Cuba e pela via eleitoral no Chile com Salvador Allende, o nacionalismo revo-lucionrio na Bolvia em 1952 e no Peru em 1968, e o projeto Sandinista na Nicargua, buscando combinar economia mista com pluralismo poltico, so bons exemplos.

    Essas experincias enfrentaram grandes dificuldades, algu-mas foram tragicamente derrotadas, outras, embora bem-suce-didas em termos de implantao e permanncia no controle do Estado, no conseguiram satisfazer as expectativas suscitadas de incio. No entanto, quando aconteceram mudanas de regime, seja pela via do golpe militar ou da transio institucional, a im-plementao de polticas radicalmente diferentes no represen-tou uma ruptura com a situao de pobreza e desigualdade que caracterizam a regio.

  • A partir da dcada de 1980, a liberalizao poltica e econ-mica torna-se uma tendncia predominante na Amrica Latina, com o conseqente fortalecimento da hegemonia dos setores fa-vorveis ao mercado e iniciativa privada. Nesse contexto, as re-laes com os Estados Unidos atingem um grau de convergncia com poucos antecedentes histricos.

    Apesar de louvar a descoberta final do "caminho das pedras", alguns idelogos no se conformam com o carter tardio da ade-so ao capitalismo liberal, que debitam a fatores culturais. Um dos aspectos que mais destacam o predomnio, na trajetria histrica da regio, de abordagens que atribuem o subdesenvol-vimento explorao dos pases capitalistas avanados, especial-mente os Estados Unidos. A "cultura da dependncia" seria a principal causa do nosso insucesso, impregnando movimentos sociais, partidos polticos e setores da intelectualidade com a "idiotice latino-americana (da) falsa causalidade e a errnea identificao de inimigos" (Mendoza et al., 1997, p.9), afastan-do-nos cada vez mais do nosso "bero ocidental".

    Em contraposio ao determinismo culturalista desse tipo de postura, adotamos neste livro uma perspectiva histrica capaz de explicar, nas especifcidades de cada contexto, a interao de fe-nmenos polticos, econmicos e culturais de origem nacional, regional e global. O foco da anlise a influncia da poltica ex-terna dos Estados Unidos na trajetria do (sub)desenvolvimento latino-americano, destacando as continuidades e as mudanas nas relaes hemisfricas durante e aps a guerra fria.

    O objetivo deste livro aprofundar a discusso de um tema que marca fortemente a histria latino-americana do sculo XX e que continua presente nas preocupaes dos setores crticos da ordem hegemnica: a postura dos Estados Unidos ante os go-vernos cujas opes de poltica interna e externa so percebidas como ameaadoras da segurana hemisfrica, definida com base numa perspectiva unilateral que no admite questionamentos.

    Na percepo atual do governo norte-americano, as princi-pais ameaas potenciais estabilidade se originam dos impactos

  • regionais da crise de governabilidade que tende a afetar alguns pases: instabilidade econmica e excessiva dependncia do fi-nanciamento externo; aumento da pobreza e da excluso social, que estimulam a migrao interna, em direo aos centros ur-banos, e externa, em direo aos Estados Unidos; crescimento da criminalidade, especialmente o narcotrfico, com efeitos colate-rais na corrupo e no enfraquecimento da capacidade coercitiva do poder pblico; explorao indiscriminada de recursos natu-rais no-renovveis, facilitada pelas dificuldades de vigilncia e controle enfrentadas pelos organismos governamentais.

    Na Amrica Latina, algumas das novas situaes que se apre-sentam reacendem os receios com a continuidade das prticas in-tervencionistas dos Estados Unidos durante a guerra fria.

    A ascenso de Hugo Chvez presidncia da Venezuela mos-tra o potencial de mobilizao dos discursos embandeirados na justia social, canalizando rapidamente o apoio eleitoral em favor de novos setores, num aparente ressurgimento do fenmeno po-pulista que marcou profundamente a cultura poltica da regio a partir dos anos 40.

    Movimentos polticos como o dos Sem-Terra (MST) no Brasil e dos Zapatistas no Mxico, se aflorassem nos anos 60-70, te-riam sofrido uma represso aberta e sistemtica do Estado, sob o pretexto da filiao ao comunismo internacional. Naquele con-texto, a anlise das demandas que originavam as aes coletivas dilua-se nas "urgncias" do conflito leste-oeste. O fim da bipo-laridade comprometeu a continuidade dessas abordagens, des-locando as atenes para o contedo das reivindicaes e seu po-tencial explosivo.1

    1 Entre as principais reivindicaes destacam-se a distribuio da terra e fi-nanciamento do Estado para empreendimentos cooperativos voltados ao mercado interno e exportao, com efeitos multiplicadores na gerao de emprego e renda (MST); reconhecimento da representao poltica das co-munidades locais e autonomia para usufruir da terra de acordo com os pr-prios valores e necessidades (zapatistas). Nesse caso, o objetivo superar o estgio de subsistncia das atividades agrcolas, que condena a regio de

  • Entre 1987 e 1998, perodo que coincide com a implantao das reformas liberalizantes, a porcentagem de habitantes da Amrica Latina vivendo com menos de 1 dlar por dia aumentou de 22% para 23,5%, passando de 91 para 110 milhes de pes-soas.2 A continuidade dessa tendncia poder estimular a multi-plicao dos movimentos de excludos, aumentando as possibi-lidades de ascenso, aos governos da regio, de foras polticas comprometidas com programas que coloquem em questo a dis-tribuio da riqueza. Os Estados Unidos daro seqncia tra-dio das intervenes normalizadoras da ordem tradicional ou aceitaro o princpio da autodeterminao, respeitando as esco-lhas baseadas nas regras do jogo dos sistemas polticos nacionais?

    A postura inicial complacente da administrao Bush com o frustrado golpe de Estado contra o presidente eleito da Vene-zuela em abril de 2002 introduz elementos de incerteza a esse respeito.

    Para abordar as questes propostas, estruturamos o livro em oito captulos.

    O Captulo 1 introduz a discusso dos argumentos da hege-monia dos Estados Unidos na chamada Nova Ordem Mundial, destacando a percepo da Amrica Latina nas abordagens do conflito internacional que enfatizam os aspectos estratgicos as-sociados afirmao da identidade cultural. Para alguns autores, valores e atitudes relacionados com culturas "avanadas" ou "atrasadas" aparecem como principal fator explicativo dos nveis diferenciados de desenvolvimento, tanto entre pases como entre grupos tnicos no interior dos espaos nacionais. Na busca de respostas, a lgica da guerra fria reaparece como guerra cultural. O dilogo com essas abordagens estar permanentemente pre-sente no decorrer do livro.

    Chiapas dependncia da ajuda externa, recriando as "condies de uma economia camponesa de mercado, empreendedora e diversificada como a que desenvolveram as primeiras ondas de colonos" (Le Bot, 1997, p.105).

    2 Dados do relatrio anual de 1999 do Banco Mundial (Schwartz, 1999, p.l).

  • O Captulo 2 situa historicamente a trajetria das relaes Estados Unidos-Amrica Latina. Nesse contexto, so analisadas algumas das contribuies dos estudos sobre imperialismo e de-pendncia, delimitando o campo terico da abordagem adotada.

    Os Captulos de 3 a 6 analisam o perodo da guerra fria, tendo como horizonte de discusso duas questes: 1. a influncia, na evoluo dos rumos da poltica externa dos Estados Unidos para a Amrica Latina, de processos polticos de inspirao nacionalista e socialista que apresentaram como argumento principal a crtica do capitalismo dependente; 2. a interferncia da poltica externa dos Estados Unidos no desenvolvimento desses processos.

    O Captulo 7 discute fatores geopolticos relacionados com a guerra fria que contriburam para uma disparidade de trajetrias entre o desenvolvimento da Amrica Latina e do Sudeste Asi-tico, especialmente Coria do Sul e Taiwan, dois pases apresen-tados atualmente como exemplos da associao positiva entre identidade cultural e sucesso econmico.

    O Captulo 8 retoma as principais questes analisadas ao longo do livro, discutindo as continuidades e mudanas que se apresentam para as relaes interamericanas e os novos signifi-cados da dicotomia esquerda-direita na abordagem dos dilemas polticos da regio.

    A seleo das fontes consultadas orientou-se por diversos critrios. Na reconstruo histrica do perodo da guerra fria, fo-ram priorizadas fontes bibliogrficas, buscando obter informa-es relevantes sobre os processos polticos abordados. Para ana-lisar a percepo da Amrica Latina na poltica externa dos Estados Unidos, foram consultados documentos microfilmados da Agncia Central de Inteligncia (CIA) e do Departamento de Estado.

    A seleo e a anlise da documentao no tiveram como ob-jetivo a descoberta de fatos que pudessem contribuir para escla-recer eventuais lacunas presentes nos estudos histricos conhe-cidos. A inteno foi registrar as avaliaes prvias s decises de

  • poltica externa, com base em anlises originalmente sigilosas, a fim de descrever objetivamente as situaes a serem enfrentadas, de modo a assessorar o poder executivo para que este seja bem-sucedido nas medidas adotadas.

    A anlise das abordagens ps-guerra fria das relaes inter-nacionais dos Estados Unidos toma como referncia principal publicaes do Departamento de Estado, da National Defense University - instituio ligada ao Departamento da Defesa -, e de intelectuais, centros de pensamento estratgico e organizaes privadas com poder de interlocuo junto ao sistema decisrio da poltica externa do pas. Entre as instituies privadas, damos destaque s publicaes da Rand Corporation, da Comisso Tri-lateral e do John Olin Institute of Strategic Studies da Univer-sidade de Harvard.

    A traduo dos documentos microfilmados foi realizada por Beatriz Moroni, as verses em portugus dos textos restantes so da minha responsabilidade.

    Este livro apresenta os resultados da pesquisa "Civilizao, cultura e desenvolvimento nas abordagens ps-guerra fria do conflito internacional: a identidade latino-americana em ques-to", realizada junto ao Grupo de Estudos Interdisciplinares so-bre Cultura e Desenvolvimento (Geicd), com apoio da Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de So Paulo (Fapesp).

    Agradeo a Angela Viana Machado Fernandes, Augusto Cac-cia Bava, Edson do Carmo Inforsato, Enrique Amayo Zevallos, Jane Soares de Almeida, Luciana Togeiro de Almeida, Milton Lahuerta, Renato Alves de Souza, Rosa Ftima de Souza e Vera Teresa Valdemarin, colegas e amigos do Geicd o convvio inte-lectual enriquecedor e o apoio a todas as iniciativas relacionadas com este projeto.

    Durante a realizao da pesquisa, tive a oportunidade de par-ticipar em vrios eventos que contriburam para enriquecer mi-nha perspectiva analtica das relaes Estados Unidos-Amrica Latina. Destaco especialmente o Colquio Internacional Ernesto

  • "Che" Guevara: Presena e Permanncia, realizado no campus de Franca da Universidade Estadual Paulista (UNESP), em outubro de 1997; a conferncia Defense Education in the Americas, rea-lizada em Williamsburg, Estados Unidos, em novembro de 1998, sob o patrocnio do Center for Hemispheric Defense Studies (CHDS), da National Defense University; o 3er Taller Internacio-nal Paradigmas Emancipatorios Balance y Perspectivas de Fin de Siglo, realizado em Havana, Cuba, em janeiro de 1999, sob a co-ordenao do Grupo Amrica Latina: Filosofia Social y Axiologa (Galfisa), do Instituto de Filosofia; e o Seminrio Internacional Relaes Interamericanas: continuidades e mudanas frente ao novo milnio, realizado na UNESP-Araraquara, em novembro de 1999, sob a coordenao do Geicd e do Programa de Ps-Gra-duao de Sociologia.

    Esses eventos representaram um importante espao de con-tato e debate com diversas abordagens. Agradeo por essa opor-tunidade a Hector Saint-Pierre, diretor do Centro de Estudos La-tino-Americanos (Cela) da UNESP-Franca; a Margaret Daly Hayes, diretora do CHDS; a Gilberto Valds Gutirrez e Georgina Alfonso Gonzlez, do Galfisa; e aos colegas do Geicd. Agradeo tambm Fapesp e Fundao para o Desenvolvimento da UNESP (FUNDUNESP) o apoio financeiro para viabilizar a reali-zao do seminrio de Araraquara.

    As sees do livro dedicadas ao perodo da guerra fria re-cuperam, numa verso atualizada em termos de fontes e abor-dagens, anlises desenvolvidas na minha tese de doutoramento A hegemonia dos Estados Unidos e a trajetria do desenvolvimento la-tino-americano: aspectos polticos e econmicos. 1945-1990, defendida na Universidade de So Paulo em abril de 1992. Agradeo pro-fessora Inez Garbuio Peralta, orientadora do programa de His-tria, e aos membros da banca examinadora, professores Luiz Koshiba, Enrique Amayo-Zevallos, Maria Lgia Coelho Prado e Sedi Hirano, os comentrios e sugestes ao texto original.

    Uma verso preliminar dos captulos que analisam as abor-dagens culturalistas do "subdesenvolvimento" latino-americano

  • foi discutida no interior do projeto Atlas de Integracin Latino-americana e Caribea, que congregou, sob a direo da Asocia-cin por la Unidad de Nuestra Amrica (Auna-Cuba), um grupo de pesquisadores representando vrios pases da regio. Agra-deo especialmente a Carlos Oliva Campos, diretor da Auna, e aos colegas do grupo de trabalho Cultura y Sociedad, Jos Ma-nuel Jurez, Lino Borroto, Igncio Medina e Margarita Castro, a avaliao rigorosa do texto original.

    A Editora UNESP que tornou possvel a publicao deste livro.

    Finalmente, desejo agradecer minha companheira Jane Soa-res de Almeida, sempre presente nos momentos fundamentais.

    Obrigado a todos.

  • 1 O Ocidente e o "resto": argumentos

    culturais da nova ordem mundial

    A dissoluo do Pacto de Varsvia, a reunificao da Alema-nha e o desaparecimento da Unio Sovitica explicitaram de for-ma inequvoca a vitria dos Estados Unidos na disputa bipolar que caracterizou a estrutura das relaes internacionais durante a guerra fria.

    A derrota do grande inimigo, no entanto, no foi apresenta-da, nem sequer pelos mais otimistas,1 como garantia de paz per-ptua. A globalizao da competio econmica, promotora de padres de excluso social que atravessam as fronteiras nacio-nais, e a concentrao do desenvolvimento em reas geogrficas

    1 Na interpretao mais representativa do ufanismo do incio dos anos 90, Francis Fukuyama caracterizou a derrota da Unio Sovitica como o fim de uma era de conflitos centrados na oposio sistmica e o incio da consoli-dao do capitalismo liberal como o "ponto final da evoluo ideolgica da humanidade e a forma de governo humano (que) como tal, constitui o fim da histria" (1992, p.11).

  • bem demarcadas, tornando cada vez mais explcitas as desigual-dades regionais, podero contribuir para gerar novas fontes de conflito entre os perdedores da ordem mundial em formao.2

    O potencial de revolta dos "perdedores" no se compara anterior ameaa sovitica, sistemtica, abrangente e com alto po-der de destruio, porm localizada e relativamente previsvel. O espetculo da pobreza, embora diferenciado na sua gravidade de acordo com a hierarquia dos mundos, no tem territrio exclu-sivo. Para os trabalhadores dos pases ricos, o fantasma do de-semprego compromete as expectativas de insero no "modo de vida ocidental".

    Para setores representativos de correntes de opinio, centros de pensamento estratgico e organizaes privadas com poder de interlocuo junto ao sistema decisrio da poltica externa dos Estados Unidos, a percepo de ameaa passa a concentrar-se no potencial desestabilizador do ressentimento e da revolta dos se-tores sociais, pases e regies que se consideram vtimas da nova

    2 Na sua interveno no encontro da Comisso Trilateral realizado em mar-o de 1999, em Washington, o presidente do Banco Mundial, James Wol-fensohn (1999, p.3-4), explicita com extrema franqueza essa percepo: "Ns temos um mundo de 5,8 bilhes de pessoas; das quais 4,8 bilhes vi-vem em economias em transio e em desenvolvimento; 3 bilhes vivem com menos de dois dlares por dia. Aproximadamente 2 bilhes no tm acesso a qualquer forma de poder; 1,3 bilho no tem acesso a gua limpa; 3 bilhes no tm acesso a saneamento. Centos de milhares de crianas esto fora da escola e muitas delas so crianas de rua. Nos prximos 25 anos, a previso do aumento da populao no mundo de 2 bilhes de pessoas... Eu estive recentemente em 85 pases e posso dizer a vocs que os problemas que observei diariamente em aldeias, favelas, bairros urba-nos populosos e reas rurais carentes de servios so tais que estamos olhando para um mundo que est gradualmente ficando pior, pior e cada vez pior. Isso no irremedivel, mas inevitvel, se ns no fizermos nada a respeito. Mais importante ainda, esse um problema para os filhos de vocs. Esse no o nosso problema. A maior parte de ns pode retirar-se alegremente sem se confrontar com esse problema, mas nossos filhos no tero essa mesma possibilidade".

  • ordem, podendo estimular idias e comportamentos fundamen-talistas capazes de atingir a principal base cultural da supremacia histrica do capitalismo liberal: a civilizao ocidental.3

    Para alguns autores, os aspectos estratgicos que derivam da afirmao da identidade cultural assumem um papel cada vez mais importante na caracterizao das novas fontes de conflito. Valores e atitudes relacionados com culturas "avanadas" ou "atrasadas" aparecem como principal fator explicativo dos nveis diferenciados de desenvolvimento, tanto entre pases como entre grupos tnicos no interior dos espaos nacionais.

    Samuel Huntington (1993, p.22), um dos autores mais re-presentativos dessa abordagem, considera que

    a principal fonte de conflito nesse novo mundo no ser principal-mente ideolgica ou principalmente econmica. As grandes divi-ses entre a humanidade e as fontes de conflito sero culturais. Os Estados-Naes vo permanecer como os atores mais poderosos nas relaes internacionais, mas os conflitos principais na poltica global ocorrero entre naes e grupos de diferentes civilizaes.4

    3 Para Chesnais (1996, p.38-9), "uma das caractersticas essenciais da mun-dializao justamente integrar, como componente central, um duplo mo-vimento de polarizao, pondo fim a uma tendncia secular, que ia no sen-tido da integrao e da convergncia. A polarizao , em primeiro lugar, interna a cada pas. Os efeitos do desemprego so indissociveis daqueles resultantes do distanciamento entre os mais altos e os mais baixos rendi-mentos... Em segundo lugar, h uma polarizao internacional, aprofun-dando brutalmente a distncia entre os pases situados no mago do oligo-plio mundial e os pases da periferia. Estes no so mais apenas pases subordinados, reservas de matrias-primas... So pases que praticamente no mais apresentam interesse, nem econmico nem estratgico (fim da 'guerra fria'), para os pases e companhias que esto no centro do oligop-lio. So pesos mortos, pura e simplesmente. No so mais pases destina-dos ao 'desenvolvimento', e sim reas de 'pobreza' ... cujos emigrantes ameaam os 'pases democrticos'".

    4 Huntington coordenou o projeto The Changing Security Environment and Ame-rican National Interests, sediado no John M. Olin Institute for Strategic Studies

  • Para Huntington, os desafios supremacia poltica e econ-mica do Ocidente e aos valores que caracterizam sua identidade cultural definem uma nova situao internacional na qual a opo-sio entre "o Ocidente e o resto" assume o papel central. Para ele, sete civilizaes compem o "resto": japonesa, confuciana, islmica, latino-americana, eslava ortodoxa, hindu e africana.

    Num mundo globalizado, a consolidao da hegemonia do Ocidente no uma tarefa exclusiva da poltica externa: os de-safios esto presentes na poltica domstica. A vitria de um modo de vida nunca definitiva e a analogia com a decadncia do imprio romano, aps derrotar seus grandes inimigos, um dos fantasmas que mantm o estado de alerta. De acordo com Hun-tington (1997b, p.13),

    dadas as foras domsticas em favor da heterogeneidade, diversi-dade, multiculturalismo e divises raciais e tnicas, os Estados Uni-dos, mais do que a maioria dos pases, talvez necessitem de um ou-tro a quem se opor para que consigam manter-se unidos. Dois milnios atrs, em 84 a.C, quando os romanos completaram a con-quista do mundo conhecido derrotando os exrcitos de Mitridates, Sula colocou a mesma questo: "Agora que o universo no nos pro-porciona mais nenhum inimigo, qual ser o destino da Repblica?". A resposta veio logo em seguida, com o colapso da repblica poucos anos depois.

    Na comemorao do seu 50 aniversrio, a revista Commen-tary (1995, p.23), principal rgo de expresso da corrente neo-conservadora, realizou uma consulta a intelectuais de diversas fi-liaes tericas e polticas solicitando um posicionamento ante a seguinte questo:

    da Universidade de Harvard. Nesse projeto, convergiram funcionrios de governos recentes e intelectuais de diversas instituies de prestgio. Os trabalhos sobre "choque de civilizaes" so parte desse projeto.

  • Aos olhos de vrios observadores, os Estados Unidos que, em 1945, ingressaram na era do ps-guerra confiantes nos seus pro-psitos democrticos e serenos com a partilha de uma cultura co-mum, esto agora, cinqenta anos depois, movendo-se em direo balcanizao ou mesmo ao colapso. Ao chamar a ateno para di-ferentes tipos de evidncia - multiculturalismo e/ou polarizao ra-cial; os efeitos da imigrao descontrolada; incremento da estrati-ficao econmica e social; descrdito da autoridade; dissoluo de valores morais e religiosos compartilhados -, tais observadores con-cluem que, em vrios aspectos, o nosso projeto nacional est se des-fazendo.

    Entre os expoentes do conservadorismo5 que responderam consulta, destacamos trs anlises representativas do mal-estar com os destinos do Ocidente e de um diagnstico que atribui os problemas apontados a fatores predominantemente nacionais, responsabilizando setores das elites. Para Elliot Abrams, subse-cretrio do Departamento de Estado para as Relaes Interame-ricanas no perodo presidencial de Ronald Reagan,6

    Essas elites so principalmente uma mistura de polticos libe-rais7 de esquerda, membros da mdia e da academia, com reforos das igrejas liberais, lideranas negras, o establishment judeu-ameri-

    5 O termo "conservador" no est sendo utilizado como referncia oposta de "progressista", mas para situar as anlises que enfatizam o resgate das ra-zes culturais ocidentais como bandeira poltica na defesa do "modo de vida americano".

    6 Elliot Abrams integrou o Comit Assessor do projeto coordenado por Hun-tington.

    7 Abrams se refere aos liberais no sentido adotado nos Estados Unidos para denominar a esquerda moderada, diferentemente dos "radicais", termo aplicado esquerda crtica do capitalismo. O termo "liberal" ser utilizado neste livro para denominar os idelogos latino-americanos da economia de mercado durante a guerra fria que, a partir dos anos 80, passaro a ser asso-ciados com o "neoliberalismo".

  • cano e (de forma intermitente) o judicirio. Em sua longa marcha para a vitria em refazer a cultura americana, seu sucesso tem sido grande. A proliferao surpreendente dos sistemas de cotas no em-prego e na educao, o advento do multiculturalismo e a terrvel vulgarizao da vida social em apenas 30 anos do uma demons-trao do que eles tm feito. (Commentary, 1995, p.24)

    Para Zbigniew Brzezinski, assessor de segurana nacional durante a presidncia de Carter e um dos membros proeminen-tes da Comisso Trilateral,8 a perda de hegemonia da elite branca, anglo-saxnica e protestante (WASP) uma das causas principais do estado de desordem.

    Nos anos recentes, o colapso da elite WASP e a substituio dos instrumentos tradicionais por valores inculcados pelo cartel TV-Hollywood-Meios de Comunicao de Massa tm produzido na Amrica um novo estilo de composio cultural, que pode ser cha-mado de cultura do Mar Mediterrneo, para destacar seu contraste com a tica do Mar do Norte. Ela enfatiza a auto-satisfao, o en-tretenimento, a promiscuidade sexual e o repdio quase explcito a qualquer norma social.

    Controlada por um cartel conduzido exclusivamente pelos pr-prios interesses materiais, a TV substituiu as escolas, as igrejas e at a famlia como o principal mecanismo para a transmisso de valo-res. (Ibidem, p.38)

    Na viso de Francis Fukuyama, o declnio do capital social um dos fatores que merecem especial ateno:

    8 A Comisso Trilateral uma organizao privada internacional que rene importantes personalidades do mundo poltico, econmico e intelectual da Amrica do Norte, Europa Ocidental e Japo. Zbigniew Brzezinski, com David Rockefeller, teve um papel destacado na iniciativa da sua criao, em 1973 (ver Captulo 5 deste livro).

  • Uma das mudanas mais insidiosas que tiveram lugar na vida americana durante as ltimas duas geraes o declnio secular da-quilo que Tockeville rotulou como arte de associao americana -isto , a capacidade dos americanos para organizar sua prpria so-ciedade em grupos voluntrios e associaes. Esse declnio pode ser mensurado de vrias maneiras: no declnio do quadro de membros em organizaes tradicionais de servios como a Cruz Vermelha, Elks ou Rotary; no decrscimo entre os anos 60 e a atualidade do nmero de americanos que respondem, nas pesquisas de opinio, que confiam na "maioria das pessoas" (de dois teros para um ter-o); e nos sintomas de desgaste da comunidade, como o aumento dos litgios judiciais e da criminalidade. (p.56)

    O fantasma do Terceiro Mundo e a Amrica Latina

    Os argumentos apresentados pelos autores citados na seo anterior sintetizam algumas das principais preocupaes con-servadoras em relao aos novos desafios da realidade ps-guer-ra fria.

    No encontro anual de 1993 da Comisso Trilateral, realizado em Washington, a percepo da decadncia cultural incorpora um elemento adicional, a terceiro-mundizao da sociedade americana e a preocupao com o clima latente de conflito civil. De acordo com Marian Wright Edelman (1993, p.15), presidente do Children's Defense Fund,

    Ironicamente, ao mesmo tempo em que o comunismo entrava em colapso ao redor do mundo, o sonho americano entrava em co-lapso ao redor da Amrica - para milhes de famlias, jovens e crianas, de todas as raas e classes.

    Corremos o perigo de nos tornarmos duas naes - uma do pri-vilegiado Primeiro Mundo e outra com as privaes do Terceiro Mundo - que lutam para coexistir pacificamente com o incremento das desigualdades, como uma classe mdia sitiada que mal conse-gue se manter.

  • Embora no seja considerada um agente hostil, a Amrica Latina aparece, no fantasma do Terceiro Mundo, como referncia explcita do que pode representar, para o futuro dos Estados Uni-dos, o caminho da decadncia.

    Lawrence Harrison (1992, p. l ) , ex-funcionrio da Agncia para o Desenvolvimento Internacional (AID), destaca os efeitos das mudanas culturais no desenvolvimento das naes, com-parando as trajetrias da Espanha e dos Estados Unidos nas l-timas dcadas:

    A cultura muda, para bem ou para mal. No espao de tempo de trs dcadas, a Espanha se afastou do seu sistema de valores tra-dicional, hierrquico e autoritrio, que estava na raiz do subdesen-volvimento tanto da Espanha como da Hispano-Amrica, e tem submergido no mainstream progressivo da Europa Ocidental. No en-tanto, nas mesmas trs dcadas, os Estados Unidos como nao tm experimentado um declnio econmico e poltico, principal-mente, acredito, por causa da eroso dos valores americanos tra-dicionais - trabalho, frugalidade, educao, excelncia, comunidade - que tanto tm contribudo no nosso sucesso anterior.

    Diferentemente da Espanha, a Amrica Latina continua atre-lada herana cultural ibrica: "As atitudes e os valores ibricos tradicionais obstruem o progresso na direo do pluralismo po-ltico, da justia social e do dinamismo econmico" (ibidem, p.2).

    Na perspectiva de Harrison, o carter retrgrado da cultura latino-americana no representa apenas o espelho que reflete a imagem da decadncia que ameaa os Estados Unidos, mas um dos fatores responsveis pela eroso dos seus valores tradi-cionais:

    Os chineses, os japoneses e os coreanos que migraram para os Estados Unidos injetaram uma dose de tica do trabalho, excelncia e mrito no momento em que esses valores se encontravam parti-cularmente ameaados no conjunto da sociedade. Em contraste, os

  • mexicanos que migram para os Estados Unidos trazem consigo uma cultura regressiva desconcertantemente persistente. (p.223)

    Nas relaes exteriores, a preocupao com a Amrica Latina est diretamente relacionada com a percepo de inviabilidade potencial da regio. Num desenvolvimento recente da noo de "Estados-piv", nas fronteiras que separam o capitalismo avan-ado do mundo "em desenvolvimento", a Amrica Latina com-parece com dois representantes, Brasil e Mxico. De acordo com Robert S. Chase, Emily B. Hill e Paul Kennedy:9

    O Estado-piv regionalmente to importante que seu colapso poderia ter conseqncias danosas nas reas de fronteira: imigrao, distrbios pblicos, poluio, doena, e assim por diante. Por outro lado, o constante progresso e a estabilidade de um Estado-piv po-deriam reforar a vitalidade da economia e a estabilidade poltica da sua regio e beneficiar o comrcio e os investimentos americanos. Na atualidade, podem ser considerados Estados-piv os seguintes: Mxico e Brasil; Arglia, Egito e frica do Sul; Turquia; ndia e Pa-quisto; e Indonsia. As perspectivas desses Estados variam bas-tante. O potencial da ndia para o sucesso, por exemplo, consi-deravelmente maior do que o da Arglia; o potencial do Egito para o caos maior que o do Brasil. Mas todos encaram um futuro precrio, e o seu sucesso ou falncia influenciar poderosamente o futuro das reas circunvizinhas e afetar os interesses americanos. (1996, p.37)

    Cultura e relaes internacionais: o mesmo discurso da guerra fria?

    Como campo de anlise, o estudo dos aspectos estratgicos que derivam da afirmao da identidade cultural representa uma

    9 Paul Kennedy foi membro do Comit Assessor do projeto coordenado por Huntington.

  • perspectiva rica de variantes para a compreenso da dinmica global das relaes internacionais no contexto posterior guerra fria. As abordagens apresentadas nas sees anteriores situam como principal cenrio de conflito a disputa pela hegemonia cul-tural, sem fronteiras claras que separem as esferas nacional e in-ternacional. Na identificao dos novos alvos, a lgica da guerra fria reaparece como guerra cultural.

    A seguir, discutiremos com mais profundidade quatro ar-gumentos cuja influncia nos parece especialmente relevante na construo dos discursos culturalistas das novas fontes de conflito.

    Capitalismo liberal: hegemonia e governabilidade

    Na esteira do ufanismo das primeiras anlises dos significa-dos da queda do muro de Berlim, a derrota do bloco sovitico foi apresentada como remoo do principal obstculo expanso do capitalismo liberal, renovando a confiana de uma atualizada Teoria da Modernizao nos efeitos do progresso econmico as-sociados disseminao da economia de mercado na desestru-turao das ameaas supremacia ocidental. Na prtica, essas ameaas no representam uma alternativa, mas, basicamente, uma postura ressentida produzida pelo fracasso.

    Para Francis Fukuyama,10 notrio expoente dessa viso, a economia de livre mercado e a democracia liberal, sustentadas

    10 Num ensaio publicado em The National Interest, fazendo o balano da tese do Fim da Histria dez anos depois, Fukuyama (1999, p.17) considera esta pane do seu argumento incontestada pelos fatos: "Nada do que tem aconte-cido nos ltimos dez anos na poltica ou na economia mundial questionou, no meu modo de ver, as concluses de que a ordem baseada na democracia liberal e a economia de mercado a nica opo vivel para as sociedades modernas".

  • nos pilares da liberdade individual e da soberania popular, cami-nham juntas, fortalecendo-se mutuamente. Entre os argumentos apresentados em favor dessa tese, dois se destacam: a incompa-tibilidade estrutural do totalitarismo com o desenvolvimento de uma economia apoiada no setor privado, e a capacidade pacifi-cadora da democracia, tanto no mbito interno da nao, desra-dicalizando os conflitos de ordem poltico e social, como no m-bito internacional, no qual a evidncia histrica refora a tese de que pases democrticos dificilmente entram em guerra.

    Complementando os dois argumentos:

    1 O desenvolvimento econmico depende cada vez mais da qualificao da mo-de-obra, tornando o investimento em capi-tal humano um elemento indispensvel da competitividade das empresas e das naes. O maior acesso educao contribui para a ampliao da conscincia de cidadania, solapando as bases de apoio de Estados onde a modernizao e a liberalizao da eco-nomia no tm correspondncia com a democratizao das es-truturas polticas.

    2 A globalizao nas comunicaes no tem apenas o efeito de disseminar hbitos de consumo, comportamentos e valores predominantes nas sociedades industrializadas de democracia li-beral, mas tambm torna acessvel a informao sobre o que acontece no mundo, quebrando o bloqueio da censura em pases que vivem sob regimes autoritrios, atingindo justamente a elite de trabalhadores instrudos, uma nova classe mdia cada vez mais exigente no que se refere a direitos polticos.

    3 Apoiado no consenso sobre a legitimidade das regras do jo-go, o sistema poltico democrtico o mais eficiente para admi-nistrar conflitos, dentro do pressuposto de que a pluralidade de interesses e a diversidade de situaes mais ou menos favorveis, dolorosamente crticas ou escandalosamente injustas, no im-plicam, como condio necessria de soluo, o questionamento do sistema.

  • No contexto do fim da histria, marcado pelo declnio das utopias, o desafio aperfeioar o capitalismo liberal, expandindo o raio de ao dos valores culturais e das instituies que o pro-jetaram como smbolo da concretizao do binmio liberdade-prosperidade.

    A disseminao de processos paralelos de liberalizao po-ltica e econmica ao redor do mundo no representou, na maio-ria dos casos, uma melhora substancial e permanente nos indi-cadores de crescimento e distribuio da renda. Por que um mesmo sistema obtm resultados to dspares dependendo dos pases ou regies? Partindo dessa indagao, autores vinculados s correntes culturalistas e institucionalistas11 do desenvolvi-mento atribuem a principal explicao ao impacto das diferenas culturais na formao de capital social. De acordo com Putnam (1996, p.186-7):

    Os estoques de capital social, como confiana, normas e siste-mas de participao, tendem a ser cumulativos e a reforar-se mu-tuamente. Os crculos virtuosos redundam em equilbrios sociais com elevados nveis de cooperao, confiana, reciprocidade, civis-mo e bem-estar coletivo. Eis as caractersticas que definem a co-munidade cvica. Por outro lado, a inexistncia dessas caractersti-cas na comunidade no-cvica tambm algo que tende a auto-reforar-se. A desero, a desconfiana, a omisso, a explorao, o isolamento, a desordem e a estagnao intensificam-se reciproca-mente num miasma sufocante de crculos viciosos.

    A construo de uma convergncia de metas e resultados em direo ao "capitalismo democrtico e liberal" pressupe uma estratgia de acmulo de capital social: "Uma sociedade civil prspera depende dos hbitos, costumes e princpios ticos de

    11 Ver Grondona (1999), especialmente a primeira parte.

  • sua gente - atributos que s podem ser moldados indiretamente mediante uma poltica deliberada" (Fukuyama, 1996, p.19).

    A inexistncia de alternativas sistmicas democracia libe-ral no significa o fim dos conflitos. Nos pases com dificuldades para superar o atraso econmico, que concentram a maioria da populao mundial, a experincia do fracasso pode abrir espao para o fortalecimento das foras polticas que atribuem do-minao ocidental a principal responsabilidade pela perda de so-berania econmica e identidade cultural, desencadeando mo-vimentos de retorno s razes originais, de forte contedo antiliberal e antiocidental. Um bom exemplo disso o funda-mentalismo islmico.

    Fukuyama concorda com Huntington na valorizao das diferenas culturais como motor das relaes internacionais na ordem ps-guerra fria; no entanto, embora no descarte as possibilidades de conflito, enfatiza as virtudes criadoras da di-versidade. Independentemente da divergncia de enfoque, h consenso na atribuio de um valor estratgico ao conheci-mento do que une e separa as culturas.

    "Quer a confrontao de culturas redunde em conflito, quer re-dunde em adaptao e progresso, vitalmente importante agora de-senvolver uma compreenso mais profunda do que torna essas cul-turas distintas e funcionais". (Fukuyama, 1996, p.20)

    O potencial desestabilizador da politizao das diferenas t-nicas o tema central da pesquisa Ethnic Conflict and the Processes of State Breakdown: Improving Army Planning and Preparation, con-duzida pela Rand Corporation,12 que apresenta um modelo de

    12 A Rand Corporation foi criada no final da Segunda Guerra Mundial com o objetivo de assessorar a Fora Area em temas relacionados a pensamento estratgico e sistemas de armamento.

  • abordagem deste tipo de conflito: "O modelo de trs estgios tra-a o desenvolvimento de antagonismos tnicos e comunitrios, comeando com as condies que podem conduzir formao de um grupo tnico, a posterior mobilizao do grupo para a ao poltica e finalmente sua disputa com o Estado" (Tellis et al., 1997, p.xi).

    A etnicidade, entendida como a percepo, por parte de um determinado grupo, de afinidades associadas a caractersticas fsicas e culturais (cor da pele, religio, lngua, comunidade territorial de origem ancestral), um fenmeno socialmente construdo, com uma racionalidade prpria, passvel de ser compreendida. A identificao de elementos catalisadores da po-litizao da etnicidade pode contribuir para a formulao de es-tratgias preventivas.

    Dessa perspectiva, a preveno de conflitos tnicos tornou-se um dos grandes desafios das Foras Armadas dos Estados Uni-dos: "Desde o fim da Guerra fria, as Foras Armadas foram cha-madas 25 vezes para conduzir diversos tipos de misses huma-nitrias e de pacificao ... O que mostra a experincia que os conflitos tnicos e comunitrios, uma vez iniciados, so difceis de sufocar e podem levar a crises internacionais" (ibidem, p.2).

    Crises dessa natureza podem conduzir ao colapso do Estado. Os casos mais freqentes tm acontecido em pases que enfren-tam dois tipos de situaes:

    1 A delimitao das fronteiras respondeu fundamentalmente a imperativos estratgicos da guerra fria: o processo de desco-lonizao no caso da frica ou de libertao da presena nazi-fas-cista em parte da Europa Oriental, e o posterior alinhamento no conflito leste-oeste. Com o fim da bipolaridade, se esvai a prin-cipal razo de ser de muitos Estados, revigorando antigas ten-ses de natureza tnica.

    2 Efeitos colaterais do processo de industrializao do Ter-ceiro Mundo, especialmente o crescimento populacional, a ex-

  • panso dos grandes centros urbanos e a migrao campo-cidade, contribuem para aumentar a incidncia de conflitos tnicos.13

    Esses aspectos so analisados por Morrison Taw e Hoffman num estudo da Rand sobre os novos desafios no planejamento da defesa:

    Enquanto antigamente as cidades eram o ponto culminante de uma revoluo, com a recente proliferao de reas urbanas - e a incapacidade dos governos para defender todas elas - as cidades converteram-se em alvos relativamente fceis que rendem altos di-videndos com baixos custos. Grupos insurgentes podem destruir instalaes de energia e telecomunicaes, atrair a ateno inter-nacional, demonstrar a incapacidade dos governos para proteger sua populao e recrutar adeptos entre a populao descontente. Nessas condies, mesmo os setores insurgentes, que permane-cem baseados em reas rurais, podem beneficiar-se da urbanizao incrementando seu apoio junto ao terrorismo urbano. (Davis, 1994, p.228)

    Para lidar com conflitos cuja origem o colapso de Estados Nacionais, com os principais focos de tenso localizados nos cen-tros urbanos, o planejamento da defesa passa a concentrar maio-res esforos na capacitao das Foras Armadas para atuar nas operaes de paz:

    13 "Numa sociedade tradicional, onde o 'mundo' individual est limitado geo-grfica e psicologicamente, os laos baseados no parentesco so suficientes. Mas, quando uma pessoa tem que lidar com as estruturas impessoais do Estado e do mercado e o extenso 'mundo' do Estado ou da provncia, os an-tigos vnculos no bastam mais. A etnicidade transforma-se num recurso til para uma pessoa em seu esforo para sobreviver e prosperar numa esfe-ra social mais ampla. Alm de promover a etnicidade, a modernizao atua como catalisadora das tenses tnicas pela homogeneizao de valores e expectativas ... Em reforo ao que digo, a etnicidade pode ser uma ferra-menta proveitosa para a mobilizao poltica" (Tellis et al., 1997, p.7).

  • Manuteno da paz, imposio da paz, contra-insurgncia, an-tinarcticos, antiterrorismo, operaes de evacuao de no-com-batentes, controle de armas, suporte s autoridades civis locais, assistncia humanitria ante situaes de calamidade, assistncia segurana (incluindo treinamento), assistncia s naes (incluin-do aes civis), demonstraes de fora, ataques, inclusive de sur-presa.14

    A abordagem do "fim da histria" apresenta um cenrio mundial de convergncia em direo ao "capitalismo democr-tico e liberal", no qual a maioria dos pases enfrenta desafios as-sociados principalmente aos custos da transio. Em algumas re-gies, os esforos se concentram na consolidao de processos de liberalizao poltica e econmica nos quais a hegemonia das for-as sintonizadas com o mercado no enfrenta oposio consis-tente. Em outras regies, o salvamento de Estados em colapso exige aes urgentes e drsticas. Independentemente da diver-sidade de situaes, a estratgia parte de dois pressupostos co-muns: qualificao de recursos humanos capazes de lidar com as novas realidades econmicas, sociais, polticas e culturais da glo-balizao; formao de capital social, pela construo e fortale-cimento de espaos institucionais de governabilidade.

    No Captulo 8, destacaremos algumas linhas de ao da po-ltica externa dos Estados Unidos para a Amrica Latina que se orientam por esta abordagem.

    A supremacia global dos Estados Unidos e a cultura do hedonismo

    Conforme mostramos no incio do captulo, para alguns au-tores, as ameaas ao Ocidente no tm como fonte principal os

    14 Operations other than war, definio extrada de Davis (1994, p.224), com base no Operations, Army Field Manual, publicado em 1993 pelo Exrcito dos Estados Unidos.

  • movimentos dos setores marginalizados da sociedade, mas o comportamento de parte representativa das elites nacionais.

    Para Zbigniew Brzezinski, o mundo vive um processo de transio entre uma ordem centrada nos Estados-Naes e um futuro ainda no claramente definido, no qual atores globais te-ro cada vez maior influncia. Nesse percurso, a hegemonia mundial dos Estados Unidos assume um novo significado: "A longo prazo, as polticas globais tendero a ser cada vez mais in-compatveis com a concentrao de poder hegemnico nas mos de um nico Estado. Da que os Estados Unidos no s so a pri-meira e a nica verdadeira superpotncia global, seno que, pro-vavelmente, sero tambm a ltima" (1998, p.212).

    No curto e mdio prazos, ao mesmo tempo em que considera difcil o aparecimento de uma potncia equivalente aos Estados Unidos "nas quatro dimenses-chave do poder (militar, econ-mico, tecnolgico e cultural)" (ibidem, p.198), destaca o papel estabilizador da ltima superpotncia no processo de transio para um mundo de fronteiras permeveis e difusas. Nessa difcil travessia, no possvel visualizar uma alternativa confivel li-derana dos Estados Unidos. Para Brzezinski, os campos opostos da dicotomia so hegemonia ou caos.

    O exerccio de uma poltica externa coerente com desafios que atribuem a um s pas, durante um perodo de tempo in-definido, a responsabilidade com os destinos da segurana global tem implicaes culturais inevitveis:

    Esse exerccio requer um alto grau de motivao doutrinai, compromisso intelectual e gratificao patritica. No entanto, a cul-tura dominante do pas tem se concentrado cada vez mais nas dis-traes de massas e est muito dominada por temas hedonistas no plano pessoal e escapistas no social. O efeito cumulativo disso tem sido o aumento cada vez maior da dificuldade para mobilizar o ne-cessrio consenso poltico em favor de uma liderana sustentvel, e s vezes tambm custosa, dos Estados Unidos no exterior. Os meios

  • de comunicao de massas tm desempenhado um papel particu-larmente importante nesse sentido, criando uma forte rejeio con-tra todo uso seletivo da fora que suponha baixa, inclusive em n-veis mnimos, (p.214)

    No exerccio do papel de nica superpotncia responsvel pela ordem global, os Estados Unidos tero pela frente inmeras situaes similares aos conflitos dos anos 90 na ex-Iugoslvia, exigindo autonomia para tomar decises que envolvam o uso da fora. Para Brzezinski, a capacidade decisria do Estado no pode estar subordinada ao poder de uma opinio pblica dominada pela busca imediatista da satisfao individual.

    A cultura do hedonismo est presente nos novos setores afluentes na esteira da globalizao e do crescimento do setor de servios, uma gerao marcada pela liberalizao dos costumes nos anos 60, pela ampliao dos direitos civis e pela dissemina-o da lgica do mercado, acentuada e promovida na era Reagan. So atores de um sistema em que a afirmao da diferena, por parte das vrias minorias, tambm representa um florescente mercado de consumo de bens materiais e espirituais.

    O comportamento desses setores, que so parte do poder econmico e principal expresso internacional do American Way of Life promovido pela indstria cultural do pas, passa a integrar a agenda de desafios da segurana nacional e global: um "esta-blishment liberal" transformado pelo "establishment conservador" em ameaa sobrevivncia dos valores fundacionais da civiliza-o ocidental.

    Multiculturalismo, ps-modernidade e polticas de americanizao

    Para alguns setores conservadores, as maiores atenes na disputa pela hegemonia cultural esto dirigidas mudana de agenda dos movimentos sociais aps o fim da guerra fria. Dessa

  • perspectiva, eles alertam para os efeitos das posturas que enfa-tizam a diferena, baseadas na valorizao do pluralismo cultural de origem tnico, racial e sexual, que ameaam uma tradio marcada pela capacidade dos Estados Unidos, pas de imigrantes, de assimilar outras culturas, fortalecendo uma tendncia em di-reo desocidentalizao.

    Para Irving Kristol (1995, p.52), liderana histrica do neo-conservadorismo,15 o componente terceiro-mundista do multi-culturalismo faz parte de uma estratgia poltica e ideolgica an-tiamericana e antiocidental:

    No um exagero dizer que esses radicais dos campus (tanto professores como estudantes), tendo desistido da "luta de classes", mudaram agora para uma agenda de conflito tnico-racial. A agen-da, na sua dimenso educacional, tem como propsito explcito in-duzir nas mentes e sensibilidades de uma minoria de estudantes a "conscincia terceiro-mundista" - de acordo com a frase que utili-zam ... O que esses radicais brandamente chamam de multicultu-ralismo mais uma "guerra contra Ocidente", como alguma vez o foram o nazismo e o stalinismo.

    Para Kristol, o componente racial, associado ao movimento negro, representa a principal fora poltica desse movimento, de um perfil diferenciado em relao imigrao de origem latino-americana, muito mais propensa assimilao:

    o multiculturalismo uma estratgia desesperada - e certamente contraproducente - para contornar as deficincias educacionais, e as patologias sociais a elas associadas, dos jovens negros ... No h

    15 Kristol o fundador das revistas The Public lnterest e The National lnterest. Mi-chael Lind, editor-executivo da revista The National lnterest, foi membro do comit assessor e autor de um dos working papers do projeto coordenado por Huntington.

  • nenhuma evidncia de que um nmero substancial de pais de his-pnicos gostasse de que seus filhos soubessem mais sobre Simon Bolvar e menos sobre George Washington. (p.50)

    James Kurth,16 ao tomar como referncia a abordagem de Huntington, considera que o verdadeiro choque de civilizaes " o choque entre as civilizaes ocidentais e uma forte aliana composta pelos movimentos multiculturalista e feminista. Em resumo, um choque entre civilizaes ocidentais e ps-ociden-tais" (1995, p.26).

    Para ele, o protagonismo do movimento feminista como idelogo e militante do multiculturalismo tem um papel central, pois "proporciona as bases, tendo atingido uma presena macia primeiro na academia e agora na mdia e na justia. Patrocina as teorias, como o desconstrucionismo e o ps-modernismo. E pro-porciona a maior parte da energia, a liderana e a influncia po-ltica" (p.27). No fechamento do ensaio, sintetiza a natureza da sua angstia: "quem, nos Estados Unidos do futuro, vai acreditar ainda na civilizao ocidental; mais concretamente, quem acre-ditar o suficiente para lutar, matar e morrer por ela no choque de civilizaes?" (ibidem).

    A incluso do ps-modernismo entre os protagonistas da "deconstruo" da idia de Ocidente mostra o desconforto de Kurth com a disseminao no meio acadmico de uma postura terica, cujo ponto de partida a deslegitimao dos grandes re-latos universalizantes da modernidade, colocando o marxismo e o liberalismo na mesma categoria de subprodutos da razo eu-rocentrista (ver Jameson & Zizek, 1998; Appleby et al., 1996).

    Da perspectiva conservadora, resgatar o Ocidente do "resto" significa delimitar uma totalidade historicamente determinada,

    16 James Kurth foi membro do Comit Assessor do projeto coordenado por Huntington.

  • em constante progresso, atualmente no auge da sua evoluo, em oposio a um conjunto heterogneo de culturas que per-passam, cada vez mais, os espaos nacionais. A substituio da idia de histria como processo unitrio de desenvolvimento da humanidade, por uma viso atomizada de infinitos pequenos re-latos, introduz elementos perturbadores da hegemonia cultural da "ltima superpotncia", relativizando o contedo de termi-nologias que distinguem a ordem da desordem: "democracia", "liberdade", "soberania", "segurana", "mercado", "proprieda-de". Em consonncia com essa percepo, o multiculturalismo estigmatizado como prenncio da dissoluo das hierarquias e do imprio da barbrie.

    Na passagem da teoria para as recomendaes de poltica do-mstica, a abordagem do choque de civilizaes tem dois alvos bem definidos: o controle da imigrao e a solidificao de leal-dades com a identidade nacional. De acordo com Huntington (1997b, p.19):

    A revitalizao de um sentimento mais forte de identidade na-cional tambm ir exigir a neutralizao do culto da diversidade e do multiculturalismo dentro dos Estados Unidos. Isso provavel-mente exigiria limitar a imigrao ... e criar novos programas p-blicos e privados de americanizao, com o objetivo de contraba-lanar os fatores que reforam a lealdade dos imigrantes em relao aos seus pases de origem e, ao mesmo tempo, incentivar sua as-similao.

    Na mesma linha de Huntington, James Kurth (1996, p.19) explicita com maior preciso os alvos e desafios.

    Economicamente, a unidade nacional est sendo solapada pelo acosso desestabilizador da economia global, colocando em risco a "promessa da vida americana" para a maioria dos americanos. Cul-turalmente, est sendo solapada pela imigrao descontrolada (es-

  • pecialmente a proveniente dos vizinhos na esfera regional) e pela ideologia do multiculturalismo ... Essas divises tero que ser ci-catrizadas com um novo New Deal e um projeto de americanizao adequado s condies especficas do nosso tempo. Caso contrrio, iremos degenerar numa nova guerra civil, que, dessa vez, no ser uma "guerra entre os Estados", mas muito mais uma guerra de to-dos contra todos.

    No deixa de ser preocupante pensar nos desdobramentos polticos que poderiam resultar da resposta dos conservadores aos desafios que formulam. Como lidariam com os setores que, pertencentes ou no s elites, "insistem" em afirmar suas dife-renas, "vulgarizando a vida social" com seus valores e atitudes, na eventualidade de que se tornem uma presena majoritria, reivindicando a quebra oficial do monoplio do mainstream oci-dental na definio da identidade nacional?

    Amrica Latina: um territrio sem utopia

    A diversidade de enfoques entre os setores que vivenciam como vitria o avano do capitalismo liberal e as oportunidades abertas pela globalizao, e os que expressam medos atvicos ali-mentados por mentalidades refratrias mudana, no se ob-serva na percepo da Amrica Latina: pouco relevante como su-jeito da "nova ordem mundial", candidata assimilao pelo Ocidente, embora com prevenes, por ser considerada ainda in-capaz de cuidar de si prpria.

    O processo paralelo de liberalizao poltica e econmica que se consolida na regio a partir da dcada de 1980, com o forta-lecimento da hegemonia das foras polticas sintonizadas com o mercado e a iniciativa privada, configura uma ruptura em relao trajetria predominante aps a Segunda Guerra Mundial. Nes-se contexto, as relaes com os Estados Unidos atingem um grau de convergncia com poucos antecedentes histricos (ver Aver-be, 1998).

  • Apesar de louvar a descoberta final do "caminho das pedras", Lawrence Harrison (1997, p.69) no se conforma com a demora, que debita a fatores culturais.

    Que a Amrica Latina no tenha feito as pazes com o capita-lismo democrtico - e com os Estados Unidos - at os ltimos anos do sculo XX principalmente uma conseqncia, de um lado, da incompatibilidade dos valores ibricos tradicionais com o pluralis-mo poltico e a liberdade de mercado e, de outro, do inevitvel res-sentimento do malsucedido com o bem-sucedido.

    Robert Putnam refora a tese da herana cultural na expli-cao dos percursos diferenciados no desenvolvimento dos Es-tados Unidos e da Amrica Latina, condicionando uma "subor-dinao trajetria", expresso que toma emprestada de corren-tes interpretativas da histria econmica: "o lugar a que se pode chegar depende do lugar de onde se veio, e simplesmente im-possvel chegar a certos lugares a partir de onde se est" (1996, p.188). Concordando com a abordagem institucionalista de Dou-glas North (1990), Putnam (1996, p.189) destaca a influncia do legado colonial nas trajetrias ps-independncia de Estados Unidos e Amrica Latina, que

    dispunham de cartas constitucionais, recursos abundantes e idn-ticas oportunidades internacionais, porm os norte-americanos fo-ram beneficiados pelas tradies inglesas de descentralizao e par-lamentarismo, enquanto os latino-americanos foram prejudicados pelo autoritarismo centralizado, o familismo e o clientelismo que haviam herdado da Espanha medieval.

    Se o ponto de partida subordina a trajetria, no caso das in-terpretaes culturalistas do subdesenvolvimento latino-ameri-cano, as concepes e prticas polticas que predominaram at os anos 90 acentuaram os males de origem. No centro desse diag-nstico esto as idias e experincias que marcaram a crtica do

  • imperialismo e da dependncia no perodo da guerra fria, atri-buindo o subdesenvolvimento explorao dos pases capitalis-tas avanados, especialmente os Estados Unidos. Essa posio doutrinria assume destaque no Manual do perfeito idiota latino-americano.

    O antiianquismo latino-americano flui de quatro origens dis-tintas: a cultural, ancorada na velha tradio hispano-catlica; a eco-nmica, conseqncia de uma viso nacionalista ou marxista das re-laes comerciais e financeiras entre o imprio e as colnias; a his-trica, derivada dos conflitos armados entre Washington e seus vi-zinhos do sul; e a psicolgica, produto de uma mistura doentia de admirao e rancor a fincar razes num dos piores componentes da natureza humana: a inveja. (Mendoza et al., 1997, p.219-20)

    David Landes (1998, p.369) apresenta uma linha de argu-mentao similar.

    O fracasso do desenvolvimento latino-americano, tanto pior quando posto em contraste com a Amrica do Norte, foi atribudo por estudiosos locais e simpatizantes estrangeiros a malefcios de naes mais fortes e mais ricas. Essa vulnerabilidade foi rotulada de "dependncia", subentendendo um estado de inferioridade em que um pas no controla o seu destino e somente faz o que lhe ditado por outros. (1998, p.369)

    Apesar de dirigida preferencialmente a interlocutores do meio acadmico, a anlise de Landes no est isenta de ideologia:

    Os cnicos poderiam at dizer que as doutrinas de dependncia foram a mais bem-sucedida exportao da Amrica Latina. No en-tanto, so ms para o esforo e o moral. Ao instigarem uma mrbida propenso para atribuir as culpas a todo o mundo menos queles que as denunciam, essas doutrinas promovem a impotncia econ-mica. Mesmo que fossem verdadeiras, seria prefervel arquiv-las. (p.370 -grifo do autor)

  • Para essa abordagem, as diferenas entre riqueza e pobreza no se originam da diviso internacional do trabalho ou das po-lticas imperiais das grandes potncias, mas das escolhas e pr-ticas adotadas pelas sociedades. "Se aprendemos alguma coisa atravs da histria do desenvolvimento econmico, que a cul-tura a principal geradora de suas diferenas ... Cultura, na acep-o das atitudes e valores interiores que guiam uma populao" (p.584). Dessa perspectiva, os fatores externos no podem ser considerados determinantes estruturais da pobreza ou da rique-za, o que torna a ajuda ao desenvolvimento um fator pouco re-levante. "A histria nos ensina que os mais bem-sucedidos tra-tamentos para a pobreza vm de dentro. A ajuda externa pode ser til, mas, como a fortuna inesperada, tambm pode ser preju-dicial. Pode desencorajar o esforo e plantar uma sensao pa-ralisante de incapacidade" (p.592).

    Benjamin Schwarz, em estudo que avalia a relao custo-be-neficio dos programas de ajuda ao desenvolvimento em termos de segurana hemisfrica, apresenta argumentos similares aos de Landes. Questionando a idia de que fatores de instabilidade associados ao subdesenvolvimento exijam uma ao coordenada de assistncia, cita o exemplo da Aliana para o Progresso, lan-ada pela administrao Kennedy em 1961, que trouxe escassos retornos dos recursos desembolsados: "Vinte anos depois ... muitos dos pases que foram beneficiados pela Aliana, so bons candidatos assistncia nacional" (1994, p.276). Para Schwarz, a ineficcia da ajuda est associada a fatores culturais: "As barreiras mais importantes ao desenvolvimento ... esto profunda e obs-tinadamente arraigadas na herana cultural e poltica das naes subdesenvolvidas" (p.277).

    Na perspectiva de Huntington, o carter hbrido da cultura latino-americana dificulta uma insero prpria da regio na (des) ordem das civilizaes. A opo passaria pela adeso ao Ocidente. Um exemplo concreto nesse sentido seria a integrao

  • do Mxico ao Nafta, associada a um processo mais amplo de re-definio da identidade nacional.

    Na Amrica Latina, as associaes econmicas - Mercosul, o Pacto Andino, o pacto tripartite (Mxico, Colmbia e Venezuela), o Mercado Comum Centro-americano - esto tendo uma nova vi-talidade, reafirmando a tese, demonstrada de forma mais ntida pela Unio Europia, de que a integrao econmica caminha mais depressa e vai mais longe quando est baseada em aspectos culturais em comum. Ao mesmo tempo, os Estados Unidos e o Canad tentam absorver o Mxico no NAFTA (Acordo Norte-Americano de Livre Comrcio) num processo cujo xito a longo prazo depende essencialmente da capacidade do Mxico de se re-definir culturalmente de latino-americano para norte-americano. (Huntington, 1997a, p.156)

    Uma via sem sada?

    Frente al enjambre negro de los hombres que por Ias calles von con febril paso, cada quien tras un sueo diferente; una angustiante idea me ha asaltado: Pienso que el ms feliz de todos ellos, es un montn de sueos fracasados!

    (Yunque, 1977, p.9)

    As anlises apresentadas neste captulo mostram uma situa-o bastante contraditria. So feitos elogios convergncia dos pases latino-americanos na adoo de estratgias que tm nas democracias capitalistas ocidentais o modelo de inspirao e s excelentes relaes com os Estados Unidos, em sntese, supe-rao de um passado de "insistncias" na valorizao da questo nacional. No entanto, independente da vontade de aderir ao Oci-dente, a Amrica Latina continua nica e solitria. nica na pe-

  • culiaridade da sua cultura retrataria ao progresso, solitria no ex-tremo sul, separada por uma fronteira onde a construo de barreiras de conteno (Estados-piv) vista como uma das ta-refas urgentes.

    No criamos uma utopia prpria, e os nossos projetos de de-senvolvimento alternativo entraram para o balano das derrotas da guerra fria. Tomando emprestadas as palavras do poeta ar-gentino Alvaro Yunque, j citado, para o olhar do norte no pas-samos de "un montn de sueos fracasados", incluindo a prpria idia de "Amrica Latina".

    Os prximos captulos retomaro essa discusso. A recons-truo de alguns percursos histricos servir de apoio para a ela-borao de uma base mais ampla de interpretao do nosso "destino manifesto", relativizando as explicaes do fatalismo cultural.

  • 2 Imperialismo e

    dependncia estrutural

    Para situar historicamente a origem das questes que nos in-teressam na anlise das relaes interamericanas, iniciaremos nosso estudo com uma breve introduo das tendncias que se configuram a partir do ltimo quartel do sculo XIX, perodo que demarca o surgimento da fase monopolista do capitalismo, com a emergncia dos Estados Unidos como potncia econmica e militar.

    A "grande depresso" que afeta a economia internacional en-tre 1873 e 1895, para alm dos efeitos conjunturais recessivos, contribuiu para desencadear uma reorganizao estrutural do sistema. Junto queda dos preos de bens industriais e de ma-trias-primas, da diminuio do ritmo comercial e do crescimen-to do desemprego, verifica-se um aumento da produo e do in-vestimento. Embora a baixa dos preos se mantenha constante por um perodo de vinte anos, a diminuio do salrio real no generalizada. Isto significa que, mais do que uma queda do nvel da atividade econmica, o que se verifica um processo de

  • deflao acompanhado pela reduo dos lucros das empresas. (Ver Arrighi, 1996, cap. 3; Hobsbawm, 1988, cap. 2.)

    0 principal efeito dessa situao o aumento da concorrn-cia entre pases e grupos econmicos, influenciando um amplo processo de mudanas na economia internacional:

    1 Com exceo da Inglaterra, que mantm o livre comrcio, a maioria dos Estados europeus adota polticas protecionistas, es-pecialmente em relao indstria txtil e importao de ma-trias-primas. Em razo da poltica aberta adotada, a Inglaterra se especializa na produo e exportao de produtos industriais, tornando-se um grande importador de matrias-primas.

    2 Desenvolve-se um amplo processo de concentrao indus-trial e de associao do capital industrial com o capital bancrio, o que aumenta a capacidade de investimento das empresas e me-lhora sua competitividade no mercado. Grandes grupos empre-sariais passam a controlar a produo de carvo, de petrleo e de setores industriais completos, comprometendo a concorrncia das pequenas empresas privadas.

    3 O progresso tcnico e cientfico torna-se cada vez mais um componente fundamental do aumento da produtividade na in-dstria. Os setores qumico, eltrico e a construo de mquinas passam a liderar o desenvolvimento industrial.

    4 A diminuio da lucratividade no interior das economias nacionais, uma profunda sensao de crise e de insegurana dos setores empresariais em relao evoluo da economia e o au-mento da concorrncia internacional contribuem para acentuar as polticas expansionistas na busca de novos mercados e reas de investimento. A conquista de colnias ganha novo impulso.

    O boom econmico que sucede depresso entre os anos 1890 e 1914, conhecido como belle poque, uma fase de expan-so dos negcios e de prosperidade, fortemente influenciada pela reorganizao do capitalismo j descrita.

    A integrao da economia internacional aumenta considera-velmente. O processo de industrializao se acentua, especial-

  • mente em algumas reas perifricas da Europa, Amrica do Nor-te e Japo. A liderana da Inglaterra comea a ser desafiada pelo avano de pases como Alemanha e Estados Unidos. As inova-es tecnolgicas aceleram a diferenciao entre pases indus-trializados e de economia agropastoril. Aumentam a populao, o consumo, a urbanizao e a renda do setor assalariado nos pa-ses mais desenvolvidos (Tabela 1). Esses fatores, em conjunto, contribuem para tornar esses pases mais dependentes do for-necimento de matrias-primas, na medida em que se multiplica a demanda tanto da indstria como do consumo de massa exigin-do cada vez mais o controle das fontes de fornecimento de pro-dutos primrios, especialmente as situadas na frica, sia e Amrica Latina.

    Nesse perodo, ao mesmo tempo em que crescem o comrcio mundial de produtos primrios e as reas destinadas sua pro-duo, tambm aumenta o fluxo de capitais em direo aos pases perifricos, destinado prioritariamente a obras de infra-estrutura, como ferrovias e portos, buscando melhorar as condies de transporte da produo para o comrcio.

    A especializao dos pases em razo do que produzem e ex-portam (produtos industrializados ou matrias-primas), a cres-cente integrao da economia internacional em conseqncia da dinmica do seu ncleo mais desenvolvido, a diviso territorial do mundo entre as grandes potncias capitalistas e a consolida-o do monoplio como tendncia dominante da organizao do capital compem o novo quadro do capitalismo do fim do sculo XIX, como retratam os dados do Tabela 1.

    Alm desses fatores, argumentos de ordem ideolgica e cul-tural se destacam na explicao do fenmeno expansionista. O apelo para o sentimento de nacionalidade aparece como forte ele-mento de coeso ideolgica. Em face do fortalecimento do mo-vimento operrio e dos partidos socialistas, a associao das me-lhorias econmicas e sociais com o iderio de conquista, glria e poder imperial busca amenizar as contradies internas. A noo

  • corrente da poca de que o status de grande potncia decorre da posse de colnias, com a idia do homem branco ocidental como civilizador do mundo selvagem, tambm contribui para a com-posio do quadro do "novo imperialismo".

    Tabela 1 - Capitalismo monopolista e expanso colonial 1870-1914

    Pas

    Inglaterra Frana Alemanha EUA Europa Oc. Continental

    (D (2) (3) (4) Expanso Investimento Participao Participao colonial externo (milhes na produo no comrcio

    {superfcie de libras esterlinas) industrial mundial em milhes mundial (em %)

    de km3) (em %)

    1876-1914 1870-1885-1900-1914 1870-1900-1913 1880- 1913 22.5-33,5 1006-1602-1485-4004 32 - 20 - 14 23 - 36 0,9-10,6 513- 678-1068-1766 10 - 7 - 6 11 - 7 - - 0,3 ins.- 390- 986-1376 13 - 17 - 16 10 - 12

    ins.- 1 1 - 1 0 3 - 5 1 3 3 - 30 - 38 10 - 11

    (5) Nmero

    de filiais de empresas nacionais

    no exterior at

    1914 60

    122 167

    (6) Evoluo do salrio

    real 1860 = 100

    1913 190 160 160 150

    Fontes: (1) - (3) - (4) - Beaud, 1987, Tabelas 25, 19 e 20, respectivamente. (2) Benackouche, 1980, p.67. (5) Mller, 1987, Tabela 14. (6) Nre, 1981, p.185. Nota: ins. = insignificante.

    O "hemisfrio ocidental"

    Amrica Latina

    Como j destacamos anteriormente, o desenvolvimento in-dustrial da Europa ao longo do sculo XIX aumenta o consumo de matrias-primas, tornando cada vez mais importante o con-trole do acesso s fontes produtoras.

    A Amrica Latina ocupa um lugar destacado como fornece-dora de produtos primrios. A partir da segunda metade do s-culo, ocorrero, nessa parte do continente, grandes mudanas na estrutura econmica, cujo impulso se origina do dinamismo do capitalismo europeu.

    Os pases comeam a especializar-se em decorrncia da de-manda exterior. O desenvolvimento da monocultura permite a

  • expanso das exportaes, cujo dinamismo financia a moderni-zao do aparato produtivo, dos transportes, das comunicaes e dos servios pblicos. para esses setores que ser destinada a maior parte dos investimentos estrangeiros. At o final do sculo XIX, a exportao de capitais para a Amrica Latina se efetivar prioritariamente por meio de emprstimos, destinados a forta-lecer as finanas dos Estados recm-constitudos (passo ne-cessrio consolidao de uma autoridade nacional legalmente responsvel pelos compromissos financeiros assumidos), construo de obras de infra-estrutura associadas melhoria da comercializao da produo nacional (portos, ferrovias, telgra-fo etc.) e ao desenvolvimento dos centros urbanos (embeleza-mento das cidades, melhoria nos servios pblicos etc).

    Dessa maneira, a Amrica Latina torna-se uma rea impor-tante no apenas como fornecedora de matrias-primas, mas tambm como compradora de produtos manufaturados, de ma-teriais e de equipamentos para construo das obras de infra-es-trutura, pagamento de transportes, fretes e captao de emprs-timos (Vitale, 1986, cap.II).

    Em contraposio ao dinamismo do setor exportador, a cha-mada "fase de expanso para fora" (Cardoso & Faletto, 1981, cap.III) aprofunda vrios problemas das economias latino-ame-ricanas: o desestmulo produo local para o mercado interno leva a uma crise no abastecimento de produtos bsicos, como ali-mentos e vesturio de consumo popular, que passam a compor a lista das importaes; cresce cada vez mais a dependncia em re-lao ao consumo internacional de produtos primrios; o con-trole do capital estrangeiro se estende por vrios setores econ-micos, incluindo os servios pblicos (gua, gs e eletricidade), os transportes urbanos e as ferrovias (Beyhaut & Beyhaut, 1985, cap.II).

    At o final do sculo XIX, o predomnio dos investimentos estrangeiros na Amrica Latina corresponde Gr-Bretanha, mas a presena dos Estados Unidos cada vez mais importante.

  • Entre 1895 e 1913, os investimentos ingleses passam de 552,5 milhes de libras esterlinas para 1.179,9 e os investimentos dos Estados Unidos, de 304,3 para 1.275,8 milhes de dlares (Minsburg, 1987, v.l).

    Estados Unidos

    At meados da dcada de 1860, quando o Norte vence a guer-ra civil (1865), os Estados Unidos esto preocupados fundamen-talmente com sua fronteira interna. A expanso territorial con-some a maior parte dos recursos humanos e capitais disponveis. Na poltica externa, a orientao do pas se pauta pelo isolacio-nismo, evitando o envolvimento nas disputas entre as potncias europias. O presidente Washington foi um dos precursores na defesa dessa postura, explicitada durante o seu governo pela po-sio de neutralidade na guerra entre Frana e Inglaterra. No dis-curso de despedida, ele apresenta os argumentos favorveis se-parao do Novo e Velho Mundo, que daro impulso posterior idia de Hemisfrio Ocidental, denominao aplicada ao conti-nente americano:

    A nossa grande regra de conduta em relao s naes estran-geiras , embora ampliando nossas relaes comerciais, ter a menor conexo poltica com elas ... A Europa tem um conjunto de inte-resses primordiais com o qual no possumos nenhuma relao ou ento relaes muito remotas. Da o fato de ela se ver engajada em freqentes controvrsias cujas causas so essencialmente estranhas s nossas preocupaes ... Nossa situao destacada e distante per-mite-nos e convida-nos a que sigamos um curso diferente ... Nossa verdadeira poltica mantermo-nos afastados de alianas perma-nentes com qualquer poro do mundo exterior.1

    1 Mensagem de despedida ao Congresso em 17 de setembro de 1796 (May, 1964, p.40).

  • A partir da doutrina Monroe, de 1823, a defesa do isolamen-to em relao Europa passa a ser estendida ao conjunto do he-misfrio. Manifestando preocupao com as intenes da Espa-nha de reverter, com o apoio da Santa Aliana, o processo de independncia latino-americano, os Estados Unidos decidem fi-xar limites interveno de potncias europias no continente.

    Afirmamos, como um princpio em que os direitos e interesses dos Estados Unidos esto involucrados, que os continentes ame-ricanos, pelo fato de terem assumido e de manter sua condio livre e independente, no devem ser considerados como sujeitos a futu-ras colonizaes por parte de qualquer potncia europia ... consi-deraramos qualquer tentativa de estender seu sistema a qualquer parte deste hemisfrio como perigo para nossa paz e segurana.2

    Na medida em que o pas consolida o seu desenvolvimento econmico interno e define objetivos prioritrios de interesse no cenrio internacional, a poltica em relao Amrica Latina as-sume contornos mais ntidos. Nos anos 80, os Estados Unidos propem aos pases da regio a fundao de um sistema pan-americano. Na primeira conferncia para a discusso do assunto, realizada em Washington entre outubro de 1889 e abril de 1890, o governo dos Estados Unidos coloca entre os principais pontos da pauta a criao de uma unio aduaneira e o estabelecimento de um sistema de arbitragem obrigatrio para os conflitos do he-misfrio. A desconfiana da maior parte dos representantes dos pases latino-americanos com as intenes expansionistas da po-tncia emergente, em parte estimulada pela Inglaterra e seu prin-cipal aliado regional, a Argentina, contribui para bloquear as duas iniciativas. O principal resultado da reunio foi a criao da

    2 Presidente James Monroe. Stima Mensagem Anual ao Congresso, 2 de de-zembro de 1823. Dieterich, 1998, p.202. Anexo Documental.

  • Unio Internacional das Repblicas Americanas, com sede em Washington, que passa a reunir informaes econmicas sobre os pases da regio. A partir desse momento, o sistema pan-ame-ricano funcionar como instrumento de consulta sobre assuntos do hemisfrio, com a convocao de conferncias peridicas. A dcima e ltima reunio ser realizada em Caracas, em 1954.

    Ao final do sculo XIX, os Estados Unidos j ultrapassam em desenvolvimento industrial a Inglaterra e Alemanha, e apresen-tam uma estrutura econmica altamente trustificada, com gran-de potencial de competio no mercado internacional (Tabela l).3 coincidentemente nessa poca que aparecem importantes formulaes tericas defendendo um lugar de grandeza para os Estados Unidos no concerto das naes, com destaque para o li-vro do almirante Alfred Mahan, publicado em 1890, A influncia do poder martimo na histria.

    A abordagem de Mahan combina a noo de Destino Mani-festo que inspirou a expanso territorial da primeira metade do sculo,4 centrada na idia de misso civilizadora dos povos anglo-saxes, com uma viso estratgica que considera o poderio naval e o controle dos mares como principais atributos do status de grande potncia. Suas idias tero grande influncia entre pol-

    3 Entre os anos 1888 e 1905 foram efetuadas "328 fuses, das quais 156 fo-ram bastante grandes para exercer certo grau de domnio monopolstico em suas indstrias gerais ... Em 1904, mais ou menos dois quintos do capital manufatureiro do pas eram controlados por essas trezentas e tantas gran-des companhias com uma capitalizao conjunta de mais de 7 bilhes de dlares" (Robertson, 1967, p.431-2).

    4 A expanso territorial do perodo 1803 e 1853, que amplia os limites das treze colnias, inspirou-se ideologicamente no Destino Manifesto. Os Esta-dos Unidos, dada a "excepcionalidade" do seu desenvolvimento poltico e econmico, seriam uma nao predestinada a promover os valores do seu modo de vida para fora das suas fronteiras, levando a liberdade e a prospe-ridade aos povos atrasados. Para uma anlise do Destino Manifesto como discurso e prtica poltica, ver Rodriguez Daz, 1997.

  • ticos e intelectuais do pas. Um dos seus discpulos mais ilustres ser Theodore Roosevelt, que, como presidente, enuncia, em de-zembro de 1904, o Corolrio para a Doutrina Monroe, manifesto precursor dos argumentos culturais do atraso latino-americano e da misso civilizadora dos Estados Unidos.

    Sob o pretexto de defender o hemisfrio das polticas impe-riais de potncias extracontinentais, a raiz de problemas surgidos com a insolvncia da Venezuela no pagamento da sua dvida ex-terna, que tem seus portos bloqueados por uma esquadra de bar-cos ingleses, alemes e italianos, os Estados Unidos se adjudi-cam o direito exclusivo de interveno:

    Nossos interesses e os dos nossos vizinhos do Sul so em realidade os mesmos. Eles possuem grandes riquezas naturais, e, se dentro de seus limites, o reino da lei e da justia alcanado, ento certo que a prosperidade vir junto. Enquanto obedecem assim s leis primrias da sociedade civilizada, podem eles ficar tranqilos e certos de que sero por ns tratados num clima de simpatia cordial e proveitosa. Eles s merecero a nossa interferncia em ltimo ca-so, e ento apenas se for constatado claramente que sua inabilidade ou fraqueza para executar a justia em casa e no exterior tenha vio-lado os direitos dos Estados Unidos ou incitado a agresso estran-geira em detrimento do conjunto das naes americanas.5

    A poltica para a Amrica Latina durante o governo Roose-velt (1901-1909) ser conhecida como big stick, promovendo in-tervenes em vrios pases na Amrica Central e Caribe. A ori-gem dessa denominao uma frase retirada de um provrbio indgena ouvido por Roosevelt numa viagem frica Oriental: "Quando fores visitar teu adversrio fala em voz baixa, mas leva um porrete na mo" (Boersner, 1990, p.196). Entre os aconte-

    5 O Corolrio de Roosevelt para a Doutrina Monroe. Documento (Morris, 1956).

  • cimentos que marcaram a poltica para a regio nesse perodo, destacam-se a assinatura da Emenda Platt, em 1902, estabele-cendo a tutela sobre Cuba e a autorizao, em 1903, para a ins-talao de uma base militar em Guantnamo; o apoio insur-reio separatista de Panam em relao Colmbia, que cul-mina com a formao do novo Estado e a cesso, em novembro de 1903, do controle da zona do canal aos Estados Unidos; e o desembarque na Repblica Dominicana em 1905, em aplicao do Corolrio Roosevelt, assumindo a administrao das aduanas com o objetivo de garantir o pagamento da dvida externa. Se-guindo a orientao das idias de Mahan, a Marinha do pas se expande durante sua presidncia, passando do terceiro lugar no mundo para o segundo, atrs da Inglaterra.

    No incio do sculo XX, os Estados Unidos aparecem como uma potncia econmica de primeira ordem, com uma poltica externa que define como objetivo prioritrio a hegemonia no continente americano.

    A era do imperialismo

    Para caracterizar a nova situao internacional entre os anos 1875 e 1914, o termo "imperialismo" aparece entre os analistas como denominao mais freqente. Para alguns, existe uma po-ltica expansionista no necessariamente motivada por interesses econmicos, para outros, o capitalismo entrou numa nova fase, caracterizada como imperialista, que s pode ser compreendida pela anlise das mudanas estruturais que aconteceram na eco-nomia nas ltimas dcadas do sculo XIX.

    Para Hobsbawm, "o fato maior do sculo XIX a criao de uma economia global nica" (1988, p.95). Para Barraclough, a histria contempornea, cujas razes nos remetem para a ltima dcada do sculo XIX, apresenta como uma das suas caracters-ticas principais o fato de que "a histria mundial e as foras que lhe do forma no podem ser compreendidas se no estivermos preparados para adotar perspectivas mundiais" (s.d., p.10).

  • Na poca, no seio da II Internacional Socialista, tericos como Edward Bernstein, Rosa Luxemburg, Karl Kautsky e Vla-dimir Lenin, entre os principais, comearam a dar uma ateno especial ao estudo da nova dinmica do capitalismo como pre-missa necessria formulao de estratgias polticas capazes de dar resposta aos desafios da ordem em formao.

    A expanso constante do sistema no plano mundial; a pol-tica agressiva de potncias emergentes como a Alemanha, que busca uma nova partilha colonial; o acentuado crescimento eco-nmico dos pases centrais; a estabilizao poltica interna; a maior organizao da classe operria e a melhoria do seu padro de vida, que a faz participar, embora de maneira reduzida, dos lu-cros advindos da expanso imperial; tudo isso gera respostas an-tagnicas dentro do movimento socialista, acendendo um im-portante debate.

    Edward Bernstein ver na expanso do capitalismo a extenso da civilizao ao mundo atrasado, e na ao legalista dos socia-listas no parlamento e nos sindicatos, com a defesa da democracia representativa, a possibilidade de humanizar o sistema redistri-buindo a riqueza.6 No sem certa hesitao, quando essa expan-

    6 "Temos o dever de praticar uma poltica colonial positiva. Devemos abando-nar a idia utpica de entregar as colnias; a conseqncia extrema dessa atitude levaria a entregar os Estados Unidos da Amrica aos ndios. As co-lnias esto a: preciso aceitar esse fato. Os socialistas devem tambm re-conhecer a necessidade que tm os povos civilizados de exercer uma certa tutela sobre os povos no-civilizados" (apud Chtelet, 1983, p.281). Em re-lao defesa da democracia como via para o socialismo, Bernstein um precursor da idia atualmente muito difundida na esquerda da "democracia como valor universal": "A democracia , ao mesmo tempo, um meio e um fim. um instrumento para instaurar o socialismo e a prpria forma da sua realizao. O socialismo, em ltima instncia, apenas a aplicao da de-mocracia totalidade da vida social. Que sentido h em ficar apegado idia da ditadura do proletariado, quando, por toda parte, os representantes da social-democracia participam do jogo da representao proporcional e do poder legislativo, prticas que so o oposto da ditadura?"(ibidem, p.209).

  • so se efetiva numa poltica externa belicista, acompanhar, com a maioria do partido social-democrata alemo, a investida impe-rialista nacional que desemboca na Primeira Guerra Mundial.

    Outros autores deduzem desse mesmo contexto concluses opostas. Rosa Luxemburg procura explicar a expanso do capi-talismo como algo inerente ao prprio sistema. O imperialismo no uma opo entre outras de poltica externa, seno uma ne-cessidade vital do sistema, que precisa de terceiros mercados, no capitalistas, que absorvam a mais-valia que no pode ser rea-lizada nos pases de origem. Uma vez completada a expanso, com o mundo totalmente integrado lgica do capitalismo, a inexistncia desse terceiro mercado inviabilizar a prpria capa-cidade de acumulao, o que se traduzir em colapso geral, guer-ras pela rediviso do mundo, revolues.

    Tambm de uma perspectiva crtica, Lenin descreve as carac-tersticas que considera fundamentais no novo contexto da eco-nomia mundial. Embora reconhea que a expanso do capitalis-mo tende a amenizar as contradies internas nos pases mais desenvolvidos, permitindo uma certa distribuio de renda e fa-vorecendo polticas reformistas por parte dos partidos socialistas, isso no significa o incio de uma era de estabilidade permanente do sistema ou a caducidade da idia de revoluo socialista.

    Ao lado da prosperidade dos pases centrais e a "aristocracia operria", o imperialismo gera uma nova diviso internacional do trabalho pela partilha do mundo entre as grandes potncias capitalistas, deslocando os sintomas agudos da gravidade da cri-se do centro para a periferia do sistema.7 aqui que se localizam os elos fracos da cadeia imperialista, junto com as condies ob-jetivas da revoluo.

    7 Embora os termos "centro" e "periferia" sejam da dcada de 1950, especial-mente caractersticos dos Estudos da Comisso Econmica para a Amrica Latina e Caribe (Cepal), no nos parecem contraditrios com a anlise da economia internacional do perodo 1875-1914.

  • Tanto para Rosa Luxemburg como para Lenin, o imperialis-mo representa a negao, via expanso externa, das contradies internas do modo de produo capitalista nos pases centrais.