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1 ESTE NÃO É O MEU PARAÍSO”: IMAGEM E CONTESTAÇÃO NOS ROMANCES GRÁFICOS IRANIANOS CAMILA GUIDOLIN Programa de Pós-Graduação em História UPF. Bolsista FAPERGS [email protected] "Como o rio, ou como o vento vão passando os dias. Há dois dias que me são indiferentes: o que foi ontem, o que virá amanhã". Omar Khayyan, Os Rubayat As noções de lembrança e de esquecimento nos lançam em um jogo temporal difícil de dimensionar. O poeta persa, Omar Khayyan, utilizou na citação que inicia esse texto, o rio e o vento como elementos que simbolizam esse inconstante fluxo que é o tempo. A dinâmica que o poeta sugere, cristaliza uma noção pertinente para as abordagens históricas que utilizam o campo da memória como mote orientador das suas pesquisas, pois, mesmo diante de pontos divergentes quanto ao seu uso pela historiografia, uma ideia é consenso: a memória é tecida no presente. De todo modo, esse consenso não anula completamente as divergência s que a cercam, afinal, a “[...] memória é, em grande parte, reconstrução e mobilidade temporal; logo, a mediação e/ou o recurso da oralidade em torno do passado também entra nessa visão” (T EDESCO, 2011, p. 70). Os estudos de memória estariam correspondendo a uma demanda pela afirmação de identidades ameaçadas, através de um fenômeno gerado na “encruzilhada entre a tradição e a modernidade” (D’ALESSIO, 1998, p. 2), onde a memória surge não apenas como uma interpretação do passado, mas também como uma tentativa de afirmação cultural de determinados grupos composta pela narrativa presente do passado vivido, interpretado e significado através de mediações simbólicas. A relação dialética entre experiência e interpretação não retira o valor afetivo e nostálgico existente nas oralidades discursivas, pois: Como toda a experiência humana, a lembrança é também uma experiência continuamente interpretada, porque toda percepção se faz dentro de um quadro de interpretações, corrigido e transformado pelas novas experiências. (TEDESCO, p. 82)

ESTE NÃO É O MEU PARAÍSO”: IMAGEM E CONTESTAÇÃO … · Representação, imagem e contestação ... teriam sido encomendadas pelo rei Aquemênida Dario I. O lugar ainda conserva

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1

“ESTE NÃO É O MEU PARAÍSO”: IMAGEM E CONTESTAÇÃO NOS

ROMANCES GRÁFICOS IRANIANOS

CAMILA GUIDOLIN

Programa de Pós-Graduação em História – UPF. Bolsista FAPERGS

[email protected]

"Como o rio, ou como o vento

vão passando os dias.

Há dois dias que me são indiferentes:

o que foi ontem, o que virá amanhã".

Omar Khayyan, Os Rubayat

As noções de lembrança e de esquecimento nos lançam em um jogo temporal

difícil de dimensionar. O poeta persa, Omar Khayyan, utilizou na citação que inicia esse

texto, o rio e o vento como elementos que simbolizam esse inconstante fluxo que é o

tempo. A dinâmica que o poeta sugere, cristaliza uma noção pertinente para as

abordagens históricas que utilizam o campo da memória como mote orientador das suas

pesquisas, pois, mesmo diante de pontos divergentes quanto ao seu uso pela

historiografia, uma ideia é consenso: a memória é tecida no presente. De todo modo,

esse consenso não anula completamente as divergências que a cercam, afinal, a “[...]

memória é, em grande parte, reconstrução e mobilidade temporal; logo, a mediação e/ou

o recurso da oralidade em torno do passado também entra nessa visão” (TEDESCO,

2011, p. 70).

Os estudos de memória estariam correspondendo a uma demanda pela afirmação

de identidades ameaçadas, através de um fenômeno gerado na “encruzilhada entre a

tradição e a modernidade” (D’ALESSIO, 1998, p. 2), onde a memória surge não apenas

como uma interpretação do passado, mas também como uma tentativa de afirmação

cultural de determinados grupos composta pela narrativa presente do passado vivido,

interpretado e significado através de mediações simbólicas. A relação dialética entre

experiência e interpretação não retira o valor afetivo e nostálgico existente nas

oralidades discursivas, pois:

Como toda a experiência humana, a lembrança é também uma experiência continuamente interpretada, porque toda percepção se faz dentro de um

quadro de interpretações, corrigido e transformado pelas novas experiências.

(TEDESCO, p. 82)

2

Atualmente, no entanto, nos deparamos cada vez mais com estudos que usam de

elementos mediados pela memória por serem esses elementos, fundamentais para a

cristalização de formas simbólicas e rituais da vida cotidiana. As obras Persépolis e O

Paraíso de Zahra, coadunam-se nos quesitos que evidenciam o campo da memória

como condição de estudo sobre determinado contexto. Essa memória, evidentemente,

não eclode nos romances gráficos de forma neutra. Os autores são partícipes da história

que narram ou são arautos de lembranças vivenciadas e narradas por outrem. Ambas as

obras apresentam momentos decisivos da trajetória histórica do Irã recente e permitem

tanto a análise da construção de representações a partir desses eventos (e também sobre

eles), como também, identificar neles a construção/desconstrução de expressões e

memórias, individuais e coletivas, em meio aos processos de transformação e de

permanência, identificados em função da análise do cotidiano.

A obra autobiográfica de Marjane (Irã, 1068) foi apresentada em quatro

álbuns entre os anos de 2004 e 2007 (a edição brasileira foi lançada pela Companhia das

Letras), e descreve em tom testemunhal os acontecimentos do Irã recente, passando pela

revolução iraniana de 1979, a guerra Irã/Iraque e a consagração do aiatolá Khomeini

como líder político e religioso do país. A obra foi traduzida em mais de vinte países e

resultou em uma longa-metragem de animação com título homônimo dirigido pela

própria Marjane, em 2007. O Paraíso de Zahra, por sua vez, foi lançado primeiramente

como uma série on-line - traduzida para doze línguas, entre elas o persa e o árabe – para

depois ser lançada no formato de livro. Amir e Khalil são nomes fictícios dados para o

autor, Amir - iraniano-americano, jornalista e diretor - e o ilustrador, Khalil - artista

plástico e desenhista. A narrativa situa-se num cenário posterior aos eventos descritos

por Marjane, precisamente nas eleições iranianas para a presidência em 2009. A trama

ficcional baseada em eventos reais, narra a busca de uma mãe por seu filho, Mehdi, um

jovem desaparecido nas manifestações populares que tomaram conta da capital iraniana

Teerã, e acusavam de fraude o resultado eleitoral que elegeu o candidato eleito ao cargo

de presidente, Mahmoud Ahmadinejad.

Representação, imagem e contestação

Encontramos um retrato do Irã, (ambientado em um cenário pós-revolução

iraniana), na produção do romance gráfico autobiográfico Persépolis, de Marjane

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Satrapi. O próprio título que dá nome a obra vale-se de uma antiga referência inscrita

sobre o solo de uma das capitais mais impressionantes que o Império Persa construiu.

Persépolis. As ruínas da antiga capital do Império Persa datam do século V a. C, e

teriam sido encomendadas pelo rei Aquemênida Dario I. O lugar ainda conserva traços

de uma arquitetura imponente, com imagens gravadas em baixo-relevo nas escadarias

que levam ao palácio onde os 23 povos (satrapias) que pagavam tributos e ofereciam

presentes eram recebidos pelo rei da Pérsia. Apesar de sua parcial destruição após o

exército de Alexandre o Grande tê-la invadido e incendiado, ainda é possível visualizar

a grandiosidade das suas edificações.

FIGURA 1 - Baixo relevo representando o rei Dario I. Persépolis.

Fonte: arquivo pessoal. Viagem realizada ao Irã em janeiro de 2014

Essa representação em baixo-relevo de Dario I em seu trono, mostra os enviados

das satrapias (províncias sob o domínio persa) apresentando-se diante do rei com a mão

tapando a boca em sinal de respeito e submissão. O rei Dario I é representado

ostentando a barba mais longa identificando seu poder e nunca com os pés encostando o

chão. A existência desses relevos nas escadarias que levavam ao trono de Dario, revela

a importância do poder simbólico existente em torno da figura do rei dos persas, no qual

também estava imersa, a cidade de Persépolis. Usada especialmente na primavera,

submetia as províncias dominadas a um ritual de oferta e confirmava a legitimação do

poder divino que o rei assumia em terra.

Mas a narrativa que se vale do gênero literário HQ (história em quadrinhos),

apresenta uma visão da menina Marji sobre eventos mais recentes da história do Irã (a

Pérsia deixa de ser assim chamada em 1935 quando o seu nome é substituído por Irã),

4

ao narrar a sua percepção sobre os acontecimentos do país desde a instalação da

República Islâmica do Irã, em 1979, até os desfechos da guerra Irã-Iraque em 1988. Um

dos primeiros elementos que surge nessa obra é a mudança que a instalação da nova

República trouxe para o cotidiano da população diante da interpretação da religião

islâmica sustentada pelos clérigos xiitas (majoritários no Irã)1. O exemplo mais claro,

sem dúvida, foi a imposição do uso do véu para as mulheres e a formação de uma

polícia repressiva com a finalidade de garantir que essa nova ordem fosse devidamente

seguida.

O primeiro ano em que o uso do véu tornou-se obrigatório foi em 1980,

acompanhando a formação do novo modelo político teocrático. A justificativa parte,

obviamente, do fato de que a nova república baseava-se numa interpretação

“verdadeira” sobre o Alcorão, mediada através da figura do aiatolá Ruallah Khomeini,

consagrado como líder político e religioso dessa revolução. No entanto, como qualquer

escritura sagrada, essa análise sempre esteve passível de imprecisões interpretativas. O

uso do véu, porém, representou na revolução iraniana um posicionamento político,

simbolizando uma ruptura com o antigo governo do Xá Reza Pahlevi2. Com a deposição

do último rei do Irã e com a transformação do país em uma República Islâmica, o véu se

transformou no símbolo dessa nova fase. (COGGIOLA, 2007, p. 63)

FIGURA 2 – O véu

1 A formação dessa vertente religiosa está associada ao problema sucessório após a morte do Profeta

Maomé no século VII, que provocou a primeira dissidência política-ideológica no Islã. De um lado, os

sunitas (suni, a tradição), que reunia os apoiadores dos califas Abu Bakar, Omar e Othman. De outro lado,

os xiitas (xiá, facção, partido) adeptos de Ali - primo e genro do profeta, assassinado em 661 - e de seu

filho Hussein - decapitado em 680 – que consideram os califas um grupo de usurpadores (DINES, 1979).

O comando da facção xiita foi desempenhado por 12 imans descendentes de Hussein, o filho de Ali. A

morte do 12º não deixou nem um descendente vivo e o poder espiritual do grupo passou a ser exercido

por um iman invisível. Essa ideia messiânica do iman que surgirá é mantida até hoje pela vertente xiita

que se identificou como afirma Dines, como “a religião dos marginalizados pelo poder, dos

despossuídos” (DINES, 1979, p. 31). A hierarquia xiita é exatamente a posição que prevaleceu no Irã revolucionário e foi renascida e intensificada pelos apelos de Khomeini quanto à deposição do xá Reza

Pahlavi. O xá foi em si a representação da intervenção estrangeira no país. Em 1941, quando tropas

britânicas e soviéticas invadiram o Irã, ele assume após a abdicação do seu pai, Reza Khan Pahlevi, e

permite o prosseguimento dos interesses britânicos no país, transformando-se em “um verdadeiro

fantoche dos europeus” e em um político evidentemente pró-ocidental e modernizador, mas ao mesmo

tempo corrupto e negador da religião islâmica. (COGGIOLA, 2007, p. 35). 2 Mohammad Reza Pahlevi foi o filho herdeiro do fundador da Dinastia Pahlevi, Xá Reza (1878-1944)

que suplantou a antiga Dinastia Qajar (1794-1925). Xá Reza, usando o exército, centralizou o Estado

iraniano esmagando revoltas tribais. Usou como modelo para o desenvolvimento do Irã as reformas

seculares e ocidentais de Ataturk, na Turquia. Nacionalista feroz foi forçado, pelos ingleses, a abdicar em

favor do filho em 1941. (AMIR; KHALIL, 2011, p. 237)

5

SATRAPI, 2007.

Apesar do quase consenso ocidental quanto a violência simbólica exercida pelo

véu, as opiniões divergem, mesmo entre as mulheres muçulmanas. Recentemente, um

evento circulou pela internet, noticiando uma manifestação organizada por um grupo de

mulheres na cidade de Teerã, capital iraniana, cujo conteúdo de protesto era a falta de

rigor das polícias morais quanto a não obediência de algumas mulheres nas regras do

véu. Sem contar com a participação feminina nas manifestações populares que levaram

à revolução iraniana, quando essas, vestiram seus véus contra as políticas modernizantes

do antigo Xá Mohamed Reza Pahlavi, considerados por muitos naquele período, como

“ocidentalizado” demais. Apesar dessas manifestações, pode-se observar pelas ruas das

cidades, principalmente nas mais populosas e especialmente entre as mulheres mais

jovens, a tentativa de fugir aos códigos de vestimenta, ao utilizar-se um véu que cobre

apenas parte da cabeça, deixando cabelos e rostos maquiados à mostra.

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FIGURA 3 – Mulheres vestindo o chador na cidade de Esfahan.

Fonte: Arquivo pessoal. Janeiro/2014

O Paraíso de Zahra, por sua vez, está inscrito sobre o antigo solo da antiga

civilização da Pérsia. O enorme cemitério localizado na capital Teerã carrega em si uma

referência a única filha do Profeta Maomé, Fatima Zahra, com sua primeira esposa,

Khadijah. Na tradição islâmica, ela é um símbolo de pureza, dignidade, generosidade e

graça. Em árabe, a palavra Zahra significa flor. O Paraíso de Zahra, porém, não é um

cemitério qualquer. O local constituiu-se no destino final para muitos manifestantes que

participaram dos protestos iniciados imediatamente após o anúncio da vitória eleitoral

que concedeu o título de presidente iraniano a Mahmoud Ahmadinejad, em 2009.

O regime teocrático iniciado por Khomeini chegou a um ponto crítico

com a chegada de Ahmadinejad ao poder. Famoso pelos seus discursos internacionais

que negavam o Holocausto, internamente, seu nome está ligado a uma eleição

fraudulenta e a um governo extremamente autoritário e repressivo. É exatamente nas

eleições presidenciais iranianas de 2009 que encontramos o plano de fundo que tornou

possível a construção do HQ em narrativa ficcional intitulado O Paraíso de Zahra.

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O livro com a autoria de Amir e Khalil (os autores mantem seus nomes

originais anônimos) após sua estreia on-line, em inglês, persa, árabe, francês, italiano,

espanhol, holandês e português, teve sua história lançada em formato de livro. A

composição que o livro tece segue uma narrativa ficcional, com personagens também

ficcionais, mas situa-se diante de eventos reais e de histórias de pessoas que

vivenciaram o período subsequente às eleições no Irã e os eventos que se seguiram a

vitória de Ahmadinejad. A história conta a busca de uma mãe, Zahra, para encontrar seu

filho, Mehdi, um jovem que sumiu enquanto protestava nas ruas do Irã contra as

eleições presidenciais. Como consta no início da obra impressa:

O que impede que sua memória seja esquecida não é a lei. É a coragem e determinação de uma mãe que se recusa a entregar seu filho ao seu próprio

destino, e também à tenacidade de um irmão, um blogueiro, que combina

cultura e tecnologia para explorar e explodir o vazio, o vácuo onde Mehdi

desapareceu. (AMIR e KHALIL, 2011, s.p.)

Embora os autores apresentem o romance gráfico como uma história ficcional,

apreendemos do seu discurso (imagem e texto) a vinculação indissociável entre o

enunciador e o que é enunciado, como consequência da relação que é estabelecida pelos

eventos e a força simbólica que eles produzem:

Não há essa relação linear entre enunciador e destinatário. Ambos estão

sempre já tocados pelo simbólico (...) há efeitos de sentidos entre locutores.

Efeitos que resultam da relação de sujeitos simbólicos que participam do

discurso, dentro de circunstâncias dadas. Os efeitos se dão porque são

sujeitos dentro de certas circunstâncias e afetados pelas suas memórias

“discursivas”. (ORLANDI, 2010, p. 15)

Em O Paraíso de Zahra, o presente é a expectativa de um passado na

experiência futura. E esse futuro presente, nem sempre corresponde ao esperado no

passado. A imagem de corpos suspensos por um guindaste m locais públicos, já se

tornou uma cena “comum” nas praças de Teerã. As acusações que levam a essa punição

podem envolver desde tráfico de drogas até estrupo, e colocam o Irã na lista dos países

com maior número de execuções em 20103.

3 Segundo dados da Anistia Internacional (indicando calculo mínimo), no ano de 2010, o Irã executou 252

pessoas.

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FIGURA 4 – Os cristãos têm a cruz; nós temos o guindaste...4

AMIR; KHALIL, 2013.

A realização de duas obras em estilo HQ5, Persépolis (2007), de Marjane

Satrapi, e O Paraíso de Zahra (2009), de Amir e Khalil por iranianos que não mais

residem em seu país de origem, demonstra a relação desses autores com os eventos

históricos em curso em determinado momento do contexto contemporâneo do Irã,

refletindo na produção dos romances gráficos. As produções diferem em estilo e apelo,

pois se apresentam com características bem particulares, mas assemelham-se na medida

em que a vivência de seus enunciadores compartilha de períodos turbulentos da história

recente do Irã, respectivamente, a Revolução Iraniana de 1979 e as eleições presidências

de 2009. Os próprios protestos que marcam o último evento parecem a continuação de

4 As sequências gráficas presentes na Figura 2 e 4 foram retiradas do site “Vote4Zahra”, uma página

virtual criada como forma de protesto contra as eleições presidências iranianas de 2013. A campanha foi

lançada pelos autores da novela gráfica O paraíso de Zahra – Amir Soltani e Khalil Bendib - e a ONG

Human Rights United for Iran, no dia 7 de maio do mesmo ano, candidatando Zahra ao cargo máximo do

governo iraniano. 5 HQ (História em Quadrinhos) é a sigla utilizada para definir o gênero de narrativa que apresenta uma

história narrada em sequência, intercalando ilustração e texto. O gênero também é reconhecido por outros

nomes, tais como, banda desenhada, gibi, quadrinhos, graphic novel, entre outras designações.

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uma indignação mal resolvida do primeiro. Mudaram-se os alvos, agregam-se novas

questões, mas a insatisfação permanece indissolúvel.

FIGURA 5 – Os protestos

AMIR; KHALIL, 2013.

À visibilidade dessas produções, atrelam-se os fenômenos literários, onde o

romance gráfico, ganha destaque, seja através de blogs, das telas de cinema ou do

ativismo político. A narrativa em quadrinhos permite uma leitura do cotidiano social e

os discursos que ela traz, tornam seu conteúdo representativo desse mesmo cotidiano. A

relevância de tais obras reside na experiência narrativa como possibilidade de

interpretação histórica através dos discursos e das narrativas de memória, oferecendo

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dados relevantes sobre determinados aspectos da sociedade e da construção dos seus

imperativos sociais.

O apelo do aiatolá Khomeini se fortaleceu através da imagem e do discurso, da

mesma maneira que essas duas obras se colocam no cenário atual, como projetos de

contestação de uma realidade política que não permite os canais devidos para a crítica

ou oposição. A comunidade iraniana imaginada por Khomeini não correspondeu à

expectativa da maioria popular. As imposições que o novo regime instaurou trouxeram

consequências que ainda repercutem através de medidas repressivas, seja em relação a

oposição política ou aos limites da liberdade de expressão e credo. O modelo

nacionalizante implementado por Khomeini isolou o país da intervenção estrangeira,

mas se constituiu em uma nação de poucos e para poucos. Embora a revolução iraniana

de 1979 tenha significado um movimento pela determinação de uma identidade

nacional, suas consequências colocaram em dúvida a própria validade desse episódio. A

nação dos aiatolás segue um plano restrito e dificilmente transponível de ação política

em uma realidade onde a ideia de nação não resistiu a “neurose” inevitável do

nacionalismo.

Por todos esses fatores, as obras Persépolis e O Paraíso de Zahra, têm-se

constituído em baluartes da luta contra a opressão no Irã, país acusado

internacionalmente pela violação aos direitos humanos (especialmente pela condenação

aos homossexuais e à violação contra o gênero feminino). Certamente, nem todas as

informações que recebemos acerca do Irã pretendem transmitir todas as suas facetas. A

mídia internacional é condenada pelos próprios iranianos como manipuladora e

generalizante dos assuntos que envolvem as nações do Oriente Médio, ao transferirem

para o senso comum a ideia de uma população formada apenas por fanáticos islâmicos.

Primeiramente, existe uma distinção entre o governo iraniano e a sua população,

pois não é consenso a legitimidade do governo dos aiatolás e possivelmente, essa

oposição só não é maior e mais ofensiva por ser barrada nos mecanismos internos que

pretendem coibir qualquer forma de contestação aos interesses da nação. Além disso, o

país vivência um contexto financeiro delicado. As sanções impostas à ele pelos países

ocidentais em função da crise nuclear e o alto índice de desemprego da população mais

jovem, fragiliza o mercado econômico e atinge a população diretamente. Porém, poucos

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acreditam que esse sistema autoritário e repressor de governo e os altos investimentos

em indústria de guerra poderão salvar o Irã de todos os seus fantasmas.

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