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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA CURSO DE GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA MÍMESIS EM PLATÃO E ARISTÓTELES Lucas de Lima Cavalcanti Gonçalves Em A República Platão apresenta sua concepção negativa relativamente à atividade poética a fim de justificar a exclusão de um certo tipo de poesia da cidade ideal. No livro II Sócrates argumenta contra o ensino da poesia rejeitando-o por motivos de ordem ética. Ao longo da obra é apresentada a doutrina da tripartição da alma e da pertinência dos diversos indivíduos que habitam a cidade à três diferentes extratos decorrente da necessidade de a organização política espelhar a estrutura psíquica, bem como a doutrina das formas, derivada do eleatismo platônico que localiza o Ser não no mundo sensível, no qual estão presentes os processos de geração e destruição, mas em um mundo inteligível habitado pelas formas puras das quais os objetivos sensíveis constituiriam imagens. A partir desta exposição, Sócrates nota que se clarifica o motivo pelo qual a poesia deve ser rejeitada na cidade. No livro X, a argumentação de ordem ética é acrescida de uma outra, de ordem metafísica, que a fundamenta dado que entre estes dois domínios do conhecimento (o teórico e o prático) se estabelece a mesma relação que entre os dois domínios da realidade (o real e o aparente). Assim, uma explicação de natureza teórica servirá como fundamento para a crítica já realizada, que rejeita a poesia por transmitir o engano de que os deuses estariam submetidos às mesmas paixões rebaixadas às quais se encontram submetidos os mais vis dentre os seres humanos (II.377b-III.403c). A argumentação de ordem metafisica para a rejeição da poesia é o que nos interessa aqui, visto que é a partir dela e de sua comparação com a concepção aristotélica da constituição do real que fundamenta a concepção apresentada pelo Estagirita acerca da poesia que poderemos estabelecer os traços essenciais de uma diferenciação entre o conceito de μίμησις em Platão e em Aristóteles. O livro X de A República começa com uma observação de Sócrates que diz que por meio da doutrina da tripartição da

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Trabalho para disciplina de estetica sobre a estetica kantiana.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBACENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

DEPARTAMENTO DE FILOSOFIACURSO DE GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA

MÍMESIS EM PLATÃO E ARISTÓTELES

Lucas de Lima Cavalcanti Gonçalves

Em A República Platão apresenta sua concepção negativa relativamente à atividade poética a fim de justificar a exclusão de um certo tipo de poesia da cidade ideal. No livro II Sócrates argumenta contra o ensino da poesia rejeitando-o por motivos de ordem ética. Ao longo da obra é apresentada a doutrina da tripartição da alma e da pertinência dos diversos indivíduos que habitam a cidade à três diferentes extratos decorrente da necessidade de a organização política espelhar a estrutura psíquica, bem como a doutrina das formas, derivada do eleatismo platônico que localiza o Ser não no mundo sensível, no qual estão presentes os processos de geração e destruição, mas em um mundo inteligível habitado pelas formas puras das quais os objetivos sensíveis constituiriam imagens. A partir desta exposição, Sócrates nota que se clarifica o motivo pelo qual a poesia deve ser rejeitada na cidade. No livro X, a argumentação de ordem ética é acrescida de uma outra, de ordem metafísica, que a fundamenta dado que entre estes dois domínios do conhecimento (o teórico e o prático) se estabelece a mesma relação que entre os dois domínios da realidade (o real e o aparente). Assim, uma explicação de natureza teórica servirá como fundamento para a crítica já realizada, que rejeita a poesia por transmitir o engano de que os deuses estariam submetidos às mesmas paixões rebaixadas às quais se encontram submetidos os mais vis dentre os seres humanos (II.377b-III.403c). A argumentação de ordem metafisica para a rejeição da poesia é o que nos interessa aqui, visto que é a partir dela e de sua comparação com a concepção aristotélica da constituição do real que fundamenta a concepção apresentada pelo Estagirita acerca da poesia que poderemos estabelecer os traços essenciais de uma diferenciação entre o conceito de μίμησις em Platão e em Aristóteles.

O livro X de A República começa com uma observação de Sócrates que diz que por meio da doutrina da tripartição da alma tornou-se mais claro o motivo pelo qual uma parte da poesia (a de caráter mimético) não deve ser aceita na cidade. Desse modo, é especificamente à poesia enquanto μίμησις que se refere a condenação de ordem ética apresentada no livro II. Por meio da doutrina das formas Sócrates investiga então em que consistiria exatamente isto que na poesia se denomina μίμησις. Em primeiro grau encontram-se as formas puras, criadas por Deus. Estas são essencialmente unas, dado que se houvessem, por exemplo, duas formas de cama, isto implicaria no fato de que a ambas faltasse algo que estivesse presente na outra, de modo que não fossem a mesma forma, mas duas formas distintas. O eleatismo rejeita a possibilidade de incompletude do Ser e o identifica, por esse motivo, com o Uno, por meio do princípio de identidade. Tais formas não são materialmente apropriáveis. O desvelamento que dá ao homem acesso a elas é no campo do pensamento apenas. Na ordem da transformação dos objetos materiais o ser humano pode agir à semelhança do demiurgo, dando forma à matéria. Os conjugados de matéria e forma que derivam do processo ao qual denominamos fabricação são, por isto, semelhantes às formas puras, tratam-se de “imitações”. Imitação em mais alto grau (e é a isto que, para Platão, convém denominar μίμησις) é realizada pelo artista que, à semelhança do objeto fabricado, produz uma obra de arte. No âmbito da poesia trágica e cômica a ideia é que aquilo que se representa no palco, como o trágico ou como o ridículo, é sempre a imoderação que não convém às almas superiores que devem constituir uma organização social ideal. A tragédia e a comédia poriam às vistas da plateia tudo aquilo que pertence às porções mais rebaixadas da alma, de modo que a virtude está tão distante daquilo

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que a poesia representa quanto as coisas mesmas estão distantes da obra produzida pelo pintor.

Entendemos que a visão platônica da arte se caracteriza por uma excessiva atenção à forma da arte: é em sua forma imitativa que a poesia se encontra em três graus distanciada da realidade. Isto porque a realidade é, para Platão, meramente formal, entrando a matéria como elemento contaminador, que insere a forma no devir, ou menor, que é imbuída de forma permanecendo, exatamente por ser material, no âmbito das coisas que se geram e se destroem. Assim, do ponto de vista ético, quanto mais distante a forma do feito humano estiver da forma pura, quanto mais a matéria dominar e determinar a forma, tanto mais tal feito atingirá e elevará porções mais rebaixadas da alma. A imitação, essencialmente, é o feito humano mais distanciado da forma, é o mais esvaziado do ponto de vista da forma, portanto o que contém o vício em um grau mais elevado. Tanto Platão, quanto Aristóteles, poderíamos dizer, entendem que a verdade se manifesta como conformidade. A diferença, decisiva quanto ao julgamento acerca da obra de arte e da natureza da μίμησις entre os dois autores, é que, enquanto no primeiro a não-conformidade é entendida como um predomínio do devir que carrega consigo a corrupção, já que naquilo que é conforme a conformidade é do feito humano com o feito divino, no segundo a não-conformidade implica apenas em impossibilidade lógica, dado que a expressão da conformidade é sempre da enunciação (λόγος) com a coisa (πρᾶγμα). Na concepção platônica vemos que todo feito humano é concebido em relação ao feito divino e não possui qualquer existência independente dele. Todo feito humano carrega em si algo de corrupção, e esta corrupção é corrupção da forma. Aristóteles compreende a μίμησις como possuindo um valor por si mesma, sem necessidade de que seja avaliada a partir de um paradigma (o imitado). A articulação entre a argumentação ética e a argumentação metafísica para a rejeição da poesia mimética em A República espelha o traço fundamental do pensamento socrático, que não concebe uma distinção entre o âmbito do conhecer e o do agir: o conhecimento é conhecimento do Bem que, uma vez conhecido, é praticado. Aristóteles, compreendendo diversamente o conhecimento, como uma conformidade do intelecto aos objetos exteriores, desvincula a teoria do horizonte prático. É desse modo que desaparece o valor moral intrínseco negativo que a μίμησις possui para Platão.

A negatividade da μίμησις platônica deriva do fato de ela impulsionar para fora da ordem. A exterioridade relativamente à ordem é identificada, no eleatismo, com o irracional. A desestabilidade provocada pelo trágico e pelo ridículo não têm lugar na ordem porque desestabilizando encontram-se distantes do âmbito do que está a mão para ser dominando, do âmbito daquilo que se mostra, o qual o pensamento grego denomina com muita justeza φαινόμενον: aquilo que pondo-se a si mesmo do âmbito do iluminado se faz visível. Relativamente à revelação do inteligível o intelecto é passivo ao que aparece e ativo relativamente àquilo que se encontra no devir, ativo do sentido de empurrá-lo para fora da ordem e, fundando-se na irracionalidade daquilo que está fora, conceber como racional aquilo que está dentro. Esta concepção do conhecimento, transportada para o horizonte da prática resulta na concepção moral que valora como negativo tudo aquilo que na técnica é mimético. A μίμησις torna-se então aquilo que está fora do âmbito da racionalidade e que, em uma alma tripartida, onde a função racional é dentre as demais a mais elevada, aquilo que está fora da racionalidade corresponde àquilo que, no âmbito político, encontra-se fora do governo, fora do âmbito da ἀρχή. É, portanto, ἀναρχία. A ἀναρχία do campo da teoria só pode resultar em ἀναρχία no campo da práxis. Platão rejeita a ἀναρχία no campo da práxis como irracional e desde então herdamos a concepção comum segundo a qual a arte, o sonho e, com a posterior pretensão de desvencilhar a técnica do mito, também a religião encontram-se relegadas no âmbito do irracional, do “meramente subjetivo” que não deve perturbar a existência científica do homem moderno, e que representam apenas momentos meramente privados de κάθαρσις que não devem transpassar as barreiras do comum, o que resultaria em um estado de coisas

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característico de um estágio pré-racional que é culturalmente negativamente valorado. Da κάθαρσις no trágico é paradigmático o delírio báquico da qual se impregnam as mulheres da família real na tragédia de Eurípedes. No “olhar turvo” de Agave encontra-se a impotência para perceber aquilo que se ilumina.

O conceito de κάθαρσις que empregamos acima para caracterizar a função que teria a μίμησις não é de origem platônica. Com efeito, para Platão, a exaltação irracional do que é mais baixo no homem constitui um gênero de produções humanas no qual se insere a poesia mimética. Aristóteles, por sua vez, por enxergar na poesia uma produção que de per se não se encontra necessariamente a origem ou vício nota, no entanto, que esta produção se caracteriza por afetar a alma dos membros da plateia. A apresentação do fato da tragédia suscita na alma do espectador este efeito essencial. Um efeito meramente patológico como este, caso transborde no conteúdo da prática, produzirá, conforme concluíamos acima, a desordem. É nisto que se fundamenta a rejeição da poesia mimética por parte de Platão. Em Aristóteles, por outro lado, o aparecimento do elemento catártico como essencial à poesia trágica, que permanece indefinida na Poética, sendo citada ao lado do aparecimento, na alma do espectador, dos sentimentos da piedade e do temor que são apresentados como responsáveis por tornar presente na alma tal disposição.

A disposição anímica suscitada por tais sentimentos é conhecida a cada um de nós enquanto homem historial. Cremos ser possível caracterizá-lo como um esvaziamento da consciência seu conteúdo ou como um esvaimento do conteúdo da consciência, deixando aquilo que se esvai, em seu lugar, a presença do vazio. Na expressão “presença do vazio” é perceptível que nos encontramos no domínio da irracionalidade. A racionalidade, desde há muito já estruturou nossa linguagem. Não podemos crer que a κάθαρσις é a mesma para todos os homens de todos os períodos históricos. Como homens históricos podemos talvez pensar no potencial de esvaziamento presente na angústia como se encontra caracterizada pelo existencialismo heideggeriano. Esta disposição, provocada pela presença do irracional, nos termos empregados por Heidegger, nos suspende, reduz a nossa capacidade à mesma capacidade que possui um enforcado em seus últimos momentos de vida enquanto a corda comprime o seu pescoço impedindo-o de respirar. Esta compreensão de angústia, no entanto, é também historial. Deriva da impossibilidade de ação do indivíduo que se descobre jogado.

Ao discorrermos acerca da κάθαρσις pudemos perceber então um elemento que, nesse conceito, nos torne capazes de diferenciar a μίμησις em Platão e em Aristóteles. No primeiro, devida à ordem metafísica do mundo, tudo aquilo que suscite disposições anárquicas, no sentido de exteriores e contrárias àquilo que deve governar, deve ser suprimido. A ἀναρχία produzida pelo trágico modifica o ἔθος do homem trazendo à torna algo que deveria, para que impere a ordem, permanecer no âmbito do esquecimento. Aristóteles não encontra no trágico tal potencial anárquico por esvaziá-lo da capacidade de escoar para o âmbito da práxis. Não valorar a arte em si mesma implica em fazer com que ela se torne inofensiva. A κάθαρσις, aquilo que o trágico deve produzir, segue igualmente um programa que encontra eco no âmbito da práxis: trata-se de um esvaziamento do potencial anárquico desta produção do espírito humano. De acordo com a nossa análise, desse modo, é possível diferenciar o conceito de μίμησις em Platão daquele apresentado por Aristóteles por meio do potencial anárquico da poesia mimética no primeiro, enquanto que no segundo o confinamento dos efeitos da poesia mimética no âmbito meramente individual (já que a experiência do esvaziamento não é algo exprimível pela consciência) a torna impotente no âmbito da ação política. Enxergamos ser desta dupla fonte que deriva o papel que a obra de arte desempenha em nosso tempo quando à serviço da ordem cuja destruição somos levados a temer.