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Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência – 2º quadrimestre de 2015 – Vol. 8 – nº 2 – pp.105-127 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência – 2º quadrimestre de 2015 – Vol. 8 – nº 2 105 Estoicismo e epicurismo na filosofia de Gilles Deleuze: uma “identidade discreta” Paulo Domenech Oneto * Introdução Em entrevista para a revista Magazine Littéraire (setembro de 1988), Deleuze aceita a sugestão dos entrevistadores (Raymond Bellour e François Ewald) e apresenta sua trajetória intelectual em termos de três períodos. Referindo-se àquele que seria seu primeiro período, afirma ter começado por livros de história da filosofia, destacando que todos os autores por ele abordados teriam algo em comum. Este aspecto comum é apresentado de maneira breve, por meio da seguinte fórmula: “E tudo tendia na direção da grande identidade Spinoza-Nietzsche”. 1 Se tomarmos como referência sua tese principal de doutoramento, publicada vinte anos antes da entrevista (Diferença e repetição), observaremos que aqui está em jogo a posição da univocidade do ser. Pois, segundo Deleuze, ela aparece em três momentos ao longo da história, sendo dois deles fundamentais para uma filosofia da diferença: quando a univocidade é afirmada e realizada, respectivamente, nas filosofias de Spinoza e Nietzsche. É sob esta condição que o ser passa a se dizer do devir, implicando uma nova revolução copernicana, capaz de abrir na filosofia a possibilidade de um conceito próprio de diferença. 2 Uma melhor compreensão desta questão da univocidade em sua relação com a diferença pode se dar a partir da oposição face à doutrina da analogia do ser, conforme explicado na passagem final de Diferença e repetição: [Se] é verdade que a analogia tem dois aspectos, um pelo qual o ser se diz em vários sentidos, mas o outro pelo qual ele se diz de algo fixo e bem determinado, a univocidade, por sua vez, tem dois aspectos totalmente opostos, segundo os quais o ser se diz “de todas as maneiras” num só e mesmo sentido, mas se diz assim daquilo que difere, se diz da própria diferença, sempre móvel e deslocada no ser. [...] A univocidade significa: o que é unívoco é o próprio ser, o que é equívoco é aquilo de que se diz. Justamente o contrário da analogia. O ser se diz segundo formas que não rompem a * Doutor em filosofia pela Université de Nice. Professor adjunto na Escola de Comunicação da UFRJ, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. Contato: [email protected] 1 Deleuze, G., Pourparlers, p. 185. 2 Deleuze, G., Différence et répétition, p. 58-61.

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  • Revista Trgica: estudos de filosofia da imanncia 2 quadrimestre de 2015 Vol. 8 n 2 pp.105-127

    Revista Trgica: estudos de filosofia da imanncia 2 quadrimestre de 2015 Vol. 8 n 2

    105

    Estoicismo e epicurismo na filosofia de Gilles Deleuze: uma identidade discreta

    Paulo Domenech Oneto* Introduo

    Em entrevista para a revista Magazine Littraire (setembro de 1988), Deleuze

    aceita a sugesto dos entrevistadores (Raymond Bellour e Franois Ewald) e apresenta

    sua trajetria intelectual em termos de trs perodos. Referindo-se quele que seria seu

    primeiro perodo, afirma ter comeado por livros de histria da filosofia, destacando que

    todos os autores por ele abordados teriam algo em comum. Este aspecto comum

    apresentado de maneira breve, por meio da seguinte frmula: E tudo tendia na direo

    da grande identidade Spinoza-Nietzsche.1

    Se tomarmos como referncia sua tese principal de doutoramento, publicada

    vinte anos antes da entrevista (Diferena e repetio), observaremos que aqui est em

    jogo a posio da univocidade do ser. Pois, segundo Deleuze, ela aparece em trs

    momentos ao longo da histria, sendo dois deles fundamentais para uma filosofia da

    diferena: quando a univocidade afirmada e realizada, respectivamente, nas filosofias

    de Spinoza e Nietzsche. sob esta condio que o ser passa a se dizer do devir,

    implicando uma nova revoluo copernicana, capaz de abrir na filosofia a possibilidade

    de um conceito prprio de diferena.2

    Uma melhor compreenso desta questo da univocidade em sua relao com a

    diferena pode se dar a partir da oposio face doutrina da analogia do ser, conforme

    explicado na passagem final de Diferena e repetio:

    [Se] verdade que a analogia tem dois aspectos, um pelo qual o ser se diz em vrios sentidos, mas o outro pelo qual ele se diz de algo fixo e bem determinado, a univocidade, por sua vez, tem dois aspectos totalmente opostos, segundo os quais o ser se diz de todas as maneiras num s e mesmo sentido, mas se diz assim daquilo que difere, se diz da prpria diferena, sempre mvel e deslocada no ser. [...] A univocidade significa: o que unvoco o prprio ser, o que equvoco aquilo de que se diz. Justamente o contrrio da analogia. O ser se diz segundo formas que no rompem a

    * Doutor em filosofia pela Universit de Nice. Professor adjunto na Escola de Comunicao da UFRJ, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. Contato: [email protected] 1 Deleuze, G., Pourparlers, p. 185. 2 Deleuze, G., Diffrence et rptition, p. 58-61.

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    unidade de seu sentido; ele se diz num s e mesmo sentido atravs de todas as suas formas [...]. Mas aquilo de que se diz difere, aquilo de que ele se diz a prpria diferena.3

    Em outros momentos de sua obra (Dilogos com Claire Parnet, por exemplo),

    Deleuze enfatiza, para alm dos dois filsofos mencionados e diante de outras questes,

    pensadores que ele considera no menos estranhos para certa histria oficial da

    filosofia.4 Nestes momentos, invariavelmente, comea por uma meno ao epicurista

    romano Lucrcio, merecedor de um apndice em Lgica do sentido (1969) intitulado

    Lucrcio e o simulacro. Neste texto, denso e claro, Deleuze aborda algumas

    caractersticas do naturalismo entendido como filosofia da afirmao pluralista.5

    Procura, porm, em dado instante, ir mais adiante e retoma um esboo de comparao

    entre o pensamento dos estoicos cujos conceitos constituem um dos pontos de partida

    do livro e o dos epicuristas; algo que j havia feito na 2, 14 e 26 sries da referida

    obra (Dos efeitos de superfcie, Da dupla causalidade e Da linguagem). Seu

    objetivo parece ser o de reforar o argumento segundo o qual o trao comum s duas

    escolas consiste em seus modos originais de operar uma clivagem da relao causal,6

    permitindo uma dissociao do princpio de causalidade7 cujas consequncias so de

    fundamental importncia para uma nova concepo de sentido, na linguagem e na vida.

    Os problemas da causalidade, do sentido na linguagem e do sentido na vida

    constituem, alis, os trs domnios delimitados para a filosofia, tanto pelo estoicismo

    quanto pelo epicurismo, considerando suas diferenas. Assim, a clebre imagem do

    ovo estoico corresponderia diviso epicurista entre Cannica, Fsica e tica.

    Devemos comear pela Lgica ou anlise da linguagem (a casca do ovo, que na

    Cannica de Epicuro se torna uma teoria do conhecimento) para chegar tica (a

    3 Ibidem, p. 388. 4 Comecei [...] por histria da filosofia, quando ela ainda se impunha. No via meio de escapar por minha prpria conta. Eu no suportava nem Descartes, os dualismos e o Cogito; nem Hegel, as trades e o trabalho do negativo. Gostava dos autores que tinham cara de fazer parte da histria da filosofia, mas que escapavam por um lado ou por toda parte: Lucrcio, Spinoza, Hume, Nietzsche, Bergson. (Deleuze, G., Dialogues, p. 21). 5 Com Epicuro e Lucrcio comeam os verdadeiros atos de nobreza do pluralismo em filosofia (Lucrcio e o simulacro. In Deleuze, G., Logique du sens, p. 308). Lucrcio fixou por muito tempo as implicaes do naturalismo: a positividade da Natureza, o Naturalismo como filosofia da afirmao, o pluralismo ligado afirmao mltipla. (Logique du sens, p. 324). 6 Deleuze, G., Ibidem, p. 15-16 e 312. 7 Nos dois casos [estoicismo e epicurismo], comea-se por dissociar a relao causal, em lugar de distinguir tipos de causalidade, como fazia Aristteles ou como far Kant. (Ibidem, p. 16). importante destacar que os contraexemplos citados por Deleuze na passagem buscam, justamente, formular tbuas de categorias que afirmam modos de ser (Aristteles) ou de entender (Kant) primitivos e invariveis, fechando a ideia de causalidade a partir de uma substncia ou como um tipo privilegiado de relao a estabelecer no pensamento.

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    clara). Mas na Fsica (a gema) que est o ncleo da filosofia, no sentido de que

    na articulao entre as coisas ou seres que se encontra fundada a possibilidade da

    liberdade e da linguagem:

    Os dois grandes sistemas antigos, epicurismo e estoicismo tentaram apontar nas coisas o que torna a linguagem possvel. Mas o fizeram de maneira muito diferente. Pois, para fundar no somente a liberdade, mas a linguagem e seu emprego, os epicuristas desenvolveram um modelo de declinao do tomo, e os estoicos, ao contrrio, um modelo de conjugao dos acontecimentos.8

    Dissociar a relao causal um trabalho no campo de uma Fsica, e o que isto

    parece implicar j est aludido no texto seminal de mile Brhier em que Deleuze se

    baseia para sua anlise especfica da filosofia estoica (A Teoria dos incorporais no

    antigo estoicismo). Trata-se, como veremos, de colocar em xeque o princpio de

    causalidade como um princpio ordenador exterior natureza. Ora, como sugere

    Brhier, se a relao causal vista por este ngulo, o ser das coisas est pressuposto,

    constitudo de antemo e classificvel por semelhanas a priori com outros seres. O

    que fica comprometido o processo de diferenciao das coisas, que encarado como

    limitado no seu suposto ser. De resto, este ser aparece como parte de uma unidade

    superior alheia ao devir: Ideia platnica ou substncia aristotlica.

    [Os] estoicos [...] se colocam num ponto de vista diferente dos de Plato e Aristteles. Para estes, o problema era explicar o permanente e o estvel nos seres, aquilo que podia oferecer um ponto de apoio slido para o pensamento conceitual. Do mesmo modo, a causa [...] permanente como uma noo geomtrica. O movimento, o devir, a corrupo dos seres, naquilo que tm de perpetuamente instvel, devem-se no a uma causa ativa, mas a uma limitao desta causa [...]. O que pode atrair a ateno num ser , em primeiro lugar, o elemento pelo qual ele se assemelha a outros seres e que permite classific-lo. Mas outro ponto de vista consiste em considerar esse prprio ser em termos de sua histria e evoluo, desde sua apario at sua desapario. O ser ser considerado, ento, no como parte de uma unidade mais elevada, mas como sendo a unidade e o centro de todas as partes que constituem sua substncia, e de todos os acontecimentos que constituem sua vida. Ele ser o desdobramento dessa vida no tempo e no espao, incluindo suas mudanas contnuas.9

    O ser como desdobramento da vida ou como unidade sempre em vias de

    constituio o que caracteriza uma das principais inovaes estoicas para Brhier.

    Entretanto, a questo que anima Lgica do sentido o esforo de diferentes pensadores

    8 Ibidem, p. 214. 9 Brhier, ., La Thorie des incorporels dans lancien stocisme, p. 4.

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    para conquistar a superfcie,10 e isto que a leitura deleuziana busca enfatizar no texto

    de Brhier. Nos termos deste ltimo, os estoicos distinguem dois planos de ser: 1) o

    plano de um ser profundo e real (corpos), e 2) o plano dos fatos que se manifestam na

    superfcie, a partir dos encontros dos seres-corpos. Estes encontros no revelam uma

    propriedade nova dos seres-corpos, mas fazem emergir um atributo que no uma

    qualidade de ser, mas sim, dentro de uma terminologia mais largamente deleuziana, um

    devir (exprimido por um verbo) ou, na terminologia de Brhier, uma maneira de ser que

    se encontra de algum modo no limite, na superfcie.11

    nesse sentido, portanto, que devemos encaminhar a aproximao entre

    estoicos e epicuristas em torno da clivagem da relao causal. Como esta questo se

    articula com a proposta de uma conquista da superfcie extrada de Brhier e recolocada

    por Deleuze em termos de corpos e acontecimentos, estados de coisas e atributos?

    Como esta conquista estoica encontra eco no epicurismo? No se produziria a, neste

    encontro entre estoicos e epicuristas via dissociao da causalidade, uma segunda

    importante identidade, mais discreta (no duplo sentido de sutil e parte) do que

    aquela entre Spinoza e Nietzsche?

    Enfim, num esforo para tentar conectar as duas identidades, poderamos

    ainda perguntar: no seria esta segunda identidade (menor, pequena) fundamental

    para reforar uma teoria da univocidade afirmativa da diferena, ou seja, para recolocar

    a imanncia em novas bases? E que novas bases seriam estas?

    10 Conforme podemos ler na quarta capa do livro: Os estoicos foram um novo tipo de filsofos, Lewis Carroll foi um novo tipo de escritor, porque eles saram para conquistar a superfcie. possvel que esta conquista seja o maior esforo da vida psquica, na sexualidade e no pensamento. E que, no sentido e no no-sentido o mais profundo seja a pele. 11 Brhier, ., La Thorie des incorporels dans lancien stocisme, p. 11-13 na citao de Deleuze, G., Logique du sens, p. 14 (nota 1).

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    O projeto de Lgica do sentido como sequncia de Diferena e repetio: a

    importncia dos estoicos para a reverso do platonismo12

    A diferena este estado em que se pode falar de A determinao. A diferena entre duas coisas apenas emprica e as determinaes correspondentes so extrnsecas. Mas, em vez de uma coisa que se distingue de outra, imaginemos algo que se distingue e, todavia, aquilo de que ele se distingue no se distingue dele. O relmpago, por exemplo, distingue-se do cu negro, mas deve acompanh-lo, como se ele se distinguisse daquilo que no se distingue. Dir-se-ia que o fundo sobe superfcie sem deixar de ser fundo. [...] A diferena esse estado de determinao como distino unilateral. Da diferena, portanto, preciso dizer que ela estabelecida ou que ela se faz, como na expresso fazer a diferena. Esta diferena, ou A determinao, igualmente a crueldade. [...] so todas as formas que se dissipam quando se refletem neste fundo que sobe. Ele prprio deixou de ser o puro indeterminado que permanece no fundo, mas tambm as formas deixaram de ser determinaes coexistentes ou complementares.13

    Em Lgica do sentido, logo na 2 srie do livro (Dos efeitos de superfcie),

    esta questo de um fundo que sobe superfcie ir retornar, precisamente na discusso

    acerca da novidade trazida pelo primeiro estoicismo14. Ela retorna, porm, de outro

    modo, sob a frmula da conquista da superfcie. Delineiam-se assim os pontos de

    conexo entre os principais temas de Diferena e repetio reverso do platonismo,

    univocidade versus analogia etc. e a questo da superfcie posta pelos estoicos.

    No entanto, importante salientar que esta questo dita ontolgica ser o tempo

    todo, tanto no caso do estoicismo quanto no do epicurismo, fsica. E isto devido s

    tores materialistas que so operadas no conceito de ser (o ser como corpo, ou como

    aquilo de que os corpos so compostos). Como caber mostrar, deixam de existir os

    diversos sentidos do ser recenseados pelas doutrinas analgicas e o ser aparece como o

    desdobramento da vida de que fala Brhier. O sentido unvoco do ser poder, ento, ser

    visto como Destino estoico ou, em outro registro, a diferena que dita do sentido

    12 A expresso nietzschiana umgedrehter Platonismus que, em portugus, traduzida por platonismo invertido. O verbo francs associado e utilizado por Deleuze renverser, que Machado e Orlandi (Diferena e repetio) traduzem por subverter. Inverter no parece, de fato, uma boa traduo j que d a ideia de que se trataria de substituir algo por seu oposto. Por outro lado, subverter faz pensar em algo que vem de baixo, em virtude do prefixo sub. Em Lgica do sentido, subverter remete profundidade dos pr-socrticos, num dos contrastes com a operao filosfica perversa dos estoicos (srie 18: Das trs imagens de filsofos). Assim, apesar de reverso remeter ambiguamente reversibilidade, ou seja, ideia de revirar ou colocar de volta no seu estado, prefiro mant-la porque o verbo reverter pode aludir simplesmente a verter novamente. Alm disso, o prefixo alemo um aponta para a ideia de entorno. Drehen, por sua vez, se traduz por rodar, girar, torcer. Tratar-se-ia de fazer o platonismo girar em seu eixo, retorc-lo, faz-lo sair de si. 13 Deleuze, G., Diffrence et rptition, p. 43-44. Grifos meus. 14 O estoicismo conheceu trs fases distintas ao longo de sua histria: uma primeira (antigo estoicismo) com Zeno, Cleantes e Crisipo (sculos IV-III a.C.), marcada por Herclito e pelos cnicos; uma segunda, influenciada pelo platonismo, com Pancio e Posidnio (sculo II a.C.) e; uma terceira, romana, com Epiteto, Marco Aurlio e Sneca, j praticamente na aurora da era crist.

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    unvoco poder ser vista como clinamen. Deste ponto de vista, uma ontologia estoica ou

    epicurista nada mais seria do que suas Fsicas respectivas, desde que entendidas como

    estudo dos movimentos materiais que constituem um ser aberto (o Destino estoico

    no necessidade, devido aos efeitos incorporais) ou que se mantm em sua diversidade

    como Natureza (o clinamen epicurista no implica pura contingncia ou caos).

    De todo modo, vejamos como a longa passagem citada se conecta a esta ideia

    nova de conquista estoica da superfcie. Como a citao indica de modo eloquente, para

    Deleuze, a diferena s pensada em si mesma, sem ser subordinada a uma identidade

    prvia, quando aparece como determinao intrnseca, isto , no como uma

    determinao entre outras, mas como A determinao, como distino unilateral. Em

    outras palavras: a diferena em si mesma aparece quando algo emerge de um fundo

    indeterminado trazendo-o consigo, de alguma maneira. Como no exemplo do relmpago

    sobre o cu negro. Este ltimo a matria de que a forma determinada relmpago se

    constitui. Tudo se confunde numa determinao. O fundo (cu escuro) sobe superfcie

    e deixa de ser indeterminao porque aparece como tal, cu escuro, mas sem deixar de

    ser fundo. A forma (relmpago) no uma determinao meramente complementar

    porque no aparece como um acessrio do cu e sim como diferena do prprio cu. o

    cu negro em seu processo de diferenciao. a diferena se fazendo.

    Poderamos dizer, ento, j antecipando a discusso de Lgica do sentido em

    torno da clivagem da relao causal: o fundo no causa a forma como algo distinto dele,

    a diferena no produzida a partir de algo mais profundo, mas sobe, vem tona como

    determinao do fundo sobre o qual ela se reflete. Deixando a imagem de lado, o devir

    que cessa de ser pensado como devir de algo, como j o caso em Plato, para quem o

    que est em jogo justamente conhecer a organizao superior do ser (inteligvel)

    diante do caos de aparncias que ele denominou mundo sensvel, com suas cavernas e

    fundos obscuros.

    Aqui, importa tentar vislumbrar de modo breve como esta relao fundo-forma

    estaria posta no platonismo, nas entrelinhas da clebre teoria das Ideias. A Ideia

    platnica uma Forma, o si mesmo das coisas que sentimos e que, enquanto si mesmo,

    no se oferece aos sentidos. preciso conquistar as alturas das Ideias numa espcie de

    ascese intelectual, pois estas Ideias servem de critrios para sabermos o que as coisas

    que encontramos em devir so mesmo. Conhecer conhecer o ser, as essncias, o que

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    as coisas so em si mesmas, mas com o objetivo de poder distinguir. Conhecer ,

    portanto, ligar. Ligar ser e devir, amarrar as esttuas de Ddalo.15

    Eis a razo pela qual Deleuze pode afirmar na Lgica do sentido que o motivo

    da teoria das Ideias no est na dualidade entre essncia e aparncia que ela afirma, mas

    sim no que est ali implicado: uma vontade de selecionar, de fazer uma triagem, isto ,

    de fazer a diferena. Mas como Plato prope que ela (a diferena) seja feita?

    Primeiramente, a diferena a ser feita entre o que mesmo isto ou aquilo e o que

    no , embora possa parecer em seu devir. No diferena de um fundo que se

    determina como forma sobre sua superfcie. No se trata de um devir que vem do fundo,

    mas do ser como estruturao do devir a partir de cima. Trata-se de distinguir a coisa

    mesma (em seu ser ou essncia) e suas imagens, o original e a cpia, o modelo e o

    simulacro. Contudo, como Deleuze procura apontar, estas expresses no tm o mesmo

    valor.16 A distino se desloca. Dado que a diferena entre o que mesmo e o que

    no , cabe perguntar: o que permite faz-la efetivamente? Sim, pois a diferena

    platnica no se faz, mas permanece extrnseca e o que permite faz-la um critrio

    transcendente que o intelecto deve formular.

    o segundo ponto, que revela que as expresses usadas acima no possuem o

    mesmo valor: a Ideia um original, um modelo a partir do qual possvel qualificar

    algo e, ento, fazer a diferena. A Justia, por exemplo, cujos requisitos precisam ser

    definidos, permitindo distinguir entre justo e injusto. Como na trade neoplatnica:

    Imparticipvel, participado, participante. O fundamento, o objeto da pretenso e o

    pretendente; o pai, a filha e o noivo, segundo Deleuze. a Ideia oferecendo os liames

    (requisitos, o que ela possui em primeiro) e permitindo fazer a diferena entre dois tipos

    de imagens, entre boas cpias (garantidas por uma semelhana) e ms cpias

    (simulacros). As boas cpias so conforme o modelo. Mantm com ele uma relao

    espiritual. Por isso pode-se dizer que elas possuem em segundo os requisitos que a Ideia

    possui. Os simulacros, por sua vez, no os possuem. E, no entanto, parecem resistir

    numa caverna ou fundo obscuro.

    Ora, sabemos desde Diferena e repetio que a ideia deleuziana de construir

    uma filosofia da diferena parte do projeto nietzschiano de reverso do platonismo.

    Mas, justamente, reverter o platonismo no pode ser (ou deve ser muito mais) do que

    abolir o mundo das essncias e o mundo das aparncias, como Lgica do sentido deixa 15 Plato, Mnon, 97d-98c, p. 371. 16 Deleuze, G., Logique du sens, p. 295.

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    claro. Trata-se, isto sim, do que o livro anterior dizia: negar o primado de um original

    sobre a cpia, de um modelo sobre a imagem. Glorificar o reino dos simulacros e dos

    reflexos.17

    Mas no esquema fundo-forma o que pode significar esta glorificao dos

    simulacros, esta negao de um primado do original ou modelo?

    A questo que, sem original, modelo ou Ideia, carecemos de critrio, ou

    instncia de seleo, e as cpias se embaralham do mundo sensvel em devir. tambm

    a morte do pai diante da filha. Deste modo, o simulacro se torna a prpria caracterstica

    ou forma do que ente ou forma que vai aparecer na superfcie vinda do fundo. A

    identidade do relmpago se dissolve, seguindo o exemplo dado por Deleuze. O seu ser

    escapa e atinge a univocidade, como este fundo (cu escuro) que emerge se fazendo

    relmpago como diferena pura, intrnseca. Porm, esta difcil apresentao do

    problema, discutida depois em termos de uma univocidade do ser cujo pice atingido

    pelo eterno retorno (os trs momentos de uma ontologia pura em Diferena e repetio:

    Duns Scotus, Spinoza e Nietzsche18), aparece recolocada em outras bases em Lgica do

    sentido. Os termos, claro, variam, em funo dos problemas novos colocados pelos

    estoicos. Mas tambm Deleuze que retorna aos problemas de um ano antes para faz-

    los ecoar e variar.

    Os novos problemas so: como conquistar a realidade como superfcie pura, e o

    que isto implica para o modo de encarar o sentido. Como vimos acima, a partir de

    Brhier, os estoicos partem de uma distino entre dois tipos de coisas: 1) os corpos,

    com suas tenses, qualidades fsicas, relaes ou misturas, aes e paixes, implicando

    estados de coisas. Estes corpos so causas, causas de uns com relao aos outros. Cabe

    acrescentar: eles formam uma unidade, que os estoicos denominam Destino

    (heimarmene); 2) os acontecimentos como efeitos, mas de outra natureza porque no

    so corpos e sim incorporais, atributos lgicos ou dialticos. No podemos dizer que

    eles existem, mas antes que subsistem ou insistem, tendo este mnimo de ser que

    convm ao que no uma coisa, entidade no existente. No so substantivos ou

    adjetivos, mas verbos.19

    A dialtica que vinha sendo com o platonismo um mtodo de diviso capaz de

    permitir formular Ideias ou modelos de avaliao pode, enfim, se tornar outra coisa.

    17 Deleuze, G., Diffrence et rptition, p. 92. 18 Ibidem, p. 52-61. 19 Deleuze, G., Logique du sens, p. 13.

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    Ela se torna uma cincia dos acontecimentos tais como expressos nas proposies

    lgicas, uma arte da conjugao (confatalia).20 Conjugar verbos agora o outro lado do

    sentido articulado como conjugao de efeitos. Mas a maneira pela qual os

    acontecimentos como efeitos incorporais se ligam entre si distinta. Eles no causam

    uns aos outros como numa mistura corporal. Por isso Deleuze pode dizer que eles agem

    uns sobre os outros como quase-causas, pois emergem da mistura de corpos caso a

    caso, guardando alguma independncia do tipo que constatamos nas proposies

    hipotticas Se dia, est claro ou se a mulher tem leite, ela deu luz uma criana.

    No h nenhuma relao causal ou de consequncia fsica em jogo nestes enunciados.

    No dia porque est claro ou vice-versa. A mulher no tem leite porque deu luz uma

    criana ou vice-versa.21 A ligao entre os dois acontecimentos expressos em cada uma

    das proposies mencionadas uma conjuno a partir de uma hiptese, a formulao

    de uma condio suficiente e jamais necessria. Basta que... para que...

    Estabelece-se, de qualquer modo, uma oposio importante entre a espessura dos

    corpos em profundidade e os acontecimentos que atuariam apenas na superfcie. Certo.

    Mas o que os estoicos pretendem afinal de contas? Que problema est sendo posto por

    eles mais exatamente?

    Tentemos uma reconstituio simples. Os corpos se misturam de um modo ou de

    outro, determinando estados de coisas quantitativos e qualitativos. A questo : mas o

    que se diz exatamente quando conjugamos um verbo? No tratamos mais de estados de

    coisas ou de misturas no fundo dos corpos, mas de um resultado na superfcie dos

    corpos. Como diz Deleuze, os estoicos traam uma fronteira nova onde nunca se havia

    visto. E esta fronteira implica um deslocamento radical no pensamento sobre a

    causalidade. Mas antes de entrar no deslocamento propriamente dito, importa ver se

    possvel relacion-lo com o tema da univocidade e da diferena. Pois a imanncia

    afirmada nada mais do que esta conexo: univocidade e diferena.

    Num primeiro momento, a dualidade entre corpos ou estados de coisas e efeitos

    ou acontecimentos incorporais contrastada com o conceito de ser anlogo. Aqui

    voltamos oposio univocidade-analogia. Em Aristteles, o ser se diz em vrios

    sentidos, de acordo com dez categorias, e o que faz a diferena no ser especfico de

    algo se passa entre sua substncia como ser primeiro e os acidentes que lhe ocorrem

    como modos de ser, por assim dizer, derivados. Algo dito diferente completa ou 20 Ibidem, p. 18. 21 Ibidem, p. 15 e p. 86.

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    Revista Trgica: estudos de filosofia da imanncia 2 quadrimestre de 2015 Vol. 8 n 2

    114

    parcialmente, sempre de acordo com os sentidos do ser, substancial ou acidentais.22 Em

    contrapartida, com os estoicos, o dito ser substancial inclui tudo o que

    experimentamos: corpos, estados de coisas, quantidades e qualidades. Tudo

    igualmente ser, e a diferena liberada na exata medida em que surge na superfcie dos

    seres como sua diferena intrnseca, sem estar subordinada nem profundidade dos

    corpos nem a um suposto ser dos corpos (substncia aristotlica), mas sim como aquilo

    que se faz na fronteira entre corpos e acontecimentos, entre ser e extra-ser: O termo

    mais alto no ento Ser, mas Alguma coisa, aliquid, na medida em que subsume ser e

    no-ser, as existncias e as insistncias.23

    Esta alguma coisa de que Deleuze fala no nomeada, mas trata-se certamente

    da diferena, do ser sim, mas do ser concebido como ser unvoco que se diferencia. Ou,

    talvez, trata-se daquele ser redefinido por Brhier como unidade e centro de todos os

    acontecimentos que constituem uma vida, desdobramento da vida, incluindo suas

    mudanas contnuas. Seguindo a explicao de Sexto Emprico, o termo mais alto no

    seria ento: nem a faca, nem a carne (encontro de corpos), nem exatamente o cortar

    (efeito incorporal) que se produz sobre a carne; nem o fogo, nem a madeira (encontro de

    corpos), nem exatamente o queimar (efeito incorporal) que se produz sobre a madeira.24

    O termo mais alto seria o ser que se diz do devir, ou seja, o devir que est em jogo em

    qualquer acontecimento (cortar, queimar etc.) pura imanncia ou inseparabilidade dos

    dois planos do estoicismo: de corpos-causas e de acontecimentos-efeitos. O termo mais

    alto seria o Sentido ou o Acontecimento sim, mas como aquilo que est sempre para ser

    dito e encarnado: Nem ativo, nem passivo, o ser unvoco neutro. Ele em si mesmo

    extra-ser, isto , este mnimo de ser comum ao real, ao possvel e ao impossvel.25 O

    termo mais alto este mnimo de ser.

    No podemos sequer dizer que se trata do devir da carne ou do devir da madeira

    nos exemplos extrados de Sexto Emprico. Pois com isto estaramos amarrando o cortar

    a um ser-carne e o queimar a um ser-madeira. Devemos, talvez, falar como Deleuze ao

    se referir ao sentido global de rvore: a rvore arvorifica.26 Fala-se a de um devir-

    rvore e no de um devir da rvore, como se esta fosse um ser-sujeito que mudasse em

    funo de causas puramente exteriores. Assim tambm para a carne e a madeira. Devir-

    22 Aristote, Mtaphysique, livre 2, p. 110-112. 23 Deleuze, G., Logique du sens, p. 16. 24 Sextus Empiricus, Contre les mathmaticiens, IX, 211. In Les stociens, p. 45. 25 Deleuze, G., Logique du sens, 211. 26 Ibidem, p. 33.

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    115

    carne no encontro com a faca. Devir-madeira no encontro com o fogo. Mas tambm

    devir-faca ou devir-fogo. A vespa e a orqudea.

    A ambiguidade entre o aliquid compreendido por Deleuze como extra-ser ou

    como limite entre ser e extra-ser tende a se desfazer ao longo do livro e da obra

    deleuziana, como na meno a Antonin Artaud (srie 13) em que a superfcie frgil

    afunda e tudo se torna profundidade, corpo e corporal, penetrao de corpos; ou nos

    Dilogos com Claire Parnet, por meio da afirmao da juno entre os dois planos:

    [Entre] os estados de coisas fsicos em profundidade e os acontecimentos metafsicos,

    h uma estrita complementaridade.27

    O acontecimento est, portanto, sempre encarnado de um modo ou de outro; o

    sentido voltado para as coisas corporais; a diferena sempre se fazendo. ela que surge

    na fronteira. o fundo de Diferena e repetio que veio tona e agora desliza sobre a

    superfcie. a espessura dos corpos que se revela inteiramente sobre sua superfcie. So

    os simulacros que se tornam efeitos e se distinguem entre si forando-nos a pensar: o

    sentido tornado expresso de um problema.28

    Da a importncia de um segundo momento no debate dos estoicos com a

    tradio, quando Deleuze convoca Plato e retoma o tema da reverso do platonismo em

    outros moldes:

    [Os] estoicos procedem primeira grande reverso do platonismo, reverso radical. Pois se os corpos, com seus estados, qualidades e quantidades, assumem todas as caractersticas da substncia e da causa, inversamente as caractersticas da Ideia caem do outro lado, neste extra-ser impassvel, estril, ineficaz, na superfcie das coisas: o ideel, o incorporal no pode mais ser nada seno um efeito. A consequncia de uma importncia extrema. Pois, em Plato, um obscuro debate se mantinha na profundidade das coisas, na profundidade da terra, entre o que se submetia ao da Ideia e o que se furtava a esta ao (as cpias e os simulacros). [...] [Mas] esta alguma coisa no estava nunca suficientemente enterrada, recalcada, repelida na profundidade dos corpos, afogada no oceano. Eis agora que tudo sobe superfcie. o resultado da operao estoica: o ilimitado vem tona. O devir-louco, o devir-ilimitado no mais um fundo que ruge; ele sobe at a superfcie das coisas e se torna impassvel. No se trata mais de simulacros que se furtam ao fundo e se insinuam por toda a parte, mas de efeitos que se manifestam e atuam em seu lugar. [...] O que se furtava Ideia subiu at a superfcie, limite incorporal; e representa agora toda a idealidade possvel, destituda de sua eficcia causal e espiritual. Os estoicos descobriram os efeitos de superfcie. Os simulacros deixam de ser estes rebeldes subterrneos, fazem valer seus efeitos.29

    27 Deleuze, G., Dialogues, p. 79. 28 Chamaremos de superfcie metafsica (campo transcendental) a fronteira que se instaura entre os corpos tomados em conjunto e nos limites que os envolvem, de um lado, e as proposies quaisquer, de outro. (Deleuze, G., Logique du sens, p. 150). 29 Ibidem, p. 16-17.

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    Os simulacros se esquivavam da Ideia e teimavam em resistir no platonismo.

    Eles agiam como rebeldes subterrneos. Mas agora, com os estoicos, eles fazem valer os

    seus efeitos. o devir-louco ou devir-ilimitado que sai do fundo para rebaixar a Ideia e

    torn-la efeito de superfcie. Tudo agora se encontra na superfcie, mas bem no limite,

    na fronteira que a fronteira da determinao, na fronteira entre causas e efeitos, com o

    ilimitado encontrando a cada encontro os limites prprios dos corpos.

    Sem adentrar o domnio de uma lgica ou teoria da linguagem, mas ficando

    apenas na clara do ovo estoico, podemos dizer o que a nfase nesta fronteira como

    zona de passagem implica eticamente: a liberdade assegurada como esforo de contra-

    efetuao, conforme na srie deleuziana de nmero 21, em torno do poeta Jo Bousquet

    (1897-1950), tornado paraplgico aps ser atingido por uma bala na cervical aos 21

    anos, durante a Primeira Guerra Mundial. Bousquet transforma o acidente em razo para

    escrever e viver: Minha ferida existia antes de mim, eu nasci para encarn-la. Como

    mostra Deleuze, trata-se de um modo potico de viver que devemos considerar como

    propriamente estoico. De um lado, h a parte de acontecimento que se realiza e se

    cumpre no corpo do poeta; de outro, est a parte de acontecimento que o acidente no

    pode realizar. H, portanto, dois tipos de realizao, que so como a efetuao e a

    contra-efetuao [do acontecimento].30 Poderamos tambm falar em dois modos

    distintos de encarnao: acidental (a ferida) e acontecimental (o sentido). Contra-

    efetuar o acontecimento seria tornar-se quase-causa para o que se produz em ns, no

    nosso corpo. querer o acontecimento no como aquilo que se d no plano dos corpos-

    causas, mas como algo que est no outro plano inseparvel, no que acontece. querer o

    puro acontecer como esplendor ou contorno do acidente. No acontecimento de Bousquet

    h a infelicidade, mas tambm o esplendor de uma vida. H a ferida encarnada no corpo

    (efetuao) e h a encarnao de Bousquet na ferida (contra-efetuao); o que a bala

    causou no encontro com o corpo de Bousquet e o que Bousquet quase causa ao

    conjugar a ferida com sua criao. Amor fati. Amor unidade das causas-corpos

    expresso na conjugao dos efeitos-acontecimentos.

    Contudo, antes mesmo de fazer do simulacro um rebelde subterrneo que

    emerge e se torna efeito de superfcie a ser contra-efetuado, Deleuze v que o termo

    aparece em sentido novo e riqussimo em outra escola ps-socrtica que tambm o

    30 Ibidem, p. 178.

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    117

    fascina. Trata-se do epicurismo, que ele reconstitui a partir do poeta-filsofo Lucrcio

    (De Rerum Natura) num dos apndices de Lgica do sentido (Lucrcio e o

    simulacro). A abordagem deleuziana , portanto, estratgica. Simulacro (simulacrum,

    em grego eidolon) um conceito de Epicuro cuja conotao est longe de ser negativa e

    que permite voltar de outro modo aos seus temas e reintroduzir a diferena. Os

    epicuristas tm muito em comum com os estoicos, apesar dos debates envolvendo os

    dois grupos. Estas polmicas dizem respeito, sobretudo, questo da causalidade e da

    determinao. O epicurismo no aceita a noo estoica de Destino por v-la como

    sinnimo de necessidade, numa espcie de determinismo estrito. O estoicismo responde

    que, ao contrrio, o postulado epicurista de sries causais sem unidade

    (fragmentadas) agindo apenas em funo de uma declinao abrupta (clinamen, em

    grego parenklisis) nos componentes dos corpos (tomos) que acaba por implicar pura

    contingncia ou Acaso, ou seja, uma indeterminao insupervel.

    No podemos ver aqui, ainda, uma das questes-chave do pensamento de

    Deleuze: como superar tanto a ideia de um puro caos quanto de uma ordem subjacente

    ao devir, tanto o abismo indiferenciado quanto diferenas j pr-individuadas segundo

    um conceito de ser anlogo? Ou ainda, como na pergunta que orienta este artigo: no

    podemos ver a possibilidade de uma reafirmao da tese da univocidade do ser como

    diferena (o que unvoco o prprio ser, o que equvoco aquilo de que ele se diz)

    a univocidade deleuziana como eco distante de uma articulao entre Destino estoico e

    clinamen epicurista?

    A clivagem da relao causal e a pequena identidade estoicismo-epicurismo

    O que eles [estoicos] esto operando , de incio, uma clivagem completamente nova da relao causal. Eles desmembram esta relao, ao ponto de refazer uma unidade de cada lado. Eles remetem as causas s causas, e afirmam uma ligao entre elas (destino). Remetem os efeitos aos efeitos e afirmam certos laos dos efeitos entre si. Mas no da mesma maneira: os efeitos incorporais no so jamais causas uns dos outros, mas somente quase-causas, segundo leis que exprimem, talvez, em cada caso, a unidade relativa ou a mistura dos corpos dos quais os efeitos dependem como de suas causas reais. De tal modo que a liberdade salva de duas formas complementares: uma vez na interioridade do destino como ligao das causas, e outra na exterioridade dos acontecimentos como liame dos efeitos. Eis porque os estoicos podem opor destino e necessidade. Os epicuristas operam outra clivagem da causalidade, que tambm funda a liberdade: eles conservam a homogeneidade da causa e do efeito, mas recortam a causalidade segundo sries atmicas cuja independncia respectiva assegurada pelo clinamem no mais destino sem necessidade, mas causalidade sem destino.31

    31 Ibidem, p. 15.

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    Eis a primeira ocorrncia da comparao entre estoicismo e epicurismo feita por

    Deleuze em Lgica do sentido. Ela surge logo na srie de nmero 2 (Dos efeitos de

    superfcie) e, de certa maneira, prepara o campo para uma compreenso da polmica

    acerca de dois modos de se afirmar uma tica cujo lema era viver de acordo com a

    natureza. Para estoicos e epicuristas, a mesma frmula implica estratgias diferentes,

    justamente porque a natureza explicada segundo Fsicas igualmente distintas.

    Na srie 14 (Da dupla causalidade), Deleuze volta comparao, mas agora

    para mostrar que a ideia estoica de dois planos distintos (das causas e dos efeitos)

    fundamental para impedir que o sentido como efeito das causas corporais e de suas

    misturas seja reduzido a este tipo de determinao de mo nica. Se o sentido no

    capturado pela causa no corpo, se ele consegue escapar, porque a relao causal

    compreende esta heterogeneidade radical entre causa e efeito: liame das causas entre si

    (destino) e ligao dos efeitos entre si (articulao de sentido):

    Quer dizer que o sentido incorporal, como resultado das aes e paixes do corpo, s pode preservar sua diferena com relao causa corporal na medida em que se ata na superfcie a uma quase-causa, em si mesma incorporal. o que os estoicos viram to bem: o acontecimento submetido a uma dupla causalidade.32

    E Deleuze logo introduz a perspectiva epicurista de outra clivagem possvel,

    igualmente rica para a afirmao da diferena. Pois embora o epicurismo no

    desenvolva sua clebre teoria dos envelopes e superfcies ou no se interesse pela ideia

    de efeitos incorporais, ele tambm afirma uma dupla causalidade que anula qualquer

    tipo de determinismo estrito na natureza, e sem negar a determinao, ao contrrio da

    suspeita dos estoicos. Os simulacros de Epicuro-Lucrcio esto submetidos a uma

    causalidade dos corpos em profundidade. Porm, como Deleuze esclarece, o que

    acontece na superfcie dos corpos remete a modificaes intermoleculares que so como

    sua causa real, alm das variaes de tenso na prpria superfcie que so sua causa

    fictcia33 dois tipos de eflvios corporais. Esta difcil e breve explicao pressupe

    conhecimento da Fsica de Epicuro e nos leva imediatamente ao apndice sobre

    Lucrcio. Entretanto, antes de analisar a teoria epicurista dos simulacros e suas

    consequncias para a causalidade, podemos examinar a 26 srie (Da linguagem) em

    32 Ibidem, p. 115. Grifo meu. 33 Ibidem.

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    que Deleuze ressalta, de maneira brilhante, a coerncia dos dois tipos de clivagem da

    relao causal no campo dos enunciados ou proposies.

    A questo de como marcar nas coisas o que torna a linguagem possvel se

    desenvolve de modos bem distintos em cada um dos sistemas filosficos, mas sempre

    escapando a um raciocnio predicativo ou copulativo. Por um lado, a conjugao dos

    efeitos no estoicismo implica o privilgio do verbo (a rvore arvorifica sentido

    global e no a rvore ; a rvore verdeja sentido de cor e no a rvore

    verde). Por outro lado, a declinao do tomo no epicurismo implica um privilgio

    para os nomes e adjetivos: os primeiros como corpos lingusticos que se compem por

    declinao e os outros como aquilo que resulta dos compostos.

    Ao afirmar que os verbos e sua conjugao se mostram como termos mais

    fiis para uma lgica ou teoria da linguagem34, Deleuze apenas explicita o que j est

    em Epicuro: o fato de que, para este e sua escola, a chamada Cannica no pretende ser

    em absoluto uma dialtica de tipo estoico, mas um meio de aproximao da realidade,

    uma teoria do conhecimento com indicaes sobre o uso da linguagem.35 De qualquer

    forma, em ambos os sistemas (estoico ou epicurista), a linguagem assume uma

    dimenso ontolgica imediata36 sem recair na mera designao. Pois o sentido estoico

    o exprimido da proposio que permanece irredutvel a um estado de coisas exterior

    para o qual apontaria numa relao termo a termo do tipo isto, no aquilo. E,

    mesmo no epicurismo, conforme vemos em Lucrcio, os nomes surgem porque marcar

    as coisas com palavras se revelou til para o gnero humano, mas a marcao ocorre

    segundo as sensaes e entre pessoas em situaes determinadas, no de acordo com

    uma distribuio original capaz de fazer corresponder nomes e coisas de antemo.37

    E, no entanto, o sentido o que tem a face virada igualmente para as coisas (os

    corpos) e para a proposio (linguagem). No um atributo da proposio, como no

    caso de um predicado. J no se trata de qualificar um ser com um ser que seria sua

    propriedade essencial ou acidental a partir de modos de compreenso e nomeao, mas

    34 Ibidem, p. 214. 35 [Os] epicuristas tm o hbito de classificar a Cannica ao lado da Fsica [...]. Eles rejeitam a dialtica por julgarem-na suprflua; segundo eles, [...] basta [avanar] se baseando nos sons que remetem [de algum modo] s coisas. (Diogne Larce, Vies et doctrines ds philosophes illustres, p. 1260). 36 Voltamos a uma citao do incio, agora com um complemento: Nos dois casos [epicurismo e estoicismo], comea-se por dissociar a relao causal, no lugar de distinguir tipos de causalidade [...]. E esta dissociao nos remete sempre linguagem, seja existncia de uma declinao das causas, ou seja, como ns veremos, existncia de uma conjugao dos efeitos (Logique du sens, p. 16). 37 Lucrcio, Da Natureza, V, 1030-1065, p. 110. Ou ainda, na frmula de Marcel Conche: Uma palavra significa sensaes possveis e nada mais do que isso (Conche, M., Lucrce, p. 26).

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    sim de tomar coisas que experimentamos e lhes atribuir uma transformao que as

    ultrapassa. Como no exemplo de Mil Plats, em que se diz a algum: voc no mais

    uma criana.... Transformao incorporal, reconhecida por sua instantaneidade,

    imediatidade e simultaneidade do enunciado que exprime e do efeito que produz.38

    Diramos, talvez, maneira de Guimares Rosa ou Manoel de Barros: voc no

    crianceia mais.

    O que importa, porm, acima de tudo, o que fundaria esta possibilidade para a

    linguagem e asseguraria uma liberdade afirmativa no campo tico. Em Deleuze, o foco

    da comparao entre estoicismo e epicurismo deve ser, portanto, a questo fsica e

    metafsica. Em outros termos, importa desenvolver as implicaes de cada modo de

    clivagem da relao causal. Mas isto s pode acontecer quando o filsofo apresenta em

    detalhes suas intuies acerca do epicurismo, ou seja, no segundo apndice do livro.

    no apndice sobre Lucrcio, cuja primeira verso data de oito anos antes de

    Lgica do sentido, que Deleuze procura estabelecer uma espcie de face a face entre a

    noo de simulacro no platonismo e no epicurismo. Assim, o primeiro apndice sobre

    Plato, tambm uma reescritura de artigo publicado anteriormente tem seu ttulo

    alterado de Reverter o platonismo para Plato e o simulacro. E vem seguido de

    Lucrcio e o simulacro, cujo ttulo anterior era genrico (Lucrcio e o naturalismo).

    O que o simulacro epicurista afinal de contas? Em que sentido ele aponta para

    outra maneira de reverter o platonismo, diferente, mas correlata maneira estoica?

    preciso notar que o termo s surge no meio do texto de Deleuze, aps a

    explicao do naturalismo como filosofia da potncia (a natureza potncia) e do

    princpio de causalidade epicurista como capaz de dar conta da produo do diverso a

    partir desta potncia. a passagem da Fsica para a Cannica, com o ponto de vista

    especulativo acerca da natureza dando lugar ao problema capital das aflies da alma

    fomentadas por iluses. O simulacro aparece como pea que permite encaminhar o

    problema da iluso, epistemolgico e tico a um s tempo. Mas, para chegar at ele,

    preciso um longo movimento. Partimos do tomo como realidade absoluta do que

    pensado e dos seres como compostos de tomos e vazio, sentidos como objetos (1). A

    Natureza soma infinita dos tomos, pois estes so encarados como unidades

    elementares que no se totalizam e que se mesclam ao vazio como um segundo infinito

    (2). A produo do diverso como soma infinita (e no derivao de um Ser, Uno ou

    38 Deleuze, G. & Guattari, F., Mil plats, p. 102.

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    Todo) a prpria Natureza. Ela se faz a partir dos tomos que caem e se entrechocam

    em virtude de uma declinao (clinamen) (3). Enquanto determinao original da

    direo do movimento do tomo, o clinamen uma diferencial da matria e no pode

    manifestar contingncia (4). neste ponto que Deleuze retoma a comparao entre

    estoicismo e epicurismo:

    Nas famosas discusses que opem epicuristas e estoicos, o problema no sobre contingncia e necessidade, mas sobre causalidade e destino. Os epicuristas, como os estoicos, afirmam a causalidade [...]; mas os estoicos querem tambm afirmar o destino, isto , a unidade das causas entre si. Ao que os epicuristas objetam que no se afirma o destino sem introduzir a necessidade, isto , o encadeamento absoluto dos efeitos uns nos outros. [...] [Os] estoicos retrucam que eles no introduzem a necessidade de modo algum, mas que os epicuristas, por sua vez, no podem recusar a unidade das causas sem recair na contingncia e no acaso. O verdadeiro problema : h uma unidade das causas entre si? O pensamento deve reunir as causas num todo? A grande diferena entre os epicuristas e os estoicos que eles no operam a mesma clivagem da relao causal. Os estoicos afirmam uma diferena de natureza entre as causas corporais e seus efeitos incorporais, de tal modo que os efeitos remetem aos efeitos e formam uma conjugao, enquanto as causas remetem s causas e formam uma unidade. Os epicuristas, ao contrrio, afirmam a independncia ou pluralidade das sries causais materiais, em virtude de uma declinao que afeta cada uma; e somente neste sentido objetivo que o clinamen pode ser dito acaso.39

    O problema da controvrsia deslocado. Em suas entrelinhas, a questo

    proposta por Deleuze acerca da unidade ou da reunio das causas num todo passa a no

    mais importar como implicando necessidade versus puro acaso, mas, ao contrrio,

    apenas como sendo a maneira estoica de afirmar a diferena e assegurar a liberdade. A

    diferena se faz na superfcie dos corpos, mas exigindo sua contra-efetuao. A filosofia

    da diferena implica, aqui, uma tica do amor fati, de um amor ao destino como

    unidade das causas; mas de um amor que s pode se exprimir por uma contra-efetuao.

    isto que pode querer dizer viver de acordo com a natureza. A liberdade vista como

    conjugao de efeitos diante da unidade das causas que impede o fechamento num todo

    causal finalista. A partir da, a indagao deleuziana pode ser refeita: a afirmao tica

    como afirmao da potncia de existir precisa de uma viso de unidade e totalidade que

    nos permita viver e criar mesmo diante do pior?

    disso que se trata no amor fati tal como lido por Deleuze no caso de Jo

    Bousquet. Diante do terrvel acontecimento que conduz o poeta paraplegia, emerge a

    criao como contra-efetuao, isto , como retorno sobre o acontecimento no corpo e

    extrao de seu contorno ou esplendor; o acontecimento tornado puro. Eventum tantum.

    39 Deleuze, G., Logique du sens, p. 312.

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    No mais o que aconteceu (o terrvel acidente que faz sofrer), mas algo no que

    aconteceu (a parte de vida mesmo diante do pior) e que s pode ser extrado a partir de

    uma compreenso de unidade ou totalidade. So tambm os simulacros que so

    glorificados e podem seguir deslizando sobre a superfcie dos corpos. A obra de

    Bousquet se torna simulacro sobre seu corpo ferido, potncia de vida e de criao que

    abole todo e qualquer modelo de vida e de criao.

    Qual a alternativa ou a estratgia epicurista para este viver de acordo com a

    natureza? Voltemos aos simulacros. O que eles so para o epicurismo? Dos corpos

    como compostos de tomos emanam eflvios de dois tipos principais: eflvios da

    profundidade dos corpos (Deleuze chama de emisses) e de superfcie. Estes ltimos

    so os simulacros propriamente ditos (dolos, quando traduzidos do grego de

    Epicuro). Aqui tambm, a exemplo do que se d na revoluo estoica, os simulacros

    nada mais tm a ver com os rebeldes subterrneos que tinham que ser recalcados no

    platonismo. Eles so imagens sim, mas que no se dividem em boas e ms conforme um

    modelo. Neste sentido, nunca so falsos, embora possam produzir miragens: o objeto

    sempre percebido tal como deve ser percebido, em funo do estado dos simulacros e

    das emisses;40 mas os simulacros podem, em virtude de sua rapidez, produzir

    miragens do infinito,41 medo, iluso e dor.

    Os simulacros no so, todavia, meros efeitos de superfcie. No se tornaram

    acontecimentos. Em Epicuro e Lucrcio, os simulacros esto submetidos a uma

    causalidade dos corpos e so aquilo que permite conhecer, na medida em que se

    destacam das superfcies e nos afetam, agindo sobre os sentidos. E o conhecimento nada

    mais do que o pensamento que consegue prolongar os sentidos e antecipar ou

    extrapolar os movimentos dos tomos.42 Gozam, portanto, de um estatuto plenamente

    positivo na medida em que esto encadeados na rede causal, como causados e causas:

    causados pelos corpos e causas do sentir e do pensar. Como mostra Deleuze, os

    simulacros epicuristas vo de par com o movimento dos tomos: agem num mnimo de

    tempo sensvel, ao passo os tomos num mnimo de tempo pensvel. Por isso eles so

    40 Ibidem, p. 317. 41 Ibidem, p. 321. 42 O pensamento no nos permite nada a no ser captar realidades sensveis, isto , corpos ou esta ausncia de corpo que o vazio. Ele s prolonga os sentidos [...], compensa os sentidos com realidades sensveis de direito, insensveis para os nossos sentidos. Os tomos no podem ser vistos pelos olhos, nem tocados pela mo, mas so como que vistos pelo pensamento. Pode-se falar, aqui ainda, de antecipao ou talvez de extrapolao: os tomos so apreendidos por uma injectus animi, isto , por um movimento intencional e atento do pensamento. (Conche, M., Lucrce, p. 29-30).

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    insensveis,43 mas so o que faz sentir, forando o pensamento a prolongar e antecipar o

    movimento dos tomos, ainda que diante de todas as dificuldades e com todos os

    cuidados e ateno que se fazem necessrios.44 Aqui, viver de acordo com a natureza

    prescinde da posio de uma unidade das causas que caberia afirmar por meio de uma

    contra-efetuao ou conjugao no plano heterogneo dos efeitos (amor fati).

    De que se trata ento? O que est em jogo, aps o deslocamento deleuziano da

    questo, no mais uma crtica a um suposto fatalismo estoico, conforme na objeo ao

    argumento preguioso (ignava ratio) reportado por Ccero: chamar ou no um mdico

    para ver um doente seria indiferente para um estoico, uma vez que a cura j estaria

    destinada no seu corpo. Mas no. A acusao capciosa, posto que chamar um mdico

    pode estar to destinado quanto se curar, a partir daquilo que Crisipo chamou de coisas

    confatais (confatalia).45 E j no se trata mais disso.

    O que est realmente em jogo a afirmao tica possvel e seu modo. No

    epicurismo, o que importa denunciar as iluses que, longe de derivarem dos sentidos,

    so frutos de projees indevidas. O intuito afirmar o prolongamento concreto das

    sensaes em prazeres serenos.46 Partir da sensao instantnea e de sua evidncia como

    primeiro critrio de verdade e permanecer junto dela.47 deste modo que se conquista a

    liberdade. Ou, nas palavras de Deleuze, trata-se de distinguir entre o verdadeiro e o

    falso infinitos (o prolongvel e no prolongvel imanentes sensao) a fim de atingir

    no sensualismo a alegria do diverso.48 A natureza infinita em seu poder de

    combinar, mas as coisas so simples combinaes finitas com as quais estabelecemos

    relaes igualmente finitas. Para Deleuze, a heterogeneidade epicurista

    heterogeneidade do diverso consigo mesmo (devir) nos corpos e em suas respectivas

    sees causais, sem que se postulem dois planos de realidade. H pluralidade e

    independncia das sries causais materiais. A liberdade assegurada neste no

    fechamento na unidade de um plano com relao a outro, exatamente por essa

    independncia respectiva garantida pelo clinamen.

    43 Deleuze, G., Logique du sens, p. 317-318. 44 E como estes simulacros so sutis, o esprito no pode ver com clareza se por acaso no est atento. (Lucrcio, Da Natureza, IV, 800-825, p. 89). 45 Ccero, De fato, XIII. In Les Stociens, p. 70. 46 [Se] a vida anterior te foi agradvel e se todos os prazeres no foram como acumulados num vaso furado [...], por que razo no hs de [...] retirar-te da vida como um conviva farto e aceitar com equanimidade um repouso seguro? (Lucrcio, Da Natureza, III, 935-940, p. 75). 47 Ibidem, IV, 479-490, p. 85. 48 Deleuze, G., Logique du sens, p. 324.

  • Estoicismo e epicurismo na filosofia de Gilles Deleuze: uma identidade discreta

    Revista Trgica: estudos de filosofia da imanncia 2 quadrimestre de 2015 Vol. 8 n 2

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    A objeo estoica poderia incidir neste ponto, espelhando a possvel objeo

    epicurista. Contra a acusao de fatalismo, a suspeita de indeterminao total. No

    entanto, vimos que Deleuze deslocou a questo. O que est em jogo o tipo de

    afirmao tica possvel. Do mesmo modo como a acusao de argumento preguioso

    ultrapassada, a de que o clinamen poderia invalidar o princpio de causalidade tambm

    deve ser. Pois, enquanto declinao do tomo, o clinamen indica apenas que o princpio

    gerador da natureza como produo do diverso reside na matria, como causalidade

    imanente. O fato de haver um desvio heterogneo s sries causais no cria qualquer

    obstculo para a determinao porque o clinamen um desvio que est ab aeterno na

    prpria constituio do tomo, num tempo e lugar indeterminados.49 Os efeitos

    causados pelo desvio clinmico no se inserem em nenhuma srie causal em

    particular, mas nem por isso a causalidade negada ou contradita. Pois a causao no

    pressupe homogeneidade; as causas no precisam produzir seus efeitos sob as mesmas

    condies. Supor a homogeneidade na produo do diverso seria fechar a natureza num

    conjunto mecanicista. Mas os choques dos tomos so contingenciais, superficiais,

    ainda que aquilo que deles deriva no seja causas fictcias e reais.

    A composio epicurista to perfeita na superao do mecanicismo quanto a

    composio estoica na superao do finalismo. Mecanicismo e finalismo como os dois

    inimigos da imanncia, na exata medida em que separam ser de devir, seja sob a forma

    de uma regra homognea de causao, seja sob a forma de um telos como desaguadouro

    de efeitos. Se a doutrina de Epicuro no mecanicista graas ao clinamen. Se a

    doutrina estoica no finalista graas s quase-causas.

    E o que poderia ainda restar ao estoicismo diante da afirmao do clinamen

    como oposto do destino encarado como mera necessidade? A rplica vem do exemplo

    dos cilindros e cones de Crisipo tambm reportado no De fato, de Ccero. Em reposta

    s crticas sobre um determinismo estrito segundo o qual, quando postos em

    movimento, um cilindro necessariamente rola e um cone necessariamente gira Crisipo

    estabelece uma distino entre causas antecedentes e causas imanentes.50 Mas o que se

    afirma com isso no a necessidade e a contingncia, uma do lado da outra. Afinal, a

    clivagem da relao causal estoica abriu dois planos heterogneos sem lugar para a

    necessidade. O que Crisipo afirma , nas palavras de uma comentadora,51 a prpria

    49 Lucrcio, Da Natureza, II, 292-293, p. 50. 50 Ccero, De fato, XVII. In Les Stociens, p. 73-74 51 Frede, D., Determinismo estoico. In: Os Estoicos, p. 215.

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    natureza interna do objeto que se move: cilindro ou cone. Esta natureza interna

    causa imanente, mas a imanncia aqui afirmada a partir de uma unidade ou totalidade

    de certos corpos, ensejando, no caso do ser humano, uma afirmao tica contra-

    efetuante, diante de uma simpatia universal csmica (amor fati); diferentemente da

    imanncia do clinamen epicurista que implica uma afirmao tica focada no instante (o

    repouso seguro, segundo Lucrcio).

    Deste modo, a pergunta de Deleuze sobre se o pensamento deve reunir as causas

    num todo remete tica; mais profundamente, a uma tica entrelaada questo da

    diferena e de como faz-la praticamente.

    A pergunta pode ser reformulada nos termos de Diferena e repetio, do qual

    Lgica do sentido seria sequncia e aprofundamento: possvel manter ainda a

    diferena entre uma univocidade apenas afirmada (Spinoza) e uma univocidade

    realizada (Nietzsche)? O que preciso para que o ser unvoco se diga da diferena, para

    que se diga num s sentido, mas apenas do que no cessa de diferir? H realmente o

    risco de que o ser unvoco como substncia em Spinoza constitua um todo no interior do

    qual se movem os modos, ou um centro em torno do qual os modos giram?

    O recurso a estoicos e epicuristas pode indicar um encaminhamento de resposta.

    Ao conciliar estoicismo e epicurismo em torno da clivagem da relao causal, Deleuze

    parece querer reforar o seu projeto de uma filosofia da diferena a partir da tese da

    univocidade do ser. Mas no o faz sem, ao mesmo tempo, promover um ligeiro

    deslocamento. O ser unvoco aparece como Destino estoico; a equivocidade como

    clinamen. A nfase num destino que no incompatvel com o acaso no significa

    justaposio e sim sobreposio: o destino como necessidade do acaso a ser afirmada.

    A imanncia assim reafirmada como diferena na univocidade, num retorno a

    Diferena e repetio. Mas, alm disso, ela vem afirmada fisicamente na causalidade:

    natureza interna como tendncia global; clinamen como desvio singular. E o que isto

    parece implicar que Todo e Fundo vo deixando de ser questes decisivas. Basta que o

    todo seja concebido como aberto, por meio da relao entre causas e quase-causas dos

    estoicos ou como no caso da substncia spinozista. Basta que o fundo se torne fronteira

    na superfcie das coisas por meio dos simulacros epicuristas.

    O estoicismo consiste na afirmao deste todo aberto e conclama a uma contra-

    efetuao que passe por ele. Conclama que fiquemos na superfcie, porque nela que a

    diferena se faz, porque a pele o mais profundo e nela que pode se dar a criao, a

  • Estoicismo e epicurismo na filosofia de Gilles Deleuze: uma identidade discreta

    Revista Trgica: estudos de filosofia da imanncia 2 quadrimestre de 2015 Vol. 8 n 2

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    contra-efetuao e a harmonia csmica. Faz-se a diferena praticamente ao fazermos de

    tudo (mesmo da dor) objeto de afirmao porque tudo traz em si a vida.

    Inversamente, um todo aberto no nada alm de uma soma infinita. O

    epicurismo consiste na afirmao desta soma e conclama a que concentremos nosso

    foco na natureza como potncia que se manifesta nas coisas uma a uma. Conclama a

    que nos atenhamos aos corpos, porque a partir deles que a diferena se faz a cada

    instante, porque dos eflvios corporais que emergem os simulacros como caminho

    para a compreenso e o prazer sereno. Faz-se a diferena praticamente ao fazermos de

    cada experincia a afirmao de uma possibilidade de vida diante da dor.52

    Deleuze produz assim uma segunda identidade entre duas filosofias: uma

    pequena identidade, discreta; mas fundamental por diminuir a distncia entre a

    univocidade afirmada e a univocidade realizada (Spinoza e Nietzsche); fundamental

    tambm por passar pelo princpio de causalidade e recolocar a diferena como

    determinao unilateral em outros moldes, indo da fsica at a linguagem e a tica.

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    52 Como neste trecho de Fernando Pessoa (Odes de Ricardo Reis) que nos revela, talvez, um modo potico epicurista: Ele sabe que a vida / Passa por ele e tanto / Corta a flor como a ele / De tropos a tesoura. / Mas ele sabe fazer que a cor do vinho esconda isto, / Que o seu sabor orgaco / Apague o gosto s horas, / Como a uma voz chorando / O passar das bacantes. / E ele espera, contente quase e bebedor tranquilo, / E apenas desejando / Num desejo mal tido / Que a abominvel onda / O no molhe to cedo.

  • Paulo Domenech Oneto

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    Recebido em: 22/02/2015 Received in: 02/22/2015

    Aprovado em: 31/07/2015 Approved in: 07/31/2015