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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULOPUC-SP
Raquel Rocha da Silva
ESTRATÉGIAS DE CONSTRUÇÃO TEXTUAL DO ENIGMA EM NARRATIVAS DE SUSPENSE
MESTRADO EM LÍNGUA PORTUGUESA
SÃO PAULO2011
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULOPUC-SP
Raquel Rocha da Silva
ESTRATÉGIAS DE CONSTRUÇÃO TEXTUAL DO ENIGMA EM NARRATIVAS DE SUSPENSE
MESTRADO EM LÍNGUA PORTUGUESA
Dissertação apresentada à Banca Exami-nadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Língua Portuguesa, sob a orientação da Professo-ra Doutora Regina Célia Pagliuchi da Silvei-ra
SÃO PAULO2011
BANCA EXAMINADORA
Ao Flávio, meu esposo e melhor amigo, e à minha mãe. Sem os quais esse
caminho não seria possível.
AGRADECIMENTOS
A Deus por conceder-me força, saúde e determinação para continuar a cami-
nhada em busca de meus objetivos.
À Professora Dra. Regina Célia Pagliuchi da Silveira, cuja bondade e hospita-
lidade não conseguiria expressar com palavras. E quem, além de orientar, me ensi-
nou a enxergar as diversidades da vida com um outro olhar.
Ao meu esposo Flávio, amigo e companheiro, por toda a dedicação e incenti-
vo durante esta jornada que, algumas vezes, mostrou-se árdua. Tenho plena ciência
de que sem sua ajuda e apoio constante, o caminho tornar-se-ia mais difícil.
À Professora Dra. Irenilde Pereira dos Santos e à Professora Dra. Jeni Silva
Turazza que colaboraram na qualificação com suas sugestões e críticas de grande
importância para a continuação e finalização deste trabalho.
À minha mãe por todo carinho e dedicação.
Ao meu pai que, mesmo não estando entre nós, permanece em meu coração.
Às minhas irmãs pelo constante apoio.
À amiga Maria Tereza da Silva Aguiar, pelas palavras de incentivo nos mo-
mentos difíceis.
A todos os professores do curso que contribuíram para a realização desta dis-
sertação.
O mistério gera curiosidade e a curiosi-dade é a base do desejo humano para compreender.
Neil Armstrong
RESUMO
Esta dissertação está vinculada à linha de pesquisa: Texto e discurso nas
modalidades oral e escrita do Programa de Pós Graduação em Língua Portuguesa
da PUC-SP.
Tem-se por tema a organização textual de história de suspense, a partir de
estratégias aplicadas pelo narrador, a fim de obter e manter a atenção de seus leito -
res.
São objetivos a segmentação e análise do texto produto verbal em episódios;
a reconstrução dos episódios interrompidos na causalidade; as modalizações de
personagens, a referenciação e as mudanças de papéis.
O procedimento metodológico é teórico analítico, seguindo as seguintes cate-
gorias analíticas:
As análises seguiram quatro categorias a saber:
I. A segmentação do texto integral por episódios;
II. A ordenação temporal dos episódios segmentados;
III. O exame da referenciação do texto relativa aos personagens, a partir das
modalidades ser x parecer: manutenção e modificação de papéis sociais;
IV. A análise do suspense, situado como clímax.
Os resultados obtidos indicam que:
• Há diferentes estratégias aplicadas pelo autor para construção do sus-
pense no texto produto verbal.
O leitor constrói um cálculo de significações que devido ao ocultamento do
segundo percurso narrativo obriga-o ao reconhecer a relevância, fazer inferências
ostensivas, de forma a explicitá-lo.
As modalizações de ser + parecer permitem reconhecer a verdade, a mentira,
e o mistério.
O suspense é definido pela articulação de enigma-revelação.
Conclui-se que histórias de suspense são um gênero textual discursivo que
merecem outros estudos.
Palavras-chaves: História de suspense, estratégias de construção do sus-
pense, suspense gênero textual discursivo.
ABSTRACT
This dissertation is linked to the research line: Text and discourse in oral and
written modalities of the Postgraduate Program in Portuguese Language at PUC-SP.
It has been the theme, textual organization of suspense story, from the strate-
gies implemented by narrator in order to obtain and maintain attention of their rea-
ders.
Objectives are segmentation and analysis of product verbal text in episodes,
reconstruction of episodes stopped in causality; character modalizations, referencing
and changing roles.
Methodological procedure is analytical theoretical, performing the following
analytical categories. The analysis followed four categories namely:
I. Full text segmentation by episodes;
II. Temporal ordering of segmented episodes;
III. Examination of text referencing concerning the characters, from the moda-
lities to be x look like: maintenance and modification of social roles.
IV. The analysis of suspense, situated as climax.
The results indicate that:
• There are different strategies applied by authors to build suspense in ver-
bal text product.
Readers build a meaning calculation due to the second narrative route conce-
alment forcing, when recognizing the relevance, making ostensive inferences in or-
der to make it explicit.
Modalizations to be x look like, allow to recognize the truth, lying, and mystery.
Suspense is defined by the articulation of puzzle-revelation.
Conclusion is that suspense stories are a discourse genre that deserve further studies.
Keywords: suspense stories, suspense building strategies, suspense
discursive textual genre.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO............................................................................................................12
1 - DIFERENTES OLHARES PARA A NARRATIVA DE SUSPENSE.....................15
1.1 - Histórias Orais........................................................................................15
1.2 - A Origem e o desenvolvimento das narrativas de história com sus-
pense escritas................................................................................................20
1.3 - A Função das modalidades ser x parecer na enunciação de narrati-
vas de suspense.............................................................................................24
1.4 - O suspense e a anedota........................................................................26
1.5 - O Enredo e a forma de narrar...............................................................27
1.6 - O suspense e o plot...............................................................................31
2 - BASES TEÓRICAS DAS ANÁLISES...................................................................33
2.1 - A Linguística de Texto...........................................................................33
2.2 - Linguística do Discurso........................................................................36
2.3 - As memórias...........................................................................................38
2.4 - Teoria da Relevância.............................................................................43
2.5 - Os papéis sociais e o discurso............................................................44
2.6 - Teoria da Enunciação............................................................................46
2.7 - Referenciação.........................................................................................47
2.8 - A questão do gênero.............................................................................48
3 - UM OUTRO OLHAR PARA AS HISTÓRIAS DE SUSPENSE - ANÁLISE E RE-
SULTADOS OBTIDOS DO TEXTO LITERÁRIO DE MACHADO DE ASSIS, COM O
CONTO “A CARTEIRA”.............................................................................................54
3.1 - Segmentação dos episódios narrativos, seguindo a linearidade do
texto.................................................................................................................54
3.2 - A ordenação temporal dos episódios segmentados no texto produ-
to......................................................................................................................60
3.2.1 - Primeiro percurso narrativo: A vida de Honório e D. Amélia.....60
3.2.2 - Segundo percurso narrativo: O caso amoroso de Gustavo e D.
Amélia....................................................................................................61
3.2.3 - O encaixe do segundo percurso narrativo no primeiro.............61
3.3 - O exame da referenciação do texto narrativo relativa aos persona-
gens, a partir das modalidades ser x parecer: manutenção e modificação
de papéis sociais............................................................................................62
3.3.1 - Segundo percurso narrativo (modalidades): O caso amoroso de
Gustavo e D. Amélia..............................................................................63
3.3.2 - Primeiro percurso narrativo (modalidades): A vida de Honório e
D. Amélia...............................................................................................63
3.3.3 - O encaixe do segundo percurso narrativo no primeiro (modali-
dades)....................................................................................................66
3.3.4 - Papéis Representados...............................................................68
3.4 - A análise do suspense, situado como clímax....................................68
3.4.1 - No que se refere à enunciação textual......................................69
3.4.2 - No que se refere à referenciação..............................................71
3.4.3 - No que se refere ao clímax........................................................72
3.5 - Resultados obtidos ...............................................................................73
3.5.1 - Na segmentação do texto integral por episódios......................74
3.5.2 - Na ordenação temporal dos episódios segmentados...............74
3.5.3 - Na análise da referenciação......................................................75
3.5.4 - Na construção textual do suspense em seu clímax .................75
3.6 - Discussão dos resultados....................................................................76
3.6.1 - Na segmentação do texto integral por episódios......................76
3.6.2 - Na ordenação temporal dos episódios segmentados...............76
3.6.3 - Na análise da referenciação......................................................77
3.6.4 - Na construção textual do suspense em seu clímax .................78
4 - UM OUTRO OLHAR PARA AS HISTÓRIAS DE SUSPENSE - ANÁLISE E RE-
SULTADOS OBTIDOS DO TEXTO LITERÁRIO DE LYGIA FAGUNDES TELLES,
COM O CONTO “VENHA VER O PÔR-DO-SOL”....................................................80
4.1 - Segmentação dos episódios narrativos, seguindo a linearidade do
texto.................................................................................................................80
4.2 - A ordenação temporal dos episódios segmentados no texto produ-
to......................................................................................................................89
4.2.1 - Primeiro percurso narrativo: O relacionamento de Ricardo e Ra-
quel .......................................................................................................90
4.2.2 - Segundo percurso narrativo: O reencontro de Ricardo e Raquel
...............................................................................................................91
4.2.3 - O encaixe do segundo percurso narrativo no primeiro ............91
4.3 - O exame da referenciação do texto narrativo relativa aos persona-
gens, a partir das modalidades ser x parecer: manutenção e modificação
de papéis sociais............................................................................................93
4.3.1 - Segundo percurso narrativo (modalidades): O reencontro de Ri-
cardo e Raquel .....................................................................................93
4.3.2 - Primeiro percurso narrativo (modalidades): O relacionamento de
Ricardo e Raquel ..................................................................................94
4.3.3 - O encaixe do segundo percurso narrativo no primeiro (modali-
dades)....................................................................................................98
4.3.4 - Papéis Representados ............................................................100
4.4 - A análise do suspense, situado como clímax..................................101
4.4.1 - No que se refere à enunciação textual....................................101
4.4.2 - No que se refere à referenciação............................................104
4.4.3 - No que se refere ao clímax......................................................105
4.5 - Resultados obtidos..............................................................................105
4.6 - Discussão dos resultados..................................................................106
CONSIDERAÇÕES FINAIS......................................................................................109
REFERÊNCIAS.........................................................................................................113
ANEXOS...................................................................................................................117
Anexo A – Conto “A Carteira” de Machado de Assis..............................118
Anexo B – Conto “Venha ver o pôr-do-sol” de Lygia Fagundes Telles.122
12
INTRODUÇÃO
Esta dissertação está vinculada à linha de pesquisa Texto e discurso nas mo-
dalidades oral e escrita do Programa de Estudos Pós Graduados em Língua Portu-
guesa da PUC-SP. Tem-se por tema o estudo textual das narrativas de suspense li -
terárias.
É objetivo geral contribuir com as estratégias enunciativas que caracterizam
gêneros textuais.
São objetivos específicos:
I. Analisar o texto narrativo de suspense a partir da aplicação da estratégia
da modalidade para caracterização dos personagens da história;
II. Analisar a orientação enunciativa dada pelo escritor;
III. Examinar em que medida a narrativa do suspense é um gênero textual.
Entende-se que o texto narrativo é definido, conforme Ducrot e Todorov
(1976), como “um texto referencial com temporalidade representada” (p.353). Dessa
forma, um texto narrativo é uma sequência de tempos: t1, t2, t3, t4, …, tn. O termo
função referencial tem por objeto a realidade extralinguística, ou seja, o locutor tem
o poder de designar os objetos que a constitui. Essa realidade não é necessaria -
mente a realidade do mundo, pois as línguas naturais têm o poder de construir mun-
dos possíveis a que se referem.
Segundo Adam (2008), os tipos textuais são: Narrativo, descritivo, explicativo
e argumentativo. Esses tipos são definidos por sequências textuais. A sequência
narrativa é definida como “a exposição de fatos reais ou imaginários, mas essa de-
signação geral de fatos abrange duas realidades distintas: Eventos e ações.”
(p.224).
Para o autor, uma sequência textual é uma estrutura de texto mais original
que é selecionada para ser integrada no plano composicional do texto. Dependendo
desse plano composicional, o texto organizado por uma sequência narrativa pode
transformar-se em narrativa de história, de relato, de descoberta científica, entre ou-
tras.
13
Greimas e Courtés (1989) tratam a narrativa como um termo
utilizado para designar o discurso narrativo de caráter figurativo (que com-porta personagens que realizam ações). Como se trata do esquema narrati-vo já colocado em discurso e, por isso, inscrito em coordenadas espaço-temporais, alguns semioticistas definem a narrativa (...) como uma sucessão temporal de funções (no sentido de ações). (GREIMAS; COURTÉS, 1989, p. 294)
Os autores tratam, também, do enunciado narrativo. Propondo:
• Situação Inicial (SI) + Fazer Transformador (FT) + Situação Final (SF).
Uma SF nunca é idêntica a SI, devido ao FT.
Reis e Lopes (1988) apresentam a narrativa pelo termo episódio. Segundo os
autores, embora esse termo seja polissêmico, modernamente, o termo episódio sur-
ge para designar, em primeira instância, uma unidade formalmente autônoma e des-
tacada em relação ao todo narrativo, cuja narração é realizada com uma certa perio-
dicidade, de forma a se alargar por um período de tempo normalmente amplo. Nes-
se sentido, um episódio compreende uma sequência narrativa de categorias: apre-
sentação; conflito e resolução.
Como se pode verificar, as narrativas de história são formadas por um ou vá-
rios episódios, dependendo tratar-se de uma narrativa curta ou longa. Esta disserta-
ção trata tanto de narrativas de história com suspense curtas, com número menor
de episódios, quanto de narrativas longas, com um número maior de episódios.
Uma narrativa complexa compreende uma sequência de episódios encadea-
dos e encaixados. Esta dissertação trata de narrativas de suspense em histórias e
está fundamentada na teoria da narrativa, na Linguística de Texto e na teoria enun-
ciativa, recorrendo, quando necessário, à Análise Crítica do Discurso com vertente
sociocognitiva.
Tem-se por ponto de partida, que o texto é a expressão linguística enunciada
e que o discurso é uma prática social que se define por um contexto discursivo. Se-
gundo van Dijk (1997), um contexto discursivo é definido pelos seus participantes,
suas funções e suas ações.
14
A investigação realizada justifica-se, pois há poucos estudos relativos ao tex-
to narrativo de história com suspense, embora esse texto seja de uso frequente em
nossa sociedade.
METODOLOGIA
Esta dissertação tem um procedimento metodológico-teórico-analítico.
Foram selecionados para análise 30 textos de narrativas de histórias com
suspense curtas e longas, que podem ser classificados segundo Vignoli (1990), em
meio suspense e suspense total. Todos eles foram analisados previamente, dentre
os quais, foram selecionados dois textos com histórias com enigma para serem
apresentados nesta dissertação, são eles: Venha ver o pôr-do-sol, de Lygia Fagun-
des Telles; e A Carteira, de Machado de Assis. O primeiro relativo a um crime, em-
bora não seja policial, pois não há presença de um detetive; o segundo, referente a
um triângulo amoroso. Nesta dissertação são apresentadas as análises e os resulta-
dos obtidos dos textos selecionados.
As análises realizadas seguiram as seguintes categorias:
I. A segmentação do texto integral por episódios;
II. A ordenação temporal dos episódios segmentados;
III. O exame da referenciação do texto narrativo relativa aos personagens;
IV. A análise do suspense, situado como clímax.
Esta dissertação está composta por quatro capítulos, a saber:
• capítulo 1: Diferentes olhares para a narrativa de suspense;
• capítulo 2: Bases teóricas das análises;
• capítulo 3: Um outro olhar para as histórias de suspense: análise e resul -
tados obtidos do texto literário de Machado de Assis, com o conto A car-
teira – suspense e triângulo amoroso;
• capítulo 4: Um outro olhar para as histórias de suspense: a análise textual
do discurso literário de Lygia Fagundes Telles, com o conto Venha ver o
pôr-do-sol – suspense e crime passional.
15
1 - DIFERENTES OLHARES PARA A NARRATIVA DE SUSPENSE
Este capítulo apresenta uma revisão de diferentes olhares a respeito das nar-
rativas orais populares, a origem das histórias de suspense e o estudo textual do
suspense realizado por Vignoli (1990), Mesquita (1986) e Foster (1937).
1.1 - Histórias Orais
Segundo Leite (1985), as histórias são narradas desde sempre, pois, uma
narração de fatos, presenciados ou vividos por quem tinha autoridade para narrar,
alguém que pertencia a outros tempos ou outras terras, sempre existiu na história da
sociedade humana. Assim, desde sempre, entre os fatos narrados e o público leitor,
interpõe-se um narrador.
Segundo a autora, no percurso da História, porém, as histórias narradas pelo
homem foram tornando-se mais complexas e o narrador foi, progressivamente, ocul-
tando-se ou atrás de outros narradores, ou atrás dos fatos narrados, que passaram
a ser frequentes com o desenvolvimento do romance.
Quem narra, narra o que viveu, o que testemunhou, o que viu, mas também
narra o que imaginou, o que desejou e o que sonhou. Por isso, narração e ficção,
praticamente, nasceram juntas.
Desde Platão, ocorre para os estudiosos da narrativa, a distinção entre imitar
e narrar e que hoje é apresentada pelos termos mostrar e contar. O narrador ele
não imita o mundo, mas cria, na medida em que representa o mundo a partir de seu
ponto de vista.
Tudo indica que a narração tem suas origens na oralidade, pois só mais tarde
as sociedades conceberam a escrita.
Os contos orais, quando são representativos das crenças de um grupo social
passam a ser reproduzidos de geração em geração tornando-se parte da história
cultural desse grupo. Os contos populares são usualmente anônimos.
16
Rodrigues (2001) recolheu lendas e fábulas indígenas ao longo dos Rios Ta-
pajós, Trombetas e outros.
A seguir citam-se seguimentos da lenda, O Piráyauara1·, a fim de exemplificar
as relações entre a história e a cultura.
O sol dava em cheio na serra de Dedarô e dourava as águas do lago Da-dauacá que tremiam agitadas pelas brisas da tarde. Flutuando sobre o dor-so, caíam esparsos os cabelos negros e embalsamados da tapuia, presos na fronte por uma travessa enfeitada de jasmim e de baunilha, o que lhe for-mava uma grinalda de virgem. [...]Estava na época em que a mulher se lembra da infância e sonha com as vo-lúpias que a puberdade oferece. [...]Repentinamente a tapuia estremeceu, viu passar perto, muito mansamente, uma montaria impelida pelo remo de um jovem tapuio que lhe era desconhe-cido.Ia sozinho, e tão ardente era seu olhar que ela corou.Ele era ágil e vigoroso, tinha os ombros nus e o peito descoberto. As calças arregaçadas mostravam as pernas nuas, bem feitas e musculosas. [...]Sem saber por que, ela suspirou e descuidosa manejou o remo. Cismando vagou pelo rio.Era noite quando chegou ao igarupaua2 No tijupar a velha filha dos Uabois esperava a neta.– Se temirariros re malha será Piráyauara?3
De repente, os cães acuam e lançam-se furiosos para a margem do rio, onde as águas ferviam.Neste momento uma figura [...] desceu a barranca. Era a tapuia que não ti-nha dormido e cujo coração palpitava ao menor rumor das águas sobre a praia.[...] os botos desapareceram e uma montaria atravessou, conduzindo uma sombra humana. [...] Era o Piráyaura.[...] Depois dessa noite passaram-se muitos dias, continuando no lago Mara-pé os amores platônicos da cunhantã4 e do Piráyauara, o que a tornava cada vez mais triste e cismada.Os conselhos da velha filha da floresta não produziam mais efeito em sua neta. [...]Corriam placidamente prateadas pela lua as águas do Iamundá, quando ela viu um vulto branco levado pela corrente rodeada de tucuchis5, dos quais uns faziam a vanguarda, cabriolando em linha. Momentos depois, ouviam-se na praia o pranto e as frases repassadas de dor; era a índia que, inclinada sobre o cadáver, dizia:– Se temiariron hu tucá aua Piráyauara recê. Araán! Pau cha saissu yepé!...6
A tapuia havia-se deixado seduzir e no fundo do lago tinha ido gozar as carí-cias do Piráyauara. (RODRIGUES, 2001, p. 228-231)
Esta lenda, como as demais histórias, é um meio de disseminar mensagens
ou advertências morais, e seu contexto encerra tradições culturais do povo que a
cria.
1 De pirá, peixe, y, água e ara, senhor das águas, ou vulgarmente boto. (Nota do autor)2 Porto. (Nota do autor))3 Encontraste, minha neta, com o boto? (Nota do autor)4 Moça, donzela de 15 a 20 anos. (Nota do autor)5 Botos (Nota do autor)6 Minha neta suicidou-se por amor ao boto! Coitada! Eu a amava tanto!...(Nota do autor)
17
A história do boto que se metamorfoseia em um homem galante e sedutor é
muito difundida nas regiões Norte e Nordeste, variando em alguns pormenores con-
forme a cultura local.
No texto citado, a índia Cunhantã apaixona-se por Piráyauara, o boto cor-de-
rosa, e engravida deste. Nas histórias da tradição oral indígena, cabocla e caipira
tendem, quase sempre, a ter um desfecho trágico, ou ainda, eivado de um sabor
pessimista.
Na lenda do Piráyauara, o ouvinte ou leitor acompanha o destino infeliz da jo-
vem índia, pressentido-lhe a desgraça irremediável, fruto de uma atração irresistível
– pelo seu elemento mágico – e do fato de a moça estar na pós-puberdade, insatis-
feita pela não realização de seus desejos eróticos.
A cultura indígena – usualmente misógina – atribui um papel sempre inferior
às mulheres, embora em outras lendas os guerreiros também se deixem seduzir por
entidades lendárias.
A lenda do Piráyauara representa a cultura tradicional indígena. Caso fosse
transposta para algum centro urbano, haveria certamente elementos similares em
termos morais e de costumes, mas com a característica da moral cristã, predomi-
nante no Brasil.
De passagem em passagem, porém, não são reproduzidos textualmente,
mas sim, com acréscimos e subtrações de acordo com a experiência de vida do
contador de histórias do momento. Nesse sentido, as histórias contadas têm a con-
temporaneidade do seu narrador.
Alcoforado e Alban (2001), resumem essa transmissão oral das histórias:
O contador de histórias da tradição oral passa para a sua plateia, no mo-mento da performance, um texto virtual que ele detém na memória. Essa memória armazenada pelo contador condensa um complexo de vozes e re-gistros de outras épocas e lugares a que ele incorpora no momento da transmissão e criação da história, ou dos elementos de sua própria experi-ência de vida. [...] É importante enfatizar que a história transmitida não resul-ta de uma simples transmissão do texto ouvido da tradição, mas, ele passa por um processo de reelaboração, em que as marcas da subjetividade do contador estão ali registradas, marcas autorais, que dinamizam esse proces-so fazendo com que a narrativa que está sendo transmitida seja uma versão distinta de qualquer outra versão da mesma história, mesmo quando trans-mitida por pessoas do mesmo universo sócio-cultural.[...]
18
O contador recria o texto adaptando-o a sua realidade detalhando forma ao fluxo narrativo enraizado no imaginário e graças a sua mediação está pas-sando para outras gerações não apenas a sua experiência de vida, mas também uma experiência coletiva ancestral. (ALCOFORADO; ALBAN, 2001, p. 83-84)
As autoras lembram, também, que a função social subjacente à atividade do
contador de histórias é notória. A transmissão das histórias, que são parte da tradi -
ção cultural desse ou daquele povo, é forma de estreitar laços afetivos e sociais.
A lição de moral, ou ética, ou respeito ao próximo, quase sempre presente
nas histórias, reforça o aprendizado da convivência comunitária.
Essa transmissão de valores, saberes, conhecimentos e tradições, está pre-
sente em todas as narrativas populares, em qualquer parte do mundo, como resume
Matos (2005):
[A tradição oral] é, ao mesmo tempo, conhecimento, ciência da natureza, ini-ciação de ofício, história, diversão e recreação. Tudo isso a seu tempo, po-dendo remeter o homem à unidade primordial. Fundada sobre a iniciação e a experiência, ela engaja o homem em sua totalidade. (MATOS, 2005, p. 13)
Segundo Matos (2005), as narrativas orais, algumas vezes, eram contadas
em dois ou três dias. Dessa forma, a história era dividida em partes, cada qual con-
tada num dia e o clímax sendo adiado. Logo, era necessário que o contador usasse
de diferentes recursos a fim de que a atenção da plateia não esmorecesse. Para a
autora uma narrativa sempre tem um clímax, seja através da forma teatral como é
contada, seja pelo gestual do contador, seja pela sua habilidade em manipular emo-
ções através de flashbacks e rodeios.
Infelizmente, segundo estudos realizados por folcloristas e estudiosos na nar-
rativa, incluindo Matos (2005), a atividade do contador de histórias tende a desapa-
recer nas grandes cidades, nas quais encontra-se o teatro, o cinema, e outros entre-
tenimentos.
A sofisticação da sociedade urbana afastou a atividade de contar histórias de
suas tradições, ainda que, segundo Matos (2005), a atividade de contador de históri-
as, no Brasil, exista em regiões do semiárido nordestino e em algumas regiões de
Minas Gerais.
19
Segundo Lima (2005), o desaparecimento paulatino dessa arte milenar é mui-
to bem resumido pelo contador de histórias cearense José Taveira Chato, em depoi -
mento ao pesquisador:
Eu achava bom contar histórias, se fosse possível eu contava até sozim.Toda vida, eu tive gosto de contar histórias, viu, agora eu nunca contei num ambiente adiantado. Era lá pros matos, NE, eu tinha gosto [...] Um dia como hoje, que faz toda a vida que não treino, a gente fica esquecido dumas cer-tas partes [...] Não posso mostrar que eu fui nas histórias, no em meio de quem não gosta. Faz cinco anos que não conto história, a gente perde a ora-ção, a origem da história [...] Estou aqui em São Paulo, ninguém quer ouvir. Se chego num canto, vou conversar, com pouco mais chega uma pessoa, liga acolá uma televisão, liga um troço qualquer, atrapalha, não tem quem queira ouvir […] (LIMA, 2005, p. 29)
As histórias contadas em Trancoso, no Nordeste, e os “causos” de Minas Ge-
rais, além das histórias contadas e recontadas por caiçaras e outras comunidades
minoritárias, talvez persistam por mais algum tempo.
A modernidade, no entanto, tende a calar essas vozes com seu apelo ao he-
donismo, simbolizado por prazeres menos intelectuais e mais imediatos.
Essa ideia um tanto fatalista é abraçada, também, por Benjamin (1994), que
afirma que no mundo atual não haverá lugar para o narrador de histórias e seu de-
saparecimento será inevitável.
É interessante observar que, em São Paulo, têm-se realizado um esforço
para resgatar o contador de histórias, que esteve presente na Bienal do Livro, em
2010, e que por vezes, está presente no Teatro do SESC e em Hospitais.
Com o desenvolvimento da tecnologia, as narrativas de histórias adquirem a
expressão escrita, mantendo-se relacionadas ao que é possível acontecer no mun-
do.
Motta (2005) acrescenta à narrativa, o condão de traduzir o mundo para
quem a lê, sem que seja necessário que o mundo desvelado seja exatamente o que
o cerca: o descobrimento do mundo é o que interessa.
A narrativa traduz o conhecimento objetivo e subjetivo do mundo (o conheci-mento sobre a natureza física, as relações humanas, as identidades, as crenças, valores e mitos, etc.) em relatos. A partir dos enunciados narrativos somos capazes de colocar as coisas em relação umas com as outras em
20
uma ordem e perspectiva, em um desenrolar lógico e cronológico.É assim que compreendemos a maioria das coisas do mundo. (MOTTA, 2005, p. 2)
1.2 - A Origem e o desenvolvimento das narrativas de história com suspense escritas
Segundo Reimão (1983), o suspense, como gênero, teve origem em reporta-
gens policiais publicadas em jornais ingleses, no século XIX, abordando tragédias
pessoais e crimes não esclarecidos.
A população das grandes cidades era muito atraída por essas notícias, de for-
ma que a tiragem dos jornais em questão aumentava na mesma proporção do dese-
jo mórbido das pessoas em espiar a desgraça do outro.
Ainda segundo a autora, os elementos que compunham as histórias contadas
nos jornais, como assassinos frios, vítimas inocentes, crimes não esclarecidos, luga-
res sombrios, ausência de qualquer sentimento humano, tinham apelo irresistível so-
bre todas as classes sociais da época.
Nos Estados Unidos começaram a ser publicadas histórias com suspense
nos jornais folhetins. Essas histórias eram uma transformação das notícias de cri-
mes, publicadas por jornais ingleses. Com essa modificação são acrescentados ou-
tros ingredientes, tais como policiais, ex-condenados, e métodos totalmente empíri-
cos de investigação.
Reimão (1983) afirma que, em 1841, com a publicação de Assassinatos na
Rua Morgue, na revista Graham’s Magazine, Edgar Allan Poe inaugura a era da nar-
rativa policial, estabelecendo, assim, a história literária com suspense.
Conforme a autora, Poe foi o primeiro a criar um detetive representado como
dono de uma mente brilhante, intuitivo, racional e meticuloso. O investigador ama-
dor, desvinculado de qualquer instituição oficial, passaria a ser o paradigma para os
personagens similares que se seguiriam como, por exemplo, o personagem Poirot,
criado por Agatha Christie.
21
Conforme as histórias com suspense foram transformando-se em histórias
muito complexas para a resolução dos crimes contados, estes, para serem resolvi -
dos pelos detetives de Poe, assim como de outros autores consagrados, foram evo-
luindo em sua característica percepcional, o que exigiu a inserção de descrições de-
talhadas e de explicações mais aprofundadas, no romance policial.
Progressivamente, os autores de histórias com suspense, perceberam que
mistério e suspense são ingredientes essenciais na trama, tanto do romance policial
quanto do romance não policial. Sendo assim, com o aparecimento de histórias no
rádio e no cinema, o suspense passou a integrar a construção da narrativa, a fim de
atrair e manter a atenção do auditório.
Todorov (2008) discute a teoria dos gêneros literários existentes em sua con-
temporaneidade. Segundo o autor, essa teoria é falha e não abrange vários outros
gêneros que existem no romance como, por exemplo, o romance policial. E ainda
segundo o autor, o romance policial tem suas normas: quem quer embelezá-lo este-
ticamente faz literatura e não romance policial, pois este é um gênero popular e não
literário.
A partir dessa afirmação, o autor propõe que sem estética não existe literatu-
ra. Logo, faz-se necessário distinguir duas manifestações essenciais escritas: A
grande arte e a Arte popular.
Estabelecer diferenças entre a literatura de suspense e a cultura de massa,
conforme Machado (2001), parece ser um ato de preconceito, como se as massas
fossem refratárias a qualquer sofisticação literária que demandasse reflexão e razo-
ável bagagem de conhecimento.
A verdade dessa colocação não é absoluta, ou seja, há razões pelas quais a
boa literatura de suspense é, muitas vezes, suavizada quando algumas obras do
gênero são transpostas para linguagem popular, como novelas ou minisséries de te-
levisão.
Por outro lado, Machado reputa essa transposição como democrática; a
transformação do suporte original – o livro – em meio eletrônico, cujo acesso é livre,
disseminaria a literatura – ainda que edulcorada – para milhões.
22
Segundo o autor, essa transformação pode ser incluída – pelas suas caracte-
rísticas, e pelo fato de não deixar de ser literatura – nas categorias de enunciação.
O autor explica:
a televisão abrange um conjunto bastante amplo de eventos audiovisuais que têm em comum apenas o fato de a imagem e o som serem constituídos eletronicamente e transmitidos de um local (emissor) a outro (receptor) tam-bém por via eletrônica. Cada um desses eventos singulares, cada programa, cada capítulo de programa, cada bloco de um capítulo de programa, cada entrada de reportagem ao vivo, cada vinheta, cada spot publicitário, constitu-em aquilo que os semioticistas chamam de um enunciado. (MACHADO, p. 68)
Deve-se, porém, levar em conta que a linguagem literária e a linguagem tele-
visiva são completamente diferentes. A adaptação de uma obra literária para a tele-
visão causa, de forma mais ou menos desequilibrada, muitas perdas e muitos ga-
nhos.
Ao transportar o conto de suspense com toda essa complexidade para uma
linguagem visual, tem-se, obrigatoriamente, mudanças estruturais na história.
A linguagem visual demanda soluções explícitas para situações em que o fato
está implícito. O que é sutil se transforma em fato repleto de pormenores e explica-
ções por vezes redundantes.
A indústria cultural, por outro lado, não se limita a adaptações televisivas de
obras literárias. Nos tempos atuais, contudo, a disseminação dos meios digitais de
comunicação, praticamente, transformou a literatura de massa (ou qualquer forma
de arte) em arte popular.
Coelho (1996) lembra que, a despeito dos modernos meios de comunicação
digital, a distinção entre cultura erudita e cultura de massa é tênue, pois depende do
espaço e do momento em que o objeto cultural circula.
[...] a respeito, deve-se lembrar que freqüentemente, na história, a passa-gem de um produto cultural de uma categoria inferior para outra superior é apenas uma questão de tempo, como no caso do jazz, que saiu dos bordéis e favelas negras para as platéias brancas dos teatros municipais da vida. (COELHO, 1996. p. 17)
O antes pejorativo significado de literatura ou cultura de massa deixou, há
poucas décadas, de ter essa característica.
23
Com o advento da chamada Era da Informação e da globalização sociocultu-
ral-econômica, o sentido de cultura inferior ou de iletrados e dependentes de formas
explicitadas de comunicação, passou a significar, segundo Rezende (2004), ações
culturais de um contingente que, decididamente, interfere e influencia a própria pro-
dução cultural.
A história bem contada, com sua dose satisfatória de mistério e suspense, é
atrativo suficiente para que verdadeiras legiões de leitores a prefiram a outras adap-
tações.
Não há, contudo, nada que impeça que esses leitores fiéis deixem de apreci-
ar uma adaptação de sua obra preferida para quadrinhos, ou para alguma página da
internet, ou para uma minissérie no horário nobre televisivo.
O romance policial clássico, que foi enaltecido entre as duas grandes guerras,
pode ser chamado de romance de enigma, é construído com dois assassinatos; o
primeiro é cometido pelo assassino e o segundo é a vítima do matador puro e impu-
ne. Assim, a narrativa pressupõe duas séries temporais a saber: os dias do inquérito
que começam com o crime e os dias do drama que levam a ele.
Para Todorov (2008) a base do romance de enigma apresenta dualidade e é
ela que deve ser seguida para poder descrevê-lo: a história do crime e a história do
inquérito. Em sua forma mais pura essas duas histórias não têm nenhum ponto em
comum. A história do crime é contada com personagens que praticam ação; já na
história do inquérito, os personagens não agem, descobrem. Nada lhes pode acon-
tecer, pois o detetive é imune: Para estes não há ameaças ou morte. Assim, na his-
tória do inquérito examina-se indício após indício, pista após pista.
Todorov (2008), conclui que o romance de enigma tende a uma arquitetura
puramente geométrica. Por exemplo, na obra Assassinato no expresso do oriente,
de Agatha Christie, há doze personagens suspeitos, e o livro consiste em doze inter-
rogatórios e doze depoimentos para que haja a descoberta do culpado, após a des -
coberta do crime.
Todo romance policial é construído com o personagem detetive que faz a in-
vestigação. O suspense é mantido até a descoberta do culpado e, para tanto, existe
um ir e vir de pistas que, progressivamente, vão sendo anuladas até o desfecho. O
24
que se verifica na civilização ocidental é o prazer que o leitor tem em ler uma histó -
ria com meandros, labirintos, idas e vindas que constroem o suspense.
Logo, pode-se dizer que o suspense não é uma característica da história lite-
rária, ela ocorre em outras histórias e quando ocorre, as histórias são sempre apre-
ciadas de forma a prender a atenção do leitor.
Nesse ponto, é necessário recordar que há nuances contextuais no suspense
literário e mesmo em outras linguagens como no rádio e no cinema. Na sua diferen-
ça de canais de comunicação, as histórias de suspense mantém uma relação com a
vida social, contemporânea ao seu autor.
1.3 - A Função das modalidades ser x parecer na enunciação de narrativas de suspense.
Vignoli (1990) trata da organização textual de histórias curtas de suspense.
Os resultados obtidos de suas análises propiciaram que a autora caracterizasse as
histórias de suspense Greimazeanas ser x parecer.
Segundo Greimaz (1976) as modalidades veredictórias são ser x parecer.
Para o autor, um enunciado modal de estado, como o é o veredictório, que tenha
por sujeito S1, é suscetível de ser modificado por qualquer outro enunciado de esta-
do produzido e apresentado pelo sujeito S2.
O predicado modal pode ser tratado como uma categoria e decomposto em:
• / ser / / parecer /
• / não parecer / / não ser /
A categoria articula-se em dois esquemas:
• o esquema / parecer / / não parecer / chama-se manifestação;
• o esquema / ser / / não ser / chama-se imanência.
E comporta dois eixos:
• o eixo dos contrários chama-se verdade;
• o eixo dos subcontrários chama-se falsidade.
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Nela encontramos duas dêixis:
• a dêixis positiva / ser + não parecer / chama-se segredo;
• a dêixis negativa / não ser + parecer / chama-se mentira.
Vinholi (1990) examinou narrativas curtas e seus resultados obtidos indicam a
possibilidade de três tipos de história:
• Histórias sem suspense;
• Histórias com meio suspense;
• Histórias com suspense.
As histórias sem suspense apresentam seus personagens e durante todo o
percurso da narrativa, eles são modalizados por:
• Ser + parecer = verdade;
• Não ser + não parecer = verdade.
As histórias de meio suspense são construídas com dois percursos narrati-
vos, a saber:
I. A modalização é relativa à relação entre os personagens de forma a ter
um personagem caracterizado pelo enigma:
➢ Ser + não parecer;
➢ Não ser + parecer.
II. Na interação narrador e auditório não ocorre enigma, ou seja:
➢ Ser + parecer = verdade;
➢ Não ser + não parecer = verdade.
Nesse caso, o auditório conhece a verdade; mas para os personagens é ne-
cessário a revelação do enigma.
História de suspense
Para os dois percursos narrativos, há enigma:
I. Na modalização entre os personagens:
➢ Não ser + parecer = mentira;
26
➢ Ser + não parecer = segredo.
II. Na modalização entre narrador e auditório:
➢ Não ser + parecer = mentira;
➢ Ser + não parecer = segredo.
1.4 - O suspense e a anedota
Guimarães Rosa (1979), em sua obra Tutaméia – terceiras histórias, apresen-
ta um paralelo entre o suspense e a anedota. O autor considera que ambos, para
serem eficientes, são relativos a uma quebra de expectativa.
Uma expectativa é construída na medida em que há conhecimento a respeito
do que está acontecendo ou do fato narrado. Tal conhecimento propicia que o audi -
tório consiga ter uma progressão do desenrolar da narrativa.
Romper com uma expectativa exige a entrada de uma informação nova des-
conhecida que obriga o auditório a reformular a sua hipótese na construção dos
sentidos. Assim diz Guimarães Rosa na abertura de seu livro.
A estória não quer ser história. A estoria, em rigor, deve ser contra a Histó-ria. A estoria às vezes quer-se um pouco parecida à anedota.A anedota pela etimologia, e para sua finalidade, requer fechado ineditismo.Uma anedota é como um fósforo: riscado, deflagrado, foi-se a serventia...Nem será sem razão que a palavra “graça” guarde o sentido de gracejo, de dom sobrenatural, e de atrativo. Não é xiste rara coisa ordinária: tanto seja porque escancha os planos da lógica, propondo-nos realidade superior e di-mensões para mágicos novos sistemas de pensamento. (GUIMARÃES ROSA, 1979)
Nesse sentido, a História, a história e a estória são diferenciadas para Guima-
rães Rosa.
A História é construída como um discurso diferente do discurso literário, pois
objetiva que seus personagens sejam sempre heróis, embora vilões. Compete ao
Estado construir o percurso narrativo da História, a partir da ideologia do grupo de
poder.
A história é relativa ao percurso narrativo do vivido e do experienciado pelas
pessoas, em seus grupos sociais.
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A estória é uma construção que objetiva a construção de mundos possíveis,
pois ela é inédita e nunca foi vivida nem experienciada; por essa razão, rompe com
a expectativa do saber pré construído social.
1.5 - O Enredo e a forma de narrar.
Mesquita (1986) trata do enredo em textos literários. Para a autora, o termo
enredo é complexo e tem vários sentidos, embora nunca perca o seu sentido essen-
cial de arranjo de uma história. Por essa razão, todo enredo contém uma história
que é o corpo de uma narrativa.
O suspense é uma forma de construir o enredo, dependendo de se querer cri-
ar o interesse do leitor para ler a história. Por essa razão, há uma interrupção no ar-
ranjo de uma história no momento calculado para o suspense.
Na civilização ocidental, de forma geral, as histórias com suspense são consi-
deradas histórias bem contadas.
Para a autora, construir o enredo é começar um jogo. O narrador é um joga-
dor que forma, com o leitor e o seu próprio texto, o que pode-se chamar de comuni -
dade lúdica, ou seja, comunidade que quer-se distrair.
Dessa forma, ler/ver/ouvir/contar uma história/desenrolar, um enredo é um
exercício em que se busca o prazer das pessoas e, para tanto, é necessário que
haja tensão, competição, máscara e simulação.
Enredo, através dos tempos, é associado ao mito, do grego mythos = intriga
ou desenvolvimento factual de uma história. Assim, ouvir/ler histórias é uma ativida-
de antropológico-social e naturalmente indissociável do ser humano que busca o
prazer. Entre o mito, que remete os acontecimentos ao tempo primordial das ori-
gens; e o romance, que introduziu na narrativa o tempo da história, que é linear.
Pouco a pouco as marcas temporais passam a ordenar os fatos narrados e a domi-
nar o desconhecido.
Na narrativa, construir o suspense implica reorganizar as frases, organizar os
sentidos e articular uma ordem, de forma a criar um mundo logicamente estruturado.
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Se, no início, a sucessão de eventos míticos era suficiente para se construir
uma sequência narrativa, nas transformações posteriores, pela perda do engaja-
mento com um sentido e com uma ordem geral, vai-se introduzindo a necessidade
do estabelecimento de um plano e nessa construção introduz-se o vínculo da causa-
lidade entre um antes e outro depois, no tempo. Logo, um fato acontece por que ou-
tro fato aconteceu antes e o desencadeou.
Segundo Mesquita (1986), no texto literário, várias técnicas são introduzidas
tais como processo de encadeamento de episódios, justaposição, encaixe de episó-
dios, anulamento de uns, permanência de outros, até que a narrativa torne-se um
processo de construção da linguagem.
Nesse sentido, há vários gêneros literários que formalizam a narrativa e a re-
lação enredo-narrativa torna-se indissolúvel.
Para a autora, o enredo pode ser focalizado enquanto categoria estruturante
da narrativa de ficção em prosa, categoria que compreende tudo o que compõe o
plano de ação, as transformações de situações que se sucedem na ordem/desor-
dem em que o discurso as apresenta.
As formas de narrar, desde o mito até o romance, são igualmente acompa-
nhadas de formas típicas de construção do enredo.
Logo, pode-se dizer que o enredo e o suspense são estruturados pelo princí -
pio básico da causalidade e pela lógica temporal. Consequentemente, o sentido de
um texto é construído na relação com o enredo: mundo apresentado/representa-
do/produzido na obra.
A organização de um enredo com suspense decorre de intenso jogo de ocul-
tação/revelação, que varia em cada época, gerando diferentes significações.
Mesquita (1986) afirma ainda que, embora o texto literário seja a ficção, por
mais inventada que seja a história, terá sempre uma vinculação com o real empírico,
vivido e o real da história. Logo, o enredo sempre estará dentro da realidade, partirá
dela, ainda quando pretende negá-la, distanciando-se dela fingindo que ela não
existe.
Nesse sentido, constroem-se as relações entre a verdade e a mentira e entre
o real vivido e o real possível. A arte em geral, incluindo a literatura, criam realida-
des possíveis.
29
Sendo a realidade vivida um sistema de múltiplas referências, a literatura in-
sere-se nela, tentando uma unificação dessa multiplicidade. No grande enredo da
humanidade, em qualquer tempo, a narrativa oral ou escrita está intimamente ligada
à vida social dos grupos sociais, em todas as suas práticas significantes.
Mesquita (1986) afirma que, para os estudos da narrativa, é necessário distin-
guir o discurso que narra, da forma pela qual se narra.
O discurso que narra compreende a história, a fábula, a matéria narrada, que
tem existência autônoma e é até anterior à estruturação da obra literária. O discurso
que narra respeita a cronologia temporal; logo obedecem a ordem começo, meio e
fim. Esse discurso repeita, ainda, o princípio da causalidade (os fatos são relaciona-
dos por causa e consequência) e, também, a verossimilhança (procura-se a aparên-
cia de verdade, respeitando a logicidade dos fatos).
Para a autora, todavia, a construção do enredo vem passando por um proces-
so de transformação que ocorre, fundamentalmente, no domínio da literatura culta.
Já, nas manifestações da cultura popular, as narrativas mantém a forma de narrar
praticamente inalterada.
Por isso, a maneira pela qual se narra é uma questão que relaciona arte/soci-
edade e arte/público, diferenciando arte erudita ou culta de arte popular.
Nas narrativas dirigidas a um grande público, a arte popular feita para o povo,
segue a linearidade temporal e a construção do enredo procura respeitar a tradição
narrativa.
Nas narrativas dirigidas para um público especializado, literatura culta, a es-
truturação do enredo altera a linearidade para velar/revelar.
Dessa forma, o suspense está relacionado à interdependência entre a suces-
são temporal e a transformação de situações e de fatos narrados, além da maneira
como estes são dispostos para o leitor, pelo discurso que narra.
A autora afirma que, devido à essa transformação, o enredo não é a fábula,
mas a elaboração estética do que diz a fábula, mediante a instância narrante.
A fábula representa um conjunto de vivências dos personagens em suas co-
nexões internas, em sua sequência temporal e causal. O enredo, na obra literária, é
a disposição artisticamente construída daquelas vivências. A fábula pode não ser
30
criada pelo autor de uma narrativa literária. O enredo não: esse é uma construção
essencialmente do narrador.
Diferenciando o que se narra, como matéria narrada, a ação da narrativa, a
sucessão dos fatos, vivências e situações constroem a ação do enredo que é pôr
em movimento personagens que se relacionam entre si. Esse movimento é, tam-
bém, designado, sintaxe dos personagens e entre eles há os que sobressaem em
relação a outros, os protagonistas. Os que se relacionam por oposição aos protago-
nistas são os antagonistas. Desses movimentos, há ainda um conjunto de persona-
gens secundários que dão suporte ao desenrolar da ação.
Logo, a ação será, portanto, o percurso seguido pelos personagens através
das sucessivas situações.
Mesquita (1986) considera ainda, as funções de herói e de anti-herói com as
de protagonistas e as de antagonistas. O herói é o sujeito consciente que produz a
transformação e recupera o equilíbrio perdido. O anti-herói não recupera uma ordem
perdida, uma perda, um dano sofrido. Ele acaba derrotado pelo mundo, ou porque
suas forças não são suficientes para tanto ou porque embora reconhecendo a de-
gradação do mundo à sua volta, não deseja mudá-la ou porque não tem consciência
do que acontece em sua volta; ou porque conhece as regras do jogo dentro do mun-
do e, longe de querer modificá-las, decide que a saída é jogar o jogo, tal qual o vê
ser jogado.
Uma matéria narrada é disposta linearmente em unidades sintagmáticas mais
ou menos autônomas de sentidos, chamadas sequências. A reunião de várias se-
quências é uma macrossequência. Cada sequência pode, ainda, compreender mi-
crossequências.
Tais unidades se compõem de episódios, situações, incidentes que, trabalha-
dos pelo discurso narrador, constituem um enredo.
Para tratar do suspense, cabe ao especialista investigar permanentemente to-
dos os elementos que podem levar à revelação.
Mesquita (1986) afirma que, dentro dessa massa designada matéria narrada
é encontrado o que se pode chamar de universo representado. Trata-se da materia-
lidade do espaço físico (mundo vegetal, mineral, animal, pessoas e objetos em seu
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inter-relacionamento em diferentes situações em que são apresentados pelo discur-
so narrador).
Já o discurso que narra, compreende a maneira pela qual o narrador é apre-
sentado. A diferença entre a matéria narrada da história e o discurso que narra é
apenas didática para os estudos do enredo, pois, nenhum dos dois planos referidos
pode ser dissociado do outro. Em síntese, história, ação, discursos são interdepen-
dentes; enredo, trama ou intriga é a resultante dessa interdependência.
O enredo, necessariamente, sofrerá mudanças na sua estruturação, conse-
quências, efeitos diversos, a partir dos diversos procedimentos do discurso.
Para Mesquita (1986), nos extremos das possibilidades de composição de
enredo com o suspense, encontra-se de um lado o romance policial e de outro a
narrativa, segundo os moldes tradicionais. Em outros termos, os extremos da com-
posição, segundo Vignolli (1990), encontram-se nas histórias sem suspense x histó-
rias com suspense.
Em síntese, este capítulo objetivou apresentar diferentes olhares sobre o sus-
pense, de forma a tratá-lo por modalidades ser x parecer, pela sua relação na cons-
trução do enredo, na sua relação de causalidade com a progressão temporal dos
episódios, na sua relação monotópica e pluritópica. Todavia, esses diferentes olha-
res, por si só, não abarcam a complexidade da organização textual do suspense
que é o tema tratado nesta dissertação.
1.6 - O suspense e o plot
Reis e Lopes (1988) tratam o enredo como a intriga. Segundo os autores, a
dicotomia conceitual fábula x intriga foi retomada pela teoria literária contemporânea
sob designações diversas (história/discurso e história/narrativa), porém, sempre
mantendo distinções para a referida dicotomia.
A problemática da intriga pode ser diretamente relacionada ao conceito de
plot, termo usado pela teoria e crítica literárias anglo-americana. Segundo os auto-
res, Foster (1937) elaborou uma distinção, story e plot, que embora não seja total-
mente igual à distinção entre fábula e intriga, proposta pelos formalistas russos,
mantém com ela algumas afinidades.
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O conceito de story compreende a sequência de eventos ordenados no tem-
po que produzem no leitor/ouvinte o desejo de saber o que vai acontecer, desejo
manifestado através de interrogações como e depois?, e então?, e agora?, enquan-
to que plot é definido por Foster (1937): O que dá particular ênfase à relação causal
entre os elementos narrados, ou seja, à configuração lógico-intelectual da história.
Foster, apresenta o seguinte exemplo: “o rei morreu e em seguida morreu a rainha”
– trata-se de uma história; “o rei morreu e depois a rainha morreu de desgosto” –
trata-se de um plot.
O plot envolve mistério e surpresa, no suspense desencadeia a necessária
participação inteligente do leitor, pois, segundo Foster (1937), mobiliza a memória
deste. Por outro lado, provoca geralmente, um efeito estético graças às técnicas de
montagem e composição que o narrador aplica, objetivando captar o interesse do
leitor/ouvinte.
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2 - BASES TEÓRICAS DAS ANÁLISES
Este capítulo apresenta as bases teóricas interdisciplinares que fundamentam
as análises realizadas com textos narrativos de história com suspense. Sendo as-
sim, serão revistos fundamentos da Linguística de Texto, da Análise Crítica do Dis-
curso com vertente sociocognitiva e a Teoria de Gêneros.
2.1 - A Linguística de Texto
A Linguística de Texto ou Linguística Textual é um ramo da linguística com vi-
são pragmática, que privilegia o texto no uso efetivo da língua, entendendo-o como
uma unidade original que tem organização textual própria.
Desde suas origens, na Gramática de Texto, a Linguística de Texto postula
que o texto não se reduz à simples soma de palavras e frases que o compõem line-
armente; o texto é considerado a unidade básica de manifestação da linguagem,
pois o homem não se comunica por palavras ou frases isoladas, mas sim, por textos
que mantém relação com seus contextos externos, e os fenômenos linguísticos só
podem ser descritos e explicados no interior do texto, seu cotexto.
As origens da Linguística de Texto estão nas Gramáticas de Texto que foram
construídas na década de sessenta e que trataram o texto em busca das regras gra-
maticais responsáveis pela sua organização textual, atribuídas à competência de um
falante ideal. As tarefas propostas para realização dos gramáticos de texto eram: 1.
tratar da noção da completude de um texto, de forma a entender o que faz com que
um texto seja um texto; 2. tratar da coesão e da coerência textuais juntamente com
outros fatores externos de textualidade; 3. construir uma tipologia de textos.
A partir da década de setenta um conjunto das insatisfações resultantes do
tratamento do texto por regras gramaticais abstratas, levou a uma mudança de atitu-
de e o aparecimento da Linguística de Texto que situa o texto no uso efetivo da lín-
gua, embora as mesmas tarefas dos gramáticos de texto sejam mantidas.
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O produtor do texto é tratado em duas dimensões, a saber: a dimensão cogni-
tiva onde se constrói, pelo processamento da informação, o texto processo; a di-
mensão da língua onde se constrói, pela enunciação, o texto produto verbal.
Marcuschi (1983) propõe:
que se veja a Linguística de Texto, mesmo que provisória e genericamente, como estudo das operações linguísticas e cognitivas reguladoras e controla-doras da produção, construção, funcionamento e recepção de textos escri-tos ou orais. Seu tema abrange a coesão superficial no nível dos constituin-tes linguísticos, a coerência conceitual num nível semântico e cognitivo e um sistema de pre suposições e implicações em nível pragmático da produção de sentido no plano das ações e das intenções. Em suma, a linguística do texto trata o texto como um ato de comunicação unificado num complexo universo de ações humanas. Por um lado, deve preservar a organização li-near que é o tratamento estritamente linguístico (…) E, por outro lado, deve considerar a organização reticulada ou tentacular não linear, portanto, dos níveis de sentidos e intenções que realizam a coerência no aspecto semânti-co e funções pragmáticas. (MARCUSCHI, 1983, p.12)
Isenberg (1987) propõe que a Linguística de Texto é uma disciplina da lin-
guística que tem por objetivo tratar da boa formação do texto e assim descrever a
organização textual de textos bem formados.
Na perspectiva na Linguística do Texto, os textos são resultados da atividade
verbal de indivíduos socialmente atuantes na qual há coordenações de ações com o
propósito de se alcançar um fim social, segundo as condições sob as quais a ativi -
dade verbal se realiza.
Koch (1997) postula:
Uma manifestação verbal constituída de elementos lingüísticos selecionados e ordenados pelos falantes, durante a atividade verbal, de modo a permitir aos parceiros, na interação, não apenas a depreensão de conteúdos semân-ticos em decorrência da ativação de processos e estratégias de ordem cog-nitiva, como também a interação (ou atuação) de acordo com práticas socio-culturais. (KOCH, 1997, p.22)
Beaugrande e Dressler (1981), tendo por pressuposto a semântica procedu-
ral, dão realce ao estudo da coerência e do processamento do texto, de forma a
considerar, não somente o conhecimento declarativo (dado pelo conteúdo proposici-
onal dos enunciados), mas também, ao conhecimento construído através da vivên-
cia, condicionado socioculturalmente que é armazenado na memória, sob a forma
de modelos cognitivos globais, tais como frames, scripts, planos. Segundo esses au-
tores, há sete fatores de textualidade, sendo dois internos e cinco externos ao texto.
35
Os fatores de textualidades internos centrados no texto, são: coesão e coerência; os
fatores externos ao texto, centrados nos usuários, são: informatividade, intertextuali-
dade, intencionalidade, situacionalidade e aceitabilidade.
Para os autores, a coesão concerne ao modo como os componentes da su-
perfície textual, palavras e frases que compõem um texto, encontram-se conectadas
entre si numa sequência linear, por meio de dependência de ordem gramatical. Em
síntese, os elementos de coesão são aqueles que dão conta da estruturação da se-
quência superficial do texto.
Segundo Marcuschi (1983), a estruturação da sequência superficial do texto
não se reduz a princípios meramente sintáticos, mas de uma espécie de semântica
da sintaxe textual, pois trata-se dos processos formais de uma língua que permitem
estabelecer entre os elementos linguísticos do texto, relações de sentido.
A coesão pode ser tanto lexical quanto gramatical e são controladas por uma
sintaxe relacional, segundo a qual distingui-se: anáfora – é a relação para trás; catá-
fora – é a relação para frente e exófora – é a relação para fora do texto.
Embora Pottier (1977) não tenha tratado da coesão textual, seus estudos so-
bre as relações intra e interlexicais são importantes para a análise do texto.
Para o autor, a lexia é a formalização linguística do conceptun. Ela é vista
como uma unidade memorizada pelo indivíduo e disponível para uso durante a
construção e interpretação de enunciados. O vocábulo é a lexia em estado de dicio-
nário, ou seja, institucionalizada em sua expressão e em seu conteúdo e controla o
uso das palavras. A palavra é a lexia atualizada no enunciado e, por essa razão,
tem relação intra e interlexical para produção de sentidos do texto.
Uma lexia é formalizada com uma área semântica; uma área sintática; e uma
área de significante. A sua área semântica é formada por semas: os categoremas
são os semas relativos à espécie de ser designado pela lexia; os semas específicos
são os semas que caracterizam o ser designado; os virtuemas são semas pessoais
e decorrem de avaliações pessoais, enquanto que os categoremas e os semas es-
pecíficos são sociais.
As relações interlexicais constroem no texto a coesão referencial.
A sequência linear de lexias no texto verbal organiza a coesão; o processa-
mento das implicaturas e das relações interlexicais por inferências e explicitações de
36
implícitos e as inferências constroem a coerência textual, como sentido mais global
do texto.
As relações referenciais, também designadas coesão lexical, são realizadas
com os itens da língua que não podem ser interpretados semanticamente por si só,
pois remetem-se a outros itens do discurso, necessários à sua interpretação.
As relações gramaticais são, também, designadas coesão gramatical e decor-
re da seleção de gramemas para construir a progressão semântica do texto.
Koch (1989) propõe, tomando por base a função dos mecanismos coesivos
na construção da textualidade, a existência de duas grandes modalidades de coe-
são: a coesão referencial (referenciação, remissão) e a coesão sequencial (sequen-
ciação).
Segundo Koch e Travaglia (1989), textualidade ou textura é o que faz de uma
sequência linguística um texto, caso contrário, ocorreria um amontoado aleatório de
frases ou palavras. Uma sequência é entendida como texto quando o interlocutor,
que a recebe, é capaz de entendê-la como uma unidade significativa global.
Halliday e Hasan (1976) afirmam que a tese do texto é a coesão. Atualmente
essa afirmação não se sustenta, pois há textos sem coesão que apresentam coe-
rência e são percebidos pelos falantes como texto.
Um texto sem coesão pode ter coerência, pois esta é construída pelo proces-
sador da informação em sua memória de trabalho, num movimento recursivo de ex-
pansão e redução dos sentidos construídos. O movimento de expansão ocorre pelo
recurso de explicitação de implícitos e pela inferência. Com esse recurso, um núme-
ro reduzido de palavras é transformado num n-tuplo de sentidos, dependendo da
maturidade do leitor. Esses sentidos são secundários e progressivamente são relaci-
onados entre si e reduzidos a um sentido mais global que é a coerência do texto.
2.2 - Linguística do Discurso
Entre as vertentes da Análise Crítica do Discurso (ACD), este item apresenta
a versão da vertente sociocognitiva da qual van Dijk é seu maior representante. Nas
suas origens, a vertente sociocognitiva da ACD surge devido à crescente importân-
37
cia da linguagem na vida social. Essa vertente tem por ponto de partida que, de for-
ma geral, as pessoas não têm consciência de como o discurso ao qual estão dispos-
tas intervem para controlar e moldar as cognições sociais. Em outros termos, trata-
se do domínio das mentes das pessoas pelo discurso. Analisar o discurso de forma
crítica é revelar o que não é consciente para as pessoas em suas práticas sociais e
denunciar o controle das mentes.
Para ACD, as expressões linguísticas são o material da ideologia. Logo, o
uso da linguagem é ideológico; dessa forma, as expressões linguísticas são como
um terreno de conflitos sociais. A ACD propõe o discurso como interação social e
entende que há uma dialética entre o social e o individual. O social controla o indivi-
dual e este modifica aquele.
A ACD é vista como uma disciplina comprometida tanto com Ciências Sociais
quanto com as Ciências da Cognição.
Nesse sentido, faz-se necessário considerar tanto os dados do social – a so-
ciedade e os grupos sociais – quando do individual, pois os usuários da linguagem
falam/escrevem e entendem-se seja como membros de um grupo, seja como indiví-
duos. Cada locutor é tão único em seu discurso que pode apresentar variação indivi-
dual, disparidade e até dissidência, em relação ao seu grupo social, apesar das se-
melhanças sociais que o definem como um membro grupal.
Van Dijk (1997) postula que, embora o discurso seja social e analisá-lo signifi-
que entender o relacionamento entre as estruturas do discurso e os contextos soci-
ais, esse relacionamento não pode ser estabelecido sem se considerar as represen-
tações mentais individuais e sociais como formas de conhecimento. Estas últimas,
socialmente adquiridas e partilhadas, definem as culturas e as ideologias dos grupos
sociais. Logo, um discurso pode ser analisado tanto em relação a suas estruturas
linguísticas – entre elas, estruturas sintáticas, morfologias, fonologias, semânticas,
estilísticas e retóricas, quanto em relação ao social e à cognição, para se tratar das
formas de conhecimento em uma sociedade a partir de seus grupos sociais.
O discurso pode ser produzido tanto em situações informais quanto institucio-
nais. Para o autor, o discurso requer uma análise crítica que focalize as proprieda-
des linguísticas que expressam o que as pessoas dizem ou escrevem, para que se-
jam bem sucedidas em suas interações sociais.
38
Van Dijk (1997), ao tratar do social e do cognitivo, privilegia as noções de me-
mória e de representações mentais; de discurso como ação e interação; de contexto
global e local; e de papéis sociais.
2.3 - As memórias
A vertente sociocognitiva da ACD trabalha com o modelo de Atkinson e Shif-
frin (1968, apud. VAN DIJK, 1997). Os autores postulam que o funcionamento de
um computador pode ser comparado ao funcionamento da memória humana. A me-
mória é entendida como uma estrutura de vários armazéns. Um armazém de longo
prazo onde são armazenadas as representações mentais – tipo. Cada uma delas é
armazenada no seu sistema de memória. Os sistemas cognitivos estão situados na
memória de longo prazo e esta é dividida em memória de longo prazo social e me-
mória de longo prazo individual. Esta última armazena formas de conhecimento
construídas pelo indivíduo durante as suas experiências pessoais com o mundo; a
social, armazena formas de conhecimento construídas em sociedade. As represen-
tações mentais sociais de longo prazo, dos diferentes membros de um grupo social,
constroem a memória social de um determinado grupo. Esta é designada, marco
das cognições sociais.
O armazenador de longo prazo tem capacidade limitada e, devido a seus sis-
temas de conhecimento, contém uma variedade enorme de diferentes tipos de infor-
mação.
Nas memórias de longo prazo, os conhecimentos sociais estão organizados
em pelo menos três grandes sistemas, a saber: o sistema linguístico, o enciclopédi-
co e o interacional.
O sistema linguístico compreende os conhecimentos que as pessoas constro-
em da língua que usam, tanto como nativos quanto como estrangeiros. O sistema
enciclopédico organiza os conhecimentos de mundo, que são representações men-
tais que constroem os conhecimentos de mundo; o sistema interacional é composto
por um conjunto de conhecimentos relativos aos atos de fala, às máximas conversa-
cionais, aos turnos dialógicos, entre outros.
39
A memória de curto prazo é sensorial e quantitativa. É ela a responsável por
repassar a informação recebida para a memória de trabalho que se localiza entre a
memória de curto prazo e a memória de médio prazo.
A memória, por ser sensorial, realiza a identificação através dos órgãos de
sentido, propiciando reconhecimentos sensoriais. Nesse sentido, identifica tanto re-
gistros icônicos quanto representações verbais. Os registros icônicos são captados
sem que, necessariamente, haja um armazenamento duradouro na memória como,
por exemplo, a sensação de suavidade que um tecido de sofá possa causar.
O armazenador tem uma capacidade limitada para a armazenagem das infor-
mações, e por essa razão, foi identificado como memória de curto prazo ou memória
de curta duração, nesse sentido, a sua definição implica um critério quantitativo para
determinar o número de unidades que podem ser armazenadas e determinar o tem-
po de retenção dessas unidades na memória.
A memória de trabalho é responsável pelo processamento ativo em relação
às tarefas que a memória realiza para obter um determinado fim.
O sistema da memória de trabalho é organizado com os seguintes compo-
nentes: um executivo central que processa, por várias operações, a informação que
entra; um circuito verbal que opera uma falha interna e mantém em suspenso, na
memória, uma quantidade considerável dos dados que estão entrando na memória
sensorial, a fim de, realizar as relações e os ajustes sequenciais necessários; e o
mapa espaçotemporal de identificação das especificidades temporais. O processa-
dor da informação precisa organizar-se para cumprir o objetivo composto por ele, a
fim de que, a tarefa do processamento seja realizada na memória de trabalho. Para
tanto, é preciso atender a determinadas exigências ou necessidades que estão rela-
cionadas a esse objetivo. Dessa forma, constrói uma hipótese sobre as demais in-
formações que ainda não entraram que o orienta a selecionar as que estão entran-
do.
No caso da informação verbal, a sua entrada na memória de curto prazo é li-
near, pois segue a natureza da língua; esta, na memória de trabalho, passa a ser
considerada de forma alinear, pois ocorre a transformação dos elementos linguísti-
cos e palavras sequenciadas linearmente em proposições que têm natureza semân-
tica e não gramatical. As proposições são alineares na medida em que resultam da
expansão em sentidos das expressões linguísticas, a partir de explicitações e de in-
40
ferências. A multiplicidade das proposições construídas, também, é designada cál-
culo de significação. Nesse sentido, a memória de trabalho é qualitativa.
Já, a memória de curto prazo por ser quantitativa, é controlada por uma uni-
dade de memória chamada chunk, se o chunk estiver lotado, a informação entrante
na memória de curto prazo é descartada. Para que isso não ocorra, é necessário
processar a informação na memória de trabalho para esvaziar o chunk. A informa-
ção já processada é armazenada temporariamente na memória de médio prazo e
sendo reformulada a cada novo processamento.
Na memória de trabalho as expressões linguísticas são transformadas em
sentidos a partir de inferências e explicitação de implícitos. Para tanto, ativam-se co-
nhecimentos da memória de longo prazo e expressões linguísticas dependendo da
maturidade do leitor, ou seja, aquele que tem representações mentais armazenadas
em número suficiente na memória de longo prazo e conhece as estratégias para
transformar as expressões linguísticas em sentidos.
Segundo van Dijk (1997), há uma inter-relação entre as categorias analíticas
do discurso: Sociedade, cognição e discurso, na medida em que uma se define pela
outra.
A sociedade é definida por um conjunto de grupos sociais, sendo cada qual
uma reunião de pessoas que possuem as mesmas formas de conhecimento em
suas memórias sociais.
A cognição compreende as formas de conhecimento de cada grupo social.
Cada um deles reúne pessoas que têm o mesmo ponto de vista para focalizar o
mundo, porque têm objetivos, intenções e propósitos comuns. Dessa forma, o marco
de suas cognições sociais é composto por um determinado conjunto de representa-
ções mentais, que cerca e interage com o referido grupo social.
Como cada grupo social tem o seu próprio marco de cognição social decor-
rente do próprio ponto de vista para focalizar o mundo, os grupos sociais estão em
constante conflito cognitivo.
O discurso é uma prática social e todas as formas de conhecimento são cons-
truídas no e pelo discurso.
41
Uma representação mental, como forma de conhecimento, não é desordena-
da. Ela é organizada em um esquema mental. Os esquemas são de formas variadas
e diferenciam-se em scripts, planos e frames.
Os frames contém os sentidos mais globais; os scripts são organizados por
um esquema mental segundo uma ordem cronológica; e os planos organizam os
sentidos por episódios diferentes.
Kintsch e van Dijk (1983) apresentam a noção de modelos de situação, após
um conjunto de pesquisas realizadas com seus informantes.
Os autores verificaram que as leituras e os resumos produzidos pelos seus
informantes, de um mesmo texto, eram diferentes: seja para o mesmo leitor em mo-
mentos diferentes; seja por diferentes leitores.
Os resultados obtidos de pesquisas realizadas sobre a diversidade de leituras
de um mesmo texto, propiciaram que os autores construíssem a noção teórica de
modelo de situação.
Para os autores, os modelos de situação são representações mentais arma-
zenadas na memória individual de longo prazo. Essas representações são relativas
a experiências pessoais interpretadas, incluindo o que as pessoas têm em mente
sobre uma situação a que um discurso se refere. Neste sentido, os modelos são cor-
relatos cognitivos dos fragmentos percebidos do mundo e, portanto, também de situ-
ações sociais das quais as pessoas participam ou ouvem falar.
Esses modelos são subjetivos e caracterizam crenças avaliativas assim como
outras experiências pessoais. Ainda que as interpretações de acontecimentos soci-
ais, por meio da construção desse tipo de modelo esteja, por suposto, controlada
pelo conhecimento geral como, por exemplo, o script, e por atitudes gerais, sua na-
tureza pessoal permite explicar como os indivíduos estão capacitados a reagir de
maneiras diferentes diante de um mesmo acontecimento ou para planejar ações es-
pecíficas que dependem também das experiências, objetivos e interesses pessoais
e de outras circunstâncias.
Sem a noção de modelo para os autores, o pressuposto de um conhecimento
geral e de atitudes controladas ideologicamente, conduziriam a um pressuposto in-
sustentável de que todos os membros de um grupo social sempre interpretariam os
acontecimentos e concluiriam ações exatamente da mesma maneira.
42
No que se refere à memória de trabalho, a ativação de um modelo de situa-
ção controlaria o cálculo das proposições ao mesmo tempo que propiciaria a cons-
trução da hipótese de compreensão do texto total durante a sua leitura.
Há discursos informais e discursos institucionalizados. Os discursos institucio-
nalizados são organizados em três categorias: Poder, Controle e Acesso.
O Poder reúne os participantes que Têm o poder de tomar decisões; o Con-
trole é definido por um conjunto de participantes que executam o que o Poder deci-
de; e o Acesso reúne um conjunto de pessoas que tornam público um determinado
discurso institucionalizado.
Em síntese, o poder mental e os contextos controlam as atividades dos ou-
tros, isto é, controlam a base mental de toda a ação, como intenções ou propósitos
pessoais.
Normalmente, devido aos discursos institucionalizados, os grupos de poder
fazem os outros agirem conforme desejado por eles, ou seja, simplesmente lhes di-
zendo para fazê-lo como, por exemplo, por comandos, ordens ou atos diretos.
Em outros termos, um dos meios cruéis, segundo a vertente sociocognitiva da
ACD, utilizados para influenciar a mente das pessoas, no sentido de agirem confor -
me o grupo de poder deseja, é o texto ou a fala. Nesse contexto é que Poder e Dis-
curso se inter-relacionam com a cognição.
Em síntese, as ordens funcionam quando as pessoas obedecem, isto é, se os
interlocutores fizerem o que o locutor deseja que seja feito. A ordem tem a função
de fazê-los saber o que se quer que seja feito. Explícita ou implicitamente, pode-se
ao mesmo tempo comunicar ou pressupor que não existe outra alternativa senão a
de obedecer. É assim, que o exercício do Poder limita as oposições de ações e,
desse modo, a liberdade dos outros. Por outro lado, em geral, só se exerce Poder
sobre os outros, quando estes o acatam; desta maneira, pode-se supor, também,
que o Poder é exercido quando os outros não atuam por sua própria vontade, por
conformismo.
43
2.4 - Teoria da Relevância
A noção de contexto foi introduzida, para os estudos linguísticos, a partir da
visão pragmática. Devido às diversidades de vertentes, tanto para a Linguística do
Discurso quanto a Linguística do Texto, a noção de contexto torna-se complexa.
Um evento que ocorre no mundo tem um determinado contexto sócio-históri-
co-cultural. Esse contexto é analisado pela semântica extensional, pois está fora do
texto verbal. Este apresenta-se como o cotexto, ou seja, com a sintaxe coesiva das
orações que o compõem.
O contexto discursivo está relacionado à definição de discurso como uma prá-
tica social e é definido pelos participantes dessa prática, suas funções e suas ações.
O contexto enunciativo define-se pelo quadro enunciativo e o papel que cada
participante desse quadro representa, ou seja, quem enuncia o que para quem, por
que, quando e onde.
Com as contribuições da ciência da cognição, a noção de contexto cognitivo é
introduzida para o processamento da informação.
O contexto cognitivo está situado na memória de médio prazo e projetado na
memória de trabalho. Nele é que se produz o cálculo de significação durante o pro-
cessamento da informação, na memória de médio prazo das pessoas.
Sperber e Wilson (1994) postulam a noção de relevância, tendo por ponto de
partida, um fator de textualidade, a informatividade.
Segundo Beaugrande e Dressler (1981), a informatividade é um fator de tex-
tualidade que define o grau da nova informação que um texto transmite. Para os au-
tores, todo texto, para ser um texto, precisa apresentar uma informação nova. Esta
apresenta-se por graus, que vai do mais ou menos novo até o muito novo.
Sperber e Wilson (1994), ao tratar do processamento da informação, situam o
contexto cognitivo que é relativo ao cálculo das proposições construídas pela memó-
ria de trabalho e que ficam armazenadas na memória de médio prazo.
Esse contexto cognitivo é construído pela expansão de sentidos, devido às
inferências e explicitações feitas anteriormente. Inferir e explicitar implicam ativar, na
44
memória de longo prazo, conhecimentos já armazenados pelo processador do texto.
Dessa forma, ele constrói um contexto cognitivo com o já sabido.
Todavia, quando a informação nova entra, o sujeito processador precisa
construir um sentido ostensivo que não está de acordo com o contexto anterior que
vinha sendo construído; em outros termos, a informação nova rompe com o cálculo
de significações situado na memória de médio prazo. A ostensividade da informação
nova, obriga o processador a reformular o seu contexto cognitivo.
Essa noção de relevância e contexto cognitivo é importante para o tratamento
do texto narrativo com suspense.
2.5 - Os papéis sociais e o discurso
A noção de papéis sociais está relacionada a uma vertente da Psicologia So-
cial, o Interacionismo Simbólico. Este se origina de uma crítica à Psicologia Social
de caráter individualista nos Estados Unidos.
As insatisfações decorreram do fato de, nos anos setenta, a Psicologia Social
ter privilegiado o caráter individualista, que enfatiza o indivíduo, sem dar atenção
aos conflitos e interesses que põem os diferentes grupos e classes sociais no interi -
or da sociedade.
Sendo assim, a preocupação com o ideológico e o social é introduzida na Psi-
cologia Social americana. Dessa forma, buscam-se outras formas de abordagem do
ser humano, privilegiando-o em sua relação com o contexto histórico onde está inse-
rido.
De fato, aparece um novo marco conceitual que vai da estrutura social à pes-
soa e vice versa, assim como entre os grupos sociais, dependendo da interação dis-
cursiva. Esta torna-se a base empírica para explicar o homem como um ser simbóli-
co que reage, interage, gera, modifica ou cria papéis sociais. Estes, devido a suas
constâncias, tornam-se estruturas dinâmicas que, por sua vez, constroem o tecido
das relações que é a sociedade. Em outros termos, o Interacionismo Simbólico bus-
ca uma interface entre o indivíduo e a sociedade, propondo que exista uma múltipla
e permanente determinação de um sobre o outro, na construção do social.
45
O Interacionismo Simbólico foi desenvolvido com duas grandes vertentes:
uma privilegia a estrutura e a outra o funcionamento (cf. BAZZILE, 1998).
A necessidade, própria do ser humano, que tem por base a interação entre os
seres nas diferentes situações, ainda que, as funções sociais dos papéis sejam pas-
síveis de mudanças. Nesse sentido, a interação é vista como um espaço de simboli -
zação entre social e individual, de forma que ambos se mantém e se modificam
constantemente.
A interação, vista como um processo social básico, dá às pessoas o status de
atores de um determinado papel social e não apenas de agentes de reprodução,
pois são reinventores da vida social.
As representações sociais, enquanto papéis sociais estereotipados em suas
constâncias estruturais, possuem duas funções: em primeiro lugar, as representa-
ções sociais convencionam objetos, pessoas ou acontecimentos que estão no mun-
do. Elas lhes dão uma forma definitiva, pois localizam-nas em uma determinada ca-
tegoria social e, gradualmente, colocam-nas como um modelo de determinado tipo,
distinto e partilhado por um determinado grupo de pessoas. Em segundo lugar, as
representações sociais são prescritivas, pois elas se impõem sobre o indivíduo
como uma força irresistível. Esta força é a combinação de uma estrutura que está
presente antes mesmo que as pessoas nasçam e de uma tradição que prescreve o
que deve ser pensado.
Logo, os papéis sociais, embora escolhidos e recriados, tornam-se capazes
de influenciar o comportamento das pessoas de uma coletividade e, dessa forma,
elas são criadas por um processo coletivo como um fator determinante no pensa-
mento individual.
A dialética entre as representações sociais e as representações individuais,
enquanto papéis, constrói a dinâmica das representações sociais avaliativas da es-
trutura de papéis. Caso contrário, o individual seria sempre guiado pelo social, não
havendo interação.
Os que privilegiam a estrutura, entendem que a sociedade se define por uma
estrutura de papéis sociais e tal estrutura é fixa. Para os que privilegiam o funciona-
mento, os indivíduos em sociedade escolhem, criam ou modificam os papéis sociais
dependendo de sua participação em um determinado grupo social. Em outros ter-
46
mos, intermeia-se a relação entre sociedade e indivíduo, pelo comportamento deste
em sociedade.
Nesse sentido, aparece a diferença entre EU e MIM (self) o EU é quem eu
sou e o MIM é como eu construo uma imagem de mim para os outros no discurso,
ou seja, o que eu quero que os outros pensem que eu sou.
Em outros termos, pelo Interacionismo Simbólico, a sociedade não é uma es-
trutura ou uma organização por regras políticas e/ou econômicas. Elas se definem
pelas ações dos indivíduos e estas são realizadas porque os indivíduos ocupam lu-
gares em determinada situação, de forma que, esta situação é construída pelas pró-
prias pessoas a partir de como elas interpretam as situações. Nesse sentido, é a in-
teração simbólica que define a sociedade, com ênfase no papel social escolhido
pelo EU representar como MIM.
2.6 - Teoria da Enunciação
Kerbrat-Orecchioni (1980) focaliza a subjetividade na enunciação. Os resulta-
dos obtidos por ela, através de suas pesquisas, de que todos os textos são subjeti -
vos, embora eles se diferenciem pelo grau: mais ou menos subjetivos.
Para a autora, a subjetividade de grau maior é explícita e é quando o sujeito
da enunciação se mostra de forma declarada no enunciado, assumindo por essa ra-
zão, a responsabilidade pelo seu dito. A subjetividade implícita, a de grau menor, é
aquela em que o sujeito enunciador não se evidencia no enunciado, podendo por
isso, eximir-se da responsabilidade de seu dito e, consequentemente, dos efeitos
dos sentidos que ele possa provocar.
Dependendo do grau de subjetividade, os discursos se diferenciam em: dis-
cursos subjetivos e discursos objetivos. Logo, é necessário entender, segundo a au-
tora, que todo texto é subjetivo, seja uma subjetividade explícita ou implícita.
A subjetividade explícita é manifestada pela presença do EU nas concordân-
cias e flexões verbais; ocorre também com as pessoas no NÓS.
A subjetividade implícita é manifestada pela escolha que o enunciador faz das
lexias para usá-las como palavras no seu texto. Essas seleções lexicais, quando
47
inscrevem a subjetividade do enunciador, são designadas subjetivas e contém avali -
ações que resultam em traços afetivos, axiológicos e modalizadores de emoções.
Dessa forma, o enunciador pode construir no seu texto escrito uma orientação de
leitura para o seu leitor.
Os traços afetivos estão relacionados às emoções; os traços axiológicos são
sociais e estão relacionados às cognições sociais de cada grupo; e os traços moda-
lizadores de emoção são valores individuais e estão relacionados na interação do
enunciador com o seu enunciatário.
A variabilidade existente na escolha do enunciador, para sequenciar as pala-
vras no seu texto verbal, está ligada ao seu ato elocucional, ou seja, às suas inten-
ções. Por essa razão, a referenciação construtora do texto varia de texto para texto,
dependendo do ato elocucional.
2.7 - Referenciação
A visão tradicional de referência situa-a fora do texto verbal, ou seja, apoia-se
na hipótese de que os conceitos são dados, a priori, numa relação direta de corres-
pondência entre o verbal e o mundo real.
Com a virada pragmática para os estudos linguísticos, os linguistas de texto
passam a discutir essa visão tradicional, pois ela pressupõe que o mundo autônomo
de objetos ou entidades possa existir independente, de qualquer sujeito que se refi-
ra a ele. Pois as representações linguísticas, vistas como representações em língua
do mundo, negam o valor de verdade da realidade.
As pesquisas realizadas com análise textual, propiciaram uma outra concep-
ção de referenciação, diferente da tradicional.
Dessa forma aparece a abordagem da referenciação, no domínio cognitivo,
associado ao linguístico. Nesse enfoque, a base dos sistemas conceituais está na
percepção humana, no movimento corporal e na experiência realizada, tanto no am-
biente físico quanto no ambiente social.
As formas de conhecimento passam a ser vistas como decorrentes da pro-
gressão de um foco sobre o que se percebe no mundo, ou seja, por um processo
48
metonímico que focaliza em determinado ponto. A relação entre dado e novo é pos-
sível devido às zonas de similitude existentes entre eles e decorrentes do foco proje-
tado; dessa forma produz-se uma metáfora. Assim, de acordo com o modo com o
qual se categoriza o referente, tem-se por resultado uma produção mental diferente
dele. Logo, o caráter imaginativo do pensamento aparece cada vez que se categori -
za alguma coisa; portanto, não se espelha à natureza, ela é criada pela enunciação.
Em outros termos, na visão tradicional, a língua espelha o mundo e, portanto, ela só
pode se referir ao que existe no mundo e que é natural a ele. Na visão pragmática, o
mundo passa a existir após o dito; nesse sentido o que existe é criado pelo enuncia-
dor.
Nesse sentido, categorizar uma representação mental do mundo para verbali -
zá-la é uma reação instável dependendo das intenções do enunciador. Logo, o sen-
tido emerge do sujeito, com suas experiências com o mundo, estas são guiadas por
aspectos sóciais da interação na construção dos sentidos.
Assim, os tradicionais de Anáfora, Catáfora e Exófora, da Linguística de Tex-
to, foram redimensionados. As formas remissivas referenciais expressam comunida-
des lexicais, selecionadas para a construção da coesão textual, que se instauram no
texto remetendo-se umas às outras. Dessa forma, ocorre a recategorização lexical,
de forma a produzir ressemantização e mudança nas funções gramaticais.
Com o redimensionamento do conceito de anáfora, numa visão não extensio-
nal da referência, possibilitou-se entender a concepção de que, uma expressão refe-
rencial pode introduzir e manter um referente localizável no próprio texto ou nas cog-
nições sociais compartilhada pelos interlocutores, ou ainda, em algum outro elemen-
to da situação extralinguística (cf. CIULLA, 2002).
Portanto, as expressões lexicais anafóricas não são usadas somente para
apontar um objeto do discurso, mas também, são usadas para modificá-lo.
2.8 - A questão do gênero
A noção de gênero aparece inicialmente na Teoria Literária para, posterior-
mente, ser focalizada por Bakhtin no início do século passado. Porém, nos últimos
anos, essa noção tem sido objeto de estudos tanto textuais quanto discursivos.
49
No século passado, a Linguística Textual foi desenvolvida por pesquisas reali-
zadas com textos concretos; as tarefas do linguista de texto eram tratar da noção de
completude de texto, examinar os fatores de textualidade e construir uma tipologia
de textos.
Paralelamente à Linguística de Texto, foram realizadas as análises do discur-
so, que objetivavam encontrar categorias analíticas para o discurso, visto tanto
como um acontecimento, quanto como uma prática social interacional. Progressiva-
mente os resultados obtidos das análises do discurso possibilitaram construir teorias
do discurso, com vertentes diferentes conforme fundamentos das Ciências Sociais,
das Ciências Cognitivas e da Semiótica Social.
As teorias do discurso propiciam resgatar a noção de gênero, assim como as
teorias de texto. Dessa forma, o gênero tratado no texto é visto como gêneros textu -
ais; e quando tratado no discurso, gêneros discursivos. Atualmente, aparece uma
tendência de aproximar o texto do discurso para a realização de análises linguísticas
do gênero.
Bazerman (2009), enquanto teórico, segue a perspectiva sociointerativa, vin-
culada ao aspecto histórico e cultural, na área da linguística aplicada, com ênfase
na produção e uso de conhecimento de recursos retóricos. O autor, parte sempre da
interação na situação histórico-cultural, de forma a abarcar a realidade social para
tratar de conjuntos de gêneros, sistemas de gêneros e atividades, sem se limitar às
formas individuais. Nesse sentido, Bazerman não estuda apenas o gênero em si,
mas o estuda na circulação de discursos e na inovação dos formatos dessa circula-
ção em termos de meio, canais, modos retóricos e tipificação.
Sua hipótese central é a de que pelo uso de textos não só organizam-se as
ações diárias, mas também, criam-se significações e fatos sociais num processo in-
terativo tipificado num sistema de atividades que encadeia significativamente, as
ações discursivas.
Para o autor, os gêneros são formas típicas de usos discursivos da língua,
desmembradas de formas anteriores, pois os gêneros nunca surgem num grau zero,
mas num veio histórico, cultural e interativo dentro de instituições e atividades pree-
xistentes.
50
Dessa forma, um gênero implica a compreensão do seu funcionamento na
sociedade e na sua relação com as pessoas, situadas numa cultura e em suas insti-
tuições. Para Bazerman (2009), não se pode definir um gênero apenas como um
conjunto de traços textuais, pois, assim, ignora-se o papel das pessoas no seu uso
e na construção de sentidos. O gênero é uma categoria essencialmente sócio-histó-
rica em constante mudança.
Para o autor, os gêneros são o que as pessoas reconhecem como gêneros
em qualquer momento do tempo. Seja por nomeação, institucionalização ou regula-
mentação explícita, esse reconhecimento é garantido; se houver infrações, haverá
punições. Por essa razão, os gêneros são tipificações dinâmicas interativas e históri -
cas que são parte de processos de atividades socialmente organizadas.
O tratamento do gênero requer três noções: A de conjunto de gêneros; a de
sistema de gêneros; e a de sistema de atividades.
O conjunto de gêneros é visto como uma coleção de espécies de gênero que
uma pessoa num determinado papel tende a produzir. Assim, no papel de escritor li -
terário, há um conjunto de gêneros.
Um sistema de gêneros compreende os diversos conjuntos de gêneros, utili-
zados por pessoas que trabalham juntas de forma organizada. Esse sistema captura
as sequências regulares com que um gênero segue outro, dentro de um fluxo comu-
nicativo típico de um grupo de pessoas, por exemplo, na mídia há um grupo de pes-
soas que operam com um sistema de gêneros, tais como notícias, editoriais, crôni-
cas, entre outros.
Um sistema de atividades compreende o enquadramento geral de ações de-
senvolvidas nos diferentes grupos sociais. Cada grupo específico tem um sistema
de atividades próprio. Um sistema de gêneros organiza não só as ações diárias des-
sas pessoas, mas também, cria significações e fatos sociais num processo interativo
tipificado.
Assim sendo, por exemplo, o gênero da descoberta científica passa a guiar a
ação de alunos da graduação e da pós-graduação para que eles realizem suas pes-
quisas, de forma a controlá-las.
Bazerman (2009) entende que os conhecimentos individuais e compartilha-
dos não são estanques, pois observa que ele vive se adaptando aos novos contex -
51
tos, o que impede de usar, de modo significativo, o conhecimento individual sem sua
vinculação com o coletivo. Por isso, o gênero é reconhecido pela sua circulação so-
cial, como um uso constante pelas pessoas que compõem a sociedade em seus
grupos sociais; por essa razão, o engajamento das pessoas na sociedade se dá pe-
los gêneros. Bazerman discute que, enquanto os gêneros são mutáveis e relativos
ao momento histórico, a noção de tipos implica o permanente, sem mudança e em
qualquer tempo.
Adam (2008) busca aproximar os estudos do texto e do discurso e propõe
uma análise textual dos discursos que é fundamentada na análise de textos concre-
tos.
O autor e seus colaboradores vêm construindo, nos últimos anos, um enfoque
abrangente do texto de seus procedimentos de análise, das tarefas da Linguística
Textual e sua inserção nas ciências da linguagem. Entre os diferentes aspectos de
seu projeto de pesquisa, dois têm tido mais relevância: Primeiro, o tratamento do gê-
nero discursivo como tratamento do texto produto concreto; e segundo, o tratamento
das categorias do texto processo como operações de textualização.
O autor propõe um modelo que integra os níveis ou planos da análise do dis-
curso com os níveis ou planos da análise textual.
Os níveis da análise do discurso são:
• Nível 1: ação visada, objetivos;
• Nível 2: interação social entre os participantes;
• Nível 3: formação discursiva que liga o discurso ao texto, a partir do inter-
discurso. É no interdiscurso que situa-se a língua e o gênero.
Nos níveis da análise textual, Adam (2008) situa como:
• Nível 4: textura, ou seja, proposições enunciadas e períodos;
• Nível 5: estrutura composicional, ou seja, sequências e planos de textos;
• Nível 6: semântica, ou seja, representações discursivas;
• Nível 7: Enunciação, isto é, responsabilidade enunciativa e seção polifôni-
ca;
52
• Nível 8: Atos de discurso, ou seja, ato elocucional e orientação argumen-
tativa.
O texto integra-se ao discurso pelo nível 1 ligado ao nível 8, ou seja, a ação
visada e os objetivos do discurso com os atos elocucionais do discurso e sua orien-
tação argumentativa.
Dessa forma, Adam (2008) propõe um tratamento no qual texto e discurso
são pensados de forma articulada e situa Linguística Textual na análise das práticas
discursivas.
No nível 1: está a ação visada, os objetivos do discurso, ou seja, o que uma
prática social objetiva ao entrar em ação. Assim, por exemplo, a prática social do
discurso jornalístico, tem por ação visada, construir a opinião do grupo jornalístico
de Poder para seus leitores; já, a prática social do discurso publicitário tem por ação
visada, transformar o interlocutor em comprador do objeto anunciado.
No nível 2: da interação social, implica tanto a interação dos conhecimentos
sociais com o individual e este modificando o social, quanto a interação das cogni -
ções do interlocutor, partindo de postos, pressupostos e subentendido.
O nível 3: da formação discursiva, compreende o que se pode e deve dizer e
como dizer num determinado discurso, depende das formações ideológicas. Por
essa razão, ele mantém relações com o interdiscurso no seu intradiscurso.
No nível 4: o discurso adquire textura, a partir das proposições enunciadas
por expressões linguísticas e organizadas em períodos.
No nível 5: o texto adquire estrutura composicional através da seleção de se-
quências textuais tipo e plano de texto. Para Adam (2008), as sequências textuais
tipo são imutáveis e constantes, e compreendem: a sequência narrativa, a descriti-
va, a explicativa e a argumentativa. Essas sequências são selecionadas de forma a
incrustar-se umas nas outras, e são as diferenças nas seleções e incrustações, que
constroem os planos de textos. Assim, por exemplo, o plano de texto das narrativas
de história, possui uma sequência narrativa selecionada, na qual incrusta-se a se-
quência descritiva, para os cenários e os personagens. A sequência narrativa com a
descritiva nela incrustada, incrusta-se na sequência argumentativa como justificativa
de um julgamento, que pode ser ou não explicitado na categoria moral da história.
Assim, quando o discurso adquire textura, ele precisa ser moldado em uma estrutu -
53
ra composicional e uma narrativa de história pode ser estruturada, por exemplo, em
telenovela, em conto ou em romance como gênero discursivo.
No nível 6: a semântica, compreende a representação discursiva, ou seja, a
maneira que se constrói a referenciação do texto, a partir do tema e sua progressão
semântica, orientadas pela focalização dada pelo produtor.
No nível 7: enunciação, o texto se verbaliza pela subjetividade anunciativa, de
forma que as lexias selecionadas linearmente, expressas e ordenadas construam a
coesão do texto.
No nível 8: atos de discurso, as intenções contidas nos atos elocucionais gui-
am a orientação argumentativa do texto.
Logo, os atos de discurso e a ação visada pelo discurso propiciam a análise
textual dos discursos e nela situam a questão dos gêneros, que para Adam (2008),
são discursivos, pois os textos possuem estrutura composicional e planos de texto.
54
3 - UM OUTRO OLHAR PARA AS HISTÓRIAS DE SUSPENSE - ANÁLISE E RESULTADOS OBTIDOS DO TEXTO LITERÁRIO DE MACHADO DE ASSIS, COM O CONTO “A CARTEIRA”
Este capítulo contém as análises e resultados obtidos do texto literário de Ma-
chado de Assis, “A carteira” de 1884 (ANEXO A) - suspense e triângulo amoroso. O
texto analisado é classificado literariamente como um conto. Os resultados apresen-
tados são discutidos com autores indicados no capítulo 1 e 2.
As análises e resultados obtidos são apresentados e organizados pelas qua-
tro categorias analíticas:
I. A segmentação do texto integral por episódios;
II. A ordenação temporal dos episódios segmentados;
III. O exame da referenciação do texto relativa aos personagens, a partir das
modalidades ser x parecer: manutenção e modificação de papéis sociais.
IV. A análise do suspense, situado como clímax.
3.1 - Segmentação dos episódios narrativos, seguindo a linearidade do texto
Episódio 1: Honório encontra uma carteira recheada de dinheiro.
Apresentação: Honório tem de pagar uma dívida de quatrocentos e tantos
mil-réis. Essa dívida é grande porque Honório é um advogado pobre e tem poucos
clientes.
Conflito: Honório não tem o dinheiro necessário para o pagamento da dívida,
quando encontra uma carteira recheada de dinheiro.
Resolução:
55
Abaixar-se, apanhá-la e guardá-la foi obra de alguns instantes. Ninguém o viu, salvo um homem que estava à porta de uma loja, e que, sem o conhe-cer, lhe disse rindo:– Olhe, se não dá por ela; perdia-a de uma vez.– É verdade, concordou Honório envergonhado. (ANEXO A, p. 118).
Episódio 2: A dívida de Honório.
Apresentação:
Gastos de família excessivos, a princípio por servir a parentes, e depois por agradar à mulher, que vivia aborrecida da solidão; baile daqui, jantar dali, chapéus, leques, tanta cousa mais, que não havia remédio senão ir descon-tando o futuro. (ANEXO A, p. 118).
Conflito: “Endividou-se. Começou pelas contas de lojas e armazéns; passou
aos empréstimos (...)” (ANEXO A, p. 118).
Resolução: “(...) duzentos a um, trezentos a outro, quinhentos a outro, e tudo
a crescer, e os bailes a darem-se, e os jantares a comerem-se, um turbilhão perpé-
tuo, uma voragem. ” (ANEXO A, p. 118).
Episódio 3: O encontro de Gustavo com Honório.
Apresentação: Gustavo é advogado e amigo de Honório que também é advo-
gado. Honório ia mal de finanças pois suas poucas causas e de pequena monta não
davam para cobrir os seus grandes gastos. Honório é pobre embora tenha conse-
guido diploma de advogado.
Conflito: A pergunta feita pelo amigo: “– Tu agora vais bem, não?” (ANEXO A,
p. 118).
Resolução: A resposta mentirosa de Honório para encobertar seu estado en-
dividado e aflitivo: “– Agora vou, mentiu o Honório. ” (ANEXO A, p. 118).
Episódio 4: A esposa, D. Amélia, e o amigo desconhecem o estado de dívida
de Honório.
Apresentação: A ignorância de D. Amélia em relação à situação financeira do
marido.
Conflito: O desespero de Honório.
Resolução:
56
Não contava nada a ninguém. Fingia-se tão alegre como se nadasse num mar de prosperidades. Quando o Gustavo, que ia todas as noites à casa dele, dizia uma ou duas pilherias, ele respondia com três ou quatro; e depois ia ouvir os trechos de música alemã que d. Amélia tocava muito bem ao pia-no e que Gustavo escutava com indizível prazer, ou jogava cartas ou sim-plesmente falam de política. (ANEXO A, p. 119).
Episódio 5: A decisão de Honório de manter a mulher e o amigo na ignorância
de seu desespero por não poder pagar a dívida.
Apresentação: É a mesma da resolução do episódio anterior.
Conflito: “Um dia, a mulher foi achá-lo dando muitos beijos à filha, criança de
quatro anos, e viu-lhe os olhos molhados; ficou espantada, e perguntou-lhe o que
era. ” (ANEXO A, p. 119).
Resolução: A resposta que mantém a esposa na ignorância: “– Nada, nada. ”
(ANEXO A, p. 119).
Episódio 6: A dívida de Honório cresce.
Apresentação:
Compreende-se que era o medo do futuro e o horror da miséria. Mas as esperanças voltavam com facilidade. A idéia de que os dias melho-res tinham de vir dava-lhe conforto para a luta. Estava com, trinta e quatro anos; era o princípio da carreira: todos os princípios são difíceis.(ANEXO A, p. 119).
Conflito: “(...) todos os princípios são difíceis.” (ANEXO A, p. 119). Honório
quer pagar a dívida mas não tem dinheiro. “Tinha-se lembrado de ir a um agiota,
mas voltou sem ousar pedir nada.” (ANEXO A, p. 119).
Resolução: “E toca a trabalhar, a esperar, a gastar, pedir fiado ou empresta-
do, para pagar mal, e a más horas. ” (ANEXO A, p. 119).
Episódio 7: A urgência do pagamento da dívida de Honório.
Apresentação: “A dívida urgente de hoje são uns malditos quatrocentos e tan-
tos mil-réis de carros.” (ANEXO A, p. 119).
Conflito: “Nunca demorou tanto a conta, nem ela cresceu tanto, como agora;
e, a rigor, o credor não lhe punha a faca aos peitos; mas disse-lhe hoje uma palavra
azeda, com um gesto mau (...)” (ANEXO A, p. 119).
57
Resolução: “Eram cinco horas da tarde. / Tinha-se lembrado de ir a um agio-
ta, mas voltou sem ousar pedir nada.” (ANEXO A, p. 119).
Episódio 8: Honório encontra uma carteira recheada de dinheiro.
Apresentação: “Ao enfiar pela Rua. da Assembléia é que viu a carteira no
chão, apanhou-a, meteu no bolso, e foi andando. ” (ANEXO A, p. 119).
Conflito:
Durante os primeiros minutos, Honório não pensou nada; foi andando, an-dando, andando, até o Largo da Carioca. No Largo parou alguns instantes, – enfiou depois pela Rua da Carioca, mas voltou logo, e entrou na Rua Uru-guaiana. Sem saber como, achou-se daí a pouco no Largo de S. Francisco de Paula; e ainda, sem saber como, entrou em um Café. Pediu alguma cousa e encos-tou-se à parede, olhando para fora. Tinha medo de abrir a carteira; podia não achar nada, apenas papéis e sem valor para ele. Ao mesmo tempo, e esta era a causa principal das reflexões, a consciência perguntava-lhe se podia utilizar-se do dinheiro que achasse.Não lhe perguntava com o ar de quem não sabe, mas antes com uma ex-pressão irônica e de censura. Podia lançar mão do dinheiro, e ir pagar com ele a dívida? Eis o ponto. (ANEXO A, p. 119).
Resolução: “A consciência acabou por lhe dizer que não podia, que devia le-
var a carteira à polícia, ou anunciá-la (...)” (ANEXO A, p. 120).
Episódio 9: Escondido, Honório tira a carteira do bolso e abre-a com medo.
“Abriu-a e ficou trêmulo.” (ANEXO A, p. 120).
Apresentação: É a resolução do episódio 8
Conflito: “Chegavam mesmo a dizer-lhe que, se fosse ele que a tivesse perdi-
do, ninguém iria entregar-lha; insinuação que lhe deu ânimo. ” (ANEXO A, p. 120).
Resolução: Honório abre a carteira:
Tirou-a do bolso, finalmente, mas com medo, quase às escondidas; abriu-a, e ficou trêmulo. Tinha dinheiro, muito dinheiro; não contou, mas viu duas no-tas de duzentos mil-réis, algumas de cinqüenta e vinte; calculou uns sete-centos mil-réis ou mais; quando menos, seiscentos. Era a dívida paga; eram menos algumas despesas urgentes. Honório teve tentações de fechar os olhos, correr à cocheira, pagar, e, depois de paga a dívida, adeus; reconcili-ar-se-ia consigo. Fechou a carteira, e com medo de a perder, tornou a guar-dá-la. (ANEXO A, p. 120).
Episódio 10: Honório descobre o dono da carteira.
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Apresentação: O mesmo texto da resolução do episódio 9.
Conflito: A indecisão de Honório:
Mas daí a pouco tirou-a outra vez, e abriu-a, com vontade de contar o di-nheiro. Contar para quê? Era dele? Afinal venceu-se e contou: eram sete-centos e trinta mil-réis. Honório teve um calafrio. Ninguém viu, ninguém soube; podia ser um lance da fortuna, a sua boa sor-te, um anjo... Honório teve pena de não crer nos anjos... Mas por que não havia de crer neles? E voltava ao dinheiro, olhava, passa-va-o pelas mãos; depois, resolvia o contrário, não usar do achado, restituí-lo. Restituí-lo a quem? Tratou de ver se havia na carteira algum sinal. (ANEXO A, p. 120).
Resolução: Honório revista a carteira em busca de algum sinal do dono.
Episódio 11: Honório descobre que Gustavo, seu amigo, é o dono da Cartei-
ra.
Apresentação: “Esquadrinhou os bolsos da carteira.” (ANEXO A, p. 120).
Conflito:
Esquadrinhou os bolsos da carteira. Achou cartas, que não abriu, bilhetinhos dobrados, que não leu, e por fim um cartão de visita; leu o nome; era do Gustavo. Mas então, a carteira?... Examinou-a por fora, e pareceu-lhe efeti-vamente do amigo. Voltou ao interior; achou mais dois cartões, mais três, mais cinco. (ANEXO A, p. 120).
Resolução: Não havia dúvida, era dele.
Episódio 12: Honório decide devolver a carteira do amigo quando encontrá-lo.
Apresentação: A descoberta entristeceu-o.
Conflito:
Não podia ficar com o dinheiro, sem praticar um ato ilícito, e, naquele caso, doloroso ao seu coração porque era em dano de um amigo. Todo o castelo levantado esboroou-se como se fosse de cartas. Bebeu a última gota de café, sem reparar que estava frio. Saiu, e só então reparou que era quase noite. Caminhou para casa. Parece que a necessidade ainda lhe deu uns dois empurrões, mas ele resistiu. Paciência, disse ele consigo; verei amanhã o que posso fazer. (ANEXO A, p. 120).
Episódio 13: A preocupação de Gustavo e D. Amélia quando Honório chega
em casa para devolver a carteira ao amigo.
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Apresentação: “Chegando à casa, já ali achou o Gustavo, um pouco preocu-
pado e a própria D. Amélia o parecia também.” (ANEXO A, p. 121).
Conflito: De Gustavo:
Entrou rindo, e perguntou ao amigo se lhe faltava alguma cousa. – Nada. – Nada? – Por quê? – Mete a mão no bolso; não te falta nada? – Falta-me a carteira, disse o Gustavo sem meter a mão no bolso. – Sabes se alguém a achou? – Achei-a eu, disse Honório entregando-lha. (ANEXO A, p. 121).
Resolução: “Gustavo pegou dela precipitadamente, e olhou desconfiado para
o amigo. ” (ANEXO A, p. 121).
Episódio 14: A angústia de Honório pela atitude de Gustavo.
Apresentação: “Gustavo pegou dela precipitadamente, e olhou desconfiado
para o amigo. ” (ANEXO A, p. 121).
Conflito: “Esse olhar foi para Honório como um golpe de estilete; depois de
tanta luta com a necessidade, era um triste prêmio.” (ANEXO A, p. 121).
Resolução:
Sorriu amargamente; e, como o outro lhe perguntasse onde a achara, deu-lhe as explicações precisas. – Mas conheceste-a? – Não; achei os teus bilhetes de visita. Honório deu duas voltas, e foi mudar de toilette para o jantar. (ANEXO A, p. 121).
Episódio 15: A revelação do caso amoroso de D. Amélia com Gustavo que
traem, respectivamente, o esposo e o amigo.
Apresentação: “Honório deu duas voltas, e foi mudar de toilette para o
jantar. / Então Gustavo sacou novamente a carteira (...)” (ANEXO A, p. 121).
Conflito: “(...) abriu-a, foi a um dos bolsos, tirou um dos bilhetinhos, que o ou-
tro não quis abrir nem ler, e estendeu-o a D. Amélia (...)” (ANEXO A, p. 121).
Resolução: “D. Amélia, que, ansiosa e trêmula, rasgou-o em trinta mil peda-
ços: era um bilhetinho de amor.” (ANEXO A, p. 121).
60
O texto, linearmente, é organizado com o foco narrativo projetado sob Honó-
rio. Dessa forma, no percurso da leitura linear, para o leitor, é contada a história pelo
ponto de vista de Honório que privilegia um comportamento guiado pela honestida-
de: Não há espaço para trair, nem a mulher nem o amigo.
Apenas no último episódio é revelada a traição de Gustavo e D. Amélia para
o leitor. Honório continua a ignorá-la e apenas se aborrece por acreditar que Gusta-
vo o julgou desonesto.
3.2 - A ordenação temporal dos episódios segmentados no texto produto
A ordenação temporal dos episódios indica a presença de dois percursos nar-
rativos encadeados no tempo.
3.2.1 - Primeiro percurso narrativo: A vida de Honório e D. Amélia
Episódio 1: Apaixonam-se e casam-se.
Episódio 2: A vida difícil do casal, pois Honório é pobre e está no início de sua
carreira de advogado com poucas causas não podendo assim, levar a mulher para
se distrair.
Episódio 3: D. Amélia se aborrece por estar sempre fechada em casa a espe-
ra de Honório que vive trabalhando.
Episódio 4: Honório reencontra Gustavo, amigo de faculdade.
Episódio 5: Honório resolve oferecer uma vida social a fim de que D. Amélia
ficasse feliz. Passa a receber em casa, para jantares, várias pessoas entre elas
Gustavo. Honório passa a frequentar recepções, o que lhe exige gastos excessivos.
Episódio 6: Honório endivida-se e não consegue pagar os empréstimos feitos,
embora nunca conte nada a ninguém.
Episódio 7: O desespero de Honório por não ter dinheiro para pagar parte da
dívida e encontra uma carteira recheada de dinheiro.
61
Episódio 8: Honório conflitua-se em abrir a carteira por ser extremante hones-
to.
Episódio 9: Honório abre a carteira e conta o dinheiro que é suficiente para o
momento, mas não paga a dívida por que descobre que o dono é seu amigo Gusta -
vo. Sua extrema honestidade o impede de vasculhar os papéis dobrados que esta-
vam dentro da carteira. Ele decide devolver a carteira à Gustavo, pois ficar com ela
seria uma traição ao amigo.
Episódio 10: Honório devolve a carteira ao amigo que a recebe com ar preo-
cupado. Honório entende que Gustavo julgou-o desonesto, acreditando ter tirado di-
nheiro da carteira. Honório fica extremamente chocado e retira-se da sala de sua
casa onde estava a esposa e o amigo.
3.2.2 - Segundo percurso narrativo: O caso amoroso de Gustavo e D. Amélia
Episódio 1: Gustavo passa a frequentar a casa de Honório todos os dias e co-
meça a relacionar-se com D. Amélia, pois Honório está sempre fora, ou trabalhando
em seu escritório ou tentando administrar suas dívidas, propiciando o desenvolver
do caso amoroso entre Gustavo e D. Amélia.
Episódio 2: Por estarem sempre sozinhos na companhia um do outro, Gusta-
vo e D. Amélia apaixonam-se.
Episódio 3: D. Amélia passa a encontrar-se com Gustavo, marcando encon-
tros por bilhetes escritos ou trocando entre si bilhetes de amor.
O foco narrativo é dado no primeiro percurso.
3.2.3 - O encaixe do segundo percurso narrativo no primeiro
O segundo percurso narrativo começa a ser encaixado no:
• Episódio 4, onde ocorrem as expressões linguísticas:
62
Quando o Gustavo, que ia todas as noites à casa dele , dizia uma ou duas pi-lhérias, ele respondia com três e quatro; e depois ia ouvir os trechos de mú-sica alemã, que D. Amélia tocava muito bem ao piano, e que o Gustavo es-cutava com indizível prazer. (ANEXO A, p. 119, grifo nosso).
Esse encaixe é realizado também no:
• Episódio 13, onde ocorrem as seguintes expressões linguísticas “(...) já ali
achou o Gustavo, um pouco preocupado e a própria D. Amélia o parecia
também.” (ANEXO A, p. 121, grifo nosso).
Apenas no último episódio é revelada a traição da mulher e do amigo.
Em síntese, o encaixe dos episódios é uma estratégia de construção do sus-
pense que na sua globalidade compreende o enigma e a revelação. Esse encaixe,
seguido do cancelamento e inversão de certos episódios constroem o texto verbal,
cuja linearidade implica a alinearidade da história contada por episódios: O caso
amoroso de Gustavo e D. Amélia e a revelação desse enigma pela devolução do bi-
lhete amoroso de D. Amélia.
3.3 - O exame da referenciação do texto narrativo relativa aos personagens, a partir das modalidades ser x parecer: manutenção e modificação de papéis sociais
Como já foi indicado, o leitor percorre o texto conforme este progride semanti-
camente o foco narrativo sobre Honório.
Nesse sentido, o leitor modaliza os personagens tal qual Honório o faz na
progressão do texto. Ambos, Honório e o leitor, desconhecem o segundo percurso
narrativo que é modalizado pela verdade. Esta só é revelada para resolução do
enigma.
Assim, o segundo percurso narrativo é modalizado no texto, da seguinte for-
ma:
63
3.3.1 - Segundo percurso narrativo (modalidades): O caso amoroso de Gustavo e D. Amélia
Episódio 1: Gustavo passa a frequentar a casa de Honório todos os dias e co-
meça a relacionar-se com D. Amélia, pois Honório está sempre fora, ou trabalhando
em seu escritório ou tentando administrar suas dívidas, propiciando o desenvolver
do caso amoroso entre Gustavo e D. Amélia.
• Gustavo e D. Amélia::
➢ São + parecem ser aqueles que mantém um relacionamento amoroso
= verdade revelada para o leitor.
Episódio 2: Por estarem sempre sozinhos na companhia um do outro, Gusta-
vo e D. Amélia apaixonam-se.
• D. Amélia e Gustavo:
➢ São + parecem ser aqueles que traem Honório
= verdade revelada para o leitor.
Episódio 3: D. Amélia passa a encontrar-se com Gustavo, marcando encon-
tros por bilhetes escritos ou trocando entre si bilhetes de amor.
• D. Amélia:
➢ Não é + não parece ser a esposa fiel e apaixonada
= verdade revelada para o leitor.
• Gustavo:
➢ Não é + não parece ser o amigo dedicado a Honório
= verdade revelada para o leitor.
Honório desconhece essas verdades reveladas, no final, para o leitor.
3.3.2 - Primeiro percurso narrativo (modalidades): A vida de Honório e D. Amélia
Nesse percurso narrativo temos a história contada de Honório e D. Amélia e
mais tarde a presença do amigo Gustavo.
64
Episódio 1: Apaixonam-se e casam-se
• Honório e D. Amélia:
➢ São + parecem ser um casal apaixonado
= verdade tanto para Honório e D. Amélia quanto para o leitor.
Episódio 2: A vida difícil do casal, pois Honório é pobre e está no início de sua
carreira de advogado com poucas causas não podendo assim, levar a mulher para
se distrair.
• Honório e D. Amélia:
➢ São + parecem ser um casal que tem uma vida financeira difícil
= verdade tanto para Honório e D. Amélia quanto para o leitor.
Episódio 3: D. Amélia se aborrece por estar sempre fechada em casa a espe-
ra de Honório que vive trabalhando.
• D. Amélia:
➢ É + parece ser quem se aborrece com a vida humilde, sempre a es-
pera do marido
= verdade para Honório, D. Amélia e para o leitor.
Episódio 4: Honório reencontra Gustavo, amigo de faculdade.
• Honório e Gustavo:
➢ São + parecem ser dois amigos que reencontram-se após terem saí-
do do curso de direito
= verdade para Honório, Gustavo e o leitor.
Episódio 5: Honório resolve oferecer uma vida social a fim de que D. Amélia
ficasse feliz. Passa a receber em casa, para jantares, várias pessoas entre elas
Gustavo. Honório passa a frequentar recepções, o que lhe exige gastos excessivos.
• Honório:
➢ É + parece ser quem faz dívidas para oferecer uma vida social que
possa causar felicidade à D. Amélia e endivida-se
= verdade para Honório e para o leitor.
• D. Amélia:
65
➢ É + parece ser quem se alegra com a atitude de Honório
= verdade para Honório, D. Amélia e o leitor.
Episódio 6: Honório endivida-se e não consegue pagar os empréstimos feitos,
embora nunca conte nada a ninguém.
• Honório:
➢ É + parece ser quem está endividado e desesperado por não conse-
guir pagar a dívida
= verdade para Honório e para o leitor.
• Honório:
➢ Não é + parece ser quem não tem dívidas
= mentira para Gustavo e D. Amélia.
Episódio 7: O desespero de Honório por não ter dinheiro para pagar parte da
dívida e encontra uma carteira recheada de dinheiro.
• Honório:
➢ É + parece ser o homem honesto que está desesperado por não con-
seguir pagar a dívida e encontra uma carteira recheada de dinheiro
= verdade para Honório e para o leitor.
Episódio 8: Honório conflitua-se em abrir a carteira por ser extremante hones-
to.
• Honório:
➢ É + parece ser extremamente honesto
= verdade para Honório e o leitor.
Episódio 9: Honório abre a carteira e conta o dinheiro que é suficiente para o
momento, mas não paga a dívida por que descobre que o dono é seu amigo Gusta -
vo. Sua extrema honestidade o impede de vasculhar os papéis dobrados que esta-
vam dentro da carteira. Ele decide devolver a carteira à Gustavo, pois ficar com ela
seria uma traição ao amigo.
• Honório:
66
➢ É + parece ser extremante honesto por contar o dinheiro, não vascu-
lhar os papéis dobrados, descobrir que Gustavo é o dono da carteira
e decidir devolvê-la para não trair o amigo
= verdade para Honório e o leitor.
Episódio 10: Honório devolve a carteira ao amigo que a recebe com ar preo-
cupado. Honório entende que Gustavo julgou-o desonesto, acreditando ter tirado di-
nheiro da carteira. Honório fica extremamente chocado e retira-se da sala de sua
casa onde estava a esposa e o amigo.
• Honório:
➢ É + parece ser honesto
= verdade para Honório e o leitor
• Honório:
➢ Não é + parece ser desonesto para Gustavo
= mentira para Gustavo conforme a representação dele feita por Ho-
nório.
• Gustavo e D. Amélia:
➢ São + parecem ser quem traem Honório
= verdade para D. Amélia e Gustavo.
• Gustavo e D. Amélia:
➢ Não são + parecem ser aqueles que são fiéis a Honório
= mentira para Honório e o leitor.
3.3.3 - O encaixe do segundo percurso narrativo no primeiro (modalidades)
Ao encaixar o segundo percurso narrativo no primeiro, ocorrem as seguintes
modalizações, após a verdade revelada, com a resolução do enigma.
O enigma é estrategicamente construído pelo encaixe do segundo percurso
narrativo no primeiro:
Episódio 1: Gustavo passa a frequentar a casa de Honório todos os dias e co-
meça a se relacionar com D. Amélia, pois Honório está sempre fora, ou trabalhando
67
em seu escritório ou tentando administrar suas dívidas, propiciando o desenvolver
do caso amoroso entre Gustavo e D. Amélia.
• Gustavo:
➢ Não é + parece ser amigo fiel de Honório
= mentira para Honório e para o leitor.
• Gustavo:
➢ É + não parece ser quem se apaixona por D. Amélia
= mistério para Honório e o leitor.
Episódio 2: Por estarem sempre sozinhos na companhia um do outro, Gusta-
vo e D. Amélia apaixonam-se.
• Gustavo:
➢ Não é + parece ser amigo fiel de Honório
= mentira para Honório.
• Gustavo:
➢ É + não parece ser quem está tendo um caso amoroso com D. Amé-
lia
= mistério para Honório e para o leitor.
Episódio 3: D. Amélia passa a encontrar-se com Gustavo, marcando encon-
tros por bilhetes escritos ou trocando entre si bilhetes de amor.
• Gustavo e D. Amélia:
➢ São + parecem ser aqueles que estão preocupados com algo
= verdade para D. Amélia, Gustavo, Honório e o Leitor.
• Gustavo:
➢ É + parece ser quem está preocupado com a perda da Carteira
= verdade para Gustavo, D. Amélia e para o leitor.
• Gustavo:
➢ Não é + parece ser, para Honório, quem está preocupado por faltar
dinheiro na carteira devolvida
= mentira para Honório
68
• Gustavo e D. Amélia:
➢ São + não parecem ser aqueles que estão preocupados por Honório
ter descoberto o caso amoroso entre eles
= mistério para Honório e para o leitor.
Com o segundo percurso narrativo, as mentiras e os mistérios que constroem
o enigma são revelados para o leitor, ficando Honório na ignorância desses fatos.
3.3.4 - Papéis Representados
Honório, tanto no primeiro percurso narrativo quanto no segundo, representa
o papel de homem honesto, fiel ao amigo e a esposa, desesperado por querer pagar
uma dívida gigantesca.
D. Amélia, durante o primeiro percurso narrativo, é representa pelo leitor
como uma mulher fiel ao marido, embora necessitando de uma vida social intensa
para ser feliz. Quando a mentira e o mistério são revelados, D. Amélia é representa-
da como desonesta, por trair o marido e exigir dele uma vida social intensa, sempre
acompanhada do amante.
Gustavo, durante o primeiro percurso narrativo, é representado como hones-
to, preocupado com o bem estar do amigo e de sua esposa, buscando sempre estar
junto a eles. Quando a mentira e o mistério são revelados, Gustavo passa a repre-
sentar o papel de desonesto, que trai o amigo e abusa de sua confiança, conquis-
tando a sua esposa e mantendo com ela um caso amoroso.
3.4 - A análise do suspense, situado como clímax
A construção textual do clímax em histórias de suspense compreende:
69
3.4.1 - No que se refere à enunciação textual
Cada episódio é construído com a regra da causalidade: Tempo 1 (causa);
Tempo 2 (consequência)
Por exemplo:
• O texto produto em sua linearidade apresenta uma sequência de:
➢ mentira + enigma.
Durante o primeiro percurso narrativo, onde é dado o foco narrativo, ocorre a
estratégia do encaixe do segundo percurso narrativo no primeiro.
Devido a esse encaixe, ocorre uma ruptura no encadeamento semântico dos
episódios, que é construído pela regra da causalidade:
• Tempo 1: causa;
• Tempo 2: consequência.
Seguindo a regra da causalidade, cada episódio é construído com causa se-
guida de consequência, na cronologia temporal.
Por exemplo:
• Episódio 1: A história de Honório e D. Amélia.
➢ Tempo 1 (causa): Honório e D. Amélia se apaixonam;
➢ Tempo 2 (consequência): Honório e D. Amélia se casam.
• Episódio 2: A vida conjugal de Honório e D. Amélia.
➢ Tempo 1 (causa): D. Amélia casada com Honório, homem de origem
humilde, no início da carreira com poucas causas e que precisa traba-
lhar muito;
➢ Tempo 2 (consequência): O aborrecimento de D. Amélia por estar
sempre sozinha em casa.
Cada episódio é sequenciado com o outro, seguindo também, a regra da cau-
salidade.
Por exemplo:
70
• Episódio 2 (causa): A vida difícil do casal, pois Honório é pobre e está no
início de sua carreira de advogado com poucas causas não podendo as-
sim, levar a mulher para se distrair.
➢ Tempo 1 (causa): Honório é de origem humilde e está no início da
carreira;
➢ Tempo 2 (consequência): Honório está sempre trabalhando não le-
vando a mulher para se distrair fora de casa.
• Episódio 3 (consequência): D. Amélia se aborrece por estar sempre fe-
chada em casa a espera de Honório que vive trabalhando.
➢ Tempo 1 (causa): Ele está sempre fora trabalhando;
➢ Tempo 2 (consequência): D. Amélia se aborrece por estar sempre só
e fechada em casa.
• Episódio 4 (causa): Honório reencontra Gustavo, amigo de faculdade.
➢ Tempo 1 (causa): Honório está sempre fora trabalhando;
➢ Tempo 2 (consequência): O encontro de Honório com Gustavo, que
também é advogado.
• Episódio 5 (consequência): Honório resolve oferecer uma vida social a fim
de que D. Amélia ficasse feliz. Passa a receber em casa, para jantares,
várias pessoas entre elas Gustavo. Honório passa a frequentar recep-
ções, o que lhe exige gastos excessivos.
➢ Tempo 1 ( causa): Honório resolve oferecer uma vida social a fim de
que D. Amélia ficasse feliz.
➢ Tempo 2 (consequência): Passa a receber em casa, para jantares,
várias pessoas entre elas Gustavo. Honório passa a frequentar recep-
ções, o que lhe exige gastos excessivos.
O Episódio 5 é consequência do Episódio 4 e causa do Episódio 6, o endivi-
damento de Honório.
O encadeamento de causa e consequência em cada enunciado e o encadea-
mento de causa e consequência na sequência dos episódios, constroem a narrativa
tradicional.
71
3.4.2 - No que se refere à referenciação
O encadeamento de causa e consequência no mesmo episódio e nos episó-
dios sequenciados constrói, no contexto cognitivo do leitor, uma expectativa de que
este sequenciamento continuará.
Todavia, o autor aplica uma estratégia de ruptura que, ostensivamente, cons-
trói uma relevância para o leitor. O efeito dessa estratégia ocorre no encadeamento
do segundo percurso narrativo com o primeiro percurso narrativo.
Por exemplo:
• (causa) Honório ter convidado Gustavo;
• (consequência) Gustavo ir a jantares na casa de Honório, todos os dias.
Ruptura com a regra da causalidade:
• (causa) Gustavo frequentar diariamente a casa de Honório quando o ami-
go está ausente;
• (consequência) Honório chegar em casa e encontrar Gustavo ouvindo D.
Amélia ao piano com indizível prazer.
Na sequência dos episódios também há ruptura que constrói uma relevância:
• Um Episódio: Gustavo enebriado escutando a música que D. Amélia toca
ao piano.
➢ Tempo 1 (causa): Honório está fora de casa;
➢ Tempo 2 (consequência) Honório encontra Gustavo enebriado ouvin-
do D. Amélia tocar piano.
• Outro episódio
➢ Tempo 1 (causa): Honório está fora de casa;
➢ Tempo 2 (consequência): Honório chega em casa e encontra D. Amé-
lia e Gustavo sem ação e preocupados.
Essas rupturas causam estranhamento ao leitor porque são relevantes para o
seu contexto cognitivo, que já construiu um cálculo de significações, de forma a obri -
gá-lo a uma reformulação, pois surge a questão: POR QUÊ?.
72
3.4.3 - No que se refere ao clímax
O binômio enigma-revelação compreende o clímax do suspense.
O enigma é construído pela ruptura com a regra de causalidade do primeiro
percurso narrativo, pois o segundo percurso narrativo encaixou-se no primeiro.
Com essa estratégia de encaixe, constrói-se o enigma pelas relevâncias.
Esta, na revelação, torna-se mentira e o mistério causado pela modalidade ser +
não parecer também é revelado. A revelação compreende a mudança de papéis do
primeiro para o segundo percurso narrativo, embora onde é dado o foco narrativo o
papel se mantenha.
No texto analisado o encaixe do segundo percurso narrativo no primeiro cons-
trói uma ostensividade.
Por exemplo:
• Todos os dias quando Honório chega em casa encontra D. Amélia tocan-
do piano e o amigo escutando com indizível prazer.
• No dia em que Honório vai devolver a carteira para Gustavo, chega em
casa e encontra D. Amélia e Gustavo sem ação,
Para o leitor, ocorre uma ostensividade que rompe com o seu cálculo de sig-
nificações.
Assim, ele se pergunta: POR QUE?
O enigma é construído por esta primeira pergunta e por uma outra segunda
pergunta:
• Se Gustavo estava preocupado com a perda do dinheiro contido na car-
teira, por que ele não conta o dinheiro e apenas abre os papéis
dobrados?
A revelação é:
• A devolução do bilhete amoroso para D. Amélia.
73
Nesse momento, o leitor reformula o seu contexto cognitivo e o cálculo de sig-
nificações anteriormente feito. Dessa forma, cada encaixe do segundo percurso nar-
rativo no primeiro é modificado em:
• verdade > mentira.
Por exemplo:
• D. Amélia e Gustavo:
➢ São + parecem ser fiéis a Honório
> Não são + parecem ser fiéis a Honório
= mentira.
Com a revelação ocorre a reformulação no cálculo de significações do leitor
de forma a tornar a verdade em mistério e; e após o mistério em verdade.
Por exemplo:
• D. Amélia e Gustavo:
➢ São + parecem ser, respectivamente, esposa amorosa e fiel e amigo
dedicado e fiel
= verdade
• D. Amélia e Gustavo:
➢ São + não parecem ser amantes
= mistério
• D. Amélia e Gustavo:
➢ São + parecem ser amantes
= verdade revelada.
3.5 - Resultados obtidos
Os resultados obtidos das análises indicam que:
74
3.5.1 - Na segmentação do texto integral por episódios
Há uma estratégia de focalização aplicada no primeiro percurso narrativo, de
forma a guiar o leitor a construir sentidos da mesma forma que o personagem focali -
zado. No texto analisado, a focalização é dada em Honório. A partir dele Machado
de Assis conta uma história inédita para o leitor, relativa a honestidade de Honório
em suas relações profissionais, econômicas, amorosa e de amizade.
Para a progressão semântica do texto produto verbal, o autor aplica uma es-
tratégia de cancelamento e de inversão dos episódios na linearidade verbal.
Por exemplo, na inversão:
• Honório sempre quer ser honesto e por essa razão choca-se quando o
amigo “olhou desconfiado” (ANEXO A, p. 121) para Honório, como uma
avaliação dele que atribui a Honório a desonestidade. Honório desconhe-
ce a traição durante toda a história.
Por exemplo, no cancelamento:
• No texto verbal está cancelado o episódio do namoro e casamento de Ho-
nório com D. Amélia, assim como Honório cursando direito com Gustavo.
3.5.2 - Na ordenação temporal dos episódios segmentados
A análise das ações por temporalidade indica uma atemporalidade pois há
uma estratégia de duplicação dos percursos narrativos.
O primeiro percurso narrativo focalizado, segue o contar da história a partir do
saber de Honório.
O segundo percurso narrativo só é explicitado pelo leitor a partir da revelação.
O encaixe do segundo percurso narrativo no primeiro causa o estranhamento do lei-
tor que, curioso, fica atento à leitura em busca de uma solução.
Por exemplo:
• O amigo que frequenta a casa de Honório quando há festas e jantares.
75
De repente, o texto expressa, em língua, que Gustavo frequenta diariamente
a casa, estando com D. Amélia, enquanto o amigo está fora trabalhando ou tentan-
do administrar sua dívida.
3.5.3 - Na análise da referenciação
A análise indica que o autor aplica uma estratégia de criar uma ostensividade
no cálculo de significações do leitor, em seu contexto cognitivo, dessa forma obriga-
o a uma inferência ostensiva.
A relevância ocorre no encaixe do segundo percurso narrativo com o primei-
ro. O estranhamento causado ao leitor o leva a uma pergunta: POR QUÊ?
A pergunta ocorre quando a regra da causalidade é rompida na sequenciação
de tempos em um mesmo episódio ou na sequenciação temporal de episódio com
episódio.
Por exemplo:
• Se Gustavo frequenta a casa de Honório durante as festas e jantares, por
que todos os dias, está na casa do amigo, com D. Amélia, quando ele
está fora?
3.5.4 - Na construção textual do suspense em seu clímax
Os resultados obtidos das análises indicam que o suspense é construído por:
Enigma + revelação, no clímax da história.
Por exemplo:
• Enigma:
➢ Gustavo espera Honório sair da sala. Em vez de conferir o dinheiro
contido na carteira, já que desconfia de Honório, abre os papéis do-
brados.
• Revelação:
76
➢ Um dos papéis dobrados era um bilhete amoroso de D. Amélia, Gus-
tavo devolve a ela que o rasga imediatamente.
O clímax do suspense, portanto, é construído pela relação Enigma + Revela-
ção que responde a(as) pergunta(as) feitas pelo leitor.
3.6 - Discussão dos resultados
3.6.1 - Na segmentação do texto integral por episódios
As estratégias de cancelamento e inversão de episódios para a construção da
linearidade verbal coincidem com a distinção feita por Foster (1937), entre history e
plot, a história compreende a sequência de eventos temporalmente ordenados que
suscitam no leitor/ouvinte o querer saber o que vai acontecer, manifestando interro-
gações, como e depois, e então?. O plot confere ênfase à relação causal entre os
episódios narrados, propiciando a progressão semântica da história contada pelo
autor.
O cancelamento e a inversão de episódios podem ser recuperados devido ao
plot. Nesse sentido, o texto analisado é uma narrativa de história.
3.6.2 - Na ordenação temporal dos episódios segmentados
A estratégia de construção de dois percursos narrativos, sendo um conhecido
do leitor e o outro desconhecido, confere com Mesquita (1986). Este autor trata da
construção do enredo a partir de sequências, embora, nas análises realizadas, estas
tenham sido tratadas como percursos narrativos por parecer mais adequado no tra -
tamento do suspense. Segundo o autor, a construção da matéria narrada é feita por
sequências, ou seja, em unidades sintagmáticas mais ou menos autônomas de sen-
tidos. As sequências podem ser macro, quando ocorre a reunião de várias sequênci-
as, e microssequências. Cada sequência pode, ainda, compreender microssequên-
cias que são encaixadas em uma sequência.
77
Nos resultados obtidos, verificou-se a existência de duas macrossequências,
designadas nas análises, do primeiro e segundo percurso narrativo.
A organização textual mantém implícito o segundo percurso narrativo e explí-
cito o primeiro.
O segundo percurso narrativo é encaixado no primeiro por microssequência
como, por exemplo:
• Gustavo e D. Amélia preocupados quando Honório entra na sala.
3.6.3 - Na análise da referenciação
Os resultados obtidos da referenciação coincidem com Koch, Morato e Ben-
tes (2005). A referenciação é construída na coesão do texto produto a partir de ele-
mentos lexicais que são formas remissivas referenciais. Nesse sentido o referente
não está fora do texto, ele é construído referencialmente no próprio texto verbal.
Sendo assim, o valor de verdade/falsidade não se refere ao que existe no
mundo e sim ao dito, que constrói a história contada.
O suspense é construído na referenciação do texto, a partir de encadeamen-
tos do segundo percurso narrativo com o primeiro que só será revelado como menti -
ra, para o leitor, no momento da revelação do enigma do suspense.
A estratégia de modalizar a representação dos personagens pelo ser + pare-
cer é uma estratégia de construção do suspense. Esse resultado confere com Vig-
noli (1990), o que propicia classificar o conto de Machado de Assis analisado, como
suspense total:
• verdade > mentira;
• verdade > mistério;
• mentira + mistério > revelação.
Devido à essa modalização, ocorre, ou a manutenção do papel representado
pelo personagem no foco narrativo; ou a mudança de papéis, devido à revelação.
Esse resultado confere com Moscovici e Duveen (2007), que tratam das rela-
ções sociais entre os homens pela representação social de um conjunto de papéis.
78
Estes podem se referir às representações de si mesmo no discurso ou das repre-
sentações das pessoas enquanto papéis inter-relacionadas textualmente. Para o au-
tor, a interação discursiva EU-TU decorre dos papéis selecionados pelo EU para se-
rem representados para o TU; e, ainda, da narrativa contada pelo autor, quais pa-
péis sociais os personagens representam.
Como o leitor conhece esses papéis, este começa a construir sentidos pelo
sistema de valores e ideias contidos em cada papel. Assim, estabelece uma ordem
social que possibilita que o leitor seja guiado durante a leitura. Como, por exemplo:
• D. Amélia - fiel; Gustavo - amigo; Honório - honesto.
São as ações de Gustavo e D. Amélia, reveladas ao leitor, que propiciam que
este reconheça o outro papel representado por D. Amélia e Gustavo, na traição.
3.6.4 - Na construção textual do suspense em seu clímax
Os resultados obtidos da construção textual do suspense (enigma + revela-
ção) em seu clímax coincidem com as modalidade veredictórias de Greimas (1976),
que trata de ser + parecer pelo jogo da negação e afirmação.
Em síntese, os resultados obtidos propiciaram a caracterização das seguintes
estratégias textuais aplicadas pelo autor da história de suspense:
• estratégia de cancelamento de episódio no texto produto verbal;
• estratégia de inversão temporal de episódios, de forma a construir a linea-
ridade no texto produto verbal;
• estratégia de focalização no percurso narrativo explícito;
• estratégia de construção de um percurso narrativo que se mantém implíci-
to até a revelação;
• estratégia de encadeamento por microssequências do segundo percurso
narrativo no primeiro;
• estratégia de construção da referenciação por ruptura com a regra de
causalidade;
79
• estratégia de construção de relevâncias, pelo encadeamento de um epi-
sódio do segundo percurso narrativo em um episódio do primeiro percur-
so, de forma a causar estranhamento no leitor, obrigando-o a fazer uma
inferência ostensiva que reformula seu cálculo de significações, de forma
ao alterar o seu modelo de situação para a leitura (cf. KINTSCH; VAN
DIJK, 1983);
• estratégia de manutenção e mudança de papéis representados pelos per-
sonagens da história;
• estratégia de construção do enigma e revelação.
80
4 - UM OUTRO OLHAR PARA AS HISTÓRIAS DE SUSPENSE - ANÁLISE E RESULTADOS OBTIDOS DO TEXTO LITERÁRIO DE LYGIA FAGUNDES TELLES, COM O CONTO “VENHA VER O PÔR-DO-SOL”
Este capítulo contém as análises e resultados obtidos do texto literário de Ly-
gia Fagundes Telles, “Venha ver o pôr-do-sol” de 1975 (TELLES, 1996) – suspense
e crime passional. O texto analisado é classificado literariamente como um conto.
Os resultados apresentados, também são discutidos com autores indicados no capí-
tulo 1 e 2.
As análises e resultados obtidos são apresentados e organizados pelas qua-
tro categorias analíticas:
I. A segmentação do texto integral por episódios;
II. A ordenação temporal dos episódios segmentados;
III. O exame da referenciação do texto relativa aos personagens, a partir das
modalidades ser x parecer: manutenção e modificação de papéis sociais.
IV. A análise do suspense, situado como clímax.
4.1 - Segmentação dos episódios narrativos, seguindo a linearidade do texto
Episódio 1: O reencontro de Raquel e Ricardo, com o estranhamento de Ra-
quel pelo local escolhido.
Apresentação:
Ela subiu sem pressa a tortuosa ladeira. À medida que avançava, as casas iam rareando, modestas casas espalhadas sem simetria e ilhadas em terre-nos baldios. No meio da rua sem calçamento, coberta aqui e ali por um mato rasteiro, algumas crianças brincavam de roda. A débil cantiga infantil era a única nota viva na quietude da tarde.Ele a esperava encostado a uma árvore. Esguio e magro, medido num largo blusão azul-marinho, cabelos crescidos e desalinhados, tinha um jeito jovial de estudante.– Minha querida Raquel. (ANEXO B, p. 122)
81
Conflito: Raquel não gosta do lugar escolhido por Ricardo para o reencontro.
Ela encarou-o, séria. E olhou para os próprios sapatos.– Veja que lama. Só mesmo você inventaria um encontro num lugar destes. Que idéia, Ricardo, que idéia! Tive que descer do táxi lá longe, jamais ele chegaria aqui em cima. Ele riu entre malicioso e ingênuo.– Jamais? Pensei que viesse vestida esportivamente e agora me aparece nessa elegância! Quando você andava comigo, usava uns sapatões de sete léguas, lembra?– Foi para me dizer isso que você me fez subir até aqui? – perguntou ela, guardando as luvas na bolsa. Tirou um cigarro. – Hein?! (ANEXO B, p. 122)
Resolução: “– Ah, Raquel... – e ele tomou-a pelo braço. Você, está uma coisa
de linda. E fuma agora uns cigarrinhos pilantras, azul e dourado... Juro que eu tinha
que ver ainda uma vez toda essa beleza, sentir esse perfume. Então? Fiz mal?”
(ANEXO B, p. 122)
Episódio 2: Ricardo tenta convencer Raquel a entrar no cemitério abandona-
do.
Apresentação:
Ele voltou-se para o velho muro arruinado. Indicou com o olhar o portão de ferro, carcomido pela ferrugem.– Cemitério abandonado, meu anjo. Vivos e mortos, desertaram todos. Nem os fantasmas sobraram, olha aí como as criancinhas brincam sem medo acrescentou apontando as crianças na sua ciranda. Ela tragou lentamente. Soprou a fumaça na cara do companheiro.– Ricardo e suas idéias. E agora? Qual o programa?Brandamente a pegou pela cintura.– Conheço bem tudo isso, minha gente está, enterrada aí. Vamos entrar um instante e te mostrarei o pôr-do-sol mais lindo do mundo. (ANEXO B, p. 123)
Conflito:
– Ver o pôr-do-sol!... Ali, meu Deus... Fabuloso, fabuloso!... Me implora um último encontro, me atormenta dias seguidos, me faz vir de longe para esta buraqueira, só mais uma vez, só mais uma! E para quê? Para ver o pôr-do-sol num cemitério... (ANEXO B, p. 123)
Resolução: Ricardo a convence com seu jeito jovial: “Ele riu também, afetan-
do encabulamento como um menino pilhado em falta.” (ANEXO B, p. 123)
Episódio 3: Justificativa de Ricardo por ter marcado um encontro num cemité-
rio abandonado.
82
Apresentação:
– Raquel, minha querida, não faça assim comigo. Você sabe que eu gostaria era de te levar ao meu apartamento, mas fiquei mais pobre ainda, como se isso fosse possível. Moro agora numa pensão horrenda, a dona é uma me-dusa que vive espiando pelo buraco da fechadura. (ANEXO B, p. 123)
Conflito: A indignação de Raquel por Ricardo pensar que eles pudessem
manter uma relação amorosa: “– E você acha que eu iria?” (ANEXO B, p. 123)
Resolução:
– Não se zangue, sei que não iria, você está sendo fidelíssima. Então pen-sei, se pudéssemos conversar um pouco numa rua afastada... – disse ele, aproximando-se mais. Acariciou-lhe o braço com as pontas dos dedos. Fi-cou sério. E aos poucos, inúmeras rugazinhas foram-se formando em redor dos seus olhos ligeiramente apertados. Os leques de rugas se aprofunda-ram numa expressão astuta. Não era nesse instante tão jovem como apa-rentava. Mas logo sorriu e a rede de rugas desapareceu sem deixar vestígio.Voltou-lhe novamente o ar inexperiente e meio desatento. – Você fez bem em vir. (ANEXO B, p. 123)
Episódio 4: Descontentamento de Raquel pelo local escolhido por Ricardo.
Apresentação: “– Quer dizer que o programa… E não podíamos tomar algu-
ma coisa num bar?” (ANEXO B, p. 124)
Conflito: “– Estou sem dinheiro, meu anjo, vê se entende.” (ANEXO B, p. 124)
Resolução:
– Mas eu pago.– Com o dinheiro dele?. Prefiro beber formicida. Escolhi este passeio porque é de graça e muito decente, não pode haver um passeio mais decente, não concorda comigo? Até romântico. (ANEXO B, p. 124)
Episódio 5: Ricardo insiste em justificar a escolha do local.
Apresentação: “Ela olhou em redor. Puxou o braço que ele apertava.” (ANE-
XO B, p. 124).
Conflito: Raquel não quer que o marido descubra seu relacionamento com Ri-
cardo: “– Foi um risco enorme, Ricardo. Ele é ciumentíssimo. Está farto de saber
que tive meus casos. Se nos pilha juntos, então sim, quero só ver se alguma das
suas fabulosas idéias vai me consertar a vida” (ANEXO B, p. 124).
83
Resolução: Ricardo insiste na justificativa:
– Mas me lembrei deste lugar justamente porque não quero que você se ar-risque, meu anjo. Não tem lugar mais discreto do que um cemitério abando-nado, veja, completamente abandonado – prosseguiu ele, abrindo o portão. Os velhos gonzos gemeram. – Jamais seu amigo ou um amigo de seu ami-go saberá que estivemos aqui. (ANEXO B, p. 124)
Episódio 6: Ricardo convence Raquel a entrar no cemitério.
Apresentação: O medo de Raquel antes de entrar no cemitério: “– É um risco
enorme, já disse. Não insista nessas brincadeiras, por favor.” (ANEXO B, p. 124).
Conflito: Raquel demonstra medo pelo local e não quer entrar:
– E se vem um enterro? Não suporto enterros.– Mas enterro de quem? Raquel, Raquel, quantas vezes preciso repetir a mesma coisa?! Há séculos ninguém mais é enterrado aqui, acho que nem os ossos sobraram, que bobagem. Vem comigo, pode me dar o braço, não tenha medo.O mato rasteiro dominava tudo. E não satisfeito de ter-se alastrado furioso pelos canteiros, subira pelas sepulturas, infiltrara-se ávido pelos rachões dos mármores, invadira as alamedas de pedregulhos esverdinhados, como se quisesse com sua violenta força de vida cobrir para sempre os últimos vestí-gios da morte. Foram andando pela longa alameda banhada de sol. (ANEXO B, p. 124)
Resolução: Ricardo seduz Raquel a entrar:
Os passos de ambos ressoavam sonoros como uma estranha música feita do som das folhas secas trituradas sobre os pedregulhos. Amuada mas obe-diente, ela se deixava conduzir como uma criança. Às vezes mostrava certa curiosidade por uma ou outra sepultura com os pálidos, medalhões de retra-tos esmaltados. (ANEXO B, p. 124)
Episódio 7: Embora relute, os argumentos de Ricardo convencem Raquel.
Apresentação: “– É imenso, hein? E tão miserável, nunca vi um cemitério
mais miserável, que deprimente – exclamou ela, atirando a ponta do cigarro na dire-
ção de um anjinho de cabeça decepada. – Vamos embora, Ricardo, chega.” (ANE-
XO B, p. 125).
Conflito:
84
– Ali, Raquel, olha um pouco para esta tarde! Deprimente por quê? Não sei onde foi que eu li, a beleza não está nem na luz da manhã nem na sombra da noite, está no crepúsculo, nesse meio-tom, nessa ambigüidade. Estou-lhe dando um crepúsculo numa bandeja, e você se queixa.– Não gosto de cemitério, já disse. E ainda mais cemitério pobre.Delicadamente ele beijou-lhe a mão.– Você prometeu dar um fim de tarde a este seu escravo. (ANEXO B, p. 125)
Resolução: Raquel decide voltar. “– É, mas fiz mal. Pode ser muito engraça-
do, mas não quero me arriscar mais.” (ANEXO B, p. 125).
Episódio 8: O casamento de Raquel com um homem rico.
Apresentação: “– Ele é tão rico assim? / – Riquíssimo. Vai me levar agora
numa viagem fabulosa até o oriente. Já ouviu falar no Oriente? Vamos até o oriente,
meu caro...” (ANEXO B, p. 125).
Conflito: A perturbação de Ricardo: “Ele apanhou um pedregulho e fechou-o
na mão. A pequenina rede de rugas voltou a se estender em redor dos seus olhos.
A fisionomia, tão aberta e lisa, repentinamente escureceu, envelhecida.” (ANEXO B,
p. 125).
Resolução: “Mas logo o sorriso reapareceu e as rugazinhas sumiram.” (ANE-
XO B, p. 125).
Episódio 9: O relacionamento de Ricardo e Raquel no passado.
Apresentação: “– Eu também te levei um dia para passear de barco, lembra?
Recostando a cabeça no ombro do homem, ela retardou o passo.” (ANEXO B, p.
125).
Conflito:
– Sabe, Ricardo, acho que você é mesmo meio tantã... Mas apesar de tudo, tenho às vezes saudade daquele tempo. Que ano aquele! Quando penso, não entendo como agüentei tanto, imagine, um ano! – É que você tinha lido A Dama das Camélias, ficou assim toda frágil, toda sentimental. E agora? Que romance você está lendo agora?– Nenhum – respondeu ela, franzindo os lábios. Deteve-se para ler a inscri-ção de uma laje despedaçada: minha querida esposa, eternas saudades – leu em voz baixa. – Pois sim. Durou pouco essa eternidade. (ANEXO B, p. 125).
Resolução:
85
Ele atirou o pedregulho num canteiro ressequido.– Mas é esse abandono na morte que faz o encanto disto. Não se encontra mais a menor intervenção dos vivos, a estúpida intervenção dos vivos. Veja – disse apontando uma sepultura fendida, a erva daninha brotando insólita de dentro da fenda –, o musgo já cobriu o nome da pedra. Por cima do mus-go ainda virão as raízes, depois as folhas... Esta a morte perfeita, nem lem-brança, nem saudade, nem o nome sequer. Nem isso. (ANEXO B, p. 125).
Episódio 10: Raquel embora insatisfeita continua sendo seduzida a acompa-
nhar Ricardo, caminhando pelo cemitério abandonado.
Apresentação: “Ela aconchegou-se mais a ele. Bocejou.” (ANEXO B, p. 126).
Conflito:
– Está bem, mas agora vamos embora que já me diverti muito, faz tempo que não me divirto tanto, só mesmo um cara como você podia me fazer di-vertir assim. – Deu-lhe um rápido beijo na face. – Chega, Ricardo, quero ir embora. – Mais alguns passos... – Mas este cemitério não acaba mais, já andamos quilômetros! – Olhou para trás. – Nunca andei tanto, Ricardo, vou ficar exausta. – A boa vida te deixou preguiçosa? Que feio – lamentou ele, impelindo-a para a frente. (ANEXO B, p. 126).
Resolução: “– Dobrando esta alameda, fica o jazigo da minha gente, é de lá
que se vê o pôr-do-sol.” (ANEXO B, p. 126).
Episódio 11: O amor de Ricardo pela prima, que já morreu, quando eram jo-
vens. A similitude da prima com Raquel e a dissimilitude; porque Ricardo não ama
mais a prima e continua a amar Raquel.
Apresentação:
Sabe, Raquel, andei muitas vezes por aqui de mãos dadas com minha pri-ma. Tínhamos então doze anos. Todos os domingos minha mãe vinha trazer flores e arrumar nossa capelinha onde já estava enterrado meu pai. Eu e mi-nha priminha vínhamos com ela e ficávamos por aí, de mãos dadas, fazendo tantos planos. Agora as duas estão mortas. – Sua prima também?– Também. Morreu quando completou quinze anos. Não era propriamente bonita, mas tinha uns olhos... Eram assim verdes como os seus, parecidos com os seus. Extraordinário, Raquel, extraordinário como vocês duas... Pen-so agora que toda a beleza dela residia apenas nos olhos, assim meio oblí-quos, como os seus. (ANEXO B, p. 126).
Conflito: O confronto entre o amor de Ricardo pela prima e o amor de Ricardo
por Raquel:
86
– Vocês se amaram?– Ela me amou. Foi a única criatura que... Fez um gesto. – Enfim, não tem importância. Raquel tirou-lhe o cigarro, tragou e depois devolveu-o. – Eu gostei de você, Ricardo. – E eu te amei... E te amo ainda. Percebe agora a diferença? Um pássaro rompeu cipreste e soltou um grito. Ela estremeceu. – Esfriou, não? Vamos embora. (ANEXO B, p. 126).
Resolução: “– Já chegamos, meu anjo. Aqui estão meus mortos.” (ANEXO B,
p. 127).
Episódio 12: Ricardo tenta seduzir Raquel a entrar na tumba.
Apresentação:
Pararam diante de uma capelinha coberta: de alto a baixo por uma trepadei-ra selvagem, que a envolvia num furioso abraço de cipós e folhas. A estreita porta rangeu quando ele a abriu de par em par. A luz invadiu um cubículo de paredes enegrecidas, cheias de estrias de antigas goteiras. No centro do cu-bículo, um altar meio desmantelado, coberto por uma toalha que adquirira a cor do tempo. Dois vasos de desbotada opalina ladeavam um tosco crucifixo de madeira. Entre os braços da cruz, uma aranha tecera dois triângulos de teias já rompidas, pendendo como farrapos de um manto que alguém colo-cara sobre os ombros do Cristo. Na parede lateral, à direita da porta, uma portinhola de ferro dando acesso para uma escada de pedra, descendo em caracol para a catacumba. Ela entrou na ponta dos pés, evitando roçar mes-mo de leve naqueles restos da capelinha. – Que triste que é isto, Ricardo. Nunca mais você esteve aqui? Ele tocou na face da imagem recoberta de poeira. Sorriu, melancólico. – Sei que você gostaria de encontrar tudo limpinho, flores nos vasos, velas, sinais da minha dedicação, certo? Mas já disse que o que mais amo neste cemitério é precisamente este abandono, esta solidão. As pontes com o ou-tro mundo foram cortadas e aqui a morte se isolou total. Absoluta. Ela adiantou-se e espiou através das enferrujadas barras de ferro da porti-nhola. Na semiobscuridade do subsolo, os gavetões se estendiam ao longo das quatro paredes que formavam um estreito retângulo cinzento. – E lá embaixo? – Pois lá estão as gavetas. E, nas gavetas, minhas raízes. Pó, meu anjo, pó – murmurou ele. Abriu a portinhola e desceu a escada.Aproximou-se de uma gaveta no centro da parede, segurando firme na alça de bronze, como se fosse puxá-la. – A cômoda de pedra. Não é grandiosa? (ANEXO B, p. 127).
Conflito:
Detendo-se no topo da escada, ela inclinou-se mais para ver melhor. – Todas essas gavetas estão cheias? – Cheias?... Só as que têm o retrato e a inscrição, está vendo? Nesta está o retrato da minha mãe, aqui ficou minha mãe – prosseguiu ele, tocando com as pontas dos dedos num medalhão esmaltado embutido no centro da gave-ta.
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Ela cruzou os braços. Falou baixinho, um ligeiro tremor na voz. – Vamos, Ricardo, vamos. – Você está com medo?– Claro que não, estou é com frio. Suba e vamos embora, estou com frio! (ANEXO B, p. 128).
Resolução: “Ele não respondeu. Adiantara-se até um dos gavetões na parede
oposta e acendeu um fósforo. Inclinou-se para o medalhão frouxamente iluminado.”
(ANEXO B, p. 128).
Episódio 13: Ricardo convence Raquel a entrar na tumba abandonada e a
mentira de Ricardo é revelada.
Apresentação:
– A priminha Maria Emília. Lembro-me até do dia em que tirou esse retrato, duas semanas antes de morrer... Prendeu os cabelos com uma fita azul e veio se exibir, estou bonita? Estou bonita?... – Falava agora consigo mesmo, doce e gravemente. – Não é que fosse bonita, mas os olhos... Venha ver, Raquel, é impressionante como tinha olhos iguais aos seus. (ANEXO B, p. 128).
Conflito:
Ela desceu a escada, encolhendo-se para não esbarrar em nada. – Que frio faz aqui. E que escuro, não estou enxergando ! Acendendo outro fósforo, ele ofereceu-o à companheira. – Pegue, dá para ver muito bem... – Afastou-se para o lado. – Repare nos olhos. – Mas está tão desbotado, mal se vê que é uma moça... – Antes da chama se apagar, aproximou-a da inscrição feita na pedra. Leu em voz alta, lenta-mente. – Maria Emília, nascida em vinte de maio de mil e oitocentos e faleci-da... (ANEXO B, p. 128).
Resolução:
– Deixou cair o palito e ficou um instante imóvel. – Mas esta não podia ser sua namorada, morreu há mais de cem anos ! Seu menti... Um baque metálico decepou-lhe a palavra pelo meio. Olhou em redor. A peça estava deserta. Voltou o olhar para a escada. No topo, Ricardo a ob-servava por detrás da portinhola fechada. Tinha seu sorriso meio inocente, meio malicioso. (ANEXO B, p. 128).
Episódio 14: Raquel é trancada na tumba.
Apresentação: “– Isto nunca foi o jazigo da sua família, seu mentiroso!” (ANE-
XO B, p. 129).
88
Conflito: “– Brincadeira mais cretina! – exclamou ela, subindo rapidamente a
escada. – Não tem graça nenhuma ouviu?” (ANEXO B, p. 129).
Resolução: “Ele esperou que ela chegasse quase a tocar o trinco da portinho-
la de ferro. Então deu uma volta à chave, arrancou-a da fechadura e saltou para
trás.” (ANEXO B, p. 129).
Episódio 15: Ricardo abandona Raquel, para que ela morra, trancada na tum-
ba num cemitério abandonado onde não passa ninguém: O crime passional.
Apresentação:
– Ricardo, abre isto imediatamente! Vamos, imediatamente! – ordenou, tor-cendo o trinco. – Detesto este tipo de brincadeira, você sabe disso. Seu idio-ta! É no que dá seguir a cabeça de um idiota desses. Brincadeira mais estú-pida!– Uma réstia de sol vai entrar pela frincha da porta tem uma frincha na porta. Depois vai se afastando devagarinho, bem devagarinho. Você terá o pôr-do-sol mais belo do mundo. Ela sacudia a portinhola. – Ricardo, chega, já disse! Chega! Abre imediatamente, imediatamente! – Sacudiu a portinhola com mais força ainda, agarrou-se a ela, dependurando-se por entre as grades. Ficou ofegante, os olhos cheios de lágrimas. Ensai-ou um sorriso. – Ouça, meu bem, foi engraçadíssimo, mas agora preciso ir mesmo, vamos, abra... (ANEXO B, p. 129).
Conflito:
Ele já não sorria. Estava sério, os olhos diminuídos. Em redor deles, reapa-receram as rugazinhas abertas em leque. – Boa noite, Raquel... – Chega, Ricardo! Você vai me pagar!... – gritou ela, estendendo os braços por entre as grades, tentando agarrá-lo. – Cretino! Me dá a chave desta por-caria, vamos! – exigiu, examinando a fechadura nova em folha. -Examinou em seguida as grades cobertas por uma crosta de ferrugem. Imobilizou-se. Foi erguendo o olhar até a chave que ele balançava pela argola, como um pêndulo. Encarou-o, apertando contra a grade a face sem cor. Esbugalhou os olhos num espasmo e amoleceu o corpo. Foi escorregando. -Não, não... Voltado ainda para ela, ele chegara até a porta e abriu os braços. Foi puxan-do, as duas folhas escancaradas. – Boa noite, meu anjo. Os lábios dela se pregavam um ao outro, como se, entre eles houvesse cola. Os olhos rodavam pesadamente numa expressão embrutecida. – Não... Guardando a chave no bolso, ele retomou o caminho percorrido. No breve silêncio, o som dos pedregulhos se entrechocando úmidos sob seus sapa-tos. E, de repente, o grito medonho, inumano: – NÃO! (ANEXO B, p. 129).
Resolução:
89
Durante algum tempo ele ainda ouviu os gritos que se multiplicaram, seme-lhantes aos de, um animal sendo, estraçalhado. Depois, os uivos foram fi-cando mais remotos, abafados como se viessem das profundezas da terra. Assim que atingiu o portão do cemitério, ele lançou ao poente um olhar mor-tiço. Ficou atento. Nenhum ouvido humano escutaria agora, qualquer cha-mado. Acendeu um cigarro e foi descendo a ladeira. Crianças ao longe brin-cavam de roda. (ANEXO B, p. 130).
O texto, linearmente, é organizado com o foco narrativo projetado sob Ra-
quel. Dessa forma, no percurso da leitura linear, para o leitor, a história é contada
pelo ponto de vista de Raquel, que privilegiou uma vida segura de esposa casada
com marido rico, e que por isso abandonou Ricardo, que ainda é apaixonado por
ela. Nessa linearidade, há expressão linguística de que Raquel continua a amar Ri -
cardo, caso contrário, não seria seduzida por ele, e que oculta esse amor dizendo a
Ricardo que somente gostou dele: “– Eu gostei de você, Ricardo.” (ANEXO B, p.
127), ao invés de dizer que o amou.
Apenas no último episódio é revelado o crime passional, quando Raquel toma
consciência de que está trancada para morrer sem nenhuma possibilidade de ser
salva. E essa tomada de consciência é representada em língua quando ocorrem as
expressões linguísticas “o grito medonho, inumano: / – NÃO!” (ANEXO B, p. 130).
Em síntese, o encaixe dos episódios é uma estratégia de construção do sus-
pense que, na sua globalidade, compreende o enigma e a revelação. Esse encaixe,
seguido do cancelamento e da inversão de certos episódios constroem o texto ver-
bal, cuja linearidade implica a alinearidade da história contada por episódios: O cri-
me passional de Ricardo que mata Raquel por perdê-la para um homem que satis-
faz os sonhos dela.
4.2 - A ordenação temporal dos episódios segmentados no texto produto
A ordenação temporal dos episódios indica a presença de dois percursos nar-
rativos sequenciados no tempo no texto narrativo.
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4.2.1 - Primeiro percurso narrativo: O relacionamento de Ricardo e Raquel
Episódio 1: Ricardo conhece Raquel, apaixonam-se e passam a viver juntos
por um ano.
Episódio 2: Raquel se separa de Ricardo devido à sua irresponsabilidade.
Episódio 3: Raquel concretiza seus sonhos e sente-se segura casando-se
com homem rico que lhe propicia uma vida luxuosa.
Episódio 4: Ricardo não se conforma por Raquel estar casada com outro ho-
mem e começa a importuná-la para encontrar-se com ele.
Episódio 5: Raquel aceita reencontrar-se com Ricardo pela última vez para
que ele deixe de importuná-la, pois não quer que seu marido, ciumento, descubra o
relacionamento que teve com Ricardo no passado.
Episódio 6: Ricardo marca um encontro com Raquel que, ao chegar, vê que é
um cemitério velho e abandonado há muito tempo, pois, chegando lá em cima, não
ouve mais o barulho das crianças brincando que ouvira durante a subida.
Episódio 7: Raquel exalta-se com Ricardo acreditando ser uma brincadeira
dele, por marcar um encontro naquele lugar. Ricardo a tranquiliza justificando enco-
brir esse encontro para que o marido dela não soubesse, pois ninguém vai àquele
lugar.
Episódio 8: Raquel, coberta de medo, é seduzida por Ricardo a caminhar pelo
cemitério.
Episódio 9: Ricardo e Raquel param em uma tumba abandonada.
Episódio 10: Ricardo seduz Raquel contando a ela uma história sobre a tum-
ba de sua família onde está enterrada sua prima que o amou quando jovens.
Episódio 11: Ricardo entra na tumba, suja e envelhecida pelo tempo, e seduz
Raquel a entrar com ele a fim de ver o retrato da prima, dizendo que esta se parecia
com ela.
Episódio 12: Raquel descobre a mentira de Ricardo, pois, a jovem enterrada,
já estava ali há cem anos.
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Episódio 13: Ricardo sai e tranca a tumba com chave, deixando Raquel pre-
sa.
Episódio 14: Raquel toma consciência de que Ricardo não estava brincando e
que queria matá-la. Ela implora para que ele abra a porta.
Episódio 15: Ricardo vai embora deixando Raquel trancada e isolada. O cri-
me passional é concretizado.
4.2.2 - Segundo percurso narrativo: O reencontro de Ricardo e Raquel
Episódio 1: Ricardo inconformado com a separação de Raquel, que está ca-
sada com um homem rico e leva uma vida luxuosa.
Episódio 2: Ricardo, ainda apaixonado, resolve reencontrar-se com Raquel
que não aceita seus convites.
Episódio 3: Ricardo planeja o crime escolhendo o cemitério, abandonado há
muito tempo, onde ninguém poderá encontrá-la. Escolhe a tumba e troca a fechadu-
ra.
Episódio 4: Ricardo seduz Raquel a reencontrá-lo para juntos verem o último
pôr do sol e o crime é concretizado. Raquel vendo o pôr do sol dentro da tumba e
Ricardo fora indo embora deixando-a para que ela morra no local.
4.2.3 - O encaixe do segundo percurso narrativo no primeiro
Fagundes Telles encaixa o segundo percurso narrativo que é desconhecido
do leitor no primeiro percurso narrativo. Este é construído estrategicamente com o
cancelamento e a inversão temporal dos episódios de forma a tornar o texto verbal
alinear na temporalidade de sua linearidade.
O suspense compreende o enigma e a revelação. O enigma é estrategica-
mente construído pelo encaixe do segundo percurso narrativo no primeiro.
No episódio 3 ocorre o encaixe do segundo percurso narrativo (a execução
do crime passional) onde ocorrem as expressões linguísticas:
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Ficou sério. E aos poucos, inúmeras rugazinhas foram-se formando em re-dor dos seus olhos ligeiramente apertados. Os leques de rugas se aprofun-daram numa expressão astuta. Não era nesse instante tão jovem como apa-rentava. Mas logo sorriu e a rede de rugas desapareceu sem deixar vestígio. Voltou-lhe novamente o ar inexperiente e meio desatento. – Você fez bem em vir. (ANEXO B, p. 123, grifo nosso).
No episódio 8 (A perturbação de Ricardo) onde ocorrem as expressões lin-
guísticas: “Ele apanhou um pedregulho e fechou-o na mão. A pequenina rede de ru -
gas voltou a se estender em redor dos seus olhos. A fisionomia, tão aberta e lisa, re -
pentinamente escureceu, envelhecida.” (ANEXO B, p. 125, grifo nosso).
No episódio 9 onde ocorrem as expressões linguísticas:
Ele atirou o pedregulho num canteiro ressequido.– Mas é esse abandono na morte que faz o encanto disso. Não se encontra mais a menor intervenção dos vivos, a estúpida intervenção dos vivos. – Veja, disse apontando uma sepultura fendida, a erva daninha brotando insó-lita de dentro da fenda, o musgo já cobriu o nome da pedra, por cima do musgo ainda virão as raízes, depois as folhas... Esta a morte perfeita, nem lembrança, nem saudade, nem o nome sequer. Nem isso. (ANEXO B, p. 125, grifo nosso).
Onde ele anuncia a morte dela e que ninguém descobrirá, pois ali não há in-
tervenção nem de vivos nem de mortos. A natureza toma todos os espaços enco-
brindo a morte dela e o crime.
No episódio 12 onde ocorrem as expressões linguísticas: “ (...) Mas já disse
que o que mais amo neste cemitério é precisamente este abandono, esta solidão.
As pontes com o outro mundo foram cortadas e aqui a morte se isolou total. Absolu -
ta.” (ANEXO B, p. 127, grifo nosso).
No episódio 15 onde ocorrem as expressões linguísticas:
Ele já não sorria. Estava sério, os olhos diminuídos. Em redor deles, reapa-receram as rugazinhas abertas em leque. – Boa noite, Raquel.. (…) Examinando a fechadura nova em folha. – Examinou em seguida as grades cobertas por uma crosta de ferrugem. Imobilizou-se.(…) Assim que atingiu o portão do cemitério, ele lançou ao poente um olhar mortiço. Ficou atento. Nenhum ouvido humano escutaria agora, qualquer chamado.– Acendeu um cigarro e foi descendo a ladeira. Crianças ao longe brincavam de roda. (ANEXO B, p. 129, grifo nosso).
93
4.3 - O exame da referenciação do texto narrativo relativa aos personagens, a partir das modalidades ser x parecer: manutenção e modificação de papéis sociais
Como já foi indicado, o leitor percorre o texto conforme este progride semanti-
camente o foco narrativo sobre Raquel.
Nesse sentido, o leitor modaliza os personagens tal qual Raquel o faz na pro-
gressão do texto. Ambos, Raquel e o leitor, desconhecem o segundo percurso nar-
rativo que é modalizado pela verdade. Esta só é revelada para resolução do enig-
ma.
Assim, o segundo percurso narrativo é modalizado no texto, da seguinte for-
ma:
4.3.1 - Segundo percurso narrativo (modalidades): O reencontro de Ricardo e Raquel
Episódio 1: Ricardo inconformado com a separação de Raquel, que está ca-
sada com um homem rico e leva uma vida luxuosa.
• Ricardo:
➢ É + parece ser quem está inconformado por estar separado de Ra-
quel
= verdade para Ricardo, para Raquel e para o leitor.
• Raquel:
➢ É + parece ser quem está casada com homem rico e tendo uma vida
luxuosa
= verdade para Raquel, para Ricardo e para o leitor.
Episódio 2: Ricardo, ainda apaixonado, resolve reencontrar-se com Raquel
que não aceita seus convites.
• Ricardo:
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➢ É + parece ser quem ainda está apaixonado por Raquel e quer en-
contrá-la pela última vez
= verdade para Raquel e para o leitor.
• Raquel:
➢ É + parece ser quem não aceita os convites de Ricardo
= verdade para Ricardo, para Raquel e para o leitor.
Episódio 3: Ricardo planeja o crime escolhendo o cemitério, abandonado há
muito tempo, onde ninguém poderá encontrá-la. Escolhe a tumba e troca a fechadu-
ra.
• Ricardo:
➢ É + e parece ser quem planeja o crime passional
= verdade revelada para Raquel e para o leitor.
Episódio 4: Ricardo seduz Raquel a reencontrá-lo para juntos verem o último
pôr do sol e o crime é concretizado. Raquel vendo o pôr do sol dentro da tumba e
Ricardo fora indo embora deixando-a para que ela morra no local.
• Ricardo:
➢ É + parece ser o assassino que executa o crime passional
= verdade revelada para Raquel e para o leitor.
4.3.2 - Primeiro percurso narrativo (modalidades): O relacionamento de Ricardo e Raquel
Episódio 1: Ricardo conhece Raquel, apaixonam-se e passam a viver juntos
por um ano.
• Ricardo e Raquel:
➢ São + parecem ser apaixonados
= verdade para Raquel, para Ricardo e para o leitor.
Episódio 2: Raquel se separa de Ricardo devido à sua irresponsabilidade.
• Raquel:
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➢ É + parece estar decidida a deixar Ricardo
= verdade para Raquel, Ricardo e o leitor.
• Ricardo:
➢ É + parece ser irresponsável
= verdade para Raquel e para o leitor.
Episódio 3: Raquel concretiza seus sonhos e sente-se segura casando-se
com homem rico que lhe propicia uma vida luxuosa.
• Raquel:
➢ É + parece ser quem realizou o seu sonho de se sentir segura e com
status social
= verdade para Raquel, para Ricardo e para o leitor.
Episódio 4: Ricardo não se conforma por Raquel estar casada com outro ho-
mem e começa a importuná-la para encontrar-se com ele.
• Ricardo:
➢ É + parece ser quem continua apaixonado por Raquel
= verdade para Ricardo, para Raquel e para o leitor.
• Ricardo:
➢ É + parece ser quem importuna Raquel querendo encontrar-se com
ela, que está casada
= verdade para Raquel, para Ricardo e para o leitor.
Episódio 5: Raquel aceita reencontrar-se com Ricardo pela última vez para
que ele deixe de importuná-la, pois não quer que seu marido, ciumento, descubra o
relacionamento que teve com Ricardo no passado.
• Ricardo:
➢ É + parece ser quem quer ver Raquel pela última vez, para verem
juntos o pôr do sol
= verdade para Raquel e para o leitor.
• Ricardo:
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➢ Não é + parece ser quem quer se encontrar com Raquel para verem
juntos o pôr do sol
= mentira para Raquel e para o leitor.
Episódio 6: Ricardo marca um encontro com Raquel que, ao chegar, vê que é
um cemitério velho e abandonado há muito tempo, pois, chegando lá em cima, não
ouve mais o barulho das crianças brincando que ouvira durante a subida.
• Ricardo:
➢ É + parece ser quem espera Raquel para ver o último pôr do sol jun-
tos
= verdade para Raquel e para o leitor.
• O cemitério abandonado:
➢ É + parece ser um lugar onde ninguém presenciará esse último en-
contro
= verdade para Raquel e para o leitor.
Episódio 7: Raquel exalta-se com Ricardo acreditando ser uma brincadeira
dele, por marcar um encontro naquele lugar. Ricardo a tranquiliza justificando enco-
brir esse encontro para que o marido dela não soubesse, pois ninguém vai àquele
lugar.
• Raquel:
➢ É + parece ser quem tem medo do cemitério abandonado e exalta-se
= verdade para Raquel, Ricardo e para o leitor
• Ricardo:
➢ É + parece ser quem tranquiliza Raquel
= verdade para Raquel, Ricardo e o leitor
Episódio 8: Raquel, coberta de medo, é seduzida por Ricardo a caminhar pelo
cemitério.
• Raquel
➢ É + parece ser quem é convencida a caminhar com Ricardo, embora
com muito medo
= verdade para Raquel, Ricardo e para o leitor.
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Episódio 9: Ricardo e Raquel param em uma tumba abandonada.
• Ricardo e Raquel:
➢ São + parecem ser aqueles que param diante de uma tumba abando-
nada há muito tempo
= verdade para Raquel, Ricardo e para o leitor.
Episódio 10: Ricardo seduz Raquel contando à ela uma história sobre a tum-
ba de sua família onde está enterrada sua prima que o amou quando jovens.
• Ricardo:
➢ É + parece ser quem convence Raquel a ir até a tumba de sua família
onde está enterrada sua prima que o amava quando jovens
= verdade para Raquel e para o leitor.
Episódio 11: Ricardo entra na tumba, suja e envelhecida pelo tempo, e seduz
Raquel a entrar com ele a fim de ver o retrato da prima, dizendo que esta se parecia
com ela.
• Ricardo:
➢ É + parece ser quem seduz Raquel a entrar na tumba
= verdade para Raquel, Ricardo e o para o leitor.
Episódio 12: Raquel descobre a mentira de Ricardo, pois, a jovem enterrada,
já estava ali há cem anos.
• Ricardo:
➢ É + parece ser quem mente para Raquel
= mentira revelada para Raquel e para o leitor.
Episódio 13: Ricardo sai e tranca a tumba com chave, deixando Raquel pre-
sa.
• Ricardo:
➢ É + parece ser quem tranca Raquel na tumba
= verdade para Raquel, Ricardo e para o leitor.
• Ricardo:
98
➢ Não é + parece ser quem estava levando Raquel para ver a tumba da
prima
= mentira revelada para Raquel e para o leitor.
Episódio 14: Raquel toma consciência de que Ricardo não estava brincando e
que queria matá-la. Ela implora para que ele abra a porta.
• Raquel:
➢ É + parece ser quem toma consciência de estar trancada na tumba
implorando para Ricardo abrir a porta
= verdade para Ricardo, Raquel e para o leitor.
Episódio 15: Ricardo vai embora deixando Raquel trancada e isolada. O cri-
me passional é concretizado.
• Ricardo:
➢ É + não parece ser o criminoso passional
= mistério para Raquel e para o leitor.
• Ricardo:
➢ É + parece ser quem executa o crime passional
= verdade revelada para Raquel e para o leitor.
4.3.3 - O encaixe do segundo percurso narrativo no primeiro (modalidades)
Ao encaixar o segundo percurso narrativo no primeiro, ocorrem as seguintes
modalizações, após a verdade revelada, com a resolução do enigma.
O enigma é estrategicamente construído pelo encaixe do segundo percurso
narrativo no primeiro.
No episódio 3 ocorre o encaixe do segundo percurso narrativo (a execução
do crime passional) onde ocorrem as expressões linguísticas:
Ficou sério. E aos poucos, inúmeras rugazinhas foram-se formando em re-dor dos seus olhos ligeiramente apertados. Os leques de rugas se aprofun-daram numa expressão astuta. Não era nesse instante tão jovem como apa-
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rentava. Mas logo sorriu e a rede de rugas desapareceu sem deixar vestígio. Voltou-lhe novamente o ar inexperiente e meio desatento. – Você fez bem em vir. (ANEXO B, p. 123, grifo nosso).
• Ricardo:
➢ Não é + parece ser quem quer encontrar Raquel pela última vez
= mentira a ser revelada para Raquel e o leitor.
No episódio 8 (A perturbação de Ricardo) onde ocorrem as expressões lin-
guísticas: “Ele apanhou um pedregulho e fechou-o na mão. A pequenina rede de ru-
gas voltou a se estender em redor dos seus olhos. A fisionomia, tão aberta e lisa, re-
pentinamente escureceu, envelhecida.” (ANEXO B, p. 125, grifo nosso).
• Ricardo:
➢ Não é + parece ser quem quer um último encontro
= mentira a ser revelada no final para Raquel e o leitor.
No episódio 9 onde ocorrem as expressões linguísticas:
Ele atirou o pedregulho num canteiro ressequido.– Mas é esse abandono na morte que faz o encanto disso. Não se encontra mais a menor intervenção dos vivos , a estúpida intervenção dos vivos . – Veja, disse apontando uma sepultura fendida, a erva daninha brotando insó-lita de dentro da fenda, o musgo já cobriu o nome da pedra, por cima do musgo ainda virão as raízes, depois as folhas... Esta a morte perfeita, nem lembrança, nem saudade, nem o nome sequ er. Nem isso . (ANEXO B, p. 125, grifo nosso).
Onde Ricardo anuncia a morte dela e que ninguém descobrirá, pois ali não há
intervenção nem de vivos nem de mortos. A natureza toma todos os espaços enco-
brindo a morte dela e o crime.
• Ricardo:
➢ Não é + parece ser quem trata da morte e o esquecimento do morto
como uma questão temporal
= mentira a ser revelada para Raquel e para o leitor.
No episódio 12 onde ocorrem as expressões linguísticas: “(...) Mas já disse
que o que mais amo neste cemitério é precisamente este abandono, esta solidão.
As pontes com o outro mundo foram cortadas e aqui a morte se isolou total. Absolu-
ta.” (ANEXO B, p. 127, grifo nosso).
100
• Ricardo:
➢ Não é + parece ser quem trata da morte e o esquecimento do morto
como uma questão temporal
= mentira a ser revelada para Raquel e para o leitor.
No episódio 15 ocorrem as expressões linguísticas:
Ele já não sorria. Estava sério, os olhos diminuídos. Em redor deles, reapa-receram as rugazinhas abertas em leque.– Boa noite, Raquel.. (…) Examinando a fechadura nova em folha. -Examinou em seguida as gra-des cobertas por uma crosta de ferrugem. (Raquel) Imobilizou-se.(…) Assim que atingiu o portão do cemitério, ele lançou ao poente um olhar mortiço. Ficou atento. Nenhum ouvido humano escutaria agora, qualquer chamado.– Acendeu um cigarro e foi descendo a ladeira. Crianças ao longe brincavam de roda. (ANEXO B, p. 129, grifo nosso).
• Ricardo:
➢ Não é + parece ser quem deseja boa noite para Raquel
= mentira revelada para Raquel e para o leitor.
4.3.4 - Papéis Representados
Ricardo muda o papel representado no primeiro percurso narrativo para outro
papel representado no segundo percurso narrativo:
• Amante apaixonado, divertido, mas irresponsável
> assassino cruel e calculista.
O segundo papel representado por Ricardo só é revelado no último e penúlti-
mo episódios, com a tomada de consciência de Raquel.
Raquel representa, nos dois percursos, o mesmo papel:
• Mulher ambiciosa que quer segurança financeira e status social.
Em síntese, tanto no texto “A carteira” quanto no texto “Venha ver o pôr-do-
sol”, a referenciação é construída com a manutenção do mesmo papel onde está o
foco narrativo. Há mudança de papel onde ocorre o suspense: Enigma + revelação.
101
4.4 - A análise do suspense, situado como clímax
A construção textual do clímax em histórias de suspense, compreende:
4.4.1 - No que se refere à enunciação textual
Cada episódio é construído com a regra da causalidade: Tempo 1 (causa);
Tempo 2 (consequência).
Por exemplo:
• O texto produto em sua linearidade apresenta uma sequência de:
➢ mentira + enigma.
Durante o percurso narrativo, onde é dado o foco narrativo, ocorre a estraté -
gia do encaixe do segundo percurso narrativo no primeiro percurso narrativo.
Devido a esse encaixe, ocorre uma ruptura no encadeamento semântico dos
episódios, que é construído pela regra da causalidade:
• Tempo 1: causa;
• Tempo 2: consequência.
Seguindo a regra da causalidade, cada episódio é construído com causa se-
guida de consequência, na cronologia temporal.
Por exemplo:
• Episódio 1: Ricardo conhece Raquel, apaixonam-se e passam a viver jun-
tos por um ano.
➢ Tempo 1 (causa): Ricardo e Raquel apaixonam-se;
➢ Tempo 2 (consequência): Ricardo e Raquel passam a viver juntos.
• Episódio 2: Raquel se separa de Ricardo devido à sua irresponsabilidade.
➢ Tempo 1 (causa): Ricardo é irresponsável;
➢ Tempo 2 (consequência): Raquel deixa Ricardo.
102
• Episódio 3: Raquel concretiza seus sonhos e sente-se segura casando-se
com homem rico que lhe propicia uma vida luxuosa.
➢ Tempo 1 (causa): Raquel quer uma vida rica e segura;
➢ Tempo 2 (consequência): Casa-se com homem rico.
• Episódio 4: Ricardo não se conforma por Raquel estar casada com outro
homem e começa a importuná-la para encontrar-se com ele.
➢ Tempo 1 (causa): Ricardo não se conforma por Raquel tê-lo deixado;
➢ Tempo 2 (consequência): Ricardo começa a importunar Raquel para
que esta se encontre com ele.
• Episódio 5: Raquel aceita reencontrar-se com Ricardo pela última vez
para que ele deixe de importuná-la, pois não quer que seu marido, ciu-
mento, descubra o relacionamento que teve com Ricardo no passado.
➢ Tempo 1 (causa): Raquel não quer que seu marido descubra seu re-
lacionamento com Ricardo no passado;
➢ Tempo 2 (consequência): Raquel aceita encontrar-se com Ricardo.
• Episódio 6: Ricardo marca um encontro com Raquel que, ao chegar, vê
que é um cemitério velho e abandonado há muito tempo, pois, chegando
lá em cima, não ouve mais o barulho das crianças brincando que ouvira
durante a subida.
➢ Tempo 1 (causa): Ricardo marca um encontro com Raquel em um ce-
mitério abandonado, embora ela não saiba da existência desse cemi-
tério;
➢ Tempo 2 (consequência): Raquel, ao subir, descobre que o cemitério
é totalmente abandonado e antigo, exaltando-se por medo.
• Episódio 7: Raquel exalta-se com Ricardo acreditando ser uma brincadei-
ra dele, por marcar um encontro naquele lugar. Ricardo a tranquiliza justi-
ficando encobrir esse encontro para que o marido dela não soubesse,
pois ninguém vai àquele lugar.
➢ Tempo 1 (causa): exaltação de Raquel que acredita que Ricardo está
brincando com ela;
103
➢ Tempo 2 (consequência): Ricardo a tranquiliza explicando que o local
é escondido para que o marido dela não descubra.
• Episódio 8: Raquel, coberta de medo, é seduzida por Ricardo a caminhar
pelo cemitério.
➢ Tempo 1 (causa): Raquel sente medo por estar em um cemitério.
Esse medo amplia-se pelo fato de o cemitério estar abandonado o
que a faz querer ir embora;
➢ Tempo 2 (consequência): Raquel é seduzida por Ricardo a caminhar
pelo cemitério.
• Episódio 9: Ricardo e Raquel param em uma tumba abandonada.
➢ Tempo 1 (causa): Ricardo seduz Raquel a caminhar pelo cemitério;
➢ Tempo 2 (consequência): Param numa tumba abandonada.
• Episódio 10: Ricardo seduz Raquel contando a ela uma história sobre a
tumba de sua família onde está enterrada sua prima que o amou quando
jovens.
➢ Tempo 1 (causa): Ricardo seduz Raquel a ficar junto à tumba aban-
donada;
➢ Tempo 2 (consequência): Conta a ela que esta tumba pertence a sua
família e onde está enterrada sua prima que o amou quando jovens.
• Episódio 11: Ricardo entra na tumba, suja e envelhecida pelo tempo, e
seduz Raquel a entrar com ele a fim de ver o retrato da prima, dizendo
que esta se parecia com ela.
➢ Tempo 1 (causa): Ricardo entra na tumba, suja e envelhecida pelo
tempo;
➢ Tempo 2 (consequência): Ricardo seduz Raquel a entrar com ele di-
zendo para esta ver o retrato da prima que se parecia com ela.
• Episódio 13: Ricardo sai e tranca a tumba com chave, deixando Raquel
presa.
➢ Tempo 1 (causa): Ricardo sai e deixa Raquel dentro da tumba;
104
➢ Tempo 2 (consequência): Ele tranca a tumba prendendo Raquel.
• Episódio 14: Raquel toma consciência de que Ricardo não estava brin-
cando e que queria matá-la. Ela implora para que ele abra a porta.
➢ Tempo 1 (causa): Raquel está trancada na tumba abandonada e Ri-
cardo não demonstra nenhuma intenção de soltá-la;
➢ Tempo 2 (consequência): Raquel conscientiza-se de que foi trancada
ali para morrer.
• Episódio 15: Ricardo vai embora deixando Raquel trancada e isolada. O
crime passional é concretizado.
➢ Tempo 1 (causa): Partida de Ricardo;
➢ Tempo 2 (consequência): Raquel, trancada, sem poder sair irá morrer
ali.
Como se pode observar esses quinze episódios são sequenciados entre si,
também, por causa e consequência.
O que é causa do episódio que segue é consequência do episódio que ante-
cede. E assim, cada consequência, na progressão semântica do texto, torna-se cau-
sa para o próximo episódio, que será consequência do episódio que segue.
4.4.2 - No que se refere à referenciação
O encadeamento de causa e consequência no mesmo episódio e nos episó-
dios sequenciados constrói, no contexto cognitivo do leitor, uma expectativa de que
este sequenciamento continuará.
Todavia, o autor aplica uma estratégia de ruptura que, ostensivamente, cons-
trói uma relevância para o leitor. O efeito dessa estratégia ocorre no encadeamento
do segundo percurso narrativo com o primeiro percurso narrativo.
Por exemplo:
• Ricardo, jovial e brincalhão, sequenciado com Ricardo, envelhecido e
com rugazinhas nos olhos.
105
Essas rupturas causam estranhamento ao leitor porque são relevantes para o
seu contexto cognitivo, que já construiu um cálculo de significações, de forma a obri -
gá-lo a uma reformulação, pois surge a questão: POR QUÊ?
4.4.3 - No que se refere ao clímax
O binômio enigma-revelação compreende o clímax do suspense.
O enigma é construído pela ruptura com a regra de causalidade do primeiro
percurso narrativo, pois o segundo percurso narrativo encaixou-se no primeiro.
Com essa estratégia de encaixe, constrói-se o enigma pelas relevâncias. Es-
tas, na revelação, tornam-se mentiras e o mistério causado pela modalidade ser +
não parecer é, também, revelado. A revelação compreende a mudança de papéis
do primeiro para o segundo percurso narrativo.
O leitor, juntamente com o personagem Raquel, toma consciência da possibi-
lidade de um crime passional.
• Enigma:
➢ Ricardo é + não parece ser o assassino passional, por isso a possibi-
lidade de um crime com a pergunta: SERÁ?
• Revelação:
➢ Ricardo é + parece ser o criminoso passional devido à construção re-
ferencial: a fechadura nova em folha brilha encrustada na porta enfer-
rujada da entrada da tumba, construindo-se o sentido de crime passi-
onal planejado.
4.5 - Resultados obtidos
Os mesmos resultados obtidos da análise de “A carteira” de Machado de As-
sis estão nas análises de “Venha ver o pôr-do-sol” de Lygia Fagundes Telles. A dife-
rença consiste apenas na mudança de papel para o personagem Raquel, onde está
focalizada a narração no texto produto verbal:
106
• Raquel despedindo-se de Ricardo
> Raquel vítima de um crime passional.
4.6 - Discussão dos resultados
As mesmas discussões dos resultados obtidos da análise de “A carteira” de
Machado de Assis, são adequadas para discutir os resultados obtidos de “Venha ver
o pôr-do-sol” de Lygia Fagundes Telles.
Por tratar-se de uma história de suspense que conta um crime passional, o
texto “Venha ver o pôr-do-sol” pode ser considerado no histórico de textos relativos
a crimes, como uma transformação.
Segundo Bazerman (2009) um gênero é caracterizado pela sua mudança só-
cio-histórica, pois não aparece do zero.
Nesse sentido, pode-se dizer que a história de suspense relativa ao crime
passional tem suas raízes, segundo Reimão (1983), nas notícias de crimes publica-
das nos jornais ingleses, estas atraíam um grande número de leitores.
A partir delas, foram construídas histórias ficcionais de crimes que passam a
caracterizar os romances policiais com a presença de um detetive. Essas histórias
passaram a ser publicadas em folhetins mantendo um amplo auditório de leitores.
A partir de então, aparecem os romances policiais que, segundo o autor, são
considerados arte popular.
Segundo Todorov (2008), o romance policial tem suas normas: quem quer
embelezá-lo esteticamente faz literatura. No caso de “Venha ver o pôr-do-sol”, Lygia
Fagundes Telles transforma o romance policial em literatura. A autora constrói uma
narrativa estética, cancelando o detetive, que passa a ser o leitor.
Todorov (2008) apresenta a história policial por dois percursos: As ações que
praticam o crime e as ações do inquérito para descobrir o assassino.
No texto “Venha ver o pôr-do-sol”, não há inquérito, mas há a tomada de
consciência do crime pelo personagem Raquel, juntamente com o leitor. Na revela-
ção, o leitor sabe que o crime foi planejado e que ninguém o descobrirá. Apenas o
107
leitor e Ricardo conhecem, após a morte de Raquel, que o crime passional foi con-
cretizado.
A complexidade da história de suspense relativa ao crime ocorrido em “Venha
ver o pôr-do-sol”, também está na complexidade da história de suspense do triângu-
lo amoroso “A carteira” de Machado de Assis.
Em síntese, há uma constância na organização textual das histórias de sus-
pense, independente da área temática onde estão ancoradas.
Segundo Bazerman (2009) um gênero é reconhecido como gênero pelo seu
uso frequente na sociedade e pela constância que o caracteriza.
As histórias de suspense são de uso frequente na sociedade e sempre têm a
preferência dos leitores. Logo, as histórias de suspense são um gênero textual e
apresentam constância em sua organização textual, pois os planos do discurso es-
tão integrados aos planos do texto (cf. ADAM, 2008) pelo ato perlocucional do autor:
Atrair e manter a atenção do leitor.
Nesse sentido, os níveis do discurso se integram aos níveis textuais de forma
que o plano do texto é construído com a incrustação das sequências textuais típi -
cas: Narrativa, descritiva, explicativa e argumentativa. Logo, a história de suspense
também pode ser considerada um gênero textual discursivo.
Segundo Adam (2008) o nível da formação sócio-discursiva se integra ao tex-
to através do interdiscurso, de forma a caracterizar gêneros.
Nas histórias de suspense, assim como nas anedotas, estão presentes o in-
terdiscurso e o intertexto. Segundo Guimarães Rosa (1979) as histórias apresentam
o ineditismo das anedotas.
O texto de anedotas, segundo Nélo (2011), participa de um sistema de textos
que caracteriza o gênero risível como discurso.
Os resultados obtidos das análises realizadas nesta pesquisa, indicam que
nas histórias de suspense há dois percursos narrativos:
• um, onde se dá o foco narrativo, é conhecido pelo personagem e pelo lei-
tor;
• o outro, é desconhecido de ambos.
108
Segundo Nélo, o risível é construído textualmente com dois percursos narrati-
vos, encaixados entre si:
• um é conhecido pelos personagens;
• e os dois pelo leitor.
Assim por exemplo:
Dois senadores descem do avião, em Brasília.Um disse para o outro:– Vamos tomar alguma coisa?E o outro responde:– De quem?
Nesse texto, a palavra tomar é polissêmica, mas o próprio leitor tem organiza-
do em sua memória de longo prazo um script para senador, cujo frame é: político
corrupto.
O leitor, também, tem armazenado em sua memória de longo prazo social, o
script de: tomar = beber, cujo frame é: matar a sede, obter prazer, entre outros.
Como o leitor conhece ambos, ele ri pela relevância construída pela resposta
do convidado.
Não há essa organização textual nas histórias de suspense.
Dessa forma, os leitores de narrativa de suspense são capazes de reconhe-
cê-las como diferente da narrativa que tem por finalidade o risível.
Logo, é essa diferença que propicia caracterizar as narrativas de história
como um gênero textual discursivo.
109
CONSIDERAÇÕES FINAIS
No término desta dissertação, são revistos os objetivos.
Objetivo geral é contribuir com as estratégias enunciativas que caracterizam
gêneros textuais.
Acredita-se que este objetivo, de certa forma, tenha sido atingido, pois, as
histórias de suspense podem ser tratadas como um gênero textual discursivo, sendo
todas elas guiadas pelo objetivo discursivo, ou seja, o ato perlocucional de atrair e
manter a atenção do leitor.
As histórias de suspense podem, também, ser consideradas um gênero dis-
cursivo, conforme Bazerman (2009), na medida em que apresentam uma constância
em sua organização e por estar em uso constante na sociedade devido à preferên-
cia dos leitores.
Essas histórias apresentam modificações no tempo e contemporaneidade,
nos contos literários, foi cancelado o papel do detetive.
Objetivos específicos:
I. Analisar o texto narrativo de suspense a partir da aplicação da estratégia
da modalidade para caracterização dos personagens da história;
Acredita-se que este objetivo tenha sido cumprido, pois a segmentação
do texto em episódios lineares e alineares em relação à cronologia atem-
poral propiciou a modalização veredictória dos personagens por:
➢ ser + parecer.
No percurso cronológico é encaixada uma alinearidade temporal modali-
zada por:
➢ não ser + parecer = mentira.
No percurso narrativo implícito, ao ser explicitado pelo leitor, as modalida-
des são:
➢ ser + parecer = verdade;
110
➢ ser + não parecer = suspense.
II. Analisar a orientação enunciativa dada pelo escritor;
Acredita-se também que este objetivo tenha sido alcançado, pois a orien-
tação enunciativa do autor é organizada por rupturas temporais e pela in-
serção de informações que rompem com o cálculo de significações, já
construído no contexto cognitivo do leitor.
As relevâncias, construídas por estratégias do autor, reformulam o cálculo
de significações do leitor de forma a modificar nele os papéis representa-
dos pelos personagens.
O foco narrativo, dado em um personagem, guia o cálculo de significa-
ções do leitor e suas reformulações devido às relevâncias que o obrigam
a fazer inferências ostensivas e elaborar a pergunta: POR QUÊ?
Cada episódio é construído no desenrolar da história por causa e conse-
quência e a sequência entre os episódios é, também, construída com a
regra da causalidade.
Assim, o episódio, que é consequência do episódio anterior, torna-se
causa para o episódio posterior.
III. Examinar em que medida a narrativa do suspense é um gênero textual;
A narrativa de suspense pode ser vista como um gênero textual devido às
constantes estratégias aplicadas pelo autor para a construção do texto
produto verbal.
Essas estratégias são em síntese:
a) estratégia de cancelamento de episódio no texto produto verbal;
b) estratégia de inversão temporal de episódios, de forma a construir a
linearidade no texto produto verbal;
c) estratégia de focalização no percurso narrativo explícito;
d) estratégia de construção de um percurso narrativo implícito, que se
mantém, até a revelação;
111
e) estratégias de encadeamento por microssequências do segundo per-
curso narrativo no primeiro percurso narrativo;
f) estratégia de construção da referenciação por ruptura com a regra de
causalidade;
g) estratégia de construção de relevâncias, pelo encadeamento de um
episódio do segundo percurso narrativo em um episódio do primeiro
percurso narrativo, de forma a causar estranhamento ao leitor, obri-
gando-o a fazer uma inferência ostensiva que reformula seu cálculo
de significações, alterando o seu modelo de situação para a leitura
(cf. KINTSCH; VAN DIJK, 1983);
h) estratégia de manutenção e mudança de papéis representados pelos
personagens da história;
i) estratégia de construção do enigma e a revelação.
Devido à preferência do leitor por histórias de suspense, estas estão em uso
frequente na sociedade. Estão presentes em novelas televisivas, contos literários,
romances, entre outros.
Dessa forma, o leitor sabe reconhecer que o suspense é um gênero, diferen-
ciando-o dos demais gêneros. Como um gênero, segundo Bazerman (2009), não
aparece do zero, ele está em constante evolução dependendo do eixo sócio-históri -
co.
Verificou-se que as histórias de suspense originaram-se pelas notícias de cri-
me publicadas em jornais ingleses. Tais notícias inspiraram autores a criar histórias
que passaram a ser publicadas em folhetins. Enquanto no romance policial, as histó-
rias são definidas pelas ações do crime e pelas ações do inquérito com a presença
de um detetive. No gênero história de suspense literárias, não há a presença do de-
tetive, existindo o velar do enigma e o desvelar da revelação.
Como próprio autor afirma, as histórias de crime convivem na contemporanei-
dade, por exemplo, em notícias de jornais, crônicas jornalísticas, crônicas literárias,
romances policiais e histórias de suspense presentes em telenovelas, contos e até
mesmo, romances.
112
Em síntese, esta dissertação tratou as histórias de suspense pelo binômio
enigma–revelação.
Faz-se necessário dar continuidade aos estudos do suspense para defini-lo
como gênero de um conjunto de textos ou em um sistema de textos (cf, BAZER-
MAN, 2009).
Faz-se necessário, também, examinar o suspense em interdiscursos e inter-
textos de outros gêneros textuais-discursivos.
113
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dade Católica de São Paulo, Programa de Pós-Graduação em Língua Portuguesa.
117
ANEXOS
118
ANEXO A – CONTO “A CARTEIRA” DE MACHADO DE ASSIS7
...De repente, Honório olhou para o chão e viu uma carteira.
Abaixar-se, apanhá-la e guardá-la foi obra de alguns instantes. Ninguém o
viu, salvo um homem que estava à porta de uma loja, e que, sem o conhecer, lhe
disse rindo:
– Olhe, se não dá por ela; perdia-a de uma vez.
– É verdade, concordou Honório envergonhado.
Para avaliar a oportunidade desta carteira, é preciso saber que Honório tem
de pagar amanhã uma dívida, quatrocentos e tantos mil-réis, e a carteira trazia o
bojo recheado. A dívida não parece grande para um homem da posição de Honório,
que advoga; mas todas as quantias são grandes ou pequenas, segundo as circuns-
tâncias, e as dele não podiam ser piores. Gastos de família excessivos, a princípio
por servir a parentes, e depois por agradar à mulher, que vivia aborrecida da soli -
dão; baile daqui, jantar dali, chapéus, leques, tanta cousa mais, que não havia re-
médio senão ir descontando o futuro.
Endividou-se. Começou pelas contas de lojas e armazéns; passou aos em-
préstimos, duzentos a um, trezentos a outro, quinhentos a outro, e tudo a crescer, e
os bailes a darem-se, e os jantares a comerem-se, um turbilhão perpétuo, uma vora-
gem.
– Tu agora vais bem, não? dizia-lhe ultimamente o Gustavo C..., advogado e
familiar da casa.
– Agora vou, mentiu o Honório.
A verdade é que ia mal. Poucas causas, de pequena monta, e constituintes
remissos; por desgraça perdera ultimamente um processo, com que fundara gran-
des esperanças. Não só recebeu pouco, mas até parece que ele lhe tirou alguma
cousa à reputação jurídica; em todo caso, andavam mofinas nos jornais.
7 Conto de Machado de Assis de 1884 (ASSIS, 2011)
119
D. Amélia não sabia nada; ele não contava nada à mulher, bons ou maus ne-
gócios. Não contava nada a ninguém. Fingia-se tão alegre como se nadasse em um
mar de prosperidades. Quando o Gustavo, que ia todas as noites à casa dele, dizia
uma ou duas pilhérias, ele respondia com três e quatro; e depois ia ouvir os trechos
de música alemã, que D. Amélia tocava muito bem ao piano, e que o Gustavo escu-
tava com indizível prazer, ou jogavam cartas, ou simplesmente falavam de política.
Um dia, a mulher foi achá-lo dando muitos beijos à filha, criança de quatro
anos, e viu-lhe os olhos molhados; ficou espantada, e perguntou-lhe o que era.
– Nada, nada.
Compreende-se que era o medo do futuro e o horror da miséria.
Mas as esperanças voltavam com facilidade. A idéia de que os dias melhores
tinham de vir dava-lhe conforto para a luta. Estava com, trinta e quatro anos; era o
princípio da carreira: todos os princípios são difíceis. E toca a trabalhar, a esperar, a
gastar, pedir fiado ou emprestado, para pagar mal, e a más horas.
A dívida urgente de hoje são uns malditos quatrocentos e tantos mil-réis de
carros. Nunca demorou tanto a conta, nem ela cresceu tanto, como agora; e, a rigor,
o credor não lhe punha a faca aos peitos; mas disse-lhe hoje uma palavra azeda,
com um gesto mau, e Honório quer pagar-lhe hoje mesmo. Eram cinco horas da tar -
de.
Tinha-se lembrado de ir a um agiota, mas voltou sem ousar pedir nada. Ao
enfiar pela Rua. da Assembléia é que viu a carteira no chão, apanhou-a, meteu no
bolso, e foi andando.
Durante os primeiros minutos, Honório não pensou nada; foi andando, andan-
do, andando, até o Largo da Carioca. No Largo parou alguns instantes, – enfiou de-
pois pela Rua da Carioca, mas voltou logo, e entrou na Rua Uruguaiana.
Sem saber como, achou-se daí a pouco no Largo de S. Francisco de Paula; e
ainda, sem saber como, entrou em um Café. Pediu alguma cousa e encostou-se à
parede, olhando para fora. Tinha medo de abrir a carteira; podia não achar nada,
apenas papéis e sem valor para ele. Ao mesmo tempo, e esta era a causa principal
das reflexões, a consciência perguntava-lhe se podia utilizar-se do dinheiro que
achasse.
120
Não lhe perguntava com o ar de quem não sabe, mas antes com uma expres-
são irônica e de censura. Podia lançar mão do dinheiro, e ir pagar com ele a dívida?
Eis o ponto. A consciência acabou por lhe dizer que não podia, que devia le-
var a carteira à polícia, ou anunciá-la; mas tão depressa acabava de lhe dizer isto,
vinham os apuros da ocasião, e puxavam por ele, e convidavam-no a ir pagar a co-
cheira. Chegavam mesmo a dizer-lhe que, se fosse ele que a tivesse perdido, nin-
guém iria entregar-lha; insinuação que lhe deu ânimo.
Tudo isso antes de abrir a carteira. Tirou-a do bolso, finalmente, mas com
medo, quase às escondidas; abriu-a, e ficou trêmulo. Tinha dinheiro, muito dinheiro;
não contou, mas viu duas notas de duzentos mil-réis, algumas de cinqüenta e vinte;
calculou uns setecentos mil-réis ou mais; quando menos, seiscentos. Era a dívida
paga; eram menos algumas despesas urgentes. Honório teve tentações de fechar
os olhos, correr à cocheira, pagar, e, depois de paga a dívida, adeus; reconciliar-
se-ia consigo. Fechou a carteira, e com medo de a perder, tornou a guardá-la.
Mas daí a pouco tirou-a outra vez, e abriu-a, com vontade de contar o dinhei-
ro. Contar para quê? Era dele? Afinal venceu-se e contou: eram setecentos e trinta
mil-réis. Honório teve um calafrio.
Ninguém viu, ninguém soube; podia ser um lance da fortuna, a sua boa sorte,
um anjo... Honório teve pena de não crer nos anjos...
Mas por que não havia de crer neles? E voltava ao dinheiro, olhava, passava-
o pelas mãos; depois, resolvia o contrário, não usar do achado, restituí-lo.
Restituí-lo a quem? Tratou de ver se havia na carteira algum sinal.
"Se houver um nome, uma indicação qualquer, não posso utilizar-me do di-
nheiro," pensou ele.
Esquadrinhou os bolsos da carteira. Achou cartas, que não abriu, bilhetinhos
dobrados, que não leu, e por fim um cartão de visita; leu o nome; era do Gustavo.
Mas então, a carteira?... Examinou-a por fora, e pareceu-lhe efetivamente do amigo.
Voltou ao interior; achou mais dois cartões, mais três, mais cinco. Não havia dúvida;
era dele.
A descoberta entristeceu-o. Não podia ficar com o dinheiro, sem praticar um
ato ilícito, e, naquele caso, doloroso ao seu coração porque era em dano de um
121
amigo. Todo o castelo levantado esboroou-se como se fosse de cartas. Bebeu a últi-
ma gota de café, sem reparar que estava frio. Saiu, e só então reparou que era qua-
se noite. Caminhou para casa. Parece que a necessidade ainda lhe deu uns dois
empurrões, mas ele resistiu.
Paciência, disse ele consigo; verei amanhã o que posso fazer.
Chegando à casa, já ali achou o Gustavo, um pouco preocupado e a própria
D. Amélia o parecia também. Entrou rindo, e perguntou ao amigo se lhe faltava algu-
ma cousa.
– Nada.
– Nada?
– Por quê?
– Mete a mão no bolso; não te falta nada?
– Falta-me a carteira, disse o Gustavo sem meter a mão no bolso.
– Sabes se alguém a achou?
– Achei-a eu, disse Honório entregando-lha.
Gustavo pegou dela precipitadamente, e olhou desconfiado para o amigo.
Esse olhar foi para Honório como um golpe de estilete; depois de tanta luta
com a necessidade, era um triste prêmio. Sorriu amargamente; e, como o outro lhe
perguntasse onde a achara, deu-lhe as explicações precisas.
– Mas conheceste-a?
– Não; achei os teus bilhetes de visita.
Honório deu duas voltas, e foi mudar de toilette para o jantar.
Então Gustavo sacou novamente a carteira, abriu-a, foi a um dos bolsos, tirou
um dos bilhetinhos, que o outro não quis abrir nem ler, e estendeu-o a D. Amélia,
que, ansiosa e trêmula, rasgou-o em trinta mil pedaços: era um bilhetinho de amor.
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ANEXO B – CONTO “VENHA VER O PÔR-DO-SOL” DE LYGIA FAGUNDES TELLES8
Ela subiu sem pressa a tortuosa ladeira. À medida que avançava, as casas
iam rareando, modestas casas espalhadas sem simetria e ilhadas em terrenos baldi-
os. No meio da rua sem calçamento, coberta aqui e ali por um mato rasteiro, algu-
mas crianças brincavam de roda. A débil cantiga infantil era a única nota viva na qui-
etude da tarde.
Ele a esperava encostado a uma árvore. Esguio e magro, metido num largo
blusão azul-marinho, cabelos crescidos e desalinhados, tinha um jeito jovial de estu-
dante.
– Minha querida Raquel.
Ela encarou-o, séria. E olhou para os próprios sapatos.
– Veja que lama. Só mesmo você inventaria um encontro num lugar destes.
Que idéia, Ricardo, que idéia! Tive que descer do táxi lá longe, jamais ele chegaria
aqui em cima.
Ele riu entre malicioso e ingênuo.
– Jamais? Pensei que viesse vestida esportivamente e agora me aparece
nessa elegância! Quando você andava comigo, usava uns sapatões de sete léguas,
lembra?
– Foi para me dizer isso que você me fez subir até aqui? – perguntou ela,
guardando as luvas na bolsa. Tirou um cigarro. – Hein?!
– Ah, Raquel... – e ele tomou-a pelo braço. Você, está uma coisa de linda. E
fuma agora uns cigarrinhos pilantras, azul e dourado... Juro que eu tinha que ver
ainda uma vez toda essa beleza, sentir esse perfume. Então? Fiz mal?
– Podia ter escolhido um outro lugar, não? – Abrandara a voz. – E que é isso
aí? Um cemitério?
8 Conto de Lygia Fagundes Telles de 1975 (TELLES, 2011).
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Ele voltou-se para o velho muro arruinado. Indicou com o olhar o portão de
ferro, carcomido pela ferrugem.
– Cemitério abandonado, meu anjo. Vivos e mortos, desertaram todos. Nem
os fantasmas sobraram, olha aí como as criancinhas brincam sem medo acrescen-
tou apontando as crianças na sua ciranda.
Ela tragou lentamente. Soprou a fumaça na cara do companheiro.
– Ricardo e suas idéias. E agora? Qual o programa?
Brandamente ele a tomou pela cintura.
– Conheço bem tudo isso, minha gente está, enterrada aí. Vamos entrar um
instante e te mostrarei o pôr-do-sol mais lindo do mundo.
Ela encarou-o um instante. Envergou a cabeça para trás numa risada.
– Ver o pôr-do-sol!... Ali, meu Deus... Fabuloso, fabuloso!... Me implora um úl-
timo encontro, me atormenta dias seguidos, me faz vir de longe para esta buraquei -
ra, só mais uma vez, só mais uma! E para quê? Para ver o pôr-do-sol num cemité -
rio...
Ele riu também, afetando encabulamento como um menino pilhado em falta.
– Raquel, minha querida, não faça assim comigo. Você sabe que eu gostaria
era de te levar ao meu apartamento, mas fiquei mais pobre ainda, como se isso fos-
se possível. Moro agora numa pensão horrenda, a dona é uma Medusa que vive es -
piando pelo buraco da fechadura...
– E você acha que eu iria?
– Não se zangue, sei que não iria, você está sendo fidelíssima. Então pensei,
se pudéssemos conversar um pouco numa rua afastada... – disse ele, aproximando-
se mais. Acariciou-lhe o braço com as pontas dos dedos. Ficou sério. E aos poucos,
inúmeras rugazinhas foram-se formando em redor dos seus olhos ligeiramente aper-
tados. Os leques de rugas se aprofundaram numa expressão astuta. Não era nesse
instante tão jovem como aparentava. Mas logo sorriu e a rede de rugas desapare-
ceu sem deixar vestígio. Voltou-lhe novamente o ar inexperiente e meio desatento. –
Você fez bem em vir.
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– Quer dizer que o programa... E não podíamos tomar alguma coisa num
bar?
– Estou sem dinheiro, meu anjo, vê se entende.
– Mas eu pago.
– Com o dinheiro dele? Prefiro beber formicida. Escolhi este passeio porque é
de graça e muito decente, não pode haver um passeio mais decente, não concorda
comigo? Até romântico.
Ela olhou em redor. Puxou o braço que ele apertava.
– Foi um risco enorme, Ricardo. Ele é ciumentíssimo. Está farto de saber que
tive meus casos. Se nos pilha juntos, então sim, quero só ver se alguma das suas
fabulosas idéias vai me consertar a vida.
– Mas me lembrei deste lugar justamente porque não quero que você se ar-
risque, meu anjo. Não tem lugar mais discreto do que um cemitério abandonado,
veja, completamente abandonado – prosseguiu ele, abrindo o portão. Os velhos
gonzos gemeram. – Jamais seu amigo ou um amigo do seu amigo saberá que esti-
vemos aqui.
– É um risco enorme, já disse. Não insista nessas brincadeiras, por favor. E
se vem um enterro? Não suporto enterros.
– Mas enterro de quem? Raquel, Raquel, quantas vezes preciso repetir a
mesma coisa?! Há séculos ninguém mais é enterrado aqui, acho que nem os ossos
sobraram, que bobagem. Vem comigo, pode me dar o braço, não tenha medo.
O mato rasteiro dominava tudo. E não satisfeito de ter-se alastrado furioso
pelos canteiros, subira pelas sepulturas, infiltrara-se ávido pelos rachões dos már-
mores, invadira as alamedas de pedregulhos esverdinhados, como se quisesse com
sua violenta força de vida cobrir para sempre os últimos vestígios da morte. Foram
andando pela longa alameda banhada de sol. Os passos de ambos ressoavam so-
noros como uma estranha música feita do som das folhas secas trituradas sobre os
pedregulhos. Amuada mas obediente, ela se deixava conduzir como uma criança.
Às vezes mostrava certa curiosidade por uma ou outra sepultura com os pálidos,
medalhões de retratos esmaltados.
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– É imenso, hein? E tão miserável, nunca vi um cemitério mais miserável, que
deprimente – exclamou ela, atirando a ponta do cigarro na direção de um anjinho de
cabeça decepada. – Vamos embora, Ricardo, chega.
– Ali, Raquel, olha um pouco para esta tarde! Deprimente por quê? Não sei
onde foi que eu li, a beleza não está nem na luz da manhã nem na sombra da noite,
está no crepúsculo, nesse meio-tom, nessa ambigüidade. Estou-lhe dando um cre-
púsculo numa bandeja, e você se queixa.
– Não gosto de cemitério, já disse. E ainda mais cemitério pobre.
Delicadamente ele beijou-lhe a mão.
– Você prometeu dar um fim de tarde a este seu escravo.
– É, mas fiz mal. Pode ser muito engraçado, mas não quero me arriscar mais.
– Ele é tão rico assim?
– Riquíssimo. Vai me levar agora numa viagem fabulosa até o Oriente. Já ou-
viu falar no Oriente? Vamos até o Oriente, meu caro...
Ele apanhou um pedregulho e fechou-o na mão. A pequenina rede de rugas
voltou a se estender em redor dos seus olhos. A fisionomia, tão aberta e lisa, repen-
tinamente escureceu, envelhecida. Mas logo o sorriso reapareceu e as rugazinhas
sumiram.
– Eu também te levei um dia para passear de barco, lembra?
Recostando a cabeça no ombro do homem, ela retardou o passo.
– Sabe, Ricardo, acho que você é mesmo meio tantã... Mas apesar de tudo,
tenho às vezes saudade daquele tempo. Que ano aquele! Quando penso, não en-
tendo como agüentei tanto, imagine, um ano!
– É que você tinha lido A Dama das Camélias, ficou assim toda frágil, toda
sentimental. E agora? Que romance você está lendo agora?
– Nenhum – respondeu ela, franzindo os lábios. Deteve-se para ler a inscri-
ção de uma laje despedaçada: minha querida esposa, eternas saudades – leu em
voz baixa. – Pois sim. Durou pouco essa eternidade.
Ele atirou o pedregulho num canteiro ressequido.
126
– Mas é esse abandono na morte que faz o encanto disto. Não se encontra
mais a menor intervenção dos vivos, a estúpida intervenção dos vivos. Veja – disse
apontando uma sepultura fendida, a erva daninha brotando insólita de dentro da fen-
da -, o musgo já cobriu o nome na pedra. Por cima do musgo, ainda virão as raízes,
depois as folhas... Esta a morte perfeita, nem lembrança, nem saudade, nem o
nome sequer. Nem isso.
Ela aconchegou-se mais a ele. Bocejou.
– Está bem, mas agora vamos embora que já me diverti muito, faz tempo que
não me divirto tanto, só mesmo um cara como você podia me fazer divertir assim. –
Deu-lhe um rápido beijo na face.
– Chega, Ricardo, quero ir embora.
– Mais alguns passos...
– Mas este cemitério não acaba mais, já andamos quilômetros! – Olhou para
trás. – Nunca andei tanto, Ricardo, vou ficar exausta.
– A boa vida te deixou preguiçosa? Que feio – lamentou ele, impelindo-a para
a frente. – Dobrando esta alameda, fica o jazigo da minha gente, é de lá que se vê o
pôr-do-sol. Sabe, Raquel, andei muitas vezes por aqui de mãos dadas com minha
prima. Tínhamos então doze anos. Todos os domingos minha mãe vinha trazer flo-
res e arrumar nossa capelinha onde já estava enterrado meu pai. Eu e minha primi-
nha vínhamos com ela e ficávamos por aí, de mãos dadas, fazendo tantos planos.
Agora as duas estão mortas.
– Sua prima também?
– Também. Morreu quando completou quinze anos. Não era propriamente bo-
nita, mas tinha uns olhos... Eram assim verdes como os seus, parecidos com os
seus. Extraordinário, Raquel, extraordinário como vocês duas... Penso agora que
toda a beleza dela residia apenas nos olhos, assim meio oblíquos, como os seus.
– Vocês se amaram?
– Ela me amou. Foi a única criatura que... Fez um gesto. – Enfim, não tem im-
portância.
Raquel tirou-lhe o cigarro, tragou e depois devolveu-o.
127
– Eu gostei de você, Ricardo.
– E eu te amei... E te amo ainda. Percebe agora a diferença?
Um pássaro rompeu cipreste e soltou um grito. Ela estremeceu.
– Esfriou, não? Vamos embora.
– Já chegamos, meu anjo. Aqui estão meus mortos.
Pararam diante de uma capelinha coberta: de alto a baixo por uma trepadeira
selvagem, que a envolvia num furioso abraço de cipós e folhas. A estreita porta ran-
geu quando ele a abriu de par em par. A luz invadiu um cubículo de paredes ene-
grecidas, cheias de estrias de antigas goteiras. No centro do cubículo, um altar meio
desmantelado, coberto por uma toalha que adquirira a cor do tempo. Dois vasos de
desbotada opalina ladeavam um tosco crucifixo de madeira. Entre os braços da
cruz, uma aranha tecera dois triângulos de teias já rompidas, pendendo como farra-
pos de um manto que alguém colocara sobre os ombros do Cristo. Na parede late -
ral, à direita da porta, uma portinhola de ferro dando acesso para uma escada de
pedra, descendo em caracol para a catacumba.
Ela entrou na ponta dos pés, evitando roçar mesmo de leve naqueles restos
da capelinha.
– Que triste que é isto, Ricardo. Nunca mais você esteve aqui?
Ele tocou na face da imagem recoberta de poeira. Sorriu, melancólico.
– Sei que você gostaria de encontrar tudo limpinho, flores nos vasos, velas,
sinais da minha dedicação, certo? Mas já disse que o que mais amo neste cemitério
é precisamente este abandono, esta solidão. As pontes com o outro mundo foram
cortadas e aqui a morte se isolou total. Absoluta.
Ela adiantou-se e espiou através das enferrujadas barras de ferro da porti -
nhola. Na semiobscuridade do subsolo, os gavetões se estendiam ao longo das
quatro paredes que formavam um estreito retângulo cinzento.
– E lá embaixo?
– Pois lá estão as gavetas. E, nas gavetas, minhas raízes. Pó, meu anjo, pó –
murmurou ele. Abriu a portinhola e desceu a escada.
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Aproximou-se de uma gaveta no centro da parede, segurando firme na alça
de bronze, como se fosse puxá-la. – A cômoda de pedra. Não é grandiosa?
Detendo-se no topo da escada, ela inclinou-se mais para ver melhor.
– Todas essas gavetas estão cheias?
– Cheias?... Só as que têm o retrato e a inscrição, está vendo? Nesta está o
retrato da minha mãe, aqui ficou minha mãe – prosseguiu ele, tocando com as pon-
tas dos dedos num medalhão esmaltado embutido no centro da gaveta.
Ela cruzou os braços. Falou baixinho, um ligeiro tremor na voz.
– Vamos, Ricardo, vamos.
– Você está com medo?
– Claro que não, estou é com frio. Suba e vamos embora, estou com frio!
Ele não respondeu. Adiantara-se até um dos gavetões na parede oposta e
acendeu um fósforo. Inclinou-se para o medalhão frouxamente iluminado.
– A priminha Maria Emília. Lembro-me até do dia em que tirou esse retrato,
duas semanas antes de morrer... Prendeu os cabelos com uma fita azul e veio se
exibir, estou bonita? Estou bonita?... – Falava agora consigo mesmo, doce e grave-
mente. – Não é que fosse bonita, mas os olhos... Venha ver, Raquel, é impressio-
nante como tinha olhos iguais aos seus.
Ela desceu a escada, encolhendo-se para não esbarrar em nada.
– Que frio faz aqui. E que escuro, não estou enxergando !
Acendendo outro fósforo, ele ofereceu-o à companheira.
– Pegue, dá para ver muito bem... – Afastou-se para o lado. – Repare nos
olhos.
– Mas está tão desbotado, mal se vê que é uma moça... – Antes da chama se
apagar, aproximou-a da inscrição feita na pedra. Leu em voz alta, lentamente. – Ma-
ria Emília, nascida em vinte de maio de mil e oitocentos e falecida... – Deixou cair o
palito e ficou um instante imóvel. – Mas esta não podia ser sua namorada, morreu
há mais de cem anos ! Seu menti...
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Um baque metálico decepou-lhe a palavra pelo meio. Olhou em redor. A peça
estava deserta. Voltou o olhar para a escada. No topo, Ricardo a observava por de-
trás da portinhola fechada. Tinha seu sorriso meio inocente, meio malicioso.
– Isto nunca foi o jazigo da sua família, seu mentiroso! Brincadeira mais creti-
na! – exclamou ela, subindo rapidamente a escada. – Não tem graça nenhuma, ou-
viu?
Ele esperou que ela chegasse quase a tocar o trinco da portinhola de ferro.
Então deu uma volta à chave, arrancou-a da fechadura e saltou para trás.
– Ricardo, abre isto imediatamente! Vamos, imediatamente! – ordenou, tor-
cendo o trinco. – Detesto este tipo de brincadeira, você sabe disso. Seu idiota! É no
que dá seguir a cabeça de um idiota desses. Brincadeira mais estúpida!
– Uma réstia de sol vai entrar pela frincha da porta, tem uma frincha na porta.
Depois vai se afastando devagarinho, bem devagarinho. Você terá o pôr-do-sol mais
belo do mundo.
Ela sacudia a portinhola.
– Ricardo, chega, já disse! Chega! Abre imediatamente, imediatamente! – Sa-
cudiu a portinhola com mais força ainda, agarrou-se a ela, dependurando-se por en-
tre as grades. Ficou ofegante, os olhos cheios de lágrimas. Ensaiou um sorriso. –
Ouça, meu bem, foi engraçadíssimo, mas agora preciso ir mesmo, vamos, abra...
Ele já não sorria. Estava sério, os olhos diminuídos. Em redor deles, reapare-
ceram as rugazinhas abertas em leque.
– Boa noite, Raquel...
– Chega, Ricardo! Você vai me pagar!... – gritou ela, estendendo os braços
por entre as grades, tentando agarrá-lo. – Cretino! Me dá a chave desta porcaria,
vamos! – exigiu, examinando a fechadura nova em folha. -Examinou em seguida as
grades cobertas por uma crosta de ferrugem. Imobilizou-se. Foi erguendo o olhar
até a chave que ele balançava pela argola, como um pêndulo. Encarou-o, apertando
contra a grade a face sem cor. Esbugalhou os olhos num espasmo e amoleceu o
corpo. Foi escorregando. – Não, não...
Voltado ainda para ela, ele chegara até a porta e abriu os braços. Foi puxan-
do, as duas folhas escancaradas.
130
– Boa noite, meu anjo.
Os lábios dela se pregavam um ao outro, como se, entre eles houvesse cola.
Os olhos rodavam pesadamente numa expressão embrutecida.
– Não...
Guardando a chave no bolso, ele retomou o caminho percorrido. No breve si-
lêncio, o som dos pedregulhos se entrechocando úmidos sob seus sapatos. E, de
repente, o grito medonho, inumano:
– NÃO!
Durante algum tempo ele ainda ouviu os gritos que se multiplicaram, seme-
lhantes aos de, um animal sendo, estraçalhado. Depois, os uivos foram ficando mais
remotos, abafados como se viessem das profundezas da terra. Assim que atingiu o
portão do cemitério, ele lançou ao poente um olhar mortiço. Ficou atento. Nenhum
ouvido humano escutaria agora, qualquer chamado. – Acendeu um cigarro e foi des-
cendo a ladeira. Crianças ao longe brincavam de roda.