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1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13 th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X ESTRATÉGIAS E PERCURSOS DE MOBILIDADE DA EMPREGADA DOMÉSTICA BRASILEIRA COMO TRABALHADORA ESTRANGEIRA EM PORTUGAL Marcelo José Oliveira 1 Resumo: Em 2014, com apoio CNPq, realizei estudo etnográfico em Portugal, centrado na presença de trabalhadoras brasileiras no setor de serviços domésticos, tendo como foco os seguintes aspectos: o impacto das recentes mudanças econômicas e políticas em Portugal sobre as perspectivas da permanência no país estrangeiro e os riscos que se submetem no tocante a clandestinidade; as lógicas de conexões de sua mobilidade no roteiro Brasil-Portugal; as estratégias na obtenção de recursos materiais e simbólicos que as situam num estilo de vida sustentável, conferindo-lhe status privilegiado e de empoderamento em seu círculo social no país de origem. Percebemos que estas trabalhadoras apostam em um projeto profissional possível, mesmo que muitas delas corram os riscos da vulnerabilidade social, sujeição ao trabalho precário e à clandestinidade “temporária”. Para além da condição de discriminação por ser trabalhadora estrangeira, o empreendimento toma outras dimensões de agência: a de protagonismo no papel de principal provedora de família no país de origem e no país de destino; de reconfiguração dos papéis que consubstanciam a noção de lar em trânsito internacional; de estratégias necessárias para permanência clandestina. Palavras-chave: Gênero e Trabalho. Serviço Doméstico. Migração Internacional. A estimativa é de que dos 200 milhões de migrantes estrangeiros no mundo as mulheres compõe a metade deste contingente, sendo que muitas delas assumem o papel de principal provedora de família no seu país de origem (PEREZ, 2008). Entre os anos 80 e 90 do séc. XX e primeira década do séc. XXI Portugal e Espanha receberam levas significativas de trabalhadoras estrangeiras, oriundas principalmente de países da América Latina, África e Leste europeu. Estudos produzidos por pesquisadora(e)s que investigam o eixo Brasil-Portugal apontam que brasileiras figuram de maneira expressiva no setor de serviço doméstico em Portugal. Estas trabalhadoras envolvem-se num projeto profissional internacional, submetendo-se, a maioria, aos riscos da clandestinidade, próximas da rede de tráfico humano e trabalho precário, ou escravo em alguns casos (PAIS, 2010; PEREIRA, 2009; PISCITELLI, 2009, 2007; SILVA, 2008; PEIXOTO, 2007). Neste contexto, destacamos os seguintes aspectos desta migração e da condição de “trabalhadora estrangeira”, como seguem: 1) as estratégias articuladas em torno dos recursos materiais e simbólicos que efetivamente motivam e propiciam a viagem para o país estrangeiro e sua permanência; 2) o impacto deste projeto de trabalho internacional nas rearticulações das práticas de família e de estilo de vida, realocando-as noutra relação de empoderamento em seu círculo social no 1 Professor de Antropologia Social do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Viçosa MG, Brasil.

ESTRATÉGIAS E PERCURSOS DE MOBILIDADE DA ......1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

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    Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

    Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

    ESTRATÉGIAS E PERCURSOS DE MOBILIDADE DA EMPREGADA DOMÉSTICA

    BRASILEIRA COMO TRABALHADORA ESTRANGEIRA EM PORTUGAL

    Marcelo José Oliveira1

    Resumo: Em 2014, com apoio CNPq, realizei estudo etnográfico em Portugal, centrado na presença

    de trabalhadoras brasileiras no setor de serviços domésticos, tendo como foco os seguintes aspectos:

    o impacto das recentes mudanças econômicas e políticas em Portugal sobre as perspectivas da

    permanência no país estrangeiro e os riscos que se submetem no tocante a clandestinidade; as

    lógicas de conexões de sua mobilidade no roteiro Brasil-Portugal; as estratégias na obtenção de

    recursos materiais e simbólicos que as situam num estilo de vida sustentável, conferindo-lhe status

    privilegiado e de empoderamento em seu círculo social no país de origem. Percebemos que estas

    trabalhadoras apostam em um projeto profissional possível, mesmo que muitas delas corram os

    riscos da vulnerabilidade social, sujeição ao trabalho precário e à clandestinidade “temporária”.

    Para além da condição de discriminação por ser trabalhadora estrangeira, o empreendimento toma

    outras dimensões de agência: a de protagonismo no papel de principal provedora de família no país

    de origem e no país de destino; de reconfiguração dos papéis que consubstanciam a noção de lar em

    trânsito internacional; de estratégias necessárias para permanência clandestina.

    Palavras-chave: Gênero e Trabalho. Serviço Doméstico. Migração Internacional.

    A estimativa é de que dos 200 milhões de migrantes estrangeiros no mundo as mulheres

    compõe a metade deste contingente, sendo que muitas delas assumem o papel de principal

    provedora de família no seu país de origem (PEREZ, 2008). Entre os anos 80 e 90 do séc. XX e

    primeira década do séc. XXI Portugal e Espanha receberam levas significativas de trabalhadoras

    estrangeiras, oriundas principalmente de países da América Latina, África e Leste europeu. Estudos

    produzidos por pesquisadora(e)s que investigam o eixo Brasil-Portugal apontam que brasileiras

    figuram de maneira expressiva no setor de serviço doméstico em Portugal. Estas trabalhadoras

    envolvem-se num projeto profissional internacional, submetendo-se, a maioria, aos riscos da

    clandestinidade, próximas da rede de tráfico humano e trabalho precário, ou escravo em alguns

    casos (PAIS, 2010; PEREIRA, 2009; PISCITELLI, 2009, 2007; SILVA, 2008; PEIXOTO, 2007).

    Neste contexto, destacamos os seguintes aspectos desta migração e da condição de “trabalhadora

    estrangeira”, como seguem: 1) as estratégias articuladas em torno dos recursos materiais e

    simbólicos que efetivamente motivam e propiciam a viagem para o país estrangeiro e sua

    permanência; 2) o impacto deste projeto de trabalho internacional nas rearticulações das práticas de

    família e de estilo de vida, realocando-as noutra relação de empoderamento em seu círculo social no

    1 Professor de Antropologia Social do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Viçosa – MG,

    Brasil.

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    Brasil; 3) o impacto das recentes mudanças econômicas e políticas em Portugal sobre as

    perspectivas de permanecer no país; 4) as condições concretas de trabalho precário e

    vulnerabilidade social a que se submetem em função da permanência ilegal em Portugal, aliado a

    condição que a mulher brasileira ocupa no imaginário português (GOMES, 2013; PISCITELLI, ;

    PAIS, 2010; PISCITELLI, 2009, 2007).

    Contexto Português e Metodologia Empregada

    De março a dezembro de 2014 desenvolvi trabalho de investigação focado nas brasileiras que atuam

    no setor de serviço doméstico em Portugal, buscando compreender os aspectos que caracterizam

    esta mobilidade transatlântica, levando em consideração o contexto de percursos e articulações

    entre a condição de trabalhadora clandestina e a busca pela regularização da condição legal como

    trabalhadora estrangeira neste país.2

    A metodologia de investigação envolveu três etapas correspondentes durante o período em

    referência: 1) levantamento bibliográfico científico sobre imigração brasileira em Portugal, sendo

    priorizado respectivamente o repositório físico da biblioteca do Instituto de Ciências Sociais da

    Universidade de Lisboa e seu acervo eletrônico de periódicos científicos open access, assim como a

    mídia eletrônica e impressa de periódicos de circulação nacional e local; 2) Mapeamento, com base

    na literatura especializada consultada, dos contextos laborais da mão-de-obra estrangeira em

    Portugal, com foco no trabalhado doméstico remunerado; 3) incursão etnográfica cotidiana para

    constatação da incidência da presença da trabalhadora doméstica brasileira em setores públicos e

    institucionais na cidade de Lisboa.

    Para além das informações coletadas nas interações cotidianas neste período de 10 meses,

    num balanço das entrevistas formais realizadas, de média e longa duração, contabilizo os seguintes

    números: 06 trabalhadoras domésticas brasileiras em Lisboa, com foco na narrativa biográfica

    relacionada à trajetória migratória; 02 Coordenadoras de Projetos de Organizações Não

    Governamental, voltadas à imigração brasileira e demais nacionalidades, respectivamente Casa do

    Brasil de Lisboa e Associação ComuniDária; 01 representante do Gabinete de Inserção Profissional

    (GIP) do Alto Comissariado para Migração do governo português; 02 investigadores doutorandos,

    2 O trabalho foi realizado com fomento de bolsa de pesquisa CNPq, e contou com a orientação e supervisão da Profa.

    Dra. Cristiana Bastos, antropóloga e investigadora vinculada ao Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa

    (ICS-UL), Instituição que sediou o desenvolvimento do projeto.

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    respectivamente vinculados ao ISEG e ICS, especialistas no tema trabalho doméstico e imigração

    em Portugal.

    A empreitada de campo envolveu os seguintes contextos de relações diretas: acadêmico

    (esfera institucional de formação e de desenvolvimento da investigação a partir do Instituto de

    Ciências Sociais da Universidade Lisboa ICS-UL); comercial de consumo (esfera das relações

    cotidianas na frequentação da vida pública de bairro e cidade); de vizinhança (esfera restrita aos

    universos de residência em dois bairros, em relações próximas, informais, onde o face-to-face é

    marcado por detalhes de forma nas relações que travei com portugueses, portuguesas, imigrantes

    estrangeiras e estrangeiros, entre eles brasileiros e brasileiras); e de organização da sociedade civil

    (esfera das relações de contato que estabeleci com duas entidades não governamentais que tem

    como missão a recepção de brasileiros e brasileiras imigrantes em Portugal, denominadas “Casa do

    Brasil de Lisboa” e “Associação ComuniDária”). Trata-se de duas organizações não

    governamentais de caráter distintos, mas que interagem com os brasileiros e brasileiras imigrantes

    em Portugal, também atendendo outras nacionalidades.3

    Na casa do Brasil de Lisboa pude participar de reuniões do “Projeto Acolhida”. Projeto que

    envolve sessões de acolhimento de brasileiros e brasileiras imigrantes em Portugal, promovendo

    trocas de experiências e debates úteis a partir de temas sobre cultura e cotidiano português, trabalho

    imigrante, discriminação e preconceito, entre outras atividades de formação. Trata-se de ações que

    priorizam a informação, sensibilização e conscientização para os Direitos e Deveres do imigrante.

    As reuniões ocorrem regularmente e com agenda previamente anunciada. Participei de seis

    reuniões, acompanhando os debates sobre preocupações e tensões mais vividas pelas imigrantes

    brasileiras em Lisboa, além de participar de outras atividades sociais realizadas para integração,

    entre as quais destaco as do mês de junho de 2014, relacionadas ao Mundial de Seleções de Futebol

    (Copa do Mundo). Também fui cursista numa formação de curta duração oferecido pela Casa em

    parceria com a Associação Portuguesa de Apoio a Vítima, intitulado “Discriminação Racial:

    reconhecer e agir”. Um curso, segundo a preletora, com clara demanda para trabalhadores

    estrangeiros. Foi neste espaço de interlocução que observei com mais precisão a demanda imigrante

    com relação as expectativas da chegada recente no país, dificuldades e facilidades de adaptação,

    frustração e otimismo para a permanência e para inserção em postos de trabalho, entre outros

    aspectos.

    3 Para mais informações sobre estas instituições acessar http://www.casadobrasil.info/ e http://www.comunidaria.org/.

    http://www.casadobrasil.info/http://www.comunidaria.org/

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    O contato com a Associação Comunidária ocorreu de outra forma, pela própria proposta

    militante da entidade. Trata-se de instituição sem fins lucrativos que intervém na promoção de

    igualdade de gênero e proteção de Direitos de mulheres trabalhadoras imigrantes em risco de

    exclusão social e de precariedade nas relações de trabalho. As ações também envolvem informação,

    sensibilização e conscientização para os Direitos da imigrante na causa pelo “trabalho doméstico

    digno”, segundo principal slogan da campanha que a organização realiza. A proposta, segundo sua

    presidente, é romper com o assistencialismo e fortalecer um coletivo que reivindique seus Direitos.

    Encontrei na Associação outro espaço de intenso diálogo com o trabalho que vinha desenvolvendo,

    bem como fui ativo colaborador em algumas ações de intervenção e no diálogo com outras

    organizações afins e atores do parlamento português. Nesta aproximação pude constatar o grave

    problema do trabalho precário a que são submetidas as trabalhadoras domésticas estrangeiras, entre

    brasileiras, africanas oriundas de ex-colônias portuguesas e mulheres do leste europeu.

    Imigração, Trabalho e Precarização

    Segundo relatório produzido pelo Observatório das Migrações Portugal, assim como outros países

    da União Europeia, a partir dos anos 90 tornou-se foco de entrada da mão-de-obra estrangeira.

    Movimento de entrada que contrasta com seu saldo migratório negativo em 2014, ano que há mais

    pessoas emigrando do que imigrando (REIS OLIVEIRA & GOMES, 2014).

    No “1º Seminário de Estudos sobre Imigração Brasileira na Europa”, realizado em 2011,

    foram apresentados dados, com base em estatísticas de 2009, sobre a crescente presença brasileira

    em Portugal, juntamente com imigrantes africanos e do leste-europeus: 25% da população

    estrangeira em Portugal é brasileira, somando 116.220 indivíduos, divididos entre 52.061 homens e

    64.159 mulheres,4 confirmando a tendência geral de feminização do fenômeno da imigração

    internacional. As mulheres, seguindo certa regularidade, desempenham atividades no setor de

    atendimento ao público (bares, cafés e restaurantes), no ramo de limpeza e serviços domésticos,

    incluindo cuidados com crianças e idosos, conforme já mencionado. O perfil geral é mulheres entre

    25 e 45 anos de idade, oriundas principalmente dos Estados de Minas Gerais, São Paulo, Paraná,

    Goiás e Espírito Santo (GOMES, 2008, p. 6-8).

    4 Os dados de 2005 sobre brasileiros com permanência legalizada em Portugal contam 67.457 indivíduos, entre as

    Autorizações de Residência (ARs), prorrogação de Autorizações de Permanência (APs) e Vistos de Longa Duração

    (VLDs). Conferir em Abreu & Peixoto, 2009, p. 739.

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    A mobilidade internacional que a trabalhadora doméstica brasileira vem se envolvendo

    chama a atenção sobre as novas lógicas sobre supostas fases de “regime migratório” (PEIXOTO,

    2007). Nesse sentido podemos considerar os seguintes aspectos relacionados que estimulam a

    emigração brasileira nas últimas décadas: (1) aumento do poder aquisitivo em décadas recentes dos

    segmentos populacionais mais empobrecidos no Brasil, em função do crescimento econômico no

    país até 2013, oportunizando maior oferta de trabalho e renda;5 (2) o aumento do poder aquisitivo

    aliado às políticas de inclusão educacional e digital na escola pública, levando os segmentos mais

    pobres da população ao relativo acesso a internet, participando de redes sociais e acessando

    informações via mídias online que estimulam o desafio de uma carreira internacional (sobre este

    ponto os adolescentes têm assumido um papel chave na inserção da família nas redes sociais

    online); (3) inserção da empregada doméstica brasileira como trabalhadora estrangeira na Europa,

    que aponta para um protagonismo feminino de risco, mas que conta com uma rede social ativa em

    relações de apoio no país de origem e destino; (4) o fato de que esta mobilidade feminina atual não

    se resume à pretensão de reagrupamento familiar no país de destino (PEIXOTO, 2007), já que há

    indícios de que a mesma também se caracteriza como um projeto independente, sem depender

    economicamente de parceiro afetivo, mesmo que esta trabalhadora possua filhos no Brasil; e (5) o

    aumento da captação de mão-de-obra estrangeira no setor doméstico e de limpeza pelos países

    europeus, em função da crescente qualificação profissional de segmentos da população feminina

    economicamente ativa que não mais tem se reservado para a “limpeza da casa”, submetendo-se a

    dupla jornada de trabalho.

    A migração pela busca por espaços de trabalho num país estrangeiro está relacionada a

    possibilidade que estas mulheres vislumbram de melhores condições de vida a partir de um projeto

    avaliado viável pela rede social que acionam, pelo barateamento das passagens aéreas e pelo acesso

    as informações na mídia sobre o até então crescimento econômico europeu,6 sendo que o peso

    simbólico e prático da Europa é evidente em termos de “símbolos ativos” em circulação global

    (ORTIZ, 2000). Conforme os contatos que estabelecem para a chegada em Portugal, o primeiro

    trabalho pode estar garantido, sendo que os salários variam conforme a condição de contratação. É

    fato que a maior parte das “patroas” contrata informalmente, pois evitam pagar os encargos sociais

    previstos em Lei em função dos impostos implicados. Por outro lado, a contratação formal também

    5 Ver “Atlas de Desenvolvimento no Brasil - 2013”, com acesso no endereço “www.atlasbrasil.org.br”. 6 A recente regulamentação em Lei no Brasil das regras de contratação da emprega doméstica ainda não vem sendo

    percebido como ganho real em benefício de oferta de trabalho e maiores salários. O debate público na mídia tem feito

    coro na importância da Lei, ao mesmo tempo em que as opiniões se dividem quanto aos impactos a curto, médio e

    longo prazo.

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    não poderá ocorrer se a trabalhadora estiver em condição clandestina (PÉREZ, 2008). No caso, para

    os primeiros meses de estadia no país, a condição de interna pode parecer oportuna em função da

    condição clandestina, mas envolve riscos por ser a pré-condição para se tornar refém de condições

    precárias de trabalho, algumas vezes se submetendo ao trabalho escravo. Depois de meses

    exercendo o trabalho na condição de interna, algumas destas trabalhadoras optam por dividir um

    aluguel com outra trabalhadora e desempenhar a função como diarista, podendo trabalhar em mais

    de uma casa numa mesma semana.7 Tudo depende da nova “rede de indicações” que estabelecerá,

    seja por indicação de uma colega de profissão ou de suas patroas.

    Projeto Profissional e a Racionalização Afetiva

    Segundo informações que obtive junto a uma das entidades de apoio aqui mencionadas, um número

    significativo de mulheres que vivem a condição de trabalhadora estrangeira relataram já ter sofrido

    preconceito e discriminação, ou alguma forma de assédio, sexual e moral, ou de já ter ou estar

    vivendo a experiência de trabalho precário em seu primeiro período de permanência no país. O que

    costuma ocorrer, após a experiência de trabalho precário e da vulnerabilidade social a que se

    submetem, é de buscarem alternativa na nova rede social que estabeleceram no país e quando vão

    na busca de auxílio de orientação em entidades especializadas de apoio ao imigrante. A maior parte

    quando busca informações e orientações junto a estas instituições, sobre os trâmites e

    procedimentos para a regularização como trabalhadora estrangeira em condição legal, ocorre, em

    média, após um ano de estadia em Portugal. No trabalho de colaborador que desenvolvi na

    Associação Comunidária pude acompanhar algumas destas entrevistas e testemunhar dramáticos

    relatos sobre assédio moral e condição precária de trabalho.

    A trabalhadora doméstica imigrante após meses de estadia renova relações de amizade e

    afeto, seja pelas relações de trabalho ou de lazer, redimensionando o projeto de permanência, cuja

    decisão de não mais voltar definitivamente ao Brasil atrela-se a outros motivos, para além dos que

    motivaram seu movimento de emigração. Na condição de imigrada, entre os novos motivos está o

    de parceria conjugal estável, e/ou de investimento na educação de filhos. “Trabalho” e “relação

    amorosa” estável aparecem como uma combinação importante. O lugar da “estabilidade” nesta

    intenção vai de encontro às relações seguras e de confiança necessárias na experiência estrangeira.

    Ou seja, há propósitos no projeto pessoal de imigração sendo reconstruído, e a afetividade na

    7 Em 2014 o valor médio de uma diarista em Lisboa era de sete euros a hora.

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    direção da conjugalidade e/ou filiação concentram os motivos mais fortes na decisão da

    permanência duradoura. Cuido para que esta afirmação não percorra ou se resuma a ideia utilitária

    de que o matrimônio legal levará ao caminho mais fácil do green-card, mesmo que o projeto de

    estabilidade afetiva, heterogâmica nos casos constatados, leve a isto. Mas, para além disto, o

    contexto sobre o qual estamos tratando, como mencionado acima, é de mulheres que não

    necessariamente estão na busca reagrupamento familiar com o cônjuge; são elas, aliás, que puxam o

    reagrupamento familiar de filiação para o país estrangeiro. Lidamos com um fato a priori: a decisão

    por este deslocamento sintetiza o desejo por uma radical e importante mudança de vida. Como

    afirmara a presidente da Associação Comunidária: “As brasileiras vêm [para Portugal] porque

    romperam com alguma coisa [no Brasil] [...] Rompeu com algum ciclo.” Segundo a mesma, o perfil

    da imigrante brasileira que tem atendido na Associação não diz respeito a mulheres que vão atrás de

    reagrupamento familiar pelo laço com o marido, pelo contrário, seriam estas mulheres que

    atualmente chamam o reagrupamento da rede familiar extensa.

    Situando o Desejo à Luz dos Dados

    Situar o fenômeno da imigração de brasileiras em Portugal dispostas ao trabalho doméstico, que se

    lança em carreira de desafios e riscos num país estrangeiro, exige que localizemos a relação deste

    desejo com o contexto social e cultural que o propicia. Por exemplo, o da experiência liminar destas

    trabalhadoras em lidar com o sentimento da saudade provocada pela ruptura e ausências com as

    coisas e pessoas no Brasil, do estranhamento cultural quando lidam com formas de etiquetas no

    trato da vida pública que pouco tem a ver com certo “jeito brasileiro de ser”, de lidarem com

    prescrições morais tradicionais no que diz respeito à sexualidade, que, por pré-julgamento, a mulher

    brasileira é colocada sob suspeita moral (GOMES, 2013). Há em evidência a ligação da imagem de

    brasileiras com o mercado sexual, o que é fato a existência de brasileiras ligadas ao serviço sexual

    neste país.8 Entretanto, confrontando dados estatísticos sobre postos de trabalho que brasileiras

    assumem em Portugal e os dados sobre a opinião que portugueses têm da mulher brasileira, como

    moralmente suspeitas, supostamente consideradas “putas” em potencial ou de fato, resta-nos uma

    pergunta: Por que as brasileiras figuram, entre as estrangeiras, como maioria em nacionalidade

    8 Também houve em Portugal episódio envolvendo prostitutas brasileiras que submete a fama da mulher brasileira ao

    tribunal da opinião pública portuguesa, pelo impacto na mídia nacional. O episódio que menciono foi denominado

    “Mães de Bragança”. Sobre este fato ver artigo de José Machado Pais, já citado, intitulado “Mães de Bragança e

    Feitiços: enredos luso-brasileiros em torno da sexualidade”, de 2010.

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    requisitada pelos portugueses para trabalho doméstico? Segundo a estatística sobre contratos

    formais, é a brasileira a trabalhadora estrangeira mais contratada para cuidar dos lares portugueses,

    inclusive de seus filhos e velhos (ABRANTES, 2012). Dados que, por questões pragmáticas,

    distanciam a trabalhadora doméstica da relação com a prostituição pelo fato de que a rede social de

    informação e referências que lhe propiciará uma contratação exige indicação de “boas referências”

    morais. Dificilmente uma família portuguesa contratará para serviços domésticos uma mulher

    suspeita de estar ligada ao mercado sexual, o que procede como lógica moral para este ramo. O

    contrário pode ocorrer: fui informado em Lisboa por uma investigadores do tema que algumas

    profissionais do sexo tentam de todas as maneiras obter um contrato falsificado de prestação de

    serviço doméstico para juntar à documentação necessária a ser apresentada no Serviço de

    Estrangeiros e Fronteiras (SEF), com o intuito de adquirir o certificado de residência, no sentido de

    logo regularizar o Visto no país. Esta evidência tem sido motivo de maior atenção pelo SEF aos

    pedidos de visto encaminhados por brasileiras.

    Não há dúvida que o desejo de carreira da trabalhadora doméstica tenha levado a

    movimentos de lutas do segmento, tanto no Brasil como em outras partes do mundo, influenciadas

    pela indignação com a histórica precarização de seu trabalho (GOMES, 2009). Por outro lado,

    segundo relatos e dados do campo, a condição de trabalhadora clandestina leva muitas destas

    mulheres à opção de estabelecer contrato informal como doméstica em tempo integral, submetendo-

    se à maior barganha de seu contratante, no intuito de em curto prazo conseguir renda mínima para

    sua subsistência e proteger-se dos órgãos de fiscalização do governo português, o que implica

    aparentemente em sua barganha de retorno. Porém, sua barganha de retorno opera como uma

    armadilha para si mesma, pois a torna vulnerável a condições precárias de trabalho e de abusos

    relacionados a assédio moral e sexual, e algumas vezes à condição de trabalho escravo, como

    informa uma militante pelos Direitos destas trabalhadoras. No caso, o maior risco é a de ser

    submetida a condições precárias de trabalho, quando na condição de trabalhadora em “regime de

    interna” para uma família, tendo como algoz seu próprio empregador, submetendo-se a

    “dependência refém” por alojamento e alimentação, associado à desinformação, inadaptação

    cultural, ausência de reservas em dinheiro e rede social presencial ainda não estabelecida no país

    estrangeiro. Este quadro não é raro e representa um passo às piores condições de trabalho precário,

    sem a ele chegar pelo agenciamento da rede de tráfico humano, mas, sim, por uma rede social de

    conhecidos que mais informam sobre a possibilidade de início ilegal do que sobre os riscos

    potenciais e concretos da clandestinidade. O fato de algumas delas procurarem apoio nas entidades

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    de assistência ao imigrante depois de meses, sinaliza não só o desejo de permanecer como

    trabalhadora estrangeira, como também representa o tempo limite de viver sob tais condições em

    virtude dos riscos assumidos.

    Considerações Finais

    A mobilidade migratória aqui tratada tem alto custo, afetivo e financeiro. A chegada e permanência

    no país estrangeiro envolve um projeto de trabalho delineado a partir de um forte desejo de

    mudança de vida. O desejo que mobiliza a partida não é o mesmo que influência a decisão de

    permanência. Segundo a opinião de representante de entidade de proteção de Direitos, corre-se o

    risco do trabalho doméstico “esconder” cifras alarmantes com relação ao trabalho escravo na

    sociedade moderno contemporânea, podendo superar a ocorrência s do fenômeno no setor agrícola.

    Com o receio de serem descobertas pelos organismos de polícia e controle do Estado, e

    consequentemente de serem deportadas, muitas trabalhadoras, como acima mencionado, submetem-

    se à condições de trabalho em situação extrema de exploração e trabalho precário, cuja

    vulnerabilidade é reconhecida em forte evidência pela OIT e pela União Europeia. Este

    reconhecimento vai ao encontro das evidências de “dados invisíveis” considerados por alguns

    investigadores do tema, que avaliam os aspectos da invisibilidade na qual as mulheres ainda estão

    sujeitas nas estatísticas oficiais. Os dados estatísticos oficiais do setor doméstico estão aquém de

    retratar fidedignamente a realidade em função da prevalência do “contrato informal”, de trabalho

    não declarado junto aos órgão de seguridade social, levando à imprecisão em número de

    trabalhadores, patrões e condições laborais (ABRANTES, 2012; BAPTISTA, 2011).

    Em muitos casos o serviço doméstico ainda tem sido palco de trabalho forçado, trabalho

    infantil, de más condições de trabalho, de abuso sexual, mesmo, com toda ironia, que a “... casa do

    patrão [possa] ser um refúgio seguro da condição de ‘sem papéis’” (GOMES, 2009, P. 09).

    “Refúgio” que implica em práticas de relações profissionais que se pautam pela cultura da

    “criadagem”: instituição que reafirma diferenças hierárquica de status entre classes, etnias, capitais

    de cultura e de conhecimento, mantendo-se em relações cotidianas que coloca uma classe

    trabalhadora em certa subalternidade de Direitos, reafirmada em formas de tratamento, postura e

    etiquetas típicas que permanecem como memoria social de certa aristocracia. Ser empregada

    domésticas é viver à sombra de um estigma histórico de subalternidade de classe e profissão

    (BRITES, 2007).

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    Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

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    Strategies and Mobility Routes of the Brazilian Domestic Employee as a Foreign Worker in

    Portugal

    Astract: In 2014, with CNPq support, we developed an ethnographic study in Portugal, focused on

    the presence of Brazilian female workers in the domestic services sector, focusing on the following

    aspects: the impact of recent economic and political changes in Portugal on the prospects of staying

    in the foreign country and the risks they face in relation to clandestinity; the logics of connections

    of its mobility in the Brazil-Portugal route; the strategies in obtaining material and symbolic

    resources that place them in a sustainable lifestyle, giving it privileged status and empowerment in

    its social circle in the country of origin. We realize that these workers are betting on a possible

    professional project, even if many of them run the risks of social vulnerability, subjection to

    precarious work and "temporary" clandestinity. In addition to the condition of discrimination as a

    foreign worker, the enterprise takes on other dimensions of agency: that of protagonism in the role

    of main family provider in the country of origin and the country of destination; reconfiguration of

    the roles that consubstantiate the notion of "home" in international transit; and strategies for

    clandestine stay.

    Keywords: Gender and Work. Domestic Service. International Migration.