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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
ESTRATÉGIAS E PERCURSOS DE MOBILIDADE DA EMPREGADA DOMÉSTICA
BRASILEIRA COMO TRABALHADORA ESTRANGEIRA EM PORTUGAL
Marcelo José Oliveira1
Resumo: Em 2014, com apoio CNPq, realizei estudo etnográfico em Portugal, centrado na presença
de trabalhadoras brasileiras no setor de serviços domésticos, tendo como foco os seguintes aspectos:
o impacto das recentes mudanças econômicas e políticas em Portugal sobre as perspectivas da
permanência no país estrangeiro e os riscos que se submetem no tocante a clandestinidade; as
lógicas de conexões de sua mobilidade no roteiro Brasil-Portugal; as estratégias na obtenção de
recursos materiais e simbólicos que as situam num estilo de vida sustentável, conferindo-lhe status
privilegiado e de empoderamento em seu círculo social no país de origem. Percebemos que estas
trabalhadoras apostam em um projeto profissional possível, mesmo que muitas delas corram os
riscos da vulnerabilidade social, sujeição ao trabalho precário e à clandestinidade “temporária”.
Para além da condição de discriminação por ser trabalhadora estrangeira, o empreendimento toma
outras dimensões de agência: a de protagonismo no papel de principal provedora de família no país
de origem e no país de destino; de reconfiguração dos papéis que consubstanciam a noção de lar em
trânsito internacional; de estratégias necessárias para permanência clandestina.
Palavras-chave: Gênero e Trabalho. Serviço Doméstico. Migração Internacional.
A estimativa é de que dos 200 milhões de migrantes estrangeiros no mundo as mulheres
compõe a metade deste contingente, sendo que muitas delas assumem o papel de principal
provedora de família no seu país de origem (PEREZ, 2008). Entre os anos 80 e 90 do séc. XX e
primeira década do séc. XXI Portugal e Espanha receberam levas significativas de trabalhadoras
estrangeiras, oriundas principalmente de países da América Latina, África e Leste europeu. Estudos
produzidos por pesquisadora(e)s que investigam o eixo Brasil-Portugal apontam que brasileiras
figuram de maneira expressiva no setor de serviço doméstico em Portugal. Estas trabalhadoras
envolvem-se num projeto profissional internacional, submetendo-se, a maioria, aos riscos da
clandestinidade, próximas da rede de tráfico humano e trabalho precário, ou escravo em alguns
casos (PAIS, 2010; PEREIRA, 2009; PISCITELLI, 2009, 2007; SILVA, 2008; PEIXOTO, 2007).
Neste contexto, destacamos os seguintes aspectos desta migração e da condição de “trabalhadora
estrangeira”, como seguem: 1) as estratégias articuladas em torno dos recursos materiais e
simbólicos que efetivamente motivam e propiciam a viagem para o país estrangeiro e sua
permanência; 2) o impacto deste projeto de trabalho internacional nas rearticulações das práticas de
família e de estilo de vida, realocando-as noutra relação de empoderamento em seu círculo social no
1 Professor de Antropologia Social do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Viçosa – MG,
Brasil.
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Brasil; 3) o impacto das recentes mudanças econômicas e políticas em Portugal sobre as
perspectivas de permanecer no país; 4) as condições concretas de trabalho precário e
vulnerabilidade social a que se submetem em função da permanência ilegal em Portugal, aliado a
condição que a mulher brasileira ocupa no imaginário português (GOMES, 2013; PISCITELLI, ;
PAIS, 2010; PISCITELLI, 2009, 2007).
Contexto Português e Metodologia Empregada
De março a dezembro de 2014 desenvolvi trabalho de investigação focado nas brasileiras que atuam
no setor de serviço doméstico em Portugal, buscando compreender os aspectos que caracterizam
esta mobilidade transatlântica, levando em consideração o contexto de percursos e articulações
entre a condição de trabalhadora clandestina e a busca pela regularização da condição legal como
trabalhadora estrangeira neste país.2
A metodologia de investigação envolveu três etapas correspondentes durante o período em
referência: 1) levantamento bibliográfico científico sobre imigração brasileira em Portugal, sendo
priorizado respectivamente o repositório físico da biblioteca do Instituto de Ciências Sociais da
Universidade de Lisboa e seu acervo eletrônico de periódicos científicos open access, assim como a
mídia eletrônica e impressa de periódicos de circulação nacional e local; 2) Mapeamento, com base
na literatura especializada consultada, dos contextos laborais da mão-de-obra estrangeira em
Portugal, com foco no trabalhado doméstico remunerado; 3) incursão etnográfica cotidiana para
constatação da incidência da presença da trabalhadora doméstica brasileira em setores públicos e
institucionais na cidade de Lisboa.
Para além das informações coletadas nas interações cotidianas neste período de 10 meses,
num balanço das entrevistas formais realizadas, de média e longa duração, contabilizo os seguintes
números: 06 trabalhadoras domésticas brasileiras em Lisboa, com foco na narrativa biográfica
relacionada à trajetória migratória; 02 Coordenadoras de Projetos de Organizações Não
Governamental, voltadas à imigração brasileira e demais nacionalidades, respectivamente Casa do
Brasil de Lisboa e Associação ComuniDária; 01 representante do Gabinete de Inserção Profissional
(GIP) do Alto Comissariado para Migração do governo português; 02 investigadores doutorandos,
2 O trabalho foi realizado com fomento de bolsa de pesquisa CNPq, e contou com a orientação e supervisão da Profa.
Dra. Cristiana Bastos, antropóloga e investigadora vinculada ao Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa
(ICS-UL), Instituição que sediou o desenvolvimento do projeto.
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respectivamente vinculados ao ISEG e ICS, especialistas no tema trabalho doméstico e imigração
em Portugal.
A empreitada de campo envolveu os seguintes contextos de relações diretas: acadêmico
(esfera institucional de formação e de desenvolvimento da investigação a partir do Instituto de
Ciências Sociais da Universidade Lisboa ICS-UL); comercial de consumo (esfera das relações
cotidianas na frequentação da vida pública de bairro e cidade); de vizinhança (esfera restrita aos
universos de residência em dois bairros, em relações próximas, informais, onde o face-to-face é
marcado por detalhes de forma nas relações que travei com portugueses, portuguesas, imigrantes
estrangeiras e estrangeiros, entre eles brasileiros e brasileiras); e de organização da sociedade civil
(esfera das relações de contato que estabeleci com duas entidades não governamentais que tem
como missão a recepção de brasileiros e brasileiras imigrantes em Portugal, denominadas “Casa do
Brasil de Lisboa” e “Associação ComuniDária”). Trata-se de duas organizações não
governamentais de caráter distintos, mas que interagem com os brasileiros e brasileiras imigrantes
em Portugal, também atendendo outras nacionalidades.3
Na casa do Brasil de Lisboa pude participar de reuniões do “Projeto Acolhida”. Projeto que
envolve sessões de acolhimento de brasileiros e brasileiras imigrantes em Portugal, promovendo
trocas de experiências e debates úteis a partir de temas sobre cultura e cotidiano português, trabalho
imigrante, discriminação e preconceito, entre outras atividades de formação. Trata-se de ações que
priorizam a informação, sensibilização e conscientização para os Direitos e Deveres do imigrante.
As reuniões ocorrem regularmente e com agenda previamente anunciada. Participei de seis
reuniões, acompanhando os debates sobre preocupações e tensões mais vividas pelas imigrantes
brasileiras em Lisboa, além de participar de outras atividades sociais realizadas para integração,
entre as quais destaco as do mês de junho de 2014, relacionadas ao Mundial de Seleções de Futebol
(Copa do Mundo). Também fui cursista numa formação de curta duração oferecido pela Casa em
parceria com a Associação Portuguesa de Apoio a Vítima, intitulado “Discriminação Racial:
reconhecer e agir”. Um curso, segundo a preletora, com clara demanda para trabalhadores
estrangeiros. Foi neste espaço de interlocução que observei com mais precisão a demanda imigrante
com relação as expectativas da chegada recente no país, dificuldades e facilidades de adaptação,
frustração e otimismo para a permanência e para inserção em postos de trabalho, entre outros
aspectos.
3 Para mais informações sobre estas instituições acessar http://www.casadobrasil.info/ e http://www.comunidaria.org/.
http://www.casadobrasil.info/http://www.comunidaria.org/
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O contato com a Associação Comunidária ocorreu de outra forma, pela própria proposta
militante da entidade. Trata-se de instituição sem fins lucrativos que intervém na promoção de
igualdade de gênero e proteção de Direitos de mulheres trabalhadoras imigrantes em risco de
exclusão social e de precariedade nas relações de trabalho. As ações também envolvem informação,
sensibilização e conscientização para os Direitos da imigrante na causa pelo “trabalho doméstico
digno”, segundo principal slogan da campanha que a organização realiza. A proposta, segundo sua
presidente, é romper com o assistencialismo e fortalecer um coletivo que reivindique seus Direitos.
Encontrei na Associação outro espaço de intenso diálogo com o trabalho que vinha desenvolvendo,
bem como fui ativo colaborador em algumas ações de intervenção e no diálogo com outras
organizações afins e atores do parlamento português. Nesta aproximação pude constatar o grave
problema do trabalho precário a que são submetidas as trabalhadoras domésticas estrangeiras, entre
brasileiras, africanas oriundas de ex-colônias portuguesas e mulheres do leste europeu.
Imigração, Trabalho e Precarização
Segundo relatório produzido pelo Observatório das Migrações Portugal, assim como outros países
da União Europeia, a partir dos anos 90 tornou-se foco de entrada da mão-de-obra estrangeira.
Movimento de entrada que contrasta com seu saldo migratório negativo em 2014, ano que há mais
pessoas emigrando do que imigrando (REIS OLIVEIRA & GOMES, 2014).
No “1º Seminário de Estudos sobre Imigração Brasileira na Europa”, realizado em 2011,
foram apresentados dados, com base em estatísticas de 2009, sobre a crescente presença brasileira
em Portugal, juntamente com imigrantes africanos e do leste-europeus: 25% da população
estrangeira em Portugal é brasileira, somando 116.220 indivíduos, divididos entre 52.061 homens e
64.159 mulheres,4 confirmando a tendência geral de feminização do fenômeno da imigração
internacional. As mulheres, seguindo certa regularidade, desempenham atividades no setor de
atendimento ao público (bares, cafés e restaurantes), no ramo de limpeza e serviços domésticos,
incluindo cuidados com crianças e idosos, conforme já mencionado. O perfil geral é mulheres entre
25 e 45 anos de idade, oriundas principalmente dos Estados de Minas Gerais, São Paulo, Paraná,
Goiás e Espírito Santo (GOMES, 2008, p. 6-8).
4 Os dados de 2005 sobre brasileiros com permanência legalizada em Portugal contam 67.457 indivíduos, entre as
Autorizações de Residência (ARs), prorrogação de Autorizações de Permanência (APs) e Vistos de Longa Duração
(VLDs). Conferir em Abreu & Peixoto, 2009, p. 739.
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A mobilidade internacional que a trabalhadora doméstica brasileira vem se envolvendo
chama a atenção sobre as novas lógicas sobre supostas fases de “regime migratório” (PEIXOTO,
2007). Nesse sentido podemos considerar os seguintes aspectos relacionados que estimulam a
emigração brasileira nas últimas décadas: (1) aumento do poder aquisitivo em décadas recentes dos
segmentos populacionais mais empobrecidos no Brasil, em função do crescimento econômico no
país até 2013, oportunizando maior oferta de trabalho e renda;5 (2) o aumento do poder aquisitivo
aliado às políticas de inclusão educacional e digital na escola pública, levando os segmentos mais
pobres da população ao relativo acesso a internet, participando de redes sociais e acessando
informações via mídias online que estimulam o desafio de uma carreira internacional (sobre este
ponto os adolescentes têm assumido um papel chave na inserção da família nas redes sociais
online); (3) inserção da empregada doméstica brasileira como trabalhadora estrangeira na Europa,
que aponta para um protagonismo feminino de risco, mas que conta com uma rede social ativa em
relações de apoio no país de origem e destino; (4) o fato de que esta mobilidade feminina atual não
se resume à pretensão de reagrupamento familiar no país de destino (PEIXOTO, 2007), já que há
indícios de que a mesma também se caracteriza como um projeto independente, sem depender
economicamente de parceiro afetivo, mesmo que esta trabalhadora possua filhos no Brasil; e (5) o
aumento da captação de mão-de-obra estrangeira no setor doméstico e de limpeza pelos países
europeus, em função da crescente qualificação profissional de segmentos da população feminina
economicamente ativa que não mais tem se reservado para a “limpeza da casa”, submetendo-se a
dupla jornada de trabalho.
A migração pela busca por espaços de trabalho num país estrangeiro está relacionada a
possibilidade que estas mulheres vislumbram de melhores condições de vida a partir de um projeto
avaliado viável pela rede social que acionam, pelo barateamento das passagens aéreas e pelo acesso
as informações na mídia sobre o até então crescimento econômico europeu,6 sendo que o peso
simbólico e prático da Europa é evidente em termos de “símbolos ativos” em circulação global
(ORTIZ, 2000). Conforme os contatos que estabelecem para a chegada em Portugal, o primeiro
trabalho pode estar garantido, sendo que os salários variam conforme a condição de contratação. É
fato que a maior parte das “patroas” contrata informalmente, pois evitam pagar os encargos sociais
previstos em Lei em função dos impostos implicados. Por outro lado, a contratação formal também
5 Ver “Atlas de Desenvolvimento no Brasil - 2013”, com acesso no endereço “www.atlasbrasil.org.br”. 6 A recente regulamentação em Lei no Brasil das regras de contratação da emprega doméstica ainda não vem sendo
percebido como ganho real em benefício de oferta de trabalho e maiores salários. O debate público na mídia tem feito
coro na importância da Lei, ao mesmo tempo em que as opiniões se dividem quanto aos impactos a curto, médio e
longo prazo.
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não poderá ocorrer se a trabalhadora estiver em condição clandestina (PÉREZ, 2008). No caso, para
os primeiros meses de estadia no país, a condição de interna pode parecer oportuna em função da
condição clandestina, mas envolve riscos por ser a pré-condição para se tornar refém de condições
precárias de trabalho, algumas vezes se submetendo ao trabalho escravo. Depois de meses
exercendo o trabalho na condição de interna, algumas destas trabalhadoras optam por dividir um
aluguel com outra trabalhadora e desempenhar a função como diarista, podendo trabalhar em mais
de uma casa numa mesma semana.7 Tudo depende da nova “rede de indicações” que estabelecerá,
seja por indicação de uma colega de profissão ou de suas patroas.
Projeto Profissional e a Racionalização Afetiva
Segundo informações que obtive junto a uma das entidades de apoio aqui mencionadas, um número
significativo de mulheres que vivem a condição de trabalhadora estrangeira relataram já ter sofrido
preconceito e discriminação, ou alguma forma de assédio, sexual e moral, ou de já ter ou estar
vivendo a experiência de trabalho precário em seu primeiro período de permanência no país. O que
costuma ocorrer, após a experiência de trabalho precário e da vulnerabilidade social a que se
submetem, é de buscarem alternativa na nova rede social que estabeleceram no país e quando vão
na busca de auxílio de orientação em entidades especializadas de apoio ao imigrante. A maior parte
quando busca informações e orientações junto a estas instituições, sobre os trâmites e
procedimentos para a regularização como trabalhadora estrangeira em condição legal, ocorre, em
média, após um ano de estadia em Portugal. No trabalho de colaborador que desenvolvi na
Associação Comunidária pude acompanhar algumas destas entrevistas e testemunhar dramáticos
relatos sobre assédio moral e condição precária de trabalho.
A trabalhadora doméstica imigrante após meses de estadia renova relações de amizade e
afeto, seja pelas relações de trabalho ou de lazer, redimensionando o projeto de permanência, cuja
decisão de não mais voltar definitivamente ao Brasil atrela-se a outros motivos, para além dos que
motivaram seu movimento de emigração. Na condição de imigrada, entre os novos motivos está o
de parceria conjugal estável, e/ou de investimento na educação de filhos. “Trabalho” e “relação
amorosa” estável aparecem como uma combinação importante. O lugar da “estabilidade” nesta
intenção vai de encontro às relações seguras e de confiança necessárias na experiência estrangeira.
Ou seja, há propósitos no projeto pessoal de imigração sendo reconstruído, e a afetividade na
7 Em 2014 o valor médio de uma diarista em Lisboa era de sete euros a hora.
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direção da conjugalidade e/ou filiação concentram os motivos mais fortes na decisão da
permanência duradoura. Cuido para que esta afirmação não percorra ou se resuma a ideia utilitária
de que o matrimônio legal levará ao caminho mais fácil do green-card, mesmo que o projeto de
estabilidade afetiva, heterogâmica nos casos constatados, leve a isto. Mas, para além disto, o
contexto sobre o qual estamos tratando, como mencionado acima, é de mulheres que não
necessariamente estão na busca reagrupamento familiar com o cônjuge; são elas, aliás, que puxam o
reagrupamento familiar de filiação para o país estrangeiro. Lidamos com um fato a priori: a decisão
por este deslocamento sintetiza o desejo por uma radical e importante mudança de vida. Como
afirmara a presidente da Associação Comunidária: “As brasileiras vêm [para Portugal] porque
romperam com alguma coisa [no Brasil] [...] Rompeu com algum ciclo.” Segundo a mesma, o perfil
da imigrante brasileira que tem atendido na Associação não diz respeito a mulheres que vão atrás de
reagrupamento familiar pelo laço com o marido, pelo contrário, seriam estas mulheres que
atualmente chamam o reagrupamento da rede familiar extensa.
Situando o Desejo à Luz dos Dados
Situar o fenômeno da imigração de brasileiras em Portugal dispostas ao trabalho doméstico, que se
lança em carreira de desafios e riscos num país estrangeiro, exige que localizemos a relação deste
desejo com o contexto social e cultural que o propicia. Por exemplo, o da experiência liminar destas
trabalhadoras em lidar com o sentimento da saudade provocada pela ruptura e ausências com as
coisas e pessoas no Brasil, do estranhamento cultural quando lidam com formas de etiquetas no
trato da vida pública que pouco tem a ver com certo “jeito brasileiro de ser”, de lidarem com
prescrições morais tradicionais no que diz respeito à sexualidade, que, por pré-julgamento, a mulher
brasileira é colocada sob suspeita moral (GOMES, 2013). Há em evidência a ligação da imagem de
brasileiras com o mercado sexual, o que é fato a existência de brasileiras ligadas ao serviço sexual
neste país.8 Entretanto, confrontando dados estatísticos sobre postos de trabalho que brasileiras
assumem em Portugal e os dados sobre a opinião que portugueses têm da mulher brasileira, como
moralmente suspeitas, supostamente consideradas “putas” em potencial ou de fato, resta-nos uma
pergunta: Por que as brasileiras figuram, entre as estrangeiras, como maioria em nacionalidade
8 Também houve em Portugal episódio envolvendo prostitutas brasileiras que submete a fama da mulher brasileira ao
tribunal da opinião pública portuguesa, pelo impacto na mídia nacional. O episódio que menciono foi denominado
“Mães de Bragança”. Sobre este fato ver artigo de José Machado Pais, já citado, intitulado “Mães de Bragança e
Feitiços: enredos luso-brasileiros em torno da sexualidade”, de 2010.
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requisitada pelos portugueses para trabalho doméstico? Segundo a estatística sobre contratos
formais, é a brasileira a trabalhadora estrangeira mais contratada para cuidar dos lares portugueses,
inclusive de seus filhos e velhos (ABRANTES, 2012). Dados que, por questões pragmáticas,
distanciam a trabalhadora doméstica da relação com a prostituição pelo fato de que a rede social de
informação e referências que lhe propiciará uma contratação exige indicação de “boas referências”
morais. Dificilmente uma família portuguesa contratará para serviços domésticos uma mulher
suspeita de estar ligada ao mercado sexual, o que procede como lógica moral para este ramo. O
contrário pode ocorrer: fui informado em Lisboa por uma investigadores do tema que algumas
profissionais do sexo tentam de todas as maneiras obter um contrato falsificado de prestação de
serviço doméstico para juntar à documentação necessária a ser apresentada no Serviço de
Estrangeiros e Fronteiras (SEF), com o intuito de adquirir o certificado de residência, no sentido de
logo regularizar o Visto no país. Esta evidência tem sido motivo de maior atenção pelo SEF aos
pedidos de visto encaminhados por brasileiras.
Não há dúvida que o desejo de carreira da trabalhadora doméstica tenha levado a
movimentos de lutas do segmento, tanto no Brasil como em outras partes do mundo, influenciadas
pela indignação com a histórica precarização de seu trabalho (GOMES, 2009). Por outro lado,
segundo relatos e dados do campo, a condição de trabalhadora clandestina leva muitas destas
mulheres à opção de estabelecer contrato informal como doméstica em tempo integral, submetendo-
se à maior barganha de seu contratante, no intuito de em curto prazo conseguir renda mínima para
sua subsistência e proteger-se dos órgãos de fiscalização do governo português, o que implica
aparentemente em sua barganha de retorno. Porém, sua barganha de retorno opera como uma
armadilha para si mesma, pois a torna vulnerável a condições precárias de trabalho e de abusos
relacionados a assédio moral e sexual, e algumas vezes à condição de trabalho escravo, como
informa uma militante pelos Direitos destas trabalhadoras. No caso, o maior risco é a de ser
submetida a condições precárias de trabalho, quando na condição de trabalhadora em “regime de
interna” para uma família, tendo como algoz seu próprio empregador, submetendo-se a
“dependência refém” por alojamento e alimentação, associado à desinformação, inadaptação
cultural, ausência de reservas em dinheiro e rede social presencial ainda não estabelecida no país
estrangeiro. Este quadro não é raro e representa um passo às piores condições de trabalho precário,
sem a ele chegar pelo agenciamento da rede de tráfico humano, mas, sim, por uma rede social de
conhecidos que mais informam sobre a possibilidade de início ilegal do que sobre os riscos
potenciais e concretos da clandestinidade. O fato de algumas delas procurarem apoio nas entidades
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de assistência ao imigrante depois de meses, sinaliza não só o desejo de permanecer como
trabalhadora estrangeira, como também representa o tempo limite de viver sob tais condições em
virtude dos riscos assumidos.
Considerações Finais
A mobilidade migratória aqui tratada tem alto custo, afetivo e financeiro. A chegada e permanência
no país estrangeiro envolve um projeto de trabalho delineado a partir de um forte desejo de
mudança de vida. O desejo que mobiliza a partida não é o mesmo que influência a decisão de
permanência. Segundo a opinião de representante de entidade de proteção de Direitos, corre-se o
risco do trabalho doméstico “esconder” cifras alarmantes com relação ao trabalho escravo na
sociedade moderno contemporânea, podendo superar a ocorrência s do fenômeno no setor agrícola.
Com o receio de serem descobertas pelos organismos de polícia e controle do Estado, e
consequentemente de serem deportadas, muitas trabalhadoras, como acima mencionado, submetem-
se à condições de trabalho em situação extrema de exploração e trabalho precário, cuja
vulnerabilidade é reconhecida em forte evidência pela OIT e pela União Europeia. Este
reconhecimento vai ao encontro das evidências de “dados invisíveis” considerados por alguns
investigadores do tema, que avaliam os aspectos da invisibilidade na qual as mulheres ainda estão
sujeitas nas estatísticas oficiais. Os dados estatísticos oficiais do setor doméstico estão aquém de
retratar fidedignamente a realidade em função da prevalência do “contrato informal”, de trabalho
não declarado junto aos órgão de seguridade social, levando à imprecisão em número de
trabalhadores, patrões e condições laborais (ABRANTES, 2012; BAPTISTA, 2011).
Em muitos casos o serviço doméstico ainda tem sido palco de trabalho forçado, trabalho
infantil, de más condições de trabalho, de abuso sexual, mesmo, com toda ironia, que a “... casa do
patrão [possa] ser um refúgio seguro da condição de ‘sem papéis’” (GOMES, 2009, P. 09).
“Refúgio” que implica em práticas de relações profissionais que se pautam pela cultura da
“criadagem”: instituição que reafirma diferenças hierárquica de status entre classes, etnias, capitais
de cultura e de conhecimento, mantendo-se em relações cotidianas que coloca uma classe
trabalhadora em certa subalternidade de Direitos, reafirmada em formas de tratamento, postura e
etiquetas típicas que permanecem como memoria social de certa aristocracia. Ser empregada
domésticas é viver à sombra de um estigma histórico de subalternidade de classe e profissão
(BRITES, 2007).
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REIS OLIVEIRA, Catarina; GOMES, Natália (coord.). Monitorizar a integração de imigrantes em
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2014. Lisboa: Alto Comissariado para as Migrações (ACM, IP): 2014.
Strategies and Mobility Routes of the Brazilian Domestic Employee as a Foreign Worker in
Portugal
Astract: In 2014, with CNPq support, we developed an ethnographic study in Portugal, focused on
the presence of Brazilian female workers in the domestic services sector, focusing on the following
aspects: the impact of recent economic and political changes in Portugal on the prospects of staying
in the foreign country and the risks they face in relation to clandestinity; the logics of connections
of its mobility in the Brazil-Portugal route; the strategies in obtaining material and symbolic
resources that place them in a sustainable lifestyle, giving it privileged status and empowerment in
its social circle in the country of origin. We realize that these workers are betting on a possible
professional project, even if many of them run the risks of social vulnerability, subjection to
precarious work and "temporary" clandestinity. In addition to the condition of discrimination as a
foreign worker, the enterprise takes on other dimensions of agency: that of protagonism in the role
of main family provider in the country of origin and the country of destination; reconfiguration of
the roles that consubstantiate the notion of "home" in international transit; and strategies for
clandestine stay.
Keywords: Gender and Work. Domestic Service. International Migration.