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SERVIÇO PÚBLICO FEDERAL UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS INSTITUTO DE ESTUDOS SOCIOAMBIENTAIS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA JOSÉ RODRIGUES DE CARVALHO TERRITÓRIO DA RELIGIOSIDADE: FÉ, MOBILIDADE E SÍMBOLOS NA CONSTRUÇÃO DO ESPAÇO SAGRADO DA ROMARIA DO SENHOR DO BONFIM EM ARAGUACEMA, TOCANTINS. GOIÂNIA 2014

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SERVIÇO PÚBLICO FEDERAL

UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS

INSTITUTO DE ESTUDOS SOCIOAMBIENTAIS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA

JOSÉ RODRIGUES DE CARVALHO

TERRITÓRIO DA RELIGIOSIDADE: FÉ, MOBILIDADE E SÍMBOLOS NA

CONSTRUÇÃO DO ESPAÇO SAGRADO DA ROMARIA DO SENHOR DO BONFIM

EM ARAGUACEMA, TOCANTINS.

GOIÂNIA

2014

G06
Caixa de texto
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TERMO DE CIÊNCIA E DE AUTORIZAÇÃO PARA DISPONIBILIZAR AS TESES E

DISSERTAÇÕES ELETRÔNICAS (TEDE) NA BIBLIOTECA DIGITAL DA UFG

Na qualidade de titular dos direitos de autor, autorizo a Universidade Federal de

Goiás (UFG) a disponibilizar, gratuitamente, por meio da Biblioteca Digital de Teses e

Dissertações (BDTD/UFG), sem ressarcimento dos direitos autorais, de acordo com a Lei

nº 9610/98, o documento conforme permissões assinaladas abaixo, para fins de leitura,

impressão e/ou download, a título de divulgação da produção científica brasileira, a partir

desta data.

1. Identificação do material bibliográfico: [X] Dissertação [ ] Tese

2. Identificação da Tese ou Dissertação

Autor (a): José Rodrigues de Carvalho

E-mail: [email protected]

Seu e-mail pode ser disponibilizado na página? [x]Sim [ ] Não

Vínculo empregatício do autor Secretaria de Educação do Estado do Pará

Agência de fomento: SEC. EST. DE EDUCAÇÃO-PA Sigla: SEDUC

País: Brasil UF:GO CNPJ:

Título: Território da religiosidade: fé, mobilidade e símbolos na construção do

espaço sagrado da Romaria do Senhor do Bonfim em Araguacema,

Tocantins.

Palavras-chave: Territórios religiosos. Bandeiras Verdes. Territorialidades

simbólicas. Simbolismo. Trajetórias.

Título em outra língua: Religiousness territory: faith, mobility and symbols in

the construction of the Lord of Bonfim Pilgrimage sacred

space in Araguacema, Tocantins

Palavras-chave em outra língua: Religious Territories. Green Flags. Symbolic

Territorialities. Symbolism. Trajectories.

Área de concentração: Natureza e Produção do Espaço

Data defesa: (dd/mm/aaaa) 14/03/2014

Programa de Pós-Graduação: Programa de Pesquisa e Pós-Graduação em

Geografia – IESA/UFG

Orientador (a): Prof. Dr. Alecsandro José Prudêncio Ratts

E-mail: [email protected]

Co-orientador

(a):*

E-mail: *Necessita do CPF quando não constar no SisPG

3. Informações de acesso ao documento:

Concorda com a liberação total do documento [X] SIM [ ] NÃO1

Havendo concordância com a disponibilização eletrônica, torna-se imprescindível o envio

do(s) arquivo(s) em formato digital PDF ou DOC da tese ou dissertação. O sistema da Biblioteca Digital de Teses e Dissertações garante aos autores, que os

arquivos contendo eletronicamente as teses e ou dissertações, antes de sua disponibilização, receberão procedimentos de segurança, criptografia (para não permitir cópia e extração de conteúdo, permitindo apenas impressão fraca) usando o padrão do Acrobat.

José Rodrigues de Carvalho Data: 27/06/2014

1 Neste caso o documento será embargado por até um ano a partir da data de defesa. A extensão deste prazo

suscita justificativa junto à coordenação do curso. Os dados do documento não serão disponibilizados durante o

período de embargo.

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JOSÉ RODRIGUES DE CARVALHO

TERRITÓRIO DA RELIGIOSIDADE: FÉ, MOBILIDADE E SÍMBOLOS NA

CONSTRUÇÃO DO ESPAÇO SAGRADO DA ROMARIA DO SENHOR DO BONFIM

EM ARAGUACEMA, TOCANTINS.

Dissertação de Mestrado em Geografia,

apresentada ao Programa de Pós-Graduação em

Geografia, do Instituto de Estudos Sócio-

Ambientais da Universidade Federal de Goiás –

UFG, como requisito final para obtenção do título

de Mestre.

Orientador: Prof. Dr. Alecsandro José Prudêncio

Ratts.

GOIÂNIA

2014

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

GPT/BC/UFG

C331t

Carvalho, José Rodrigues de.

Território da religiosidade [manuscrito]: fé, mobilidade e

símbolos na construção do espaço sagrado da Romaria do

Senhor do Bonfim em Araguacema, Tocantins/José

Rodrigues de Carvalho. - 2014.

159 f. : il., figs.

Orientador: Prof. Dr. Alecsandro José Prudêncio Ratts.

Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de Goiás,

Instituto de Estudos Sócio-Ambientais, 2014.

Bibliografia.

Inclui lista de figuras.

Apêndices.

1. Território – Religiosidade - Tocantins. 3.

Territorialidades – Simbolismo. I. Título.

CDU: 911.3:2(811.7)

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I E S A MINIST ÉRIO DA EDUCAÇÃO U IV ERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS

I 'STITUTO DE ESTUDOS SOCIOAMBIENTAIS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA

ÁREA DE CONCENTRAÇÃO : NATUREZA E PRODUÇÃO DO ESPAÇO

.. ~ •• UFG

ATA DA SESSÃO PÚBLICA DE JULGAMENTO DA DEFESA DE DISSERTAÇÃO DE MESTRADO DE

José Rodrigues de Carvalho

Aos quatorze dias do mês de março do ano de dois mil e quatorze (2014) , a partir das 14:00 horas, no

Instituto de Estudos Socioambientais da Universidade Federal de Goiás, teve lugar a sessão de julgamento

da Dissertação de Mestrado de José Rodrigues de Carvalho, intitulada: "TERRITÓRIO DA

RELIGIOSIDADE: FÉ, MOBILIDADE E S[MBOLOS NA CONSTRUÇÃO DO ESPAÇO SAGRADO DA

ROMARIA DO SENHOR DO BONFIM EM ARAGUACEMA, TOCANTINS". A Banca Examinadora foi

composta , conforme Portaria n.0 010/2014 da Diretoria do lESA, pelos seguintes Professores Doutores:

Prof. Dr. Alecsandro José Prudêncio Ratts (presidente) , Profa. Ora. Marise Vicente de Paula (membro

titular externo) e Profa. Ora. Valéria Cristina Pereira da Silva (membro titular interno). Os examinadores

arguiram na ordem citada, tendo o candidato respondido satisfatoriamente. Às ___;/_6_· __ horas a Banca

Examinadora passou a julgamento, em sessão secreta, tendo o candid~ os s~ntes resultados

Prof. Dr. Alecsandro José Prudêncio Ratts (Presidente)- Ass. --1~,.u.. _ ___:· ~,....lJ~=-:wffi~.,~.------­Aprovado C/J Reprovado ( )

Profa. Ora. Marise Vicente de Paula - Ass. ~~ ~ Aprovado (/() Reprovado ( ) ....____/ 2T~ Profa. Ora. Valéria Cristina Pereira da Silva- Ass.f~~~ Aprovado k') Reprovado ( )

Resultado final: Aprovada K; Reprovada ( )

Houve alteração no Título? Sim ( ) Não (

Em caso afirmativo, especifique o novo titulo: __________________ _

Outras observações : _ _ _ __________________________ _

Reaberta a Sessão Pública, o(a) Presidente da Banca Examinadora proclamou o resultado e

encerrou a sessão, da qual foi lavrada a presente ata, que segue assinada pelos m embros da

Banca Examinadora e pela Secretaria do Programa de Pós-Graduação em Geografia.

Secretaria ... ~X~d;;;M,;;~~~;,;~'-'~· ·· · ·· · ······ ·· ······· · ····· ··············· · · ·· · ······ · · Assist. em Adm. I IESA/UFG Mat. Siape no 2071571

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In memoriam daquele que me ensinou as primeiras

letras, Antônio Alves Rodrigues, meu pai.

Para Maria, minha mãe, Dina minha esposa, Marina

e Luiza, minhas filhas, razões e estímulos para

minhas buscas de conhecimentos.

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AGRADECIMENTOS

Produzir conhecimento é, de fato, uma tarefa coletiva. Muitas pessoas, direta e

indiretamente, contribuíram no processo de construção deste trabalho. Perpassando pelas

aulas nas disciplinas do Programa, pelos debates e as reflexões teóricas com os/as colegas de

aulas do Mestrado e em grupos de estudos, a investigação e as relações estabelecidas com os

sujeitos informantes da pesquisa – do desconhecido até o mais íntimo - os coordenadores do

Programa de Pós-Graduação em Geografia da UFG/IESA, os diretores e funcionários do

IESA, da limpeza e da segurança, da Biblioteca Central, até os amigos e as amigas de

convivência amigável do LaGENTE.

Quero assim, render meus agradecimentos a toda essa rede de colaboradores/as e, em

especial ao Professor Dr. Alex. Ratts, meu orientador; por ter aceitado orientar essa pesquisa

científica e que o fez com seriedade e ternura, ao conceder-me autonomia e liberdade para

elaborar o trabalho.

Da mesma forma agradeço imensamente aos homens de mulheres da Família Almeida

do Senhor do Bonfim, em especial Seu Natalino e Dona Benvina, sua esposa e, Marilene,

Maria Bonfim e Manoel, por me receberem tão bem e estarem sempre dispostos a responder

minhas perguntas sobre o Santo e a Romaria.

Às Professoras Dra. Ana Cristina da Silva, Dra. Miriam Aparecida Bueno, Dra. Maria

Geralda de Almeida, Dra. Lúcia Helena Batista Gratão, Dra. Cathérine Aubertin e Dra. Nei

Clara de Lima (por aceitar participar da minha Banca de Qualificação e pela criteriosa leitura

do relatório, com preciosas colaborações e sugestões) e, aos Professores Dr. Carlos Eduardo

dos Santos Maia (pelas ricas aulas e sugestões feitas na Banca de Qualificação), Dr. Ivanilton

José de Oliveira, Dr. Tadeu Pereira Alencar Arrais, Dr. Manoel Eduardo Ferreira, Dr. Nilson

Clementino Ferreira, pelo aprendizado sólido que me proporcionaram durante suas aulas nos

Programa, dando-me segurança teórica, epistemológica e metodológica para que eu pudesse

construir esta dissertação e a minha formação profissional.

Aos amigos e às amigas do Sarau Poetnos, pelo compartilhamento das experiências

estética, criativa e prazerosa e pela convivência amigável nos ensaios e apresentações

artísticas.

À amiga e colega do mestrado Luana Nunes Martins de Lima, por estar sempre

disposta a me ajudar, desde quando cheguei a Goiânia e pelas sugestões de leituras e

discussões sobre o tema de festas religiosas que estudamos.

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Às amigas e aos amigos dos grupos de estudos sobre festas populares do (Laboter) e

estudos de geografia, gênero e feminismo do (LaGENTE), espaços onde alteridades e trocas

de conhecimentos enriqueceram meu espírito, aprendizado fundamental em todos momentos

da pesquisa.

Ao amigo Bento Alves Araújo Jayme Fleury Curado, pelos trabalhos imprescindíveis

de revisão e pelas conversas e documentos muito ricos em conhecimentos populares e

eruditos.

À Professora de Inglês, Karla Sacilotto, do Centro de Línguas da UFG, pelas

colaborações com as traduções que foram fundamentais em todo processo de construção do

conhecimento no curso de Mestrado.

À minha família pelo incentivo e por sempre acreditar nos meus projetos, mesmo, às

vezes, eles sendo de conteúdo imaterial. Agradeço por suportarem sem reclamar o peso da

minha ausência e me acolherem com o carinho maternal toda vez que retorno.

Aos meus amigos e às minhas amigas de trabalho que, nos seus questionamentos e

preocupações no dia-a-dia da escola, foram levantando ideias que me incentivaram a ingressar

no Mestrado. Aos amigos e às amigas do Sintepp, pela torcida e pela compreensão quando eu

saí para cursar o Mestrado.

Ao amigo Milton Pereira Lima e sua família, com quem mais dialogo e compartilho

minhas pretensões e ansiedades da vida acadêmica, nas artes, na política e na vida em geral. O

agradeço muito por ter se disponibilizado ser meu avalista no concurso de Bolsa de Estudo da

SEDUC/PA.

Ao amigo Manoel Serafim dos Santos – Zagaia e à amiga Márcia Barbosa, por terem

assumido a responsabilidade de avalista da minha licença para estudos junto à SEDUC/PA.

Ao amigo Professor Idevilson Bandeira, pelos debates filosóficos em torno do conhecimento e

suas palavras de incentivo e sugestões valorosas de leituras. Ao amigo e compadre Zé Paulo e

à amiga e comadre Débora Cirilo, pela aproximação espiritual com minha família e pelas

agradáveis conversas que tivemos ao telefone nas tarde de solidão em Goiânia.

Ao amigo Hélio Amorim, pelo exemplo de persistência intelectual no campo da

cultura e pelos diálogos sobre trabalho, conhecimento e planos artísticos. Aos amigos do

CIFOR, por me instigarem à reflexão e à criação sempre.

Enfim, agradeço à Secretaria de Estado de Educação do Estado do Pará (pela Bolsa de

Estudo) e à Secretaria Municipal de Educação de Redenção, por acatarem a legislação de

incentivo à formação continuada dos professores e me concederem a licença para estudo.

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Bendito louvado seja ao meu Senhor do Bonfim

Não me sinto de ser pobre, mas um pobre serafim

Vamos carregar as pedras para o pé do alecrim

Pro Deus levantar capela ao meu senhor do Bonfim

Ninguém viu o que eu vi ontem no galho do alecrim

Vi três pombinhos rezando para o meu Senhor do Bonfim

E do ontem foi que eu soube

Que aqui passou uma senhora já hoje

Eu tornei saber que era a rainha da glória

Lá do céu com três cravos do excelente jardim

Eu procurei o que era ao meu Senhor do Bonfim

Minha mãe me abre as portas

Que eu quero ver meu jardim

Pra plantar cravos de rosas pro meu Senhor do Bonfim

Me entrego de corpo e alma

Tudo enquanto eu tenho em mim

Pra ver como eu sou devoto

Do meu Senhor do Bonfim

Oferecemos esse Bendito pro Senhor daquela cruz

Pro meu Senhor do Bonfim

Para sempre amém Jesus!

(Bendito do Senhor do Bonfim)

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RESUMO

O presente trabalho tem por objetivo estudar práticas e experiências da fé que envolve

mobilidades de romeiros e símbolos em um território da religiosidade, buscando compreender

seus significados na construção do tempo e do espaço sagrado na Romaria do Senhor do

Bonfim em Araguacema, Tocantins. Essa Romaria configura-se no que diversos autores

denominam de manifestação do catolicismo popular; uma vertente do cristianismo que

significa a religiosidade de forma peculiar. Essa modalidade de religiosidade expressa por

meio das romarias, tradições que se espacializam nos santuários. Romarias são lugares de

substanciamento das experiências da religiosidade, nelas acontecem os festejos aos santos, ou

a outros tipos de hierofanias, onde territorialidades e territórios, carregados de simbolismo

sagrado, resultam de um conjunto de práticas e ritos tornando os santuários significativos para

o ser religioso e para a geografia cultural. Realizamos a presente pesquisa em quatro amplos

momentos interseccionados. Eles se efetivaram na aproximação com o objeto. Neles

procuramos ler a paisagem imaginária dos territórios simbólicos nas representações orais dos

romeiros. Complementamos a aproximação com leituras bibliográficas sobre o tema,

procurando situá-lo no campo epistemológico da Geografia. A ideia não era formar uma

preconcepção da Romaria, mas sim construir um avizinhamento que nos permitisse levantar

algumas questões referentes à origem, as espacialidades, relações e interações

(territorialidades) na formação do território religioso e do espaço sagrado, a partir das práticas

simbólicas da religiosidade. O trabalho de campo foi realizado na forma de observação

participante, com técnicas de observações densas, escutas, registros escritos, de áudio e

fotográficos, conversas e entrevistas semiestruturadas (total de 63) com os romeiros e com a

Família ―dona‖ do Santo. A trajetória sócioespacial dessa Família até ali, ilustra a saga de

milhares de brasileiros expropriados da terra em busca das ―Bandeiras Verdes.‖ A relação dos

romeiros com a Imagem do Santo no tempo na Romaria evidencia a importância do

sobrenatural e do simbólico em suas vidas. Essa relação, conjugada com suas trajetórias

sócioespaciais os levam às práticas e ações fundadoras e transformadoras de territorialidades e

identidades na Romaria. É o território (simbólico e social) que vivifica a Romaria e o torna

em um espaço sagrado na concepção dos fiéis do Senhor do Bonfim. As territorialidades

religiosidade – produtoras de relações de alteridades - tornam os romeiros em um ―coletivo

religioso‖, com finalidades mais ou menos comuns. Essa cumplicidade proporciona relações

mais confiáveis e seguras de convivialidade. Os territórios religiosos inerentes ao espaço

sagrado da Romaria diferem dos territórios refúgios, minúsculos e padronizados. Os

territórios dos romeiros são os das relações de confiança e intimidade com milhares de outros

romeiros que peregrinam em busca de soluções para seus problemas imediatos e da

transcendência espiritual.

Palavras-chave: Territórios religiosos. Bandeiras Verdes. Territorialidades simbólicas.

Simbolismo. Trajetórias.

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ABSTRACT

This paper aims to study faith experiences and practice; the pilgrims mobility and symbols in

a religious territory, searching to understand their meanings in time and the sacred space

construction at Romaria do Senhor do Bonfim (The Lord of Bonfim Pilgrimage) in

Araguacema, Tocantins. This pilgrimage is what many other authors call the popular catholic

manifestation; a branch of Christianity which means Catholicism in a peculiar way. This

religious modality expresses through pilgrimage, traditions that spatialize in sanctuaries.

Pilgrimages are places of substantiation of religious experiences, in which there are

celebrations for the saints, or to other kind of hierophany, where territoriality and territories

loaded with sacred symbols, result from a group of practices and rites turning the sanctuary

meaningful for the religious being and for cultural geography. We made this research in four

ample intersected moments which were accomplished by approaching with the object. On

them we tried to read the imaginary landscape of the symbolic territories in pilgrims‘ oral

representation. We got closer to them through bibliographical reading on the issue, trying to

place it in Geography epistemological field. The idea was not to make a preconception on

Pilgrimage, but to build up an approximation that could allow us to raise some questions

about its origin, spatialities, relationship and interactions (territorialities) in the formation of a

religious territory and a sacred space, since the symbolic practices of religiosity. The field

work happened by participation observing with thick watching techniques, tapping,

photographic, written and audio notes, conversation and interviews with the pilgrims and the

family who ―owns‖ the saint. The socio-spatial trajectory of this family until there shows the

saga of thousands of expropriated Brazilian people from the land searching for the ―Bandeiras

Verdes‖ (―Green Flags‖). The relationship between the Pilgrims and the Saint Image at the

pilgrimage time highlights the importance of the supernatural and symbolism in their lives.

This relationship, together with their socio-spatial trajectories, leads them to practices and

founding/transforming actions of territorialities and identities in pilgrimages. It is the territory

(symbolic and social) that brings life to the Pilgrimage and turns it into a sacred space for the

believers of ―Senhor do Bonfim‖ (―The Lord of Bonfim‖). The religious territorialities –

producers of otherness relationship – make the pilgrims be a ―religious group‖, with somehow

the same goals. This complicity provides more trustable and safe living relationship. The

religious territories in the sacred space of the pilgrimage are different from refuge, tiny and

patterned territories. The pilgrims‘ territories are the ones of trusting and closeness to

thousands of other pilgrims who seek for solution for their immediate problems and spiritual

transcendence.

Key words: Religious Territories. Green Flags. Symbolic Territorialities. Symbolism.

Trajectories.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 Quantidade de visitas e sujeitos entrevistados/as no trabalho de campo ................... 22

Figura 2 Esquema da abordagem da pesquisa .......................................................................... 27

Figura 3 Mapa de localização geográfica do Santuário da Romaria do Senhor do Bonfim no

município de Araguacema, Tocantins ...................................................................................... 32

Figura 4 Acampamento público do Santuário .......................................................................... 33

Figura 5 Acampamento familiar em quintal ............................................................................. 33

Figura 6 Acampamento em área livre ...................................................................................... 33

Figura 7 Outra forma de hospedagem ...................................................................................... 33

Figura 8 Cidades do Vale do Araguaia: área de maior influência espacial da Romaria .......... 34

Figura 9 Anúncio de venda de lotes no Senhor do Bonfim ...................................................... 36

Figura 10 Espacialidade da especulação imobiliária no Senhor do Bonfim ............................ 37

Figura 11 Proximidade espacial entre o Senhor do Bonfim e Araguacema ............................. 40

Figura 12 Territórios indígenas em Goiás no século XIX ........................................................ 45

Figura 13 Araguacema começa no Rio Araguaia ..................................................................... 50

Figura 14 O Rio Araguaia e suas praias brancas ...................................................................... 51

Figura 15 Vista aérea do Povoado do Senhor do Bonfim ........................................................ 80

Figura 16 Imagem do Santo: objeto de cultor na Romaria do Senhor do Bonfim ................... 82

Figura 17 Romeiros/as erguendo a cidade provisória .............................................................. 96

Figura 18 Chegada de romeiros/as ........................................................................................... 96

Figura 19 Fluxo de romeiros/as na Romaria ............................................................................ 96

Figura 20 Comércio de artigos sagrados .................................................................................. 96

Figura 21 Vista aérea da cidade provisória .............................................................................. 96

Figura 22 Comércio de alimentos e diversos............................................................................ 96

Figura 23 Caravana de Miracema, TO ................................................................................... 105

Figura 24 Caravana de Xinguara, PA ..................................................................................... 105

Figura 25 Barraca de alimentação .......................................................................................... 106

Figura 26 Bar e restaurante provisórios .................................................................................. 106

Figura 27 Caravana de romeiros/as de Arapoema, TO .......................................................... 109

Figura 28 Caravana de São Félix do Xingu, PA .................................................................... 109

Figura 29 Tenda de inscrição para batismo ............................................................................ 116

Figura 30 Batismo na casa da Igreja Católica ........................................................................ 116

Figura 31 Peças litúrgicas da Igreja Católica: algumas utilizadas no Senhor do Bonfim ...... 117

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Figura 32 Fachada de boas vindas .......................................................................................... 118

Figura 33 Símbolos sagrados recém-pintados ........................................................................ 119

Figura 34 Decoração do Altar ................................................................................................ 119

Figura 35 Decoração interior da Capela do Santuário ............................................................ 119

Figura 36 Banner ao fundo: decoração ................................................................................... 119

Figura 37 Altar durante a Romaria ......................................................................................... 121

Figura 38 Romeira pagando promessa ................................................................................... 121

Figura 39 Auto sacrifício em pagamento de promessa........................................................... 122

Figura 40 Momento de adoração no Altar .............................................................................. 122

Figura 41 Ato de acender velas no ―velário‖ .......................................................................... 122

Figura 42 Grupos de romeiros à frente da procissão .............................................................. 122

Figura 43 Pedidos ao Santo no Altar ...................................................................................... 122

Figura 44 Agradecimento ao Santo no Altar .......................................................................... 122

Figura 45 Cores símbolos na paisagem da Romaria do Senhor do Bonfim ........................... 124

Figura 46 As cores do Andor .................................................................................................. 125

Figura 47 As cores da Bandeira do Divino ............................................................................ 125

Figura 48 As cores do Santo ................................................................................................... 125

Figura 49 Bandeiras circulantes na Romaria .......................................................................... 125

Figura 50 As cores do Altar da Igreja Católica ...................................................................... 126

Figura 51 As cores do Altar do Santo..................................................................................... 126

Figura 52 Cruzeiro em frente à Capela ................................................................................... 127

Figura 53 ―Velário‖ ao lado do Altar ..................................................................................... 127

Figura 54 Procissão em 2013 ................................................................................................. 131

Figura 55 Procissão em 2012 ................................................................................................. 131

Figura 56 Estágio de assoreamento do Rio Piranhas .............................................................. 135

Figura 57 O Rio como espaço de lazer e devoção .................................................................. 135

Figura 58 Transporte de passageiros/as no Rio Piranhas ....................................................... 140

Figura 59 Acampamento às margens do Rio Piranhas ........................................................... 140

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SUMÁRIO

RESUMO ................................................................................................................................. 10

ABSTRACT ............................................................................................................................ 11

LISTA DE ILUSTRAÇÕES .................................................................................................. 12

INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 15

CAPÍTULO I ............................................................................................................................ 31

POVOADO DO SENHOR DO BONFIM: MOBILIDADE, SIMBOLISMO E

FORMAÇÃO HISTÓRICA E TERRITORIAL NA FRONTEIRA ................................. 31

1.1 O povoado do Senhor do Bonfim no contexto da escala municipal e seus lugares

simbólicos ................................................................................................................................ 37

1.2 Migração e mobilidade, uma experiência geográfica: desterritorializações e novas

territorializações na Amazônia.............................................................................................. 52

1.3 A fronteira e as “Bandeiras Verdes”: territorialidades e dimensões simbólicas dos

lugares ...................................................................................................................................... 59

CAPÍTULO II ........................................................................................................................... 75

PROCURAI AS “BANDEIRAS VERDES”- TRAJETÓRIAS, MOBILIDADE E

TERRITORIALIDADES DA FÉ .......................................................................................... 75

2.1 Compreensão do (des)interesse da Geografia pelos estudos da religião ................ 83

2.2 Mobilidade e territorialidades no catolicismo popular: o “brotar” da cidade

transitória e o rearranjo do espaço sagrado ........................................................................ 90

2.3 Peregrinação: dimensões simbólicas e materiais na construção do lugar sagrado

.................................................................................................................................................. 98

CAPÍTULO III ....................................................................................................................... 112

“TUDO QUE EU QUERO ELE ME DÁ” - OS VALORES SIMBÓLICOS DA FÉ NA

CONSTRUÇÃO DO ESPAÇO SAGRADO NA ROMARIA DO SENHOR DO

BONFIM. ............................................................................................................................... 112

3.1 Simbolismo e conflitos de territorialidades no espaço da Romaria ..................... 112

3.2 Articulações ritualísticas entre catolicismo popular e catolicismo oficial ........... 123

3.3 Confluência entre a fé e as águas: o Rio vivido, experienciado e sonhado pelos

Romeiros do Senhor do Bonfim .......................................................................................... 133

CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 143

REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 147

APÊNDICES ......................................................................................................................... 157

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Introdução

[...]

Vamos rezar o terço, eu quero ajudar rezar

Eu sou romeiro de longe não posso mais demorar

Eu sou romeiro de longe não posso mais demorar

(Ladainha do romeiro)

A presente pesquisa que trata da construção do espaço sagrado da Romaria do Senhor

do Bonfim, a partir da fé, dos símbolos e mobilidades espaciais, com características do

catolicismo popular, procura conhecer a trajetória da Família Francisco de Almeida e sua

relação com o Santo, geossímbolo2 da Romaria; percurso que se inicia por volta do final do

século XIX, no Estado da Bahia, quando a imagem do Santo foi ―achada‖ pelo bisavô de seu

Arcanjo Francisco de Almeida, patriarca da família, que a apresentou à autoridade do

sacerdócio, no cumprimento de um rito de ―batismo da imagem do Santo‖.

Migrante inicialmente da Bahia, a Família percorreu os estados do Maranhão, Pará e

Tocantins, motivada pelo mito das ―Bandeiras Verdes‖ e fixou-se nesse último, às margens do

Rio Piranhas, município de Araguacema.

Naquele local, a Família passou a habitar e, a partir da iniciativa do Senhor Arcanjo

Francisco de Almeida, de festejar o Santo com rezas por uma semana em 1933, iniciou-se um

processo de hierofania3; sendo que, somente depois formou-se a Romaria. Desde essa época,

o ―Terço das Novenas‖ passou a ser rezado todos os anos entre os dias 8 e 15 de agosto para

milhares de romeiros, crentes no Santo.

A culminância da Romaria ocorre no último dia. Segundo a Família ―dona do Santo‖,

a escolha da data de 15 de agosto como dia do Senhor do Bonfim foi sugerida pelo padre que

batizou a imagem. A religião é uma, dentre as diversas possibilidades de estudo a cerca da

dimensão territorial da cultura na geografia. ―A materialização da fé vem se acentuando como

tema de análise cientifica‖ (TERRA, 2010, p.93).

2 O geossímbolo pode ser definido como um lugar, um itinerário, uma expressão, que por razões religiosas,

políticas ou culturais aos olhos de certas pessoas ou grupos assume uma dimensão simbólica [...].

(BONNEMAISON, 2012, p. 292). 3 Eliade propõe o termo hierofania para identificar o ato de manifestação do sagrado. O revelar-se do sagrado. As

manifestações das realidades sagradas, por exemplo, a manifestação do sagrado num objeto qualquer, uma pedra

ou uma árvore, e até a hierofania suprema que é, para um cristão, a encarnação de Deus em Jesus Cristo

(ELIADE, 1992, p.13).

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Romarias são eventos de substanciam as experiências religiosas, em que territórios e

territorialidades, carregados de simbolismo sagrado, resultam de um conjunto de práticas e

ritos e tornam os santuários cada vez mais significativos para o ser religioso e para a ciência

geográfica. ―A investigação e a exposição das relações entre religião e Geografia é a tarefa

cientifica da Geografia da religião que forma, assim um ramo da Geografia cultural‖

(FICKELER, 2010, p. 7). O estudo da religião pode se enquadrar se na ―Geografia das formas

simbólicas‖ (CORRÊA, 2012, p.133).

De acordo com Rosendahl (2008), as romarias ou peregrinações brasileiras são de

origem portuguesa. O aparecimento dessas manifestações data do século XVI. Elas trazem,

em sua gênese, o conflito entre a crença popular reivindicativa da expressão espontânea da

crença, e a hierarquia eclesiástica que tenta controlá-lo.

Assim, as romarias são formas em certa medida de o povo reivindicar seu direito de

exercer suas crenças religiosas com liberdade, mas que em certos contextos instala conflitos

de territorialidades, como o que ocorre na Romaria do Senhor do Bonfim, em função do Santo

ser de propriedade particular da Família ―dona do Santo‖. Faz-se necessário lembrar que,

além da vertente católica, outras religiões, como as de matriz africana e as evangélicas do

cristianismo, também fazem reverência a lugares sagrados.

Procuramos saber as razões que levaram a Família ficar de posse da imagem do Santo

e não entregá-lo à Igreja, e obtivemos a resposta que foram razões de ordem religiosa, pois a

imagem foi encontrada quando a Família passava dificuldades de sobrevivência como fugitiva

da Guerra dos Balaios4. Um dos membros da Família ―dona do Santo‖, assim expressou essa

razão:

Foi uma sorte que vei pra meu avô ele dizia. O santo vei abençoar porque dali logo a

famia conseguiu sair em paz. Porque foram abençoados por Deus, porque tinha

acabado a guerra. Não sei se meu avô fez promessa, mas ele acreditava muito no que

tinha acontecido... ele rezava muito pra esse santo, nós todos aprendeu rezar a

devoção com nossos pais que aprendeu com meu avô. (Entrevista cedida em

15/08/2013. Transcrição literal).

Quando perguntamos se a Família estava disposta a entregar o Santo e organização da

Romaria para a Igreja, houve um silêncio por parte do informante e, em seguida, o mesmo

gesticulou com a cabeça em sinal de negação. Sua expressão facial mudou diante da pergunta.

4 De acordo com Sodré (1973), a Balaiada, foi uma revolta que eclodiu no sertão maranhense, na primeira

metade do século XIX (1838 a 1841). Foi uma rebelião que se originou de uma massa agitada e rebelada, um

aglutinado inquieto de vaqueiros, artesãos, escravos e até abastados fazendeiros.

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Os membros mais novos da Família, falam abertamente sobre o direito que a Família tem

sobre a festa como se ela fosse uma herança deixada pelos seus avós.

Eduardo Hoornaert (2002), no prefácio de ―Catolicismo no Brasil‖ de Thales de

Azevedo ressalta que esse autor já em 1955 destacava o caráter privado do catolicismo

popular brasileiro, que mantinha os santos como uma espécie de amuleto particular e

caracterizava a religião católica das populações rurais, como não expiatória, mas propiciatória

e impetratória; uma religião de santos, não tanto de sacramentos; uma religião ―privatizada‖

em capelas e oratórios domésticos e menos centralizada em uma igreja matriz

(HOORNAERT, 2002, p. 13). Esse catolicismo se afasta em grande parte ao dogma e à moral

da Igreja. Uma das suas expressões de manifestação no espaço são as romarias.

No aspecto simbólico, espiritual e espacial, as romarias, de modo geral, são fenômenos

religiosos que transcendem fronteiras e atraem por força do impulso sagrado, em correlação

com outras dimensões culturais, econômicas, sócio-espaciais, números volumosos de

peregrinos aos seus espaços e tempos de realização.

Por outro lado, são singulares em suas histórias de origem e nas paisagens que

esboçam por meio das relações dos fiéis com o sagrado. A Romaria é um dos cultos criados

dentro da religião católica em que a realidade do fenômeno religioso se manifesta. Por esse

motivo, é possível ressaltar que o real contém os fenômenos religiosos, ou seja, os objetos e

comportamentos manifestos nas religiões são perceptíveis nos eventos mágicos ou simbólicos

religiosos.

Percurso da pesquisa

A escolha da Romaria do Senhor do Bonfim como objeto de estudo geográfico no

curso de Mestrado aconteceu por três motivos; o primeiro surgiu após percebermos a partir do

ano de 2005, a ausência de dezenas de estudantes nas aulas da primeira quinzena do mês de

agosto na escola de Ensino Médio onde trabalhamos, no município de Redenção, Pará.

Quando perguntávamos sobre a ausência desses estudantes, a resposta era que os mesmos

estavam para a Romaria do Senhor do Bonfim, e só voltariam depois que o festejo acabasse.

Tal fato nos fez refletir sobre a influência da Romaria na vida dos devotos em nível

regional, como um fenômeno geográfico, pois se tratava de mobilidade, de migrações

temporárias, fluxos, desterritorialização e reterritorialização, espacialidades, símbolos; enfim,

a construção socioespacial de um lugar, a partir da fé.

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O segundo motivo da escolha do objeto diz respeito à pequena cobertura de estudos

acadêmicos na abordagem de fenômenos socioculturais na Amazônia Ocidental, em

específico, no campo da Geografia cultural/religião. Fickeler (2008, 2008, p. 7) ressalta que

há uma relação mútua entre religião e ambiente, que pode ser estudada tanto pela ciência da

religião quanto pela Geografia. O estudo geográfico da religião precisa, segundo esse autor,

investigar ―como, reciprocamente, uma forma religiosa afeta um povo, uma paisagem, um

país‖.

Esse autor sugere que a investigação geográfica sobre a religião busque suporte em

muitos conceitos como os de sagrado, sacralidade, ritual, cerimonial, oriundos do campo da

ciência da religião. Reconhecemos que outros campos de conhecimentos das Ciências

Humanas, como a Antropologia, com Claude Lévi-Strauss, Clifford Geertz, Anthony F.C.

Wallace, Jack Goody, Carlos Rodrigues Brandão e outros, juntamente com os clássicos da

Sociologia, como Émile Durkheim e Max Weber e os historiadores da religião como Mircea

Eliade, Carl Bernstein, Walter Burkert, David C. Lindberg, Elaine Pagels, contribuíram e

podem, também, contribuir muito ainda com a Geografia no estudo do campo religioso.

Por fim, o terceiro motivo está relacionado à possibilidade de estudar a Geografia na

perspectiva epistemológica da Geografia humanista, de inserir-se em direção ao que sugere

Buttimer (1974) citada por Holzer (2008), a ―totalidade do ser – percepção, pensamento,

símbolo e ação [...]‖, e trabalhar a geografia não mais apenas como uma ciência da

racionalidade, mas também da sensibilidade. A geografia humanista segundo Levy (1997),

[...] a geografia humanista na medida em que situa a ‗ontologia espacial

antes da epistemologia‘, ela se constitui em uma geografia cultural

‗especial‘, que aprofunda o sentido da existência individual no mundo,

partindo do postulado que a unidade lógica da existência não é nem o

espaço, nem o tempo, nem a sociedade; é a pessoa humana, e o indivíduo

visto na sua relação fenomenológica com o mundo... a geografia humanista

visa a compreender as motivações e o sentido das escolhas individuais no

espaço, no tempo, na sociedade...nisso, eles [os estudos inovadores da

geografia] olham o afeto, o sistema de valores, as preferências, as crenças

[...] (LEVY, 1997, p. 28).

Considerando que a geografia humanista valoriza a individualidade da pessoa humana

como prioridade no seu postulado, buscamos essa abordagem por entender que por ela seja

possível compreender as motivações e os sentidos dos devotos do Senhor do Bonfim em

relação às escolhas individuais no campo religioso.

Trata-se, assim, da intenção de identificar os significados do sagrado – por meio de

uma romaria - em uma comunidade que surgiu a partir de uma família de migrantes

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nordestinos em busca das ―Bandeiras Verdes‖5, ponto que será discutido no corpo do trabalho.

Tínhamos também em vista a oportunidade de superar fronteiras na nossa própria formação

como geógrafo.

A Romaria do Senhor do Bonfim se insere, no que autores como Brandão (1992) e

Rosendahl (1996) denominam de manifestação do catolicismo popular, uma vertente da

religião cristã que significa o mundo religioso de forma peculiar. Essa modalidade religiosa

expressa, por meio das romarias, um repertório de tradições que se espacializam nos

santuários.

Nas romarias acontecem os festejos aos santos, ou a outros tipos de hierofanias. Na

Romaria do Senhor do Bonfim, município de Araguacema, Tocantins a imagem do Santo é

um exemplo de hierofania cultuada pelo catolicismo popular. Esse seguimento religioso é

entendido como

um sistema de crenças e práticas fortemente embasado numa tradição católica

portuguesa de origem medieval que se desenvolve principalmente no meio rural

brasileiro, sendo apropriado e reinterpretado pela cultura popular, vivido como um

sistema leigo, que baseia no culto devocional dos santos, nas festas e romarias e que

se desenvolve com relativa autonomia em relação à hierarquia de Igreja Católica

(BRANDÃO, 1985, p. 38).

Maia (2001; 2010; 2011) articula conceitos que direcionam para outro aspecto do

catolicismo popular em suas festas: a emoção. Uma das características dessa modalidade de

catolicismo é a peregrinação, o deslocamento; que funciona como um rito. Ainda para Maia, o

gesto de deslocar aperfeiçoa a emoção do mundo festivo. O romeiro porta essa alegria já que

ele vive a Romaria como a festa da sua fé.

A Geografia cultural humanista contribui decisivamente para que possamos fazer

leituras dos diversos e diferentes elementos constitutivos da Romaria como sentimentos,

trajetórias, histórias de vida, significação e ressignificação, organização do espaço e suas

praticas devocionais. Elementos que constituem a ordem simbólica da Romaria.

Ao elegermos o subcampo epistemológico da Geografia cultural humanista queremos

de antemão deixar claro que se trata da Geografia, que nos dizeres de Holzer (2008), nunca se

afastou efetivamente dos temas clássicos, mas, sim procurou se distinguir dos que procuravam

o Positivismo como método.

5 Movimento migratório da Região Nordeste em direção à Amazônia, orientado (informação sem registro

escrito, sustentada pela oralidade do catolicismo popular), pela profecia do Padre Cícero do Romão, o ―Padim

Ciço‖ do Juazeiro, que dizia para seus fiéis no final do século XIX, procurarem as ―Bandeiras Verdes‖, do outro

lado do Rio Araguaia. Ferreira (2011, p. 2), se refere ao movimento das chamadas bandeiras verdes: ―[...]

dirigido sempre para uma terra onde as folhas nunca secam. Mais ou menos o sul do Pará e o oeste do Maranhão,

onde as folhas nunca secam, onde as águas sempre correm‖.

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Justifica nossa escolha por esse subcampo a intensão de abordar o espaço a partir das

emoções, dos sentimentos e das experiências intersubjetivas dos indivíduos. Essa opção

aproxima nosso caminho metodológico das teorizações que se fundamentaram no acúmulo

reflexivo de filosofias do significado como os estudos fenomenológicos, pois os mesmos têm

como intenção principal identificar as experiências humanas que se dão na esfera individual e

nas relações interpessoais, objetivando compreender o indivíduo como sujeito do seu próprio

mundo. A aproximação com a perspectiva fenomenológica não nos impossibilitou de perceber

e abordar o movimento e as tensões inerentes ao lugar da Romaria e as relações interpessoais

que nele se dão que são constituidoras de territorialidades religiosas.

Trata-se, assim, da Geografia cultural humanista na abordagem de Tuan (1989), que se

interroga como é este mundo e como pode ser descrito. Entendimento consoante ao de Corrêa

(2012, p. 134), quando diz que ―o significado constitui o foco da geografia cultural [...]‖.

Sendo assim, trilhamos esse caminho que, também para Almeida (2008a), consiste na

interpretação do espaço vivido. Para tal, buscamos perceber e entender a identificação dos

romeiros com o território, a partir das relações e apropriações simbólicas.

A Romaria do Senhor do Bonfim se apresenta como representação simbólica

constituída por elementos majoritariamente do campo religioso do catolicismo popular de

origem camponesa, permeados por elementos eucarísticos do catolicismo oficial. Esses itens

são inseridos na Romaria pela presença e atuação litúrgica da Paróquia de Nossa Senhora da

Providência do Município de Araguacema, onde está localizado o Santuário do Senhor do

Bonfim. Mesmo sendo ―privada‖, a Festa é abarcada de certo modo pela Igreja.

Consideramos que a pesquisa é exigência básica da ciência, porque é a oportunidade

de relacionar teoria e empiria. Essas, devido suas amplitudes, exigem que o pesquisador

delimite bem seu objeto; mesmo assim, somos cientes que ―os fenômenos são inesgotáveis em

suas grandezas‖ (SILVA, 2008, p. 24).

Aproximação com os sujeitos da pesquisa e trabalho de campo

Na busca por atender esses pressupostos, realizamos a presente pesquisa em quatro

amplos momentos sempre interseccionados. O primeiro momento foi a aproximação com o

objeto, o fenômeno a pesquisar, as conversas com romeiros que frequentam a Romaria. Nessa

aproximação procuramos ler a paisagem simbólica a partir do imaginário e dos territórios

simbólicos contidos nas representações orais desses romeiros.

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Cosgrove (2012) sugere que, para se decodificar geograficamente os múltiplos

significados das paisagens simbólicas, é necessária a leitura detalhada do texto – ele considera

a paisagem um texto para os geógrafos – em todas suas expressões. Conjugado a essa leitura,

ele sugere, ainda, o trabalho de campo e a interpretação de mapas.

Essa aproximação com o objeto foi complementada com leituras bibliográficas sobre o

tema e o fenômeno, na procura por situá-lo em qual campo epistemológico se inscrevia na

Geografia. Esse momento, assim como os demais, contou com o substanciamento das

sugestões do orientador e das disciplinas e exposições dos professores no transcurso das aulas

no programa de mestrado.

A ideia não era formar uma preconcepção da Romaria, mas, sim, construir um

avizinhamento que nos permitisse levantar algumas questões referentes à origem, as

espacialidades, relações e interações (territorialidades) na formação do território religioso e do

espaço sagrado, a partir das práticas simbólicas da religião.

O segundo momento consistiu no trabalho de campo, realizado em quatro etapas,

conforme figura 1, sendo três durante o ano de 2012 e uma em 2013: no dia 26 de julho,

fizemos a primeira visita ao Povoado e iniciamos conversas com a Família ―dona do Santo‖:

os descendentes mais velhos e mais jovens, como as ―rezadeiras‖ do Terço cantado, tradição

da Romaria.

Figura 1 - Quantidade de visitas e sujeitos entrevistados/as no trabalho de campo

Etapa/Data/Ano Categoria de sujeitos entrevistados/as Nº de sujeitos

entrevistados/as

1ª Etapa/26 de julho de 2012 Membros da Família ―dona do

Santo‖

06

2ª Etapa/05 a 15 de agosto de

2012

Romeiros/as peregrinos/as 28

Membros da Família ―dona do santo‖ 02

3ª Etapa/03 de novembro de 2012

Membros da Família ―dona do santo‖ 05

Moradores/as do Povoado do Bonfim 04

4ª Etapa/13 de agosto de 2013

Romeiros/as peregrinos/as 10

Moradores/as do Povoado do Bonfim 04

Membros da Família ―dona do santo‖ 04

Total 63 Fonte: Pesquisa de campo, 2012/2013.

Esse primeiro encontro pretendia, além de estabelecer laços de confiança e empatia

com a Família e a Comunidade local, perceber como os moradores aguardavam a próxima

edição da Romaria, quais eram suas expectativas, e ainda, perceber a paisagem do lugar fora

ápice do tempo sagrado, os Festejos da Romaria.

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Partilhamos da opinião de Brandão (2007), que a experiência do trabalho de campo

tem uma dimensão intensa de subjetividade, que marca a realização e o material produzido no

trabalho. O olhar e o sentir no trabalho de campo complementam o que as entrevistas não

dizem.

Na segunda etapa do trabalho de campo convivemos e vivenciamos por onze dias

com/no espaço e o tempo sagrado da Romaria, entre os dias 5 e 15 de agosto, quando foi

realizada a mais extensa etapa do trabalho de observação participante, com técnicas de

observações densas, escutas, registros escritos, de áudio e fotográficos e conversas com

grupos de romeiros (caravanas), romeiros individuais e, novamente, com as pessoas da

Família organizadora de Romaria.

Com as pessoas individuais e com muitos grupos, optamos por uma estratégia

metodológica de aproximação que não fosse somente aproximar para entrevistar, mas, sim,

para também vivenciar um pouco das conversas sobre a experiência dos romeiros durante a

peregrinação. Com essa intenção, passamos a conversar com esses sujeitos sobre vários

assuntos; dentre eles, a Romaria, dessas falas e convivências extraímos opiniões, sentimentos

e práticas que significavam suas condições como devotos do Senhor do Bonfim.

O critério para escolha das pessoas com quem conversaríamos, principalmente nas

caravanas, foi definido pela cidade de origem, logo, chegam à Romaria, caravanas de cidades

dos Estados do Mato Grosso, Pará, das demais cidades do centro-norte do Tocantins e de

algumas cidades das Regiões Nordeste e Centro-Oeste. Sendo assim, procuramos ouvir

romeiros desses diferentes locais.

Essa observação procurou identificar a abrangência espacial da Romaria. Durante o

trabalho de campo não abandonamos completamente a definição prévia do que seria

observado, por esse motivo, elaboramos perguntas para serem feitas de maneira individual,

relacionadas aos aspectos subjetivos das relações dos romeiros com o Santo, o lugar, os

símbolos, os rituais e com os demais romeiros; bem como sobre as expectativas e sensações

dos mesmos na peregrinação (ida e volta da Romaria) e sobre a faixa etária desses sujeitos.

No trabalho de campo, procuramos não separar o que era percebido da nossa percepção

enquanto ―percebedor‖, pois, como participante, também estava exposto a muitas das

situações que observávamos.

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Nossa postura diante dos rituais sagrados6 foi de participante, na procura por adentrar

ao máximo no espírito místico que envolvia o momento e o espaço. Essa conduta foi adotada

ao considerar o que ressalta Hatzfeld (1993), de que só é possível entendemos um ritual

participando nele, pois os rituais não foram feitos para assistir e sim para vivenciar. Também

temos consciência que ―esse participar nele‖ significa mais que uma simples repetição de

gestos. Compartilhamos da concepção de Maia (1999, p. 196-197) de que ―participar é tomar

parte de algo [...]. Traduz em efeito um movimento intencional [...]‖.

Nossa aproximação com o objeto é cercada da clareza do papel do pesquisador, de

―entrar e sair, aproximar e distanciar, compartilhar e duvidar, pois a posição do pesquisador

requer o distanciamento, o estranhamento‖. No entanto, ―não se trata de tomar sujeito e objeto

geneticamente separados do processo de conhecer‖ (BICUDO, 2011, p. 30).

Nossa perspectiva não é a de que o objeto está objetivamente dado e posto

completamente, e que pode ser observado, manipulado, experimentado, medido e contado

pelo observador. Procuramos nos distanciar do paradigma que separa sujeito/objeto e,

procuramos trabalhar na perspectiva do par: fenômeno/percebido, por acreditar como Bicudo

(2011), que esse par indica que a qualidade é percebida, ao se mostrar na percepção do

sujeito.

Estamos na concepção do objeto como uma manifestação que se mostra no ato da

intuição efetuada pelo pesquisador que está contextualizado, que olha em direção ao que se

mostra de modo atento. No fluxo das vivências do pesquisador com o objeto é que ocorrem os

atos perceptivos. Bicudo (2011) ressalta que vivência é uma experiência qualitativa. Somos

nós que penetramos no interior da vivência e a experimentamos de forma imediata. De início,

ela gera uma experiência não refletida, podendo essa experiência ser mais tarde objeto da

reflexão, até tornar-se consciência da experiência vivenciada.

Esse enfoque procura compreender os fenômenos em suas diversas manifestações e

relações. Nessa perspectiva, os fenômenos que devemos captar os significados podem se

manifestar em palavras, gestos, ações, símbolos, sinais, textos, artefatos, obras, discursos, etc..

6 Utilizamos rituais religiosos no sentido dado por Goody, que, por sua vez, se baseia em autores como

Radclife-Brow, Siegfried Frederick Nadel, Edward Burnett Tylor, James George Frazer, Vilfredo Pareto, Monica

Wilson ―Quando chamamos um ritual de religioso atribuímos , além disso, à ação, uma maneira específica de

relacionar meios e fins que nós sabemos ser inadequados por padrões empíricos, e que comumente chamamos de

irracionais, místicos ou sobre naturais.‖ Pareto sugere falar entender o ritual como não racional ao invés de

irracional. Monica Wilson concebe os rituais somente os atos religiosos, ―uma ação primordialmente religiosa

[...]. Direcionada para obter a bênção de algum poder místico [...]. Símbolos e conceitos são utilizados nos

rituais, mas estão subordinados a fins práticos‖ (2012, p. 38-39).

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Percorrer esse caminho exige que o pesquisador focalize essas fontes como pontos centrais

das interpretações, análises e reflexões.

Para aproveitar qualitativamente essas fontes, as mesmas foram metodologicamente

previstas desde o estabelecimento do plano de trabalho de campo, objetivando a clareza nos

critérios de seus registros em descrições e passagem escrita com análise e interpretação para

os resultados efetivados com base nelas, contudo, somos cientes que, ―não se obtém verdades

lógicas sobre o investigado, mas indicações de seus modos de ser e de se mostrar‖ (BICUDO,

2011, p. 20).

As observações proferidas por Hissa & Oliveira (2004, p. 34-38), também orientaram

nosso trabalho de campo, principalmente no que toca ao olhar. Conforme esses pesquisadores

―não há imagens em si: as imagens são os olhos que vêm as imagens. Imagens são

representações, portanto. Os olhos são, por sua vez, mediadores do processo de interpretação

do que se vê‖.

A terceira etapa do trabalho de campo foi realizada no dia 03 de novembro de 2012, e

consistiu em ampliar o horizonte de interpretação de algumas das observações feitas durante o

festejo da Romaria, e ouvir algumas ―histórias fantásticas‖ sobre o lugar e a Imagem do

Santo, pois, nesse terceiro encontro, a Família ―dona do Santo‖ já estava mais confiante e

aberta a falar sobre suas histórias, vivência no lugar e suas impressões sobre temas

relacionados à última edição da Romaria.

Aproveitamos esse terceiro encontro para ouvirmos opiniões sobre questões que

emergiram durante o segundo encontro, como por exemplo, o loteamento e a venda dos

mesmos a revelia do conhecimento dos moradores do Povoado.

Nessa ocasião, nos foi relatado sobre o projeto de vendas de lotes no Povoado pela

Secretaria de Urbanismo da Prefeitura, fato que, segundo eles, vem deixando a comunidade

preocupada e incomodada, pois pelo projeto de loteamento, os moradores teriam as áreas de

seus lotes reduzidas, passando a ter direito apenas sobre o lugar onde está construída a casa,

sendo que os moradores já têm direito de ―usucapião‖ sobre a terra, pois moram nela há mais

de 50 anos.

Esse assunto ainda necessita de maior aprofundamento na pesquisa, durante o período

do festejo foi possível coletar apenas um panfleto anunciando as vendas e fotografar uma

faixa também de propaganda do loteamento, mas as pessoas não sabiam falar sobre o assunto,

pelo fato de, também, terem sido surpreendidas com tal notícia.

Realizamos a quarta etapa do trabalho de campo na Romaria durante os dias de 13 a

16 de agosto de 2013. Os principais propósitos dessa etapa foram ouvir novamente os

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membros da Família ―dona do Santo‖ sobre a origem da Romaria, sua expectativas em relação

ao futuro da mesma; verificar como estava a questão da venda dos lotes nos terrenos do

povoado; vivenciar a relações dos moradores com os romeiros; conversar com os romeiros

sobre a peregrinação para a Romaria e seus sentidos; ouvir a opinião dos romeiros (internos e

externos), que ficaram no Povoado sobre ―o dia seguinte‖, após a festa; pretendíamos ver o

movimento do retorno e a opinião dos que ficam e, pretendíamos, ainda, ouvir mais narrativas

sobre o Rio Piranhas no espaço da Romaria e seus romeiros.

A proposta de elucidar o conhecimento geográfico cultural sobre a Romaria do Senhor

do Bonfim está sustentada em um percurso metodológico amalgamado pelo cruzamento de

diversos fundamentos que constituem a cultura religiosa dos romeiros que frequentam a

Romaria. Rosendahl (2012), nos lembra da importância dos aspectos da vida religiosa, pois a

temática permite a investigação de outras categorias de análise, como imagem e simbolismo,

valor e significado e, adicionaríamos a essas possibilidades de estudo cultural na religião, o

lugar e as territorialidades.

É consenso nos estudos da Geografia renovada, a partir de 1970, que cultura não deve

ser tomada objetivamente como unidade discreta, existente sob forma unitária e acabada,

passível de ser observada e conhecida. Sendo assim, a cultura no estudo da Romaria do

Senhor do Bonfim será compreendida a partir das práticas humanas nela existentes,

contextualizando-as histórica e geograficamente.

Diante dessa perspectiva, estamos concebendo a cultura religiosa não como uma forma

única, mas na sua multiplicidade em que não cabe uma teoria geral da interpretação dessa

cultura, mas sim ―uma descrição interpretativa que forneça a inteligibilidade de cada

dimensão do objeto cultural em estudo, desvendando as teias de significados tecidas pelos

seus membros, compreendendo a sua lógica interna‖ (CORRÊA, 2012, p. 170).

Nesse sentido, o significado adquire o status de palavra chave nos estudos da Romaria

do Senhor do Bonfim. No entanto, somos cientes que os significados como resultados da

imaginação é veículo de um ―polivocalismo‖ nas ciências humanas que está aberto às

múltiplas elaborações e interpretações.

Entendemos que não existem romeiros naturais; nossa intenção é perceber o que a

Romaria, como ―mundo religioso‖ significa para os romeiros, tanto no sentido simbólico

material quanto no sentido simbólico não material, reconhecendo que, a centralidade da

imaginação é geradora de significado para o mundo conforme nos diz Cosgrove (2012).

Na opinião de Corrêa (2012) compreender os significados criados por nós e pelos

outros é construir um conhecimento mais profundo de um dado aspecto da realidade, além do

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conhecimento da sua organização, constituição e estrutura, significados são o fundamento

último de todo o conhecimento. O método, focado nos significados, pode nos proporcionar o

entendimento dos símbolos ou formas simbólicas que constituem traços fundamentais no

espaço sagrado da Romaria do Senhor do Bonfim.

Ao concebermos a Romaria e seus itinerários como um lugar simbólico aduzimos que,

inerentes a ele, estão os espaços, os símbolos e os significados. Nossa preocupação não

consiste somente em descrever a paisagem simbólica7 dada na Romaria, em vez disso nos

propomos descrever os significados da Romaria para os romeiros que dialeticamente a

constituem e por ela são constituídos enquanto grupo religioso. Procura-se o significado do

simbolismo e da ação humana na construção do espaço sagrado da Romaria.

Conforme Rosendahl (2012), a literatura atual aponta forte continuidade ao estudo do

sagrado e do profano em três dimensões de análise, a saber, (a) a dimensão econômica que

abrange a mercantilização dos bens simbólicos e o lugar religioso; (b) a dimensão política na

qual reconhece as estratégias político-religiosas das instituições que possuem a gestão do

sagrado; e (c) a dimensão do lugar simbólico que trata do significado das práticas religiosas

na diversidade da difusão da fé e na pluralidade de identidades religiosas. A figura 2, abaixo,

demonstra os possíveis imbricamentos de cada item citado anteriormente.

Figura 2 - Esquema da abordagem na pesquisa

Elaboração: Carvalho, J. R., 2013.

7 Para compreender as expressões impressas por uma cultura em sua paisagem, necessitamos de um

conhecimento da ―linguagem‖ empregada: os símbolos e seus significados nessa cultura. Todas as paisagens são

simbólicas (Repoport, 1982), apesar de a ligação entre o símbolo e o que ele representa (seu referente) poder

parecer muito tênue. Todas as paisagens possuem significados simbólicos porque são o produto da apropriação e

da transformação do meio ambiente pelo homem (COSGROVE, 2012, p.227-228).

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Esse esquema tem por base uma leitura da cultura religiosa do catolicismo popular e

seus significados como contexto; algo dentro do qual os acontecimentos sociais podem ser

descritos de forma inteligível, isso é, descritos com densidade como orienta Claval (2010).

Nesse sentido, as territorialidades apresentadas são entendidas nos quatro níveis correlatos

propostos por Saquet (2011) a saber: territorialidades como relações sociais, identidades,

diferenças, redes, desigualdades e conflitualidades; territorialidades como apropriação do

espaço geográfico concreta e simbolicamente; o que implica dominações e delimitações

precisas ou não do território; como comportamentos, intencionalidades, desejos e

necessidades e, como práticas espacio-temporais, multidimensionais, efetividades nas relações

sociais dos romeiros entre si, entre eles e as instituições que controlam a Romaria (a Família

dona do Santo e a Igreja Católica) e as relações entre essas instituições.

Essas territorialidades se dão nas dimensões políticas, econômicas, culturais,

identitárias e simbólicas. A dimensão cultural está sendo concebida na perspectiva de

Bonnemaison (2012), como ―um sistema de representações simbólicas‖; a dimensão

econômica é identificada em específico na religião por meio das relações entre os bens

simbólicos, mercados e redes e todo processo produtivo desses bens; quanto à dimensão

política da Romaria, Rosendahl (2010; 1996), nos ressalta que, a dimensão política do sagrado

permite conhecer as múltiplas estratégias espaciais existentes entre religião e espaço.

Essas estratégias espaciais acentuam o domínio político sobre o território. Quanto à

dimensão identitária, Gil Filho (2008, p. 82) aponta que a identidade religiosa ―é uma

construção que remete à materialidade histórica, à memória coletiva, à espacialidade da

própria revelação religiosa processada em determinada cultura.‖ Nesse caso estamos tratando

aqui da identidade religiosa, mas, ressaltamos que os indivíduos são portadores de ―múltiplas

identidades.‖ E por fim a dimensão simbólica.

Na opinião de Cosgrove (2012) são três as categorias de símbolos: cósmico (emerge

do ato imaginativo inerente ao ser humano), onírico (são evocados nos sonhos e ligam a

imaginação individual e coletiva, imaginação local à global), e poético, que (revelam a

imaginação humana em seu nível mais criativo, resgatando os significados do dois símbolos

anteriores).

Quanto às territorialidades representadas na figura correspondem às relações sociais

centradas em percepções, significados, sentimentos, memórias, identidades e representações.

Esse esquema procura representar nossa experiência vivida, enquanto pesquisador, com os

sujeitos e o lugar da pesquisa.

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Nas palavras de Detoni (2011, p. 101), a experiência do pesquisador com o objeto faz

parte dos ―movimentos de uma síntese de identificação, já que também o pesquisador viveu a

intencionalidade (o sentido que cada manifestação do interrogado tem para com o

pesquisador), dos objetos da sua pesquisa‖.

A partir dessa retomada das experiências, nossas interpretações como pesquisador

tiveram imediatamente, fundamento nas percepções do todo que ocorreu na pesquisa de

campo. Foi a partir dessa posição que definimos os núcleos de significados que deram

propriedade ao todo do espaço sagrado da Romaria do Senhor do Bonfim e o constituiu em

território da religiosidade.

Estudar a Romaria na perspectiva da cultura religiosa é significar espaço onde se

materializam expressões culturais, que são espectadoras e ao mesmo tempo são próprias de

serem percebidas. Quando em seu tempo sagrado de Romaria, a paisagem do Santuário do

Senhor do Bonfim transforma-se em algo rico de significados culturais. Ali, a cultura da fé

imprime e expressa suas mais variadas formas revelando e reforçando identidades.

Segundo Bonnemaison (2012), a cultura desenha nos lugares uma semiografia feita de

um entrelaçado de signos, figuras e sistemas espaciais que são a representação geosimbólica

da concepção que os homens fazem do mundo e de seus destinos. Sobre a importância da

geografia da religião buscar os significados nas paisagens culturais religiosas Wedmo diz:

Assim, os símbolos impressos numa paisagem guardam muitos significados que o

geógrafo pode ajudar a decodificar e fazer leituras mais detalhadas. Os símbolos

religiosos permitem um estudo de locais que possuem símbolos sagrados dotados de

valor para determinados grupos. Os centros religiosos de peregrinação cristã são um

desses locais que merecem análises no âmbito da geografia da religião. As

atividades religiosas aí desenvolvidas impõem transformações nos padrões espaciais

desses lugares e estão fortemente relacionadas com os aspectos culturais da

comunidade, destacando os valores simbólicos aí representados. (WEDMO, 2007,

p. 39).

Esse chamado a desvendar as formações e significações espaciais que a religião

dissemina, indica a necessidade de compreender a religião como um fenômeno que, na

opinião de Souza (2010) alastra formas e simbolismos pelas realidades geográficas de lugares,

paisagens e regiões, (re) ao dimensionar e reestruturar territórios e que, por esse motivo,

precisa ser compreendida como um fenômeno cultural de fortes implicações geográficas.

Valemo-nos da linguagem visual com fotografias, esquemas e cores, por entender que

esses recursos substanciam as narrativas. Parte das fotografias reforça a descrição e

fundamenta a reflexão sobre o fenômeno religioso. O trabalho de campo nos possibilitou

enriquecer a pesquisa com esse material ilustrativo e fontes primárias. As fotografias que

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captaram a individualidade de romeiros e romeiras foram tiradas com consentimento dos/as

mesmos/as. Ao solicitarmos a autorização, explicávamos para qual finalidade as fotografias

estavam sendo feitas.

Estrutura da dissertação

O trabalho está organizado em três capítulos que seguem uma lógica temporal

apresentando a trajetória da Família criadora da Romaria e suas espacialidades em alguns

momentos de errância sendo que, a territorialização da Família às margens do Rio Piranhas é

a pausa em que nos detivemos, por se tratar do espaço da hierópolis, onde acontece a festa.

Cada capítulo está seccionado em três subtítulos com o propósito de identificar cada fio

condutor das discussões no corpo do texto e proporcionar fluidez na leitura auxiliando assim o

leitor.

O Capítulo primeiro apresentará a formação histórica, localização, mobilidade e

territorialidade religiosa, do Povoado do Senhor do Bonfim, na procura por situá-lo no tempo

e no espaço de forma não linear, mas dinâmica, ao considerar sua origem a partir da

mobilidade e das territorialidades religiosas, tanto da Família ‖dona do Santo‖, quanto dos

demais romeiros. As ―Bandeiras Verdes‖ surgem na narrativa como elemento que influenciou

parte das migrações empreendidas pela Família Almeida, até chegar ao lugar onde hoje

acontece a Romaria.

No capítulo dois mostraremos a relação do mito das ―Bandeiras Verdes‖ com o

imaginário religioso popular na região onde a Romaria exerce influência. Nesse Capítulo,

apresentaremos, além da trajetória da Família ―dona do Santo‖ e suas territorialidades, a

relação da Geografia enquanto ciência com a religião, e retomamos a questão da mobilidade,

sobre o prisma da peregrinação do ser religioso, impulsionado pela fé e a adoração de alguma

hierofania; tal fato na perspectiva do catolicismo popular, uma manifestação do povo por

liberdade na forma de exercer sua religiosidade, que em certos contextos, instala conflitos de

territorialidades como o que ocorre na Romaria do Senhor do Bonfim.

O Capítulo três demonstrará a influência dos valores simbólicos da fé na construção

do lugar sagrado na busca pelo significado dos rituais e demais símbolos espacializados no

espaço da Romaria em forma de tradições, mescladas entre o catolicismo popular e o

catolicismo oficial.

Apresentaremos, também, a relevância histórico-geográfica e simbólica do Rio

Piranhas para a formação desse Santuário que, de certa forma, materializa em parte os sonhos

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dos seus fundadores e de milhares de camponeses peregrinos que migraram para - aquelas

bandas - a procura das ―Bandeiras Verdes‖.

Nesses capítulos evocamos elementos históricos e geográficos que tornaram visíveis

diferentes mundos e realidades que, no tempo sagrado da Romaria, estabelecem diálogos que

em outro momento e espaço seriam improváveis acontecer. As romarias com seus fluxos,

ocorrências, variações, origens e trajetórias são temas que têm validade e importância no

campo da Geografia humanista cultural e no interesse da cultura amazônica repleta de

―encantaria‖. Por esse universo de possibilidades empreendemos construir uma narrativa

mediada entre nossa experiência de vivência, como pesquisador e as lentes dos sujeitos que

fazem e vivem a Romaria que se materializa no Povoado do Senhor do Bonfim.

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CAPÍTULO I

POVOADO DO SENHOR DO BONFIM: LOCALIZAÇÃO E A DINÂMICA SÓCIO-

ESPACIAL NA SUA FORMAÇÃO HISTÓRICA

As cidades-santuários revelam uma configuração

espacial segundo sua lógica própria, isto é, os

elementos decorrem de sua articulação com o

sagrado.

(Zeny Rosendahl, 1996)

O Povoado do Senhor do Bonfim, em escala regional localiza-se no Sudeste

amazônico. Conhecido no passado como Bom Jesus das Piranhas, segundo Vieira (2001), o

Senhor do Bonfim, como hoje é conhecido e chamado pelos romeiros que para ali peregrinam

todos os anos na primeira quinzena de agosto, localiza-se na Região do Médio Araguaia:

constituída, principalmente, pelo complexo do Bananal, ou seja, na porção oeste do Estado

do Tocantins, as margens do Rio Piranhas, a 37 km da cidade de Araguacema, sede do

município, às margens do Rio Araguaia.

Pode se afirmar que o Santuário localiza-se, também, às margens do Rio Araguaia,

pois está apenas a 6 km desse rio. O acesso terrestre ao lugar pela a Rodovia estadual, TO –

436, figura 3. Por via fluvial também pode se chegar ao Santuário, pelas águas do Rio

Piranhas.

O Povoado está situado no vale médio do Rio Araguaia, que, nessa região, serve de

divisa para os estados do Tocantins e do Pará, pois fica, também, a poucos quilômetros da

divisa de dois outros estados, Mato Grosso e Goiás. Essa é, portanto, a área core de ação da

Romaria ao Senhor do Bonfim no vale médio do Araguaia: os estados do Mato Grosso, Goiás,

Pará, Tocantins, e, em menor escala, os estados do Maranhão e Piauí. Mas, sua influência

geral abrange ainda alguns estados da Região Nordeste, como Paraíba, Bahia e Pernambuco.

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Figura 3 – Localização geográfica do Santuário da Romaria do Senhor do Bonfim no município de

Araguacema, Tocantins.

De acordo com um dos moradores informantes da pesquisa, no Povoado do Senhor do

Bonfim residem aproximadamente sessenta famílias, com relações de parentesco entre quase

todas ela. O povoado está organizado em cinco ruas, três delas pavimentadas. Duas dessas

ruas formam o centro, com um espaço entre elas, que os moradores chamam de ―praça‖; nele

encontram-se alguns equipamentos como a quadra esportiva, um galpão para abrigar os

romeiros, com capacidade para cem pessoas em média e duas caixas d‘água.

O espaço central possui uma parte construída com esses equipamentos e uma grande

área aberta, onde muitos comerciantes ambulantes instalam suas barracas durante o Festejo. A

Igreja Santuário localiza-se em frente ao espaço central. Ao lado direito da Igreja está a rua

que oferece acesso ao Rio Piranhas e, ao fundo e do lado esquerdo da Igreja, encontram-se

residências da Família ―dona do Santo‖ e, um espaço vazio, que só é ocupado durante a

Romaria com barracas-barbearias, onde os romeiros cortam e ―arrumam‖ cabelos, muitos

como pagamento de promessas.

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De acordo com os moradores, a única escola do povoado que atende alunos da pré-

escola ao 5º ano, foi construída pela a Prefeitura de Araguacema no início da década de 2000.

A partir de 2008, a prefeitura construiu, também, um posto de saúde na comunidade. O

banheiro público só foi construído este ano, 2012, por obra do governo do Estado. O povoado

conta com um sistema de distribuição de água potável e iluminação elétrica.

O Povoado Senhor do Bonfim é uma comunidade urbano-rural, com atividades de

renda ligadas à agricultura familiar e à pesca profissional. A maioria dos habitantes adultos da

comunidade é registrada na Colônia de Pescador de Araguacema. A complementação da

renda desse emprego fixo vem do período da Romaria, por meio do aluguel dos espaços das

residências e quintais aos romeiros; já que o lugar não oferece serviço de hotel. Durante o

festejo, a maioria dos romeiros acampa em barracas de camping nos quintais por todo o

povoado como se nota nas figuras 4, 5, 6 e 7.

Figura 4 – Acampamento público do Santuário Figura 5 – Acampamento familiar em

l

Fonte: Carvalho, J. R., 2012. Fonte: Carvalho, J. R., 2012.

Figura 6 – Acampamento em área livre Figura 7 - Outra forma de hospedagem

Fonte: Carvalho, J. R., 2012. Fonte: Carvalho, J. R., 2012.

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Em função da sua localização geográfica, entre três estados, o tempo da Romaria se

tornou o período em que as relações intermunicipais e interestaduais são mais intensas. Fora

desse tempo sagrado, o lugar vive um relativo isolamento; mesmo assim, mantém relações

comerciais e de busca de serviços como saúde e educação em cidades mais próximas como

Redenção, Conceição do Araguaia e Santana do Araguaia no Estado do Pará; Colmeia,

Araguacema, Pequizeiro, Dois Irmãos e Goianorte, no Estado do Tocantins e Confresa e Vila

Rica no Estado do Mato Grosso, conforme figura 8. Ao se considerar sua singularidade

religiosa pode-se dizer que o Senhor do Bonfim é uma hierópolis na região.

Figura 8 – Cidades do Vale do Araguaia: área de maior influência espacial da Romaria

Fonte: Google Earth, 2013. Acesso em: 26 de jun. 2013.

Org.: Carvalho, J. R., 2013.

Rosendahl (1996, p. 75) classifica as hierópolis brasileiras em cinco tipologias:

núcleos rurais; pequenas cidades em áreas rurais; cidades-santuários entre centros

metropolitanos; cidades-santuários nos centros metropolitanos e cidades santuários nas

periferias metropolitanas. A autora chama de hierópolis ―aquelas cidades que possuem uma

ordem espiritual predominante e são marcadas pela prática religiosa da peregrinação ou

romaria ao lugar sagrado‖.

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O Povoado do Senhor do Bonfim enquadra-se nessa definição de hierópolis e na

categoria núcleos rurais, pois se espacializa em um pequeno povoado que, durante o tempo

sagrado, anualmente se transforma em um núcleo urbano com mais de 20 mil visitantes, a

exemplo de santuário como o de Nossa Senhora da Abadia do Múquem, no Município de

Niquelândia, no Estado de Goiás. ―Durante o tempo da Romaria os devotos que frequentam o

povoado impõem uma organização do espaço diferente daquela que existe nos dias comuns‖

(Rosendahl, 1996, p.76).

Em cada tempo histórico as combinações das variáveis (econômica, política, cultural e

ambiental) assumem características diferentes que refletem diretamente na organização do

espaço. Ao seguir o pensamento de Corrêa (1989) identifica-se, agora, no espaço da Romaria

do Senhor do Bonfim dois principais agentes modeladores desse espaço, o romeiro, que é

breve e o agente imobiliário, cada um configura forma e funções variáveis a esse espaço.

Os romeiros modelam o espaço por meio de suas crenças e práticas devocionais, esse

espaço para eles tem função simbólico-afetiva. Do ponto de vista do agente imobiliário, o

espaço da Romaria significa negócio, giro de capital financeiro e material.

Durante a última edição da Romaria em 2012, os moradores do Povoado foram

surpreendidos com o anúncio da venda de lotes em torno do Santuário pela Secretaria

Municipal de Urbanismo de Araguacema. Durante os últimos cinco dias de festejo, foi

instalado um anúncio em um dos locais mais movimentados do espaço da Romaria ao ofertar

venda de lotes, conforme mostra afigura 9.

Esse anúncio trouxe preocupação aos moradores do Povoado não só por questões

materiais, mas, também, por questões da afetividade com o espaço vivido, pois segundo

Gallais (2012, p. 310), principalmente nas áreas rurais das regiões tropicais, ―os povoados e

seus arredores imediatos formam o centro privilegiado da organização sócio-religiosa do

espaço‖.

A afetividade, nesse caso, tem importância geográfica, pois para essa comunidade as

extremidades espaciais próximas ao Povoado são vividas como seu prolongamento, lugar

onde se projeta promessas, por exemplo, para fins de cultivos agrários.

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Figura 9 – Anúncio da venda de lotes no Senhor do Bonfim

Fonte: Carvalho, J. R., 2012.

Ainda sobre o loteamento, em 2012 durante a Romaria foram distribuídos panfletos

com o mapa de localização espacial do loteamento no Povoado, figura 10. Fato que se

configura como outra forma de apropriação e ordenamento do espaço, a apropriação material

ao visar expandir a área habitada do lugar, mas que indiretamente sofre influência do sagrado,

pois segundo Rosendahl (2009, p. 15) ―é possível reconhecer o sagrado como elemento de

produção do espaço‖. Ao considerar o que ocorre no espaço do Senhor do Bonfim, é possível

dizer que a iniciativa de loteamento é mais uma revelação da dimensão econômica do lugar -

espaço da Romaria - que foi criado a partir das práticas simbólicas religiosas.

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Figura 10 – Espacialidade da especulação imobiliária no Santuário do Senhor do Bonfim

Fonte: Secretaria Municipal de Urbanismo de Araguacema, TO, 2012.

Org.: Alex Castilho, A. e Carvalho, J. R., 2013.

A área interior ao contorno azul corresponde ao espaço ocupado do Povoado, e a parte

externa seria a área que está disponível à venda. No entanto, essa área que está à venda é parte

contígua do terreno do povoado criado pela Família que está ali desde 1933. Esse anúncio

gerou certa curiosidade para os romeiros de fora, que procuravam saber mais detalhe do

empreendimento, mas poucos iam até o local de venda, que funcionava no mesmo prédio do

Posto de Saúde do Povoado. Já para os moradores locais, o anúncio causou estranhamento e

revolta, já que segundo eles foram pegos de surpresa, pois não houve nenhuma conversa

prévia com os mesmos por parte da prefeitura.

1.1 O Povoado do Senhor do Bonfim no contexto da escala municipal e seus lugares

simbólicos

Inospitalidade, escassez, atraso e a vitória dos estrangeiros sobre os nativos são os

mitos centrais nas narrativas que o ―mundo letrado‖ tem fornecido sobre os lugares e suas

respectivas ocupações no interior do Brasil. Neste ponto, o encontro com o pensamento de

Lima (2006) é ilustrativo quando ela afirma que,

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Das descrições de sua paisagem às formas de vida humana que ele engendra o que se

configura é uma espécie de esterilidade sem fim [...]. A geografia mítica do agreste é

construída de muitas palavras-imagens, quase todas referidas à natureza e à

inospitalidade. Do mesmo modo, uma ideia de escassez, de decadência e de

rusticidade compõe a figura vivente do sertanejo e de seu modo de vida (LIMA,

2006, p. 151).

Ao analisarmos a história escrita sobre o município de Araguacema percebemos nela a

impregnação da visão colonialista, visão mistificadora e hierarquizada da história em que

apenas os sujeitos colonizadores têm vez e voz. Essas narrativas estão, de certo modo,

alinhadas ao discurso da oficialidade ou são o próprio discurso da historia oficial. É uma

historia de visão unilateral, contada a partir do olhar do colonizador.

Essas ideias tornaram se ao longo da historia do Brasil veículos desses signos.

Enquanto os povos nativos são sinônimos de enclave, peia a restringir a modernização e a

modernidade, os invasores são elevados ao status de heróis. O que se procura hoje, na

perspectiva pós-colonial é descolonizar a história e as teorias, como reivindicam os autores

Canclini (1997) e Bhabha (1998).

Ao procurarmos captar a voz e as opiniões dos diferentes sujeitos da região trazemos

as falas dos artistas que, a partir de suas vivências construíram uma narrativa poética sobre o

lugar. Trazemos, também, as falas de dois dos mais velhos membros da Família fundadora da

Romaria do Senhor do Bonfim, moradores que nasceram e residem até hoje no lugar da

Romaria, ainda, nessa mesma direção, nos auxiliam as falas dos historiadores locais com suas

visões mais hierarquizadas.

O local do nosso objeto de estudo é o Povoado do Senhor do Bonfim, espaço que se

encontra localizado em um território de escala maior, o município de Araguacema, cidade que

em 2011 completou duzentos anos. A formação territorial, política e social desse município

merece ser nesse âmbito apresentada, por seu caráter geopolítico que envolve conflitos de

territorialidades entre os povos originários da região, os Índios Karajá, a Igreja Católica e o

Estado.

Os versos de Manelão, artista paraense, que viveu às margens do Rio Araguaia até

2011, quando faleceu, anunciam o contexto sociopolítico da região as margens desse Rio

entre o Sul do Pará e o Oeste de Goiás envolvendo Estado e Igreja na ocupação territorial:

[...]

Nossa história começou

mais de cem anos atrás

às margens do Araguaia

não esqueçamos jamais

Frei Gil celebrando a missa

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numa paisagem belíssima

sob o reflexo da paz.

Primeiros destinatários

desse evangelização

seriam os índios Caiapó

que habitavam o sertão

primeiros ―filhos de terra‖

que até faziam guerra

para defender o chão.

E também os Karajá

livres ao sol da manhã

primeiros ―filhos das águas‖

nos passos da Aruanã

deslizando na ubá

ou no remanso a pescar

à luz de um novo amanhã.

[...]

(MANELÃO, 2005, p. 4)

Uma vez que a memória humana registra por um tempo muito curto, é necessário

apelar para os traços sobre os quais os seres humanos depositam sua história espacial, por isso

buscamos nesses fragmentos do poema de Manelão, vestígios geográficos da história de

errância e resistência dos povos migrantes, com quem a história da Romaria do Senhor do

Bonfim tem relação.

A poesia de Manelão nos remete a um tecido de significações urdido pelos matizes e

vozes que compõem o território dos ―filhos das águas‖, ―que até faziam guerra para defender

o chão‖, resistindo à invasão do colonizador/evangelizador. Não se trata apenas do território

do ―poder político‖, mas, também, do território, no sentido simbólico, o da apropriação que

envolve o significado de pertencimento que os grupos constroem em relação a um lugar, onde

se ancoram materialmente, as experiências sociais, ecológicas e culturais com o território, em

que, ainda, se podia ver ―paisagens belíssimas sob o reflexo da paz‖ e ―à luz de um novo

amanhã, pescar no remanso dos rios‖ fartos da região. As imagens geográficas das ―práticas

socioespaciais (produção e organização do espaço), imiscuídas nas representações simbólicas

do poeta,‖ (ANTONELLO, 2010, p. 169) expressam como se forjaram as identidades

territoriais, as territorialidades dos ―filhos da terra‖ e a formação espacial das cidades mais

antigas da Região do Vale do Araguaia.

A partir das conversas realizadas no trabalho de campo com o patriarca e a matriarca

―donos do Santo‖ foi possível perceber que, a formação e a constituição espacial de

Araguacema foram influenciadas pela destacada posição geoeconômica que exerceu na região

por mais de um século. Na opinião dos informantes, esse fato contribuiu para o

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direcionamento na migração e na territorialização da Família ―dona do Santo‖ às margens do

Rio Piranhas, a 37 quilômetros da sede do município.

O senhor informante lembra que ouviu seu pai contar que ao chegar do Maranhão e

atravessar o Rio Araguaia para o lado do Estado do Pará, sua família se estabeleceu em um

lugar por nome de Boca do Bananal e que, nesse lugar quase todos adoeceram de febre

malária. Esse acontecimento foi, segundo ainda o entrevistado, o motivo que pesou na decisão

de seu pai atravessar o Rio Araguaia de volta e procurar outro lugar para morar.

A partir dessa afirmação, foi possível vincular a escolha pelo local próximo à cidade

de Araguacema, também à necessidade de buscar recursos para o tratamento da saúde e, pela

possibilidade de algum benefício advindo da proximidade, figura 11, com um centro urbano

comercial influente na região.

Figura 11 – Proximidade espacial entre o Senhor do Bonfim e Araguacema.

Fonte: Google Earth, 2013. Acesso em: 14 de jun. 2013.

Org.: Carvalho, J. R., 2013.

Gomes & Neto (1993), ao falarem dos primórdios da ocupação de Goiás e Tocantins

fazem um apanhado arqueológico a partir das intensas movimentações de populações

humanas no interior da América do Sul há 11.000 AP (antes do presente). Ocupação que,

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segundo os autores, começou com a implantação do horizonte dos cerrados que seria

caracterizado como mecanismos técnicos adaptativos de exploração do cerrado no interior do

continente.

Ainda segundo esses autores, o povoamento recente de Goiás e Tocantins ocorreu de

forma bastante lenta. Sua população levou um século para passar de 50.000 para 250.000 (de

1800 a 1900). Esse povoamento ocorreu de forma distinta e por etapas que não vem o caso

aqui citar todas.

Uma dessas formas foi ―a construção de presídios (postos militares) e registros (postos

fiscais) em pontos estratégicos ao longo dos Rios Araguaia, Tocantins e Paranaíba, bem como

nas regiões fronteiriças com a Bahia, perto da Serra Geral de Goiás‖ (GOMES & NETO,

1993, p. 79). Nesse contexto de ordenamento territorial surge o Presídio de Santa Maria, mais

tarde transformado em Araguacema, às margens do Rio Araguaia.

Em seu livro Araguacema duzentos anos de história: 1811-2011, Kleber Bucar (2011)

escreve sobre a instalação do presídio8 que deu origem à cidade de Araguacema.

com a transferência da Família Real Portuguesa para o Brasil em 1808, diante das

invasões aqui ocorridas e ainda a séria ameaça de Napoleão sobre Portugal e as

novas terras, o príncipe regente, Dom João, para garantir a posse do território

conquistado, tratou de adotar várias medidas estratégicas, entre elas a instalação de

presídios às margem do Rio Araguaia. (BUCAR, 2011 p. 23).

De acordo com o IBGE, por determinação da Carta Régia de 05 de setembro de 1811,

em princípio de 1812, nas imediações da confluência do Rio Santa Maria com o Rio

Araguaia, foram lançadas as bases de um presídio destinado a dar apoio e segurança à

navegação na região.

Na opinião de Bucar (2011), provavelmente, em razão da proximidade com esses dois

rios, o local passou a chamar-se Presídio de Santa Maria do Araguaia. Esse foi o segundo

nome da cidade de Araguacema, o primeiro foi Couto Magalhães.

O conflito territorial entre os colonos e os indígenas da região, segundo esse

historiador, inicia-se quando uma expedição com mais de oitenta pessoas, comandada pelo

Tenente Francisco Xavier de Barros, em companhia do seu irmão, o cirurgião Manoel Alves

(primeiro médico a percorrer a região), partiram de Vila Boa, capital da Capitania de Goiás e

se instalaram no Presídio de Santa Maria, instalação que conforme Bucar durou pouco.

8 A palavra ―presídio‖, conforme leciona Carvalho (2006) tinha, então, significado muito amplo e abrangente,

compreendendo o complexo de instalações destinadas a apoiar as atividades primárias e secundárias, relativas

não só ao ataque e aprisionamento de invasores contrabandistas como também necessidades sociais e religiosas

dos colonos. Era objetivo ainda rechaçar os ataques dos índios e promover a Catequese (BUCAR, 2011, p.23).

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Consta que no dia 11 de fevereiro de 1813, foram totalmente destruídas as

instalações e seus ocupantes obrigados a fuga. Ao tomar conhecimento da

destruição, o Príncipe Regente, por aviso de 03 de dezembro do mesmo ano,

determinou sua reconstrução, o que só ocorreria bem mais tarde, em 1850, vindo a

ser desativada por ordens oficiais em 1852. Pelo o aviso de 19/11/1858, foi

designado novo local (hoje Araguacema) para a implantação do Presídio, a 156 m

de altitude, 9º 48‘ 18‖ de latitude Sul e 49º 35‘ 00‖ de longitude Oeste. (BUCAR,

2011, p.25).

A refundação do Presídio só veio acontecer em 1859, já no Império, após a solicitação

de ajuda do Presidente da Província de Goiás, Francisco Januário da Gama Cerqueira ao Frei

Francisco de Mon Sant Victo, que se instalasse em Santa Maria e realizasse trabalhos

preliminares de fundação – entenda-se pacificação dos índios. Dessa forma,

Após reunir várias famílias de voluntários, num total e 45 pessoas, em 16 de junho

do mesmo ano, Frei Francisco rumou, via fluvial à Santa Maria, onde aguardaria a

expedição militar que deveria estar a caminho, porém por motivos vários, não se

efetivara. A demora da expedição fez com que quase totalidade dos companheiros de

Frei Francisco o abandonasse. De que, em agosto de 1860 restavam-lhe apenas cinco

pessoas das quais, em setembro duas viriam a perecer sob novos ataques dos Karajá

que incendiaram as precárias instalações, enquanto Frei Francisco e os outros três

sobreviventes conseguiram retornar a Boa Vista, cidade de onde tinham vindo. Por

ordem do então Presidente da Província de Goiás, José Martins Pereira de

Alencastro (22/04/1861 a 26/06/1862), sob o comando do Capitão José Manoel da

Silva Marques, uma expedição composta por quarenta homens partiu de Vila-Boa a

02 de agosto de 1861, chegando ao local dia 30 de setembro. Frei Francisco

retornaria, a bordo de canoas e Simião Estelita Arraiano, conduzindo suprimentos e

viveres e ainda com a responsabilidade por parte da direção do Presídio. Com vistas

à instalação definitiva foram construídas algumas casas e uma pequena capela que

voltaria a ser atacada nas noites 12, 13 e 18 de outubro de 1862. Desta vez, porém, a

comunidade levou a melhor e o fato serviu para alertar o Governo para a

necessidade de reforçar a segurança militar, o que foi prontamente determinado

(CARVALHO, 2006 p.63).

Entre os descendentes das pessoas que acompanhavam essa expedição definitiva, com

o Frei Francisco, reside ainda hoje em Araguacema a sexta geração da família de Thomaz

José Vieira, representada pela família Mesquita. E a Ordem Religiosa dos Freis Franciscanos

administra a Paróquia de Araguacema que, a partir dos últimos dez anos vêm tendo ingerência

sobre a organização da Romaria do Senhor do Bonfim e sobre o distrito onde se localiza esse

Santuário.

A historiadora Francisquinha Laranjeira Carvalho que escreveu Nas águas do

Araguaia, em 2009, história cultural da cidade de Araguacema, aponta que a história do

presídio de Santa Maria em 1811, contém uma longa narrativa de desastres e decepções. A

resistência dos povos indígenas Kaiapó e Karajá residentes nesta área do Araguaia foi intensa

e duradoura. Segunda a autora,

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Na primeira metade do século XIX, houve várias tentativas de se implantar colônias

militares às margens do Rio Araguaia. Mas os índios resistentes do Araguaia,

principalmente, os Kaiapó e Karajá eram avessos à aplicação da política de

implantação de colônias militares às margens do Rio Araguaia. Grupos indígenas

Karajá, Caiapó, Xavante e Xerente, tentaram impedir, de todas as formas a entrada

do colonizador naquelas margens (CARVALHO, 2009, p. 56).

Sabe-se que esse modelo de ocupação colonial vinha sendo implantado no território

brasileiro desde a primeira entrada dos portugueses nessas terras no século XVI. A ocupação

das terras dos índios segundo Palacín (1972), corria ao mesmo tempo com a escravização dos

mais pacíficos, choques intermitentes com as tribos indômitas, aldeamento de pequenos

grupos, que definhavam rapidamente no regime de semi-cativeiro, cruzamentos raciais,

sobretudo por meio dos índios cativos, degeneração e final extinção dos índios.

Na opinião de Carvalho (2009), a resistência dos índios era vista pelos dirigentes

políticos como um dos grandes obstáculos ao povoamento. A maneira encontrada pelos

governantes para os conflitos culturais entre colonizadores e índios seria aumentar ainda mais

a defesa construindo várias vilas militares de defesa e povoamento nas ribeiras do Araguaia,

ao longo do Rio, além de aldeamentos indígenas que deveriam ser dirigidos por missionários.

Os indígenas Karajá da Ilha do Bananal, Xerente, no município de Tocantínia, as

margens direita do Rio Tocantins, no Estado do Tocantins, os Xavante no leste do Mato

Grosso e os Kaiapó, do Sul do Pará são remanescentes desses povos que habitavam o cerrado

brasileiro vítimas até hoje das investidas dos não índios sobre suas terras. Por isso, a marca

histórica desses povos são as migrações pelos cerrados do centro-oeste, tendo alguns que

abandonar essa região em direção à Amazônia, como é o caso dos Kaiapó.

Em 1860, estava reestabelecida a implantação, o funcionamento do Presídio de Santa

Maria e o projeto de navegação na região foram viabilizados com a Companhia de Navegação

a Vapor. Esse empreendimento contou com estudos prévios encomendados pelo governador

da Província de Goiás, José Martins Pereira de Alencastre.

Um elemento importante para a construção não só desse empreendimento, mas

também para o Presídio de Santa Maria, mais tarde em Araguacema foi a mão-de-obra negra e

suas tradições que, segundo Carvalho (2006), contribuíram com um rico e diversificado

legado cultural por meio, principalmente, dos conhecimentos que foram transmitidos às novas

gerações por meio das expressões orais e corporais como, por exemplo, a culinária, técnicas

de cultivo, pesca, danças, artes plásticas e religiosidade.

A historiografia registra uma disputa curiosa pelas versões sobre a escolha do nome

Araguacema: ―cidade das águas do Araguaia‖, ―travessia do rio das araras‖, ―Vale onde voam

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as araras‖. Todas essas três proposições teriam se originado da língua Tupi-Guarani, sendo

Aragua = rio e cema = água de onde surgiu a primeira proposta.

A segunda proposição surge segundo Halum (2008), do Tupi-Guarani que dá o

significado para Araguaia = Rio das Araras, e o sem = passagem, travessia ou saída. Há

também a interpretação de Nogueira (s/d), para Ara = arara; gua = vale; cema = fluxo, de

onde se originou a terceira proposta de nome. Mas, Araguacema foi, segundo Bucar (2011), a

escolha do topônimo que mais agradou a população, que a época votou em plebiscito para a

escolha e a mudança de nome da cidade. Ele diz que:

coube ao educador Manoel Athayde da Graça Leite, que numa alusão ao

deslumbrante Araguaia que lhe teria tomado a primeira parte: Aragua e, numa outra

alusão à ave Siriema lhe teria acrescido a terminação cema, restando porém uma

dúvida quanto à origem ou finalidade da letra ―c‖ (seria apenas para efeito de

eufonia?) (BUCAR 2011, p.30).

O fato do criador do nome ter valorizado o elemento Rio Araguaia e um pássaro

presente no imaginário dos moradores da cidade, foi por fim associado também ao famoso

romance de José de Alencar: Iracema, publicado em 1865, cujo nome identifica uma índia

concebida em sua fértil imaginação e que simboliza o ideal da beleza feminina entre autores

românticos. ―O nome Iracema surgiu de um anagrama com as letras da palavra América‖,

(BUCAR, 2011, p. 30). É possível que, diante do conflito territorial com os povos indígenas

da região, o nome Araguacema talvez tenha sido também uma forma simbólica de

aproximação com os nativos regionais.

Essa metáfora da aproximação não significa que existam populações indígenas no

município de Araguacema hoje, segundo dados da Secretaria de Planejamento do Estado do

Tocantins existem apenas quatro terras indígenas no Estado que são as reservas: Apinajé na

Região do Bico do Papagaio; Krahô, nos municípios de Itacajá e Goiatins; Xerente no

município de Tocantínia e do Araguaia na Ilha do Bananal.

Na figura 12, sobre a espacialização dos territórios indígenas na Província de Goiás no

século XIX, percebe-se que, na região onde estavam instalados os presídios de Monte Alegre

e Santa Maria, local onde atualmente se localiza Araguacema, fora território dos povos Karajá

e Xambioá. Hoje, o município de Araguacema não possui nenhuma dessas reservas. A

ausência de aldeias nesse território pode ser atribuída ao massacre dos povos indígenas que

habitavam aquele lugar. Durante séculos de resistência, os sobreviventes desses povos

indígenas migraram para o interior da região amazônica.

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Tal fato não significou estabilidade territorial, pois continuam sendo agredidos pelos

agentes ocupantes da fronteira diante da conivência do Estado Brasileiro, que muito

morosamente reconhece as terras indígenas. Segundo dados do Conselho Indigenista

Missionário – CIMI - (entidade da Igreja Católica), em 2012, das 1044 terras indígenas

identificadas no Brasil, apenas 361 eram registradas. Esses dados revelam que quase toda

terra indígena está sobre pressão, principalmente dos fazendeiros e garimpeiros.

Figura 12 –Territórios indígenas em Goiás no século XIX

Fonte: Leandro Rocha, 2009.

Os rios como vimos estão ―alinhavados‖ no tecido histórico-espacial de Araguacema e

do Senhor do Bonfim, principalmente os Rios Araguaia e Piranhas. Conta um morador de

Araguacema que o Rio Piranhas passou a ser conhecido por esse nome partir de uma pescaria

na qual um dos companheiros de Januário foi mordido por um peixe dessa espécie.

Lima (2006) diz que a vida em sociedade constitui-se linguagem, em que tanto os

comportamentos quantos as relações sociais formam sistemas de símbolos, lembrando ainda

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que, os fenômenos coletivos podem ser abordados e contextualizados de forma

particularizados.

Carvalho (2009) e Bucar (2011) apresentam em seus estudos sobre a história de

Araguacema o universo simbólico ligado ao modo de vida da população ribeirinha das

margens do Araguaia. Símbolos que estão na memória coletiva e são banhados de mistérios e

encantos. Eliade (2011), ao discutir mito e realidade explica que há pelo menos duas leituras

do mito entre os estudiosos do assunto, aquela que veio até o século XIX, em que o mito é

tratado como fábula, invenção ou ficção, e a leitura mais atual em que o mito é tratado como

―história verdadeira e, ademais, extremamente preciosa por seu caráter sagrado, exemplar e

significativo‖ (ELIADE, 2011, p. 7).

Esse autor compreende o mito como ―fornecedor de modelos para a conduta humana,

conferindo, por isso mesmo, significação e valor de existência‖ (ELIADE, 2011, p. 8). Em

Araguacema, cidade onde acontece a Romaria do Senhor do Bonfim, assim como em muitas

cidades ―ribeirinhas‖, os mitos que significam a existências dos seus habitantes há mais de

dois séculos têm como palco os rios,

O rio é um símbolo de fluidez de ideias para os contadores de causos, lendas, contos

e mitos. Embora esses tipos de manifestações culturais não se restrinjam aos

ribeirinhos residentes às margens do Rio Araguaia eles se fazem pressentes no seu

imaginário [...] O Araguaia continua a ser uma região lendária, enleada de mistérios

(CARVALHO, 2009, p. 69).

Tal fato mostra que o mundo não está assentado unicamente numa materialidade

objetiva, mas também em aspectos subjetivos e simbólicos. Poderia se considerar também

aqui que o imaginário dessa população é povoado de criações. Entendemos o imaginário

consoante ao pensamento de Castoriadis (1991), em que o imaginário é tido como um mundo

de significações estabelecido na e pela passagem entre um mundo ―natural‖ ou ―real‖ e um

mundo social-histórico. Essa é uma ideia que o autor ressalta ser superior sempre a concretude

que lhe teria dado origem.

Não é intenção neste trabalho, apresentar todas as lendas e mitos do imaginário de

Araguacema, optamos apresentar apenas três lendas que entendemos serem elas as mais

específicas do lugar, ao lembrar que, assim como muitas histórias do imaginário popular têm

origem no processo colonial, as lendas aqui apresentadas trazem, também, o cenário colonial:

as inter-relações entre indígenas, missionários e colonizadores. De acordo com o Dicionário

de Teoria Folclórica (1977, p. 132), ―lenda é uma narrativa imaginária que possui raízes na

realidade objetiva. É sempre localizável, isto é, ligada ao lugar geográfico determinado‖.

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Lenda das três Pedras da Sacristia – conta-se que ao construir a Igreja de Nossa

Senhora da Divina Providência, em pedra lavrada, Frei Francisco colocou na parede da

Sacristia três pedras salientes e, a respeito das quais teria profetizado: ―enquanto essas pedras

permanecerem onde estão não haverá ataque de índios, nem fome, nem enchente que assole a

população.‖ Coincidência ou não, pouco depois que a Igreja foi demolida, aconteceu a

avassaladora enchente de 1980, a maior já ocorrida no município (CARVALHO, 2009, p. 81).

Lenda do túnel – Comenta-se, na cidade, da existência de um túnel ou mesmo um

amplo subterrâneo que interligava o presídio a Igreja e dava acesso ao Rio Araguaia. Tratava-

se de uma válvula de escape diante de eventual ataque de índios. Outros dão conta de que tal

construção era destinada ao pernoite dos escravos, cuja permanência era garantida por guardas

em sistema de rodízio no único acesso (BUCAR, 2011, p. 134).

Lenda da capelinha – Havia, no topo de uma pequena colina, logo abaixo da

embocadura do córrego Ponte Grossa, um jazigo em forma de capela que por esse motivo era

conhecido como Capelinha, em que estavam sepultados dois maridos da viúva Titita. Essa

Capelinha era referência para os viajantes (BUCAR, 2011, p. 134).

Essas lendas permeiam o folclore de Araguacema. De acordo com o Dicionário

Brasileiro de Folclore (1999), o folclore é representado por tradições e crenças populares

expressas das mais diversas formas. Para se tornarem folclore, é necessário que tenham

origem anônima, ou seja, que ninguém saiba ao certo quem as criou.

Além disso, precisam ter surgido há muito tempo e ser divulgadas e praticadas por um

grande número de pessoas. O folclore brasileiro é rico de lendas. Os relatos dos mitos, lendas

e superstições se perpetuam pelas palavras faladas. Na opinião de Carvalho (2009), essas

narrativas situam-se entre a razão e a fé. ―No imaginário popular de Araguacema, a figura do

túnel, da capelinha e das três pedras‖ são intimamente associados à vida do lugar e ao rio.

Fatos reais e históricos são misturados com acontecimentos que são frutos da fantasia.

Essas lendas não são representações exclusivas do povo de Araguacema; muitos povos

ribeirinhos as têm como originárias de seus lugares. Em cada lugar essas lendas são adaptadas

e ressignificadas conforme o modo de vida da comunidade. Segundo Goody (2012), nos

contos das várias culturas as semelhanças são tão significativas quanto às diferenças. Elas não

refletem nenhum sistema social específico, mas, como cultura faz com que o imaginário

coletivo as utilize para compreensão das experiências da vida no cotidiano.

O cuidado aqui é para não separar os elementos que constituem o ―mundo vivido‖ e

seus significados na vida da população de Araguacema, pois se considera que o mundo

humano é um mundo de significações e que, ―a compreensão desse mundo não poderá ser

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alcançada sem a compreensão dessas significações‖ (ULHÔA, 2004, p. 20). Busca-se, assim,

considerar as representações que os moradores de Araguacema fazem do seu mundo,

ressaltando que, os mitos presentes no imaginário desses habitantes são mitos que levam ao

processo de colonização e à relação com a natureza.

Ao aprofundarmos um pouco mais a história da formação espacial e econômica de

Araguacema, deduz-se que em sua trajetória, a Família ―dona do Santo‖ ao retornar ao

território da Capitania de Goiás, hoje Tocantins, era portadora de algumas referências sobre a

cidade de Araguacema, que motivou sua fixação nas suas proximidades.

Em 1932, Araguacema tinha certa fama de lugar próspero, pois ali estavam instalados

alguns entrepostos comerciais do Governo da Capitania e Central, como o presídio e a

charqueada, e a ligação por estradas de ―tropeiros‖ abertas por ordem do Governo Central,

ligando Araguacema a outros municípios importantes da região Norte de Goiás como Pedro

Afonso (às margens do Rio Tocantins) e Porto Imperial (atual Porto Nacional).

Essas estradas também foram descritas por Miranda (1974) no sentido de integrar do

antigo norte goiano com os estados limítrofes. A grande maioria desses caminhos propiciou o

insipiente entrosamento entre esses povos e a possibilidade de trocas culturais.

Bucar (2011) ressalta ainda que Araguacema resultou do interesse imperial, em

contraposição a outras povoações motivadas por Entradas, Bandeiras e/ou exploração de

minérios ou ainda espontâneas e naturais. Mesmo sofrendo três destruições por ataques

indígenas, o projeto previsto para 1811 foi realizado em 1861.

Em 1868, uma vez superada a resistência indígena houve um período de ―progresso‖9

consolidado com a implantação da Companhia de Navegação a Vapor do Araguaia, tendo por

entreposto principal o local do presídio. Essa empresa foi desativada em 1888. Denota-se

nessas informações que o os ―agentes hegemônicos‖ do ―progresso‖ trouxeram a

desterritorialização dos povos indígenas e as ações predatórias social e ambiental.

A efetivação do empreendimento da navegação a vapor na opinião de Carvalho (2009)

foi um referendo importante para o desenvolvimento do comércio e, consequentemente, dos

presídios do Araguaia que serviram de portos de embarque e entreposto comercial na rota que

ligava Leopoldina a Patos, no Estado do Pará. O espaço da região foi dinamizado da seguinte

forma na opinião dessa autora:

9 A tradição romântica, na qual Benjamim (1997) se filia, critica o atual modelo de civilização com seu

―progresso material sem alma‖, ligado ao desenvolvimento técnico e científico, ―progresso‖ da racionalidade

burocrática e a quantificação da vida social [...], também criticado por Santos (2008).

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Após a instalação da Companhia e, consequentemente, devido à facilidade de

transporte, verificou-se maior desenvolvimento em todos os setores da vida dos

povoados ribeirinhos. Em face disto, o contato dos moradores dos presídios com os

viajantes que por ali passavam e se hospedavam tornou-se mais acentuado. A

implantação da Companhia foi um elo propulsor na promoção do aumento do fluxo

migratório e do desenvolvimento econômico dos presídios militares do Araguaia

(CARVALHO, 2009, p. 95).

Nota-se que a matriz do modelo de desenvolvimento é a colonial, baseada nos

empreendimentos de escoamento das riquezas da região em detrimento dos modos de vida das

populações que habitavam essa região. Modelo que defendia, também, o povoamento por

meio da migração estrangeira, proposta que dividia a opinião das autoridades nacionais e

estaduais, principalmente os donos de vastas áreas de terras, que temiam mudanças na

estrutura fundiária do país com a vinda de estrangeiros para o Brasil.

Gomes & Teixeira Neto (1993, p. 92) lembram que ―os grupos dominantes e as

oligarquias locais pensavam que a vinda dos imigrantes provocaria profundas mudanças

sociais, comprometendo o status quo, principalmente no meio rural caracterizado por elevada

concentração de terras nas mãos de poucos proprietários.‖

Araguacema sediou também a partir dos anos1930, um estabelecimento industrial de

porte extraordinário para região: a Charqueada de Santa Maria do Araguaia. Tratava-se de um

dos primeiros investimentos do governo federal na região, e tinha como objetivo fornecer

carne (charque) à Tropa, na Base Aérea de Belém-Pará.

Nesse período a região Sudeste da Amazônia já se apresentava como grande criadora

de gado bovino. O dono da concessão era um empresário uruguaio chamado Dom Arturo, que

mais tarde, 1944, vendeu a empresa para João Duarte de Sousa – Dodô. O principal meio

transporte dessa região era o fluvial, que desde 1868, já funcionava com embarcações a vapor.

A navegação era um dos grandes empreendimentos instalado no Rio Araguaia. Bucar ressalta

que a criação do Presídio em Araguacema tinha como principal objetivo dar logística a essa

navegação. Ele diz que,

Vencidas as primeiras dificuldades, estabeleceu-se em Araguacema uma perfeita

simbiose entre navegação e presídio, enquanto a primeira promovia a locomoção de

pessoas, o transporte de bens e o intercambio social, econômico e cultural entre as

diversas comunidades ribeirinhas, o Presídio era ponto de apoio para o fornecimento

de lenha e manutenção. E, aos poucos se transformou em suporte a passageiros e

comerciantes, através de pequenas pensões e postos de trocas de mercadorias, o que

desde já lhe proporcionava algum crescimento (BUCAR, 2011, p. 91).

A navegação com sua lógica de mobilidade motivou a instalação de uma estrutura

mínima para atender a demanda comercial e da circulação de passageiros, com alguns

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serviços e estabelecimentos comerciais, tanto em Araguacema quanto às margens do Rio

Araguaia, corredor da navegação. Pode se falar que a partir dessa época o espaço ribeirinho

passou por um reordenamento, ao se integrar a um sistema viário mais denso e abrangente.

Consequentemente, houve uma dinamização na economia da região e um fluxo mais intenso

de embarcações nos rios Araguaia e Piranhas.

Essa relativa prosperidade e seu sitio geográfico, às margens do Rio Araguaia com

bancos de areia – chamados de praias e utilizados para o lazer turístico - que proporciona um

espetáculo paisagístico natural aos olhos e à emoção de quem ali vive, Araguacema, com sua

identidade que se confunde com a do Rio que lhe batiza, foi poetizada juntamente com o Rio

por seus moradores. Os versos do poeta José Wilson Leite e as figuras 13 e 14 a seguir

revelam a paisagem idílica do lugar:

Araguacema

Pode ser que exista alguém

que te queira como eu quero! Figura 13 –Araguacema começa no Rio

Araguaia

Minha doce Araguacema,

Vida minha, eu te venero.

Ninho de gaivotas brancas,

és tu a beira de praia,

Gema de ricos fulgores que

Adornas meu belo Araguaia.

Araguacema,

Minha doce poesia,

De ti não posso estar

Longe sem nostalgia

Pra tudo mundo eu vou dizer o

Quanto é doce te conhecer.

Araguacema

Tudo que tens é poesia,

O teu céu bem azulão. Fonte: Carvalho, J. R.,2012.

Noites que deixam saudades,

Doçuras no meu coração,

Quem não te adora oh mui bela,

Flor do vale araguaiano,

Hei de cantar teus amores,

Querida do norte goiano.

Em ―geograficidade, poética e geografia‖ Marandola Jr. (2010, p. 10), ao reivindicar

que a geografia se interesse pelos conhecimentos geográficos produzidos pelas artes, aponta

que ―a literatura, em todos os seus gêneros, produz uma espécie de conhecimento que nenhum

cientista produz. Não o conhecimento objetivo, calado, tal como uma descrição ou reprodução

de um lugar, mas um conhecimento criativo, que estimula o pensamento e a imaginação‖.

(LEITE, 1953 apud BUCAR, 2011, p. 113 )

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Poemas como os trazidos aqui são repositórios de significados simbólicos que falam

do envolvimento visceral dos sujeitos com o lugar, revelando os vínculos primordiais de

cumplicidade, ―em diferentes escalas, se estabelecem com suas espacialidades, constituindo

laços de diferentes naturezas que permitem o homem ser‖.

A partir dessas espacialidades o poeta dialoga com seu lugar e a paisagem idílica que

nele existe e, sua alegria de exprimir os encantos-lugares da cidade é ―tão exuberante que, em

última análise, é a expressão vocal que marca a paisagem com seus toques dominantes‖

(GRATÃO, 2010, p. 298).

Água, céu azul, gaivotas brancas, vale e emoção são símbolos da Geografia que marca

o imaginário do poeta, e que traz uma correspondência entre palavra e paisagens do lugar. É a

característica da própria existência, sua forma de pensar e sentir o mundo. O autor ao

descrever seu sentimento sobre sua cidade e o Rio Araguaia, a um só tempo, traz arte e

linguagem e, pela linguagem poética revela o fictício, no entanto, bem real.

Meu Araguaia

Meu Araguaia, oh! Quanta

Beleza,

Nas tuas praias de brancas Figura 14 – O Rio Araguaia e suas praias brancas

Areias,

Nas noites tuas de luar

Banhadas,

No Aruanã dos Karajá nas

Aldeias.

Oh! Rio cheio de encantos

Que banhas a minha terra!

Todo orgulho de minh‘alma,

Teu rolar garboso encerra.

Quero que no teu banzeiro

Vão meu sofrer, minha dor.

Meu Araguaia querido,

Por ti eu morro de amor.

O canto alegre de tuas

Gaivotas, Fonte: Carvalho, J. R.,2012.

Nas risonhas manhãs sempre

Lindas,

Na alma da gente deixa uma

Saudade,

No coração mil doçuras infindas.

Já não suporto aturar,

O coração cheio de mágoas.

Meu belo Rio Araguaia,

Leva-as nas tuas águas.

Quero que no teu banzeiro

Vão meu sofrer, minha dor.

Meu Araguaia querido,

Por ti eu morro de amor.

(LEITE, 1953 apud BUCAR, 2011, p. 112).

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A imagem das águas na memória do poeta revela seu lugar no Rio e o Rio como seu

lugar. Bachelard (1989, p. 9) diz que ―A terra natal é menos uma extensão do que uma

matéria. É nela que materializamos os nossos devaneios; é por ela que nosso sonho adquire

sua exata substância‖.

O poeta se encontra na geografia do Rio e o pede que leve ―seu sofrer, sua dor‖, pois o

Rio como natureza é também força divina que, na visão dos camponeses tem força mítica

capaz de ajudar a atenuar problemas do dia-a-dia trazendo alegria. A linguagem cênica

geografa a paisagem onírica e a poética do espaço. Nela, as imagens das águas e os sonhos

expressam um espetáculo consciente. Ainda para Bachelard (1989, p. 65), a ―água é o sangue

da Terra. A vida da Terra. É a água que vai arrastar toda a paisagem para seu próprio destino‖.

O poema tem o poder de evocação do Rio e a paisagem do lugar, uma vez que

relaciona diversos elementos da natureza: ―Nas tuas praias de brancas Areias. Nas noites tuas

de luar banhadas. No Aruanã dos Karajá nas aldeias.‖ Além da natureza, o poema evoca um

dos mais profundos sentimentos humanos, o amor à natureza. O autor realça sua relação com

o lugar, o meio onde nasceu e viveu.

Conforme Marques (2012), o cerne da Geografia humana é a relação humana e o

lugar; uma vez que o lugar é produtor do humano. Tal fato pode ser evidenciado a partir da

leitura do poema. O rio é lugar no sentido de afetividade e, não está para o poeta como algo

desprovido de significado. Ele procura, por meio da forma metafórica, dar uma adequada

expressão às necessidades do espírito em relacionar-se com o rio.

A vida do povo amazônico está estritamente associada aos rios e igarapés. Externo à

região, no imaginário dos brasileiros, água e floresta são dois elementos abundantes na

Amazônia. Essas duas riquezas aparecem na literatura sobre mobilidade territorial como

fatores impulsionadores de migração para a região.

1.2. Migração e mobilidade, uma experiência geográfica: desterritorializações e novas

territorializações na Amazônia

Sem saber, mas ―com fé que o Senhor do Bonfim lhe mostraria uma terra onde viver

com fartura e em paz‖, a Família ―dona do Santo‖ encontrou às margens do Rio Piranhas o

seu destino, em meio ao campo de cerrado, um lugar onde pôde refundar sua vida e fundar um

lugar sagrado. Sua trajetória socioespacial até ali, ilustra a saga de milhares de famílias de

brasileiros expropriados da terra em busca das ―Bandeiras Verdes‖. Ao se considerar a

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realidade socioespacial brasileira, a saga da Família ―dona do Santo‖ não é só uma

―ilustração‖ da situação de milhares de famílias brasileiras expropriadas, ―ela é um

microcosmo onde se pode ver/entrever/olhar o quadro mais amplo da sociedade brasileira‖

(VIEIRA, 2001, p. 140).

O termo migração, segundo Sorre (1984) é rico em possibilidades, mas no seu sentido

original, bem amplo, aplica-se somente à ideia de movimento, de mudança de lugar e de

moradia. ―Il convient aussi bien à une démarche indiviuduelle, celle Du citadin allant à La

campagne, qu‘àun transfert de meubles, qu‘au changement de sens d‘ um mot‖ (SORRE,

1955, p. 9). O autor aponta as raízes psicológicas das migrações geográficas dizendo que:

Os indivíduos e os grupos humanos são por vezes posto em movimento

normalmente pelas seguintes situações: um desastre natural, guerra, violência, de

uma forma ou de outra. Mas quase sempre, devemos buscar a origem de seus

movimentos em suas necessidades, seu modo de vida, mesmo em suas imaginações.

E talvez, até mesmo em uma situação herdada agindo com a força de um instinto

primitivo que incentiva a mudança (SORRE, 1955, 28. Tradução livre).

Nas ciências humanas, ainda segundo o autor, houve esforços tentando restringir,

circunscrever, ou até mesmo levantar barreiras dentro do que se entende por migração. Se

seria só de um estado para outro ou intra estadual. Nesse debate, os geógrafos preferiram

romper com o isolamento restritivo e adotaram como migrações as expressões de mobilidade

no ecúmeno que incluem desde as migrações sazonais até as invasões e projetos de

colonização como, por exemplo, as colonizações de povoamento. O que os geógrafos fizeram

foi ampliar a visão e considerar como migrações todas as mobilidades humana sobre o

planeta.

Os gregos denominavam ecúmeno a área de extensão do homem. Esta palavra

abarca dois elementos associados: a ideia de espaço terrestre com seus limites e a

ideia de ocupação pelo homem, esta última implicando fixação, estabilidade

(SORRE, 1984, p. 126).

Junto à ideia de mobilidade encontra-se a de fixação, permanência. Mesmo como ser

vivo mais dotado de mobilidade, o homem em suas relações, ações e interações com o meio

necessita da permanência. Ainda, segundo Sorre, tanto mobilidade quanto permanência tem

razões e explicações tanto de ordem ecológica quanto histórica. Esse mesmo autor aponta que,

o que há na verdade, nos complexos geográficos é a mobilidade, e assim, o movimento surge

como ―única realidade, e a permanência como ilusão causada pela mobilidade atenuada,

imperceptível, e às vezes também pelo emprego simultâneo de duas escalas diferentes de

mobilidade‖ (SORRE, 1984, p. 128).

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Sorre utiliza as noções de habitat e mobilidade para mostrar como a segunda está

estritamente relacionada com o nível de arraigamento do grupo com a primeira. Assim, ele

atribui escalas que vão do grau mínimo de mobilidade ao grau de mobilidade total, é o caso

limite, por ele ilustrado assim: ―há indivíduos, há grupos étnicos que não mantêm ligação

alguma, direta ou indireta, com o solo. Não conhecem o habitat, no sentido verdadeiro do

termo. Errantes perpétuos, cuja mobilidade é total‖ (SORRE, 1984, p. 131).

Deleuze e Guattari enfatizam o papel positivo da desterritorialização, desenvolvendo

uma leitura do nômade como um ser em movimento e em liberdade. Haesbaert (2011),

inspirado no pensamento deleuziano apresenta o nomadismo associado à desterritorialização,

não como um estado primitivo, historicamente situado, nem como uma generalidade eterna.

Essa leitura, segundo o autor trata-se de uma ruptura como pensamento hierárquico ocidental

dominante. Um pensamento que se opõe aos modos de pensamento e comportamento

socialmente codificados.

Portanto, diz Haesbaert (2011, p. 240) ―não se trata de uma fixidez das fronteiras. É o

desejo intenso de continuar trespassando, transgredindo, numa identidade sempre

contingente‖. Para ele, no nomadismo o movimento e o trajeto representam ao mesmo tempo

o núcleo de sua reprodução econômica e de sua expressão cultural. O nômade constrói o

território no movimento.

Ao falar sobre migração e mobilidade, Hogan (2005) emprega o termo mobilidade

com o sentido de abarcar todo tipo de movimento populacional no espaço, por isso ele diz,

O termo mobilidade é usado como um conceito mais amplo que migração, já que

considera que uma parte crescente dos movimentos da população com impactos

sociais, econômicos, políticos e ambientais não pode ser caracterizada como

―mudanças de residência permanentes ou semipermanentes‖ (Lee, 1966), senão

como movimentos circulatórios ou temporais de curta duração (HOGAN, 2005, p.

326).

Percebe-se que a mobilidade espacial é um fenômeno que ocorre de diferentes

maneiras e é constante na vida das pessoas, lhe damos com ela todo instante e tem um caráter

complexo, pois sua ocorrência ocorre em diferentes escalas de um dado espaço e tempo por

motivações que vão desde a necessidade econômica ao simples lazer. No sentido empregado

por esse autor, mobilidade vai além das migrações permanentes. Portanto, nesse estudo

empregaremos também esse entendimento comum na visão dos autores aqui citados.

Uma das características do objeto em estudo é a mobilidade por meio da peregrinação

dos fieis à Romaria. Não se trata, portanto, de uma migração puramente por motivos

econômicos ou de lazer diretamente, mas, sim, pela força simbólica da fé e da religiosidade. O

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migrante religioso vai ao encontro do sagrado, ao mesmo tempo em que deixa para trás seu

cotidiano.

Sabe-se que a viagem conforme diz Claval (2010) oferece o melhor e o pior, no

entanto, o peregrino mobilizado pela fé não considera o pior, pois confia na proteção do seu

santo, e faz da viagem ocasiões de aprender e fortalecer sua fé; muitas vezes tendo a viagem

como um sacrifício. A mobilidade religiosa como cultura reflete assim, uma das motivações

humanas para viajar.

Autores como Alfredo (2005) e Gaudemar (1977) citados por Castro (2009) resgatam

o conceito de mobilidade do trabalho elaborado por Marx para falarem da mobilidade dos

trabalhadores no contexto capitalista. Esses entendem que essa mobilidade faz parte dos

mecanismos de acumulação e reprodução do capital.

Para entender a natureza desse processo, que é uma consequência das necessidades

da dinâmica capitalista, nos apoiamos no conceito mobilidade do trabalho de Jean

Paul Gaudemar, perspectiva teórica que tem como referência a forma mercadoria

que ―permite um constante rearranjo da organização da produção que força os

trabalhadores a constantes mobilizações [...] atendendo às necessidade do capital‖

(CASTRO, 2009, p. 2).

Em seu ímpeto de acumular o sistema de produção capitalista descarta massas de

trabalhadores do seu ―processo produtivo‖, fato que tem consequências negativas para a

sociedade em geral; umas delas são as levas de migrantes forçados a se deslocarem pelo

mundo em busca de trabalho. Conjugados com o problema das migrações estão os problemas

da ―favelização‖, fome e a precarização das formas e relações de trabalho.

Então, a mobilidade da mão-de-obra que não encontra (ocupação sustentável), se

inscreve como uma estratégia inerente à lógica de acumulação e reprodução do capital que se

transnacionalizou e condiciona parte dos trabalhadores do mundo à condição transnacional,

mas de forma cada vez mais subalternizada.

O conceito mobilidade do trabalho está em Marx (―O Capital‖, 1990) e foi retomado

por Gaudemar em ―Mobilidade do Trabalho e Acumulação do Capital‖ (1977), para

quem ―a mobilidade da força de trabalho surge então como uma condição

necessária, senão suficiente, da gênese do capitalismo e como um índice do seu

desenvolvimento‖ (CASTRO, 2009, p. 2).

Fruto da expansão capitalista, no Brasil, as migrações estão na origem da formação

histórica e espacial do território que deu origem ao estado nacional brasileiro, após uma

trágica disputa geopolítica entre invasores (descobridores) e os povos originários da região, os

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indígenas. Desde então, as migrações, tanto de origem internacional quanto nacional não

cessaram, em alguns momentos foram mais intensas, em outros mais estáveis.

Por exemplo, no final do século XIX e início do século XX, milhões de europeus

migraram para o Brasil em busca de oportunidades de trabalho. Não se pode esquecer que a

migração forçada (tráfico negreiro), de milhões de homens e mulheres africanos para o Brasil

perdurou do século XVI ao século XIX. Migração que conforme Hall (2011) causou as

rupturas mais aterradoras, violentas e abruptas nessa população. Mesmo Hall adotando o

termo diáspora para os deslocamentos – forçados ou não - das populações negras no passado e

no presente, entende-se que ele está tratando das migrações.

Pensar as migrações no Brasil faz-se necessário resgatar um pouco o projeto de

colonização que, na busca de domínio e de conquista da nova terra e de agenciamento de

capital humano e simbólico, criou uma diversidade de situações, nas quais, o fenômeno

migratório se inscreve produzindo diferentes tipos de rupturas e contradições.

Consideramos, assim, que a discussão sobre migração deve ir além dos seus aspectos

econômicos. Na opinião de Cavalcanti & Guillen (2000) é preciso também entender que o

projeto da colonização torna obrigatório para os sujeitos a formação de uma nova cultura e

identidade, na qual contornos e impressões culturais antigas deveriam ser apagados, com o

propósito de povoar e fixar os trabalhadores a terra.

Falar de migrações no Brasil deve se levar em conta que, o ato de subjugar os índios,

expulsando-os e dispersando-os de seu território, a importação do negro africano para o

trabalho cativo, igualmente a fuga em direção a regiões mais interioranas, o movimento de

ocupação do sertão com a criação de gado e com a busca frenética por ouro, fazem os recortes

da ocupação territorial, ao marcar os deslocamentos de populações, desde os primórdios do

―descobrimento‖, com reflexos até os dias atuais.

Sérgio Buarque de Holanda (1995) lembra que os portugueses, preocupados em

assegurar alguns povoamentos, como os situados entre a Bahia de Todos os Santos e a Bahia

do Rio de Janeiro, forçaram migrações de índios da costa para que servissem de defesa contra

os ataques dos outros gentios. Mas, não podemos generalizar os movimentos migratórios dos

grupos indígenas exclusivamente como uma reação à presença do colonizador.

Essa população possuía uma própria dinâmica migratória como bem nos falam

Martins (1996) e Holanda (1995). Do mesmo modo que o europeu buscava no novo mundo o

Paraíso terrestre, e via nestas terras a imagem do Éden, os Tupi-Guarani estavam em

deslocamento e andavam em busca de sua Terra sem Mal. Essa aventura coletiva dos Tupi-

Guarani, significava uma longa ascese, pois não eram movidos for forças econômicas.

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É importante salientar o deslocamento de muitas populações indígenas adentrando o

território brasileiro, mesmo sabendo que vários deles, aldeados ou não, permaneceram

próximos a núcleos de povoação, inclusive cidades perseguidos e acusados de cometer

atrocidades e de praticar o canibalismo, alguns grupos indígenas haviam desaparecido já em

fins do século XVI.

Os Tupinambá, de acordo com Holanda (1995), o grupo Tupi-Guarani, que

originalmente ocupavam os Estados da Bahia, Rio de Janeiro e São Paulo, passaram a ser

vistos no norte do Brasil, hoje o atual Estado do Maranhão. A dispersão dos Tupinambá veio

confirmar o processo de ruptura que favoreceu à formação do povoamento do território

brasileiro, por meio do qual outras reterritorialidades foram iniciadas, com mudanças de

natureza e conexões indefinidas.

Lembramos, ainda, nesse sentido, da migração forçada dos negros africanos.

Escravizados, arrancados do continente africano para atender ao projeto de usura da

colonização do novo mundo, os negros viveram também intensamente essa ruptura. A história

da escravidão negra no Brasil não se construiu sem conflitos, movimentos, avanços e recuos.

Em sua complexidade, essa história de mobilidade não pode ser entendida

linearmente, pois em muitos momentos a própria noção de ―liberdade‖ era um alvo em

constante movimento. Holanda (1995) nos convida a pensar nos inúmeros quilombos que

ocuparam os sertões, cidades, engenhos, fazendas, garimpos e florestas em constantes

movimentos de migração compulsória com caráter de resistência.

De acordo com Bomtempo & Sposito (2009, p. 229): ―Os movimentos migratórios são

importantes para a análise geográfica, pois por meio deles podemos entender as dinâmicas

territoriais ao longo do tempo em várias escalas, sejam elas regional, nacional ou global‖. As

paisagens humanas expressam muito da mobilidade das populações que trazem o movimento

inerente às necessidades de existência. Mesmo entre os grupos mais espacialmente

estabelecidos, encontram-se pequenas migrações de caráter temporárias, periódicas, sazonais

e pendulares.

Os grupos religiosos em suas peregrinações periódicas criam paisagens da mobilidade

humana. Esses grupos ao peregrinarem segundo Reviére (2008) constroem pelo menos dois

polos temporários: o lugar profano do habitualmente vivido e o lugar sagrado de um

excedente salutar mitificado. As peregrinações religiosas ocorrem entre esses dois polos, um

de ordem material, das dificuldades da vida e outro da ordem espiritual, onde se aspira

melhoras imediatas para a vida.

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As migrações sejam elas, sazonais ou definitivas possuem suas causas e

consequências. Há rupturas com o habitat e com a identidade. Quem migra deixa para trás

geralmente ―pais, amigos, os lugares familiares, a casa, o bar em que se reúnem os

companheiros, o campo onde se joga o time local de futebol‖ (CLAVAL, 2010, p.45).

Todos esses laços que conferem segurança ao migrante, que confirmam sua maneira

de ser e conforta sua identidade, se afrouxam ou se rompem. Ao equipararmos os

deslocamentos temporários de fiéis para a Romaria à migração, acreditamos que esses sujeitos

também sofrem mudanças nas suas vidas.

Ainda para Claval (2010), os motivos que empurram os seres humanos a migrarem são

inúmeros, e as considerações econômicas são eventualmente preponderantes. Mesmo em

busca a maioria das vezes do emprego, os que se deslocam se mostram comumente mais

abertos. ―A viagem questiona nossa própria identidade, nossas próprias crenças‖. Ela resulta

na mudança de modo de vida, surpresa, descoberta de alteridade e do exotismo.

Talvez sejam as migrações e outros deslocamentos populacionais que tornaram as

culturas tão hibridas de modo não se poder mais falar em cultura genuína ou autêntica, nem

sobre identidades fixas. Almeida (2009, p. 169), ao comentar os argumentos de perda das

identidades proferidos pelos europeus que são contrários à imigração adverte que, ―esse

argumento se esgarça, pois a noção de uma cultura autêntica ou de uma identidade como um

universo autônomo internamente coerente não é mais sustentável‖.

Entende-se que tal fato ocorre porque, tanto as culturas quanto as identidades se

transformam cada vez mais em função dos encontros – espontâneos ou não – entre os diversos

povos do mundo. Acredita-se que a partir do século XX, o nível de mobilidade interna aos

países seja proporcionalmente igual ao vigente na escala internacional, com intensificação nas

últimas décadas.

Autores como Hall (2011) atribuem à globalização esses encontros compulsórios ou

não, principalmente, a partir da década de 1970. A partir dessa década, o alcance e o ritmo de

migração e integração se intensificaram enormemente; o que aumentou os fluxos e os laços

entre as nações. Hall aponta pelo menos três consequências desses aspectos da globalização

sobre as identidades culturais, a saber:

As identidades nacionais estão se desintegrando, como resultado da homogeneização

da cultura e do pós-moderno global; as identidades nacionais e outras identidades

―locais‖ ou particularistas estão reforçadas pela resistência à globalização; as

identidades nacionais estão em declínio, mas novas identidades – híbridas – estão

tomando seu lugar (HALL, 2011, p. 68-69).

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Reconhece-se que não são somente as migrações na globalização que provocam trocas

culturais, mas também os sistemas de comunicação espacializados em rede no espaço mundial

que, na opinião de Mc Grew (1992) citado por Hall (2011, p. 67) ―são processos atuantes em

escala global, que atravessam fronteiras nacionais, integrando e conectando comunidades e

organizações em novas combinações de espaço-tempo [...]‖.

De acordo com Marandola Jr. (2010), a geografia tem oferecido uma contribuição

perene aos estudos migratórios, especialmente sobre as dimensões espaciais das migrações, as

quais envolvem tanto os processos territoriais de expulsão de populações (origem dos fluxos),

quanto à absorção de fluxos e as transformações espaciais no local de destino.

Esses processos, pensando ainda com Marandola Jr. têm sido vistos mais recentemente

em termos de desterritorialização e reterritorialização, incorporando às analises as relações de

poder envolvidas em todo processo migratório. Mais do que esses fatores, pensar a migração

desse enfoque tem permitido entendê-la do ponto de vista do sujeito em trânsito, enquanto

processo de articulação de dois territórios diferentes (origem e destino), em sua dimensão

relacional, dando origem às analises de multiterritorialidade, esta é entendida por Haesbaert

(2011) no sentido dos sujeitos experimentarem vários territórios ao mesmo tempo.

O próximo item apresenta a busca, o encontro e a vivência dos migrantes com a

fronteira amazônica ―Bandeiras Verdes‖, que expressam as diferentes territorialidade e

dimensões simbólicas dos lugares vividos por esses sujeitos.

1.3 A fronteira e as “Bandeiras Verdes”: territorialidades e dimensões simbólicas dos

lugares

A Romaria do Senhor do Bonfim surgiu no contexto das migrações de milhares de

brasileiros/as das diversas regiões do Brasil para Amazônia nas primeiras décadas do século

XX. Vieira (2001) identificou, durante seus estudos na Região Sul do Pará, significativos

movimentos que ela os denominou de movimentos sócio-religiosos.

Qualificadamente seriam coletividades de migrantes que interpretavam a realidade

vivida a partir de uma cosmovisão religiosa, ao construir, assim, uma forma de vida social.

Camponeses desterritorializados em sua Região de origem, Nordeste, a Família ―dona do

Santo‖, fundadora de Romaria é um exemplo de movimento migratório, que envolve a

dinâmica da relação das estruturas de significação e das ações dos sujeitos concretos na

tradição religiosa e cultural do catolicismo popular. Sua trajetória de migração constitui um

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microcosmo dentro de um sistema de migração populacional bem mais abrangente, sobre o

qual discutiremos a seguir.

Discutir migrações é falar de território, territorialidade, desterritorializações,

territorializações, reterritorializações e identidades. Como sustentação teórica da nossa

discussão sobre as migrações para e na Amazônia buscamos autores como Raffestin,

Haesbaert e Saquet que formularam substanciosas contribuições na definição desses

conceitos.

Ao tratarmos de conceitos compartilhamos da perspectiva adotada por Haesbaert

(2009), posição que trata os conceitos não como um retrato fiel do real, mas como um

instrumento, uma técnica operacional para a análise do objeto em estudo; tendo o conceito

como imanente ao real, mas não o próprio real.

Raffestin (1993) mostra a intersecção entre espaço e território, sendo para ele o

primeiro anterior ao segundo. O território existe a partir do espaço. O território ―é resultado de

uma ação conduzida por um ator sintagmático (que realiza um programa) em qualquer nível‖

ao se apropriar de um espaço, concreto ou abstratamente [...] (RAFFESTIN, 1993, p. 143).

Cada território contém sua territorialidade. Esta última é entendida por esse autor

como algo além da ligação dos sujeitos ou grupos com o espaço, um processo de relações

mediatizadas, simétricas ou dissimétricas, com o que é exterior ao seu território. A

manifestação multiescalar da territorialidade é da mesma substância de todas as relações.

Assim é ―possível dizer que, de certa forma, é a ‗face vivida‘ da ‗face agida‘ do poder‖

(RAFFESTIN, 1993, p. 162). Nesse caso a territorialidade se materializa como manifestações

de poder.

Haesbaert (2009) inspirado em Lefebvre argumenta que, diferente do que afirma

Raffestin, tanto o território quanto o espaço são produzidos socialmente e não se separam;

mesmo tendo caráter distinto. Esse autor prefere conceber o espaço

num âmbito mais epistemológico, como um outro nível de reflexão, ou ―um outro

olhar‖, mais amplo e abstrato, cuja ―problemática‖ específica se confunde com uma

das dimensões fundamentais da sociedade, a dimensão espacial. Ao território

caberia, dentro dessa dimensão, um foco centralizado na espacialidade das relações

de poder (HAESBAERT, 2009, p. 105).

Essas relações de poder seriam imbricadas nos poderes materiais e simbólicos. O

poder entendido na concepção foucaultiana, a partir das formas como ele é exercido/produtor

ou é produzido. Nessa perspectiva, o autor admite um espaço – em certa circunstância - como

uma imaterialidade, numa intersecção entre o espaço ―percebido‖ e o espaço ―vivido-

simbólico‖.

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Quanto ao território, sua concepção é que o território é o ―momento‖ da materialização

da prática espacial na sua dimensão de poder. Desse modo o território, na sua visão contém

tanto a dimensão simbólica quanto material, e propõe falar-se de processos de

desterritorialização, ao manter o ―foco nas relações de poder‖.

Ao falar de desterritorialização, Haesbaert (2009) leva em consideração as

caracterizações da sociedade capitalista feitas por Deleuze (sociedade disciplinar) e Foucault

(sociedade de controle), por considerar que cada modelo de sociedade desses criou suas

condições de mobilidade, esta que na modernidade clássica foi sinônimo de liberdade,

carregada de positividade, na atual pós-modernidade é vista com preocupação, ao suscitar a

criação de aparatos para seu controle.

A partir da sua leitura de autores como Guattari e Deleuze, Haesbaert (2011) aborda a

desterritorialização na perspectiva geográfica-cultural ao apontar o estado nação como

desterritorializador de culturas na medida em que impõe uma cultura nacional. Leituras mais

recentes também, como a de Kaplan (1990), dizem ser a desterritorialização o deslocamento

de identidades, pessoas e significados que é endêmico ao sistema mundo pós-moderno.

Appadurai (1996) aponta que o termo desterritorialização,

se aplica não somente a exemplos óbvios como o das corporações internacionais e

mercados financeiros, mas também a grupos étnicos, movimentos sectários e

formações políticas, que cada vez mais operam em formas que transcendem limites e

identidades territoriais específicos (APPADURAI, 1996, p.49 apud HAESBAERT,

2011, p. 220).

A compreensão da territorialidade demanda um entendimento prévio do território e do

tempo. Saquet (2011) apresenta as territorialidades simultâneas às temporalidades e afirma

que, é a partir delas que se consegue apreender a grande quantidade de processos e fenômenos

que nutrem material e imaterialmente o território. Para ele,

Tanto as territorialidades como as temporalidades são históricas e

relacionais/coexistentes, gerando as transmultiescalaridades, as transtemporalidades,

as transterritorialidades e as multidimensionalidades nos e dos territórios lugares

[...]. Entendemos a territorialidade em quatro níveis correlatos: a) como relações

sociais, identidades, diferenças, redes, malhas, nós, desigualdades e conflitualidades;

b) como apropriações do espaço geográfico, concreta e simbolicamente, implicando

dominações e delimitações precisas ou não. c) como comportamentos,

intencionalidades, desejos e necessidades e, por fim, d) como práticas espacio-

temporais, multidimensionais, efetivadas nas relações sociedade-natureza, ou seja,

relações sociais dos homens entre si (de poder) e com a natureza exterior por meio

de mediadores materiais (técnicas, tecnologias, instrumentos, máquinas...) e

imateriais (conhecimentos, saberes, ideologias...). Territorialidade é temporal e

relacional ao mesmo tempo (SAQUET, 2011, p. 77-78).

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Como se vê a concepção de territorialidades em Saquet vai além da questão do poder

político ou dos simbolismos, ela perpassa escalas como a econômica e ambiental, ancoradas

nas relações sociais, e acontece em diferentes níveis e escalas de tempo e de espaços. Elas

significam além do exercício do poder, ―as diferenças, as identidades, as desigualdades, as

linguagens, as apropriações, as redes, as representações, um hibrido de apropriações, práticas

cotidianas e de interações sociais-naturais-espirituais‖ (SAQUET, 2011, p. 87). As

territorialidades ocorrem, também, em tempos múltiplos, que o autor chama de

temporalidades e assim define:

As temporalidades significam ritmos lentos e mais rápidos, desigualdades

econômicas, diferentes objetivações cotidianas e, ao mesmo tempo, distintas

percepções dos processos e fenômenos, ou seja, leituras que fazemos da natureza e

da sociedade (SAQUET, 2011, p.79).

Tal fato significa que no interior dos territórios, as temporalidades se manifestam em

processos históricos passados, presentes e futuros, coexistindo simultaneamente de forma

absoluta e relativa a partir dos movimentos que vão da escala micro à universal. Ainda de

acordo com Saquet (2011), elas estão mais ligadas aos ritmos, às desigualdades econômicas e,

juntamente com as territorialidades acontecem no real e simultaneamente estão em unidade.

No território amazônico, no último século registram-se diversos movimentos que

processualmente geraram multiterritorialidades e multitemporalidades, como foi o caso das

frentes pioneiras10

na região.

Melo (2009), ao analisar a chegada das frentes pioneiras na Amazônia e o modelo de

conservação da região, faz uma cartografia dos fluxos migratórios no Brasil nas décadas de

1930 e 1940, e destaca três frentes pioneiras e suas semelhanças. Ela apresenta os vínculos

dessas frentes com as questões econômicas das ―diferentes etapas que constituíram as

mudanças de um estágio pré-capitalista dessas fronteiras em movimento à violência que

caracteriza esse processo‖ (MELO, 2009, p. 160).

10

Os geógrafos, desde os anos 1940, importaram a designação de zona pioneira para nomeá-la, outras vezes

referindo-se a ela como frente pioneira. Os antropólogos, por seu lado, sobretudo a partir dos anos cinquenta,

definiram essas frentes de deslocamento da população civilizada e das atividades econômicas de algum modo

reguladas pelo mercado, como frentes de expansão. Ela expressa a concepção de ocupação do espaço de quem

tem como referência as populações indígenas, enquanto a concepção de frente pioneira não leva em conta os

índios e tem como referência o empresário, o fazendeiro, o comerciante e o pequeno agricultor moderno e

empreendedor. A concepção de frente pioneira compreende implicitamente a ideia de que na fronteira se cria o

novo, nova sociabilidade, fundada no mercado e na contratualidade das relações sociais. No fundo, portanto, a

frente pioneira é mais do que o deslocamento da população sobre territórios novos, mais do que supunham os

que empregaram essa concepção no Brasil. A frente pioneira é também a situação espacial e social que convida

ou induz à modernização, à formulação de novas concepções de vida, à mudança social. Ela constitui o ambiente

oposto ao das regiões antigas, esvaziadas de população, rotineiras, tradicionalistas e mortas (MARTINS, 1996, p.

28-29).

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Segundo a autora, a primeira dessas três frentes dirigiu se para o Sul do Brasil quando

passou a atravessar a fronteira e se instalando no Paraguai. A segunda, caracterizada como

padrão produtivo gaúcho, foi ocupando a fronteira com a agricultura da soja e a pecuária no

Mato Grosso. E a terceira, partiu de São Paulo e dos estados do Sul e do Nordeste para a

Amazônia. Essa frente,

vinculou-se à construção de grandes eixos rodoviários penetrando as terras novas da

Amazônia e dando origem a centros urbanos em suas bordas, os quais retomaram as

funções dos rios da Amazônia na época colonial e das expedições dos bandeirantes.

A esses processos tradicionais juntaram-se outro do tipo pioneiro: as áreas

industriais, os ―enclaves ou polos‖ – petroleiros, minerais, complexos siderúrgicos,

barragens hidrelétricas ou centros de turismo – locais onde os governos interviam

diretamente, ou, apoiando financeiramente empresas nacionais, estrangeiras e

multinacionais (MELO, 2009, p. 161).

Considerada um território vazio de homens e de produção, com fronteiras vulneráveis,

a Amazônia foi sendo ocupada a partir das políticas de povoamento de cunho governamentais

desde o final do século XIX. Conforme Monbeig (1981) citado por Melo (2009, p. 161), ―a

intervenção do Estado se percebe mais abertamente nas ‗terras novas‘ como assunto de

estado, e representava mais a vontade de povoamento das novas terras que uma política de

crescimento do PIB‖.

Uma das estratégias de colonização da Amazônia utilizada pelo Estado foi a migração

induzida de grandes contingentes de brasileiros para aquela Região. De acordo com Rocha

(2008), os anseios geopolíticos de controle territorial por parte do Estado brasileiro

estimularam a partir do final do século XIX, a ocupação e o povoamento da Região. Vale

ressaltar que o Estado brasileiro é um agenciador dos interesses da acumulação e da

reprodução do capital, por esse motivo era necessário promover a mobilidade do trabalho para

a mais nova fronteira do capital11

, a Amazônia.

A literatura mais recente sobre as migrações para Amazônia apresenta uma lacuna

temporal entre os ―períodos da borracha‖ que data das últimas décadas do século XIX até a

primeira década do século XX, e a criação da Superintendência do Plano de Valorização

Econômica da Amazônia - SPVEA, em 1953. Os anos de 1910 a 1950, parecem desprovidos

de eventos geográficos relevantes em termos de mobilidade espacial para aquela Região.

Esse período ―esquecido‖ é muitas vezes resgatado quando conversamos com

camponeses e ex-camponeses de outras regiões do Brasil, principalmente do Nordeste, que

11

Becker percebe a constituição da Amazônia como fronteira do capital natural em nível global, em que se

identificam dois projetos: o primeiro é um projeto internacional para a Amazônia, e o segundo é o da integração

da Amazônia, sul-americana, continental (2005, p. 2).

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vieram para a Amazônia, ainda atraídos pela extração da borracha, a economia dos castanhais

e a esperança de naquele lugar encontrar a terra livre das cercas e dela tirarem a subsistência.

Dessa última esperança, compartilhavam os devotos do Padre Cícero Romão, o ―Padim Ciço‖,

anunciador das ―Bandeiras Verdes,‖ terra livre, rica em fartura e abundância.

Os temas da abundância, da fartura e da terra foram tratados por Nei Clara de Lima

(2006), como ―valores nodais‖, basilares na vida cultural da população sertaneja, que nesse

estudo estamos denominando de camponesa. As ―Bandeiras Verdes‖ abriga esse mito da

fartura que os camponeses perseguiam. Essa autora sugere que é necessário acrescentar

outros olhares sobre as motivações que mobilizam os camponeses, além dos impactos da

modernização. Nesse sentido, estamos olhando a migração em busca das ―Bandeiras Verdes‖

como um fenômeno carregado de um conteúdo propriamente cultural.

O mito da fartura de acordo Lima (2006) diz da singularidade religiosa brasileira. É

um desdobramento da religiosidade. Para a autora,

A fartura é elaborada como equivalente do sagrado [...]. Ela é evocada por meio de

imagens que amalgamam comida, santo e família, recriando uma temporalidade.

[...]. A fartura também é uma elaboração do excesso de hibridismo que se apresenta

na base da nossa vida cultural. Como memória, mas também como exercício de dar

sentido para o mundo, os lugares e os tempos antigos são experimentados como

excesso. Uma hybris própria do modo de ser brasileiro preside essa memória

sertaneja que recria a vastidão do território, povoando-o imaginariamente de

lavouras e crias abundantes (LIMA, 2006 p. 162).

A ideia de abundância, explícita no mito das ―Bandeiras Verdes‖, recobre a ideia de

que esse lugar ainda possui tudo em fartura: terras devolutas para abrigar a todos; terras de

cultura e saúde; abundancia de chuvas. Nesse sentido, as ―Bandeiras Verdes‖ são

―transfiguradas em fartura‖ no universo cultural do sertanejo. ―Sendo da ordem da cultura,

essa produção mítica integra uma concepção de mundo que vem a chocar-se com a

apropriação burguesa do tempo, a qual ignora o ritmo referido à natureza‖ (LIMA, 2006 p.

163).

O imaginário do camponês transita entre o tempo de hoje e o do passado; ele busca

imagens positivas de um tempo que já não existe para substanciar a vida no presente e

construir o futuro, tudo isso perpassado por uma cultura religiosa.

Nas falas de alguns entrevistados a ideia das ―Bandeiras Verdes‖ aparece como um

lugar em que aconteceriam coisas boas. Um romeiro de Rio Maria se expressou assim:

Quando meu pai chegou no Parazão ainda no ano de 1970, ele tinha muita certeza

que ainda ia arrumar uma terrinha pra criar os filhos sossegado. E arrumou, na beira

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dum riacho que dava muita malária. Foi duro mais ele aguentou. Foi o tempo que eu

e meus irmãos crescemos e a gente passou ajudar. Então eu acho que as ―Bandeiras

Verdes‖ que meu avô falava ele tava certo, deu certo pra muita gente. Minha família

vem aqui no Senhor do Bonfim eu acho que é pra agradecer. Eu lembro do meu pai

trazer agente ainda pequeno ((Entrevista cedida em 14/08/2012. Transcrição literal).

De acordo com Martins (1997), as falas, as memórias e representações desses sujeitos

sobre os lugares e fatos que eles também ajudaram a construir, são distintas dadas as suas

trajetórias e posições que ocupam no espaço, nem por isso, menos verdadeiras.

Em confronto com o discurso oficial percebe-se que, as visões espaciais dos

camponeses lançam olhares sobre outras espacialidades construídas na ocupação da

Amazônia, contribuindo para o enriquecimento de uma visão conjunta sobre migração e

ocupação do espaço amazônico nos primeiros cinquenta anos do século XX. Entende-se que

não é na espacialidade apreendida, mas a espacialidade vivida, que se apoia a nossa memória,

parafraseando Halbwachs (2004), quando se refere às narrativas dos sujeitos históricos.

Ao estudar as frentes de expansão da sociedade brasileira na Amazônia, Velho (1987)

identificou no léxico dos camponeses de origem (mediata ou imediata) nordestina, expressões

como: cativeiro da besta-fera12

, terra cativa, terra liberta, volta do cativeiro e libertação.

Conforme Velho tais expressões remetem ao imaginário religioso católico que parece ser

norteador da vida cotidiana dessa população. Um forte aspecto religioso da população rural de

origem nordestina que vive na Amazônia foi identificado, também, por Martins (1996) e por

Vieira (2001).

Na opinião de Velho (1995), essas expressões não eram meras analogias para esses

camponeses, elas estavam em um nível de ―crença e atitudes profundas‖ nas suas vidas. O

cativeiro além da escravidão contra a população negra, também se refere ao cativeiro dos

povos citados na Bíblia no Velho Testamento. O cativeiro é a simbólica do mal diz Ricoeur,

... voltar à enorme carga de sentido contida em símbolos pré-racionais como os que

contém a Bíblia, antes de toda elaboração de uma língua abstrata: errância, revolta,

alvo não atingido, caminho curvo e tortuoso e sobretudo cativeiro, tornando-se assim

o cativeiro do Egito, depois o de Babilônia, os segredo da condição humana sob o

reino do mal (RICOEUR, 1978, p. 237 apud VELHO, 1995, p. 17).

Para os camponeses migrantes nordestinos, o fato de encontrar as ―Bandeiras Verdes‖

já repartida entre os grandes agentes do capitalismo representou o reencontro com o mal, a

besta-fera. Esses camponeses perceberam logo que, assim como no Nordeste, a terra nas

12

A figura da Besta-Fera era claramente reconhecida como um personagem bíblico, saído do livro do

Apocalipse (Ap 13). No caso aqui em tela houve variações na interpretação do seu significado analógico,

passando a ser também associada com a classe dominante, a economia mercantil, o banco, o dinheiro ou os

estrangeiros. O número da Besta-Fera: 666, segundo o Apocalipse (Ap 13, 18), era reconhecido na interpretação

clássica da Bíblia como referência ao dinheiro (VELHO, 1995, p. 16).

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―Bandeiras Verdes‖ também era cativa; que a exploração (cativeiro) da sua força de trabalho

também estava ali, ou seja, a besta-fera, o mal estava nas ―Bandeiras Verdes‖ também.

Na interpretação de Velho, o cativeiro era a escravidão imposta pelo capitalismo, o

autoritarismo. Nesse terreno em que interpretações religiosas orientam a vida, o surgimento

de práticas religiosas como a da Família ―dona do Santo‖ encontraram fertilidade para

irradiar.

Sendo assim, procura se reter, além das questões de territorializações da Família ―dona

do Santo‖ e dos romeiros, o que dá significado e sentido a experiências religiosas

territorializadas no lugar; o que faz com esse lugar e a fé desses sujeitos sejam da forma que

são e não de outra, naquela que é uma região de fronteira, permeada como diz Vieira (2001),

pelo mito das ―Bandeiras Verdes‖.

Nas ciências sociais é corrente o uso da expressão fronteira quando se refere a

movimentos de ocupação de lugares, espaços e territórios. É convergente nas definições dos

debatedores desse termo, a associação da fronteira com a territorialização do capital,

sustentada na ideia de ―espaços vazios‖.

Autores como Graziano (1982), Martins (1997) e Ianni (1986) trabalham a fronteira

numa perspectiva dos grupos humanos, principalmente com populações camponesas e

indígenas em confronto com o avanço das frentes pioneiras e de expansão do capital em

direção às áreas interioranas, um processo de colonização que instaura novas territorialidades

ou restabelece as antigas.

Becker (1988) entende a fronteira como um processo de incorporação de espaços pelo

capital, que não se restringe à questão de terras devolutas ou apenas colonização, para a autora

a fronteira está também relacionada à constituição de ―espaço de incorporação ao

global/fragmentado‖ (BECKER 1988, p. 67).

No contexto das fronteiras de ocupação do espaço amazônico é que se inserem as

―Bandeiras Verdes‖, um geossímbolo, ―definido como um lugar, um itinerário, uma extensão,

que por razões religiosas, políticas ou culturais, aos olhos de certas pessoas e grupos, assume

uma dimensão simbólica que os fortalece em sua identidade‖ (BONNEMAISON, 2012, p.

292).

Esse lugar simbólico, no imaginário dos camponeses migrantes contém possibilidade

de vir a ser concreto. Trata-se de um lugar sagrado; que vai além daquele empregado como

lugar ocupado apenas no sentido espaço geométrico, espaço ocupado, espaço próprio para

determinado fim. Tuan (1983) identifica o lugar como sendo aquele que abriga o espaço

mítico. A expressão do espaço cósmico. Nele acontece o espaço cosmos.

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O lugar da Romaria em estudo identifica-se com essa definição de lugar que converge

com a concepção de lugar em Dardel (1952). Para esse autor o lugar está ligado às vivências

individuais e coletivas a partir do ser com seu entorno. Dardel, para identificar o lugar, traz o

termo geograficidade, que seria a relação direta do homem com a terra, o conteúdo existencial

do ser humano com o espaço terrestre, que é o espaço geográfico.

Para o autor, o ser humano ao se apropriar do espaço geográfico torna-o um lugar.

Escobar (2000) argumenta que, mesmo o lugar sendo ignorado pelas discussões sobre a

globalização, por exemplo, ele continua sendo importante na vida de muitas pessoas, talvez da

maioria. Segundo o autor,

al menos el lugar en tanto que experiencia de una localización particular con una

cierta ligazón a la tierra, un cierto sentido de los límites y una conexión con la vida

cotidiana, incluso si su identidad se construye continuamente, sin quedar nunca

fijada (ESCOBAR, 2000, p. 170).

Ele fala do lugar no plano do vivido, onde a vida acontece de maneira mais completa.

É o lugar do habitar, identificado por Claval (2010), cujos aspectos físicos e os componentes

sociais rapidamente se tornam familiares. Mas o lugar também pode ser sagrado. Ou melhor,

o sagrado necessita de um lugar para se materializar e tornar-se visível aos olhos dos crentes,

para assim tornar-se especificamente uma atração religiosa.

Ao falar da dimensão espacial do sagrado, Rosendahl (2012) destaca a centralidade do

conceito lugar para a geografia, sua abordagem em diferentes perspectivas; o que inclui a

perspectiva do lugar sagrado, que é formado a partir de uma hierofania. Para essa autora,

Trata-se de uma construção social na qual um segmento do espaço – uma gruta, um

trecho de rio, uma floresta, uma localidade rural ou urbana – se distingue do espaço

por atributos qualitativos a partir e em torno da hierofania que ali se manifestou. O

lugar sagrado se expressa por geossímbolos que o identificam, mas, antes de tudo, é

percebido e vivenciado com emoção e sentimento pelo crente, aquele que o

diferencia plenamente dos lugares comuns (ROSENDAHL, 2012, p.81).

A manifestação do sagrado na imagem encontrada pela Família ―dona do Santo‖ e a

mobilidade espacial dessa Família até as margens do Rio Piranhas no Estado do Tocantins na

Amazônia foram responsáveis pela constituição de um lugar simbólico, um lugar sagrado,

pois segundo Oliveira (2012, p. 5) ―a concepção de lugar é de tempo em espaço; ou seja, lugar

é tempo lugarizado, pois entre espaço e tempo se dá o lugar, o movimento, a matéria‖.

Antes do lugar da Romaria, a Família trazia no imaginário o lugar simbólico das

―Bandeiras Verdes‖. A familiaridade e as experiências religiosas dessa Família fizeram o

lugar da Romaria. Esse espaço (movimento, liberdade) passou a ser lugar também para

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milhares de fiéis que ao se apropriarem daquele espaço simbólico o tornam seu lugar de

transcendência, segurança e de pausa no tempo e no movimento do tempo-espaço do

cotidiano.

Diante dos lugares sagrados, as abordagens mais recentes no campo da geografia de

religião, ressaltam a comunidade religiosa que o criou e o significado cultural do individuo ou

grupo religioso e suas práticas religiosas no lugar, pois cada elemento de um lugar sagrado

porta um repertorio de significados que procedem das ―experiências do indivíduo com esse

lugar que se acumulam ao longo do tempo‖ (COSTA, 2010, p.36).

Gil Filho (2008), ao comparar o espaço sagrado do judaísmo, do islã, do catolicismo e

da fé Bahá‘í, destaca o que representa simbolicamente os lugares sagrados dentro das

estruturas de territorialidades dessas grandes religiões.

No judaísmo o sagrado se relaciona ao culto de Javé e sua presença na lei, ligado ao

lugar de permanência simbólica do templo em Jerusalém. No islã, relaciona-se aos

locais consagrados pela presença divina e suas manifestações por intermédio do

profeta Muhammad, como a Ka‘ ba em Makka (Meca), ou a circunscrição territorial

de Medina, na Arábia Saudita; a mesquita de Al-Aqsa, em Jerusalém e a tumba de

Abraão em Hebron, na Palestina. Na fé bahá‘í, as Encostas do Monte Carmelo, em

Haifa, com presença dos jardins suspensos em patamares até o Santuário de Báb, e

Bahjí, nos arredores de Akká, onde se encontra o túmulo de Bahá‘u‘Iláh, são lugares

sagrados por excelência. No cristianismo católico, o sentimento do sagrado é

expresso no simbolismo da ―encarnação divina de Jesus Cristo‖ e seu ato sacrifical,

representado no sacramento da comunhão. A Igreja como local de encontro, reserva

a ideia de reunião e memória. Os santuários são expressões de peregrinação popular

na busca de junção com o sagrado também por meio da manifestação de fenômenos

sobrenaturais, ―milagres‖, que podem ser reconhecidos institucionalmente e/ou

popularmente (GIL FILHO, 2008, p. 119-120).

Percebe-se que o substanciamento na constituição do lugar sagrado no catolicismo é o

grau da intensidade na relação afetiva do fiel com certos espaços. Já no Islã, parece ser os

relatos tradicionais sobre a história dos imames (sucessores do profeta Muhammad), que

estabelecem as sacralidades das cidades e locais onde a memória e a permanência dos imames

são celebradas. Para os judeus a constituição dos lugares sagrados está na força do culto a

Javé, representante do templo de Jerusalém. E, na Fé Bahá’í, montes naturais, construções

humanas e túmulos constituem-se nos principais lugares sagrados.

Relph (2012), ao apresentar uma lista de sentidos e definições de lugares coloca o

espírito do lugar. O espaço sagrado da Romaria do Senhor do Bonfim é resultante da visão de

um lugar espiritualizado que seria as ―Bandeiras Verdes‖. Esse lugar-símbolo tornou-se um

lugar de identidade muito forte para muitos camponeses migrantes nordestinos, conforme

afirma Vieira em sua tese sobre as Missões Religiosas na Amazônia Oriental.

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O lugar da Romaria para Família ―dona do Santo‖ e os fiéis não deve ser entendido

somente pelo sentido de enraizamento, cabe ao entendimento dessa relação, tratá-lo na

perspectiva da teoria rizomática de Deleuze e Guattari (1987), em que os lugares podem se

reproduzir por tubérculos que são invisíveis ainda que conectados por uma fonte original. Na

opinião de Relph (2012), essa teoria sugere que podemos ter raízes simultaneamente em

vários lugares diferentes, mantendo todos conectados.

O lugar da Romaria para os fiéis do Senhor do Bomfim está conectado a outros

lugares simbólicos ou não, como por exemplo, ―as Bandeiras Verdes‖ ou os lugares das

tradições religiosas ligadas ao catolicismo popular nas regiões de origem dos seus

antepassados.

O lugar desses sujeitos religiosos é também influenciado pelo processo de mobilidade

que vivenciam no tempo da Romaria, já que todos deixam os lugares onde residem e são

afetivamente mais apegados e passam a viver por certo tempo, entre o lugar da vida cotidiana

e o lugar da experiência transcendental.

O lugar da Romaria é mítico e, por ele os fiéis experienciam o mundo. Ele é uma das

conectividades com a qual os romeiros experienciam o território. Na Romaria há a reunião no

sentido psicológico, que segundo Relph (2012, p. 29) ―integra nosso corpo, o estado do bem-

estar, a imaginação, o envolvimento com os outros e as nossas experiências ambientais‖.

O lugar sagrado da Romaria está enraizado num lugar simultaneamente especial,

familiar e significativo, onde os fiéis vivem e praticam intensas experiências religiosas. Nele

ocorrem experiências ligadas ao cotidiano, mas que também se abrem para o mundo. Relph

lembra que

O lugar não é meramente aquilo que possui raízes, conhecer e ser conhecido no

bairro; não é apenas a distinção e apreciação de fragmentos de geografia. O núcleo

de significado de lugar se estende, penso eu, em suas ligações inextricáveis com o

ser, com a nossa própria existência. Lugar é um microcosmo. É onde cada um de nós

se relaciona com o mundo e o mundo se relaciona conosco. O que acontece aqui,

neste lugar, é parte de um processo em que o mundo inteiro está de alguma forma

implicado. Isso é muito existencial e ontológico (RELPH, 2012, p. 31).

O símbolo da religiosidade é o principal elemento que os devotos do Senhor do

Bonfim recorrem para forjarem o sentido do lugar sagrado. A Romaria para os fiéis do Senhor

do Bonfim é um lugar sagrado. Esse simbolismo procede da hierofania da imagem do Santo.

E o lugar ―Bandeiras Verdes‖, como um lugar mítico, está situado talvez em um dos níveis

mais sofisticados do pensamento desses fiéis.

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Conforme diz Mello (2012, p. 51), o lugar mítico ―diz respeito aos eldorados ou terras

fantásticas, paradisíacas ou infernais, ou relativas aos projetos irrealizáveis, aos sonhos, ao

inacessível ou cultivado como um éden a ser alcançado nesta ou outra dimensão, mas pode ser

fabulosamente vivido.‖ A Romaria para os fiéis tem esse caráter mítico e, ao mesmo tempo é

o lugar do encontro, onde os romeiros constroem suas identidades religiosas, em que

manifestam no corpo suas coletividades religiosas que se fortalecem a partir das relações com

o outro.

Na opinião de Marandola Jr. (2012), ―identidade e memória adensam o lugar‖. Na

Romaria do Senhor do Bonfim o lugar é significado pela memória, os sujeitos entrevistados

na pesquisa trazem em suas falas sempre a memória dos pais que os levaram à Romaria pela

primeira vez ou que frequentavam em outros lugares onde moraram essas modalidades de

festas. São falas que remetem a uma memória da tradição, a uma experiência profunda de

entrelaçamento com outros lugares sagrados.

Tuan (2011), ao tratar dos conceitos espaço, tempo e lugar como um arcabouço do

humanismo, procurando mostrar como o tempo está presente em cada um deles em diferentes

escalas, especificamente em direção à relação tempo-lugar na experiência humana, entende o

lugar como a estrutura significativa, resultado de um esforço para atribuir valor e significado

ao mundo.

Tal fato ao considerar que, sempre precisamos de um lugar ordenado, um cosmo para

habitarmos. Para tanto diz o autor que ―o processo de criação de um cosmo ocorre quando o

tempo ilusório é ancorado no espaço, e este é ancorado na realidade mais tangível do lugar.

[...]. O espaço cósmico é um mundo expressivo, um lugar‖ (TUAN, 2011, p.7).

Ao resgatar a origem das noções de tempo e lugar no mundo ocidental, Tuan vincula

essas noções ao pensamento grego e hebreu, sendo que o primeiro povo valorizava a visão

autóctone, o lugar, enquanto que o segundo renegava o sedentarismo. Tem-se, assim, hebreu,

um povo nômade com um cosmo fundado no tempo linear, e os gregos, um povo sedentário,

com um cosmo espacial de tempo cíclico.

No horizonte humanista da geografia consideram-se os laços de afetividade na

constituição do lugar e, o mesmo pode ser considerado também um símbolo, pois ambos

ganham profundo significado por meio dos laços emocionais, tecidos ao longo dos anos.

Como assinala Mello (2008, p. 167), ―os lugares são entes queridos e merecedores de

considerações especiais‖.

De acordo com Bourdieu (2010), os símbolos são sistemas de comunicação e

conhecimento que servem para construir realidades ordenadas que dão sentido imediato ao

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mundo, principalmente ao mundo social. Os símbolos são mais que sistemas de

comunicação, eles têm função política, pois ―são os instrumentos por excelência da integração

social,‖ contribuem decisivamente para a reprodução da ordem social.

No campo da Geografia, Corrêa (2012), ao discutir espaço e simbolismo trata da

dimensão simbólica do lugar ao postular que diferentes contextos culturais, em escalas

espaciais simultâneas ao envolver, espaço, tempo e padrões de significados contêm lugares

simbólicos. Nesse sentido,

Os lugares simbólicos podem ser considerados lugares retóricos (rhetoricaltopoi) e

lugares vernaculares (vernaculartopoi) de uma perspectiva que os distingue segundo

práticas simbólicas oficiais e práticas simbólicas populares. O primeiro termo refere-

se a lugares de cerimônias cívicas, que nos ensinam a respeito das nossas heranças

nacionais e responsabilidades públicas [...]. Os lugares vernaculares, ao contrário,

são lugares públicos impregnados de tradições populares locais e marcados por uma

conexão identitária (CORRÊA, 2012, p. 139-140).

Ficam então as perguntas: quem constrói os sentidos simbólicos dos lugares? Como

eles são construídos? Corrêa aponta que os sentidos simbólicos de um lugar podem tanto ser

construídos por seus moradores quanto por interesses e pessoas externas ao lugar, a população

em geral, segmento específico dela, sejam grupos empresariais ou ainda o Estado.

Um complexo processo de criação, interno ou externo, conforme disse o autor em tela,

cria os lugares simbólicos, envolvendo tensões entre diferentes agentes sociais, criadores e

usuários de significados.

Maia (2008), no campo da sociologia, em estudo sobre a abordagem do espaço no

pensamento brasileiro trata dentre outras coisas as dimensões do espaço simbólico. Na sua

concepção, metáforas e analogias podem ser mobilizadas, também, quando se trata do tema

espacial. O simbolismo no espaço é construído na visão da paisagem que construímos

intelectualmente.

A paisagem na visão do autor é cultura antes de ser natureza. ―Paisagem é construção

intelectual humana, que reúne os referentes vislumbrados no cenário natural, e organiza-os em

imagens poderosas e metafóricas‖ (MAIA, 2008, p. 27). Nesse sentido Tuan (1980), também

afirma que a cultura pode influenciar a percepção.

O mito de existência de um lugar simbólico chamado ―Bandeiras Verdes‖ no presente

estudo carece de uma contextualização. Segundo Vieira (2001), as ―Bandeiras Verdes‖ é um

lugar: espacial, natural, social e, acrescentaríamos mítico, simbólico, associado aos ―fins dos

tempos‖.

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A Romaria do Senhor do Bonfim enquadra-se nessa característica de lugar de

realização do cotidiano das famílias que habitam o povoado e dos romeiros que ali se

territorializam durante o tempo sagrado da Romaria, lugar onde estão guardados os

significados e as dimensões da vida e, principalmente da vida religiosa. Espaço ancorado na

realidade mais palpável do lugar. Assim como as ―Bandeiras Verdes‖, o lugar da Romaria do

Senhor do Bonfim é um lugar simbólico.

Falar das ―Bandeiras Verdes‖ é retomar o imaginário popular romeiro, repleto de

simbolismo e fé. Nela, talvez esteja a visão da natureza (as matas), como o lugar sagrado de

que fala Eliade (2011). Vieira (2001), que estudou as ―Bandeiras Verdes‖ como movimento,

missão e romaria, a trata como uma profecia feita pelo o Padre Cícero do Juazeiro, Ceará,

mesmo não encontrando, segundo ela, nenhum documento comprobatório dessa orientação

feita pelo sacerdote. Mesmo assim para a pesquisadora,

a profecia das Bandeiras Verdes é atribuída ao Padre Cícero. Ele teria dito a seus

fiéis que nos fins dos tempos deveriam procurar as Bandeiras Verdes, que foram

identificadas com as matas amazônicas. A crença na profecia é compartilhada por

camponeses nordestinos e do centro-oeste, tendo sido, para muitos, o elemento

desencadeador da migração para a Amazônia (VIEIRA, 2001, p. 142).

Para a autora, as ―Bandeiras Verdes‖ têm um caráter de mobilidade espacial. Ela faz

referência a dois movimentos com possibilidades de terem influenciado o imaginário popular

na construção simbólica desse lugar: o movimento dos bandeirantes, nas expedições

Bandeiras, utilizadas na territorialização do projeto de colonização do interior do Brasil, a

serviço da sociedade escravocrata-monocultora, e o das festas religiosas do catolicismo

popular, como as festa do Divino Espírito Santo e de Santo Reis, que acontecem em alguns

estados brasileiros, como Tocantins, Maranhão, Goiás, Minas Gerais e São Paulo. ―A cruz

nesse movimento representa a igreja institucional territorializada, e a bandeira é um símbolo

móvel apropriado pelo o catolicismo popular‖ (BRANDÃO, 1981, p. 26).

Um devoto do Senhor do Bonfim de idade sexagenária, morador de Conceição

Araguaia no Pará, expressou lembranças a respeito das festas com bandeiras que ele associa a

alguma localidade distante:

Encontrei no estado do Pará as mesmas festas de bandeiras que eu participava

quando era criança no Tocantins, pras bandas de natividade. E as ―Bandeiras

Verdes‖ eu nunca vi, só que os mais velhos, falava desse lugar bom. Um tio meu

sabia muitas histórias que ele contava desse lugar. Aqui já está diferente, mas de

primeiro vinha muita gente que também conhecia as bandeiras (Entrevista cedida em

10/08/2012. Transcrição literal).

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O movimento, deslocamento e dúvidas estão presentes na fala desse romeiro que

morou no estado do Tocantins e depois migrou para o Pará. Em sua memória a bandeira está

mais presente como festa do que como alguma localidade.

Ao falar dos deslocamentos constantes dos sertanejos, Otávio Velho (1995) menciona

a história das ―Bandeiras Verdes‖ nas profecias do Padre Cícero, a dúvida quanto a

salubridade de um local e a crença difusa de que o pobre jamais será deixado em paz por

muito tempo, como algumas motivações de errância.

Esses pensamentos, na opinião do autor, estão assentados na vontade de exercitar a

liberdade, além disso, estão plenamente integrados à tradição bíblica, dentro da qual, ―desde

pelo menos o Êxodo, o deslocamento representa uma fuga ao cativeiro: simbologia associada

à questão do servo-arbítrio (vontade cativa do homem a respeito da salvação)‖ (VELHO,

1995, p. 30). Essa tradição bíblica repassada ao catolicismo ibérico do qual somos herdeiros,

sem dúvida, é recriada no imaginário da fartura e, por certo, fornece sentido aos incessantes

deslocamentos das populações camponesas.

As ―Bandeiras Verdes‖, assim como outras manifestações do catolicismo popular se

devem em grande medida à ausência do poder eclesiástico nos espaços interiores – nos

sertões, mas também ao caráter doméstico do catolicismo ibérico, conforme Vieira (2001). De

modo pessoal, familiar, como forma de se aproximar do sagrado, de romper as distâncias

entre o sagrado e o profano.

São manifestações mescladas de práticas populares e eclesiais, mas também ocorrem

em larga medida a contrapelo das práticas oficiais, devido às formas de ocupação do território

brasileiro. Considerando a diversidade cultural-religiosa brasileira, aventamos dizer que as

cosmologias e formas religiosas indígenas e africanas, também, estão repletas de elementos

domésticos e de relação com a natureza, portanto, não é possível afirmar uma única influência

de uma forma particular de catolicismo: o popular na formação da Romaria em estudo.

Martins (1996), que estudou as frentes pioneiras na Amazônia na perspectiva da

fronteira recebendo migrações das diversas regiões do Brasil, principalmente do Nordeste diz

ser a migrações espontâneas para a Amazônia motivadas por concepções religiosas

milenaristas13

.

13

Há muitas indicações de joaquimismo nesses movimentos, inclusive nos recentes, na Amazônia. Isto é,

aparentemente há influências das ideias de Gioacchino Da Fiore, um monge calabrês do século XII, responsável

pela elaboração e difusão de concepções relativas à chegada do Tempo do Espírito Santo. A utopia joaquimita se

manifesta, no milenarismo sertanejo, nas práticas comunitárias, já que sua previsão é a de que há de chegar um

tempo de justiça, de fraternidade, de liberdade, de fartura - um tempo de libertação (MARTINS, 1996, p. 54).

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Durante seu trabalho de campo na região esse pesquisador diz ter encontrado em

diferentes pontos de uma extensão de cerca de oitocentos quilômetros ao longo do rio

Araguaia, diversos grupos de camponeses que chegaram à região inspirados pelas profecias

do Padre Cícero sobre a existência de um lugar mítico depois da travessia do grande rio, que

seria o Rio Araguaia. Sobre as ―Badeiras Verdes‖ o autor registra,

E tive notícia de um grupo desgarrado, empenhado na mesma busca, que se

estabelecera à beira do Rio Tocantins. Esse lugar mítico é reconhecido como o lugar

das Bandeiras Verdes, que ninguém sabe dizer exatamente o que é nem onde é. Mas,

seria reconhecido quando fosse encontrado, por ser um lugar de refrigério, de águas

abundantes, de terras livres, em contraste com o Nordeste árido e latifundista

(MARTINS, 1996, p. 53).

Movidos por essa esperança da ―terra prometida‖, homens e mulheres buscaram as

margens do Rio Araguaia, a transpuseram e se fixaram na terra, até que as frentes da pecuária

e da extração de madeira e minério os expulssassem para os núcleos urbanos que foram se

formando em toda Amazônia, principalmente a partir dos anos de 1950. Martins ao falar das

características e trajetórias desses grupos migrantes assim define,

Trata-se, claramente, de milenarismo medieval e europeu, como é próprio da

maioria dos casos de milenarismo no Brasil. Os que procuram as Bandeiras Verdes

andam em grupos. Geralmente são grupos de parentes e vizinhos no local de origem.

Sua trajetória dos pontos de origem no nordeste aos lugares em que se estabeleceram

varia de seiscentos a oitocentos quilômetros. O deslocamento é lento, em vários

casos tomando dos peregrinos muitos anos, com paradas demoradas ao longo do

trajeto (MARTINS, 1996, p. 53).

De acordo com o autor, na fronteira, há um imaginário místico, que mescla e adapta ao

sentido de movimento próprio da frente de expansão, vários e diferentes componentes do

imaginário medieval. Além dos seguidores das ―Bandeiras Verdes‖, ainda de acordo com o

autor, havia outros grupos de camponeses peregrinos como o de Maria da Praia, que há

muitos anos se deslocava de Minas Gerais, no sudeste, para o Norte. Depois de alguns anos

atravessando Goiás e Mato Grosso, o grupo se estabeleceu no Pará.

O grupo de Maria da Praia, segundo Vieira (2001), que o estudou durante a década de

1990, tratava-se de migrantes vindos para a Amazônia concomitante à implantação dos

grandes projetos e organizava uma missão religiosa que abrangia o oeste do Maranhão, o

norte do Mato Grosso, noroeste de Goiás (em 1989 passou a ser Tocantins) e o sul do Pará.

De acordo ainda com essa pesquisadora, havia grupos de migrantes, além daqueles atraídos

pela economia da borracha no final do século XIX, que vieram para outros lugares da região

Amazônica nas primeiras décadas do século XX motivados pelo mito das ―Bandeiras

Verdes‖.

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A partir do que constatou Vieira (2001), sobre o forte apelo religioso de orientação do

catolicismo popular na Amazônia Oriental (Norte do Mato Grosso, Tocantins, Sudoeste do

Piauí, Oeste do Maranhão e Sul do Pará), podemos perceber que romarias, festas do divino e

reisados fazem parte do imaginário popular dessa região que coincide com a região de maior

influência da Romaria. Essa tradição, mesmo nas gerações mais jovens os motiva a frequentar

a Romaria e se declararem devotos do Santo Padroeiro da Romaria.

Pensando ainda com Vieira, as ―Bandeiras Verdes‖ combinava dois elementos no

imaginário popular: a ocupação territorial e o aspecto religioso. Os migrantes entendiam que

esse novo lugar, onde chegaram, era indicado e protegido por ordens espirituais.

―Bandeiras Verdes‖ é um lugar simbólico, elemento reforçador da esperança e

atribuidor de sentido ao deslocamento. Relph (2012), ao procurar qualificar o conceito de

lugar diz que a metáfora que ressoa mais forte com o lugar e geografia é o ‗habitar‘.

Conforme sua opinião, ―estar na terra significa morar, relacionar-se com o lugar por meio da

existência, está ciente da própria mortalidade, ter experiências de lugares que são

transcendentais e inexplicáveis‖ (RELPH, 2012, p. 30).

De certa maneira a população que ainda vive no campo, e mesmo aquela que mora na

cidade preserva a memória de está habitando as ―Bandeiras Verdes‖, lugar para onde vieram

seus pais e avós, no final do século XIX e primeiras décadas do século XX. Por isso, os

elementos remanescentes do catolicismo ganham adesão dessa população que os têm como

parte da cultura fundadora do lugar onde vivem.

Neste capítulo abordamos os principais eventos geográficos, como o movimento

migratório, as desterritorializações e territorializações nele envolvidas e, um repertório de

símbolos envolvidos no contexto da formação do povoado do Senhor do Bonfim e a Romaria

como expressão maior da fé da Família que a fundou.

No capítulo seguinte trataremos da força do mito das ―Bandeiras Verdes‖ nas

mobilidades e trajetórias da Família fundadora da Romaria e de outras famílias devotas do

Senhor do Bonfim, símbolo maior da adoração dos romeiros. Nele se discute o (des)interesse

da geografia pela temática da religião, a experiência do catolicismo popular no erguimento da

cidade transitória no espaço sagrado da Romaria e as dimensões simbólicas da peregrinação.

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CAPÍTULO II

PROCURAI AS “BANDEIRAS VERDES”- TRAJETÓRIAS, MOBILIDADE E

TERRITORIALIDADES DA FÉ.

Considero que a profecia das Bandeiras Verdes permite re-

significar a ocupação territorial a partir de referenciais

religiosos. Para compreendê-la no entanto, é necessário

situá-la no seu contexto, ou seja, dentro da visão de mundo

escatológica, que entendo como parte da cultura bíblica do

campesinato, da qual os romeiros são portadores.

(VIEIRA, 2001, p. 143)

A princípio falar de trajetórias parece sedutor, à medida que nos ―embrenhamos‖ pelos

caminhos, que muitas vezes, tornam-se apenas trilhas ou ―trieiros‖, o percurso revela-se uma

estrada de incertezas. Falar desse tema não é biografar, nem fazer história de vida. Ao pensar

em ir além desses dois caminhos, reconhecemos que só o trabalho de campo, por mais

rigoroso que seja, no sentido qualitativo, não recobre a multidimensionalidades da vida dos

sujeitos entrevistados da pesquisa.

Talvez seja quase impossível descrever as trajetórias dos indivíduos e grupos, porque

elas podem ser apenas as mudanças sucessivas pelas quais os sujeitos e os grupos passam em

suas mobilidades diversas no espaço. Nesse sentido, elas são formadas por um conjunto de

fatores individuais ou coletivos dentro de um grupo, ligados a todos os outros traços dos

grupos sociais que a partir daí definiriam trajetórias comuns (MONTAGNER, 2007 p.15).

Para Bourdieu (1996), as trajetórias se formam na sobreposição das marcas distintivas

das trajetórias dos grupos sociais e dos agentes à estrutura relacional dos campos do poder e

do campo intelectual. Essas marcas, que evidenciam os símbolos distintivos dos mesmos,

trazem à luz as estratégias e injunções sofridas pelos agentes por meio das linhas de força

dentro de cada campo social. Ainda em consonância com Bourdieu (2010), as trajetórias

seriam, assim, o resultado construído de um sistema dos traços pertinentes de uma biografia

individual ou de um grupo de biografias.

Para esse autor, toda trajetória social precisa ser compreendida como uma maneira

singular de percorrer o espaço social, onde se exprimem as disposições do habitus e

reconstitui a série das posições sucessivamente ocupadas por um mesmo agente ou por um

mesmo grupo de agentes em espaços sucessivos.

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Trajetórias estão relacionadas à mobilidade espacial. Ratts (2003), em estudos sobre

grupos étnicos negros e indígenas no estado do Ceará, menciona a identificação teórica de

mobilidade feita por Olga Becker (1997), entre neoclássica e neomarxista; a primeira que

privilegia trajetórias individuais e a segunda considera os grupos sociais, pois ―trata a

migração como força de trabalho‖ (RATTS, 2003, p. 44).

No presente estudo, optaremos pelos dois enfoques por entender que essas motivações

estão na origem das migrações interestaduais empreendidas pela Família ―dona do Santo‖. Tal

fato inclui as singularidades nas trajetórias de cada indivíduo dentro do grupo familiar, em

mobilidade.

A ―memória de migração‖ (RATTS, 2003, p. 45), entre os membros dessa Família -

terceira geração a viver no Povoado do Senhor do Bonfim - é muito presente em todos, e

também, nas demais famílias que compõem a população habitante do lugar. Essa memória é

percebida tanto nas respostas da Família, quanto na fala das demais pessoas, quando se

pergunta sobre a origem daquela comunidade religiosa. A primeira resposta que ouvimos

trazia a imagem do patriarca fundador, Senhor Arcanjo Francisco Almeida, e sua trajetória

espacial até se territorializar ali.

O Povoado do Senhor do Bonfim foi criado a partir de uma Romaria fundada desde

1933, pela Família ―dona do Santo‖, migrantes nordestinos, cuja trajetória espacial coincide

com o contexto histórico das migrações em direção às ―Bandeiras Verdes‖, uma terra sonhada

por milhares de fiéis devotos do Padre Cícero. Para Martins (1996), tratava-se de uma

necessidade de deslocar para imaginários mais profundamente estabelecidos, à busca de

sentido para a vida nos confins do humano, na fronteira amazônica.

Religiosidade e territorialização são os dois principais elementos das ―Bandeiras

Verdes.‖ No formato de profecia ela incentivou a migração de muitas famílias para os estados

do Pará, Mato Grosso, Maranhão e Tocantins. No imaginário e na trajetória da Família

Francisco ―dona do Santo‖ estão as ―Bandeiras Verdes.‖ Os herdeiros guardiões da Imagem

do Senhor do Bonfim, símbolo sagrado da Romaria, lembram ouvir os pais a comentarem a

fala dos avôs sobre a profecia das ―Bandeiras Verdes‖ e dizem: ―Eles eram muito devotos do

Padim Cíço, eram eles quem falava desses conseios dele há muito tempo atrás‖ (Entrevista

cedida em 26 jul. 2012. Transcrição literal).

O senhor filho do fundador da Romaria acredita que a vinda da sua família para essa

região foi motivada pelas ―Bandeiras Verdes‖ do ―Padim Ciço‖. Segundo ainda Vieira (2001),

muitos lavradores da Região Sul do Pará, do Tocantins, Maranhão e Mato Grosso, afirmam

terem vindo para a Amazônia à procura das ―Bandeiras Verdes.‖ Sendo assim, percebe-se que

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a Família ―dona do Santo‖ tenha vindo também para a região à procura das ―Bandeiras

Verdes‖.

O poeta Manelão, descendente dessa migração, assim registrou parte da motivação e

da tradição do povo que procurou as ―Bandeiras Verdes‖:

[...]

Que o Senhor da história

me dê mais inspiração

para narrar passo a passo

com sentimento e paixão

a caminhada de um povo

construindo um tempo novo

nessa grande região.

Até os anos sessenta

nossa região contava

com muitos mais nordestinos

fugidos da seca brava

que para saciar a sede

buscavam as ―Bandeiras Verdes‖

que o Pe. Cícero pregava.

[...]

Outras expressões de fé

tinha o povo sim senhor

divindade, Santo Reis

e o santo protetor

com mastros, fogos, benditos

ladainhas e outros ritos

amenizando sua dor.

(MANELÃO, 2005, p. 8)

As imagens evocadas pelo poeta é a do movimento e da utopia. Elas vislumbram

situações futuras, é como se fossem orientadas para um porvir, ―a caminhada de um povo

construindo um tempo novo nessa grande região‖. As ―Bandeiras Verdes‖ são evocadas como

o lugar dos que querem viver bem. Um território mítico em torno do qual vai se erigir um

monumental imaginário da fartura. Os versos permitem inferir que a ocupação territorial da

Amazônica (possível Bandeiras Verdes) ocorreu a partir de referenciais religiosos.

A religião popular está no cerne dessa crença que tem as ―Bandeiras Verdes‖ como um

símbolo-chave no imaginário dos camponeses migrantes. Como uma profecia, ―ele permite

aos camponeses situarem-se no espaço e no tempo a partir de referenciais mítico-religiosos,

fornecendo-lhes os parâmetros para a construção dos movimentos‖ (VIEIRA, 2001, p. 143).

O poeta se reporta ao movimento orientado pela fé em busca do símbolo redentor ―outras

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expressões de fé tinha o povo sim senhor, divindade, Santo Reis e o santo protetor com

mastros, fogos, benditos ladainhas e outros ritos amenizando sua dor‖.

A ideia de que a vida social ocorre dentro de uma rede simbólica é trabalhada por

muitos autores da geografia humanista. Apoiado nessa ideia, percebemos as ―Bandeiras

Verdes‖ como um lugar simbólico que, como símbolo e, por estar no imaginário dos

camponeses nordestinos devotos do Padre Cícero Romão Batista, mobilizou comportamentos

humanos que resultou em migrações de milhares desses camponeses para a Amazônia.

Símbolo e imaginário, segundo Freire; Reis Jr. (2013, p. 146) são termos semelhantes,

mas que se diferem essencialmente porque, ―o imaginário está relacionado à afetividade e às

emoções, além de possuir uma carga poética e atuar como transformador do real.‖ Quanto ao

símbolo, ―trata-se de algo mobilizador de comportamentos e está ligado às experiências

cotidianas‖. Os versos de Manelão e Zé Valdi evocam esse simbolismo das ―Bandeiras

Verdes‖.

Zé Valdi, poeta de Conceição do Araguaia, também retratou as ―Bandeiras Verdes‖

homenageando a trajetória dos migrantes, sendo esse autor deles descendente:

Bandeira verde

―Bandeira Verde‖ rebenta da terra,

do sangue de quem labuta, canta

e sonha num recanto da Amazônia. É

a história da gente que vivia sossegada

entre a mata e o Rio Araguaia quando

vieram mexer na terra, na mata, no Rio,

na história e nos sonhos dos camponeses

e pescadores.

―Bandeira Verde‖ é o canto da gente

pequena do Nordeste, que pensou

na terra, na água, na fartura e para cá arribou

com a música.

―Bandeira Verde‖ é o canto do Araguaia,

o alvorecer da Amazônia, a Festa do Divino,

o cheiro da flor do Piquiá, a beira da lagoa.

é Carolina, é Maria, é José, é o povo que luta

e trabalha tecendo sonhos.

―Bandeira Verde‖ é o canto do sonho

destroçado, do homem que morre, da

mata que morre, dos animais que morrem,

mas é também o canto da vida, da beleza

é a tristeza e alegria, agonia e sonho de um povo

cantada por esse arador de terra e da música – Zé Valdi –

poeta, filho da gente que pegou a cor das matas e fez Verde

sua Bandeira quando plantou raízes

às margens do Araguaia.

(VALDI, 2009)

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O poema nesse âmbito, surge como um fixador de cenas, tipos e impressões do lugar

onde o autor vive, e tem suas mais remotas lembranças. Com o avanço da modernização o

artista expressa o que vê e sente sobre as ameaças que pairam sobre seu lugar: ―É a história

da gente que vivia sossegada entre a mata e o Rio Araguaia quando vieram mexer na terra, na

mata, no Rio, na história e nos sonhos dos camponeses e pescadores.‖ Seus versos evidenciam

o conflito espacializado no lugar.

Segundo Almeida (2010, p. 11): ―A linguagem literária tem a particularidade de

comunicar aspectos da realidade ou fatos e tempos da experiência humana‖. Experiências de

desterritorialização estão evidenciadas nos versos contrastando com o registro de uma vida de

liberdade que foi se diluindo a medida que o ―progresso‖ foi se territorializando na região.

Na condição de camponeses desterritorializados, a Família ―dona do Santo‖ fez uma

trajetória de migração ao sair da Bahia, passando pelo Maranhão (município de Carolina),

pelo Pará (em um lugar chamado Boca do Bananal, as margens do Rio Araguaia), e depois

atravessou o Rio Araguaia de volta, chegando ao Estado do Tocantins, onde ali se

territorializou, constituindo o Povoado que, hoje, é chamado de Senhor do Bonfim, figura 15.

Figura 15 – Vista aérea do Povoado do Senhor do Bonfim

Fonte: Google Earth.com. Acesso em: 14 de jun. 2013.

Org.: Carvalho, J. R., 2013.

Ao caracterizar a ocupação da Amazônia Hébette (1986, p. 10) diz que a frente de

expansão na Amazônia caracterizou-se por uma ocupação horizontal ―a modo de uma mancha

Espaço de banho no Rio Piranha

Via de acesso à Romaria

TO -436

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de óleo que se expande com recursos facilmente mobilizáveis, prontos para se moverem, sem

pré-requisitos técnicos de lenta maturação‖. Para Martins (1996), a frente de expansão foi a

forma de ocupação do território brasileiro por longo período.

Essa frente era composta por uma população na sua maioria pobre, que se deslocava

em busca de terras novas para desenvolver suas atividades econômicas, ou seja, em busca da

subsistência. Entre os geógrafos, o termo frente pioneira também foi utilizado para identificar

essa mesma realidade. Segundo Martins (1996, p. 29): ―Frente de expansão e frente pioneira,

se referem a realidades sociais substantivas, modos singulares de organização da vida social,

de definição dos valores e das orientações sociais‖.

Tendo na memória ancestral a Guerra dos Balaios, como conta um entrevistado, filho

do fundador da Romaria sobre a trajetória da família em direção às ―Bandeiras Verdes‖,

alcançar um lugar às margens de um rio, e ali passar a habitar, pode ser a manifestação do

cristianismo cósmico existente nas populações rurais, identificado por Eliade (2011, p. 152),

um ―cristianismo dominado pela a nostalgia do Paraíso, invulnerável ao abrigo das subversões

produzidas pelas guerras [...]‖.

Na trajetória socioespacial da Família Francisco de Almeida, percebe-se que, por

mistério da divindade, outra vez a Imagem do Senhor do Bonfim está às margens das águas,

elemento da natureza onde Ela foi encontrada pela a Família Francisco de Almeida a primeira

vez, miticamente fechando um ciclo. Ali, às margens das águas do Rio Piranhas teve início a

territorialidade da fé e uma história de sacralidade de um lugar Santuário, para onde passou a

convergir um volume cada vez maior de romeiros todos os anos.

Ao destacarmos sobre trajetória socioespacial a entendemos, também, na concepção de

Cirqueira (2009, p. 7), para ele ―trajetória socioespacial envolve a história de vida dos

indivíduos, suas experiências dentro de uma temporalidade e uma espacialidade que não

possuem uma constituição linear ou contínua.‖

As visitas aos lugares sagrados estão associadas às práticas de peregrinação14

. O

Santuário do Senhor do Bonfim, além dos milhares de peregrinos que recebe durante seu

tempo sagrado, é também, o lugar dos primeiros peregrinos que ali chegaram em 1932, a

Família ―dona do Santo‖, que o fundou a partir de 1933 e, está físico e simbolicamente

14

A palavra Peregrinação provém do Latim per agros, literalmente «pelo campo», pois era bastante comum

cortar caminho pelos campos para evitar encontros indesejáveis com bandidos e salteadores. Peregrino

(peregrinus) era um estrangeiro em Roma, alguém que não tinha direitos de cidadania, ou aquele que viaja no

estrangeiro, que viaja pelos campos. O termo ganha uma conotação religiosa no século XII, e passa a ser usado

para denominar os cristãos que viajavam a Roma ou à Terra Santa. Hoje apalavra significa uma jornada realizada

por um devoto de uma dada religião a um lugar considerado sagrado por essa mesma religião, tendo há muito

deixado de denominar exclusivamente viagens católicas e cristãs (MENDES, 2009, p. 42).

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territorializada nesse lugar. Conforme Tuan (2011), a luta dos cristãos para estar em um lugar

e ter um lugar é parte constituinte da sua história.

Sem saber, mas ―com fé que o Senhor do Bonfim lhe mostraria uma terra onde viver

com fartura e em paz‖, a Família ―dona do Santo‖ encontrou, às margens do Rio Piranhas, o

seu destino, em meio ao campo de Cerrado; um lugar onde pode refundar sua vida e fundar

um lugar sagrado. Sua trajetória socioespacial até ali, ilustra a saga de milhares de famílias de

brasileiros expropriados da terra em busca das ―Bandeiras Verdes.‖ Trajetória de errância que,

assim como ressalta Lima (2006, p. 166), parece ―operar com moralidades e sentimentos

cujos sentidos mais profundos repousam numa recusa aos padrões da produção mercantil da

terra e do trabalho, e da ética que preside essa produção‖.

Segundo os moradores mais velhos no Povoado do Bonfim, quando a primeira família

chegou ao local, as terras não eram de propriedade de ninguém; só mais tarde, já na década de

1970, o senhor Miltão, que se tornou dono de grandes fazendas na região, teria feito a doação

das terras a eles. Nos arquivos da prefeitura de Araguacema não há registro informando se o

povoado é um distrito da sede municipal. Essa indefinição da posse fundiária possibilitou a

gestão 2008 - 2012 a lotear e tentar vender parte do terreno onde a comunidade habita desde a

década de 1930, conforme já mostramos no primeiro capítulo desse trabalho.

No Senhor do Bonfim, como já foi dito, a hierofania está associada e identificada na

Imagem do Santo. Uma imagem de Jesus Cristo crucificado, esculpida em madeira, sem os

braços e sem as pernas, de aproximadamente 12 centímetros de tamanho, conforme figura 16.

Ele é a Imagem objeto de culto e, ―de algum modo, o Santo se identifica com sua Imagem‖.

Cada grupo envolvido tem sua percepção e definição dos símbolos e lugares sagrados. O

Povoado, por abrigar a Imagem do Santo é o geossímbolo da Romaria.

Figura 16 - Imagem do Santo objeto de culto na Romaria do Senhor do Bonfim

Fonte: CARVALHO, J. R., 2012.

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A relação dos romeiros com a Imagem do Jesus Senhor do Bonfim no tempo e no

espaço sagrado da Romaria evidencia a importância do sobrenatural e do simbólico nas suas

vidas. Essa relação, conjugada com suas trajetórias socioespaciais de privações e dificuldades

os leva às práticas e ações fundadoras e transformadoras de territorialidades e identidades na

Romaria. A Imagem do Santo é um símbolo ―encarnado no lugar‖. Os símbolos ganham

maior força e realce quando se encarnam no lugar.

O símbolo por sua força forma um espaço cultural, um geossímbolo, carregado de

afetividade e significações que, para Bonnemaison (2012), torna-se o território-santuário, isto

é, um espaço de comunhão com um conjunto de signos e de valores. Ao entender, assim que,

―a territorialidade do sagrado refere-se a um mundo de experiências dos sujeitos, cuja

autoridade é atribuída ao transcendente‖ e que, a identidade é formada a partir de atributos

culturais religiosos e ―é reconhecida pela representação de práticas ritualísticas específicas,

expressões vindas de um sistema de crenças vivenciadas no cotidiano‖ (GIL FILHO, 2008, p.

94; 112). A ideia de território, nesse sentido, fica então garantida pela apropriação cultural

simbólica (BONNEMAISON, 2012, p. 293).

Conforme Rosendahl (2010), o elo entre geografia e religião fornece material rico à

reflexão. Essa riqueza até pouco tempo não suscitava interesse por parte dos pesquisadores na

geografia. O próximo item aborda parte dessa miopia dos geógrafos e sua superação.

2.1 Compreensão do (des) interesse da geografia pelos estudos da religião

Fickeler (2008) percebe dois aspectos fundamentais nas religiões: um interno e outro

externo. O primeiro trata da ética, da conduta pessoal do religioso, o outro tem relação com o

cerimonial, as manifestações das religiões para fora. Esse cerimonial é objeto de estudo da

geografia diz ele. Figuras e símbolos religiosos, coisas religiosas (objetos e práticas), lugares

e cerimoniais, regras cerimoniais (mandamentos e proibições) e muito mais, fazem parte do

cerimonial religioso para esse autor. Por outro lado ele destaca:

Religião e geografia parecem, em principio, ter pouquíssimos pontos de

contato, o que também é reforçado pela forte concepção de que o ―Reino de

Deus está no meio de vós‖ (Lucas 17: 21). Mas já que todas as religiões

criaram, no curso de seu desenvolvimento, um cultus mais ou menos

manifesto, sendo espacial e temporalmente perceptível através de eventos

mágicos ou simbólicos, de objetos e comportamento,, os fenômenos

religiosos aparecem em relação real com a superfície terrestre, podendo ser,

portanto, estudados geograficamente (FICKELER, 2008, p. 7).

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Mesmo ciente dessa possibilidade o campo da Geografia negligenciou por muito

tempo a possibilidade de tornar a religião como fato socioespacial claramente inteligível, em

específico a geografia brasileira. Num paralelo com a Sociologia, a História e a Antropologia,

buscamos a opinião de Rosendahl (1996, p. 5), que afirma, ―a temática da religião tem sido

objeto de um pequeno interesse por parte dos geógrafos brasileiros‖. Tal fato se constituiu, de

acordo com a autora, em função da hegemonia do positivismo entre os pesquisadores

brasileiros.

Esse desinteresse ocorre mesmo a Geografia da Religião, estando bastante consolidada

nos contextos, europeu e norte americano, conforme assinala Pereira (2013), ao fazer um

panorama geral da geografia da religião. Esse autor lembra que

A Geografia da Religião apesar de ser posta em evidência no cenário acadêmico

apenas nos últimos anos, não é uma área nova nos estudos sobre religião. Suas

primeiras formulações nos remetem às diversas cosmologias e protociências

expostas pelos antigos pensadores gregos; porém, como a história nos revela seu

período formativo – e provavelmente o mais fértil – se deu no medievo através de

várias obras teológicas. Mas sem dúvida, é na modernidade, principalmente no

século XX, que este campo de pesquisa geográfica se consolida – ou ao menos

começa a deixar transparecer uma maior coerência acadêmico-científica, por vezes

temática, teórica ou metodológica (PEREIRA, 2013, p. 11).

Só muito recentemente os pesquisadores brasileiros em geografia perceberam mais a

importância da religião como agente modelador do espaço e como dimensão de análise da

vida humana e suas espacialidades. De acordo com Pereira (2013), o Brasil já percorreu um

considerável trajeto no campo da Geografia da Religião e apresenta basicamente dois vieses:

―um que aborda o fenômeno religioso partindo, sobretudo das dimensões objetivas; e outro

que procura partir das estruturas estruturantes do fenômeno, nesse sentido aborda dimensões

mais subjetivas‖ (PEREIRA, 2013, p. 111).

O primeiro viés busca apreender as manifestações espaciais do fenômeno religioso a

partir das formas religiosas já impressas na paisagem, esse viés, conforme Pereira (2013)

enfoca principalmente as estruturas espaciais da religião. Nele, o indivíduo, o fiel, ocupa um

papel circunscrito dentro das estruturas – seja do sagrado ou institucional – por meio de uma

participação passiva na trama do fenômeno religioso.

Esse viés é adotado no Brasil por Rosendahl dentre outros (as). O outro, mas atento ao

subjetivo, busca compreender as manifestações religiosas partindo das dimensões que

estruturam a religião. Essa concepção vai além da empiricidade do fenômeno religioso. Na

opinião de Gil Filho (2008), faz-se necessária uma cognição especial para se analisar o

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fenômeno religioso. Suas nuanças e características mais sutis demandam uma sensibilidade do

pesquisador para serem captadas.

Para Lopes (2010), a Antropologia foi pioneira em estudar a religião, a princípio junto

aos povos ditos primitivos e, mais recentemente nas sociedades ditas complexas. As

dimensões simbólicas, semiótica e cognitiva formam o campo de estudo dessa ciência. Junto

com elas se formou a Sociologia, que analisa o fenômeno religioso na vida de relações nas

estruturas sociais como a política, a economia e a cultura.

Vale registrar a importância da contribuição de Eliade na história, ao contribuir com

consolidação da religião como objeto de estudo das ciências humanas. Os estudos feitos por

essas ciências têm cada vez mais um caráter interdisciplinar e incluem a Geografia. Na

opinião de Lopes (2010, p. 34-35), essa ―postura trouxe mais prestigio a geografia da religião,

contribuindo para seu revigoramento a partir da década 1970‖.

Rosendahl (1996) reconhece o pouco interesse dos geógrafos pela religião e, a falta na

geografia da religião de um ―denominador comum que a conduza a uma identidade plena‖

como tal. Sobre a recontextualização da geografia da religião a partir da interdisciplinaridade

Lopes (2010) ressalta que,

Reconhecendo a insuficiência de seus princípios matérias frente à complexidade da

religião e da maneira pelas quais as demais ciências estudavam o fenômeno

religioso, cada vez mais alicerçados em imaterialidades como: ideologia, sistemas de

representações e valores – elementos nos quais o positivismo não conseguia abarcar

– em meados dos anos de 1970 surgem trabalhos nos quais elementos materiais e

não-materiais começam realmente a ser abordados. Foi devido à mudança de

paradigma e a maior interdisciplinaridade entre as disciplinas sociais, a geografia da

religião recebe reconhecimento, pois os estudos que englobam a compreensão do

mundo e as relações de grupos e indivíduos com a natureza, a sociedade, entre si,

configurando comportamentos geográficos e vivências em termos de sentimentos,

ideias, ideologias e símbolos, passam a ter arcabouços epistemológicos abordados,

como também encontram similitudes nas demais disciplinas (LOPES, 2010, p. 33-

34).

Para Rosendahl (1996), o fato de a Geografia humanista passar a considerar o

imaginário humano como um dos meios de percebê-lo, foi um dos motivos que possibilitou a

reflexão religiosa na geografia após 1970. Nessa perspectiva, os geógrafos da religião buscam

desvendar o significado das sensações vividas pelo ser humano e os grupos sociais. Na mesma

trilha vão ao encontro do sentido que a religião confere razão humana e aos efeitos das

práticas religiosas na configuração dos espaços geográficos.

Hatzfeld (1993) fala da religião no sentido de tradição humana. Para tanto ele busca o

sentido etimológico da palavra religião e encontra dois sentidos: um já é de domínio comum,

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o re-ligare, unir/religar o homem e seu Deus. O outro, mais complexo, re-legere significa

retornar ao já visto, retomar os elementos e sinais disponíveis com vista a uma nova reflexão.

Essas duas visões servirão de base para desvendar os significados das vivências,

práticas e sensações espacializadas na Romaria do Senhor do Bonfim. Há de se considerar

também nesse âmbito, a contribuição da Geografia na busca por apreender a relação dos seres

humanos com a divindade, ao extrapolar além do discurso, ao cartografar as ações e os locais

sacralizados.

A vontade de se unir a seu Deus por intermédio do Santo é muito evidente nas práticas

religiosas vividas pelos romeiros no espaço sagrado da Romaria do Senhor do Bonfim. Nas

entrevistas realizadas durante a Romaria, perguntamos para vinte e dois romeiros, por que e

qual o sentido deles se dirigirem ao altar quando terminava o Terço e, a maioria (dezoito

entrevistados) respondeu que, ―iam ao altar agradecer ao Santo e fazer pedidos de proteção e

benção para si e para a família e que sempre fazem isso‖, eles revelaram sentir a necessidade

de ir agradecer. Os outros quatro responderam não saber responder.

A procura por segurança na vida, coisa que o mundo já não parece mais oferecer a

esses romeiros, ou nunca os ofereceu, se revela na fala dessa romeira da cidade de Cana Brava

– Mato Grosso. Ela nos diz,

eu vim pagar uma promessa que fiz para meus netos que estavam doentes. Com

muita dificuldade de dinheiro mais consegui vir. Quando estou no Senhor do

Bonfim meu coração fica mais alegre, por isso me considero uma romeira. O Santo

significa para pra mim esperança mais saúde, e tudo de bom para minha família

(Entrevista cedida em 10 de julho de 2012).

São muitos os romeiros e romeiras que relataram vir há cinco, dez, vinte ou até mais

anos à Romaria. Estes parecem vir rever os sinais, elementos e rituais sagrados para renovar

sua fé, fazer novamente uma reflexão. Como ―aqueles crentes que encontram na leitura

assídua dos livros sagrados uma felicidade dificilmente imaginável por outros: porque num

mundo quase indecifrável, existe um lugar de claridade‖ (HATZFELD, 1993, p. 40).

Tal fato demonstra um grau de hesitação no fiel. Ele confia, mas sabe que precisa

alimentar sua confiança, sua fé. Por isso ele retorna a cada ano sucessivamente. Ainda

segundo Hatzfeld (1993, p. 41), ―a religião é uma atividade simbólica, é um trabalho dos

homens sobre sinais, símbolos, fórmulas ou textos. Re-legere indica-nos que os elementos

simbólicos utilizados são sempre retomados‖.

Bourdieu (2010) tem uma visão crítica sobre a relação humana com o sagrado, para

esse pesquisador a religião é uma ideologia vinda da transformação do mito. Ela foi criada por

um corpo de especialistas em discursos e ritos religiosos, no processo de divisão do trabalho

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religioso, em que os leigos são despossuídos do direito dos instrumentos de produção

simbólica, fruto da divisão do trabalho social, da divisão de classes.

Durkheim (1989), não vê a religião nesse aspecto ideológico. Para ele a religião é um

sistema de práticas dentro de uma crença, e as manifestações de fé por meio dos ritos dentro

dela são as formas do devoto ‗descansar o espírito‘, cansado das agruras da vida cotidiana.

Ainda para autor em tela ―esses cultos individuais constituem, não sistemas religiosos

distintos e autônomos, mas simples aspectos da religião comum a toda igreja da qual os

indivíduos fazem parte‖ (DURKHEIM, 1996, p. 30).

Os depoimentos das pessoas entrevistadas durante a Romaria apontam para esse

descanso, ao serem perguntadas sobre como se sentiam ali, na Romaria, quase todas disseram

sentir uma paz, uma alegria, ―uma coisa boa.‖ De Barrolândia, TO, por exemplo,

conversamos com uma senhora romeira há doze anos e ela declarou:

sinto uma alegria e um descanso enorme ao está aqui. A gente é tão abençoado que

tudo que gasta para vir e ficar aqui não faz falta. Ele, o Santo, nos dá mais todo ano,

isso é que é bom (Entrevista cedida durante a Romaria, dia 12 de agosto 2013).

Ela considera as bênçãos, o gesto religioso mais sagrado, a força maior da Romaria. É

a manifestação do território cultural que de acordo com Haesbaert (2011), consiste em uma

apropriação e valorização simbólica de determinada porção do espaço que, nesse caso, é

mítico. É notável, também, na Romaria a dimensão política do território – aquela em que as

relações espaço e poder estão espacializadas.

Para Bonnemaison (2012, p. 289), ―o território é, ao mesmo tempo, ‗espaço social‘ e

‗espaço cultural‘: ele está associado tanto à função social quanto à simbólica‖. Para este autor,

uma análise geocultural não pode descuidar desses dois aspectos complementares. A religião

como uma dimensão da cultura não pode está desvinculada da ideia de território.

Os territórios religiosos são entendidos segundo Rosendahl (2008), como ―reflexo do

espaço vivido no cotidiano da fé‖. Eles fortalecem as relações e as práticas entre homens e

mulheres religiosos e, entre estes e o lugar, ao possibilitar, assim, a construção da identidade

religiosa. ―As construções identitárias são formadas e reformuladas ou reconstruídas sobre os

territórios‖ (ROSENDAHL, 2008, p. 57).

A Romaria do Senhor do Bonfim está localizada na fronteira amazônica,

especificamente em uma região de conflitos sociais, essencialmente em relação à disputa pela

terra. De acordo com Martins,

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nesse conflito, a fronteira é essencialmente o lugar da alteridade. É isso o que faz

dela uma realidade singular. À primeira vista é o lugar do encontro dos que por

diferentes razões são diferentes entre si, como os índios de um lado e ―os

civilizados‖ de outro; como os grandes proprietários de terra, de um lado, e os

camponeses pobres, de outro. Mas, o conflito faz com que a fronteira seja

essencialmente, a um só tempo, um lugar de descoberta do outro e de desencontro.

Não só o desencontro e o conflito decorrentes das diferentes concepções de vida e

visões de mundo de cada um desses grupos humanos (MARTINS, 1996, p. 27).

O espaço social da romaria expressa essa diferença, mas, ao mesmo tempo em que é

heterogêneo exerce influência homogeneizante no sentido de que todos que nele convivem e

se relacionam são iguais diante da divindade do Santo padroeiro, o Senhor do Bonfim. Os que

ali estão, trazem suas necessidades e reivindicações espirituais específicas das suas

individualidades e, ao se colocarem no meio da multidão de fiéis sob a transcendência da fé,

tornam-se uma massa de romeiros que assim são percebidos e tratados pelas autoridades

eclesiais, tanto por parte a Igreja Católica quanto por parte da Família ―dona do Santo‖.

A Romaria torna-se o lugar de encontro de milhares homens e mulheres

trabalhadores/as do campo e das cidades da região, mas também recebe visitas cada vez mais

expressivas das classes patronais, o que significa inferir que as festas do catolicismo popular

não estão estritamente relacionadas às pessoas de baixa renda ou camponeses expropriados.

Di Méo (2012, p. 27), ao falar dos atributos das festas lembra que um deles é ―seu valor de

troca socioeconômica tanto no aspecto do endogrupo territorializado quanto à abordagem de

alteridade (grupos provenientes de outros territórios)‖.

Os territórios religiosos são diversos, segundo Terra (2010, p.94-95), ―eles são

múltiplos e plurais. A vivência entre esses territórios múltiplos sempre foi estudada na

abordagem política‖. Essa vivência nem sempre é harmoniosa, pode ocorrer conforme destaca

Terra (2010, p. 95), três níveis de comportamentos para a implantação de territórios

religiosos: ―coexistência pacífica; instabilidade e competição e, intolerância e exclusão‖.

No espaço do Povoado do Senhor do Bonfim há a hegemonia do Catolicismo, pois não

há presença de Igreja de outra orientação religiosa na comunidade. Isso, porém, não significa

dizer que não existam entre os moradores do lugar, pessoas que são adeptas de outras igrejas,

o que queremos dizer é que a forte presença da fé católica no Povoado pode estar inibindo a

territorialização de outro segmento religioso.

Entre os entrevistados da pesquisa encontramos pessoas de orientação religiosa

protestante (um fotógrafo e um vendedor ambulante) que, demonstraram conviverem de

forma tolerante e pacífica com as outras religiões, principalmente com os fiéis da Romaria,

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até porque esses informantes justificaram estarem ali em função do trabalho e não por uma

questão religiosa, como afirmou esse romeiro:

Eu venho todo ano porque trabalho com movimento de gente, onde tem gente eu

vou, mas a religião é outra coisa, eu tenho minha fé em outra religião, cada um

segue a sua né? Eu não discrimino quem tem outra religião diferente da minha, Deus

saber quem faz certo e eu acho que tô certo né? (Entrevista cedia em 15/08/2013,

transcrição literal).

Entre os visitantes não foi percebido competição em afirmação da fé, no entanto,

quando se percebe que não há igrejas de outra designação, constata-se a hegemonia do

Catolicismo no lugar, esse informante sente isso e, talvez, perceba que transita em um

território que não lhe é hostil, mas não é ―o seu‖. Esse entrevistado mesmo presente na

Romaria, não se identifica culturalmente com cultura hegemônica no espaço sagrado do

Catolicismo, não há o sentimento de pertencimento.

É por meio do território que o fiel constrói o sentimento de pertencimento ao grupo

religioso. ―O território é, de inicio, um espaço cultural de identificação ou de pertencimento, e

a sua apropriação só acontece em um segundo momento‖ (MEDEIROS, 2009, p. 217).

Haesbaert (2011, p. 40) sintetiza a diversidade de concepções da categoria território na

Geografia em três: território político, território econômico e território cultural, nessa última

concepção ―o território é visto, sobretudo, como produto da valorização/apropriação

simbólica de um grupo em relação ao seu espaço vivido‖. Para Rosendahl (2010), o território

religioso responde a três funções principais, uma de ordem religiosa, outra de ordem política

e, outra de ordem econômica.

Trabalhamos com a perspectiva de que esses três aspectos do território estão presentes

e são combinadas no espaço da Romaria do Senhor do Bonfim. O território político pode ser

percebido na dimensão do sagrado expresso nas estratégias e ações da Família ―dona do

Santo‖ e da Igreja Católica em disputar os fiéis para suas liturgias e na normatização do

espaço geográfico do lugar.

Quanto ao território econômico ele é visível principalmente, nos bens simbólicos

como artigos sagrados e bens não simbólicos como roupa, calçado, eletrônico, decorativo,

alimentação e bebidas, e suas espacializações no espaço da Romaria. Agentes comerciais

ligados à Igreja Católica ou não, desenvolvem diferentes maneiras de estabelecer relações de

poder nos espaços públicos e também privados do Povoado, instalando suas barracas de

produtos, ao estabelecer, assim, relações de poder no espaço, por meio das territorialidades

comerciais durante o tempo de duração da Romaria. Percebe-se que essas territorialidades

comerciais atendem uma demanda dos romeiros.

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O exercício da fé é uma mediação simbólica do território sagrado. Neste acontecem as

ações que dão existência, legitimam e reproduzem a fé que em outras palavras seria a

territorialidade religiosa. ―A territorialidade religiosa na abordagem da Geografia cultural

significa o conjunto de práticas desenvolvidas por instituições ou grupos religiosos no sentido

de controlar pessoas e objetos num dado território religioso‖ (ROSENDAHL, 2005; 2008, p.

57).

Essas características são percebidas nas relações socioespaciais da Romaria do Senhor

do Bonfim, principalmente na atuação da Família Francisco de Almeida e da Igreja Católica,

organizadores do Festejo.

Conforme apresentaremos no item seguinte, as mobilidades e territorialidades são

expressas, por exemplo, quando percebemos o rearranjo espacial do ―brotar‖ da cidade que

abriga a Romaria pelos seus nove dias de festa.

2.2 Mobilidade e territorialidades no catolicismo popular: o “brotar” da cidade

transitória e o rearranjo do espaço sagrado

A experiência popular com o sagrado dentro do Catolicismo foi nomeada por muitos

estudiosos da religião como catolicismo popular ou catolicismo ―rústico‖. Mesmo sabendo

que ambos os conceitos são extremamente amplos e designarem as mais variadas

manifestações religiosas, optamos trabalhar com o primeiro, sem deixar de qualificar o

catolicismo rústico.

Renato da Silva Queiroz (2012, p. 202), ao tratar do que ele chama de surtos

messiânico-milenaristas no Brasil define catolicismo ―rústico‖ como sendo a ―versão

sertaneja da Grande Tradição Judaico-Cristã, que se firmou no Brasil como religião

praticamente exclusiva da população livre e pobre que se foi avolumando nos sertões desde o

período colonial‖.

Quanto ao catolicismo popular aqui apresentado, trata-se daquele que de acordo com

Rosendahl (2009, p. 35-36) é sustentado nas ―práticas de rezas, promessas e romarias que

tomam a forma simbólico-religiosa, centralizada nos santos canonizados ou não pela Igreja‖.

Manifestação religiosa popular que segundo Vieira (2001) seria um sistema de crenças e

práticas fortemente embasado numa tradição católica portuguesa de origem medieval, que se

desenvolveu principalmente no meio rural brasileiro, sendo apropriado e reinterpretado pela

cultura popular, vivido como sistema leigo, que se baseia no culto devocional dos santos, nas

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festas e romarias, com certa autonomia em relação à hierarquia da Igreja Católica. Na opinião

de Azevedo trata-se, também, de uma religiosidade que,

(...) relaciona-se mais com a estrutura da comunidade local do que com a

sociedade nacional e é relativamente independente da Igreja formal.

Também é certo que, muitas vezes, o culto do santo da devoção do indivíduo

é mais importante do que o do padroeiro da comunidade (AZEVEDO, 1966,

p.184).

Na Romaria do Senhor do Bonfim ocorre por parte dos romeiros essa maior

valorização do Santo em relação à Santa padroeira da paróquia, Nossa Senhora da Divina

Providência, mesmo a Paróquia sendo quase cem anos mais velha que a Romaria. Mesmo os

frades nas celebrações das missas campais, celebradas duas vezes por dia durante o festejo

fazerem questão de mencionar o nome da Santa padroeira várias vezes, não se percebe

nenhuma referência à santa entre os romeiros. As relações dos fiéis com o Santo Senhor do

Bonfim durante todo tempo sagrado da Romaria é intensa e não se houve falar em outra

divindade.

Essa conduta religiosa demonstra o caráter da relação direta e de natureza privada dos

devotos com o Santo. Maldonado (1986) pontua a religiosidade popular como uma busca pelo

divino, pautada em relações mais simples, mais diretas e mais rentáveis que as formas

oficiais.

A religiosidade popular recusaria a práxis religiosa institucional porque ela seria uma

forma abstrata e cerebral de busca do transcendente, ao passo que as práticas populares seriam

mais simples, intuitivas, imaginativas e livres. Também, elas representariam uma forma mais

direta de contato com o divino, sem mediações clericais, que parecem avessas ao povo. Por

fim, seriam formas mais rentáveis de relacionamento com o divino, quando da satisfação de

desejos imediatos (cura de males, por exemplo); já que a religião oficial privilegiaria os

prazeres vindouros da eternidade.

Queiroz (1971), que também estudou o catolicismo popular no Brasil diz que se faz

necessário abandonar a ideia de que o catolicismo popular é praticado só por pessoas mais

pobres, das classes subalternas. Em sua opinião o católico popular não se refere restritamente

às classes subalternas, ―mas assume o sentido de povo em geral, qualquer pessoa que

consideraria a religião algo meramente terapêutico ou veria nela apenas o conjunto de crenças

transmitidas livremente pela tradição, numa estrutura de apoio ao status quo” (QUEIROZ,

1971, p. 160).

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Na Romaria do Senhor do Bonfim, a característica devocional mais evidente nas

práticas religiosas dos fiéis é a relação direta com o santo. Andrade assim descreve as

características dessa relação,

As práticas religiosas se restringiriam às relações diretas entre eu e o santo de minha

devoção, ou eu e Deus. Um catolicismo devocional marcado por novenas e

promessas. O santo comportaria uma noção abrangente, pois seriam tanto os santos

canonizados como também todos os mortos que alçaram a essa categoria devido à

sua vida (ANDRADE, 2006, p. 3).

A experiência religiosa popular nos santuários acontece muitas vezes sem a

intervenção de especialistas eclesiásticos. Rosendahl (2009), ao destacar sobre cultos

populares nos espaços sagrados dos santuários aponta que neles os santos assumem

importância maior que o ciclo litúrgico oficial.

Suss (1978) percebe uma estreita relação entre o catolicismo popular e o catolicismo

oficial a ponto de afirmar que há uma legitimação do segundo pelo primeiro, assim ele diz,

Apesar de certo desenvolvimento próprio cultural-cronológico do catolicismo oficial

e do catolicismo popular, há certa identidade entre ambos. Funda-se na

sacramentalidade, no culto aos santos, em dogmas básicos e na simbiose entre

pretensões não questionadas de liderança e subordinação. Por isso, não se pode

entender o catolicismo popular, se não se vê a sua relação dialética como o

catolicismo oficial (SUSS, 1978, p. 26-27).

O pensamento de Suss se aproxima das narrativas que não dicotomizam a cultura em

popular e erudita. Na opinião de Cartier (1990) há entre as culturas um processo de

imbricamento de formas culturais diversas, já que elas não são fechadas em si mesmas. Em

outras palavras, o que há são os cruzamentos das diversas manifestações culturais entre as

quais estariam, convencionalmente, as formas ―erudita‖ e ―popular‖.

A história da religiosidade brasileira a partir da colonização portuguesa demonstra de

certa forma o gênese da relação entre catolicismo popular e catolicismo oficial. As

manifestações religiosas católicas espacializadas por todas as regiões do Brasil expressam

tradições elaboradas e reelaboradas com elementos populares e das elites europeias.

As peregrinações populares são tradições da religiosidade ibérica trazidas para o Brasil

desde o século XVI a serviço do projeto colonial português que tinha o catolicismo como

religião oficial. No entanto, sua existência consiste na crença que o religioso se cria no

sagrado, e este o determina como revelação, uma hierofania.

Para Riviére (2008, p. 37), ―uma hierofania não é a manifestação do sagrado em si,

mas o fato de que um ser (pessoa, objeto, etc.) recria simbolicamente um significado, uma

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consciência ontológica‖. Um dos rituais percebidos no tempo e no espaço sagrado da Romaria

do Senhor do Bonfim é a peregrinação.

Durante todo tempo sagrado da Romaria (6 a 15) de agosto de cada ano, milhares de

fiéis de várias cidades do Tocantins, Pará, Mato Grosso, Maranhão, Piauí e Goiás expõem-se

ao sobrenatural, numa experiência de enriquecimento espiritual, ao propiciar o contato do

físico com o símbolo sagrado, centralizado no Santuário Senhor do Bonfim.

A dubiedade que se atribui ao catolicismo português trazido para o Brasil, segundo

Rosendahl (2006) provocou divergência entre o interesse de expressar espontaneamente da

população e a forma eclesial rígida da Igreja Católica. As romarias, nesse sentido, seriam

formas de reivindicação por liberdade vindas do povo. Para Suss (1978, p. 35), ―no

catolicismo popular, não só se pode constatar falta de poder, mas há nele, também, o protesto

articulado de ‗debaixo‘, o não conformismo ético, dogmático e organizativo‖.

Santos, ao propor uma Geografia da peregrinação a respeito dos sujeitos religiosos da

peregrinação comenta:

O peregrino é a figura que melhor parece cristalizar a mobilidade de uma

modernidade religiosa que se constrói a partir das experiências pessoais, assumindo

a peregrinação o caráter de fato social total e de múltiplas dimensões religiosas, mas

também política, sociais, culturais e econômicas, sendo uma forma de sociabilidade

religiosa em plena expansão que se estabelece a si mesma sob o signo da mobilidade

e da associação temporária (SANTOS, 2010, p. 150).

O ser que empreende a peregrinação leva consigo, além da expectativa no sagrado,

outras dimensões da sua cultura, e, no encontro com o outro, ele reelabora e reconstrói sua

identidade e a forma de se relacionar com o sagrado. Durante o período de campo da pesquisa

na Romaria no Senhor do Bonfim foi possível perceber trocas de experiências religiosas entre

muitos fieis que incorporaram aquelas novas formas devocionais ao seu repertório de

manifestação de fé perante a imagem do Santo. Para os romeiros, essas trocas só foram

possíveis graças ao lugar sagrado para onde eles peregrinam em busca de algo.

Riviére (2008, p. 37), ao analisar a representação do espaço por meio da peregrinação

lembra que ―não haveria peregrinação sem a crença na manifestação do sagrado, num espaço

determinado, o lugar sendo sacralizado pelo suposto investimento de uma divindade e

concebido como centro gerador de benefícios‖.

A mobilidade expressa na peregrinação é motivada pela crença no desabrochar da fé e

a inserção no tempo e no espaço sagrados. Nesse caso a mobilidade peregrina é uma

mobilidade ritualística carregada de significados simbólicos, topológicos e cosmológicos, ―um

fator estruturador da vida coletiva‖. (RIVIÉRE, 2008, p. 39). A peregrinação torna-se, assim,

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um exemplo de prática devocional que observamos conjugada com outras durante o trabalho

de campo nos dias de festejo na Romaria.

Chegamos ao Povoado na tarde do dia 5 de agosto de 2012 e, apenas os moradores

locais e mais seis veículos de fora estavam no lugar da Romaria. Durante os dias 6 e 7 o

movimento de peregrinos era relativamente pequeno. Os moradores locais nos diziam que a

partir do dia 8 iríamos ver a multidão ir chegando. De fato, no dia oito de agosto percebemos

que o espaço da Romaria estava sendo apropriado rapidamente, principalmente por romeiros

comerciantes.

Os coordenadores da Romaria – a Família ―dona do Santo‖ - e a Igreja Católica,

também já começavam a ocupar o espaço simbólico junto com os romeiros. Em conversa com

esses alguns fieis comerciantes que chegavam, constatamos que todos se consideravam

peregrinos e estavam sempre a agradecer ao Santo e pedindo boas vendas em seus negócios,

demonstrando que estavam englobados na atmosfera de fé e devoção que o espaço sagrado

proporciona.

Todos, ali, rezam e comerciam, louvam, vendem e compram, sendo que todas essas

práticas são também ao mesmo tempo simbólicas... Além do que o exercício do comércio não

é desprovido dessa dimensão; o interesse econômico é da ordem espacial e cultural.

Percebe-se muita interação entre os comerciantes e, entre eles e o espaço. Ninguém

demonstra cansaço, são solidários uns com os outros, o reencontro é sempre cheio de muita

alegria e algumas ―piadas‖ que demonstram sólida relação de amizade construída ao longo

dos anos no espaço da Romaria. O mínimo de tempo de Romaria que encontramos entre os

comerciantes romeiros até aquele momento era de cinco anos.

Nesse reencontro temos rituais sagrados e não sagrados. Os sagrados acontecem mais

próximos ou dentro da Igreja como o sinal da cruz, ou tirar o chapéu da cabeça, e fora desse

espaço ocorre rituais de trabalho; homens, mulheres e crianças se entregam ao trabalho de

organizar seus estabelecimentos comerciais ou de acampamento durante o festejo, seja ele de

papelão, lata, palha de babaçu, lona preta ou encerada mais colorida, ou seja, uma tenda mais

sofisticada, o ritual é de total entrega e devoção. Varrem o chão, cavam buracos, chegam

carros carregados com palhas, madeiras verdes, e carros com freezer, cadeiras e mesas

plásticas, colchões, panelas, botijão de gás, garrafão d‘água e muita mercadoria popular, em

grande diversidade.

Outra cidade surge na Praça do Povoado que é rodeada de mangueiras. Das relações e

ações entre os romeiros (comerciantes e não comerciantes), visando (re) organizar o espaço

surgem novos espaços. Erguem-se casas provisórias, barracas, latadas, fios, poste e padrões

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para instalação de energia, e ligam aparelhos de som, sempre em volumes altos com músicas

de gosto populares. Logo se lê em várias fachadas improvisadas, anúncios de todo tipo de

produtos, principalmente alimentício e bebidas.

Os moradores do Povoado do Bonfim têm uma relação clientelista com os Romeiros,

pois alugam suas casas (interior, frente e quintal), para servir de acampamento-dormitório aos

Romeiros. No último trabalho de campo realizado durante a Romaria em 2013, procuramos

obter, junto aos moradores e à Prefeitura de Araguacema, dados sobre a renda dos moradores

com o aluguel das suas residências para acampamento dos romeiros, mas não os obtivemos.

Os moradores evitavam falar sobre o assunto por questão de segurança, e a Prefeitura nos

informou não possuir nenhuma forma de registro da movimentação financeira do comércio

realizado ali durante a Romaria. Fato similar ocorre nas romarias de Trindade e Muquém, no

Estado de Goiás.

A presença do estado no Povoado pode ser notada em algumas estruturas como:

banheiro público, recém-inaugurado, um posto de saúde, duas viaturas da policia militar, uma

caminhonete com seis soldados da Brigada de Incêndio, e o carro de plantão da Companhia

Elétrica Rede, que dá assistência aos moradores e comerciantes. Eles trabalhavam desde o dia

anterior (07/08/2012), para reestabelecer o abastecimento de energia elétrica que foi

interrompido às 20hs, logo após o término da reza do Terço. A energia só foi reestabelecida

dia (08/08/2012), por volta das 14 h. Pequenos apagões ocorreram vez por outra durante o dia

e a noite, as pessoas diziam que era normal.

Há, também, uma dupla de fiscais da prefeitura que cobra de forma pouco

transparente, taxas de pedágio de cada comerciante. Segundo os comerciantes não há um

critério claro para estabelecer o valor da taxa, são os fiscais que estipulam o valor, que varia

de R$ 40,00 a 120,00 reais. Os comerciantes reclamam ainda da pouca assistência da

prefeitura à Romaria. Quando estivemos na prefeitura de Araguacema, sede do município, dia

9 de agosto de 2012, pela manhã, em busca de dados oficiais sobre a movimentação financeira

e de romeiros no Senhor do Bonfim, fomos informados que a prefeitura não dispõe desses

dados, já que nunca fez um trabalho sistematizado de arrecadação nem um censo dos

visitantes. As figuras 17, 18, 19, 20, 21 e 22 a seguir mostram parte da realidade descrita.

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Figura 17 – Romeiros/as erguendo a cidade provisória Figura 18- Chegada de romeiros/as

Fonte: Carvalho, J. R., 2012. Fonte: Carvalho, J. R., 2012.

Figura 19 – Fluxo de romeiros na Romaria Figura 20 – Comércio de artigos sagrados

Fonte: Carvalho, J. R., 2012. Fonte: Carvalho, J. R., 2012.

Figura 21 – Vista aérea da cidade provisória Figura 22 – Comércio de alimentos e diversos

Fonte: Carvalho, J. R., 2012. Fonte: Carvalho, J. R., 2012.

Outra espacialidade se configura no Povoado do Senhor do Bonfim durante o tempo

sagrado da Romaria. Ações motivadas pela fé engendram uma dinâmica edificante no espaço

fazendo surgir, em pouco tempo, uma cidade transitória com uma paisagem marcada por bens

simbólicos, expressos no sagrado, e bens não simbólicos.

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Rosendahl (2010) reconhece que nos espaços religiosos do catolicismo popular

existem bens simbólicos e bens não-simbólicos. Esses bens e seus fluxos constituem parte do

espaço sagrado das romarias. A distinção entre um e outro, segundo a pesquisadora, está na

própria natureza do seu significado.

A natureza do bem simbólico reflete duas realidades: a mercadoria e o significado,

isto é, o valor cultural e o valor mercantil do bem. Poderíamos dizer que os bens

simbólicos são mercadorias que tem valor de uso e que, em determinado contexto

cultural passam a ter associado o valor simbólico (ROSENDAHL, 2010, p. 189).

No contexto da Romaria essas mercadorias, compostas por um conjunto de bens

simbólicos como velas, terços, santinhos, chaveiros, imagens, ex-votos, CD, DVD, camisetas

e outros, tornam se para os fiéis ―expressões que designam uma realidade dotada de valor

positivo‖. São bens que expressam a revelação do sagrado. Bourdieu (2010) observa que em

período de crises econômicas e políticas, podem aumentar ou diminuir a procura desses bens,

ou seja, há uma variação em seus consumos.

Os estudos de Rosendahl apontam que, para onde converge um fluxo de romeiros

diário ou periodicamente, tende a surgir atividades econômicas vinculadas às necessidades

dos peregrinos. A cidade provisória que surge na Romaria do Senhor do Bonfim tem essa

função, atender a demanda por bens simbólicos, alimentação, higiene, lazer, hospedagem,

comunicação e diversão.

A distribuição espacial desses estabelecimentos comerciais parece obedecer a uma

lógica de respeito e zelo pelo espaço sagrado, pois estão assim alocados: próximos ao

Santuário estão as barracas de artigos sagrados, em ampla variedade; em seguida, as barracas

de vestuários, calçados e bijuteria, artesanatos e, mais afastado estão as barracas de

alimentação e espaços de diversão como bares e bancas de jogos. Todos formam um conjunto

coeso de produtos que às vezes ―induz o consumidor a comprar outros bens que não faziam

parte do seu propósito religioso‖ (CORRÊA, 1989, p.193).

Percebe-se a criação de áreas especializadas das atividades não religiosas por todo o

Povoado, beneficiando assim as trocas econômicas e simbólicas no espaço sagrado da

Romaria. Para os romeiros, elas significam segurança enquanto os mesmos vivem o tempo

sagrado da Romaria, pois sabem que não correm o risco de viver- mesmo que por poucos dias

- privados de bens básicos como alimentação, higiene.

Esses elementos se somam aos geossímbolos fixos do lugar que são: a

Igreja/Santuário, as estátuas do Senhor do Bonfim, o Rio e os cruzeiros instalados no espaço

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central do Povoado, ―estabelecendo uma ligação com o homem religioso, aproximando-o de

sua vida comum‖ (COSTA, 2010, p.41).

A Igreja Católica e os vendedores ambulantes disputam o espaço próximo ao

Santuário na busca por expor seus artigos sagrados o mais possível do fluxo dos devotos que

adentram o Santuário, territorialidades que extrapolam ao limite do fazer simbólico e

constituem territórios definido e singularizados. Os bens simbólicos da Igreja, espacialmente

ficam restritos a um espaço mais afastado da frente do Santuário.

Dessa forma, o comércio simbólico e não-simbólico articula um arranjo espacial que

possibilita a mobilidade dos fluxos de romeiros por todos os espaços da Romaria. Essa

realidade evidencia que o espaço da vida do ser humano é múltiplo e, composto de diversos

aspectos materiais e de valores simbólicos. As práticas religiosas nesse contexto marcam a

distinção necessária entre um e outro, sem necessariamente dicotomizá-los.

Uma das dimensões objeto de análise na presente pesquisa é a simbólica. Para falar

dela, recorremos também à dimensão material que componente do espaço da Romaria. O item

seguinte tem como propósito apresentar essas dimensões no interior das peregrinações que

são realizadas na construção desse espaço sagrado.

2.3 Peregrinação: dimensões simbólicas e materiais na construção do lugar sagrado

A religiosidade, como subjetividade e cultura do homem é um fenômeno que cada vez

mais atrai a atenção do geógrafo. Tal fato tem frutificado em estudos sobre as diferentes

dimensões das religiões. Uma dessas dimensões é a simbólica na sua materialidade imediata e

seu sentido. Gil Filho (2008), ao elencar as instâncias de analise possíveis do estudo do

fenômeno religioso aborda o sistema simbólico como o modo racional com o qual

concebemos o sagrado pela sua lógica simbólica. Nessa direção é possível compreendermos

os contextos em que os Romeiros do Senhor do Bonfim vivenciam a religião. Um desses

contextos é o da peregrinação.

Velho (1995), ao tratar da religião na modernidade e na pós-modernidade traz a

peregrinação religiosa como exemplo de tradição portadora de múltiplos significados. Nessa

perspectiva ele apresenta duas visões de estudiosos do tema na antropologia que percebem a

peregrinação como ―um terreno de competição entre discursos‖. Para tal, ele cita Eade &

Sallnow,

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São esses discursos, com seus múltiplos significados e compreensões, trazidos aos

santuários por diferentes categorias de peregrinos, por residentes e por especialistas

religiosos, que são constitutivos do próprio culto. Igualmente, um culto pode ser

visto como constituído por mal-entendidos mútuos, na medida em que cada grupo

busca interpretar as ações e motivações dos outros em termos de seu próprio

discurso específico (EADE & SALLNOW, 1995, p. 5 apud VELHHO, 1995, p.

210).

Trata-se de um entendimento situado na pluralidade – esse argumento está construído

a partir das várias necessidades imediatas apresentadas pelos peregrinos, que por sua vez são

individuais, como por exemplo, a necessidade da cura, da penitência, do sublime ou dos

negócios.

Essas características são identificadas no catolicismo popular constituinte da Romaria

do Senhor do Bonfim. O que se constata em um Santuário como o do Senhor do Bonfim é

que, seu poder como centro de atração de peregrinação está não em uma única visão religiosa,

mas na diversidade de significados expressos nas mais variadas formas de práticas

devocionais que ele acolhe. Pode-se assim aferir que, a Romaria do Senhor do Bonfim

comporta e responde a uma pluralidade de discursos religiosos inerentes ao modo católico

popular de professar a religião.

As diversas religiões têm entre seus fiéis a prática de viajar a seus lugares encantados

– sagrados – na linguagem religiosa. Viagem que segundo estudiosos como Eliade (1992) e

Rosendahl (1996) é a busca do equilíbrio e paz espiritual. Denomina-se peregrinação essa

prática de visitar os lugares sagrados. Ela acontece a partir das práticas de fé que se

espacializam no seu caminhar por meio do próprio sacrifício do deslocamento, orações,

penitências.

O peregrino nesse âmbito apresentado corresponde ao romeiro. Este é um devoto

cristão. ―A peregrinação cristã, que data do século V, também é conhecida como romaria,

pelo fato de consistir inicialmente na ida de devotos de suas localidades para Roma.‖

(ROSENDAHL, 1996, p. 56). As peregrinações cristãs e não cristãs são fenômenos crescentes

no mundo. Salgado (2001) assim contabilizou os peregrinos cristãos em números,

A los centros de culto religioso más grandes en el mundo cristiano, que atraen en

total a casi 25 millones de peregrinos (el 15 por ciento de los fiel es migratorios de

esta religión), pertenecen: Roma con el Vaticano (aproximadamente 8 millones),

Lourdes (6 millones), Claro Montana (4 – 5 millones), Fátima (4 millones) y

Guadalupe, México (2 millones). Entre los santuários cristianos, un papel importante

lo desempeñan los santuários marianos. Los santuarios marianos pertenecen – en la

opinión del Santo Padre - a "la herencia espiritual y cultural de un pueblo dado y

pose en una gran fuerza de atracción y radiación". La mayoría de los lugares de

peregrinación del cristianismo está relacionada con el culto de la Virgen (al rededor

del 80%) (SALGADO, 2001, p. 11).

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O peregrino do presente texto é um sujeito cristão. Estamos trabalhando com o recorte

da religiosidade popular em que o fiel é movido pelo o milagre. Esse fenômeno, segundo

Modesto (1996), é a retomada da ordem natural das coisas, fruto de um contrato entre Deus e

o homem. No entanto, sabe-se que, existem diferentes motivos para a peregrinação e que há

uma heterogeneidade no conjunto da massa de romeiros que empreendem essa modalidade de

sacrifício.

Como agente de um ritual que é uma forma de comunicação e interligação entre

sistemas simbólicos na sua experiência, entende-se que peregrino é uma categoria genérica

para designar os milhões de pessoas que, em um determinado momento da vida, põem-se a

caminhar imbuídos de fé, ao encontro do sagrado que pode estar representado simbolicamente

em uma imagem, uma gruta, um templo, uma pessoa.

É verdade que há diversos motivos que levam seres humanos a caminhar, peregrinar15

,

andar, a buscar algo que substancie sua existência, seja para a satisfação material, sentimental

ou espiritual. Entendemos aqui a religião – no seu sentido dialético de produto e produtora de

espaço, como um motivo geográfico de peregrinação, concebendo assim peregrinar como uma

(geo) grafia, uma produção de espaço e território.

A religião para Tuan (1976) ―é um desses fortes motivos que mobiliza milhões de

pessoas a peregrinar em busca e ao encontro físico e espiritual com o sagrado‖. Ainda de

acordo com Tuan, a religião é muito mais que uma palavra, ela é um sistema cultural de

significados, que tem uma visão estruturada do mundo.

A religião, como necessidade de religar universal é o elemento que anima e catalisa o

entusiasmo do peregrino. Esse ser ao encontro do sagrado que, sobre qualquer transporte, do

mais confortável aos seus próprios pés, sob a luz ardente do Sol ou dos frios pingos da Chuva,

na claridade da luz ou na escuridão da noite sem Lua, como destaca Santos (2010, p. 147):

―Se expõe ao sobrenatural mais do que em qualquer outra situação, procurando colher em um

pequeno fragmento do sagrado que está ou parece estar ao seu alcance‖. Para o peregrino, os

versos de Gilberto Gil (1998), atestam essa fé.

Certo ou errado até

A fé vai onde quer que eu vá

Oh! Oh!

A pé ou de avião

15

Peregrinar ou peregrinação tem em língua portuguesa uma palavra afim – romaria, esta significa a participação

periódica numa festa religiosa local ou regional, num paralelismo que parece semelhante ao que em língua alemã

distingue pilgerfahrt de wallfahrtt (RINSCHEDE, 1987, p. 382 apud SANTOS, 2010, p. 147).

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A revelação do espaço sagrado tem um valor existencial para o homem religioso, por

isso ele busca alcançar esse espaço, privilegiando-se a localização do que ele julga ser a

hierofania. Ao iniciar a peregrinação, ele tem o espaço sagrado como um dos pontos a atingir

físico e espiritualmente. Para Eliade (1992), nada pode começar, nada se pode fazer sem uma

orientação prévia – e toda orientação implica a aquisição de um ponto fixo, para o peregrino

esse ponto é o lugar sagrado.

É por essa razão que o homem religioso sempre se esforçou por estabelecer se no

―Centro do Mundo‖. Para viver no Mundo é preciso fundá-lo – e nenhum mundo

pode nascer no ―caos‖ da homogeneidade e da relatividade do espaço profano. A

descoberta ou a projeção de um ponto fixo – o ―Centro‖ – equivale à Criação do

Mundo... essa postura clara evidencia o valor cosmogônico da orientação ritual e da

construção do espaço sagrado (ELIADE, 1992, p. 17-18).

O ponto fixo para o romeiro do Senhor do Bonfim é o Altar, no interior da Igreja no

Povoado de Bonfim. Em viagem de trabalho de campo que realizamos dia 14 agosto de 2013,

a bordo de um ônibus com uma caravana de romeiros da cidade de Redenção, Pará, ao

Povoado do Senhor do Bonfim, percebemos que as falas dos peregrinos convergiam em

afirmar que, o primeiro lugar visitado por eles ao chegarem à Romaria é o Altar, onde está a

Imagem do Santo. Esse primeiro contato tem como propósito pedir a benção e agradecer pela

viagem. A fala de um devoto de 59 anos e com cinco que viaja para a festa ilustra a

centralidade que a imagem do Santo tem na fé dos peregrinos,

Eu desde que eu vim a primeira vez que meu destino é o meu Senhor do Bonfim, lá

no altar, é aonde eu primeiro vou (uma pausa de silêncio), eu chego cansado mas eu

vou agradecer por tudo e pedir a bença... se não fosse ele nós não tava ali. É por isso

que eu vou falar com Ele, depois amarro rede, tomo banho... falando com o Senhor

do Bonfim já tá ganha a viagem. (Entrevista cedida em 13/08/2013, transcrição

textual).

Percebe-se na fala desse peregrino que sua peregrinação, sua ida à Romaria significa a

―passagem do macrocosmo da vida na cidade, lugar de existência cotidiana, ao micro cosmo

do universo fundamental e envolvente, lugar de ordem e significado, lei, ato fundador [...]‖

(RIVIÉRE, 2008, p. 39). Para o romeiro, a passagem do tempo do cotidiano para esse tempo

especial se completa no encontro mágico com o Santo. Fato similar também ocorre na

Romaria do Divino Pai Eterno de Trindade, Goiás, em que há também uma ―fila do

beijamento‖ da fita de desce do altar do santo.

Segundo Rosendahl (1996), o homem reconhece no sagrado a presença/existência do

Divino. O peregrino busca o poder transcendente que o sagrado contém. Sua peregrinação

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produz e edifica espaço sagrado/geográfico. O espaço sagrado em que o peregrino acredita ser

o centro, o ponto fixo da existência divina, pode ser considerado uma geografia mítica

sagrada. O caminhar do peregrino faz parte da necessidade que o homem tem de renovar-se

constantemente; renovar mesmo que seja apenas nos caminhos a caminhar.

Consoante a Araújo (2006) podemos ressaltar que a busca pela renovação espiritual é

inerente ao homem, dada sua insegurança existencial perante a imensidão do mundo e as

dificuldades da vida. A instabilidade existencial é um impulso que o faz buscar continuamente

a renovação dos caminhos, seja na filosofia, na teologia, na ciência ou na arte, com a

expectativa de encontrar um fundamento para sua existência. ―Essa necessidade religiosa

exprime uma inextinguível sede ontológica. O homem religioso é sedento do ser. O terror

diante do ‗caos‘ que envolve seu mundo habitado corresponde ao seu terror diante do nada‖

(ELIADE, 1992, p. 36).

Percebe-se que o peregrino devoto do Senhor do Bonfim, ao caminhar, escolhe o

caminho da teologia, mesmo que por alguns momentos, como caminho para a renovação. Há

nas falas dos romeiros, muita confiança em encontrar um espaço acolhedor na Romaria. Não

há receio ou medo do local para aonde estão indo. Nutrem, pelo local, um sentimento de

afetividade, de modo que alguns romeiros disseram estarem indo ―sem medo como se

estivesse indo para sua casa ou a casa de um parente‖, como afirmou uma romeira

entrevistada que peregrina há quatro anos. Ainda para Eliade (1992), o peregrinar constitui-se

um ato de consagramento, uma comunhão de fé com o sagrado.

A fé tá na manhã

A fé tá no anoitecer

Oh! Oh!

No calor do verão...

(Gilberto Gil, 1998)

Na peregrinação o peregrino está imerso na sua fé, nela ele se especializa e, todos os

seus sentidos se expressam através do olhar, um olhar para tudo. Para reconhecer o caminho,

para observar o tempo e a paisagem da qual ele é construto e parte. O olhar para guiar-se na

escuridão/claridão dos mistérios da fé, para distinguir a via das estrelas, para refazer os

caminhos da volta. Pelo o olhar a realidade vai sendo apreendida. ―Pelo o olhar se alcança o

coração das coisas‖ (Loureiro, 2008 p. 359).

E assim, sua trajetória de olhar vai tornando-se ato de leitura, sensação e percepção do

espaço. O espaço aqui entendido como Relph (1979), uma fusão dos espaços da superfície

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telúrica, água, ar e construção com os espaços da imaginação e da projeção. Conforme Claval

(2002), a peregrinação lembra que o espaço no qual se inscreve a vida dos homens não é feito

apenas de territórios onde eles levariam indefinidamente uma vida sedentária debruçada sobre

si mesmo. Ela é feita de deslocações, de trocas, de rotas frequentadas e de lugares para onde

convergem os homens, as notícias e os bens. A vida religiosa inscreve-se num contexto de

movimentos incessantes.

A reflexão sobre o sagrado envolve a consideração do profano. O sagrado se apresenta

absolutamente diferente do profano, isto é, o primeiro relaciona-se a uma divindade e o

segundo, não. Gil Filho (2008) demonstra que o resgate do sagrado para os estudos da religião

ocorreu na tentativa de encontrar o âmago da experiência religiosa, pois esse se impõe como

base qualitativa do fenômeno religioso em qualquer religião. Nessa perspectiva segundo ele,

O sagrado impõe a assertiva da manifestação de uma ordem diferente, uma lógica

que não pertence a esse mundo, enquanto o profano, que por sua vez, é o que não é

religioso ou o que não tem propósito religioso. Portanto, o sagrado e o profano

seriam duas maneiras de existência do homem. Para cada posição no espaço

sagrado convergem valores afetivos específicos, atribuídos pelo homem-religioso,

sendo esse um espaço da intuição que distingue o sagrado do profano (GIL FILHO,

2008, p. 72).

Constatamos que na Romaria do Senhor do Bonfim o peregrino muitas vezes participa

dos dois mundos. Evidenciando que na dimensão simbólica da vida coletiva na Romaria não

há distância entre o que chamamos de objetivo e subjetivo. O peregrino é um ser humano,

necessita do tempo para a devoção, mas, também, do tempo para a diversão. Parte da diversão

que ele experiência se encontra geralmente no espaço/tempo profano. Há uma tênue linha que

separa o profano do sagrado.

Conforme Tuan (1979), o sagrado é uma onda mansa de vida, induzindo no devoto um

sentimento de serenidade e bem-estar. Ele gera o ―ponto fixo‖ ponto de toda orientação

inicial. O mesmo não ocorre na experiência com o profano. Nesse não há a verdadeira

orientação, o ―ponto fixo‖, a fundação do mundo sereno. O profano não funda um mundo. O

―ponto fixo‖ aparece e desaparece segundo as necessidades cotidianas.

Para Riviére (2008), a peregrinação é uma espacialização emocional do desejo. E

como tal ela é geográfica, ou seja, produto e produtora de espaço e geradora de encanto, ao

mesmo tempo em que também contém e revela objetos e ações. O encanto do peregrinar está

na certeza que o peregrino tem de saber que está sendo tocado perpassado pela a fé.

Essa experiência é um ―acreditar grande‖, infinito, capaz de trazer Deus para junto de

si e, ao mesmo tempo transpor seu corpo de peregrino para junto de Deus. ―A peregrinação é

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uma forma de deslocação no espaço ao mesmo tempo física e espiritual‖ (SANTOS, 2010,

p.148), e porque não dizer poética, pois segundo Jardim (2007, p.5) ―a poética é todo e

qualquer fazer que produza o encanto de transformar algo que não é no que este algo virá a

ser‖.

Para uma das entrevistadas que há seis vai à Romaria, peregrina da caravana da

Terceira Idade, com quem viajamos ao Senhor do Bonfim, a grande distância percorrida por

ela no trajeto até alcançar o santuário tem significativo valor para sua devoção. Para essa

romeira, passar por algum tipo de sacrifício ou padecimento pelo caminho demonstra que,

pela fé, ela é merecedora das bênçãos, das graças e da proteção do Santo. Quando

perguntamos sobre como se sentia ao voltar da Romaria ela respondeu assim:

Eu nem penso em volta. Mas eu vou voltar com fé no Senhor do Bonfim. Ai eu

volto outra pessoa, é como se eu deixasse lá tudo que é ruim, tudo que é atraso na

minha vida. Por isso que eu digo que não volto, porque eu volto outra pessoa, até

meus amigos e parentes sente isso, por isso eu vou... (Entrevista cedida em

13/08/2013. Transcrição literal)

Na crença dessa peregrina seu corpo ao regressar abriga ―outra pessoa‖, como ela

mesma afirma. O caminho em direção à Romaria é espaço e tempo de alegria e devoção.

Desde o início da viagem muitos peregrinos portam artigos sagrados como camisetas, bonés,

catecismos e terços com imagens do Senhor do Bonfim.

Segundo um interlocutor, romeiro há dez anos ―tudo que lembra o Santo é bom‖. Para

Carballo (2010, p. 123), ―las religiones contribuyen a la producción y la legitimación de

instrumentos simbólicos que permiten pensar y representar a los territorios sagrados, es decir,

una apropriación cognitiva‖. Os artigos sagrados que os romeiros portam nesse caso

representam o território simbólico desses peregrinos.

O peregrino acredita que se fortalece, expulsa os pecados, purifica sua alma e nasce

novamente ao se pôr a caminhar e alcançar o lugar sagrado. Ao atingir esse espaço, para ele, é

viver perto de um ―Centro do Mundo‖, equivale, em suma, a estar o mais próximo possível de

Deus. Reestabelecer o tempo sagrado equivale a tornar-se contemporâneo do Deus, portanto,

a viver na presença dele – embora esta presença seja ―misteriosa‖, no sentido de que nem

sempre é visível.

Enquanto deslocamento e forma de mobilidade física e espiritual, a peregrinação tem

sido objeto de estudos entre alguns geógrafos. Santos (2010), ao tratar do conhecimento

geográfico e peregrinações, inspirada em Claval pondera que,

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A peregrinação lembra que o espaço no qual se inscreve a vida dos homens não é

feito apenas de territórios onde eles levariam indefinidamente uma vida sedentária e

debruçada sobre si mesmos. Ela é feita de deslocações, de trocas, de rotas

frequentadas e de lugares para onde convergem os homens, as noticias e os bens. A

vida religiosa inscreve-se num contexto de movimentos incessantes (SANTOS,

2010, p. 148).

Há uma grande complexidade nessas motivações que conduzem o romeiro ao ato de

peregrinar. Ao entrevistarmos um grupo de romeiros que peregrinaram para a Romaria em

caravana a cavalo, percebemos a diversidade de motivações que os mesmos elencam como

para empreenderem esse deslocamento ritualístico. Entre eles, o ponto de motivação comum

foi o entendimento da peregrinação como uma prática religiosa, ver figuras 23 e 24.

A coincidência entre as motivações é o ato mágico, a troca simbólica com o santo por

―uma graça‖. Elas variam desde a busca por saúde para parentes, agradecimento pelo

casamento até, apelo para bons negócios na próxima safra agrícola na fazenda. Havendo

também dois romeiros que mencionaram, além da motivação religiosa, o passeio. Esses

peregrinos afirmaram aproveitar a vinda religiosa para passear com a família. É o que se

menciona no dizer popular, os termos ―rezar‖, ―festar‖ e ―bestar‖, individualizam as

motivações entre o romeiro que vai pela fé; o que vai pelo comércio e o que vai para se

divertir, andar, passear ou ―bater perna‖.

Figura 23 - Caravana de Miracema, TO Figura 24 - Caravana de Xinguara, PA

Fonte: Carvalho, J.R., 2013 Fonte: Carvalho, J.R., 2012

Percebemos entre os peregrinos que uma grande quantidade de romeiros aproveita a

viagem para diversão e descanso além das obrigações devocionais. Poderíamos falar em

turismo e peregrinação na Romaria?

Rosa (2007), ao estudar as romarias no município de Milagres na Bahia e suas

expressões sócio-espaciais, identificou aspectos semelhantes em relação à peregrinação. No

quarto trabalho de campo na Romaria procuramos ouvir a opinião dos romeiros sobre essa

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questão, entrevistando vinte romeiros, dez donos de estabelecimentos comerciais e visitantes.

As figuras 25 e 26 representam dois desses comércios dos quais entrevistamos os

proprietários.

Figura 25 – Barraca de alimentação Figura 26 – Bar e restaurante provisórios

Fonte: Carvalho, J. R., 2013. Fonte: Carvalho, J. R., 2013.

A opinião dos donos de estabelecimentos comerciais (bar e restaurante) é que, a

principal motivação dos romeiros para estarem na Romaria é a devoção. Dos vinte

entrevistados, apenas dois consideram a presença da maioria dos romeiros naquele local está

relacionada a interesses de diversão e passeio.

Os outros dezoito entrevistados opinaram que aquela ―multidão brinca‖, mas o

compromisso na peregrinação é com o Senhor do Bonfim. O proprietário da ―Barraca das

Promessas‖, mostrada na figura 23, que desmontava sua barraca para retornar a Colinas, TO,

expôs sua opinião sobre a questão dizendo:

Todo mundo vem porque tem fé e porque tem problema pra resolver... mas tem

gente que vem também só pela alegria, mas esses também faz sua devoção pro

Santo. Eu digo o seguinte, brincar não é pecado, a gente trabaia muito nessa vida, o

Senhor do Bonfim sabe da situação de cada um... é assim (Entrevista cedida em

16/08/2013, um dia após o fim da Romaria. Transcrição literal).

Rosa (2007, p. 47) diz que ―muitos estudiosos relacionam o turismo a viagens de

recreio, de passeio, de diversão. Desta forma, as viagens para cumprimento de deveres de

piedade são atos devocionais e de fé; por esse motivo, há obrigação moral impeditiva de

finalidade turística‖. Sendo assim, pode-se inferir que o peregrino não é visto como um turista

em seu sentido pleno, conforme explica Rosendahl,

O motivo da viagem é diferenciado para ambos, peregrino e turista, que deixam seus

lares, a vida cotidiana, pelo prazer de chegar a um lugar. O conceito de prazer,

tomado num sentido genérico, relaciona-se às coisas que causam sensações

agradáveis. O peregrino associa a caminhada à busca de satisfação e conforto

espiritual, acompanhada, na maioria das vezes de sofrimento físico. Já o turista não

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considera o prazer espiritual associado ao sofrimento. É o ―bem-estar‖, ―a preguiça‖

a satisfação de lazer, que prevalecem. A motivação, para o grupo religioso, recai na

esperança de aumentar a santidade pessoal, obter benção e curas especiais. Para o

outro grupo, a motivação recai no desejo de escapar, temporariamente, das pressões

da sociedade em que vive (ROSENDAHL, 2009, 100-101).

Os peregrinos que vão à Romaria do Senhor do Bonfim, viajam em caminhões,

cobertos com lona, ônibus fretados, barcos, canoas, carros próprios, motos, a cavalo, bicicleta

e até mesmo a pés. A maioria dessas conduções vai lotada e não promovem nenhum tipo de

conforto ou segurança.

Assim mesmo, viajam todos os anos para cumprir sua devoção e para também se

divertir, reencontrar amigos, comprar lembranças para a família, passear. O peregrino carrega

em si, movimento, motivação, destino, magnitude do sagrado e a extensão da distância. Sobre

o movimento no ato de peregrinar Stoddard (1994) diz que,

Para alguns peregrinos devotos, apenas deslocação para o destino final, não é

meramente um meio de chegar, porque ela é também um ato de culto. O papel da

viagem, nesse caso, pode ser comparado a uma procissão religiosa, a qual é

empreendida não para chegar a algum outro lugar, mas sobre tudo porque a própria

passagem contém um significado religioso (STODDARD, 1994 apud SANTOS,

2010, p. 167).

Mesmo não pretendendo aprofundar a controvérsia entre peregrinação e turismo

religioso, não podemos deixar de refletir sobre certa oposição entre os dois termos. Santos

(2010), por exemplo, sublinha que se justifica ainda hoje considerar a peregrinação como uma

realidade autônoma; inclusive, do ponto de vista conceitual, face ao do turismo religioso e à

do turismo em geral.

A autora estabelece a diferença ao postular que, ―na essência das duas práticas, pois,

diferentemente do turismo religioso (que combina vários tipos de motivação para além da

religiosa), a peregrinação é, em si mesma, uma prática religiosa‖ (SANTOS, 2010, p. 148).

Seria pertinente afirmar tão categoricamente que os termos peregrinação e turismo religioso

são antagônicos assim? De acordo com Maciej OSTROWSKI

Los Papas Pablo VI y Juan Pablo II definieron la peregrinación como una forma

especial de hacer turismo e ainda define a peregrinação como uma forma de turismo

religioso que para ele é un viaje turístico donde el elemento religioso constituye uno

de los objetivos principales. A los motivos tradicionales para hacer turismo como el

deseo de moverse, el descanso, la curiosidad para conocer um nuevo paisaje, para

conocer a nuevas personas y el patrimonio cultural, se les añaden cualitativamente

nuevos elementos (OSTROWSKI, 2002, p.31).

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Tendo como sustentação as falas dos romeiros entrevistados sobre as motivações das

peregrinações inferimos que, para os romeiros do Senhor do Bonfim, o objetivo principal de

uma ação não exclui as possibilidades de execução de outras atividades concomitantes,

imediatamente anteriores ou posteriores ao seu cumprimento. Assim, ―mesmo que o objetivo

primordial numa viagem para cumprimento religioso seja a devoção, os peregrinos podem ter

alguns momentos de lazer, de acordo com suas necessidades e interesses‖ (ROSA, 2001, p.

46).

As condições de transportes e alojamentos dos peregrinos da Romaria do Senhor do

Bonfim, são na sua maioria precárias. Percebe-se que há certo sacrifício no deslocamento até

o Povoado, no entanto, o fato de pôr-se no caminho como peregrino de fé, já faz parte da

aproximação do romeiro com Deus, com o sagrado. O caminhar por si só já representa uma

espacialização da prática religiosa, uma experiência que transcende a caminhada física.

Mesmo que privações e sofrimentos do corpo como, sede, fome, insegurança e

exposição ao calor do sol e à poeira se façam presentes na peregrinação da maioria dos

peregrinos da Romaria do Senhor do Bonfim, não percebemos nenhuma reclamação por parte

desses fiéis. A busca pelo sagrado traz discussões como essas, portanto, é o grau de motivação

do viajante que o deixará mais próximo de ser um peregrino, um turista, um peregrino-turista

ou um turista-peregrino.

Cada passo na peregrinação é sentido como uma etapa importante do percurso

simbólico para alcançar o ponto fixo, o ponto sagrado. O peregrino tem um destino. ―A

existência de destino preciso é essencial para a própria ideia de peregrino: este não é um ser

que apenas vagueia, que apenas caminha, mas alguém que caminha para...‖ (SANTOS, 2010,

p. 173).

Para Onfray (2009), toda viagem convida a alma à abertura, ao acolhimento de uma

verdade capaz de infundir. A viagem religiosa, também, provoca essa abertura no viajante

peregrino. Ele torna-se um ser inspirado e espacializado. Dessa experiência, ele retira

princípios que lhes servirão de substância/raízes para sua vida.

Durante a viagem que realizamos com caravana de romeiros da Terceira Idade

percebemos, além do desejo de transcender entre os peregrinos, formas de ações planejadas

pelos coordenadores da caravana que procuram controlar os peregrinos desde a entrada no

ônibus até a estadia no espaço da Romaria. Essas atitudes de controle em alguns momentos da

viagem geram conflitos entre os peregrinos e a coordenação da caravana, uma equipe

composta por quatro senhoras servidoras públicas da prefeitura de Redenção.

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Conforme Ratts (2003, p.1), ―os espaços privados e públicos são vividos diferencial e

desigualmente por homens e mulheres, qualificando uns de masculino e outros de femininos‖.

Na organização da referida viagem, percebemos essa diferenciação. Ela foi estabelecida pela

coordenação e comunicada aos peregrinos quando os mesmos adentravam no ônibus. Um

comunicado em voz alta informava que, os lugares mais à frente estavam reservados às

mulheres, o que separou alguns casais e gerou reclamações.

Observa-se que o ato de peregrinar em caravanas compromete parcialmente a

liberdade, pois quem viaja na caravana deve submeter-se as regras estabelecidas pelos

organizadores. Uma entrevistada organizadora de uma caravana a cavalo de Arapoema,

Tocantins, diz que ―todos que aceitam viajar na sua caravana precisam cumprir as regras de

segurança e de colaboração‖.

Entre essas regras estão: comprar o uniforme da caravana, uma camisa de mangas

longas de tecido colorido (com as inscrições ―Romeiros do Senhor do Bonfim‖) na parte

traseira da camisa; usar cinto e chapéu; calçar botas de couro, ou seja, um uniforme ao estilo

―cowboy‖. De São Félix do Xingu, figuras 27 e 28, uma caravana composta por jovens,

também era conduzida por uma senhora religiosa que mantinha o grupo sob vigilância e

procurava direcionar o percurso dos peregrinos por uma mesma direção.

Figura 27 - Caravana de Arapoema, TO Figura 28 - Caravana de São Félix do Xingu, PA

Fonte: Carvalho, J. R., 2012. Fonte: Carvalho, J. R., 2012.

O ser religioso esforça-se para tentar reatualizar o tempo sagrado periodicamente, isto

é, restabelecê-lo sempre e, assim, poder recomeçar periodicamente a vida com o máximo de

sorte. Para o homem religioso o tempo e o encontro com o sagrado possibilitam a reflexão

espiritual, a renovação e a confirmação da fé, principalmente quando o ato se realiza em um

espaço sagrado, onde o divino se manifestou.

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Na peregrinação em caravana ao encontro do lugar sagrado os romeiros parecem

superar as condições de controle a que são submetidos durante a viagem. Nas informações

colhidas com os mesmos não consta nenhuma reclamação nesse sentido, os conflitos que

presenciamos durante a viagem não foram mencionados nas respostas, revelando que há

situações que são de fórum interno do grupo.

Para Costa (2010), o peregrino sente a necessidade de viver e construir o sagrado, e faz

isso com todo espírito de voluntariedade. Ao peregrinar religioso aglutina todas as suas

fortalezas para superar as adversidades de toda ordem, principalmente a social, talvez por esse

motivo, as situações de controle da liberdade pelas quais passam durante a peregrinação sejam

superadas.

As peregrinações são diversas em territorialidades e temporalidades, é verdade, mas

possuem entre elas algo comum: a força de alcance espacial. Cada peregrino tem sua maneira

de ver e de sentir o sagrado no espaço e em tempo determinado. Sua fé o mantém em sintonia

com os tempos e ocasiões que demandam o peregrinar ao encontro de si e de si com os

símbolos sagrados. E assim, como ressalta Carballo (2010, p.125) vai ―diseñando

territorializaciones que se reconstruyen através de la experiência peregrina individual e

coletiva‖.

Não estamos tratando o fenômeno religioso da Romaria do Senhor do Bonfim no

sentido de magia, mas, sim, no sentido característico do catolicismo popular, pautado na

praticidade e no utilitarismo. E não se trata de falar de uma religião dos excluídos, mas sim

uma Romaria que apresenta uma pluralidade de diferenças sociais. Apoiado em Zaluar

(1973), pode-se dizer, também, que o catolicismo popular não representa um modelo puro de

vivência da religião pelo povo. Nesse tipo de religiosidade são, também, visíveis elementos

oficiais, que estão sutil ou abertamente interligados aos elementos populares constituindo

formas simbólicas espaciais.

Bourdieu (2010) considera os símbolos como instrumentos de integração e reprodução

social. Na Romaria do Senhor do Bonfim podemos dizer que os símbolos instauram de certo

modo uma ordem social religiosa configurada em um espaço sagrado. O simbolismo presente

nesse espaço é um dos pontos de partida para a compreensão da sua realidade.

De acordo com a opinião de Claval (2012), em algumas porções do espaço as pessoas

investem uma afetividade mais intensa e profunda que em outras. Esses lugares e seus

elementos se tornam alvo de cultos por simbolizarem fé, vontades e necessidades comuns de

um povo ou grupo. Essas porções tornam-se símbolos. No capítulo seguinte apresentaremos

como um lugar simbólico é erigido por valores religiosos criados e mobilizados pelos devotos

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do Senhor do Bonfim. Esses valores se apresentam como forças que dão origem ao espaço

sagrado da Romaria que carrega o nome do Santo. Evidenciaremos como símbolos, conflitos

e rituais em confluência com as águas do Rio Piranhas constroem a Romaria do Senhor do

Bonfim.

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CAPÍTULO III

“TUDO QUE EU QUERO ELE ME DÁ” - OS VALORES SIMBÓLICOS DA FÉ E A

CONSTRUÇÃO DO ESPAÇO SAGRADO NA ROMARIA DO SENHOR DO BONFIM

O espaço sagrado é produto da consciência

religiosa concreta e, nesse contexto, não é possível

a separação entre posição e conteúdo, pois o ultimo

parte de uma consciência do vivido plenamente

sensível.

(GIL FILHO, 2008, p. 71)

Ao compartilhar a opinião de Costa (2010) refletimos que é necessário, além da

identificação dos elementos simbólicos contidos em romarias e peregrinações, entender os

lugares sagrados, pois cada elemento ali presente comporta um leque de significados. São

esses significados que serão apresentados a seguir.

Os romeiros devotos do Senhor do Bonfim confiam que ―tudo que pedir ao Santo Ele

dará‖. Essa crença é um valor simbólico que faz parte da identidade desses fiéis e que eles

reforçam e reafirmam toda vez que vêm à Romaria. A viagem, o caminho, a chegada, o

reencontro com o Santo e os amigos, são elos de positividades simbólicas percebidas no

espaço da Romaria, que geram alegrias, gratidão e substanciam a devoção. Talvez, a

proximidade simbólica do fiel com o Santo o faça defender a tradição do catolicismo popular

na Romaria como constatamos e será exposto no item a seguir.

3.1 – Simbolismo e conflitos de territorialidades no espaço da Romaria

Atualmente, a experiência do vivido e as representações sociais dos sujeitos passam a

vigorar como meios de entender e explicar a religião no espaço. De acordo com Ramos

(2013), o pensamento geográfico, sobretudo a partir do fortalecimento da leitura cultural de

viés humanista, representa importante instrumento metodológico e epistemológico.

Valendo-se desse conhecimento, pode-se afirmar que se inicia uma nova etapa dos

estudos da geografia sobre a religião. Passa a acontecer, não mais estudos religiosos ligados a

uma descrição pura a partir das paisagens ou de simplesmente ligar a religião à cultura, mas,

sim, um estudo da religião buscando seu aspecto mais essencial, o fenômeno religioso.

Dessa forma, o espaço sagrado concebido pelo pensamento religioso guarda os

contornos da idealidade narrativa e das materialidades próprias das tradições religiosas. ―Que

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por sua natureza torna possível a verificação de suas condicionantes estruturais e de

apropriação que relativo à ação social de apropriação, abarca em tese relações de poder,

territorializando o espaço sagrado‖ (GHISLANDI, 2013, p. 238). Sobre essa situação privada

do Santo, a senhora ―rezadeira‖ principal do Terço e responsável pela liturgia popular da

Romaria, ressalta que,

a igreja do Bonfim é uma igreja da Família, não pertence à Igreja Católica. A igreja

foi construída pela a Família que cuida do Festejo e da Imagem do Santo, com as

doações dos fiéis. Os habitantes do Povoado são quase todos parentes, os que não o

são parentes de sangue, são compadres. O povoado é uma família só (Entrevista

cedida em 26 jul. 2012).

Essa declaração evidencia a autonomia da Romaria em relação à Igreja Católica e, ao

mesmo tempo anuncia um conflito de territorialidade entre a Família e a Igreja. Ambas as

partes envolvidas na disputa territorial quando perguntadas abertamente sobre o conflito

negam, dizem trabalhar em harmonia, mas as ações/territorialidades desenvolvidas no espaço

sagrado da Romaria demonstram que, de forma velada, por traz da aparente harmonia subjaz

um agudo desentendimento em relação a quem administra a Romaria e recolhe as ofertas dos

fiéis, que não são poucas.

Durante os onze dias que convivemos no povoado no Senhor do Bonfim, o tempo de

realização da Romaria em 2012 conversamos e entrevistamos 34 romeiros sobre a questão da

administração da Romaria e da guarda do Santo, a metade deles na faixa etária acima de 40

anos e a outra metade entre 20 e 40 anos.

Nas respostas de todos foi apontada a existência do conflito entre Igreja Católica e

―Família dona do Santo‖, fato que inclusive divide opiniões, uma minoria (12 dos

entrevistados) é a favor que a Igreja assuma a organização da Romaria, e a maioria (21), acha

que não, a administração da Romaria deve permanecer com a Família ―dona do Santo‖.

Essa opinião incide mais entre os romeiros acima de 40 anos. E a minoria que almeja

mudança é formada por romeiros mais jovens. Apenas um romeiro declarou não fazer

diferença quem administra a Romaria e disse: ―eu venho aqui é por causa do Santo, é nele que

eu acredito, é no Santo que eu tenho fé e Ele me ajuda‖. (Fala de um romeiro de 48 de idade e

dez de Romaria).

Por meio da cultura, a sociedade reordena seu espaço e o significa de acordo com a

apropriação que pode ser simbólica ou material. Como menciona Bonnemaison (2012), a

partir da afetividade, da comunhão dos participantes e da significação, constrói-se o espaço

geossimbólico que, no caso do espaço da Romaria do Senhor do Bonfim tornou-se um

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território santuário. Para o autor ora citado, é pela cultura que se encarna a relação simbólica

entre cultura e espaço.

Para a Igreja Católica e a Família ―dona do Santo‖ ―o território exprime a relação

simbólica entre eles a cultura e o espaço‖ (D‘ABADIA, 2010 p. 40) da Romaria. As duas

instituições disputam o controle e a apropriação do espaço sagrado. Cada instituição procura

exercer soberania sobre os fiéis e o lugar e, instituir assim seu território.

Nessa trama, a opinião e o nível de envolvimento dos fiéis com o espaço sagrado

podem vir favorecer a apropriação da Igreja sobre todos os espaços e símbolos da Romaria,

inclusive a Imagem do Santo, uma vez que o ―poder simbólico‖ da Igreja Católica se

sobrepõem à Família ―dona do Santo‖.

Nas conversas que realizamos com os romeiros no trabalho de campo, muitos deles se

declararam partidários da ideia de que a Igreja Católica deve assumir o comando da Romaria.

Esses que argumentam a favor da Igreja justificam sua posição alegando que em outros

lugares, é a Igreja quem toma conta das romarias, ―que santo é um bem da Igreja, sempre foi,

não é coisa de nós pecador‖ disse uma entrevistada de 28 anos e romeira há 12. São a favor da

atuação da Igreja na administração porque, segundo eles, com a Igreja a Romaria vai crescer

mais, alguns chegaram a falar sobre a Romaria de Natividade, no Estado do Tocantins, onde

existe, também, uma romaria do Senhor do Bonfim, dizendo que lá é a Igreja que organiza e é

uma festa bem maior que a de Araguacema.

Quanto aos romeiros que são a favor da Família ―dona do Santo‖, seus argumentos se

posicionam em defesa da tradição e do direito de posse. Eles entendem que os descendentes

de quem iniciou a Romaria têm direito em continuar administrando a festa e de posse da

Imagem do Santo, ―pois é uma tradição da Família também, faz parte das vidas deles, já veio

dos bisavôs deles, e também tem a questão da renda, que a Família arrecada para ajudar a

manter as coisas do Santo, como a capelinha, o altar e tudo sempre organizados‖, assim

manifestou a romeira de 51 anos, que frequenta a festa há 24.

Os sentidos de lugar apresentado por Relph (2012) e de tradição em Hatzfeld, (1993)

manifestam-se nas posições tensas dos romeiros em relação às territorialidades da Igreja

Católica e da Família ―dona do Santo‖. A Romaria para esses fiéis é o lugar da reunião, os

contatos com os outros as relações, o lugar do sentir-se bem, juntamente com o sentido de

tradição parecem motivar os romeiros em sua maioria, a apresentar uma postura avessa às

mudanças na forma de condução da Romaria, principalmente litúrgica.

Os argumentos dos mesmos mostram que a Festa Religiosa tornou-se um lugar

simultaneamente ―especial, familiar e significativo‖ para eles. Assim como o espaço sagrado,

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o tempo sagrado, de que nos destaca Eliade (1992), é evocado na memória e no imaginário

desses romeiros que, necessitam desse tempo litúrgico para reatualização de um tempo

sagrado, que teve lugar em um passado mítico.

Lopes, que estudou os aspectos públicos e privados do sagrado nessa mesma Romaria,

ouviu o sacerdote responsável pela Paróquia de Araguacema no início da década de 2000 e,

na fala Pároco fica evidente o conflito com a Família ―dona do Santo‖ e, também, as

estratégias utilizadas pela Igreja para se territorializar naquele espaço.

Anos atrás, eram os próprios leigos que batizavam, tinha uma senhora Corina daqui

da Paróquia de Araguacema que fazia todos os batismos, ela já faleceu, mas mesmo

antes dela falecer nós passamos a assumir isso, muitas pessoas se batizaram por lá,

embora não tenha nada registrado.

[...] sim, incorpora [...] tem o sistema de pessoas que sabiam rezar o terço e ficavam

pela igreja e ainda ficam e se dispõe a rezar pra quem tem promessas e não sabe

rezar. As pessoas ficam rezam e recebem gratificação por isso.

[...] nós programamos um evento que era de prática de devocionais particulares e

com um momento a noite da novena que era feita em grupo, nós fizemos um evento

de massa, levamos os aparelhos de som e fazemos uma celebração, pra três mil,

quatro mil, cinco mil pessoas [...].

[...] nós não corrigimos nada, mas existem dificuldades porque a família se sente

incomodada com nossa atuação e talvez até ameaçada no sentindo financeiro,

porque eles não dão nenhuma destinação comunitária e social em relação às

esmolas, não emprega em nada o valor que entra ali a cada ano, eles se sentem

ameaçados com isso e também a questão a horários, eles querem que nós nos

adequamos ao horário deles e nós não aceitamos, temos a nossa programação

independente, então cria um choque, estamos ali rezando a missa e eles começam a

novena dentro da capela e nós estamos do lado de fora, então tem conflito sim [...]

(Frei Vanderlei, entrevista concedida a Lopes, 2005).

Sobre as estratégias de como a Igreja Católica constitui seu território, na opinião de

D‘Abadia (2010), essas estratégias pautam-se sempre no fortalecimento do lócus da fé, para

manutenção dos seus domínios, fato que ocorreu largamente após a República, quando houve

no Brasil a separação entre Estado e Igreja. Era preciso fortalecer-se nas massas, nas romarias.

Em nossa vivência na Romaria, entrevistamos o atual Sacerdote responsável pela Paróquia de

Araguacema, o mesmo respondeu com muita cautela e, implicitamente deixa transparecer em

sua fala o interesse da Igreja em assumir a Romaria.

Nós temos muito cuidado para não magoar a Família, pois tudo isso aqui começou

com eles, a Igreja reconhece isso, mas as coisas precisam evoluir mais. O papel da

Igreja é zelar pelas coisas de Deus, por isso estamos aqui [...] as mudanças irão

acontecer com muito cuidado em benefício da Romaria e de todos [...], há pouco

tempo a Igreja passou a acompanhar mais de perto a Romaria, e sabemos da nossa

obrigação aqui com ela e os fiéis (Entrevista cedida em 13 de agosto de 2012).

A presença e o discurso da Igreja são sempre anunciados no espaço da Romaria; seja

nas Missas, celebradas duas vezes por dia – ao amanhecer e ao entardecer – ritual rígido que

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não permite qualquer ato de criação e participação espontânea dos fieis, estes apenas repetem

os gestos dos frades, como nos diversos objetos sagrados vendidos sob uma grande tenda

instalada na praça em frente ao Santuário, a uns trinta metros de distância, e também nas

sessões de batismos, espaço litúrgico que, aos poucos, está a se tornar ponto de referência

para as práticas da fé de muitos romeiros; principalmente aqueles que têm filhos para esse

sacramento. As sessões desse ritual acontecem durante os últimos cinco dias da Romaria, em

quatro horários, dois pela manhã e dois pela tarde, conforme as figuras 29 e 30.

Figura 29 – Tenda de inscrição para batismo Figura 30 - Batismo na casa da Igreja Católica

Fonte: Carvalho, J. R., 2012. Fonte: Carvalho, J. R., 2012.

Para esse rito de passagem há uma grande demanda, ele acontece na ―casa da Igreja‖

como é conhecida no povoado, casa recém-construída pela Paróquia, onde alguns frades

passaram a residir a partir de 2012, o local fica a mais ou menos um quilômetro do Santuário.

Para Bourdieu (2010, p. 14) ―O poder simbólico como poder de constituir o dado pela

anunciação, de fazer ver e fazer crer, de confirmar ou transformar a visão de mundo [...] só se

exerce se for reconhecido, quer dizer, ignorado como arbitrário‖.

Dessa forma age a Igreja no espaço da Romaria, a partir dos enunciados sutis em todos

os espaços, Ela vai se territorializando no imaginário dos fiéis e no espaço físico sem

provocar nenhuma ruptura brusca, com uma sutileza, que, aos olhos dos romeiros, possa ser

vista como arbitrariedade.

Um desses enunciados de territorialização da Igreja Católica é percebido por meio de

práticas simbólicas por meio das pregações nas Missas e dos objetos litúrgicos utilizados-

Cálice, Âmbula, Arro, Manustégio Patena, Eca e Cruz dourados, Hóstia, Corporal, Vinho,

Batina branca, Estola vermelha, figura 31, e com a instalação de alguns equipamentos

próximos ao Santuário, como duas tendas grandes e o palco.

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A partir do terceiro dia de Missa na Romaria, um frade trouxe um violonista para

acompanhar os cantos. Quando perguntamos a opinião de alguns fiéis sobre o que acharam da

Missa acompanhada com violão eles disseram que ―foi bem mais animada e agradável‖; o que

evidencia que as estratégias simbólicas da Igreja de territorialização alcançam efeito imediato.

Figura 31 – Peças litúrgicas da Igreja Católica: algumas utilizadas no Senhor do Bonfim

ÂMBULA,

CIBÓRIO ou

PÍXIDE

É semelhante ao

cálice, também

constituído de material

nobre ou inoxidável.

CÁLICE

É uma taça geralmente

revestida de ouro, prata

ou qualquer outro

material nobre ou

inoxidável.

CORPORAL

Chama-se corporal porque

sobre ela coloca-se o

Corpo do Senhor (cálice e

âmbula), no centro do

altar. Faz alusão ao santo

sudário de Cristo.

ARRO e BACIA

Formam o conjunto

usado para o ato de

lavar as mãos, na hora

do ofertório, nas

missas, expressando o

desejo de purificação

interior, do sacerdote

que celebra.

MANUSTÉRGIO

Toalha que serve

para enxugar as mãos

do sacerdote, durante o

ofertório. Costuma a

acompanhar as

galhetas.

PATENA

É um pratinho de metal

ou qualquer material

nobre,

semelhantemente a um

pires. Sobre ele coloca-

se a hóstia maior.

ECA

É um pequeno

recipiente de metal nobre,

onde se armazenam as

hóstias consagradas para

transportá-las até as casas

de doentes ou para as

comunidades distantes.

CRUZ

Sobre o altar, ao seu

lado ou acima dele,

existe um crucifixo

para lembrar que a

Ceia do Senhor é

inseparável do seu

sacrifício redentor.

Fonte:<http://www.divinoespiritosanto.org/>. Acesso 20 de abr. 2013.

Org.: Carvalho, J. R., 2013.

Aliada a esses objetos litúrgicos está a palavra Eucaristia, anunciada quase como uma

palavra de ordem; ela é muito lembrada na fala dos sacerdotes que celebram a Missa campal.

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Palavra que significa um dos sete sacramentos da Igreja Católica, no qual Jesus Cristo se

acha presente sob as aparências do pão e do vinho, com seu corpo, sangue, alma e

divindade; comunhão (explicação de um frade na Missa campal do dia 13 de agosto de 2012).

Sobre o poder das palavras anunciadas, Bourdieu (2010, p. 15) ressalta: ―O que faz o poder

das palavras e das palavras de ordem, poder de manter a ordem ou de subvertê-la é a crença

na legitimidade das palavras daquele que as pronuncia‖.

A Igreja, consciente do seu poder de anunciação e da fé imanente ao ser religioso, não

mede esforços para erigir um discurso oficial da instituição sobre a fé, em contraposição ao

habitus do catolicismo popular hegemônico no espaço sagrado da Romaria. De acordo com

Hoornaert (2002), a realidade do catolicismo vivido pelo povo brasileiro é um catolicismo que

se abre, aparentemente de forma ingênua; sendo assim, a Igreja se utiliza do seu domínio de

um arcabouço de símbolos e rituais sagrados para a construção do seu território religioso na

Romaria, fato que não passa despercebido pelos ―donos do Santo‖ como se percebe na figura

32.

Figura 32 – Fachada de boas vindas

Fonte: Carvalho, J. R., 2012.

Essas boas vindas anunciam que a Família ―dona do Santo‖ está atenta às práticas

espaciais da Igreja Católica procurando ampliar território no espaço sagrado, por isso a

Família também lança mão das suas estratégias para reforçar a devoção dos fiéis naquele que

é a hierofania, o símbolo maior da Romaria, a imagem do Senhor do Bonfim.

Além das boas vindas estendida acima da porta de entrada no Santuário, impressa em

manta magnética, com foto do Santo e letreiro em azul bem destacado, os cruzeiros e as

estátuas do Cristo e de Senhor do Bonfim, também foram pintadas na cor branca e, o interior

do santuário, logo no quarto dia de Romaria foi todo decorado com muitas bandeirolas

coloridas no teto, quatro banners com a foto da Imagem do Santo pendurados em lugares

estratégicos do interior do Santuário, uma de cada lado do altar e mais dois próximos à saída.

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Sobre o altar, foram estendidas toalhas brancas com bordas vermelhas e, mais imagens

de Santos foram colocadas sobre ele, além de muitos vasos de flores artificiais de diversas

cores, ver figuras 33, 34, 35 e 36. A imagem original do Senhor do Bonfim foi decorada com

algumas fitas coloridas em verde, azul e branco, e está posta a uma distância acessível aos

fiéis, no último degrau do altar.

À altura do peito dos fiéis fica uma réplica grande da Imagem do Santo, mais ou

menos trinta centímetros da Imagem, mais acessível ainda aos fiéis romeiros, de onde

pendem, também, fitas coloridas; símbolos que os fiéis tocam imbuídos de respeito e devoção,

e os passam pelo rosto e sobre a cabeça, dando uma volta no sentido horário e, ao final fazem

o sinal da cruz.

Figura 33 – Símbolos Sagrados recém-pintados Figura 34 – Decoração do altar

Fonte: Carvalho, J. R., 2012. Fonte: Carvalho, J. R., 2012.

Figura 35 – Decoração interior da Capela Figura 36 – Banners ao fundo: decoração

Fonte: Carvalho, J. R., 2012. Fonte: Carvalho, J. R., 2012.

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Bonnemaison (2012) sugere que no estudo da Geografia cultural, os geógrafos

precisam considerar, também, a organização social e hierárquica juntamente com as funções

políticas, sociais e econômicas dos grupos, pois ao se reproduzirem no espaço, elas revelam

estruturas de poder.

O território para esse autor ―está associado tanto à função social quanto à simbólica‖

(BONNEMAISON, 2012, p. 289). As práticas espaciais, tanto da Igreja Católica quanto da

Família ―dona do Santo‖ no espaço da Romaria operam no campo do simbólico e, também,

nos campos político e econômico, num sutil jogo de poder que resulta em territórios sociais e

simbólicos distintos, porém, são tênues as fronteiras entre eles.

A constituição desses territórios perpassa por um entrelaçamento de signos, objetos e

ritos impregnados de territorialidades socioculturais dos agentes que ―disputam‖ a hegemonia

no espaço sagrado da Romaria.

Essas territorialidades são o que acontece nas atividades cotidianas, ao envolverem a

Igreja, a Família Almeida e os romeiros no tempo e no espaço sagrados da Romaria,

atividades que para Saquet (2011, p. 87) ―são resultado e determinante do processo de

produção do território‖.

No espaço sagrado da Romaria do Senhor do Bonfim, construído e vivido pela Família

―dona do Santo‖ e os romeiros, podem ser percebidos vestígios recentes e antigos da

importância religiosa na vida das pessoas e do lugar, no sentido de identificar quem são, o que

fazem ali e por que esse lugar e esse Santo, o Senhor do Bonfim. A paisagem da Romaria, a

fala, os gestos e expressões dos romeiros, expressam o sentido cósmico que a sacralidade

manifesta no viver ali, mesmo que só durante os dias da Romaria para aqueles que são ―de

fora‖, ao caracterizar, assim, a constituição de territórios simbólicos.

Gil Filho (2008) entende a territorialidade do sagrado como ação institucional de

apropriação simbólica do espaço sagrado. Na Romaria do Senhor do Bonfim o que se tem é a

busca de duas instituições, uma familiar e outra religiosa, buscando a apropriação simbólica

daquele espaço sagrado. Por um lado, a família tenta manter sua territorialidade, construída ao

longo de mais de meio século de Romaria; por outro, a Igreja Católica, de certa forma,

também, se sente proprietária histórica dos Santos, mesmo sendo recém-chegada ameaça a

estabilidade territorial da Família Almeida, quando começa espacializar-se na Romaria.

Como já começamos mostrar, a Família Almeida também se territorializa quando vai

ao encontro do imaginário dos romeiros como, por exemplo, os rituais litúrgicos do Terço

cantado, durante as nove noites de Novena e a reza de Terço por encomenda, caso algum

romeiro queira uma celebração particular, após a reza oficial.

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A guardiã da tradição do Terço é uma Senhora, neta do Sr. Arcanjo Francisco de

Almeida, fundador da Romaria. Durante a festa perguntamos a essa senhora por que ainda se

rezava o Terço cantado daquela forma, mesmo acontecendo uma Missa antes e ela respondeu:

―os romeiros pedem, eles querem a Missa e querem o Terço também‖.

Duas interpretações estão postas na fala da rezadeira do Terço: a Família ―dona do

Santo‖ compartilha com muitos romeiros aquela tradição, ou seja, aquela forma de rezar tem

ainda um valor simbólico para eles, é parte constituinte das suas identidades de romeiros e, a

outra interpretação parece mais relacionada à territorialidade tanto da Família quanto dos

demais romeiros, que é demarcar território diante da presença institucionalizadora da Igreja

Católica. Essa relação dos fiéis com o sagrado converge para a opinião defendida por

Rosendahl (1996), sobre os romeiros valorizarem mais as práticas simbólicas do catolicismo

popular que as da Igreja oficial.

Ritos como pagamentos de promessas de diversas formas, com oferendas ou

sacrilégios, como os apresentados nas figuras 37, 38, 39, 40, 41 42, 43 e 44, são formas

simbólicas de o romeiro agradecer e manifestar sua fé de modo individualizado, aproximando

do sagrado representado na imagem do Senhor do Bonfim, localizada dentro da Capela,

espaço de centralidade para todos os romeiros.

Figura 37 - Devotos no Altar durante a Romaria Figura 38 – Romeira pagando promessa

Fonte: Carvalho, J. R., 2012. Fonte: Carvalho, J. R., 2012.

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Figura 39 – Auto sacrifício: pagamento de promessa Figura 40 – Momento de adoração no altar

Fonte: Carvalho, J. R., 2012. Fonte: Carvalho, J. R., 2012.

Figura 41 – Ato de acender velas no “velário”

Fonte: Carvalho, J. R., 2012. Fonte: Carvalho, J. R., 2012.

Figura 43 – Pedidos ao Santo no Altar Figura 44 – Agradecimento ao Santo no Altar

Fonte: CARVALHO, J. R., 2013. Fonte: CARVALHO, J. R., 2013.

Esse repertório de práticas religiosa na Romaria são territorialidades que engendram o

território simbólico dos romeiros. Esse conjunto de interações simbólicas reforça a

identificação dos fiéis com o território, pois este, na opinião de Almeida (2005) é essa

Figura 42 – Representante da Família Almeida

à frente da Romaria

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apropriação simbólica expressiva do espaço. Também para Bonnemaison (2012), o território

se constrói como um sistema de símbolos.

Portanto, a Romaria do Senhor do Bonfim pode ser entendida como um território

símbolo. Mas o território religioso segundo Rosendahl (2012, p. 89), ―não é apenas ritual e

simbólico: é também o local de práticas ativas e atuais que o tornam um meio identitário‖.

Percebe-se que as ações diretas dos fiéis, representadas nessas práticas devocionais,

ocorrem sem intermédio de outrem. Essas manifestações de fé fazem parte de um sistema de

reciprocidade com o Santo, em um sistema socialmente construído pelos romeiros, e é parte

integrante de sua própria visão de mundo. Na espacialidade do sagrado, esses romeiros

constroem paulatinamente territorialidades sob o domínio da emoção e do sentimento

religioso, o que dá origem ao seu micro território com forte apelo identitário. Território e

identidade religiosa estão fortemente ligados. Nas práticas dos romeiros estão explícitas, tanto

uma identidade de fé quanto um sentimento de propriedade mútuo.

É consenso entre os estudos geográficos sobre religião que nos espaços sagrados de

―numerosos santuários católicos existem a carga simbólica do catolicismo popular‖

(Rosendahl, 2010, p. 213). O item que se segue evidencia parte das articulações entre o

catolicismo oficial e o catolicismo popular, expressas nos símbolos e rituais da Romaria.

3.2 – Articulações simbólico-ritualísticas entre catolicismo popular e catolicismo oficial

Em ―Questões fundamentais na Geografia da religião‖, Fickeler (2008) acentua que, os

símbolos religiosos no sentido mais amplo e geral, têm um papel importante na vida cultural

religiosa. Muitos dos símbolos intrínsecos às religiões retêm seu sentido original e antigo.

Eles expressam ideias que são difíceis ou impossíveis de traduzir em palavras. As cores

usadas pelas religiões, por exemplo, são representativas desse simbolismo do dizer sem

palavras. Esse autor assim se expressa sobre esse forte sentido simbólico das cores nas

paisagens religiosas,

Se as luzes culturais têm um papel relativamente modesto na paisagem noturna e

surgem particularmente em certos períodos cerimoniais, as cores de um culto tem o

significado bastante maior na paisagem diurna, onde aparecem especialmente em

roupas e prédios. Nesse aspecto, muitas religiões elegem uma cor em particular, que

se torna especialmente distintiva e característica e que, ligada a certos lugares

sagrados (santuários, e lugares de peregrinação) e a certos períodos festivos (festas

de culto) se distingue como brilhante e alegre (FICKELER, 2008, p. 12).

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Cabe dessa forma, fazermos uma rápida apresentação das cores simbólicas percebidas

na Romaria do Senhor do Bonfim, que na opinião dos romeiros ―são as cores desde muito

tempo, sempre teve essas cores, desde antigamente‖, explicação que remete à ideia da

tradição que foi sendo preservada nas formas de devoção e organização dos momentos e

espaços ―mais especiais‖ da devoção, o tempo e o espaço da Romaria.

Destaque, principalmente na paisagem diurna religiosa da Romaria, as cores

representam, na sua maioria, alegria e chamam atenção para a vida do Cristo. As cores mais

presentes nos símbolos religiosos do Senhor do Bonfim são: branco, amarelo, vermelho, azul,

verde, rosa e roxo. Há uma semântica das cores no campo teológico e no campo cultural,

parcialmente expressa na figura 45.

Figura 45 – Cores simbólicas na paisagem da Romaria do Senhor do Bonfim.

CORES LEITURA TEOLÓGICA LEITURA CULTURAL

Branco

Simboliza a alegria cristã e o Cristo

vivo.

Representa a luz difusa. Associada à

pureza e verdade.

Amarelo/Dourado

É a cor mais luminosa, alegre, vital e

tonificante. Muitas vezes a santidade

é representada em ouro, seu

esplendor.

Simboliza a luz, iluminação religiosa

interna, do sol espiritual e sabedoria

divina.

Vermelho

Simboliza o fogo purificador, o

sangue e o martírio.

Cor simbólica do fogo, do brilho do

sol, cor do sangue e do fluído vital.

Azul Sabedoria e piedade. Simboliza o espiritual, o inefável, o

secreto, o eterno.

Verde Simboliza a esperança que todo

cristão deve professar. Símbolo da vida renascida e do

crescimento.

Rosa Simboliza uma breve pausa, certo

alívio na tristeza e no rigor da

penitência.

Confiança. Romance, amor, amizade,

feminilidade, verdade, passividade, boas

intenções, cura, emocional, paz.

Roxo Simboliza a preparação, penitência ou

conversão. Luto e morte.

Realeza. Espiritualidade, nobreza,

cerimônia, mistério, transformação,

sabedoria, sofisticação.

Fonte: <http://www.divinoespiritosanto.org/>.Acesso em: 30 de jun. 2013.

Org. CARVALHO, J. R. a partir de Fickeler (2008).

Essas cores citadas, principalmente a cor branca, estão presentes nos diversos espaços,

símbolos e liturgias da Romaria. Ela é adotada tanto pela tradição oficial da Igreja Católica,

quanto pela tradição do catolicismo popular. Segundo Fickeler (2008), em todos os povos e

todos os tempos, sem dúvida a cor branca é a cor sagrada mais difundida.

Como a cor simbólica do reflexo e da luz difusa, da luz e do que é brilhante em geral

do, sobre-mundano e do celestial, do absoluto e do puro, o branco é o símbolo dos

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supremos deuses celestes e das coisas da natureza e da cultura que lhes são

atribuídas, dedicadas e consagradas em sítios naturais, sagrados ou formas santas de

vida, vestimenta, edifício, etc. (FICKELER, 2008, p. 112-13).

As outras cores também são evidentes na paisagem simbólica do espaço sagrado da

Romaria. O amarelo é muito presente representado o fervor da esperança religiosa da fé e da

redenção. Em um dos momentos e espaços mais simbolicamente significativos da Romaria: a

procissão estava lá, o andor decorado com flores amarelas (É a cor mais luminosa, vital e

tonificante, representando a alegria da festa).

Junto com o amarelo estão as cores vermelho (simbolizando a vida, o amor e a

alegria); o azul (representando a sabedoria, a piedade e os céus) e o verde (representando a

criação e o renascimento celeste). As cores que iluminam o andor da procissão, juntamente as

cores rosa e roxo ornamentam outros símbolos sagrados no espaço da Romaria, por exemplo,

as réplicas da imagem do Senhor do Bonfim, o altar da Igreja Católica, o altar da Capela do

Santo, bandeiras do divino fixadas no altar e nas paredes da Capela e bandeiras de foliões que

circulam pela Romaria conforme mostraremos nas figuras 46, 47, 48, 49, 50 e 51.

Figura 46 – As cores do Andor Figura 47– As cores da Bandeira do Divino

Fonte: Carvalho, J. R., 2013. Fonte: Carvalho, J. R., 2013

Figura 48 – Cores no Santo Figura 49 – Bandeiras circulantes na Romaria

Fonte: Carvalho, J. R., 2013. Fonte: Carvalho, J. R., 2013.

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Figura 50 – As cores do Altar da Igreja Católica Figura 51 – As cores do Altar do Santo

Fonte: Carvalho, J. R., 2012. Fonte: Carvalho, J. R., 2013.

Na Romaria do Senhor do Bonfim, um espaço erigido sob a perspectiva do catolicismo

popular, assim como em espaços sagrados de outras religiões, os símbolos e os rituais dessa

visão religiosa, de certa forma, marcam e delimitam o espaço simbólico e marcam a

paisagem. Gil Filho expressa a estrada do ser humano e seu universo simbólico:

O homem é um ser simbólico, no sistema cassireriano, que o caracteriza como

superação da vida biológica. Assim, há uma ruptura da ordem natural gerada pelo

homem e na qual ele deve ser submetido. Este processo conscientiza o homem de

que ele não somente vive no universo de fatos, mas, sobretudo em um universo

simbólico. Deste modo, a religião, é parte deste universo pleno de significados que

faz parte indissociável da experiência humana. Sendo assim, o homem não está

somente diante da realidade imediata, mas à medida que sua prática simbólica se

realiza ele busca os significados da existência. O homem é o protagonista deste

conhecimento simbólico e desta prática social da religião (GIL FILHO, 2007,

p.210).

Na análise do autor, o homem religioso dota de simbologia todos seus ritos e espaços

como sagrados. Esses símbolos são imbuídos da cultura daqueles que os criam e realizam,

sendo essa uma das formas de fortalecimento da identidade do grupo. As mediações

simbólicas permeiam as atitudes pessoais dos romeiros por todo o espaço sagrado da

Romaria.

As luzes sagradas, segundo Fickeler (2008) são usadas por todas as religiões, elas

cumprem um propósito mágico e de adoração. Um dos rituais e símbolos do catolicismo

popular na Romaria é o acender velas, talvez essa luz queira traduzir: Eu sou a luz do mundo

(João 8: 12). São luzes que respondem às luzes celestiais, luz para iluminar os difíceis

caminhos dos fiéis no cotidiano.

O fogo, na opinião dos romeiros, tem o sentido de afastar as trevas e iluminar a vida, o

futuro da vida, e, também, os caminhos dos entes queridos que já se foram. Por esse motivo, o

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fogo no espaço sagrado da Romaria não é aceso em qualquer lugar, dois lugares são definidos

pelos fiéis para o ritual de acender velas, celebrar o fogo: o cruzeiro em frente à Capela e no

―velário‖ ao lado do Altar, no interior da Capela, figuras 52 e 53.

Figura 52 – Cruzeiro em frente à Capela Figura 53 – Velário ao lado do Altar

Fonte: Carvalho, J. R., 2012. Fonte: Carvalho, J. R., 2012.

Os sons são outra marca ritualístico-simbólica no espaço sagrado da Romaria do

senhor do Bonfim. De forma geral, a maioria das religiões emprega em grau maior ou menor,

certos sons cerimoniais. Nos dizeres de Fickeler (2008, p. 18), ―esses sons são importantes

para a geografia da religião somente quando soam para fora e assim caracterizam a

paisagem‖.

O autor sugere que essa ―paisagem cerimonial auditiva‖ seja levada em conta nos

planos de estudos em Geografia cultural. Na Romaria do Senhor do Bonfim, dois cerimoniais

de sons compõem a paisagem cerimonial auditiva e disputam as atenções dos fiéis romeiros:

os sons eletrônicos da Igreja Católica, durante o ritual das Missas celebradas na aurora e no

crepúsculo. Sons de fogos industriais são usados, também, pela Igreja para despertar os

romeiros na madrugada, convidando-os para a Missa campal.

Por parte da Família ―dona do Santo‖, os sons cerimoniais restringem-se ao espaço

interior da Capela, onde são rezados, o Terço Cantado e as ladainhas como parte litúrgica do

ritual da Novena, que acontece durante os nove dias de Romaria. O uso dos sons é acústico,

sem uso de qualquer equipamento eletrônico. No espaço da Capela, a Família aproveita para

reforçar, junto aos fiéis, a necessidade da fé no Senhor do Bonfim e naquela forma de culto

popular.

Além dos sons litúrgicos, outros sons complementam a paisagem auditiva na Romaria

do Senhor do Bonfim, são eles: as músicas tocadas nos bares, danceterias e acampamentos

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espacializados por todo povoado; os serviços de propagandas das barracas que comercializam

confecções, calçados e produtos de enxoval, mobílias, brinquedos e equipamentos eletrônicos.

Os sons (sirenes de alarmes) emitidos como alerta pela Polícia Militar, também compõem a

paisagem auditiva da Romaria. Assim, todo espaço da Romaria recebe influência desses sons,

alguns em maior ou menor grau.

Os sons mais emitidos nos espaços litúrgicos são respeitados pelos donos dos bares e

carros. Durante as missas e as rezas, os sons nas imediações da Capela e do palco da Igreja

são desligados. Podemos pensar que há certa ―harmonia‖ entre os momentos e espaços

ritualísticos na Romaria.

Se o lugar favorece o exercício da fé e da identidade religiosa para todos os sujeitos

envolvidos na Romaria, da mesma forma o tempo é responsável por guardar as memórias e

todo um conjunto de significados, dentre eles a tradição. Nas práticas e atividades religiosas, o

tempo é, também, um instrumento fundamental para os fiéis e para as autoridades religiosas.

Na Romaria do Senhor do Bonfim parece haver um acordo – informal - entre a

Paróquia de Araguacema e a Família ―dona do Santo‖ quanto uso do tempo noturno no espaço

litúrgico da festa, a Igreja celebra a Missa entre as dezessete horas e meia e as dezenove horas

e, logo após a Família reza o Terço da Novena.

Nos últimos dias da Novena esse acordo não é cumprido por parte da Igreja, pois

houve dias em que a Missa só terminou às dezenove horas e cinquenta minutos. Nesse

momento, as ―rezadeiras‖ da Família já haviam iniciado a reza do Terço, acompanhadas por

dezenas de féis no interior da Capela.

Muito do simbolismo inerente ao espaço sagrado da Romaria do Senhor do Bonfim

não está dado na paisagem do lugar, ele pode ser lido nos rituais realizados de modo coletivo

ou individualmente. Esses rituais, na opinião de Gil Filho (2008) apresentam um caráter de

memória religiosa. Eles seriam formas de preservação da memória primordial.

No catolicismo popular as relações individualizadas dos devotos com o sagrado são

configuradas nos rituais em que esses fiéis participam ou até mesmo criam. Cada romeiro na

sua individualidade atribui significância ao ritual conforme suas necessidades imediatas e o

cultiva como repositório de significados. Em um desses momentos ritualísticos conversamos

com uma romeira de Casa de Tábua, Pará, sobre sua preocupação e cuidados em colocar

garrafas com água sobre o altar durante a missa e depois guardá-las como um bem sagrado,

ela respondeu assim,

Ó, nós pega essa água benzida assim, quando chove uma chuva de muito vento a

gente joga, é bom pra passar o vento. Quando os meninos vai pra escola eu passo um

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pouquinho, na cabeça deles. É bom pra abrir a memória. É tudo mais fácil. A minha

água está aqui dentro da bolsa. (Entrevista cedida em 15/08/2013. Transcrição

literal).

Objetivamente seu ritual está sustentado na sua preocupação com as dificuldades que

surgem no dia-a-dia, às vezes de ordem natural, como ―uma chuva de muito vento‖ situação

com um grau de dificuldade que exige forças extraterrenas para contorná-la. Ao considerar as

temporalidades, poderíamos intuir que essa atitude está sustentada, também, numa lembrança

ontológica; quando tudo era explicado e resolvido pela fé e a força do mito. Na fé dessa

devota, só as forças do Santo pode ―abrandar‖ as forças da natureza, pois são forças/poderes

além das forças humanas. Levar a água abençoada funciona como uma precaução diante das

forças da natureza.

A funcionalidade da água abençoada não se estende apenas a resolver a situação da

―chuva com muito vento‖, ela funciona também como ―elixir‖ para o espírito e a inteligência

das crianças. A romeira demonstra essa fé quando afirma: ―Quando os meninos vai pra escola

eu passo um pouquinho na cabeça deles. É bom pra abrir a memória.‖

Há crença de que a aprendizagem depende de uma boa memória. Como os saberes

sobre essa parte do corpo não é de domínio popular, mas apenas de algumas ciências como a

Psicologia e a Neurociência, a mãe busca as forças do Santo como uma forma de interferir no

desenvolvimento psiconeurológico dos filhos, ao manifestar, assim, que as forças mítico-

religiosas compõem o sistema de crença que lhe dá sustentação para viver.

Os rituais são de certo modo atos formalizados no sentido de ser cerimoniosos.

Procissões religiosas são rituais também que apresentam essas características. Pensando com

DaMatta (1997), as procissões apresentam qualidade conciliadora. Essa conciliação pode ser

entre os oponentes de classe, no nível das relações interpessoais ou na relação entre devoto e

divindade.

No Senhor do Bonfim, o momento considerado o ápice da festa é o momento da

procissão, que ocorre no último dia do festejo, 15 de agosto, entre as dezessete e as dezoito

horas, em um percurso relativamente curto em volta do núcleo urbano do Povoado. Na

estrutura organizacional das procissões DaMatta aponta que,

[...] o seu núcleo é formado das pessoas que carregam a imagem do santo, e essas

pessoas estão rigidamente hierarquizadas: são as autoridades eclesiais, civis e

militares. Entretanto, o núcleo é formado e seguido por um conjunto desordenado de

tipos sociais: penitentes que pagam promessas, aleijados e doentes que buscam

alívio para seus males, pessoas comuns que apenas demonstram sua devoção ao

santo (DAMATTA, 1997, p. 65).

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As territorialidades eclesiais na procissão do Senhor do Bonfim evidenciam parte

dessa hierarquia da qual nos fala DaMatta. Nelas, a Igreja Católica e a Família ―dona do

Santo‖ operam conciliadamente. Ambos organizam – mesmo com papéis bem definidos – o

lugar e a forma onde/como os geossímbolos da Romaria: a Imagem do Santo e a Cruz serão

conduzidos na procissão. A saída e a chegada da procissão - um ritual móvel - são momentos

em que a Família ―dona do Santo‖ e a Igreja Católica controlam, fazendo questão de

demonstrarem domínios sobre os maiores símbolos sagrados da Romaria.

D‘Abadia (1994) lembra que as procissões são heranças de Portugal. Elas vieram e

expandiram-se no território brasileiro, ao estabelecer as territorialidades religiosas e ao

influenciar nossa organização espacial dentro da dinâmica cultural. De maneira geral, marcam

o território por onde passam (D‘ABADIA, 2010, p. 51).

Na Romaria do Senhor do Bonfim a procissão é um ritual/tradição criado pela Família

Francisco de Almeida, mas que, agora, nos últimos cinco anos, a Igreja Católica tem

influenciado cada vez mais nela, por meio de ações como as falas durante as Missas campais

lembrando aos romeiros sobre o lugar de concentração (frente ao palco/altar), o cumprimento

do horário de saída da procissão e no comando das orientações sobre o posicionamento da

berlinda com o Santo à frente do cortejo. A Polícia Militar segue à frente da procissão como

se conduzisse o ritual pelo trajeto pré-determinado.

Como parte da organização do ritual da procissão, compete à Família ―dona do Santo‖

a escolha da decoração do andor (tecido colorido, geralmente duas cores, flores naturais em

três tons), trabalho feito pelas mulheres da Família que sentem orgulho e se emocionam ao

falarem desse ―cuidado‖, que elas atribuem ter sido ―a vontade do Santo, a sorte e uma

obrigação muito importante‖, que pretendem realizar enquanto ―vida tiver.‖

Um dos senhores ―dono do Santo‖ carrega, nos braços, junto ao corpo, do lado

esquerdo do peito, o segundo símbolo mais forte e representativo da Romaria e da procissão:

a cruz esculpida em madeira. Esse senhor foi escolhido pela Família já há muitos anos atrás

para marcar aquele território simbólico no ritual, ao levar a cruz na primeira fila, à frente da

procissão.

No catolicismo oficial, o símbolo da cruz representa a prova do verdadeiro amor entre

os cristãos: tomar a cruz e seguir os passos de Jesus (Cap 14, 25-32). Para o catolicismo

popular o significado da cruz está mais vinculado ao cotidiano, ela seria a cruz de cada dia, as

dificuldades da vida, o peso da existência. Rosendahl (2012) lembra sobre o significado da

cruz que, a forma obtida com a junção dos eixos na horizontal e na vertical, acrescida da sua

evocação das quatro direções - o norte, o sul, o leste, e o oeste - agrega forte valor simbólico.

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O significado da cruz no imaginário religioso está impregnado do poder do sagrado. Na

Romaria do Senhor do Bonfim, a cruz é conduzida à frente da Procissão por um membro da

Família ―dona do Santo‖, conforme as figuras 54 e 55.

Figura 54 – Procissão em 2013 Figura 55 – Procissão em 2012

Fonte: Carvalho, J. R., 2013. Fonte: Carvalho, J. R., 2012.

Na condução do andor com o Santo, somente homens se revezam ao longo da

procissão. Procuramos saber dos organizadores (Igreja Católica e Família ―dona do Santo‖),

se havia orientação prévia para que só homens conduzissem o andor, ambos informaram que

não. Junto aos fiéis, perguntamos às mulheres por que elas não se dispunham a carregar o

andor com o Santo e se gostariam e, as respostas convergiram para a justificativa da tradição.

Uma romeira da cidade Miranorte, Tocantins, respondeu: ―desde quando começou aqui eu já

vi os mais antigo dizer que é assim. Eu penso em carregar o Santo, mas ele sabe das minhas

forças. Eu carrego ele sempre comigo, mas meu marido já fez a parte dele e carregou o Santo.

(Entrevista cedida em 15 de agosto de 2012. Transcrição literal)‖.

Para Friedrich (1974, p. 17) ―a tradição é a entrega de um depósito precioso, cuja fonte

é considerada divina, a uma pessoa especialmente escolhida.‖ Quando a informante diz

―desde quando começou aqui eu já vi os antigos dizer que é assim‖, percebe-se a força da

tradição que repousa sobre o posicionamento das mulheres.

Quanto à opinião dos homens sobre a mesma questão, as respostas foram direcionadas

no sentido de que eles estavam fazendo aquele sacrifício por toda família, os quatro

entrevistados responderam sem mencionar que a mulher também poderia ter esse desejo.

Transcrevemos, literalmente, a fala de um romeiro morador em Barreira de Campo, Pará, por

abarcar os elementos contidos nas demais falas. Sua resposta foi nesse sentido:

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―minha promessa é para carregar o Santo enquanto vida eu tiver, eu não me canso

de pedir a ele, eu fui valido, minha família é valida. Eu peço paz pra todo mundo.

Todos aqui precisam da proteção dele. Já faz cinco anos que essa e minha promessa

[...]. (Entrevista cedida em 15 de agosto de 2013).

A sua fala se relaciona com a ideia de Hatzfeld (1993, p. 52), sobre o caráter repetitivo

da tradição na transmissão das informações simbólicas, como ato que permite que a regulação

social seja possível, ao afastar a possibilidade de uma transitoriedade desagregadora no

comportamento humano.

As falas, tanto dos homens quanto das mulheres sobre seus papéis na procissão

demonstram suas resignações que estabelece a divisão sexual das práticas religiosas, ao

reforçar a hierarquia de que fala DaMatta (1997). Por essa forma de posicionamento e

pensamento sobre a experiência dos fiéis nesse espaço sagrado da Romaria, somos levados a

pensar com Nestor Canclini (1993, p. 53), que, ―a festa continua, a tal ponto, a existência

cotidiana que reproduz no seu desenvolvimento as contradições da sociedade.‖ Mas tal fato

não tira o caráter do ritual como um conjunto de atos formalizados, expressivos, portadores de

uma dimensão simbólica.

Ainda conforme DaMatta (1997, p. 65), na procissão os componentes de

hierarquização são separados do conjunto maior dos fiéis. A procissão, assim como o carnaval

―une o alegre ao triste, o sadio ao doente, o puro ao pecador e, mais importante, as autoridades

ao povo.‖ No Senhor do Bonfim, essas territorialidades estão expressas claramente quando se

ver que na frente da procissão estão os membros da Família Almeida e os frades da Paróquia

de Araguacema, representantes eclesiais e, depois, o ―conjunto polissêmico‖ dos fiéis. O

Santo, ao mesmo tempo em que está separado do povo (por sua natureza), caminha com o

povo e dele recebe na rua, suas orações, cânticos e piedade.

Uma multidão forma o corredor para a passagem da procissão. Nessa multidão

percebem-se diferentes gestos como o sinal da cruz, o estender de mãos em direção ao Santo,

as mãos levantadas para o alto e também algumas ladainhas em homenagem ao ritual. Ao se

observar forma mais ampla, poderíamos perguntar se o corredor humano por onde passa a

procissão também não é parte do ritual, um rito de passagem? Mesmo ao considerar que há o

caráter individual da fé nas manifestações do catolicismo popular, pode se inferir que o ritual

da procissão se configura como uma prática religiosa coletiva.

Para falar das experiências e vivências dos romeiros com as águas próximas à

Romaria, trouxemos o último item do capítulo 3. Nele são descritas e analisadas as

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confluências entre a fé e as águas, principalmente com o Rio Piranhas que banha o Povoado

do Senhor do Bonfim e é uma das vias de acesso ao local da festa.

3.3 – Confluência entre a fé e as águas: o Rio “lugar vivido”, experienciado e sonhado

pelos Romeiros do Senhor do Bonfim

A Romaria do Senhor do Bonfim tem na sua história uma íntima relação com a água

desde o ―achado‖ da Imagem do Santo no final do século XIX. Na errância da Família ―dona

do Santo‖ em busca das ―Bandeiras Verdes‖, a Imagem atravessou o Rio Araguaia para o

Estado do Pará e o atravessou de volta, se estabelecendo a seis quilômetros do Araguaia, às

margens de um dos seus afluentes: o Rio Piranhas.

Durante os quatro trabalhos de campo; que realizamos na Romaria nos anos de 2012 e

2013, foi possível identificar várias leituras que perpassam o imaginário dos romeiros do

Senhor do Bonfim sobre o Rio Piranhas. Elegemos algumas delas para apresentarmos como o

Rio com suas potencialidades de mobilidade (caminho), lazer, telúrica, fonte alimentar e de

sonhos ―deságua‖ no espaço e torna-se parte do espaço sagrado da Romaria.

Nesse propósito, por alguns momentos, o Rio constitui-se num objeto metafórico, mas

segundo Bachelard (1988, p. 245): ―A metáfora vem dar um corpo concreto a uma impressão

difícil de exprimir.‖ Acreditamos nas transformações sucessivas contidas no tempo e, assim,

aquele espaço concebido como Rio Piranhas, na verdade, a cada momento, para cada romeiro,

a cada ano é um rio diferente, ou seja, é outro rio. Portanto, um espaço que pode ser também

metáfora.

Nas águas do Rio Piranhas procuramos compreender e desvelar suas múltiplas

imagens, tendo como base as experiências vividas na paisagem e no lugar pelos romeiros.

―Partimos em busca de revelações de imagens reais, simbólicas e imaginárias do Rio, ou seja,

investigando como o Rio se revela no imaginário dos fiéis do Senhor do Bonfim‖ (GRATÃO,

2007, p. 88).

Nessa viagem, algumas imagens revelam o que palavras não conseguem exprimir.

Entre os sujeitos entrevistados, procuramos ouvir pessoas da Família ―dona do Santo‖ que

têm mais experiência e vivência com o Rio. Em consonância com Walter Benjamin (1996), a

experiência está ligada à memória individual e coletiva e a vivência aplica-se à vida privada.

Ciente dessa distinção, procuramos perceber nas falas dos entrevistados o que se reportava a

situações coletivas e o que era de cunho mais íntimo, privado.

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Além desses sujeitos, conversamos com pescadores e barqueiros que também possuem

experiência com as águas do Rio. Por fim, entrevistamos os romeiros que banham, pescam e

se colocam durante alguns momentos da sua estada na Romaria, às margens do Rio

contemplando a paisagem natural.

Ao observarmos o fluxo de romeiros que visitam o Rio nos últimos três dias da

Romaria, quando ocorre maior movimento, percebemos que há nos fiéis uma vontade de ver e

tocar o Rio, como se tivessem necessidade desse contato. Em sua poética das águas Bachelard

(1989) afirma sentir semelhante necessidade:

Sonhando perto do rio, consagrei minha imaginação à água, à água verde e clara, à

água que enverdece os prados. Não posso sentar perto de um riacho sem cair num

devaneio profundo, sem rever a minha ventura... Não é preciso que seja o riacho da

nossa casa, a água da nossa casa. A água anônima sabe todos os segredos. A mesma

lembrança sai de todas as fontes (BACHELARD, 1989, p. 9).

Há uma identificação dos romeiros com as águas do Rio Piranhas, a ponto de depois

de visitar a Imagem do Santo no interior da Capela, o segundo lugar que esses romeiros

visitam é o Rio, demonstrando uma topofilia com as águas. Para esses romeiros, a água tem o

poder de levá-los a muitos lugares na memória.

Uma gota de água corrente basta para criar um mundo de imaginação e afastar o

cansaço que se abate sobre os romeiros após a peregrinação até a Romaria. Um romeiro da

cidade de Estreito, no Maranhão, descreve sua relação imaginativa sobre o Rio e como ele faz

parte da sua devoção com o Senhor do Bonfim:

Quando vim aqui pela primeira vez, em 1979, andava meio perdido na vida, foi aqui

na beira dessa água, que era bem diferente naquele tempo, que eu comecei a pensar

na minha vida mesmo. E pedi ao Santo que me mostrasse um caminho que eu ia

seguir sem medo porque minha fé em Santos é muito grande, aprendi com a finada

minha avó e depois com minha mãe... ela me mostrou esse Santo. Eu na beira desse

Rio achei minha vida, por isso é o lugar que eu logo venho quando chego aqui

depois que dou a benção ao Santo. Hoje o Rio já tá bem maltratado, eu fico com

pena e pensando o que vai acontecer... (Entrevista cedida em 14 de agosto de 2013.

Transcrição literal).

A relação desse romeiro com o Rio vai além da contemplação ou do lazer, o Rio

representa força telúrica, energia que vem do interior da terra. Foi nas águas do Rio que o

Santo lhe mostrou seu caminho, ―andava meio perdido na vida, foi aqui na beira dessa água,

que era bem diferente naquele tempo, que eu comecei a pensar na minha vida mesmo.‖ A

água assim vista, foi um embrião, deu à vida um impulso inesgotável.

O significado da água para ele já não é apenas ―um grupo de imagens conhecidas

numa contemplação errante, numa sequência de devaneios interrompidos, instantâneos‖, mas,

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um elemento da ―imaginação materializante‖ (BACHELARD, 1989, p. 12). Esse interlocutor

demostra preocupação com a intensidade do uso do Rio, figuras 56 e 57, e as conseqüências

desse uso.

Figura 56 – Estágio de assoreamento no Rio Piranhas Figura 57 – O Rio como espaço de lazer e devoção

Fonte: Carvalho, J. R., 2013. Fonte: Carvalho, J. R., 2013.

A degradação do Rio é percebida e o preocupa, ―Hoje, o Rio já tá bem maltratado, eu

fico com pena e pensando o que vai acontecer...‖ A ação humana modificou a paisagem que

ele viu pela primeira vez e tem saudades. O processo de assoreamento é patente na paisagem

do Rio. Suas águas já perderam a limpidez, são barrentas, cor de lama, ―o Rio tá cego‖,

diagnosticou outro romeiro entrevistado.

A representação sobre água que carregamos na memória é de pureza, por isso o

romeiro estranha a cor barrenta que substituiu a cor cristalina da água. ―A água acolhe todas

as imagens da pureza‖ (BACHELARD, 1989, p. 15).

Ao visitarmos uma residência com três moradores que há mais de 60 anos vivem no

Povoado do Bonfim, suas falas expressaram certa emoção e saudosismo sobre o tempo em

que o Rio Piranhas ―era sadio‖, era rico em peixe e tinha muita água:

Esse Rio era nosso caminho para Araguacema. Descíamos nele até o Araguaia, de lá

subíamos até Araguacema. As roças foram matando o Rio, as suas ribanceiras estão

cada vez mais cavadas. A prefeitura todos os anos joga muito cascalho e terra para

fazer a entrada dos carros na beira do Rio, depois quando vem a chuva, aquela terra

é toda arrastada para dentro do Rio, por isso ele está também cada vez mais raso.

(Entrevista cedida em 8 de agosto de 2012).

A leitura mais humanizada dos lugares e seus sujeitos que a geografia cultural vem

fazendo, permite-nos perceber e significar o sentimento que emana dos moradores

entrevistados em relação ao Rio Piranhas. Memórias e emoções emolduram seus depoimentos

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reveladores de afetividades. As funções que o Rio tinha para o Povoado parecem já não

existirem mais. Há um sentimento de impotência dos sujeitos entrevistados ao identificarem

os agentes (públicos e privados) que estão tornando o Rio ―cada vez mais raso‖.

As revoltas do senhor e das senhoras, moradores/as mais antigos no lugar se justificam

por eles vivenciarem a ininterrupta destruição da ―pátria das águas‖, qualidade atribuída à

Amazônia pelo poeta Thiago de Mello, ao denunciar a permanência do colonialismo na

região. O modelo colonial permanece preocupado apenas em explorar os lugares, sem atenção

com sua sustentabilidade ecológica e a vida das populações ribeirinhas. O Rio Piranhas, para

quem vive às suas margens, parece permanecer impregnado de passado, acessível somente na

memória.

O Rio Piranhas já foi ―mais caminhos‖ para a Romaria, mas ainda o é. Nosso olhar e

curiosidade geográficos procuram, agora, na memória dos moradores que residem há mais

tempo no Povoado e na memória dos romeiros, vestígios do Rio-Caminho, que por pelo

menos, quatro décadas levava e trazia os romeiros do Bom Jesus de Piranhas, como era

conhecido o Povoado até o final da década de 1990.

O foco do nosso trajeto procura seguir pelo (per)curso da percepção geográfica,

enquanto um observar o Rio no seu corpo-água real e o Rio que passou por transfiguração no

olho de quem acompanha a vida do Rio já por algum tempo. Essa pretensão é substanciada

por certo ―olhar geográfico estético‖ que percorre o Rio procurando o (des)velar das águas na

qualidade de simbolismo e espaço de vivência para os romeiros e os moradores do Bonfim.

Outro morador que nasceu e se criou no Povoado às margens do Rio Piranhas, tem

boas recordações sobre o tempo em que o Rio era o principal caminho para se chegar à

Romaria. Ele conta que o rio era usado para qualquer necessidade de sair daquele lugar. ―As

viagens eram feitas naquele tempo por água. Se subia e descia para Araguacema e até Couto

Magalhães e Conceição do Araguaia. Tudo de novidade vinha pelo rio, hoje quase ninguém

lembra mais aquele tempo dos movimentos nas águas.‖

Para Tuan os lugares marcam as pessoas e as pessoas marcam os lugares. O Rio

Piranhas é marcado pela ação da Família ―dona do Santo‖ que, sobre suas margens e no seu

leito produziu alimentos, história e memórias. O descendente mais velho do fundador da

Romaria fala de uma geografia vivida em ato, existente a partir das águas do Rio como elo de

contato com o mundo.

Os moradores ribeirinhos têm o Rio como um lugar vivo, que vai e volta, levando e

trazendo notícias, subsistências e sonhos. A história da sua Família do criador dessa Festa

Religiosa é marcada pelas experiências concretas e simbólicas com as águas do Rio Piranhas.

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Pensando com Bachelard (1989), a água é motivo para uma imaginação aberta. O Rio

Piranhas também se abre para imaginação dos seus navegadores. Lendas e causos fantásticos

configuram uma Geografia simbólica do Rio no imaginário de muitos pescadores e barqueiros

que vivenciam o dia-a-dia da sua história vinculada e enlaçada ao lugar sagrado da Romaria

do Senhor do Bonfim.

Um barqueiro e pescador, morador em Araguacema desde criança, ―criado‖ nas águas

do Rio Piranhas e Araguaia, nos narrou histórias reveladoras de significados simbólicos que

substanciam as territorialidades dos romeiros na construção do espaço sagrado da Romaria.

Gratão (2008, p. 201) ressalta que, para captar as experiências dos sujeitos que vivem o Rio ―é

preciso olhar pelos olhos das águas; na cor; na transparência; no cheiro; nas atitudes dos seus

habitantes; ouvir as narrativas das pessoas [...].‖ Nos olhos das águas, é preciso vislumbrar um

pouco das histórias do Rio. Duas delas marcam a estreita relação entre os fiéis, o Santo e o

Rio:

Certa vez um barco naufragou com dezesseis pessoas, entre elas estava uma senhora

idosa e cega que era muito devota do Senhor do Bonfim. Foi a única que sobreviveu.

Quando o socorro chegou, naquela época só tinha canoa, quando eles chegaram, a

velha estava rodando na água e viva. Eu conheci a velha... (Entrevista cedida em 12

de agosto de 2012).

Na fala desse entrevistado a tragédia do naufrágio perde espaço para o exemplo de fé

da única sobrevivente no Santo. Sua fala torna-se quase um discurso prosélito, procurando me

convencer da magnitude dos milagres do Santo. O narrador transforma um acidente ―normal‖

em algo transcendente, carregado de simbolismo religioso. A salvação da ―única

sobrevivente‖ só pode ser atribuída a um grande milagre.

A cultura religiosa de onde o narrador justifica a sobrevivência da senhora deficiente

visual seria a teia de significados que o próprio ser religioso tece como fala Geertz (1989),

sobre o construto da cultura pelo homem. Sobre os ―olhos das águas‖ o narrador devoto do

Senhor do Bonfim ―interpreta a realidade dos fatos estabelecendo comunicação com os

valores das imensas simbioses culturais impostas e adaptadas, aceitas e rejeitadas no âmbito

do catolicismo popular‖ (MARTINS & FREIRE, s/d).

Outra narrativa que envolve o Rio e os milagres do Santo revela que nem sempre o

encontro do homem com as águas foi de resignação. O mesmo entrevistado conta que,

Antes o Rio Piranha, entre o pedaço que vai do Bonfim até o Araguaia fazia uma

volta conhecida como ―cotovelo do rio‖. Aí, uma vez um barqueiro com ignorância

falou que só acreditava que o Senhor do Bonfim tinha força e milagre, se quando ele

voltasse da viagem o Rio estivesse passando reto e acabado com a volta do

―cotovelo.‖ Esse barqueiro sempre passava com sua embarcação por ali e tinha que

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fazer aquela volta grande. Pois quando o barqueiro passou algum tempo depois, o

Rio estava correndo direto sem fazer o ―cotovelo‖. A força das águas tinha

arrancado o pedaço de terra que atrapalhava o Rio passar direto. (Entrevista cedida

em 12 de agosto de 2012).

Os obstáculos geográficos que os seres humanos sempre se propuseram a transpor com

o uso da tecnologia, são aqui, na história contada, removidos por meio de poderes sobre

naturais emanados do Senhor do Bonfim. Gratão (2005, p. 6), ao falar da geograficidade em

Éric Dardel lembra que há uma profunda relação humana com a terra ―uma relação

primordial, seminal, sem a qual nossa existência não teria sentido‖.

Ao sonhar em mudar o percurso do Rio o navegador mostra sua dúvida em relação ao

sobrenatural e sua manifestação como o fez São Tomé em relação à ressurreição de Cristo.

Assim, ele duvida do poder do Santo, esperando obter um resultado a seu favor, que seria

mudar o transcurso do Rio.

Os lugares sagrado para Tuan (1980) e Eliade (1992) são aqueles onde ocorre uma

manifestação divina ou um acontecimento de significado extraordinário. Nas narrativas desse

romeiro natural do local sobre suas experiências com o Rio Piranhas, denota-se a presença

desses acontecimentos de caráter excepcional, que podem ser significados como uma

manifestação do sagrado no Rio.

O Rio para os romeiros do Senhor do Bonfim significa o lugar no sentido dado por

Tuan (1980), o centro, o eixo, o umbigo do mundo. Um cosmo organizado. Inferimos que o

esforço das narrativas até aqui apresentadas, caminham na direção de definir o espaço

sagrado, criar um ordenamento simbólico do lugar. Ao falar do simbolismo e o sagrado Tuan

(1980, p. 166) destaca que,

um símbolo é um repositório de significados‖. Os significados emergem das

experiências mais profundas que se acumulam através do tempo. As experiências

profundas têm muitas vezes um caráter sagrado, extra-terreno, mesmo quando elas

se originam na biologia humana. Quando os símbolos dependem de acontecimentos

singulares, eles devem variar de um indivíduo para outro e de uma cultura para

outra. Quando se originam de experiências comuns, de maior parte de humanidade,

eles têm um caráter mundial (TUAN, 1980, p. 166).

Há singularidades nos acontecimentos com o Santo e o Rio na Romaria do Senhor do

Bonfim, no entanto, eles são percebidos e significados pelo conjunto dos fiéis como milagres,

graças e epifanias. Talvez suas profundas experiências com o sagrado no lugar influenciem na

significância que os mesmos conferem aos acontecimentos, e os tratem sempre como

manifestações de poder milagroso do Santo.

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Carlos Augusto Figueiredo Monteiro (2002), ao falar do sentido geográfico nas

leituras dos espaços, relações e sujeitos lembra que, os seres humanos interiorizam certas

percepções sobre as divindades, por esse motivo, firma-se um vínculo indissociável entre o

real e o mítico.

Tuan (1980, p. 69) fala da força da percepção como um traço cultural das pessoas e

não simplesmente uma idiossincrasia pessoal, ―portanto, é muito mais significante descobrir

casos em que as percepções dos indivíduos têm sido moldadas pelo dogma tradicional [...].‖ A

religião com seus preceitos, norma, mandamento e prescrição, de certa forma constitui uma

tradição, assim, inferimos que, a verdade na percepção do fiel não tem sua origem

exclusivamente na objetividade das evidências dos fatos por ele vivenciado no e com o Rio,

mas, sim, na subjetividade admitida como parte da sua experiência com o sagrado.

Na Romaria do Senhor do Bonfim ―o Rio Piranhas é afeto líquido e simbólico para

aqueles que com ele se envolvem.‖ (RAMOS, 2013, p. 88). Ele também pode provocar

momentos de tragédia, comoção e tristeza. No dia 14 de agosto de 2013, durante o último

trabalho de campo realizado na Romaria presenciamos a ocorrência de uma morte por

afogamento no período da manhã, por volta das dez horas, horário em que, normalmente há

dezenas de romeiros tomando banho.

Ao buscarmos informações com a Polícia Militar fomos informados que a vítima era

um jovem de vinte quatro anos que sofria de desmaios (provável epilepsia), estava

embriagada e, provavelmente, caiu na água e ninguém percebeu vindo a falecer afogado.

Entre os muitos curiosos querendo ver corpo, um romeiro conhecido da vítima informou que

―um banhista tropeçou no corpo e avisou a polícia, mas quando retiraram o corpo da água já

estava sem vida‖.

Esse fato causou muita comoção e tristeza entre os romeiros, se percebia comentários

sobre o afogamento por todos os lugares por onde se passava. Por todo resto do dia esse

assunto foi muito comentado. Durante a Missa e a reza do Terço a noite, por sugestão dos

frades e da Família ―dona do Santo‖, foram feitas orações para a alma do falecido.

Segundo os romeiros mais antigos de vivência na Romaria, esse tipo de incidente é

muito raro acontecer durante os festejos do Senhor do Bonfim. Em momento algum os

romeiros atribuem culpa às águas pelo o acontecimento. A quantidade de banhistas,

pescadores, transeuntes e admiradores do Rio não diminuíram. O elevado calor durante o dia,

juntamente com as devoções e as vontades recreativas contribuem muito para um fluxo

intenso de romeiros que procuram as águas do Rio no período da Romaria.

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A prática de banho coletivo nos rios da região onde a Romaria do Senhor do Bonfim

está localizada é uma tradição que segundo Ramos (2013, p. 99), ―se assemelha à tradição das

Romarias populares aos santuários religiosos.‖ A água é também um ornamento da paisagem

da região e do espaço sagrado da Romaria. Os romeiros buscam nas águas do Rio um tipo de

intimidade que só a água proporciona. Segundo Bachelard (1989, p. 6), essa intimidade é uma

―intimidade bem diferente das que as ―profundezas‖ do fogo ou da pedra sugerem um tipo de

destino, um destino essencial que metamorfoseia incessantemente a substância do ser‖.

Talvez, a relação dos romeiros com o Rio traga seus aspectos culturais mais

expressivos que são dinamicamente recriados: o mobilismo heraclitiano, ―uma filosofia

concreta, uma filosofia total. Não nos banhamos duas vezes no mesmo rio, porque, já em sua

profundidade, o ser humano tem o destino da água que corre.‖ (BACHELARD, 1989, p. 6).

Os peregrinos romeiros, assim como a água são elementos transitórios. O movimento

marca a relação dos romeiros com o rio. Essa mobilidade se constitui em gestos simbólicos

como rezar em frente ou dentro do Rio, fazer o sinal da cruz com água do Rio, depositar

papeis com recado ou pedido na correnteza das águas, etc. e, também práticas de lazer como,

por exemplo, o banho de mergulho, o passeio de canoa e até mesmo a viagem de chegada ou

volta pra casa, bem como a pesca esportiva e para alimentação, conforme as figuras 58 e 59.

Quando perguntamos dois romeiros que se dirigiam ao Rio com ―varas de pesca‖, um

deles respondeu ―a gente mora em Palmas, mas quando chega aqui vem direto para beira do

Rio, é bom demais pra descansar, a gente vem pescar é mais mesmo pra descansar, esfriar a

cabeça! Todo ano nós faz isso!‖ (Depoimento coletado em 15 de agosto 2013. Transcrição

literal).

Figura 58 – Transporte de passageiros/as Figura 59 – Acampamento às margem do Rio

Fonte: Carvalho, J. R., 2012. Fonte: Carvalho, J. R., 2013.

no Rio Piranhas Piranhas

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Existem os donos de barcos que aproveitam o período da Romaria para transportar

romeiros das praias e portos do Araguaia para o Povoado do Bonfim. Entre esses passageiros,

muitos contratam os serviços de barcos apenas para contemplar a paisagem do Rio com suas

margens (desmatadas), mas povoada de aves silvestres, tartarugas e tracajás. Um desses

barqueiros, morador de Conceição do Araguaia expressou sua relação simbólica e afetiva com

as águas dos rios da região assim:

Eu sou ―o filho do Araguaia‖, pescador profissional que tem consciência da

preservação do Rio e condeno a forma poluidora como os banhistas se comportam

no Rio durante a Romaria, e a falta de preocupação ambiental dos órgãos do Estado.

Eu chamo esses banhos de ―veraneio predatório‖, veranista vem, depreda, faz

sujeira... (Entrevista cedida em 15 de agosto de 2013. Transcrição literal).

Perguntamos sobre a fiscalização dos órgãos ambientais e outro barqueiro de

Araguacema se aproximou e respondeu de forma bastante emocionada:

Fiscalização fajuta..!não existe..! Oportunista. Ninguém aprende escrever sem ter

um professor, não adianta só vir e corrigir. Tem de educar primeiro. Tem uma

secretaria de meio ambiente ai... O Rio precisa respirar... o Rio tá virando um

lixeiro, ele só respira se nós cuidar da saúde dele.

Denotam-se nas falas dos romeiros barqueiros e pescadores, que suas relações com o

Rio vão além das necessidades imediatas da subsistência, elas comportam uma carga de

valores simbólicos e afetivos. Em consonância com o pensamento de Gratão (2007, p. 88), de

que a partir da convivência das pessoas com o Rio ―é possível fazer uma geografia do ponto

de vista geral de uma reflexão sobre as atitudes humanas no mundo‖.

Nos depoimentos dos barqueiros e pescadores percebe-se a ética ambiental que

permeia o olhar e as opiniões geográficas dos mesmos sobre os problemas externos trazidos

para o Rio, uma espécie de territorialidades transitórias sobre o espaço do Rio, que ameaça a

vida e a relação mais harmoniosa dos ―filhos do Rio‖ com o lugar, com a ecologia das águas.

O propósito desse item da investigação, pelas águas do Rio Piranhas, foi procurar por

meio das vozes dos sujeitos entrevistados, os meandros das relações dos romeiros com a

substância água que, conforme Bachelard (1989) é a valorização da pureza. ―Líquido vivo‖

que os romeiros ao mergulharem nele, de certa forma, almejam simbolicamente alcançar

purificação.

O mergulho nas águas do Rio Piranhas ocorre no sentido literal e simbólico, como

experiências que fazem brotar os significados que os enraízam no lugar. Vivência que tem

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gerado uma relação topofílica desses peregrinos territorializados transitoriamente no espaço

sagrado da Romaria. Relação que se transforma em lugar-memória, afeto e apego ao ―lugar

sagrado que lhes acolhe e lhes oferece o objeto sagrado‖ (RAMOS, 2013, p. 104).

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Até para o ano, se nós for e vir

Até para o ano, se nós for e vir

Se nos for e vir, se deus nos ajudar

Até para o ano pra nós festejar

Até para o ano pra nós festejar

Pra nós festejar, finalizar também

Deus nós dê a glória para sempre amém

Deus nós dê a glória para sempre amém

Senhor do Bonfim adeus, adeus até um dia

Abra para o ano se nós for e vir

Abra para o ano se nós for e vir

(Ladainha das rezadeiras do Senhor do Bonfim)

Uma das razões da escolha dessa metáfora como epígrafe, foi ressaltar o quanto o

pensamento metafórico ignora os limites bem definidos da classificação científica. Parte das

significâncias e simbolismo do Senhor do Bonfim na vida dos fieis está sintetizada nessa

ladainha das ―rezadeiras‖ da Romaria. Por esses versos, emergem significados das

experiências religiosas mais profundas que se acumularam através do tempo. No contexto,

essas experiências profundas se revestem de caráter sagrado.

Assim, essa epígrafe pode ser lida como o mapa de significados da enlaçadura que une

romeiro e Romaria no Senhor do Bonfim. A relação afetiva de milhares de fiéis com o Santo e

o lugar, expressa nesses versos, pode ser considerada a força simbólica, que substancia as

territorialidades que constituem o espaço sagrado da Romaria em território da religiosidade.

Durante a viagem que fizemos com um grupo de romeiros peregrinos da Romaria do

Senhor percebemos que no caminhar para a Romaria, os fiéis desenvolvem seu espaço de

afeto com esse segundo lugar, o espaço do rito, onde devoção alcança seu apogeu. ―Essa

mobilidade é rito no sentido em que ele funciona como fator de integração religiosa,

legitimador de crença, bem como hierarquizador de poderes, valores e prioridades, e como

mobilizador de energias e como momento de exaltação‖ (REVIÉRE, 2008, p. 38). A

participação no ritual faz com que o lugar, seja, ele mesmo, incluído na intensidade do ato

religioso. No ato de exaltação, o religioso parece não sentir a ruptura com seu espaço do

cotidiano.

A fé, os símbolos e a mobilidade apresentados nessa pesquisa são inerentes à cultura

religiosa do catolicismo popular. Como cultura, essas práticas possuem discursos e

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territorialidades que formam territórios e, são ao mesmo tempo espaços culturais e espaços

sociais na Romaria. As territorialidades religiosas dos romeiros na Romaria produzem o

espaço social que é vivenciado pelos mesmos numa relação dialética. Por meio de um

entrelaçado de signos, figuras e sistemas espaciais, os romeiros engendram o espaço sagrado

da Romaria, onde os territórios sociais e culturais se estabelecem.

Constata-se na Romaria do Senhor do Bonfim que, o espaço sagrado é um soma de

territórios substanciados por atividades e práticas religiosas realizadas e vividas pelos

romeiros e as duas instituições que organizam o Festejo, a Família Francisco Almeida e Igreja

Católica, por meio da Paróquia da Divina Providência com sede em Araguacema.

Outra das interpretações que a pesquisa proporcionou estabelecer foi a disputa

territorial entre a Família ―dona do Santo‖ e a Igreja Católica. Conflito territorial instaurado

no âmago das duas instituições, mas que tem um caráter velado, camuflado em aparentes

cordialidades e cooperações entre uma instituição e a outra, como percebemos ao final da

procissão a Imagem do Santo ser colocada sobre o altar no palco da Igreja Católica e, durante

a Missa, parte dos irmãos permanecer ao lado do Santo.

Essa cena sugere diferentes interpretações, no entanto, duas nos parecem mais

pertinentes, uma seria que, a presença dos guardiões do Santo ―junto‖ aos frades pode

representar para os fiéis a vitória da Igreja na disputa pelo domínio total da organização e

realização litúrgica da Festa.

A Romaria e o Santo estariam entregues à instituição religiosa romana. A outra seria, o

Santo e a Família no altar dos frades podem ser interpretados ainda pelos fiéis como a

demonstração de uma relação harmoniosa entre os ―donos do Santo‖ e a Igreja, uma forma de

negar o conflito perante o conjunto dos romeiros.

A Romaria do Senhor do Bonfim tornou-se um território da Família ―dona do Santo‖,

apropriado por meio das territorialidades na dimensão material das condições de habitação,

alimentação e subsistência e na dimensão simbólica por meio da devoção ao Santo Senhor do

Bonfim.

Talvez a dimensão simbólica religiosa ali vivida contenha formas de reterritorializar

experiências vividas em sua região de origem, pois mesmo estando em um local distante, a

cultura religiosa preserva e revela crenças, valores e significados presentes na orientação das

práticas e experiências de vida dessa Família. Mesmo se reterritorializando nas ―Bandeiras

Verdes‖ essa Família traz na sua trajetória um histórico de desterritorializações.

Ao final desse estudo inferimos que é a constituição do território (simbólico e social)

que vivifica a Romaria e a torna em um espaço sagrado na concepção dos fiéis do Senhor do

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Bonfim. É certo que a hierofania é um elo entre os romeiros e o Santuário, mas ele só se torna

um espaço sagrado por meio das territorialidades religiosas – produtoras de relações de

alteridades – as maneiras dos romeiros viverem e conviverem com os outros durante o tempo

sagrado da Romaria, que os aproxima tornando um ―coletivo religioso‖, com finalidades mais

ou menos comuns entre eles.

Essa cumplicidade proporciona relações mais confiáveis e seguras que afastam o

perigo do caráter instável de outros espaços, que contém um baixo grau de convivialidade

como pondera Bonnemaison. Os territórios inerentes ao espaço sagrado da Romaria do

Senhor do Bonfim diferem dos territórios refúgios, comuns aos meios urbanos, minúsculos e

padronizados, em que seus habitantes procuram se proteger das mais diversas formas de

agressões. Os territórios dos romeiros são configurados em relações de confiança e intimidade

com milhares de pessoas que peregrinam em busca de soluções para os problemas do

cotidiano e da transcendência espiritual.

A partir da nossa vivência e experiência no estudo da Romaria constatamos que a

mobilidade que caracteriza a Romaria tem sua pausa nas territorialidades internas ao espaço

sagrado, pois o ―território é enraizamento‖, condição evidenciada nas falas e práticas dos

romeiros. As práticas religiosas dos fiéis são marcas expressas de forma intensa que

transformam o Povoado em um lugar de pertencimento e devoção. Nele, os fiéis se voltam

para o Santo como maior geossímbolo e, para ele direcionam suas crenças em busca de

soluções e significados para suas existências.

É inegável o conteúdo geográfico em um espaço como a Romaria do Senhor do

Bonfim. O teor geográfico da Romaria já se apresenta na sua origem imbricada na trajetória

socioespacial da Família Francisco Almeida que, no quadro de memória dos membros mais

idosos, é composta de episódios de mobilidade, errância e mistério, pelo fato de na condição

de retirantes, fugindo de um conflito armado, ―a Família foi afortunada‖ em encontrar a

imagem do Santo que passou a ser desde então, seu símbolo de proteção.

Em busca das ―Bandeiras Verdes‖ essa Família camponesa conservou e territorializou

uma das tradições mais marcantes do catolicismo popular que é a Romaria ao iniciar a

celebração de devoção à Imagem do Santo na terceira década do século passado.

A interpretação geral dos significados simbólicos do sagrado e a relevância deste nos

rituais, nos leva a inferir ainda que, a força da fé mobiliza pessoas e neutraliza qualquer sinal

de cansaço entre os devotos do Senhor do Bonfim quando se aproxima o tempo sagrado da

Romaria.

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Para o romeiro, peregrinar é um ato de penitência que aos olhos do Santo merece ser

recompensado com alguma graça. Peregrinar ao encontro do lugar sagrado pode representar

uma reviravolta na vida de quem o faz. Percebemos, junto aos fiéis do Senhor Bonfim, que o

lugar sagrado da Romaria tem um sentido de fonte de dinamismo e emanador de forças vitais.

A peregrinação significa a passagem de um lugar superficial para um lugar tido como central

e profundo.

A reconstrução parcial da trajetória socioespacial da Família Francisco Almeida nos

possibilitou estabelecer relações entre sua mobilidade e a profecia das ―Bandeiras Verdes‖.

Mito que povoou e ainda povoa o imaginário de milhares de camponeses nordestinos

incentivando-os a migrarem em direção à Amazônia nas primeiras décadas do século XX.

Esse movimento migratório foi responsável pela territorialização às margens do Rio

Araguaia e Tocantins da cultura de devoção aos santos e práticas devocionais repletas de

elementos destoantes do catolicismo oficial. O catolicismo popular instalou-se, assim, no

território como tradição herdada principalmente, da Região Nordeste. Nesse contexto, o lugar

simbólico das ―Bandeiras Verdes‖ possibilitou as territorializações das práticas religiosas que

fundaram simbólica e ontologicamente o mundo dos camponeses no vale do Araguaia.

Com efeito, entendemos que a presente pesquisa iniciou um estudo geográfico na

Romaria do Senhor do Bonfim, o que pode ser retomado por pesquisas posteriores que, além

do caminho percorrido por nós no campo do simbólico e suas interpretações, possam abarcar

outras dimensões relevantes da festa, como, por exemplo, a econômica e a política, aspectos

que foram apenas tangenciados nesse trabalho e que merecem deslindamentos mais

aprofundados.

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APÊNDICES

APÊNDICE A - Roteiro de perguntas das entrevistas/conversas realizadas com os

romeiros do Senhor do Bonfim

1. Nome do/a entrevistado/a

2. Lugar de origem

3. Há quanto tempo vem à Romaria?

4. Por que vem à Romaria?

5. Você é devoto do Senhor do Bonfim?

6. Qual o significado da Romaria do Senhor do Bonfim para você?

7. O que você sente quando está organizando a viagem para a Romaria?

8. O que você sente quando está aqui na Romaria?

9. O que fez você escolher esse santo para adorar e fazer seus pedidos e promessas?

10. Se a Romaria acontecesse em outra época do ano você viria também?

11. O que mudou na Romaria desde que você à frequenta?

12. O que você considera sagrado aqui na Romaria? Por quê?

13. O que não é sagrado aqui na Romaria? Por quê?

14. Você se considera um romeiro? Por quê?

15. Qual sua relação com o Rio Piranhas aqui na Romaria?

16. Qual a importância do Rio para a Romaria? Por quê?

17. Qual é a sua opinião sobre a disputa entre a Igreja e a Família Almeida pelo Santo e a

Romaria?

18. Em sua opinião quem deve ficar com o Santo?

19. Em sua opinião quem deve organizar e realizar a festa da Romaria?

20. Qual parte da Romaria você mais gosta? Por quê?

21. Em sua opinião, o que tem de mais tradicional na Romaria do Senhor do Bonfim?

22. Você é a favor que acabe a reza do Terço pela Família Almeida?

23. Você é a favor que a Igreja mude as formas de celebrações na Romaria? Por quê?

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APÊNDICE B - Roteiro da entrevista realizada com um frade dirigente da Paróquia de

Nossa Senhora da Divina Providência de Araguacema

1. A Igreja reconhece o Senhor do Bonfim?

2. O que significa para a Igreja festejar o Senhor do Bonfim?

3. Qual a relação da Igreja com a Família Francisco Almeida dona do Santo?

4. Na opinião da Igreja, o que a Romaria significa para o povo, os romeiros?

5. O que a Igreja considera sagrado na Romaria do Senhor do Bonfim?

6. O que a Igreja prevê para o futuro da Romaria do Senhor do Bonfim?

APÊNDICE C - Roteiro de observação no trabalho de campo

1. Interações espaciais ritualísticas

2. Outros tipos de interações

3. As crenças

4. Os gestos

5. Emoções

6. Extensão do espaço sagrado: físico e simbólico

7. Características do encantamento

8. Experiências dos romeiros vividas com o sagrado

9. Como/quando surgiu o povoado e a Romaria do Senhor do Bonfim

10. A origem e a trajetória da Família que fundou a Romaria

11. A relação da Igreja Católica com a Romaria

12. As manifestações de sacrifícios dos romeiros

13. A origem e a história do Santo

14. Características dos objetos sagrados da Igreja Católica

15. Percurso e tempo da procissão e suas características (andor, organizadores, condutores

do Santo, ornamento do andor, expectativa dos fiéis...)

16. O Rio Piranhas como caminho para a Romaria

17. A qual bispado a Paróquia de Araguacema está subordinada

18. A quem pertence o terreno do Povoado do Bonfim

19. Que autores escreveram sobre a história de Araguacema

20. Os objetos que aparecem no caminho, na peregrinação dos romeiros

21. Os caminhos e formas e suas funções na peregrinação dos romeiros

22. Os símbolos sagrados materiais e imateriais

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23. Os rituais da Igreja e da Família ―dona do Santo‖

24. Os rituais individuais

25. Montagem e desmontagem da cidade que recebe os romeiros

26. Como os romeiros se apropriam do espaço sagrado

27. Características do templo, do altar e do Santo

28. Como a Igreja e a Família operam na condução da Romaria

29. A presença do Estado na Romaria

30. Sensação de segurança na Romaria

31. A relação dos romeiros com o Rio Piranhas

32. Previsão de público na Romaria

33. Fontes de renda da população do Povoada

34. Histórias de milagres atribuídas ao Santo

35. Local de origem dos romeiros

36. Tipos de transportes que conduzem os romeiros