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Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação IX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação da Região Nordeste – Salvador – BA 1 Estudo Comparativo entre Mangás e Comics. 1 A Estruturação das Páginas como Efeito de Narratividade. André Luiz Souza da Silva 2 Faculdade de Comunicação – Universidade Federal da Bahia Resumo: Na perspectiva de um cunho conceitual que saia do âmbito histórico e geográfico sobre os mangás, que amplie a sua definição para além da idéia do pólo de produção esse breve texto tenta apontar alguns caminhos para a construção do conceito de mangá a partir da observação estrutural das suas páginas a fim de proporcionar o efeito de sentido narrativo. Para tanto usaremos como base teórica às concepções sobre a decomposição e a integração das vinhetas 3 nas páginas de histórias em quadrinhos denominados respectivamente de Tabularidade (FRESNAULT-DERUELLE: 1976) e Artrologia (GROENSTEEN: 1999). Nesse texto exibiremos algumas páginas dos mangás e comics 4 como método comparativo com o objetivo de distinguir as diferenças e assinalar as semelhanças de ambos os gêneros. Palavras-Chave: Mangás. Comics. Histórias em Quadrinhos. 1. Estruturação – páginas dos mangás e das comics A questão que devemos considerar para diferenciar os mangás das comics refere-se à estruturação das páginas, isto é, as maneiras como os quadrinhos são dispostos, arranjados no espaço de uma revista. Historicamente lembramos na transição do século XIX para o século XX, as histórias em quadrinhos começaram a ganhar espaço nos jornais. Esses quadrinhos na configuração de tirinhas de jornal (comics strip) 5 serviram de precursores para a estruturação das hqs como conhecemos hoje. Isto é, elementos da estrutura básica dos quadrinhos como a vinheta (o quadro), os balões e as legendas foram desenvolvidos ao longo do tempo com as publicações das histórias em jornais. Yellow Kid de Richard Outcault foi à primeira tirinha que se tem notícia. As histórias do menino amarelo começaram no New York Journal e posteriormente passaram a ser publicadas New 1 Trabalho apresentado ao GT de Produção Editorial e Cultural, do IX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação da Região Nordeste. 2 Doutorando em Comunicação e Cultura Contemporâneas da Faculdade de Comunicação da Bahia. E-mail: [email protected]. 3 Conhecido também como quadrinho. 4 Denominação dada dos quadrinhos de super-heróis tais como Superman, Batman e outros. 5 Também conhecidas como tira cômica, tira de jornal ou tira diária. Denominações normalmente usadas para traduzir o termo comic strips. Estruturalmente as tirinhas são caracterizadas por uma série de três a quatro vinhetas dispostas horizontalmente. Nem sempre a temática das tirinhas são de caractere humorístico. Podemos encontrar também as de aventura, mistério, espionagem, policial, drama, super-heróis entre outras. Elas geralmente são diárias publicadas em jornais, revistas ou na Internet, neste último caso denominadas de webcomics.

Estudo Comparativo entre Mangás e Comics. A Estruturação ... · Os quadrinhos de Will Eisner, por exemplo, adquiriram um status representacional considerável no que diz respeito

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Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação IX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação da Região Nordeste – Salvador – BA

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Estudo Comparativo entre Mangás e Comics.1

A Estruturação das Páginas como Efeito de Narratividade.

André Luiz Souza da Silva2 Faculdade de Comunicação – Universidade Federal da Bahia

Resumo: Na perspectiva de um cunho conceitual que saia do âmbito histórico e geográfico sobre os mangás, que amplie a sua definição para além da idéia do pólo de produção esse breve texto tenta apontar alguns caminhos para a construção do conceito de mangá a partir da observação estrutural das suas páginas a fim de proporcionar o efeito de sentido narrativo. Para tanto usaremos como base teórica às concepções sobre a decomposição e a integração das vinhetas3 nas páginas de histórias em quadrinhos denominados respectivamente de Tabularidade (FRESNAULT-DERUELLE: 1976) e Artrologia (GROENSTEEN: 1999). Nesse texto exibiremos algumas páginas dos mangás e comics4 como método comparativo com o objetivo de distinguir as diferenças e assinalar as semelhanças de ambos os gêneros.

Palavras-Chave: Mangás. Comics. Histórias em Quadrinhos. 1. Estruturação – páginas dos mangás e das comics

A questão que devemos considerar para diferenciar os mangás das comics

refere-se à estruturação das páginas, isto é, as maneiras como os quadrinhos são

dispostos, arranjados no espaço de uma revista.

Historicamente lembramos na transição do século XIX para o século XX, as

histórias em quadrinhos começaram a ganhar espaço nos jornais. Esses quadrinhos na

configuração de tirinhas de jornal (comics strip)5 serviram de precursores para a

estruturação das hqs como conhecemos hoje. Isto é, elementos da estrutura básica dos

quadrinhos como a vinheta (o quadro), os balões e as legendas foram desenvolvidos ao

longo do tempo com as publicações das histórias em jornais. Yellow Kid de Richard

Outcault foi à primeira tirinha que se tem notícia. As histórias do menino amarelo

começaram no New York Journal e posteriormente passaram a ser publicadas New

1 Trabalho apresentado ao GT de Produção Editorial e Cultural, do IX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação da Região Nordeste. 2 Doutorando em Comunicação e Cultura Contemporâneas da Faculdade de Comunicação da Bahia. E-mail: [email protected]. 3 Conhecido também como quadrinho. 4 Denominação dada dos quadrinhos de super-heróis tais como Superman, Batman e outros. 5 Também conhecidas como tira cômica, tira de jornal ou tira diária. Denominações normalmente usadas para traduzir o termo comic strips. Estruturalmente as tirinhas são caracterizadas por uma série de três a quatro vinhetas dispostas horizontalmente. Nem sempre a temática das tirinhas são de caractere humorístico. Podemos encontrar também as de aventura, mistério, espionagem, policial, drama, super-heróis entre outras. Elas geralmente são diárias publicadas em jornais, revistas ou na Internet, neste último caso denominadas de webcomics.

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Fig. 01. Tirinhas de Yellow Kid. Nelas podemos observar que a fala do personagem não era representada com os balões, mas colocadas na camisa do mesmo. A famosa cor amarela da camisa do personagem só foi

incorporada em fevereiro de 1885.

York Journal American. Portanto, na soma dessas duas fases de Yellow Kid são treze

anos (1885-1898) entre publicações inicialmente esporádicas e posteriormente

publicações diárias. (fig. 01)

As tirinhas têm como uma das

suas principais características a

horizontalidade. As vinhetas são

dispostas uma ao lado da outra primando

à produção de uma seqüência linear da

esquerda para direita quando nos

deparamos com o ato de leitura. O

formato da tirinha estava atrelado ao

espaço disponível na página do jornal. É

de praxe um espaço que possa

comportar várias tiras de autores

diferentes. Mais tarde histórias de outras modalidades de tirinhas como as de aventura e

ficção: Tarzan (Hal Foster), Flash Gordon (Alex Raymond) e das aventuras de Spirit

(Will Eisner) alcançaram grande sucesso e popularidade. Essas tirinhas têm como o seu

principal aspecto a novelização6. Gubern (1989, p. 30), afirma que essas séries em

quadrinhos trazem consigo formas de indexação entre as séries de histórias e é o

elemento que permite a construção de conjuntos de ações interligadas que podem

ocorrer não só entre uma tira e outra do mesmo título, como também entre as vinhetas, a

fim de instaurar o elemento de suspense.7

Dessa maneira imaginamos que a horizontalidade da leitura serve como elemento

de reforço, quase como uma espécie de vetor ou seta para conotar a continuação da

narrativa na vinheta ou tira que virá. (fig. 02)

A disposição espacial dos elementos gráficos nas páginas das histórias em

quadrinhos, com o passar dos anos, saiu de uma estruturação horizontal, como nas

tirinhas de jornal, para uma disposição nas quais os quadrinhos aparecem em tamanhos

diferentes. Como bem observa Fresnault-Deruelle (1976, p. 16), as páginas de hqs

6 Para Fedel (2004) a novelização seria o caráter folhetinesco o qual promove a divisão das histórias em capítulos, muitas com duração de quase um ano, pode desenvolver no colecionador novos desejos, compelindo-o a sua compra. 7 Lembramos que quando se trata da continuação de uma tira para outra, de uma mesma série, os jornais têm como costume a publicação de um trecho da história no dia seguinte. Assim, se aposta na fidelidade do leitor pautado na sua curiosidade e no intuito de desmanchar o suspense. Ao mesmo tempo em que se desvenda um mistério ocorre uma nova situação intrigante. Renova-se, portanto, o ciclo, pois o leitor só terá a resposta desse novo momento na próxima tira.

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Fig. 02. Tira de Garth de Steve Dowling. O suspense é instaurado no último quadrinho.

Fig. 03. Seqüência de quadrinhos de uma página de Asterix, a decupagem leva a leitura linear do trecho da história. (Asterix, Le Grand Fossé, p. 39).

evoluíram ao longo da sua história. Elas não são mais agrupamentos horizontalizados

das representações seqüenciais narrativas, dadas pela disposição lado a lado dos

quadros, como ainda ocorre no caso das tirinhas de jornal.

Segundo Fresnault-Deruelle (1976, p. 17), a composição das páginas deve

funcionar através da integração das suas variáveis visuais (forma, cor, linha, etc.).

Assim, o espaço em uma página de hq ganha o patamar de significação para o

entendimento narrativo. Isso implica em uma forma de leitura que sai do parâmetro

linear para um tipo de leitura guiada pela distribuição dos elementos visuais na

superfície da página. O autor denomina essa configuração de estrutura tabular. Assim,

as formas e a disposição desses elementos já servem de instruções para a compreensão

da história.

Corroborando com a idéia sobre tabularidade das hqs, Groensteen (1999, p. 3-5)

afirma que, ao invés da fixação na decomposição das unidades construtivas elementares,

os estudos sobre as histórias em quadrinhos deveriam ser ampliados para uma dimensão

que contemplasse a integração e articulação dessas unidades visuais, já que estas

proporcionam a geração do seu discurso narrativo. O autor denomina esta integração

dos elementos visuais das hqs de artrologia8.

8 O termo artrologia vem do grego e significa articulação.

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Fig. 04. Página de X-Men na qual a disposição das imagens leva a uma leitura multilinear (X-Men - Widescreen, 2003, p. 22).

A artrologia, segundo Groensteen (1999, p. 27), ocorre em dois níveis:

1. De forma restrita, através da decupagem das imagens para fins de seqüenciamento

narrativo linear. Essa seqüência narrativa obedece ao mesmo eixo horizontal,

quando nos deparamos com textos verbais, percorrendo a superfície da esquerda

para direita (leitura ocidental) e de cima para baixo (Fig. 03);

2. De forma geral, através da integração das imagens para fins de seqüenciamento

multilinear. O seqüenciamento multilinear é composto por imagens-chave que

ativam a leitura através das suas unidades visuais mais pregnantes, tais como a

forma e as cores que se articulam. Assim, ocorre uma conexão das diversas imagens

no espaço da página, contribuindo também para o entendimento da narração (Fig.

04).

Fig. 05. Esquematização do leitor de leitura do exemplo anterior

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Fig. 06. Página de Valentina, de Guido Crépax, onde o princípio da “tabularidade” está em jogo a fim de produzir um sentido narrativo.

Fig. 07. Página de The Spirit (Will Eisner). A forma adquire função instrutiva para a compreensão da

história.

O leitor irá apreender essas figuras não como fragmentos isolados, mas como

imagens que estão interligadas a fim de produzir um sentido único. Essa integração

pode ocorrer tanto pelo uso de cores como de formas similares, proporcionando a quem

observa uma leitura multilinear. É muito comum também o recurso de imagens

entrelaçadas ou fusão das mesmas.

As linhas, por sua vez, funcionam como uma espécie de vetor ou guia para o

direcionamento do olhar. Essa leitura de primeiro nível geralmente ocorre tendo como

ponto de partida alguma imagem mais pregnante, isto é, alguma imagem que se

destaque em relação às outras, seja pela forma diferenciada, pelo seu tamanho, pela suas

cores, seja pela a sua posição na página. A partir daí, o olhar é guiado para as outras

imagens, em uma espécie de reconhecimento para que só posteriormente ocorra a leitura

ordenada tradicionalmente, isto é, uma leitura linear da esquerda para direita e de cima

para baixo. Fig. 05

Cabe lembrar que a inventividade dada pela disposição dos elementos visuais na

composição de uma página de histórias em quadrinhos não representa necessariamente

uma exclusividade do universo dos mangás. Artistas gráficos como Moebius, Will Einer

e Guido Crépax já trabalhavam com certa liberdade de exploração do espaço da página

em suas hqs rompendo, portanto, com o paradigma de uma leitura horizontalizada,

herdadas das tirinhas de jornal (Fig. 06).

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Fig. 08. Página desenhada por Jim Lee – o artista procura da o reforço narrativo através do destaque da personagem

Os quadrinhos de Will Eisner, por exemplo, adquiriram um status

representacional considerável no que diz respeito à adequação da configuração dos

quadrinhos e sua disposição na página para melhor contextualizar a fábula. (fig. 07)

O próprio Will Eisner, em seu livro Quadrinhos e arte seqüencial – demonstra,

através de alguns exemplos de páginas, uma possibilidade de ritmo ou de clima

narrativo através do efeito, denominado por ele de metaquadrinho. Isto é, a página é

vista primeiramente na sua totalidade, e só depois o leitor encontra percurso ou vetor

linear.

É preciso ter em mente que, quando o leitor vira uma página, ocorre uma pausa. Isso permite uma mudança de tempo, um deslocamento de cena; é a oportunidade de controlar o foco do leitor. Trata-se aqui, de uma questão de atenção e retenção. Assim como o quadrinho, a página tem de ser usada como uma unidade de contenção, embora também ela seja meramente uma parte do todo do composto em si (EISNER, 1999, p. 63).

Nos quadrinhos norte-americanos,

principalmente as comics produzidas a partir

de meados da década de oitenta por artistas

como Frank Miller, (Cavaleiro das Trevas),

Bill Sienkiewicz (Electra Assassina), Todd

Macfarlane (Homem-Aranha e Spaw), Jim

Lee (Capitão América, Os Vingadores), entre

outros, devem, em parte, o seu renome ao fato

de criarem páginas diferenciadas, através de

uma diagramação assimétrica. (fig. 08)

Também nos mangás maneiras

inusitadas de compor as páginas são tão

freqüentes quanto nas comics. Encontramos

personagens, onomatopéias ou vinhetas

sobrepostas em uma espécie de mosaico na

quais as imagens apontam para uma

determinada direção sugerindo ao leitor o

caminho para o seguimento narrativo. Nestes casos os balões acompanham os desenhos,

pois são eles os guias principais da leitura e não o inverso. A lógica, portanto, muda de

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Fig. 09. Página de “X” do grupo Clamp, na qual imagens

geométricas e sobreposições de imagens proporcionam uma

dinâmica visual.

uma leitura linear herdada da horizontalidade das tiras para uma diagramação mais

complexa, na qual a imagem-chave é o ponto de partida para uma leitura multilinear.

O que geralmente vemos nesses novos arranjos

são imagens que se destacam graficamente das

demais seja pelo seu tamanho, que normalmente

ocupam boa parte do espaço da página, seja pela sua

posição que necessariamente não precisa se encontrar

no alto para que possamos inferir com desenho

principal.

Portanto, mangás, possuem características marcantes,

principalmente aquelas do ponto de vista gráfico, que

os diferenciam das outras formas de histórias em

quadrinhos. Além daquelas, largamente citadas em

livros e em revistas especializadas, atreladas à

configuração dos personagens, tais como os olhos

grandes, as formas geométricas simplificadas,

existem outras igualmente importantes para o

entendimento do mangá, tais como a predominância

da produção em preto e branco, a leitura da direita

para esquerda, a preferência para a construção pela

narrativa que prioriza os elementos visuais em

detrimento dos elementos verbais e a integração dos elementos visuais ao espaço da

página. (fig. 09)

Alguns estudiosos como Sônia Luyten (2000) afirmam que esse apelo visual encontrado

nas histórias em mangás é uma herança de outras mídias tais como o cinema e a tv. Do

cinema, o legado seria algumas formas de enquadramentos de cenas, como por

exemplo, o close-up usado para destacar as expressões faciais dos personagens. Da tv, a

contribuição seria um ritmo narrativo mais acelerado e uma ênfase ao apelo da imagem.

A mídia impressa, ao sentir-se ameaçada, soube tirar proveito da televisão e adaptou-a aos quadrinhos. Isso, no Japão, se deu de modo mais intenso do que em outros países. A nova geração de desenhistas pós-televisão desenvolveu uma linguagem visual com o uso mínimo de palavras. LUYTEN (2000, p. 168)

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Fig. 10. 1ª seqüência (acima), representações de árvore, bosque e floresta respectivamente. A estrutura do ideograma da árvore seria

uma alusão, com certo grau de abstracionismo composto pela copa, tronco e raiz. Os outros ideogramas são a representações da

árvore em valores quantitativos. 2ª seqüência (abaixo) é (1) representação de força, conota uma figura humana arando a terra, (2) arrozal; solo dividido e cultivado e (3) homem, junção dos dois

primeiros ideogramas.

Ainda que possamos admitir essas influências vindas de outros meios de

comunicação de massa, cabe dizer aqui que essas afirmações precisam ser relativizadas

com outras possíveis influências assimiladas pelos artistas dos mangás ao logo da

história. Não podemos nos esquecer que a cultura e a arte japonesa de um modo geral,

da qual os mangás são originários teve sempre um forte apelo gráfico.

Partimos do pressuposto que nos mangás a ênfase em uma narrativa que

qualifica o texto visual em detrimento do texto verbal não é uma mera apropriação ou

transposição de um ritmo narrativo oriundo dos animês. Assim, não se trata de uma

simples estratégia encontrada pelos produtores para competir com outras manifestações

narrativas.

Só para exemplificar, a escrita do Japão, descendente do mandarim chinês, é

representado por grafismo com um forte valor icônico. Determinados ideogramas

(kanji) são representações dos seus referentes como uma árvore, um homem e assim por

diante. Mesmo tendo em conta que muitos desses ideogramas possuem um elevado grau

de abstração e que em

muitos casos são uma

combinação de um

grafismo com outro.

Assim, não podemos

ignorar a sua referência

imagética como fonte

estrutural.9 (fig 10)

O traço descritivo

acompanhou a arte

japonesa desde os seus

primórdios, principalmente

as ilustrações que

objetivavam delinear cenas

do cotidiano no país. Podemos citar, por exemplo, uma série de xilogravuras do século

XVII ao XIX de artistas japoneses, como Torii Kiyonobu e Nakajima Matabei, que

9 A escrita japonesa é composta de três sistemas: o kanji (ideograma), que conota figuras que possuem o referente às coisas do real, árvore, homem e etc, o katakana alfabeto silábico que representa palavras estrangeiras e o hiragana é usado para todas as palavras para as quais não existe kanji e terminações dos verbos e adjetivos.

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Fig. 11. Três exemplos de Xilogravuras, mostrando cenas do cotidiano japonês: Torii Kiyonobu. (Courtesan painting a screen -

1711), Nakajima Matabei (Shintoku's Souvenirs from Nara – 1713) e um desenho

anônimo (Kume spies on a gir - 1688-1704), onde encontramos tanto os aspectos descritivos como também a possibilidade

das imagens poderem contar histórias.

construíam imagens nas quais os efeitos de simultaneidade entre o narrativo e o

descritivo aparecem (fig. 11).

Nesses casos, há certa discrição no que diz respeito aos detalhes das

indumentárias, dos lugares e dos objetos. Entretanto, ainda assim, as pessoas

representadas desempenham algum tipo de ação, o que conota a uma possibilidade de

contar história.10

Assim, os artistas dos mangás, tendo este legado histórico e cultural, incorporam

graficamente nas suas narrativas momentos em que a ação efetivamente fica em

segundo plano, dando lugar a um caráter que sugere ao leitor mais uma contemplação

através de descrições de personagens ou ambientes. Isso reafirma as observações de

Mccloud (1995, p. 79) de que nos mangás as transições aspecto para aspecto ocorrem

com muito mais freqüência do que em outros tipos de histórias em quadrinhos (fig. 12).

As transições aspecto para aspecto incidem entre os quadrinhos. Uma cena inteira,

por exemplo, de um ambiente pode ser fragmentada em pedaços menores como se fosse

sugerido ao leitor, através de cada uma das imagens, que percorresse por meio da

vetorização do olhar cada quadro. Dessa forma, podemos contemplar a imagem inteira,

com a junção de todos os quadros.

10 Sobre essa possibilidade das imagens contarem histórias, podemos indicar a dissertação de Greice Schneider, intitulada O Olhar Oblíquo: narrativa visual na fotografia de Robert Doisneau, na qual aborda a possibilidade que certas imagens, no caso as produzidas por Doisneau, têm de suscitar a narratividade (SCHNEIDER, 2005).

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Fig. 12. Mccloud mostra, em seu livro, a transição aspecto-para-aspecto encontrado freqüentemente

nos mangás (MCCLOUD, 1995, p. 79).

Esta transição aspecto para aspecto, que tem como objetivo mais evidente a

contemplação do que a narração gera, nesses casos, um retardo ou, ao menos, uma

diminuição no fluxo narrativo, servindo, portanto, para explicar ou descrever um

personagem ou uma situação. Podemos, então, considerar esta transição como uma

espécie de parênteses dentro do encadeamento das ações narrativas, visando oferecer ao

leitor subsídios, através da contenção, para entender melhor os personagens e a história.

Esta característica mais descritiva

nos mangás gera um paradoxo,

principalmente se levarmos em conta

que este tipo de histórias em

quadrinhos, na maioria das vezes, tem

um ritmo de leitura muito rápido. O

seqüenciamento narrativo dos mangás

por meio de imagens que geralmente

estão sem o acompanhamento do texto

verbal leva ao privilégio do movimento,

da ação dos personagens.

Entretanto, devemos considerar

que, em alguns momentos, este ritmo

narrativo acelerado dos mangás é

substituído por uma velocidade mais

lenta. Esse ritmo cadenciado tem o

intuito de descrever lugares, pessoas ou

de criar determinadas situações

narrativas na qual o estado de tensão ou

de expectativa prepondera (fig. 12).

2. Considerações finais

A proposta desse artigo foi apontar alguns traços distintivos do gênero do mangá

com as histórias em quadrinhos de super-heróis denominadas de comics. Além da

possibilidade de distinção entre esses dois gêneros procuramos também levar em conta

que, assim como já acontece com outros gêneros midiáticos tais como as mini-séries

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Fig. 13. Seqüência narrativa do mangá a Ilha do Tesouro de Osamu Tezuka (1947) sem a

necessidade do texto verbal. Os quadrinhos lembram fotogramas.

televisivas e a telenovela11, por exemplo, esses dois tipos de histórias em quadrinhos são

influenciados mutuamente.

Se no primeiro momento os mangás sofreram a influência dos ilustradores

ocidentais nos primórdios do século XX, recentemente encontramos diante de um

fenômeno de “manganização” dos quadrinhos de super-heróis. Se retirarmos algumas

passagens em que à influência do mangá nos parece fruto de certo modismo, motivado

talvez pela possibilidade de aumento das vendagens, poderíamos nos arriscar em dizer

que os quadrinhos de super-heróis incorporaram em definitivo e de maneira mais

genérica a representação de imagens articuladas entre si; tão comuns aos mangás. Hoje

em dia é corriqueiro encontrarmos nas comics desenhos com um forte apelo visual

diagramados com o objetivo de aproveitar todo o espaço da página e levar ao leitor a

uma compreensão imagética da narrativa que antecede

o entendimento verbal.

Assim o efeito da tabularidade estudado por

Fresnault-Deruelle (1976) não é uma exclusividade dos

mangás e nem tão pouco é uma novidade das histórias

em quadrinhos em geral. Para isso basta relembrar os

trabalhos de Will Eisner e Guido Crepax

respectivamente realizados na década de 40 e 60.

Entretanto, a propagação de páginas com

composições mais arrojadas é um capítulo recente da

trajetória das comics. Já no mundo dos mangás o apelo

visual sempre este presente. Só para ilustrar podemos

citar um dos primeiros trabalhos de Osamu Tezuka em

1947 – a Ilha do Tesouro – que já continham

seqüências em quadrinhos sem a presença do texto

verbal semelhantes a fotogramas. (fig. 13)

O outro objetivo desse trabalho foi tentar

definir o mangá como gênero através das suas

11 Apesar de ser citado como exemplo e de reconhecermos sumariamente o borramento das fronteiras entre os gêneros televisivos não entraremos no mérito da questão. Neste caso são abordagens com características peculiares localizados em um universo que está fora do campo de pesquisa sobre as hqs em um primeiro momento. Para entendermos melhor as semelhanças e diferenças entre telenovela e mine-série sugerimos a pesquisa de doutorado da Faculdade de Comunicação da UFBA de Fernando Carrasco (2005), intitulado O personagem histórico “Giuseppe Garibaldi” e suas necessidades dramáticas na obra de ficção televisiva “A Casa das Sete Mulheres”. Que se encontra em andamento.

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Fig. 14. Em o Espinafre de Yukiko de Frédéric Boilet (2001), os traços cartunizados dos

personagens são substituídos por desenhos mais realistas, quase que fotográficos. Entretanto, o ritmo narrativo permanece com um forte apelo

visual mais comum aos mangás.

características internas como a morfologia dos personagens e tipo de ambientação.

Evidentemente fica a predominância de uma construção física dos personagens mais

conhecidas como figuras cartunizadas de aparência geometrizada, olhos grandes e boca

pequena. Assim, com essas características, fica fácil perceber a diferença entre os

personagens de mangá e os das comics.

Entretanto, não podemos nos

esquecer que vários artistas que

desenham mangás procuram desenvolver

o seu estilo próprio e em alguns casos

costumam sair dos dogmas da construção

morfológica que consagrou esse gênero.

Por exemplo, Frédéric Boilet optou por

uma representação mais realista dos seus

quadrinhos como a configuração de tipos

e ambientes que beira ao fotográfico.

(fig. 14)

Essa nova maneira de desenhar os

mangás denominou-se de nouvelle

manga.12 Assim sendo, preferimos optar

com a caracterização de um ritmo

narrativo rápido e de ênfase visual para

eleger como características mais

marcantes, porém não exclusivas, na

definição dos mangás como um gênero de

histórias em quadrinhos. A narração acelerada com o seu seqüenciamento basicamente

composto por imagens parecer ser a chave-mestra para o entendimento dos mangás

como gênero específico do universo das histórias em quadrinhos e o diferencial

primordial entre os mangás e as comics.

12 Segundo o manifesto encontrado no site oficial de Frédéric Boilet http://www.boilet.net/fr/nouvellemanga_manifeste_1.html o nouvelle manga procurar privilegiar o cotidiano em detrimento as histórias de ação de super-heróis e incorpora o penso da narrativa visual em suas histórias.

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Referências

BOILET, Frédéric. Manifeste de la Manga. Disponível em : <http:// http://www.boilet.net/fr/nouvellemanga_manifeste_1.html> Acesso em: 01 de dez. 2006 ECO, Umberto. Apocalípticos e integrados. 5. ed. São Paulo: Perspectiva, 1993. FEDEL, Agnelo. O Desejo de Colecionar histórias em Quadrinhos. Disponível em : <http://www.mundocultural.com.br/artigos/artigo.asp?artigo=777> Acesso em: 27 de nov. 2006 FRESNAULT-DERUELLE, Pierre. Du linéaire au tabulaire. Communications. n. 24, p 7-23, Paris, SEUIL, 1976. GRAVETT, Paul. Mangá – Como o Japão Reiventou os Quadrinhos. São Paulo: Conrad, 2004. GROENSTEEN, Tierry. Système de la bande dessinée. Paris: PUF, 1999. GUBERN, Román. La narration iconique au moyen d’images fixes. In : Degrés. 59 (1989) : pp. b-1, b-30.

LUYTEN, Sônia. Mangá: o poder dos quadrinhos japoneses. São Paulo: Hedra, 2000. MCCLOUD, Scott. Desvendando os quadrinhos. São Paulo: Markon Books, 1995. PICADO, José. Os Desafios Metodológicos da Leitura de Imagens: Um Exame Crítico da Semiologia Visual. Revista Fronteiras Estudos Mediáticos, Porto Alegre-RS, v. 4, n. 2, p. 56-70, 2003. SCHNEIDER, Greice. O Olhar Oblíquo: narrativa visual na fotografia de Robert Doisneau. 2005. 147 f. Dissertação (Mestrado em Comunicação) – Escola de Comunicação, Universidade Federal da Bahia, Salvador. SILVA, André. O Herói na Forma e no Conteúdo: Análise Textual do Mangá Dragon Ball e Dragon Ball Z. 2006. 133 f. Dissertação (Mestrado em Comunicação) – Faculdade de Comunicação, Universidade Federal da Bahia, Salvador.