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Estudo Semiolinguistico de O Caso Da Vara

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O CASO DA VARA UM ESTUDO SEMIOLINGÜÍSTICO

DO CONTO MACHADIANO E O ENSINO DE LÍNGUA

Nadja Pattresi de Souza e Silva (UFF) [email protected]

INTRODUÇÃO

Esse trabalho propõe uma análise do conto “O caso da Vara”, de Machado de Assis, com base em pressupostos da Teoria Semio-lingüística de Análise do Discurso de Patrick Charaudeau (2008). Pretende-se também apontar para uma proposta de ensino calcado na aliança entre o sentido de língua e o sentido de discurso.

Para tanto, três blocos centrais integram o trabalho. O primei-ro dedica-se à apresentação dos princípios teóricos da Semiolingüís-tica que alicerçarão a análise, quais sejam: o modo de organização do discurso narrativo, focalizado a partir dos actantes e personagens, e o contrato de comunicação. A segunda seção diz respeito ao estudo do corpus, em que se incluem uma breve contextualização social, histó-rica e literária da época em que viveu Machado de Assis; a explicita-ção das relações estabelecidas entre categorias de língua e de discur-so, bem como dos elementos teóricos previamente discutidos. Na úl-tima seção, apresentam-se comentários acerca das contribuições que tal abordagem do texto pode trazer para o ensino de língua nos seg-mentos fundamental e médio.

PRESSUPOSTOS TEÓRICOS

O modo de organização do discurso narrativo

Charaudeau (2008) apresenta o modo narrativo a partir da sua função de contar e narrar, que nos leva a conhecer um mundo consti-tuído no decorrer de uma sucessão de ações encadeadas umas às ou-tras e motivadas por uma falta que se estabelece e que se busca su-prir, até culminar num desfecho.

O modo narrativo compreende uma dupla estruturação: uma organização lógica e uma organização da encenação narrativa. A or-

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ganização lógica compreende os movimentos de encadeamento e su-cessão, voltados para o mundo referencial; ao passo que a dimensão da encenação narrativa responde pelos mecanismos de construção do universo narrado em si, sob o encargo de um sujeito que narra e se relaciona ao destinatário da narrativa por meio de um contrato de comunicação.

Actantes e personagens

De acordo com Charaudeau (2008), os actantes se relacionam aos papéis discursivos que se constituem no universo narrativo e que abarcam, basicamente, aquele que age – agente – e aquele que sofre a ação – paciente. Acrescenta-se, ainda, que tais papéis caracterizam-se, ao longo da narrativa, por uma qualificação mais ou menos parti-cularizante, o que vai determinar sua própria função e modo de agir.

A partir daí, estabelece-se a sutil diferenciação entre persona-gens e actantes, uma vez que os primeiros são associados a formas especificamente qualificadas do actante, enquanto os últimos apro-ximar-se-iam de um modelo, uma construção arquetípica. Assim é que um único personagem pode assumir diferentes papéis narrativos ao longo da história e um mesmo actante pode ser representado por diversos personagens.

O Contrato de Comunicação

Em toda atividade comunicativa, existe uma troca regida por um projeto de fala específico que determina certo contrato de comu-nicação. A atividade linguageira caracteriza-se como uma encena-ção, uma mis-en-scène, nas palavras do autor, em que vários atores e fatores atuam imbricados, determinando o sucesso ou o malogro, to-tal ou parcial, do projeto comunicativo previamente traçado.

A intencionalidade prevista no projeto comunicativo relacio-na-se à existência de um Eu que fala e de um TU que ouve, entidades concretas portadoras de uma identidade psicossocial. Ocorre que, pe-la natureza interacional e complexa do ato comunicativo, em que as-pectos de diferentes ordens intervêm, cada um dos sujeitos projeta uma imagem de si e do outro na encenação discursiva. Estabelece-se

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então, paralelamente ao EU que fala/escreve – EU comunicante (EUc) – e ao TU que ouve/lê – TU interpretante (TUi) –, um EU e-nunciador (EUe) e um TU destinatário (TUd), respectivamente.

Por pertencer ao universo do discurso, o EUc tem total domí-nio sobre o TUd, o que já não se verifica quanto ao TUi, portador de identidade psicossocial e de existência autônoma em relação ao EUc. No pólo da interpretação, fenômeno parecido ocorre: o TUi responde ou reage a uma projeção lançada sobre o ato de linguagem do EUc, delineado por uma configuração do EUe. Quando não ocorre a cor-respondência entre TUd e TUi de um lado e entre EUc e EUe de ou-tro, a interação cede espaço a mal-entendidos e a acontecimentos an-tes não previstos pelos parceiros da interação.

Esses desdobramentos entre o EU e o TU são didaticamente demonstrados num esquema que compreende dois circuitos: um ex-terno ao discurso, apoiado na existência concreta dos sujeitos, e ou-tro interno ao discurso, em que atuam as imagens dos sujeitos em in-teração, conforme observado abaixo:

O CORPUS

Machado de Assis: tempo, vida e obra

No cenário mundial, o século XIX reflete a consolidação do modelo econômico capitalista, com os processos da industrialização, da sedimentação da classe média e do conseqüente arrefecimento do poder da aristocracia e da Igreja. Assiste-se também ao intenso de-senvolvimento da ciência em diferentes áreas e ao surgimento da fi-

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losofia positivista, coadunando-se com o espírito materialista e cien-tificista da época.

O Brasil insere-se nesse quadro de transformações e vive sig-nificativas alterações políticas, econômicas e sociais. Na esteira do movimento de independência, inaugura-se o período monárquico, calcado na economia agrícola de base escravagista. Ainda no século XIX, presencia-se a extinção do tráfico de escravos e a posterior A-bolição da Escravatura (1888), propiciando o surgimento de mão-de-obra livre e assalariada e de uma classe média cada vez mais nume-rosa. O capitalismo começa a se delinear e novas aspirações políticas e econômicas levam o Brasil a instaurar outro regime de governo: a República (1889). A filosofia positivista, a exemplo da Europa, é a-colhida e influencia fortemente o país.

Sob a égide dessas profundas mudanças, nasce, vive e escreve Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908). “O caso da vara”, em particular, vem a lume em 1899, integrando a obra Páginas Re-colhidas. Contemporâneo de Aluízio Azevedo, Manuel Antônio de Almeida e José de Alencar, Machado é apontado como o fundador do realismo no Brasil; entretanto, a qualidade de sua produção, em especial de sua prosa, excede os limites de qualquer classificação. Segundo Antônio Cândido (1999, p. 21), o tom comedido do escritor servia de verniz para encobrir seu real intento: “desmascarar, inves-tigar, experimentar, descobrir o mundo da alma, rir da sociedade, ex-por algumas das componentes mais esquisitas da personalidade”.

Pode-se dizer, em suma, que a suposta simplicidade dos te-mas e personagens machadianos e a freqüente interpelação ao leitor – consciência manifesta do jogo estabelecido entre o autor, o leitor e a narrativa – instam-nos a depreender, sob o manto de uma refinada ironia, as camadas de sentidos múltiplos e cáusticos que revelam, em última instância, a natureza dúbia e insaciável do ser humano.

Categorias de discurso e categorias de língua

O processo de semiotização do mundo compreende sempre duas instâncias interdependentes: a das categorias de língua, que a-pontam para o processo de referenciação simbólica do mundo, e a

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das categorias de discurso, que orientam para o processo de signifi-cação.

Para a análise do conto machadiano, elegemos alguns elemen-tos do universo lingüístico que alicerçam a construção das significa-ções possíveis na narrativa.

O uso do diminutivo

Tradicionalmente, o diminutivo é incluído nas gramáticas no capítulo referente ao fenômeno da flexão dos substantivos e tem seu uso relacionado à expressão da dimensão reduzida de algo. Há, en-tretanto, inclusive nos manuais de gramática prescritiva (Cunha, 2001, p. 198), reflexões sobre o caráter expressivo e subjetivo muitas vezes veiculado pelo emprego de sufixos como –inho e –zinho, os mais produtivos nesse caso. Essas funções são modernamente corro-boradas e aprofundadas em estudos voltados para a morfologia, es-pecialmente para a formação de palavras, que descrevem, em deta-lhes, os aspectos discursivos que a utilização do diminutivo faz cir-cular.

Entre tais estudos, citaremos o de Basilio (2006), em que se destaca, além da função denotativa – em que o diminutivo estaria a serviço de expressar dimensão reduzida –, a função expressiva, que traduz afetividade ou depreciação, por exemplo. Além disso, consi-deram-se também funções de caráter discursivo, quando, por exem-plo, busca-se atenuar um pedido ou uma oferta ou quando se preten-de exprimir afetividade do falante sobre o objeto ou pessoa de que se fala ou até sobre o interlocutor ao qual se dirige.

Em “O caso da Vara”, essa última função do grau diminutivo é explorada. Ao escrever um bilhete de cunho quase peremptório a João Carneiro, Sinhá Rita deixa-nos conhecer a forma intimista e in-timidadora pela qual o interpela. Ao enunciar “Joãozinho” (“Joãozi-nho, ou você salva o moço, ou nunca mais nos vemos”) (Assis, 1997, p. 100), uma série de inferências são ativadas pelo leitor com base na acepção afetuosa que o uso do sufixo –inho deixa entrever. Imedia-tamente, formula-se (ou intensifica-se) a hipótese de que entre os dois personagens existe algo além de um conhecimento raso. O sufi-xo aponta também para uma possível ironia, como alguém que se di-

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rige ao outro com certo ar de autoridade e domínio escamoteados sob a aparência de afetuosidade.

O anterior desconforto e hesitação de João Carneiro ante a presença e a exigência de Sinhá Rita “... seu afilhado não volta para o seminário” (Assis, 1997, p. 98) leva-nos a confirmar esta via de in-terpretação: o personagem sente-se “entre um puxar de forças opos-tas” (ibidem), ameaçado, temeroso e pressionado a tomar a atitude cobrada por Sinhá Rita.

Há ainda outros empregos relevantes do diminutivo na narra-tiva. Pode-se comentar, primeiramente, a respeito do modo como a escrava Lucrécia é descrita e referida pelo narrador. Ao ser apresen-tada em detalhes pela primeira vez, ela é caracterizada como “uma negrinha, magricela, um frangalho de nada, com uma cicatriz na tes-ta e uma queimadura na mão esquerda. Contava onze anos” (Assis, 1997, p. 97), caso em que o uso do sufixo -inha remete não só à pe-quena estatura da escrava, como também a sua tenra idade, algo que não bastou para poupá-la do destino de exploração atestado por suas marcas e cicatrizes. A partir do projeto comunicativo delineado no conto, pode-se, inclusive, atribuir esse uso a uma estratégia discursi-va que visa a conquistar a simpatia e a cumplicidade do leitor para com a figura de Lucrécia.

Além disso, o uso do sufixo indicativo do diminutivo em “noitinha” “...se à noitinha a tarefa não estivesse pronta, Lucrécia re-ceberia o castigo do costume” (ibidem.) aponta para um emprego bastante corriqueiro e atual do sufixo -inho: somado a substantivos que denotam partes do dia – manhã, tarde, noite – acrescentam a i-déia de “no início”, “no começo”, em lugar do adjunto adverbial de tempo num sintagma mais extenso, como por exemplo, “no início da noite”.

Os actantes e personagens machadianos: o caso dos nomes próprios

Os nomes próprios são caracterizados por referir-se a um de-terminado indivíduo de uma espécie ou grupo, em oposição aos substantivos comuns, cuja função é designar a totalidade dos seres de

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um grupo, configurando-se como uma abstração feita a partir de uma classe.

No texto de Machado de Assis, encontram-se “Damião”, “Si-nhá Rita”, “João Carneiro” e “Lucrécia”, nomes próprios que pare-cem não só individualizar, mas fundamentalmente exteriorizar, pela evidência ou pela ironia, a essência de tais personagens, além de concorrer para a constituição dos actantes presentes no conto (cf. ta-bela em anexo).

Quanto ao pai de Damião, esse permanece sem um nome pró-prio, configurado apenas pela função que exerce, pairando sobre os demais personagens e remetendo a uma série de elementos como a ordem, o poder, a autoridade – exercida autoritariamente –, a obedi-ência e o medo. Nesse sentido, pode-se aproximar a figura do pai a-presentada ao longo do conto à noção de arquétipo, caracterizada como uma instância do âmbito do inconsciente coletivo próprio a uma determinada cultura1.

Em linhas gerais, as relações entre actantes e personagens po-dem ser assim esquematizadas:

A) Damião:

Primeiro momento: actante paciente (vítima do autoritarismo paterno)

Damião fugiu do seminário às onze horas da manhã de uma sexta-feira de agosto. (...) Desconhecia as ruas, andava e desandava, final-mente parou. Para onde iria? Para casa, não, lá estava o pai que o de-volveria ao seminário, depois de um bom castigo. (Assis,1997, p. 95)

Segundo momento: actante agente (manipulador-estrategista em relação ao poder de influência de Sinhá Rita junto a seu padrinho)

Sinhá Rita era uma viúva, querida de João Carneiro; Damião tinha umas idéias vagas dessa situação e tratou de a aproveitar. (op. cit.)

Terceiro momento: actante agente (autoritário diante da escrava Lucrécia)

Sinhá Rita, com a cara em fogo e os olhos esbugalhados, instava pe-la vara, sem largar a negrinha, agora presa de um acesso de tosse. Da-mião sentiu-se compungido; mas ele precisava tanto sair do seminário!

1 “Segundo C. G. Jung, imagens psíquicas do inconsciente coletivo, que são patrimô-nio comum a toda a humanidade” (Ferreira, 1999)

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Chegou à marquesa, pegou na vara e entregou-a a Sinhá Rita (op. cit., p. 101).

A etimologia do nome Damião (cf. anexos) parece confirmar os papéis que o personagem assume no decorrer do conto e apontar para o traço irônico de alguém que, batizado com um nome de santo, não deseja seguir a vida religiosa.

B) Sinhá Rita:

Ao longo do conto: actante agente (autoritária e controladora pe-rante João Carneiro, suas criadas e sua vida de relação)

Sinhá Rita pegou de uma vara que estava ao pé da marquesa, e a-meaçou-a:

- Lucrécia, olha a vara! (op. cit., p. 97)

Sinhá Rita puxou-lhe desta vez o queixo.

- Ande jantar, deixe-se de melancolias.

- A senhora crê que ele alcance alguma coisa?

- Há de alcançar tudo, redargüiu Sinhá Rita cheia de si. Ande, que a sopa está esfriando. (op. cit., p. 99)

A relação entre a etimologia do nome “Rita” e as ações do personagem aponta para uma série de inferências, entre as quais se pode destacar o contraste que há entre ela e a santa que tem o mesmo nome: um único ponto de contato entre elas – a viuvez – aumenta a-inda mais o fosso que as separa. Embora, inicialmente, Sinhá Rita tente disfarçar sua vaidade e o possível vínculo íntimo com João Carneiro (“Como assim? Não posso fazer nada.” e “Ela, para disfar-çar a autoridade [...] explicou ao moço que João Carneiro fora amigo de seu marido [...]”), eles logo vem à tona, como sugerem trechos do conto.

C) João Carneiro:

Primeiro momento: actante paciente (subserviente às exigências de Sinhá Rita)

[Sinhá Rita] Disse-lhe que era preciso tirar o moço do seminário, que ele não tinha vocação para a vida eclesiástica, e antes um padre de menos que um padre ruim. Cá fora também se podia amar e servir a Nosso Senhor. João Carneiro, assombrado, não achou que replicar du-rante os primeiros minutos; afinal, abriu a boca e repreendeu o afilhado por ter vindo incomodar "pessoas estranhas", e em seguida afirmou que o castigaria.

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- Qual castigar, qual nada! interrompeu Sinhá Rita. Castigar por quê? Vá, vá falar a seu compadre.

- Não afianço nada, não creio que seja possível...

- Há de ser possível, afianço eu. Se o senhor quiser, continuou ela com certo tom insinuativo, tudo se há de arranjar. Peça-lhe muito, que ele cede. Ande, Senhor João Carneiro, seu afilhado não volta para o se-minário; digo-lhe que não volta...

- Mas, minha senhora...

- Vá, vá. (op. cit., p. 97-8)

Segundo momento: actante agente (conciliador entre as exigências de Sinhá Rita e a imposição do seu compadre ao sobrinho Damião)

João Carneiro lutou muito para conseguir que o compadre não resol-vesse logo, que dormisse a noite, e meditasse bem se era conveniente dar à religião um sujeito tão rebelde e vicioso. Explicava na carta que falou assim para melhor ganhar a causa. Não a tinha por ganha, mas no dia se-guinte lá iria ver o homem, e teimar de novo. (op. cit., p. 100)

Nesse caso, mais uma vez, a origem do nome do personagem aponta para a ironia machadiana: aquele que é cheio de graça e mise-ricordioso não age em função de tais predicados, mas sim segundo uma exigência de Sinhá Rita, a quem, a julgar pelas suas ações, per-manece subjugado por um suposto relacionamento íntimo. O sobre-nome Carneiro, conforme indicam as definições em anexo, parece estabelecer uma relação metafórica entre o animal – usualmente as-sociado à obediência – e o próprio personagem.

D) Lucrécia:

Primeiro momento: actante paciente (subalterna à Sinhá Rita e ví-tima de seus castigos)

A pequena abaixou a cabeça, aparando o golpe, mas o golpe não veio. Era uma advertência; se à noitinha a tarefa não estivesse pronta, Lucrécia receberia o castigo do costume. (op. cit., p. 97)

Segundo momento: actante agente (suplicante a Damião para que ele intercedesse por ela no momento do castigo)

Damião chegou a caminhar na direção da marquesa. A negrinha pediu-lhe então por tudo o que houvesse mais sagrado, pela mãe, pelo pai, por Nosso Senhor...

- Me acuda, meu sinhô moço! (op. cit., p. 101)

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Embora haja certa dificuldade em recuperar a origem deste nome (cf. anexos), as figuras históricas que o receberam traduzem aspectos de que Lucrécia carece. Ter linhagem nobre e ser aquela que lucra, por exemplo, está em profunda contradição com aquilo que o personagem simboliza no conto.

O contrato de comunicação e seus desdobramentos

Assim como foi anteriormente explicitado, há no modo narra-tivo uma interação entre sujeitos que se desdobram entre o mundo real e o mundo discursivo. Paralelamente ao EUc e ao TUi, situam-se, nesse caso, o autor-indivíduo e escritor e o leitor real, enquanto o EUe e TUd encontram sua contraparte no narrador e no leitor desti-natário, respectivamente.

De forma poética, o escritor peruano Mário Vargas Llosa (2004: p.5) nos remete ao jogo empreendido entre os diversos sujei-tos que se constituem e se interpõem entre o mundo real e o mundo narrado ao afirmar que, na ficção, “não somos o que somos habitu-almente, mas também os seres criados para os quais o romancista nos transporta”. Acrescenta, ainda, que “o reduto asfixiante que é nossa vida real abre-se e saímos para ser outros, para viver vicariamente experiências que a ficção transforma como nossas” (op. cit., p. 5).

Em “O caso da vara”, propomos uma aplicação desse contrato de comunicação à interação entre os próprios actantes/personagens do conto à medida que interagem e se constituem no universo narra-tivo. Para tanto, selecionamos uma importante seqüência narrativa a partir da qual delinearemos como tal contrato se configura.

(...) Nisto, chegou João Carneiro. Empalideceu quando viu ali o afi-lhado, e olhou para Sinhá Rita, que não gastou tempo com preâmbulos. Disse-lhe que era preciso tirar o moço do seminário, que ele não tinha vocação para a vida eclesiástica, e antes um padre de menos que um pa-dre ruim. Cá fora também se podia amar e servir a Nosso Senhor. João Carneiro, assombrado, não achou que replicar durante os primeiros mi-nutos; afinal, abriu a boca e repreendeu o afilhado por ter vindo inco-modar "pessoas estranhas", e em seguida afirmou que o castigaria.

- Qual castigar, qual nada! interrompeu Sinhá Rita. Castigar por quê? Vá, vá falar a seu compadre.

- Não afianço nada, não creio que seja possível...

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- Há de ser possível, afianço eu. Se o senhor quiser, continuou ela com certo tom insinuativo, tudo se há de arranjar. Peça-lhe muito, que ele cede. Ande, Senhor João Carneiro, seu afilhado não volta para o seminário; digo-lhe que não volta...

- Mas, minha senhora...

- Vá, vá. (Assis, 1997, p. 97-8)

A partir da leitura do trecho, observa-se que não houve a ade-são total de Sinhá Rita (TUi) ao projeto traçado por João Carneiro (EUc), que pretendia manter um certo distanciamento em relação a ela. Em outras palavras, o TUi não correspondeu integralmente à i-magem do TUd prevista (cf. grifos em itálico). Daí, um novo contra-to é estabelecido, apoiado no projeto de fala empreendido por Sinhá Rita (antes TUi e agora EUc).

Desta vez, o projeto de comunicação é bem-sucedido: a ima-gem que Sinhá Rita (EUc) projeta a respeito do TUd - alguém que lhe é subserviente - é aceita por João Carneiro (TUi), pressionado a interceder por Damião junto a seu compadre (cf. grifos sublinhados).

CONTRIBUIÇÕES DE UMA ABORDAGEM SEMIOLINGÜÍSTICA DO TEXTO

PARA O ENSINO DE LÍNGUA

A partir da década de noventa, com a elaboração e publicação dos documentos oficiais que orientam o ensino de língua portuguesa no país – Parâmetros Curriculares Nacionais –, multiplicam-se as re-ferências a um ensino de língua alicerçado no texto em seus múlti-plos gêneros e diferentes modos de organização discursiva. Diversos estudos e obras publicados nos últimos anos têm discutido e ratifica-do a primazia do texto sobre qualquer outra possível ferramenta para o ensino e aprendizado de português.

Contudo, talvez por serem relativamente recentes, muitas des-sas publicações – sobretudo os livros didáticos – parecem carecer de um fundamento teórico-metodológico que ofereça ao professor de língua um itinerário seguro para o trabalho com o texto em sala de aula. Não raro, manuais que se propõem a desenvolver um trabalho sob a perspectiva textual acabam enveredando pelo conhecido e cen-

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surado caminho de ensinar a gramática pela gramática, ou, em outros termos, a metalinguagem em lugar da própria linguagem.

As reflexões tecidas nesse estudo permitiram perceber quan-tas novas perspectivas de trabalho com a língua e com o texto, inclu-sive o literário, se abrem a partir das concepções desenvolvidas pela Semiolingüística. Para desvendar os meandros constitutivos do con-to, gênero em que se busca “conseguir, com o mínimo de meios, o máximo de efeitos” (Gotlib, 2003, p. 35), a noção de contrato de co-municação e a necessidade da articulação entre categorias de língua e de discurso para a construção dos sentidos são, entre outras, valiosas ferramentas de investigação.

Ao se analisar “O caso da vara”, observa-se que, para além da multiplicidade de sentidos que o texto literário permite, podem e de-vem ser exploradas as categorias de língua que contribuem para essa profusão de leituras. Conforme o exposto, o trabalho com os sufixos indicativos do diminutivo, por exemplo, pode tornar-se muito mais significativo se, além do aspecto gramatical, os efeitos discursivos dessas terminações forem considerados e estudados.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nesse trabalho, apresentou-se uma proposta de análise de um conto machadiano com base nos pressupostos teóricos desenvolvidos por Patrick Charaudeau em sua Teoria Semiolingüística, tendo em vista o ensino e a aprendizagem de língua portuguesa.

Empreendeu-se, inicialmente, uma descrição dos aspectos que serviriam de base para a análise de “O caso da vara”, entre os quais se situavam o modo de organização narrativo, a construção de actan-tes e personagens e o contrato de comunicação. Em seguida, buscou-se verificar como esses princípios teóricos se corporificavam na nar-rativa machadiana, atentando, especificamente, para as correlações entre categorias de língua e de discurso. Por fim, pretendeu-se refle-tir sobre as contribuições da abordagem semiolingüística para o en-sino e aprendizagem de língua portuguesa.

A partir desse movimento de análise, podemos reafirmar a noção de que o processo de significação configura-se como uma

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trama complexa de fatores que concorrem para sua construção. Cate-gorias de língua, elementos contextuais e situacionais, conhecimento partilhado, entre outros, são alguns dos elementos que devem ser considerados e investigados no processo de produção e interpretação dos atos linguageiros, sob pena de nos tornarmos parceiros ingênuos e ineficientes no processo de interação.

Enquanto estudiosos e professores de língua portuguesa cabe-nos, pois, despertar o espírito reflexivo e crítico de nossos alunos pa-ra a complexidade do fenômeno lingüístico a partir do qual nos cons-tituímos enquanto sujeitos e constituímos o mundo enquanto espaço de interação e de descobertas.

REFERÊNCIAS

ASSIS, Machado de. O caso da vara. In: ALVES, Roberto. Contos escolhidos. São Paulo: Klick, 1997.

AZEVEDO, Sebastião Laércio de. Dicionário de nomes de pessoas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1993.

BASILIO, Margarida. Formação e classes de palavras no português do Brasil. São Paulo: Contexto, 2006.

CÂNDIDO, Antônio. Esquema de Machado de Assis. In: Vários es-critos. São Paulo: 2 Cidades, 1995.

CHARAUDEAU, Patrick. Linguagem e discurso: modos de organi-zação. São Paulo: Contexto, 2008.

CUNHA, Celso & CINTRA, Lindley. Nova gramática do português contemporâneo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Aurélio século XXI: o dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.

GOTLIB, Nádia Battella. Teoria do conto. São Paulo: Ática, 2003.

GUERIOS, Rosario Farani Mansur. Dicionário etimológico de no-mes e sobrenomes. São Paulo: Ave Maria, 1981.

LLOSA, Mário Vargas. A verdade das mentiras. São Paulo: Arx, 2004.

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NASCENTES, Antenor. Dicionário etimológico da língua portugue-sa. Rio de Janeiro, 1952, v. 2.

PAIVA, Con. Jorge O’Grady de. Dicionário de nomes próprios. Rio Grande do Norte: República, 2006.

ANEXO

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