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Clio Arqueológica 2016, V31N2, pp. 14-57, SOLARI; MARTIN; SILVA. DOI: 10.20891/clio.v31i2p14-57
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ESTUDOS DE ANTROPOLOGIA DENTAL NA POPULAÇÃO DO SÍTIO ARQUEOLÓGICO PEDRA DE ALEXANDRE,
CARNAÚBA DOS DANTAS, RN (9.000–2.000AP)
Ana Solari1 [email protected]
Gabriela Martin2 [email protected]
Sergio Francisco Serafim Monteiro da Silva3 [email protected]
RESUMO
Neste artigo apresentamos os primeiros resultados gerados a partir da análise dentária, incluindo a observação de patologias dentais, dos indivíduos sepultados no cemitério pré-histórico no sítio Pedra de Alexandre, onde foram recuperados 284 dentes de 30 indivíduos, vinculados a 17 sepultamentos, articulados em seus respectivos ossos ou desarticulados e misturados com outros remanescentes. Nos casos passíveis de análise, considerando o estado de degradação severa do material, tanto nos indivíduos adultos como nos subadultos foi registrada a presença constante de desgaste oclusal, especialmente nos molares, associada à reduzida presença de outras patologias, como cálculo dental, cáries, abscessos e linhas hipoplásicas. Os resultados indicam uma dieta abrasiva, o modo de preparação dos alimentos e o uso extramastigatório dos dentes. Palavras-chave: Sítio Pedra de Alexandre, Antropologia Dental, Bioarqueologia.
1Pesquisadora do Programa de Pós-graduação em Arqueologia e Preservação Patrimonial da UFPE. 2Docente do Programa de Pós-graduação em Arqueologia e Preservação Patrimonial da UFPE. 3Docente do Departamento de Arqueologia da UFPE.
Clio Arqueológica 2016, V31N2, pp. 14-57, SOLARI; MARTIN; SILVA. DOI: 10.20891/clio.v31i2p14-57
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ABSTRACT This article presents the first results generated from the dental examination, including observation of dental diseases in individuals buried in the prehistoric cemetery in the Pedra de Alexandre archaeological site were recovered 284 teeth of 30 individuals linked to 17 burials, articulated in their bones or disjointed and mixed with other remnants. In cases possible to analysis, considering the state of severe degradation of the material, both in adults and in subadults, the constant presence of occlusal wear was recorded, especially on molars, associated with reduced presence of other diseases, such as dental calculus, caries, abscesses and enamel hypoplasia. The results indicate an abrasive diet, the method of preparation of food and not masticatory use of teeth. Keywords: Pedra de Alexandre, Dental Anthropology, Bioarchaeology.
Os dentes são especialmente importantes nos estudos bioarqueológicos sobre os
estilos de vida das populações antigas pela sua boa preservação, pois representam
o tecido mais resistente e quimicamente estável do corpo humano e muitas vezes
são os únicos remanescentes que se conservam durante e após uma escavação
(BROTHWELL, 1981). As análises dos dentes através da Antropologia Dental4
são fundamentais para a obtenção de informações biológicas, socioculturais e
sobre o perfil biológico de indivíduos e sociedades — como idade da morte, sexo,
ancestralidade, dieta e preparação dos alimentos, estado de saúde e higiene bucal,
doenças, episódios de estresse durante o crescimento, traumas, anomalias, uso dos
dentes como ferramenta ou outras práticas culturais (BROTHWELL, 1981;
UBELAKER, 1989; CAMPILLO, 2001; ROBERTS e MANCHESTER, 2005;
HILLSON, 1996, 2005; CUCINA, 2011).
4 O conceito pode ser definido como “el conjunto de conocimientos adquiridos mediante el estudio de la porción buco-dentaria en cráneos [...] pertenecientes a los diferentes grupos [...] tomando en consideración sus costumbres, sistema de vida, alimentación, clima, adaptación [...] ecología, etc.” (VALDIVIA VERA, 1988:11).
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A morfologia dos dentes, sua forma e tamanho, é determinada, primariamente,
pelos genes. Os dentes representam uma interface com o ambiente conforme
erupcionam. Sua acessibilidade e visibilidade determinam ações intencionais,
acidentais e incidentais sobre eles. Nesse sentido, em decorrência de
determinantes culturais ou por caracteres idiossincráticos, um indivíduo pode
gerar manipulações intencionais que resultem em dentes alinhados com seus
sistemas de valores e estética na sociedade. Além das manipulações intencionais,
associam-se efeitos resultantes de alterações não intencionais, produzidos por
forças naturais durante a vida da dentição, como, por exemplo, o desgaste dentário
e as patologias. A morfologia e as doenças dentárias, assim como as que afetam o
esqueleto, dependem de fatores que incluem os agentes patogênicos,
características do ambiente que afetam a saúde, nutrição, comportamento e
imunidade de cada indivíduo (MANN e HUNT, 2005). Constituem fatores
secundários, segundo Scott e Turner II (2000), que afetam a morfologia dentária,
aqueles resultantes do comportamento humano e do ambiente.
O abrigo arenítico Pedra de Alexandre, com pinturas rupestres associadas à
tradição Nordeste, Subtradição Seridó, situado na região do Seridó (Carnaúba dos
Dantas, RN), foi utilizado como área de sepultamentos por um longo período de
tempo, contendo 31 deposições funerárias primárias e secundárias, individuais,
duplas e múltiplas, com ou sem acompanhamentos funerários, mostrando uma
variedade de rituais funerários justificada pela grande distância cronológica entre
os enterramentos, que variou de 9.400 a 2.620 AP (MARTIN, 1994, 1995/1996).
Os primeiros estudos na perspectiva da Bioarqueologia e das análises mortuárias
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sobre os esqueletos e sepultamentos do Pedra de Alexandre foram publicados por
Martin (1994, 1995/1996, 1999), Alvim, Uchôa e Silva (1995/1996), Santos
(1995), Cisneiros (2003) e Castro (2009).
A partir das escavações arqueológicas no sítio Pedra de Alexandre, foram
recuperados 284 dentes de 30 indivíduos, vinculados a 17 sepultamentos, algumas
vezes articulados em suas respectivas mandíbulas ou maxilares, outras vezes
desarticulados, isolados ou misturados com os remanescentes humanos5. Neste
trabalho apresentamos os primeiros resultados gerados a partir do inventário e da
análise dental, incluindo a estimativa da idade biológica, a ancestralidade, o
estudo odontométrico e a observação e o registro de patologias dentais sobre os
indivíduos sepultados no sítio pré-histórico.
IDADE BIOLÓGICA E ANCESTRALIDADE
A análise do desenvolvimento dos dentes é a ferramenta mais adequada em
Antropologia Dental para fazer a estimativa da idade biológica ou da morte,
principalmente em indivíduos subadultos, a partir dos graus de formação,
maturação e erupção dental, vinculados ao processo de modelação dental e ao
desgaste dentário, relacionado ao processo de remodelação dental. O processo de
modelação dos dentes é mais influenciado por fatores genéticos do que por fatores
5 Outros indivíduos e sepultamentos não continham dentes entre os remanescentes humanos recuperados nas escavações arqueológicas. A coleção antropológica deste sítio está sob a guarda do Departamento de Arqueologia, Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Pernambuco, no Recife, PE, acondicionada na Reserva Técnica (RETEC) do Laboratório de Arqueologia Biológica e Forense (LABFOR). Essa coleção encontra-se em processo de revisão curatorial e inventário sistemático pelos autores deste artigo, o que possibilitou o acesso controlado aos dentes.
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ambientais (LEWIS, 2007). Já os fatores culturais e ambientais atuam sobre o
processo de remodelação dentária, propiciando indicadores de idade, conforme
Brothwell (1981).
Por mais que uma série de fatores, intrínsecos e extrínsecos, como a relação entre
herança e meio ambiente, nutrição, doenças, status socioeconômico, sexo, entre
outros, afetem o crescimento e desenvolvimento do indivíduo, considera-se a
idade dental como um dos indicadores mais exatos de maturidade
morfofisiológica.
Na metodologia de análise dental usada em Arqueologia, a sequência na formação
e erupção dentária proposta inicialmente por Schour e Massler (1941), modificada
por Ubelaker (1989) e reapresentada por White, Black e Folkens (2012), tem sido
a mais usada para a determinação de idade em remanescentes humanos de origem
arqueológica e permite uma estimativa muito próxima para o intervalo etário
compreendido entre os 5 meses de idade perinatal (+ 2 meses) e o início da idade
adulta, de 18 a 20 anos aproximadamente, com a erupção do terceiro molar
permanente.
Em Bioarqueologia, a idade da morte em subadultos é usada para fazer inferências
sobre mortalidade infantil, crescimento e desenvolvimento, idade do desmame,
condições congênitas, ambientais e infanticídio (LEWIS, 2007). Os estudos de
mortalidade infantil têm o potencial de dar informações sobre os graus de
adaptabilidade de uma população ao ambiente, práticas culturais, mortalidade
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estacional, demografia, saúde materna, epidemias, alimentação infantil,
comportamentos sociais relacionados às crianças e jovens, entre outros (LEWIS,
2007).
Para a estimativa etária a partir dos dentes em indivíduos adultos, o método de
observação macroscópica mais usado (BROTHWELL, 1981) tem avaliado os
graus de desgaste oclusal dos molares, resultante da atividade mastigatória
fisiológica. Esse autor considera o desgaste dental como um processo
degenerativo natural, vinculado ao envelhecimento. Contudo, apesar de ser um
método baseado exclusivamente na análise dos desgastes dentários em uma
população pré-medieval da Europa ocidental, devem ser considerados outros
fatores de atrição dental, resultantes de dietas mais ou menos abrasivas ou práticas
culturais distintas daquelas encontradas na América. Esses fatores fazem com que
a aplicação do método de atrição dental proposto por Brothwell (1981) para
cálculo etário fique restrita a um período temporal e cultural particular (MAAT,
2000), ou seja, é incompatível a certas práticas alimentícias ou culturais, como no
caso da população do sítio arqueológico Pedra de Alexandre, motivo pelo qual
não foi utilizado neste estudo. O mesmo ocorre com a proposta das fases de
desgaste dentário sugerida por Lovejoy (1985), válida para uma população pré-
histórica de Libben, em Ohio, USA, as sugestões dos demais autores que
quantificaram o desgaste dentário e a sua relação com a idade biológica, descritas
por White et al. (2012: 387), e a experimentação de Oliveira et al. (2006).
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A respeito das origens geográficas, um dos caracteres epigenéticos morfológicos
usados como indicadores de ancestralidade em dentes decíduos e permanentes foi
o incisivo em forma de pá, que se manifesta pelo desenvolvimento das arestas
marginais das faces linguais dos incisivos superiores, formando uma depressão
central na coroa (PEREIRA e MELLO E ALVIM, 1979). Essa característica
apresenta-se mais frequentemente nos dentes permanentes (MIZOGUICHI, 1985)
e decíduos (HANIHARA, 1961) de populações de origem asiática ou americana
(90%) e menos frequentemente nas populações europeia e africana (menos de
15%). Para Mann e Hunt (2005), esse traço, presente nas faces linguais dos
incisivos superiores, aparece com frequência de 60% a 100% nos grupos asiáticos
e menor que 5% em grupos humanos da Europa e África.
PATOLOGIAS DENTÁRIAS
As patologias dentárias são as doenças mais comuns que podem ser encontradas
nos remanescentes humanos, as quais, relacionadas com outras evidências
arqueológicas, propiciam importantes informações tanto sobre um indivíduo
isolado quanto sobre uma população (ROBERTS e MANCHESTER, 2005). Entre
os fatores de morbidade que afetam os tecidos dentários — e ósseos relacionados,
em muitos casos — estão os distúrbios do crescimento, as neoplasias, infecções,
doenças endócrinas e metabólicas e os traumas. Nesses casos, a natureza dos
tecidos dentários influencia na forma de expressão de cada doença, e uma lesão
observada isoladamente pode estar associada, por sinergia, a uma doença
periodontal mais abrangente por exemplo (ORTNER, 2003).
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Entre as principais patologias dentais estão: o desgaste dental, as cáries, os
abscessos, as perdas dentais antemortem, a periodontite, o tártaro ou cálculo
dentário, assim como as patologias dentais relacionadas ao desenvolvimento,
como a hipoplasia do esmalte (CAMPILLO, 2001; HILLSON, 1996, 2005;
CUCINA, 2011; WHITE et al., 2012). Distúrbios do desenvolvimento dentário
incluem a quantidade e qualidade anormais de dentes, alterações de forma e
tamanho. Entre as demais patologias estão os traumas, a atrição, o deslocamento,
a presença de cistos, tumores e da hiperostose (ORTNER, 2003).
O desgaste dental é uma alteração morfológica nos dentes que se caracteriza pela
perda de substância do esmalte e/ou dentina, que pode surgir por diversas causas,
desde uma atrição originada por um processo fisiológico, como a mastigação
normal (atrição fisiológica), não fisiológico (atrição patológica), abrasão por ação
mecânica ou erosão por ações químicas ou físicas. Apesar de ser usado como um
método para a estimativa da idade da morte em indivíduos adultos, relativo ao uso
mastigatório dos dentes, o desgaste dental pode ser um indicador de dieta. Ainda,
o desgaste de natureza não mastigatória pode ser um indicador de padrões
ocupacionais pelo uso dos dentes como instrumento ou ferramenta de trabalho
(CAMPILLO, 2001; CUCINA, 2011).
Entre os vários fatores que contribuem para o desgaste dentário estão a oclusão
(presente, ausente ou parcial) do dente opositor, a qualidade do dente, os abrasivos
contidos nos alimentos e o uso de instrumentos abrasivos, a exemplo dos cabos de
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cachimbos ou o uso dos dentes para segurar ou preparar objetos6. A atrição das
superfícies oclusais pode destruir o esmalte, expondo uma superfície de dentina.
Uma atrição contínua amplia a área exposta, chegando à cavidade pulpar. Em
resposta a essa atrição acentuada, os odontoblastos, mesmo com capacidade
limitada, passam a formar dentina secundária nas áreas expostas das cavidades
pulpares. Quando a atrição ocorre de modo a expor e retirar a dentina secundária
formada, é criado na cavidade pulpar um potencial de infecção que pode atingir o
osso alveolar. Um desgaste dentário interproximal ocorre em relação às
superfícies de oposição do dente adjacente e relaciona-se à movimentação dos
dentes durante a mastigação.
O desgaste das superfícies oclusais dos dentes modifica a morfologia das
superfícies, e essas diferenças, que podem ser observadas macroscopicamente,
estão diretamente relacionadas com o tipo de alimentação e o modo de preparação
dos alimentos, assim como o modo como os dentes foram usados para diversas
atividades (ORTNER e PUTSCHAR, 1981; SMITH, 1984; CUCINA, 2011). O
desgaste como indicador ocupacional sugere o uso dos dentes como uma
ferramenta ou uma “terceira mão”. Esse tipo de desgaste exibirá um padrão de
dano diferente, que, em algumas ocasiões, pode ser relacionado com uma
atividade-trabalho-ocupação particular (ORTNER e PUTSCHAR, 1981;
CAPASSO et al., 1999).
6 A abrasão ou o desgaste dentário relacionados ao uso dos dentes como apoio de artefatos ou para a sua elaboração ou como resultado dos tipos de abrasivos contidos na dieta foram descritos em Ortner e Putschar (1981:454).
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No estudo dos desgastes originados pela dieta, devem ser considerados os tipos de
alimentos consumidos (por exemplo alimentos macios, de origem animal x
alimentos duros e erosivos, de origem vegetal), assim como a forma de
processamento desses alimentos (cocção, moagem, entre outros). Nesse caso,
segundo Smith (1984), um padrão de desgaste plano nos molares estaria vinculado
à mastigação de alimentos duros e fibrosos, mais comum entre grupos de
caçadores-coletores, enquanto que um padrão de desgaste oblíquo nos molares
estaria associado à incorporação de alimentos processados, menos duros e
fibrosos, o que seria mais comum entre grupos horticultores. Nessa mesma
perspectiva, a presença de cáries é menos comum entre os caçadores-coletores do
que entre os horticultores (ORTNER, 2003).
A cárie é uma patologia que ocorre na superfície oclusal e/ou em superfícies lisas
dos dentes, podendo resultar em abscessos do osso alveolar e, em última análise,
ser a causa da perda ou extração dental. Em materiais de procedência
arqueológica, as cáries e os abscessos podem ser confundidos com
pseudopaleopatologias, tornando-se de difícil diagnóstico. A cárie, reconhecida
como doença infectocontagiosa de etiologia multifatorial, resulta, primeiramente,
na perda localizada de miligramas de minerais dos dentes afetados em decorrência
da ação de ácidos orgânicos provenientes da fermentação microbiana dos
carboidratos da dieta (WEYNE, 1989).
O aparecimento da cárie depende de três fatores essenciais: o hospedeiro com
tecidos suscetíveis (dentes e saliva), a microbiota da região com potencial
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cariogênico e a dieta consumida, rica em carboidratos e sacarose. Após um
período de tempo, o aparecimento de placas com bactérias cariogênicas dá origem
às lesões da cárie. São essenciais para o desenvolvimento de um processo carioso
a microbiota (Streptococcus mutans, Streptococcus sobrinus7) e a dieta (substrato
local). Fatores secundários, tais como a saliva, a exposição ao flúor e a higiene
oral, modulam o desenvolvimento do processo carioso, aumentando ou
diminuindo a resistência dos dentes, a cariogenicidade do substrato local (dieta) e
o potencial cariogênico da microbiota (WEYNE,1989). A cárie pode ser um
indicador da variação dos recursos alimentares, nas diferenças nutricionais entre
caçadores-coletores e agricultores (ORTNER e PUTSCHAR, 1981:439). Estes
últimos caracterizados pelo alto percentual de carboidratos na dieta relacionado ao
aumento da incidência da cárie. O desgaste dentário continuado pode resultar no
desaparecimento de processos cariogênicos, assim como aspectos de degradação
pós-deposicionais que resultam em pseudopaleopatologias ocultam essas
possíveis ocorrências no material arqueológico.
Nesse contexto, as cáries se originam pela ação bacteriana de micro-organismos
que se encontram naturalmente na boca, os quais afetarão mais ou menos os
dentes dependendo da resistência e imunidade individual, provocando a destruição
dos tecidos dentais por desmineralização e levando à perda dentária em vida. As
cáries afetam as partes visíveis dos dentes, como a coroa, entretanto o colo da raiz
poderá ser afetado quando estiver exposto pela doença periodontal. A cárie é
provocada basicamente por alimentos com hidratos de carbono que ficam aderidos 7 Outras 4 espécies concorrem na formação da cárie, entretanto essas duas são as mais comumente encontradas em populações humanas, segundo Weyne (1989).
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ao dente, formando a placa bacteriana. Quando essa placa não é eliminada, devido
a uma higiene bucal ineficiente, as bactérias começam a secretar os ácidos láctico
e clorídrico, que atacam o esmalte, perfurando até afetar a dentina e penetrar na
cavidade pulpar, podendo ocasionar perdas dentais ou abscessos decorrentes de
infecções periapicais (CAMPILLO, 2001; HILLSON, 1996, 2005).
Contudo, não somente o consumo de açúcares e as bactérias são responsáveis pela
formação de cáries. Com uma etiologia multifatorial, essa doença está relacionada
a uma série de causas endógenas e exógenas que influenciam no seu aparecimento
e desenvolvimento. Entre as causas endógenas estão a morfologia da coroa, a
integridade do esmalte e a composição química da saliva; entre as exógenas estão
a composição dos alimentos ingeridos, os hábitos culturais de preparação dos
alimentos, a higiene oral e o desgaste dentário (CUCINA, 2011).
Igualmente, devido à associação entre cáries e uma dieta rica em carboidratos, ao
comparar diferentes populações com distintas formas de subsistência, vemos
como essa patologia afetou menos as populações mais antigas de caçadores-
coletores, enquanto que começou a se expandir entre os grupos de agricultores
sedentários mais recentes (CUCINA, 2011; SMITH, 1984).
Os processos infecciosos das cáries sem tratamento podem levar à destruição total
da coroa e das raízes, provocando a exposição da cavidade pulpar. A infecção na
cavidade pulpar vai provocar o surgimento de abscesso no nível apical, seguido de
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um processo de destruição do osso alveolar e da correspondente perda do dente
(HILLSON, 1996).
A doença periodontal, ou periodontite, é um processo infeccioso crônico,
inflamatório e destrutivo, que afeta as gengivas (gengivite) e o osso alveolar.
Caracteriza-se basicamente pela perda de altura do osso alveolar, com a
consequente exposição das raízes dos dentes, levando à mobilidade e instabilidade
dental, seguida de eventual perda dos dentes. A doença periodontal é uma
patologia de etiologia multifatorial, relacionada a fatores como a herança, o
ambiente, a dieta e a higiene (LINDHE, 1988; LANGSJOEN, 1998). Esse tipo de
doença é modulado por determinados fatores ambientais (WEYNE, 1989:2;
LINDHE, 1988). Envolve uma resposta inflamatória a uma irritação causada por
placas bacterianas, formadas a partir de partículas de alimentos, micro-organismos
vivos ou mortos, que pode resultar, após cristalização e acúmulo a partir dessas
placas dentárias,no tártaro, ou cálculo dental (BUIKSTRA e UBELAKER, 1994;
CAMPILLO, 2001).
A presença do cálculo, vinculada à calcificação de placas bacterianas por higiene
deficiente, pode ser quantificada e está associada à doença periodontal, pois pode
exercer um efeito nocivo sobre os tecidos moles do periodonto por causa da sua
superfície áspera. Entretanto, a correlação entre gengivite e placa dental é mais
forte do que entre gengivite e cálculo, este pode ser definido como depósitos
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calcificados ou em processo de calcificação8, compostos por 70% a 80% de sais
inorgânicos —como o fosfato de cálcio secundário (brushita) e a withloquita de
magnésio e o fósforo —, sobre as superfícies lisas dos dentes e outras estruturas
sólidas na cavidade oral. Dentro do material mineralizado, é possível se distinguir
o contorno de micro-organismos calcificados (LINDHE, 1988:78). A porção
inorgânica do cálculo é composta de proteínas, carboidratos e lipídios (LINDHE,
1988:75). Este serve a avaliação das causas da doença periodontal. Os abcessos
periodontais ainda podem estar relacionados a essa doença. Um dos indicativos da
doença periodontal é a reabsorção alveolar, que pode ser mensurada pelo
decréscimo das alturas das margens alveolares. Esta pode estar também associada
aos abcessos periapicais e à perda dentária in vivo. A dieta e a saliva fornecem
nutrientes para a macrobiota da placa dental, na margem gengival e interproximal
dos dentes.
Quando as cáries, o desgaste ou outros fatores provocam a exposição da cavidade
pulpar, os micro-organismos entram na cavidade e produzem inflamação. A
8 O cálculo dental pode ser supragengival, formado nas coroas visíveis dos dentes, acima da margem gengival ou subgengival, quando está localizado no sentido apical à margem gengival, no sulco gengival ou na bolsa periodontal. Sua coloração secundária varia com os pigmentos dos alimentos ou outros agentes, como o tabaco. As maiores quantidades de cálculo dental supragengival são encontradas em localização oposta à abertura dos canais das glândulas salivares maiores. Quantidades enormes de cálculo supragengival podem ser frequentemente observadas nas faces vestibulares dos molares superiores, nas proximidades da abertura do canal de Stensen da glândula salivar parótida, nas superfícies linguais e até mesmo vestibulares dos incisivos inferiores, que estão em posição oposta ao orifício dos canais de Warton e Bartholin das glândulas salivares submandibular e sublingual, respectivamente. O cálculo subgengival é de coloração marrom ou negra, mais duro e firmemente aderido à superfície dentária do que o supragengival e distribuído nos diversos dentes, prevalecendo nas superfícies proximais e linguais (LINDHE, 1988:76).
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inflamação periapical produzirá um abscesso, que levará a uma osteíte e
finalmente à destruição do osso alveolar com perda de dentes em vida (HILLSON,
1996).
Comumente, pode afirmar-se que a perda de um dente é a última manifestação de
doença. Caso ocorra antes da morte do indivíduo, essa perda é conhecida como
perda dentária antemortem e se manifesta com a reabsorção progressiva dos
alvéolos dentários. A perda dentária pode acontecer como consequência de um
trauma ou de qualquer uma das patologias que afetam a cavidade oral, desde a
doença periodontal até a cárie, abscessos e mesmo o desgaste, quando este é
particularmente severo (LANGSJOEN, 1998).
Os distúrbios de desenvolvimento dentário constituem condições mórbidas que
resultam no desenvolvimento e na qualidade anormal dos dentes. Entre as causas
que interferem na formação dos tecidos do dente, resultando no defeito
hipoplástico do esmalte caracterizado pela hipoplasia dentária, estão doenças
infecciosas, desordens metabólicas e endocrinológicas, entre outros. Entre as
qualidades anormais dos dentes temos a hiperodontia (dente supranumerário), a
hipodontia, a macrodontia e a microdontia. As anomalias em geral relacionam-se
aos incisivos em forma de pá (shovel-shaped), aos dentes fusionados, às
anomalias de posição (giroversão, distoversão, linguoversão, vestíbuloversão,
entre outras).
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A hipoplasia caracteriza-se como uma deficiência na espessura do esmalte devido
a algum tipo de interrupção durante o processo de amelogênese, ou processo de
formação do esmalte (ORTNER, 2003; CUCINA, 2011; WHITE, BLACK,
FOLKENS, 2012). Essa deficiência se manifesta em forma de sulcos lineares
horizontais e está associada a uma ampla variedade de deficiências nutricionais
(desnutrição, diferença no acesso aos recursos por status socioeconômico),
diferenças de gênero, doenças infecciosas, entre outros, pela qual se classifica
como marcador não específico de estresse (CUCINA, 2011; HILLSON, 1996).
Após a formação da porção inorgânica do esmalte, este não pode ser alterado ou
remodelado, convertendo-se em uma memória cronológica permanente do estresse
ocorrido durante o desenvolvimento do indivíduo. Quanto maior o número de
linhas hipoplásicas presentes no esmalte de um mesmo dente, maior o número de
situações de estresse que afetaram o indivíduo durante o seu crescimento
(GOODMAN et al., 1980).
A respeito da presença de defeitos do esmalte, como a hipoplasia dental ou as
opacidades, são vários os estressores sistêmicos, como a desnutrição ou as
doenças infecciosas que produzem um desenvolvimento anormal do esmalte
durante o crescimento, refletindo a qualidade da dieta e o estado de saúde das
populações estudadas. Mesmo sendo consideradas como um reflexo de estresse
metabólico sistêmico, as linhas hipoplásicas também podem ser ocasionadas por
anomalias hereditárias ou traumas localizados (BUIKSTRA e UBELAKER,
1994).
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A ocorrência de traumas dentários pode ser de difícil distinção em séries
antropológicas fragmentadas. Caracterizam-se como fraturas dentárias que podem
afetar o esmalte, a dentina e/ou o cemento. Uma fratura dentária (que pode incluir
partes dos alvéolos que sustentam os dentes) pode ser induzida intencionalmente
como expressão de uma prática cultural, como a extração e a mutilação ou outros
processos mecânicos de lascamento.
As características morfológicas da coroa e raiz podem indicar distâncias
biológicas entre grupos humanos. Entre os principais, temos os 14 traços
morfológicos descritos por Scott e Turner II (2000:116), como o tubérculo dental,
shoveling, entre outros.
MENSURAÇÃO DENTÁRIA
As medidas antropométricas têm sido sempre consideradas importantes
ferramentas no estudo da antropologia biológica desde os primeiros estudos
osteológicos. As medidas do crânio e das outras regiões do esqueleto axial e
apendicular têm sido usadas para descrever indivíduos, identificar estilos de vida e
comparar grupos humanos. Dentro da antropometria, a craniometria permite o
conhecimento das variabilidades morfológicas dos crânios humanos de uma
maneira sistematizada universalmente, complementando a inspeção visual do
crânio, ou cranioscopia (PEREIRA e MELLO E ALVIM, 1979).
Particularmente, o desgaste acentuado dos dentes, sua perda antemortem ou post-
mortem, traumatismos com perda de tecidos dentários, anomalias e doenças
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podem prejudicar determinadas mensurações, como o diâmetro mesiodistal
máximo e o diâmetro vestíbulo-lingual das coroas. O uso da mensuração
comparada aplica-se aos estudos microevolutivos humanos, para a caracterização
morfológica comparada entre populações humanas e inventários sistemáticos de
coleções de dentes (BROTHWELL, 1981; SCOTT e TURNER II, 2000;
BUIKSTRA e UBELAKER, 1994).
MATERIAL E MÉTODOS
A partir da escavação de 31 sepultamentos, ao longo das 17 campanhas
arqueológicas realizadas entre os anos 1990 e2011 pelas equipes de Arqueologia
da Universidade Federal de Pernambuco, foram recuperados dentes de 30
indivíduos, contabilizando uma amostra dental total de n = 284, dos quais 128
dentes encontram-se in situ (45%) e 156, avulsos ou desarticulados dos maxilares
ou das mandíbulas (55%), conforme o Gráfico 1.
Gráfico 1: Quantificação em percentual dos dentes desarticulados e articulados do total da amostra dentária proveniente do sítio Pedra de Alexandre, RN. N = 284.
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Entretanto, dos 284 dentes contabilizados, incluindo dentes in situ e avulsos,
somente 167 foram analisados (59%). Entre os 117 dentes (41%) que não
apresentaram condições estruturais para análise, encontram-se os que continham
claros sinais de alterações tafonômicas post-mortem, que danificaram parcial ou
completamente as coroas dentais, impossibilitando a observação de patologias,
assim como os dentes decíduos ou permanentes em processo de formação no
interior dos alvéolos e sem erupcionar, geralmente encontrados desarticulados,
que não estiveram expostos aos processos exógenos geradores de alguma
patologia dental (Gráfico 2 e Figura 1).
Gráfico 2: Quantificação em percentual dos dentes analisados e não analisados do total da amostra dentária proveniente do sítio Pedra de Alexandre, RN. N = 284.
Apesar de ser uma amostra pequena, a coleção de dentes do sítio arqueológico
Pedra de Alexandre foi analisada de acordo com os métodos propostos por autores
clássicos da Antropologia Biológica e Dental (BUIKSTRA e UBELAKER, 1994;
CAMPILLO, 2001; CUCINA, 2011; HILLSON, 1996, 2005; PEREIRA e MELO
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E ALVIM, 1979; ROBERTS e MANCHESTER, 2005; UBELAKER, 1989), para
obter algumas informações relevantes ao estudo da idade no momento da morte,
da morfologia dentária e de outros indicadores de saúde, estilos de vida e
enfermidades da população por eles representada.
Figura 1: Alterações tafonômicas encontradas na amostra: a) lâminas de osso consolidado por Paralóide B72 da mandíbula, maxilar direito e dentes com alterações severas e perdas post-mortem (Sep. 10, adulto); b)coroas de dentes decíduos em formação, não erupcionados (sep. 17, indivíduo 17B, recém-nascido). Escala = 1 cm. (Fotografias: Ana Solari, 2015).
Para isso, foi realizado um inventário dental das mandíbulas e dos maxilares
superiores apresentando os dentes in situ nos alvéolos e os dentes avulsos,
perdidos post-mortem. Em todos os casos, foram observadas e registradas em
fichas de análise dental e com fotografias, as perdas dentais, as anomalias ou
malformações, o grau de desgaste dentário e as patologias dentais, incluindo:
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cáries, cálculo, doença periodontal (decréscimo da margem alveolar e abscessos),
defeitos na formação do esmalte (hipoplasia) e outras alterações post-mortem
(quebras, fissuras).
Para determinar a idade da morte9, foi usada a sequência na formação e erupção
dentária proposta por Ubelaker (1989) para subadultos e início da idade adulta. A
partir da erupção dos terceiros molares, os indivíduos foram considerados
pertencentes à categoria “adulto”. Contudo, não foi usado o método do desgaste
das superfícies oclusais dos molares de Brothwell (1981) nos indivíduos adultos
de Pedra de Alexandre, porque sua aplicação esteve prejudicada pelo desgaste
dentário, considerado neste caso como indicador de práticas alimentícias ou
culturais, e não de degeneração. Os dentes do conjunto estudado pertenciam a 16
adultos (53%) e 14 subadultos (47%), conforme o Gráfico 3.
9 Bass (1987, p. 13) estabeleceu critérios para a estimativa da idade, que incluem: a erupção dentária, o fechamento das linhas epifisárias dos ossos e o comprimento dos ossos longos (sem as suas epífises), todos comparativos com tabelas e diagramas preestabelecidos.
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Gráfico 3: Quantificação em percentual dos dentes dos adultos e subadultos no total da coleção de remanescentes humanos do sítio Pedra de Alexandre, RN. N = 30.
As variantes dentais não métricas, como os incisivos em forma de pá, são
registradas de acordo com seu grau de expressão. Para determinar a presença e o
grau de expressão morfológica dos incisivos centrais e laterais superiores em
forma de pá, foi usada a metodologia proposta no sistema ASUDAS (Arizona
State University Dental Anthropology System), apresentado em Cucina (2011).
Entre os sistemas para o registro do desgaste das superfícies oclusais, foi usado o
método desenvolvido por Smith (1984:46), que identifica o desgaste de incisivos,
caninos, pré-molares e molares numa escala de 1 a 8, de acordo com o grau de
exposição da dentina.
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Para a análise das patologias dentárias, como cáries, abscessos, perda de dentes
em vida, periodontite, cálculo dentário, hipoplasia dental, traumas por desgaste
excessivo, os dentes foram observados macroscopicamente com ajuda de uma
lupa para identificar e determinar o alcance das ocorrências, seguindo as
recomendações dos especialistas em Antropologia Dental (BUIKSTRA e
UBELAKER, 1994; BROTHWELL, 1963; UBELAKER, 1989; CAMPILLO,
2001; CUCINA, 2011; HILLSON, 1996, 2005).
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Tabela 1: Idades estimadas para os indivíduos subadultos do sítio Pedra de Alexandre. Foram adotados os critérios do desenvolvimento e da erupção dentárias nas dentições decídua e mista segundo Ubelaker (1989). (a=anos, m=meses; * corresponde ao número geral do sepultamento acrescido de letra)
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Conforme a metodologia de formação e erupção dentária de Ubelaker (1989), foi
possível estimar com pouca margem de erro as idades associadas aos indivíduos
subadultos do conjunto de dentes analisados. No total da amostra estudada (30),
foram registrados 14 subadultos, com idades entre menos de 2 meses e pouco
mais de 10 anos, conforme a Tabela 1.
O cálculo do número de subadultos, estimado a partir dos dentes no registro
arqueológico do cemitério Pedra de Alexandre, resultou da preservação e
recuperação de germes dentais de recém-nascidos e pequenos dentes decíduos ou
permanentes de dentições mistas, em formação ou erupcionados, embora o sítio
arqueológico tenha apresentado materiais ósseos em estado ruim de preservação
pela ação de fatores tafonômicos (ação das águas e fitoturbação, entre outros) após
a sua deposição. Observa-se, dentro do conjunto de esqueletos, um número
significativo de subadultos inumados.
Uma das limitaçõesmais comuns no estudo dos subadultos provenientes de
contextos arqueológicos é a preservação ruim dos dentes ou sua total ausência.
Essa sub-representação se explica geralmente em termos de fatores tafonômicos,
metodológicos ou culturais. Essa dificuldade na preservação de remanescentes
ósseos e dentais de esqueletos subadultos nos contextos arqueológicos brasileiros
tem levado a uma distorção das interpretações sobre as práticas funerárias do
passado. Entretanto, remanescentes humanos de indivíduos subadultos têm sido
recuperados em diversos sítios pré-históricos brasileiros (SILVA, 2001, 2005),
onde se encontram melhor preservados que os ossos de adultos (LEWIS, 2007),
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como ocorre no caso dos remanescentes humanos de Pedra de Alexandre. Em
qualquer caso, a proporção de subadultos recuperados deve auxiliar na
compreensão da natureza dos tratamentos funerários dos membros mais jovens de
uma sociedade.
A deposição de corpos de fetos, recém-nascidos e crianças no mesmo espaço
funerário reservado aos adultos tem suas significações dentro das concepções
mortuárias simbólicas das sociedades passadas. As práticas culturais de cada
grupo social definem onde e como as crianças são enterradas, em que momento se
convertem em membros da sociedade, quando elas assumem sua identidade de
gênero ou em que idade se convertem em adultos (LEWIS, 2007) através dos ritos
de passagem.
Ainda segundo Lewis (2007), uma análise da mortalidade infantil
tradicionalmente considera os seguintes indivíduos, conforme o período da morte:
aqueles indivíduos subadultos que morreram antes no nascimento (fetos); aqueles
que morreram no momento do nascimento ou dentro do primeiro mês de vida
extrauterina (mortalidade neonatal); e aqueles que morreram entre o primeiro mês
de vida e um ano de idade (mortalidade pós-neonatal). A mortalidade neonatal
está relacionada a um reflexo do estado endógeno da criança como resultado das
influências genéticas e maternas (por exemplo anomalias congênitas,
prematuridade, baixo peso ao nascer, trauma no parto); enquanto que a
mortalidade pós-neonatal é considerada um reflexo das influências do ambiente
externo e de fatores exógenos sobre a criança (por exemplo doenças infecciosas,
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nutrição deficiente, envenenamentos e acidentes), conforme Wiley e Pike (1998) e
Scott e Duncan (1999). Associados aos recém-nascidos estão também os
infanticídios intencionais, uma prática cultural amplamente praticada por
sociedades do passado e atuais (TOOLEY, 1983), e os infanticídios causados por
alterações de natureza fisiológica e psíquica (estado puerperal) das mães,
estudados em Medicina Legal.
Uma vez passado esse período infantil tão crítico, os estudos de mortalidade
infantil podem dar informações sobre a idade de desmame, as doenças infecciosas
e os traumas acidentais ocorridos durante a infância. Depois de 1 ano de idade, as
crianças correm risco de morte durante o período de desmame (entre os 2 e 3
anos, aproximadamente), mas o risco de morte também está presente nos anos
posteriores, quando diversas doenças da infância podem surgir ou as crianças
estão mais vulneráveis aos traumas. Assim, segundo Roth (1992), a infância
representa a etapa mais sensível do ciclo da vida humana.
No sítio Pedra de Alexandre, a presença de remanescentes de esqueletos de
subadultos situados entre o nascimento e os 10 anos, aproximadamente, pode
indicar dificuldades das mulheres no momento do parto (mortalidade neonatal) e
doenças vinculadas com a etapa de amamentação, desmame e introdução de novos
alimentos à dieta (mortalidade pós-natal, de 1 a 3 anos), assim como outras causas
de mortalidade infantil nas crianças maiores.
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A análise dos dentes decíduos e permanentes (dentição decídua ou mista) nos
subadultos do conjunto apresentou os seguintes resultados: a) ausência de
desgaste nos dentes em formação, sem erupcionar (Figura 2), nos casos de
crianças muito pequenas (lactantes) dos sepultamentos 1-C, 8 e 17-B; b) nas
crianças com idade acima de 3 anos, observa-se a presença de desgaste dentário
plano (Figura 3), que varia de leve a moderado/intenso nas superfícies oclusais
dos dentes decíduos (sep. 6-B, 7-A, 17-A), principalmente nos molares (Tabela 2),
mas sem apresentar sinais de outras patologias, como cárie e hipoplasia; c) foi
observado cálculo dental leve nas crianças maiores, entre 7 e 10 anos de idade
(sep. 1-B, 7-B, 17-C, 24-B), conforme a Figura 3 e o Gráfico 4.
A evidência de desgaste moderado/intenso nas superfícies oclusais dos dentes
decíduos indica que houve a introdução de alimentos sólidos na dieta das
crianças10, fornecendo informação potencial sobre as idades de desmame a partir
dos 3 anos, aproximadamente (SKINNER, 1997). Esse desgaste variou do tipo
moderado ao intenso sobre os dentes decíduos, principalmente molares, de
crianças com idadecompatível com o abandono da etapa de amamentação, ou seja,
já incorporadas à dieta dos adultos, possivelmente das mães, que evidentemente
estava composta por alimentos abrasivos ou que era feita por meio de um
processamento que continha elementos abrasivos.
Na análise dos dentes permanentes dos indivíduos adultos foi identificado o tipo
de desgaste plano, que varia de leve a moderado e intenso, nas superfícies oclusais 10 A identificação de desgaste por fator dietário (desgaste mastigatório), e não por trabalho (desgaste extramastigatório), não foi finalizada pela análise de microdesgaste.
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dos dentes, principalmente nos pré-molares e molares, mas também nos incisivos
e caninos (Tabela 2), indicando não somente o desgaste vinculado à dieta ou ao
processamento dos alimentos, mas também o desgaste extramastigatório como
indicador de atividades ocupacionais. Quanto às patologias, a maioria dos
indivíduos adultos (Figuras 4 e 5) apresentou uma presença menor, mas
significativa, de cálculo dental e presença reduzida de outras patologias dentárias
(cárie, abscessos, linhas de hipoplasia) dentro do conjunto (Gráfico 4), com
algumas poucas exceções, como no indivíduo do sepultamento 29-A.
Figura 2:Incisivos, caninos e molares não erupcionados e em processo de modelação. Esqueleto de subadulto, sepultamento 8, Pedra de Alexandre, RN. Escala = 1 cm. (Fotografia: Ana Solari, 2015).
Figura 3: Amostras de subadultos de Pedra de Alexandre: a) desgaste plano, mandíbula, esqueleto 1B; b) desgaste plano em dentes decíduos e permanentes, maxila, esqueleto 7B; c) placas de cálculo, pouco extensas, maxila, esqueleto 1B; d) desgaste em dentes decíduos, maxila, esqueleto 24A. Escala = 1 cm. (Fotografias: Ana Solari, 2015).
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Gráfico 4: Patologias dentárias – desgaste, cárie, cálculo, abscesso e hipoplasia — quantificadas nos esqueletos de Pedra de Alexandre, RN.
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Tabela 2: Desgaste oclusal nos dentes permanentes e decíduos (n=163) na população de Pedra de Alexandre.
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Figura 4: Amostras de adultos de Pedra de Alexandre com desgaste plano: a) mandíbula do indivíduo 1-A; b) maxila do indivíduo 2; c)mandíbula do indivíduo 15-B; d) mandíbula do indivíduo 24-D. Escala = 1 cm. (Fotografias: Ana Solari, 2015).
Figura 5: Amostras de adultos de Pedra de Alexandre com patologias: a)maxila do indivíduo 28-A com desgaste extramastigatório; b) coroa dentária do indivíduo 13 com desgaste extramastigatório; c) fragmento de mandíbula do indivíduo 24-C com perdas dentárias antemortem e post-mortem, com presença de abscessos alveolares; d) molar desarticulado do indivíduo 1-A com cálculo. Escala = 1 cm. (Fotografias: Ana Solari, 2015).
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Os dentes desarticulados que estavam relacionados ao sepultamento 29-A
mostraram uma presença diferencial das patologias em relação ao conjunto, com
ocorrência de cálculo dental leve a moderado/intenso, desgaste moderado a
intenso de tipo oblíquo e várias cáries severas, com penetração na dentina e
exposição da câmara pulpar (Figura 6).
Figura 6: Dentes desarticulados do indivíduo do sepultamento 29: a) molar com lesão cariosa comprometendo a dentina; b) molar com lesão cariosa comprometendo os tecidos da dentina; c) incisivo com cárie na linha cimento-esmalte; d) incisivo com desgaste plano de grau 4 (extramastigatório); e) molar com desgaste do tipo oblíquo; f) dente com desgaste oblíquo de grau 7 comprometendo a coroa. Escala = 1 cm. (Fotografias: Ana Solari, 2015).
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Linhas características da hipoplasia de esmalte foram observadas em um único
caso, dentro de todo o conjunto de dentes analisados no sítio. Trata-se de um
fragmento de coroa de canino, atribuído ao indivíduo do sepultamento 23 (Figura
7).
Figura 7: Fragmento de coroa de canino com presença de linhas características da hipoplasia de esmalte, face labial, sepultamento 23: a) coroa vista pela face labial (Escala = 1 cm); b) linhas hipoplásicas (x 50). (Fotografias: Ana Solari, 2015).
A análise do padrão de desgaste dentário é utilizada para a reconstrução da dieta
ou o reconhecimento de atividades culturais, para a estimativa da idade em adultos
ou para saber se está vinculado a doenças como a cárie (BROTHWELL, 1981;
BUIKSTRA e UBELAKER, 1994). Precisamente a observação, no conjunto
dental de Pedra de Alexandre, de um mesmo padrão de desgaste plano nos dentes
de tipo moderado, principalmente molares e pré-molares, tanto dos adultos quanto
dos subadultos, levou a constatar que estamos diante de um desgaste maiormente
vinculado ao tipo de dieta e processamento dos alimentos (Gráfico 5), mas
também temos sinais de um desgaste extramastigatório, produto de outras
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atividades ocupacionais, como mostra o desgaste moderado dos incisivos centrais
e laterais.
Gráfico 5: Quantificação dos graus de desgaste em dentes decíduos e permanentes de Pedra de Alexandre, segundo o método de Smith (1984:46).
Nas reconstruções de dieta, a atrição dental está vinculada ao consumo de
alimentos de textura grossa, principalmente vegetais, e a tecnologias específicas
de preparação dos alimentos para o consumo que incorporam direta ou
indiretamente elementos abrasivos. Ao mesmo tempo, visto que as dietas
abrasivas geram uma limpeza natural dos dentes, diminuindo a ocorrência de
cáries, a relação entre desgaste oclusal e cáries é oposta: quanto maior o desgaste
das superfícies oclusais, menor a possibilidade do desenvolvimento da cárie nas
superfícies oclusais11 (BROTHWELL, 1981; BUIKSTRA e UBELAKER, 1994).
11 Não está descartada a possibilidade da presença de cáries interdentais, cuja identificação é possível pelo uso da TAC ou de Raios X.
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Excetuando alguns poucos casos excepcionais (sepultamento 29-A) dentro da
população de Pedra de Alexandre, a ausência geral de patologias dentais, como as
cáries, poderia estar vinculada, em parte, às dietas abrasivas e ao desgaste gerado
por estas, que impediram ou diminuírama formação de cáries. Essa ausência de
cáries também pode estar relacionada a uma dieta que inclui um consumo menor
de alimentos ricos em açúcares e carboidratos, mais associados à ocorrência desta
doença.
A ausência de perdas dentais antemortem, nos casos dos indivíduos com os ossos
de maxilares e mandíbulas bem conservados, também indica o perfil da saúde
bucal12 e se soma à ausência das outras patologias dentárias, como a cárie, a
periodontite e os abscessos.
A formação e a taxa de deposição do cálculo dental, embora tenham sido
observadas em 46 dentes da amostra, podem estar sendo subestimadas devido ao
fato de que muitos desses depósitos sofrem de perdas post-mortem, como
geralmente acontece em contextos arqueológicos, resultantes de fatores diversos
(BUIKSTRA e UBELAKER, 1994) e refletindo uma higiene bucal deficiente.
Linhas de hipoplasia foram observadas em um único dente avulso fragmentado da
amostra de Pedra de Alexandre. Essa ocorrência isolada não permite fazer maiores
inferências sobre esse marcador não específico de estresse.
12 O perfil da saúde bucal tratado aqui não é o mesmo determinado pela OMS na atualidade, que inclui o indicador DMFT (ou CPO-D), que relaciona dentes cariados, perdidos antemortem e “obturados”.
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Quanto à ancestralidade, o traço não métrico “incisivo em forma de pá” foi
observado tanto em dentes decíduos como permanentes, manifestado nos graus 1
e 2 de acordo com o sistema ASUDAS (CUCINA, 2011) e indicando — como era
esperado pela antiguidade do sítio — a origem americana desses indivíduos
(Figuras 8).
Figura 8: Incisivos em forma de pá na amostra de Pedra de Alexandre: a) incisivos centrais e laterais superiores direitos permanentes em desenvolvimento (sep. 7-A); b) incisivos centrais e laterais superiores permanentes em formação (sep. 17-A). Escala = 1 cm. (Fotografias: Ana Solari, 2015).
O sepultamento 29-A diferencia-se dos demais indivíduos adultos dentro do
conjunto pela quantidade e qualidade das patologias observadas.
As medições dos dentes foram prejudicadas, em maior ou menor medida, pela
degradação das coroas por causa dos fatores tafonômicos e pelo desgaste das
superfícies oclusais das mesmas. Apesar disso, foi registrado um possível caso de
microdontia no indivíduo 28-A, quando comparado com os demais dentes
permanentes in situ dos indivíduos adultos do sítio (Tabela 3 e Figura 9).
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Tabela 3: Medidas das coroas dos molares do indivíduo adulto do sepultamento 28-A comparadas com medidas das coroas dos molares dos indivíduos adultos dos sepultamentos 1-A, 2, 15-B e 24-D.
Figura 9:Comparação morfológica entre os molares da mandíbula do indivíduo 28-A (centro) e os dos outros quatro indivíduos: a) molares inferiores esquerdos do indivíduo 1-A, 28-A (centro) e 2; b) molares inferiores esquerdos dos indivíduos dos sepultamentos 15-B, 28-A (centro) e 24-D. Escala = 1 cm. (Fotografias: Ana Solari, 2015).
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As pequenas dimensões dos dentes e uma morfologia óssea particularmente grácil
dos ossos da face, maxila e mandíbula neste indivíduo indicam a possibilidade de
uma condição paleopatológica de crescimento restringido, vinculada a uma
deficiência nos hormônios de crescimento — baixa estatura idiopática,
hipopituarismo, síndrome de Laron, hipotiroidismo (WALDRON, 2009;
AUFDERHEIDE e RODRIGUEZ-MARTÍN, 1998; ORTNER, 2003). Entretanto,
a ausência da maioria dos ossos do esqueleto para fazer comparações, de dados
diversificados sobre essa deficiência em ossos arqueológicos e de um melhor
diagnóstico paleopatológico prejudicaram o teste e a confirmação dessa hipótese.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Avaliando o estudo da população do sítio Pedra de Alexandre na perspectiva do
aspecto biológico, interessa o comportamento individual e social diante de
aspectos diversos da vida cotidiana, registrados a partir das análises dentárias.
Torna-se importante a convergência de abordagens múltiplas, como o estudo do
comportamento simbólico pela Arqueologia da Morte, do comportamento relativo
à perpetuação grupal e manutenção gênica pela Paleogenética, do comportamento
em relação à estrutura social pela Paleodemografia e do comportamento em
relação ao ambiente e organização do trabalho pelo estudo do estilo de vida
(NEVES, 1984).
Como o esqueleto é um “sistema aberto”, em modelação nas primeiras décadas de
vida e em remodelação, responde plasticamente às exigências da vida cotidiana e
ao ambiente. Suas respostas podem ser fisiológicas, podendo alcançar um grau
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patológico. Entretanto, a reconstituição do estilo de vida inclui o estudo das
formas de subsistência e da organização do trabalho e das atividades da vida
cotidiana, representadas por indicadores dos caracteres adquiridos, como o
desgaste dentárioe os elementos-traços e nível de incidência de cáries e as
patologias e a incidência de fraturas e osteoartrites no esqueleto (NEVES, 1984).
Os estudos da variabilidade cultural, associados aos da função e do desgaste
dentário, o estudo da cárie em populações de agricultores e os estudos dos
indicadores de práticas de horticultura e implantação de cultígenos na
alimentação, levantados por Neves (1984), foram estudados por Molnar (1971) e
Turner (1979).
Apesar do reduzido tamanho da amostra dentária, restringindo o potencial de
análise e a interpretação dos dados obtidos, o conjunto de dentes estudados do
sítio Pedra de Alexandre permitiu inferir algumas informações sobre o perfil
biocultural dos indivíduos sepultados nesse cemitério pré-histórico:
a) A idade da morte e a presença de desgaste em subadultos propiciaram dados sobre a mortalidade infantil (neonatal e pós-neonatal), idade de desmame e alimentação infantil.
b) A ancestralidade americana de origem mongoloide ficou manifestada na presença dos incisivos em forma de pá.
c) O desgaste mastigatório e extramastigatóriofoi a principal patologia dental registrada dentro do conjunto, seguida em menor medida do cálculo dental, ou tártaro, tanto em adultos quanto em subadultos, como um indicador de uma higiene bucal deficiente.
d) Excetuando-se alguns casos isolados, como o sepultamento 29, a ausência de cáries predomina dentro do conjunto, também em indivíduos de todas as idades.
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Uma dieta abrasiva de origem vegetal, composta por alimentos duros e fibrosos,
ao mesmo tempo pobre em carboidratos, ficou manifestada pelo desgaste oclusal
dos molares e pela ausência de cáries na maior parte dos indivíduos do sítio,
independentemente da idade. O uso dos dentes em atividades extramastigatórias
foi igualmente registrado pelo desgaste dos incisivos.
Tanto o desgaste oclusal de tipo plano quanto a ausência de cáries estão mais
vinculados com as formas de subsistência dos caçadores-coletores do que com as
dos grupos horticultores (com predominância de desgaste de tipo oblíquo e maior
propensão às cáries), aos quais, ademais, somam-se a ausência de cerâmica entre o
mobiliário funerário e a antiguidade da ocupação do sítio.
Entretanto, o consumo de açúcares e as carências alimentares que pudessem
resultar em cáries e hipoplasia parecem ter ocorrido de forma específica, em
determinados indivíduos durante a vida.
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