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Estudos Gramaticais Florianópolis - 2011 Edair Görski Heronides Moura Período

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Estudos Gramaticais

Florianópolis - 2011

Edair GörskiHeronides Moura2º

Período

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Governo FederalPresidência da RepúblicaMinistério de EducaçãoSecretaria de Ensino a DistânciaCoordenação Nacional da Universidade Aberta do Brasil

Universidade Federal de Santa CatarinaReitor: Alvaro Toubes PrataVice-Reitor: Carlos Alberto Justo da SilvaSecretário de Educação a Distância: Cícero BarbosaPró-Reitora de Ensino de Graduação: Yara Maria Rauh MüllerPró-Reitora de Pesquisa e Extensão: Débora Peres MenezesPró-Reitor de Pós-Graduação: Maria Lúcia de Barros CamargoPró-Reitor de Desenvolvimento Humano e Social: Luiz Henrique Vieira da SilvaPró-Reitor de Infra-Estrutura: João Batista FurtuosoPró-Reitor de Assuntos Estudantis: Cláudio José AmanteCentro de Ciências da Educação: Wilson Schmidt

Curso de Licenciatura Letras-Português na Modalidade a DistânciaDiretora Unidade de Ensino: Felício Wessling MarguttiChefe do Departamento: Izabel Christine SearaCoordenadoras de Curso: Roberta Pires de Oliveira e Sandra QuarezeminCoordenador de Tutoria: Renato Miguel BassoCoordenação Pedagógica: LANTEC/CEDCoordenação de Ambiente Virtual de Ensino e Aprendizagem: Hiperlab/CCE

Comissão EditorialTânia Regina Oliveira RamosMary Elizabeth Cerutti Rizzati

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Equipe de Desenvolvimento de Materiais

Laboratório de Novas Tecnologias - LANTEC/CEDCoordenação Geral: Andrea LapaCoordenação Pedagógica: Roseli Zen Cerny

Produção Gráfica e HipermídiaDesign Gráfico e Editorial: Ana Clara Miranda Gern; Kelly Cristine SuzukiCoordenação: Thiago Rocha Oliveira, Laura Martins RodriguesAdaptação do Projeto Gráfico: Laura Martins Rodrigues, Thiago Rocha OliveiraDiagramação: Pedro Augusto Gamba & Raquel Darelli MichelonFiguras: Pedro Augusto Gamba & Raquel Darelli Michelon Capa: Raquel Darelli MichelonTratamento de Imagem: Pedro Augusto Gamba & Raquel Darelli Michelon Revisão gramatical: Evillyn Kjellin

Design InstrucionalCoordenação: Vanessa Gonzaga NunesDesigner Instrucional: Maria Luiza Rosa Barbosa

Copyright © 2011, Universidade Federal de Santa Catarina/LLV/CCE/UFSCNenhuma parte deste material poderá ser reproduzida, transmitida e gravada, por qualquer meio eletrônico, por fotocópia e outros, sem a prévia autorização, por escrito, da Coordena-ção Acadêmica do Curso de Licenciatura em Letras-Português na Modalidade a Distância.

Catalogação na fonte elaborada na DECTI da Biblioteca Universitária da Universidade Federal de Santa Catarina.

Ficha Catalográfica

X999y Sobrenome, Nome Título do Livro / Nome Sobrenome, UFSC, UAB.— Florianópolis : LLV/CCE/UFSC, 2009. XXXp. : XXcm ISBN XXXXXXXX 1. xxxxxx. 2. xxxxxx. I. xxxxxx. II. xxxxxx. CDD 410

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Sumário

Unidade A ............................................................................................ 91 A pré-história da linguagem ....................................................................11

2 A linguagem como expressão do pensamento:

o período greco-latino ..............................................................................15

3 Língua universal e línguas particulares:

da Idade Média ao século XVIII ................................................................23

4 As línguas como produtos da história:

a época do Romantismo ...........................................................................27

5 A busca da origem: do Romantismo

ao Método Comparativo..........................................................................31

Unidade B ...........................................................................................356 Concepções de língua(gem) ....................................................................37

7 Propriedades das línguas naturais .........................................................43

7.1 Flexibilidade e adaptabilidade .....................................................................43

7.2 Arbitrariedade ...................................................................................................44

7.3 Dupla articulação .............................................................................................46

7.4 Produtividade .....................................................................................................48

7.5 Heterogeneidade ..............................................................................................50

8 O que é um estudo científico? .................................................................53

Unidade C ...........................................................................................579 Concepções de gramática .........................................................................59

9.1 Gramática Universal e gramáticas de línguas particulares ...................................................................................59

9.2 Gramática prescritiva versus gramática descritiva e explicativa ..............................................................63

10 A norma linguística ...................................................................................73

10.1 Concepções de norma ..................................................................................73

10.2 Variedades da língua e língua padrão do Brasil ..................................79

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10.3 A questão do “erro” e suas implicações sociais ....................................85

Unidade D ..........................................................................................8911 Princípios e métodos do estudo de gramática ...............................91

12 Níveis de análise ........................................................................................95

12.1 Nível fonético-fonológico ..........................................................................95

12.2 Nível morfológico ........................................................................................101

12.3 Nível sintático ................................................................................................119

12.4 Nível semântico-pragmático ...................................................................125

Leia Mais! ......................................................................................... 134

Referências ...................................................................................... 135

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Apresentação

C

aros alunos:

Este livro-texto trata de dois grandes temas:

Ӳ Fundamentos históricos e filosóficos das noções de linguagem e de gramática.

Ӳ Iniciação aos conceitos e métodos da descrição gramatical se-gundo as abordagens da Linguística Moderna.

Esses assuntos estão organizados em quatro unidades. Na Unidade

A trataremos do primeiro tema acima. Faremos uma viagem no tempo para

mostrar como a linguagem surgiu e como tem sido analisada ao longo da his-

tória. Veremos que o modo de conceber a linguagem e a gramática está asso-

ciado aos fundamentos históricos e filosóficos de cada período da civilização

ocidental (não abordaremos os estudos de outras tradições, restringindo-nos

à cultura do Ocidente). A nossa análise histórica vai até o século XIX. A Lin-

guística Moderna será estudada nas demais unidades, que tratam do segundo

tema acima destacado.

Na Unidade B focalizaremos a Linguística como estudo científico da

língua(gem). Na Unidade C trataremos de diferentes concepções de gramática

e de norma, de variedades linguísticas e da noção de “erro” e suas implicações

sociais. Na Unidade D trabalharemos com princípios e métodos de descrição

linguística, aplicando-os aos diferentes níveis gramaticais. Em cada unidade

apresentamos uma exposição dos conteúdos, levantamos pontos para reflexão

e discussão, e sugerimos leituras complementares.

Em relação ao segundo tema (Unidades B, C e D), a palavra-chave

é descrição gramatical. Para dar conta dessa proposta, vamos buscar concei-

tos e métodos na Linguística Moderna. Munidos desse instrumental teórico-

metodológico e, sobretudo, acionando a nossa intuição de falantes nativos do

português, vamos examinar dados linguísticos e confrontá-los com definições

gramaticais. Com tal procedimento de análise, podemos avaliar o grau de ade-

quação das definições aos dados. Essa tarefa requer certas habilidades que ca-

racterizam o perfil do pesquisador: capacidade de reflexão, de discernimento

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e de análise criteriosa, aliada a um espírito crítico. Você vai perceber que, ao

longo das Unidades, apresentamos a você diversas situações-problema, como

desafios que vão colocar à prova essas habilidades que acabamos de mencio-

nar.

Convidamos você a assumir o papel de investigador linguístico e nos acompa-

nhar nessa viagem exploratória pelos domínios da linguagem... Desejamos que

você se saia muito bem nesse papel!

Edair Görski

Heronides Moura

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Unidade AUma breve história da linguagem e da noção de gramática

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Objetivos desta Unidade:

Ӳ Mostrar que a linguagem humana tem sido um tópico de interesse desde a

Antiguidade Clássica;

Ӳ Associar o modo de conceber a linguagem e a gramática aos fundamentos

históricos e filosóficos de cada período da civilização ocidental;

Ӳ Traçar um panorama amplo dos estudos linguísticos ao longo da história,

destacando as principais teorias e os autores fundamentais.

No capítulo 1 (A pré-história da linguagem), vamos ver que a linguagem é fruto

de uma evolução de dezenas de milhares de anos, e que deve ter surgido com os

ancestrais de nossa espécie. O desenvolvimento da linguagem está associado à rea-

lização de atividades sociais complexas. Veremos também que a linguagem humana

moderna já devia estar plenamente desenvolvida há pelo menos 35.000 anos.

No capítulo 2 (A linguagem como expressão do pensamento: o período greco-

latino), veremos como houve, na época clássica da Grécia e de Roma, um enorme

interesse pela linguagem e pela gramática. Estudaremos em especial duas correntes

filosóficas desse período: a platônica e a estoica.

No capítulo 3 (Língua universal e línguas particulares: da Idade Média ao século

XVIII), veremos que ocorreu, na Europa, uma explosão de gramáticas de diferentes

idiomas, depois do predomínio do grego e do latim. Estudaremos como a existência

dessa multiplicidade de idiomas afetou as concepções de língua e gramática desse

período.

No capítulo 4 (As línguas como produtos da história: a época do Romantismo),

vamos estudar alguns dos fundamentos filosóficos do Romantismo, que moldaram a

concepção de gramática e de língua nesse período. Veremos que as línguas passam a

serem vistas como produtos das circunstâncias históricas, e são associadas aos povos

e às nações que as utilizam.

No capítulo 5 (A busca da origem: do Romantismo ao Método Comparativo),

vamos estudar como a busca da origem da linguagem e das circunstâncias históri-

cas do desenvolvimento das diferentes línguas levou à criação do Método Compa-

rativo, que visava comparar diferentes idiomas, a , a fim de estabelecer, de forma

científica, relações de parentesco entre eles.

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Capítulo 01A pré-história da linguagem

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1 A pré-história da linguagemA linguagem humana tem uma história muito longa. Um instru-

mento de comunicação tão complexo e eficaz não pode ter surgido de um momento para outro. Deve ter surgido e se desenvolvido aos poucos, durante centenas de milhares de anos. Provavelmente, evoluiu a partir de gestos e palavras isoladas. As frases e a sintaxe organizada surgiram muito tempo depois.

A origem da linguagem humana deve ter ocorrido com o desen-volvimento cognitivo dos ancestrais do homem moderno, o Homo Sapiens, espécie à qual nós todos pertencemos. O surgimento das pri-meiras palavras e de estruturas linguísticas elementares, que formam o que alguns linguistas chamam de protolinguagem (cf. DEVLIN, 2006), está certamente associado a atividades sociais complexas, realizadas por grupos de hominídeos. E isso ocorreu muito tempo atrás. Por exemplo, o Homo Erectus, há quase um milhão de anos, já se deslocara da África, em direção à Ásia, numa expedição complexa e arriscada. Isso mostra que essa espécie de hominídeos era capaz de planejamento de atividades em conjunto, que exige processos mentais complexos, e como tal algum tipo de linguagem (cf. FISCHER, 2009, p. 49). No entanto, a linguagem usada pelo Homo Erectus não devia ser igual à nossa; essa espécie não conseguia controlar a respiração de maneira tão fina como nós fazemos, o que nos permite articulações vocais muito ricas e variadas (pense na enormidade de sons da fala e de variações de tom de que somos capazes; tudo isso depende do controle da respiração).

Há também o caso interessante dos Neandertais (Homo neander-thalensis), que chegaram a conviver com os humanos modernos na Eu-ropa, e que só desapareceram há cerca de 30.000 anos. Segundo os espe-cialistas, os neandertais muito provavelmente dispunham de algum tipo de linguagem verbal articulada. Eles fabricavam ferramentas, enterra-vam os mortos, usavam adornos corporais... Eles tinham um aparato articulatório (laringe, língua, controle da respiração) adaptado a uma linguagem vocal parecida com a nossa. Enfim, ao contrário da imagem tradicional, os neandertais não eram tão broncos, sendo na verdade pa-recidos conosco. Eram como primos um pouco diferentes.

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É possível mesmo imaginar que os neandertais tenham convivido de forma intensa com os humanos, com as duas espécies interagindo numa espécie de bilinguismo (cf. FISCHER, 2009, p. 66). Pesquisas re-centes mostram que provavelmente houve reprodução entre as espécies. Imagine só, um humano seduzindo uma Neandertal... Que linguagem ele usou?

O que isso tudo mostra é que a linguagem humana tem uma ori-gem muito antiga, e que uma linguagem articulada foi surgindo lenta-mente nos diferentes ramos de hominídeos (erectus, neanderthalensis e sapiens).

Figura 1 – Do Australopithecus ao Homo sapiens sapiens.

Sabemos, porém, que essa linguagem inicial era elementar, com pa-lavras isoladas e sintaxe simplificada. A linguagem efetivamente moder-na só surgiu muito depois, com o Homo Sapiens moderno (cf. PINKER, 2004, p. 454). Como essa espécie tem mais de 150.000 anos, é razoável supor que a linguagem moderna e altamente evoluída de que dispomos surgiu nesse lapso de tempo. O fato é que, há cerca de 30.000 anos, o Homo Sapiens desfrutou de uma explosão cultural que só é imaginável

Estudos Gramaticais

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Capítulo 01com uma linguagem já evoluída. A maravilhosa arte rupestre, os arte-fatos, o simbolismo da cultura do Homem de Cro Magnon sugerem que essa população (os mais antigos Homo Sapiens modernos encontrados na Europa) já era muito parecida conosco, e usava uma língua que era o antepassado das línguas que hoje existem no globo. Durante essa explo-são cultural, o Homo Sapiens moderno criou as bases de nossa cultura, com a invenção dos símbolos, da arte e do pensamento abstrato. Tudo isso só foi possível com uma linguagem complexa que servisse como meio de cooperação social e de articulação do pensamento. Estava cria-do o pensar “desconectado”, que não depende de estímulos exteriores, e que está na base da linguagem, do sentido do tempo, da capacidade de formular e seguir planos complexos e da simbolização (cf. DEVLIN, 2003, p. 211).

Mas podemos afirmar que as línguas modernas derivam direta-mente dessa linguagem falada há cerca de 30.000 anos? Infelizmente, não é possível retraçar o percurso da transformação e ramificação das diferentes línguas hoje existentes, a partir de uma data tão distante no tempo. As protolínguas, hoje extintas, das famílias linguísticas moder-nas existiram no máximo há 10.000 anos. Por exemplo, o português veio do latim, que por sua vez deriva da protolíngua indo-europeia. A proto-língua indo-europeia, que os linguistas conseguiram reconstruir sem nunca ter visto um texto escrito nela, por sua vez deriva de uma língua ainda mais antiga, que já se perdeu na bruma do tempo. Portanto, as descrições das milhares de línguas modernas, pelos métodos atuais de pesquisa, podem contar a história da evolução das línguas até um certo ponto do passado. Não é possível, portanto, reencontrar a “língua origi-nal” que deu origem a todas as línguas existentes; mas sabemos, no en-tanto, que todas as línguas faladas hoje derivam do tipo de linguagem moderna desenvolvida ao longo de centenas de milhares de anos, e que já chegara ao auge há cerca de 30.000 anos.

– Pesquise sobre a chamada “explosão cultural” da época de Cro Mag-

non, e por que a linguagem deve ter sido um elemento vital.

A pré-história da linguagem

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A famosa caverna de Lascaux, na França, reúne uma amostra significativa de pinturas rupestres. Você pode obter mais informações e fazer uma visita virtual à caverna acessando: <http://www.lascaux.culture.fr/#/fr/00.xml>.

ProtolínguasEm síntese, as línguas-mãe de línguas apa-rentadas. Trask (2004, p. 242, grifos do autor) define protolíngua como “O antepassado hipotético de uma família de línguas”.

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– Discuta o assunto com seus colegas.

Resumindo o tópico: vimos que a linguagem humana é fruto de uma evolução de centenas de milhares de anos, e que ela deve ter sur-gido com os ancestrais de nossa espécie. O desenvolvimento da lingua-gem está associado à realização de atividades sociais complexas, que ca-racterizam diferentes hominídeos, e em especial a nossa espécie (Homo Sapiens). Inicialmente, houve uma protolinguagem, com sintaxe simpli-ficada. No entanto, vimos também que a linguagem humana moderna já devia estar plenamente desenvolvida, em toda sua complexidade, há pelo menos 30.000 anos

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Capítulo 02A linguagem como expressão do pensamento: o período greco-latino

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2 A linguagem como expressão do pensamento: o período greco-latino

Os gregos, e depois os romanos, dedicaram muito esforço para compreender como funciona a nossa linguagem. Foram os primeiros, na civilização ocidental, a especular, de maneira sistemática, sobre a na-tureza das palavras e da gramática.

Há duas linhas de pensamento importantes sobre a linguagem na Antiguidade, que iremos abordar aqui: os platônicos e os estoicos. Ape-sar dos enfoques diferentes dessas duas escolas, ambas visavam com-preender a linguagem como uma ferramenta que permite entender a realidade na qual vivemos (cf. WEEDWOOD, 2002). A linguagem era percebida como expressão do pensamento.

Platão(c. 428-347 a.C.) e sua escola de pensamento exerceram um imenso fascínio sobre toda a cultura ocidental Aquele que é conside-rado o texto fundador dos estudos sobre a linguagem é da autoria de Platão: o Crátilo (citaremos aqui a edição brasileira de 2004).

Platão propôs a divisão da sentença gramatical em dois elementos: ónoma (“nome”) e rhema (“ver-bo”), o que corresponde à divisão, que fazemos até hoje, entre sujeito e predicado. Aristóteles e os estoicos refinaram poste-riormente o conceito de sentença, que os gregos chamavam de logos

Figura 2- Academia de Platão - Mosaico da Vila de Siminius Stephanys em Pompeia (século I).

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Hoje em dia, é uma experiência surpreendente, como se entrás-semos num túnel do tempo e caíssemos em plena praça pública da Ate-nas antiga; sentimos plenamente que as indagações refletem o contexto da Grécia Clássica.

- Façam a seguinte experiência: leiam o diálogo em voz alta, com

colegas e/ou alunos, cada um representando um dos personagens

do debate, ou seja, Crátilo, Hermógenes e Sócrates. Vocês vão sen-

tir como esse debate é vivo e natural (embora Sócrates fale demais

e os outros muito pouco!).

- Sócrates tinha fascínio pela etimologia, mas a maior parte das

etimologias propostas por ele estava errada. Procure exemplos

atuais (a internet está cheia deles) das chamadas etimologias po-

pulares, que propõem origens para as palavras, sem base cien-

tífica. Depois consulte dicionários etimológicos, para pesquisar

as origens verdadeiras. Ex. de etimologia popular: forró viria do

inglês for all.

As ideias de Sócrates podem às vezes parecer estranhas para um leitor moderno. Na realidade, só parecem estranhas quando compara-das com o que sabemos hoje sobre a linguagem; naquele contexto, fa-ziam todo o sentido.

O debate principal do diálogo é a oposição entre naturalismo e convencionalismo no uso das palavras. Conforme observa Weedwood (2002, p. 25), “[...] os gregos se perguntavam se a conexão entre as pa-lavras e aquilo que denotavam provinha da natureza, physei, ou era im-posta pela convenção, thesei”. Ou seja, a questão de fundo era se a lin-guagem fazia parte da natureza ou da cultura.

A palavra é uma junção de som e sentido. Os naturalistas acha-vam que deve existir uma relação entre a forma da palavra e o sentido que ela expressa. Onomatopeias são assim: au-au designa o som que um cachorro faz e tenta-se reproduzir esse som na própria palavra. Ono-matopeias são representações naturais dos significados que as palavras expressam. A teoria dos naturalistas é que todas as palavras devem ter

O Crátilo é um dos diálogos platônicos.

Foi escrito por Platão (nascido em Atenas, entre 428/427 a.C., e falecido também em

Atenas, entre 348/347 a.C.) e apresenta como personagem principal

o filósofo Sócrates, que havia sido professor

de Platão. Os diálogos platônicos são uma forma interessante

de fazer filosofia. Os temas são discutidos

informalmente por Só-crates e seus amigos e discípulos. No caso do diálogo Crátilo, o tema é a natureza social ou natural da linguagem

humana.

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Capítulo 02A linguagem como expressão do pensamento: o período greco-latino

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essa relação natural entre som e sentido.

Os convencionalistas, por seu turno, defendem que o som de uma palavra nada tem a ver com o sentido que ela designa; as onomatopeias são apenas exceções a esse princípio. Note-se que o convencionalismo, conhecido modernamente como o princípio da arbitrariedade do signo é hoje aceito como um princípio básico da linguística, e é essa uma das razões que nos levam a estranhar os argumentos defendidos no Crátilo.

Sócrates defende o naturalismo, assim como Crátilo; Hermógenes, por sua vez, defende o convencionalismo. É verdade que, no final do diálogo, Sócrates relativiza sua posição e ataca o naturalismo radical, admitindo alguma forma de convenção no uso linguístico, pois de outra forma a palavra, de tão semelhante à coisa que designa, poderia ser um substituto da coisa em si, o que para ele é inadmissível.

Alguns comentadores desse diálogo platônico chegam a dizer que ao cabo Sócrates se mostra convencionalista, mas parece mais razoável afirmar que ele é fundamentalmente um naturalista (refletindo nesse caso a posição de Platão) (cf. SEUREN, 1998; SEDLEY, 2006).

O naturalismo de Platão e Sócrates, por absurdo que possa parecer aos olhos modernos – exemplo, quando ele diz que corpo (soma, em grego) vem de sepultura (sema, em grego) – está ligado a uma série de crenças e ideias do platonismo. Entre elas, podemos citar:

1) As coisas e seres, segundo Platão, têm uma essência permanen-te. Nada mais natural que cada palavra, visando representar as coisas, tente caracterizar pelo menos uma das propriedades da coisa ou ser por ela representada. Portanto, a ligação mais na-tural não é exatamente entre som e sentido, mas entre o sentido da palavra e a essência atribuída à coisa que a palavra designa. O som apenas ajuda a chegar a esse sentido que leva à essên-cia. No exemplo citado, se corpo (soma) está ligado à sepultura (sema), é porque o corpo é a sepultura da alma. O corpo é essen-cialmente mortal e encerra nele a alma. Note-se que essa expli-cação é quase poética, produto de afinidades de sentidos e sons; mas o que importa para Sócrates é investigar o que um conceito, como “corpo” ou “justiça”, realmente significa. O som (soma-

Você vai saber mais sobre a arbitrariedade do signo no capítulo 7 da Unidade B.

Aristóteles, ao contrário de Platão, era um con-vencionalista. Para ele, a ligação entre som e sentido de uma palavra era arbitrária.

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Estudos Gramaticais

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sema) pode ser uma pista nessa investigação das essências.

2) A verdade sobre as essências das coisas é absoluta e não varia de acordo com a crença de cada pessoa. O relativismo era de-fendido pelos sofistas, que Sócrates e Platão combatiam. Uma frase famosa de um sofista, Protágoras, é citada no Crátilo (p. 148): “O homem é a medida de todas as coisas, e por isso, con-forme me parecerem as coisas, tais serão elas, realmente, para mim, como serão para ti conforme te parecerem”. Sócrates se insurgia contra esse tipo de afirmação e argumentava que as palavras devem representar necessariamente a essência das coisas. A relação som–sentido não pode ser arbitrária ou con-vencional, pois dessa forma cada pessoa teria uma apreensão diferente da essência das coisas, o que equivaleria a recair no relativismo sofístico. Como diz Sócrates (p. 149): “[...] (as coi-sas) não estão em relação conosco, nem na nossa dependên-cia, nem podem ser deslocadas em todos os sentidos por nossa fantasia, porém, existem por si mesmas, de acordo com sua essência natural”. E nomear as coisas é designá-las de acordo com sua essência: “convirá nomear as coisas pelo modo natural de nomeá-las e serem nomeadas, e pelo meio adequado, não como imaginamos que devemos fazê-lo” (p. 151).

O diálogo do Crátilo aborda a questão da identidade, que havia sido

colocada pela filosofia de Heráclito. De acordo com este filósofo, o

mundo está em constante mudança. Nada permanece o mesmo no

fluxo do tempo (é desse filósofo a conhecida afirmação de que nin-

guém se banha duas vezes no mesmo rio). Mas se é assim, como

podemos dar nome a uma coisa? Se uma coisa muda sempre, como

podemos dar nome a ela? Aparentemente, o uso da linguagem

pressupõe a identidade das coisas ao longo do tempo. É nesse con-

texto, e em oposição a Heráclito, que Sócrates busca uma essência

imutável das coisas, que as palavras se encarregariam de designar.

3) Segundo a opinião de Sócrates e Platão, a verdade e a essên-cia das coisas devem ser estabelecidas pelas pessoas mais justas

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Capítulo 02A linguagem como expressão do pensamento: o período greco-latino

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e mais razoáveis de uma comunidade. Essa é a ideia que está por trás da República ideal de Platão, que seria governada por um conselho de sábios, com todos os poderes para legislar (na prática, uma ditadura de sábios). Para esses filósofos, os sábios sabem com justeza o que as palavras devem significar, a fim de representar da melhor maneira possível as coisas que designam (por exemplo, a relação entre corpo e sepultura (soma e sema, em grego, já citada acima).

Assim, os sábios devem buscar e definir qual a relação natural entre som, sentido e coisa representada. A convenção seria um artifício, justifi-cando qualquer relação arbitrária. Platão sustenta que os sábios definem o sentido original das palavras. Esse é um dos pontos que causam mais es-tranheza na leitura do Crátilo. Sócrates reafirma várias vezes que há legis-ladores sábios que cunharam, em algum momento da história, a relação som–sentido das palavras de uma língua. Essa é a explicação platônica para a criação da linguagem: os homens sábios se reuniram e definiram a forma e o significado das palavras. Por mais estranho que nos pareça hoje em dia, essa posição era moderna e ousada no tempo dos gregos, opondo-se, implicitamente, à ideia religiosa da criação da linguagem, segundo a qual a linguagem era um dom oferecido ao homem por Deus.

No mundo grego da época clássica, a linguagem não era mais vista como assunto dos deuses, mas como negócio dos homens. Quer dizer, não de todos os homens, mas em especial dos sábios (todos do sexo mas-culino, pois Sócrates não tinha uma opinião muito boa sobre as mulheres, como se pode perceber no Crátilo).

Agora vamos falar um pouco dos estoicos (sec. III-II a.C.). Eles deram contribuições muito importantes ao estudo da linguagem. Foram eles que desenvolveram a noção de sentença como unidade significativa, o conceito de classes gramaticais e também de signo linguístico.

Sextus Empiricus (Séc. II de nossa era) apresenta a seguinte definição

de signo: “O significante, o significado e o referente são todos os três

conectados. O significante é o som vocal, como no nome Alcebíades.

O significado é o conteúdo do pensamento expresso pelo som

Esses filósofos passaram a ser chamados de estoicos quando Zenão de Cítio e outros começaram a discutir filosofia debaixo do Stoa Poikile, “o pórtico pintado”, uma colunata que ficava na Ágora, a grande praça de Atenas.

Saussure, no Curso de Linguística Geral (1916), definiu o signo como a unidade linguística que une um significado a um significante. Para ele, os dois elementos do signo são de natureza mental e o referente seria exterior ao signo. Esse conceito será retomado na seção 7.

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vocal, tal como nós o entendemos quando ele se apresenta ao nos-

so espírito, ao passo que aqueles que não falam nossa língua não o

compreendem até mesmo se escutam o som. Quanto ao referente, é

o objeto correspondente exterior, o próprio Alcebíades. Desses três

elementos, dois são físicos, o som e o referente, mas o terceiro é não

físico, ou seja, o conteúdo do pensamento” (Sextus Empiricus apud

Seuren, 1998, p. 14. Tradução de Heronides Moura, com pequenos

ajustes). Essa definição de Sextus Empiricus soa incrivelmente atual.

Para os estoicos, a sentença era a expressão de uma representa-ção mental de um estado de coisas no mundo (SEUREN, 1998, p. 10). Note que nessa definição há três elementos vitais da linguagem: a sen-tença é um signo de um pensamento. Esse pensamento corresponde ao sentido do que é dito; e finalmente, o estado de coisas é o referente da sentença. Podemos assim dizer que os estoicos foram os primeiros a perceber os três elementos (signo, sentido e referente) que dão forma ao processo de significação linguística. Esses três elementos correspon-dem ao famoso triângulo semiótico proposto por Ogden e Richards, em 1923! A sentença era entendida pelos estoicos como um enunciado sig-nificativo, que eles chamavam de logos (cf. WEEDWOOD, 2002, p. 28). Eles faziam uma distinção entre forma e logos: uma palavra isolada tem uma forma (por exemplo, a palavra “dia”), mas não expressa um logos, pois não compõe um enunciado completo. “Já é dia” seria, por sua vez, um logos. Assim, os estoicos perceberam que há, na linguagem, formas; a palavra “dia” tem forma, é um signo que respeita as regras do portu-guês, mas uma palavra como “cmtpll” não é uma forma do português. Note que eles perceberam, também, que o significado (o logos) resulta de uma combinação de formas.

Os estoicos ajudaram igualmente a formular a noção de classe de palavras, também chamadas de “partes do discurso”. Se o logos expressa um pensamento e é composto de formas, então cada uma dessas formas deve apresentar uma contribuição específica para a formação do pensa-mento, por meio da sentença gramatical. Foram sendo definidas assim as classes de palavras, como substantivos, adjetivos, verbos, conjunções,

Charles Kay Ogden (1889-1957) era filósofo, também inglês. Ivor Richards (1893-

1979) foi um importante retórico e crítico literário inglês. Ambos propuse-

ram o triângulo semiótico, formado pelo símbolo, o

pensamento e o referente.

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Capítulo 02A linguagem como expressão do pensamento: o período greco-latino

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etc. cada uma cumprindo uma função na expressão do pensamento.

Essas classes de palavras foram definidas em termos de seu sig-nificado, embora aspectos formais também fossem considerados, em menor grau. Essas definições das classes de palavras, oriundas da tradi-ção greco-latina, perduram até hoje nas gramáticas escolares que você estudou na escola! Vejam a força da especulação desses filósofos e gra-máticos da Antiguidade!

As gramáticas da época clássica tinham muitas vezes um in-teresse pedagógico e normativo, com o objetivo de ilustrar a elite, por meio do ensino das boas construções, extraídas de obras literárias. Mas a preocupação com a estrutura da linguagem também estava presente. Dionísio, o Trácio, por exemplo, em sua obra intitulada Arte da Gra-mática, estuda as classes de palavras com base na flexão, em especial a flexão de caso, adotando assim uma abordagem formal da estrutura linguística (cf. Neves, 2001, p. 39).

Resumindo o tópico: podemos dizer que para os gregos e romanos da época clássica o estudo da linguagem e da gramática era um meio de entender o pensamento e a realidade. Eles queriam também definir se a linguagem fazia parte da natureza ou da cultura. Sócrates era um naturalista, rejeitando a ideia de que a linguagem fosse uma convenção e como tal fizesse parte da cultura. As teorias do período clássico deram origem a muitas especulações filosóficas, mas também contribuíram para a formação de conceitos fundamentais dos estudos gramaticais, como os conceitos de sentença, de classes gramaticais e de formas lin-guísticas.

Você vai estudar mais sobre aspectos norma-tivos das gramáticas na Unidade C

Os casos gramaticais são desinências (afixos) flexio-nais que servem para mar-car a função sintática da palavra à qual se juntam. Como exemplo, podemos citar os casos nominativo (que marca o sujeito da sentença) e acusativo (que marca o objeto direto). O grego e o latim apresen-tavam casos. O português não contém marcação de casos gramaticais.

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Capítulo 03Língua universal e línguas particulares: da Idade Média ao século XVIII

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3 Língua universal e línguas particulares: da Idade Média ao século XVIII

Depois da dissolução do Império Romano, a Europa passou a viver uma situação de intenso plurilinguismo. Os vernáculos começaram a surgir e a se desenvolver, como ocorreu com o português. Por volta do ano mil da era cristã, já havia um leque de línguas nacionais disputando espaço com o latim, que tinha se tornado a língua internacional da cul-tura no Ocidente, desde a época do Império Romano. O grego já perde-ra sua força. Havia uma verdadeira situação de Torre de Babel por volta do ano mil, com línguas germânicas convivendo com línguas neolatinas (como o português e o italiano, entre muitas outras), e línguas isoladas, como o basco. Como afirma Umberto Eco (2001, p. 38), “[...] a Europa apresenta-se como uma Babel de línguas novas, e só em seguida como um mosaico de nações”.

Os filósofos e gramáticos tinham agora de lidar com essa enorme diversidade de línguas, e não podiam mais se limitar à descrição dos idiomas de maior prestígio, como o latim e o grego.

As respostas que os estudiosos apresentaram a essa nova situação são muito variadas. Uma primeira alternativa foi deixar de lado a espe-culação sobre a natureza da linguagem humana universal e se dedicar à descrição de línguas particulares . Com isso, elaboraram-se gramáticas descritivas de diferentes vernáculos. Um exemplo é a gramática do pro-vençal, que era uma língua culturalmente importante, falada no sul da França, e que exercia uma grande influência em outras regiões, como a Itália e a Catalunha.

A razão dessa disseminação cultural do provençal é que se tratava da língua dos poetas trovadores, que gozavam de muito prestígio na Idade Média. Uma obra que une gramática e poética provençal é o tra-tado denominado Leys d´Amors, publicado em 1336.

O preconceito contra os vernáculos era muito forte no fim da Idade

VernáculoLínguas nativas de uma população. Trask (2004, p. 304, grifos do autor) define vernáculo como “A fala corrente, do dia-a-dia, numa deter-minada comunidade”. Este termo é emprega-do “em contraste com a língua padrão”.

Essa oposição língua universal versus língua particular voltará a ser estudada na seção 9.1 da Unidade C.

No século XVI, surgiram muitas gramáticas do por-tuguês. A primeira delas foi a de Fernão de Oliveira (Grammatica da linguagem portuguesa), publicada em 1536.

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Média e ao longo do Renascimento. As línguas clássicas (grego e latim) eram consideradas as únicas verdadeiras; as outras, como italiano, cata-lão, provençal, inglês, português, alemão, etc., eram vistas como dialetos ou como línguas precárias e sem gramática. A descrição desses idio-mas foi, contudo, sendo feita aos poucos, por meio de várias gramáticas descritivas. Leon Battista Alberti, por exemplo, escreveu, em 1450, uma gramática do italiano “[...] com o propósito manifesto de mostrar que o italiano também tinha regras” (WEEDWOOD, 2002, p. 72).

Outra vertente era a redação de gramáticas latinas com funções pedagógicas. Como o latim clássico deixara há muito de ser falado nas ruas, os intelectuais lutaram para a sua preservação como língua de cul-tura, a ser usada nas universidades e nas igrejas. Um exemplo disso, já em pleno Renascimento, é a gramática latina escrita pelo inglês Thomas Linacre (1460-1524). Essa gramática funde características descritivas, com elementos especulativos sobre a natureza da linguagem humana em geral.

Mas, à parte essa descrição de línguas particulares, havia outra resposta à Torre de Babel europeia. Começaram a aparecer propostas de representação do que seria uma língua perfeita, que tivesse validade universal. Umberto Eco (2001) argumenta que a Europa nasceu sob o signo da dissolução do latim como língua universal; a confusão linguís-tica estava instalada, e alguns pensadores saíram em busca de uma lín-gua perfeita que pusesse ordem no caos.

Na verdade, a ideia de que existia uma língua universal já vinha desde a Idade Média, com os modistas (não eram estilistas de moda; eles falavam dos modos de significação e ficaram conhecidos como os modistas...). No tratado De modis, Boécio de Dácia (séc. XIII) afirma que, de cada idioma, “é possível deduzir as regras de uma gramática uni-versal” (apud ECO, 2001, p. 66). Essa gramática universal seria a língua perfeita, que nos daria acesso à verdade e à essência das coisas. Mas essa língua perfeita havia se perdido no tempo, e o que restava era a Babel das línguas reais. O grande poeta italiano Dante, que escreveu o poema a Divina Comédia no vernáculo de sua terra natal, percebia os verná-culos como línguas imperfeitas, pois a língua ideal havia se perdido.

Muitas vezes, a elite de um país usava uma língua de maior prestígio para se comunicar em momentos mais formais. Por exem-plo, na região que hoje é a Alemanha, a elite falava francês no século XVIII, e o alemão era consi-derado a língua das classes baixas. Isso só mudou com o Romantismo, no sé-culo XIX, quando o alemão passou a ser valorizado.

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Capítulo 03Língua universal e línguas particulares: da Idade Média ao século XVIII

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Na verdade, apesar dessa busca de uma língua internacional artificial (busca que chega até nossos dias com o esperanto), o que temos mesmo são as diferentes línguas reais, com as possíveis imperfeições e dificul-dades que apresentem. A língua perfeita (seja o que isso for) é apenas uma utopia.

Além dessas duas alternativas que já examinamos (descrição de línguas particulares e busca de uma língua perfeita), uma outra res-posta à multiplicidade de idiomas foi o racionalismo. A ideia era que as diferentes línguas reais poderiam ser descritas a partir de princípios comuns a todas elas. Não se trata de buscar a língua ideal, mas sim de identificar as propriedades das línguas que podem ser inferidas a partir de princípios descritivos bem definidos. Um dos maiores exemplos de gramática racionalista é a Gramática de Port-Royal, escrita por Arnauld e Lancelot e publicada em 1670. Os gramáticos de Port-Royal tentaram “[...] demonstrar que a estrutura da língua é um produto da razão e que as diferentes línguas são apenas variedades de um sistema lógico e ra-cional mais geral” (LYONS, 1979, p. 17).

Os autores argumentam que há, na mente humana, três operações básicas: conceber, julgar e raciocinar. Essas operações estão na base da constituição da gramática de qualquer língua. Weedwood (2002, p. 99) observa que

[...] as operações mentais foram transformadas na base das distinções

gramaticais: as três operações primárias – formar um conceito como

“redondo”, fazer um julgamento como “a terra é redonda”, e raciocinar

– forneciam um arcabouço para distinguir as várias partes do discurso

e para o estudo da sintaxe. Como essas operações e as suas consequên-

cias linguísticas são universais, elas podem ser exemplificadas por meio

de qualquer língua, e o francês e o latim oferecem a maioria dos exem-

plos. Dessa maneira, a célebre análise da oração “Deus invisível criou o

mundo visível” mostra simplesmente como três proposições mentais

distintas – que Deus é invisível, que Ele criou o mundo, e que o mundo

é visível – estão incluídas nesta única proposição verbal.

A ideia desses gramáticos é que a estrutura gramatical reflete uma estrutura lógica subjacente. Essa lógica corresponde à articulação dos pensamentos. No exemplo citado, se Deus é invisível e o mundo é vi-sível, e se Deus criou o mundo, então o “Deus invisível criou o mundo

Port-Royal era um monas-tério jansenista situado em Paris, que abrigava religiosos e eruditos.

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visível”.

A percepção da linguagem humana como fruto da razão exerceu uma forte influência nos estudos linguísticos, que se fazem sentir até hoje em dia. Autores como Leibniz, no século XVIII, Frege, no século XIX, e Chomsky, no século XX, entre muitos outros, deram continuida-de a essa tradição racionalista, criando modelos lógicos e/ou gramati-cais sofisticados que tentam reproduzir o sistema de regras que produ-zem as sentenças gramaticais das línguas humanas.

Sugerimos que você pesquise sobre como línguas que são hoje im-

portantes foram se afirmando como línguas nacionais a partir da Idade

Média (por exemplo, o português, o francês, o italiano, o inglês, etc.).

Resumindo este tópico: no século XI da era cristã, a Europa havia se convertido num grande caldeirão de línguas, com enorme variedade de idiomas, falados por diferentes populações. Isso influenciou o tipo de teoria gramatical que se elaborou desde essa época, até o século XVIII. Desde o final da Idade Média, e em especial no Renascimento, houve uma explosão de gramáticas de línguas nacionais da Europa. A primeira gramática do português, por exemplo, é de 1536. Por outro lado, com o fim do domínio do latim, alguns autores especularam sobre a existência de uma língua perfeita, que pudesse dar ordem ao caos linguístico euro-peu. Finalmente, a partir do Renascimento, começaram a surgir gramá-ticas com fundamentos racionalistas, que tentavam buscar os princípios universais que estão por trás de todas as línguas humanas. Um bom exemplo desse tipo de estudo é a Gramática de Port-Royal.

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Capítulo 04As línguas como produtos da história: a época do Romantismo

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4 As línguas como produtos da história: a época do Romantismo

A partir da segunda metade do século XVIII, e em especial na pri-meira metade do século XIX, houve um grande movimento de ideias, denominado de Romantismo, que significou uma reação ao racionalis-mo. O racionalismo sustentava que a linguagem era fruto de princípios racionais universais. Como tal, o racionalismo se opunha ao empirismo e ao historicismo. Para os empiristas, a aquisição do saber se dá através dos sentidos, que organizam e esquematizam os dados de nossa expe-riência. Para os historicistas, por sua vez, os sistemas simbólicos huma-nos, como língua e cultura, mudam profundamente ao longo do tempo, não refletindo apenas princípios racionais universais e imutáveis.

Os autores românticos sustentavam que as línguas humanas são o produto das circunstâncias históricas de uma civilização, e como tal sofrem enorme variação em função da historicidade. Além disso, esses autores pensavam que a língua não exprime apenas princípios racionais, mas está ligada aos sentidos e à imaginação dos seres humanos.

O movimento romântico ser-viu também para fortalecer a ideia de cultura nacional, na medida em que os vernáculos eram entendidos como expressão da alma de um povo. Com isso, houve a valorização, em especial a partir do século XIX, de línguas como o alemão e o italiano, entre outras. A Torre de Babel não era vista mais como algo necessariamente negativo, pois a expressão cultural só podia dar-se por meio da diversidade das línguas nacio-nais.

Vamos citar aqui a obra de três autores importantes que ajudaram a constituir a ideologia romântica: Vico, Rousseau e Humboldt.

Figura 3 - A Torre de Babel, de Peter Brueghel, o velho (1563).

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Para o filósofo italiano Vico (1668-1744), a visão racionalista e car-tesiana da ciência não se aplicava ao saber sobre o homem. Línguas, símbolos e culturas devem ser descritas não a partir de princípios gerais abstratos, mas a partir de uma descrição detalhada de como essas reali-dades simbólicas foram construídas ao longo do tempo. A realidade hu-mana, psicológica ou social, não se enquadrava, como objeto de saber, na visão da ciência cartesiana.

Vico defendia que a linguagem surgiu e foi evoluindo conforme as necessidades dos seres humanos, e associa a cada época da sociedade certa forma de linguagem. Ele descreve o ciclo da história com o que ele chama de três idades: a primeira, a idade dos deuses, em que a linguagem do homem era poética, servindo para descrever os fenômenos naturais e as ações cotidianas; a segunda, a idade dos heróis, em que a fantasia ainda prevalecia sobre a reflexão e a imaginação se confundia com a re-alidade (por exemplo, a linguagem de Ilíada e do Antigo Testamento); e a terceira, a idade dos homens, corresponde à cultura europeia da época de Vico, e está ancorada na literatura filosófico-científica de base con-ceitual e não mais imaginativa.

Para Vico, imaginação e reflexão são os dois lados da atividade sim-bólica do homem. As estruturas simbólicas são dotadas de um valor es-pecífico, e não universal. Esse sentimento da história ajudava a entender a enorme variação das línguas e das culturas, que se manifestou forte-mente no século XIX, quando o Romantismo atingiu o seu auge. Serviu também para valorizar a língua e a cultura populares:

[...] o gênio popular é o criador da verdadeira poesia, que não seria pro-

duto de civilizações altamente desenvolvidas, mas obra do instinto e

da imaginação livres, sendo mais espontânea e genuína nos períodos

primitivos. Em tais períodos, o instinto, a imaginação e a tradição oral

eram mais fortes que a razão e a reflexão, fazendo da poesia a língua na-

tural dos homens. (HERDER, Johann Gottfried; GOETHE, Wolfgang apud

FICKER, 1994.).

Outro precursor do Romantismo foi o filósofo francês Rousseau (1712-1778). Em seu Ensaio sobre a origem das línguas, Rousseau argu-menta que as paixões, e não as necessidades humanas, foram o motor do desenvolvimento de nossa faculdade de linguagem. Ele associa o desen-

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Capítulo 04As línguas como produtos da história: a época do Romantismo

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volvimento da linguagem verbal a uma maior expressão das emoções humanas no meio social. Afirma, ainda, que os homens primitivos satis-faziam plenamente suas necessidades práticas sem o recurso da lingua-gem, comunicando-se apenas por gestos e sons inarticulados.

A linguagem articulada serviu, segundo ele, para tirar o homem primitivo de seu isolamento físico e espiritual. O efeito da linguagem sobre os homens foi duplo: em primeiro lugar, ofereceu a eles uma per-cepção melhor da realidade dos outros. A linguagem deu-lhes a ima-ginação e “[...] quem não imagina não sente mais do que a si mesmo: encontra-se só no meio do gênero humano” (ROUSSEAU, 1987, p. 175). Em segundo lugar, a linguagem deu ao ser humano a capacidade de conhecer-se a si mesmo, de voltar-se para seu interior, com uma expres-são mais desenvolvida de suas emoções.

Contrariando o senso comum de que Rousseau pregava um retor-no ao mundo primitivo e não civilizado, essas ideias sobre a linguagem mostram que ele não desprezava a importância da civilização; o estado social deu ao homem uma “[...] ampliação dos horizontes intelectuais, enobrecimento dos sentimentos e elevação total da alma” (ARBOUSSE-BASTIDE; MACHADO, 1987, p. 14).

Para Rousseau, assim como para Vico, as línguas estão sujeitas a uma grande variação ao longo da história, e a estrutura da gramática de uma língua reflete a sociedade e a imaginação de uma dada época. Isso se opõe, por certo, ao racionalismo preconizado pela Gramática de Port-Royal.

Outro nome importante associado ao romantismo é o de Humbol-dt (1767-1835). Ele argumentava que é o ‘destino interno’ de uma nação que determina o tipo de linguagem que essa nação vai criar. Mas não se trata apenas de razão ou conceitos, pois uma língua exprime tam-bém emoções, atitudes e imaginação. Enfim, Humboldt, ao contrário dos racionalistas, via a língua como a emanação do espírito integral de um povo.

Como outros precursores do romantismo, entre eles Herder e Vico, Humboldt tinha um enorme interesse pela questão da origem da linguagem, e argumentava, juntamente com aqueles autores, que essa

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Estudos Gramaticais

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origem era poética e imaginativa, e não racional. Origem e finalidade se completavam: a arte era o destino maior da linguagem, pensava Hum-boldt. Ele também defendia que uma língua era uma atividade (ener-geia) e não um produto (ergon), o que implica que uma língua envolve um intercâmbio dinâmico entre estrutura, pensamento e cultura.

Resumindo este tópico: desde a segunda metade do século XVIII, e durante todo o século XIX, os estudos gramaticais foram influencia-dos pelas ideias do romantismo. Essa linha de pensamento favoreceu o estudo histórico sobre as línguas e sobre a relação delas com as dife-rentes etapas de uma civilização. As línguas nacionais passaram a ser valorizadas, e começam a adquirir o prestígio intelectual antes atribuído a apenas algumas línguas internacionais, como o latim e o francês. Fa-tores psicológicos e culturais passaram a ser considerados importantes no estudo da linguagem.

A questão da origem da linguagem estava na moda desde a segunda metade do século XVIII.

Em 1769, a Academia de Berlin instituiu um prêmio

para a melhor disserta-ção sobre o tema. Quem

ganhou foi Herder.

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Capítulo 05A busca da origem: do Romantismo ao Método Comparativo

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5 A busca da origem: do Romantismo ao Método Comparativo

O Romantismo, com sua obsessão pela origem da linguagem e a valorização das diferenças culturais, terminou criando um ambiente propício para o desenvolvimento do Método Comparativo, que buscava estabelecer famílias de línguas a partir da comparação de palavras e es-truturas de diferentes idiomas.

Se um grupo de línguas apresentava uma série de palavras seme-lhantes no som e no sentido, então se podia estabelecer com segurança um parentesco entre elas. As variações de sons entre os radicais dos vo-cábulos de línguas de uma mesma família não eram casuais, mas defi-nidas por regras fonéticas bem estabelecidas. Dessa forma, foram es-tabelecidas correlações entre línguas muito distantes geograficamente. Descobriu-se, por exemplo, que línguas tão diferentes quanto o sâns-crito (língua clássica e religiosa da Índia), o persa, o armênio, o grego, o latim, o antigo germânico, o romani (língua dos ciganos), entre outras línguas, derivavam de uma língua ancestral comum, o indo-europeu, cuja existência não pode ser atestada diretamente, mas inferida a partir da comparação entre as línguas derivadas dessa língua-mãe mais antiga. Assim, cada família de línguas derivaria de uma mãe específica mais antiga. De uma maneira mais científica e objetiva, satisfazia-se o desejo de recuperar a origem das diferentes línguas, e, por tabela, a cultura que cada uma carrega.

A descoberta inicial mais importante e extraordinária foi a do in-glês Sir William Jones, que fora indicado juiz da Suprema Corte de Jus-tiça em Calcutá, na Índia. Neste país, na época colônia da Inglaterra, ele se aperfeiçoou nos estudos do sânscrito, a língua sagrada da Índia. Numa famosa palestra, em 1786, ele afirmou o seguinte:

O sânscrito, seja qual for sua antiguidade, tem uma estrutura maravilho-

sa; mais perfeito que o grego, mais copioso que o latim, e mais primo-

rosamente refinado que ambos, embora mantenha com eles tamanha

afinidade, tanto nas raízes dos verbos como nas formas da gramática,

que é impossível pensar que isso se deu por acidente; a afinidade é de

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Estudos Gramaticais

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fato tão forte que nenhum filólogo poderia examinar as três línguas sem

pensar que elas tenham brotado de alguma fonte comum que, talvez,

não mais exista. (JONES apud PINKER, 2004, p. 321).

Essa fonte comum seria o indo-europeu, extinto há muito tempo, uma língua-mãe (também chamada de protolíngua) que devia ser fala-da inicialmente na Ásia, talvez na atual Turquia, cujos falantes migra-ram, em parte para a Índia, em parte para a Europa. Eis a razão pela qual as línguas se diversificam: as migrações humanas. Quando membros de um agrupamento humano, que inicialmente falam uma mesma língua, deslocam-se para uma região distante, ao longo do tempo, introduzem mudanças inconscientes na sua língua de origem, ao ponto de criarem línguas bem distintas, como são o grego e o sânscrito. Mas um exame acurado mostra identidades lexicais e estruturais importantes, e o pa-rentesco pode ser estabelecido.

O método comparativo representou uma metodologia de traba-lho empírico que pôde satisfazer a necessidade de se encontrar a língua original da qual teriam advindo as línguas modernas. Assim, podia-se realizar o sonho que esteve no auge durante o Romantismo: investigar a origem da linguagem, agora em bases concretas, sem depender apenas da intuição e da especulação.

Essa ênfase na história favoreceu o estudo de línguas exóticas, como as línguas asiáticas. No entanto, paralelamente, a comparação en-tre línguas de famílias distantes podia conduzir a novos preconceitos. Humboldt, por exemplo, defendia a superioridade das línguas europeias em relação às línguas da Ásia (cf. SEUREN, 1998). Hoje sabemos, to-davia, que não há línguas superiores a outras, e diferenças gramaticais não podem ser interpretadas como diferenças de qualidade da estrutura linguística.

O interesse pela história comandou as descobertas do método com-parativo. Na verdade, muitos comparatistas acreditavam, no início, que o ariano, a língua-mãe da família indo-europeia, seria a língua original da raça humana, tendo existido há cerca de 6.000 anos. Mas isso logo se mostrou falso, pois existem outras famílias de línguas tão ou mais anti-gas. Como vimos aqui, hoje se sabe que a origem da linguagem deve ter ocorrido há cerca de 100.000 anos. O mistério da origem da linguagem

Também chamado de filologia comparativa ou

comparativismo.

Um comparatista im-portante, o francês

Ernest Renan, defendeu teorias equivocadas ao comparar línguas. Para

ele, as línguas analíticas (como o francês) são

mais evoluídas que lín-guas como o chinês. Ele sustentava também que línguas semíticas (como

o hebraico) tinham certas limitações, difi-

cultando, por exemplo, o raciocínio abstrato

nessas línguas!

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Capítulo 05A busca da origem: do Romantismo ao Método Comparativo

33

continua.

Pesquise sobre a obra de autores importantes do Método Comparativo

e sobre as contribuições que eles deram.

Resumindo o tópico: o ambiente romântico, voltado para a histó-ria das línguas, favoreceu o desenvolvimento do método comparativo, que visa comparar línguas diferentes, a fim de estabelecer relações de parentesco entre elas. A comparação entre idiomas de diferentes conti-nentes estimula a descrição de línguas pouco estudadas antes, mas mui-tas vezes os comparatistas continuaram a defender preconceitos sem ne-nhuma base científica, como o de que as línguas europeias são melhores que as asiáticas.

Fechando a Unidade

Esperamos que esse passeio no tempo tenha ajudado você a perce-ber como o estudo da linguagem sempre foi um tópico de muito inte-resse, e que os fundamentos filósofos e históricos são importantes para se entender como os estudos gramaticais foram se desenvolvendo nas diferentes etapas da civilização ocidental. Paramos a nossa viagem no século XIX, pois a partir daí começa a chamada linguística moderna, cujos fundamentos você vai estudar nas unidades seguintes.

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Estudos Gramaticais

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Unidade BA linguística como estudo cientí-fico da língua(gem)

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Objetivos desta Unidade:

Ӳ Apresentar diferentes concepções de língua(gem);

Ӳ Identificar propriedades caracterizadoras das línguas naturais;

Ӳ Perceber o caráter de cientificidade da Linguística Moderna versus a Gramática Tradicional.

Nesta segunda Unidade, apresentamos a você a Linguística como estudo científico da língua(gem). Veremos, inicialmente, dife-rentes concepções de língua(gem), baseadas ora numa função cog-nitiva ora numa função social; em seguida, passaremos às principais propriedades que caracterizam as línguas naturais; fechando a Uni-dade B, traremos à baila a questão da cientificidade nos estudos da língua(gem).

A depender da perspec-tiva teórica assumida,

alguns autores não fazem distinção entre “lin-

guagem” e “língua”. Por isso a opção de repre-

sentar ambas as noções numa única palavra:

língua(gem).

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Capítulo 06Concepções de língua(gem)

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Concepções de língua(gem)

Vamos introduzir este capítulo com a seguinte passagem extraída de uma entrevista com o professor Ataliba Castilho, no livro Conversas com lingüistas: virtudes e controvérsias da linguística:

– Que é lingüística?

– Bom, eu, quando dou aula na graduação, costumo dizer para os alu-

nos: se você quer entender o que é lingüística e o que é seu objeto,

você precisa pensar um pouco na fábula dos três cegos apalpando o

elefante. Cada um apalpava um pedaço do elefante e definia o elefante

por aquele pedaço. Então, o que pegava a perna do

elefante dizia “o elefante é assim um cilindro muito

duro, rígido, é um animal com formato de cilindro e

que é estático, parece que esse animal não se mexe

e é um animal que ocupa posição vertical no espa-

ço”. O outro que mexia lá na tromba, naturalmente

discordava, não só quanto à disposição no espaço,

quanto à rigidez ao tato, tanto quanto à falta de

mobilidade. Imagino até que algum desses cegos,

tocando em outros lugares, concebeu a idéia de ca-

tegoria vazia. Então, a língua e a lingüística não são;

elas são o que para cada um de nós parecem ser.

(CASTILHO, 2003, p. 55).

Esse trecho apresenta de forma bem-humorada o tópico central da Unidade B. É da definição de linguística e de seu objeto que vamos tra-tar agora, contrapondo, brevemente, a Linguística Moderna à Gramáti-ca Tradicional no que diz respeito ao caráter científico de ambas.

À pergunta: Que é linguística?, costumamos encontrar a seguinte resposta: A linguística é o estudo científico da língua(gem) humana.

Mas essa resposta nos coloca outras indagações:

Ӳ O que é a língua(gem)?

Ӳ O que é um estudo científico?

Vamos tratar dessas questões a seguir.

6

Figura 4 - Ilustração “Elefante e cegos”

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Estudos Gramaticais

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As definições de língua(gem) são diversas, variando conforme o ponto de vista adotado pelo autor. Vejamos algumas:

(1) Linguagem é a capacidade específica à espécie

humana de comunicar por meio de um sistema de

signos vocais (ou língua), que coloca em jogo uma

técnica corporal complexa e supõe a existência de

uma função simbólica e de centros nervosos gene-

ticamente especializados. Esse sistema de signos

vocais utilizado por um grupo social (ou comuni-

dade lingüística) determinado constitui uma língua

particular (DUBOIS et al., 1973, p. 387).

(2) O termo [linguagem] se aplica àquela aptidão

humana para associar uma cadeia sonora (voz)

produzida pelo chamado aparelho fonador a um

conteúdo significativo e utilizar o resultado dessa

associação para a interação social uma vez que tal

aptidão consiste não apenas em produzir e enviar, mas ainda em rece-

ber e reagir à comunicação. Compreendida dessa maneira, a linguagem

aparece como o mais difundido e o mais eficaz instrumento natural de

comunicação à disposição do homem (BORBA, 1991, p. 9-10, grifos do

autor).

(3) [A língua] não se confunde com a linguagem; é somente uma par-

te determinada, essencial dela, indubitavelmente. É, ao mesmo tem-

po, um produto social da faculdade de linguagem e um conjunto de

convenções necessárias, adotada pelo corpo social para

permitir o exercício dessa faculdade nos indivíduos. [...]

A língua é de natureza homogênea, e constitui-se num

sistema de signos (SAUSSURE, 1971, p. 17, 23).

(4) A faculdade de linguagem é uma estrutura cognitiva

inata, humana e universal, e faz parte da herança gené-

tica de cada membro da espécie humana, do mesmo

modo que a visão é parte dessa herança. Essa estrutu-

ra, no que tange à linguagem, é o estado mental inicial

[chamado de Gramática Universal ou GU]. Passando por

estágios sucessivos, esse estado inicial se desenvolve,

seguindo um processo de maturação que sofre a influ-

ência do meio e das experiências pessoais, do mesmo

modo como a visão, até atingir um estágio estável (LOBATO, 1986, p. 38).

Figura 5 – Ilustração “O cérebro humano”

Figura 6 – Ilustração “Linguagem como ação interindividual”

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Capítulo 06Concepções de língua(gem)

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(5) A linguagem [é vista] como atividade, como forma de ação, ação

interindividual finalisticamente orientada; como lugar de interação que

possibilita aos membros de uma sociedade a prática dos mais diversos

tipos de atos, que vão exigir dos semelhantes reações e/ou comporta-

mentos, levando ao estabelecimento de vínculos e compromissos ante-

riormente inexistentes (KOCH, 1992, p. 9-10, grifos da autora).

Os trechos apresentados anteriormente evidenciam duas diferentes

concepções de linguagem/língua:

Ӳ uma centrada na função comunicativa/social, que vê a linguagem/língua como instrumento de comunicação e forma de interação;

Ӳ e outra centrada na função cognitiva/biológica da lingua-gem.

– Leia novamente as cinco definições apresentadas atentando para

essa diferenciação.

Não é nosso propósito, neste momento, aprofundar uma discussão sobre concepções de linguagem/língua, e sim apenas chamar a atenção para o fato de que diferentes pontos de vista criam diferentes objetos, ou, nos termos de Saussure, de que “é o ponto de vista que cria o objeto” (1971, p. 15). Assim, vamos reter por ora que a linguística se ocupa da linguagem/língua em qualquer das acepções mostradas acima, o que vai se refletir, naturalmente, em diferentes abordagens teóricas do fenômeno linguístico. O mesmo objeto pode ser analisado sob diferentes ângulos, a partir de dife-rentes pressupostos que podem ser complementares ou conflitantes. (Lem-bra da fábula dos cegos apalpando o elefante na introdução desta unidade?)

Ao longo do curso de Letras, você terá oportunidade de estudar diferentes abordagens teóricas. Vai ver que existem teorias formais e teorias funcionais da língua; que existem abordagens essencialmente linguísticas e abordagens interdisciplinares, como, por exemplo, a so-ciolinguística (que se ocupa da relação entre linguagem e sociedade), a psicolinguística (que se ocupa das questões de processamento e aqui-sição da linguagem), a etnolinguística (que se ocupa da relação entre linguagem e cultura), e assim por diante.

Ferdinand Saussu-re é um linguista suíço a quem se credita a atribuição de estatuto científi-co à linguística, no início do século XX. Pode-se dizer que Saussure, com sua obra Curso de lin-guística geral, inau-gurou a Linguística Moderna. É a partir de Saussure que os estudos linguís-ticos passam a ad-quirir um caráter mais sistemático e abstrato, e a língua é estudada sincro-nicamente, desvin-culada de sua his-tória. A ele se deve o início de uma corrente linguística denominada ‘es-truturalismo’.

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Estudos Gramaticais

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Até agora focamos nossa atenção em duas diferentes concepções de língua(gem): comunicativa ou cognitiva. Vamos atentar agora para certas diferenças entre linguagem e língua. Observe a distinção estabe-lecida no excerto a seguir.

Com relação ao objeto de estudo da lingüística, deve-se dizer que esta

ciência lida tanto com línguas particulares, isto é, entidades individuais,

como com a natureza geral destas mesmas línguas particulares, tentan-

do responder a dois tipos de pergunta: (a) o que as diferentes línguas

têm em comum e o que as diferencia entre si?; (b) o que há nas línguas

humanas que lhes atribui caráter único e as distingue dos demais sis-

temas de comunicação? Considerando que a linguagem será definida

como o que há de comum às diferentes línguas, conclui-se que a lin-

güística tem um duplo objeto: o estudo da linguagem em geral e o

estudo das diferentes línguas (ou, mais especificamente ainda, da gra-

mática das diferentes línguas). (LOBATO, 1986, p. 34).

Para refletir

1) Tente responder, conforme sua intuição de falante, as questões a) e b) apresentadas no excerto de Lobato (1986).

2) Identifique a concepção de linguagem/língua (como função comunicativa/social ou cognitiva/biológica) pre-sente nas seguintes definições extraídas dos Parâmetros Curriculares Nacionais – PCN (BRASIL, 1998b, p. 20):

Linguagem: ação interindividual

orientada por uma finalidade espe-

cífica, um processo de interlocução

que se realiza nas práticas sociais

existentes nos diferentes grupos de

uma sociedade, nos distintos mo-

mentos de sua história.

Língua: sistema de signos específi-

co, histórico e social, que possibilita

a homens e mulheres significar o

mundo e a sociedade.

Figura 7 – Capa dos PCNs de Língua Portuguesa.

Os Parâmetros Curri-

culares Nacionais são

documentos oficiais

do MEC que orientam

o planejamento pe-

dagógico nas escolas

brasileiras

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Capítulo 06Concepções de língua(gem)

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Resumindo este tópico: A linguística é o estudo científico da língua(gem) humana. Existem diferentes concepções de linguagem e/ou de língua: uma centrada na sua função comunicativa/social – como instrumento de comunicação e modo de interação; e outra na função cognitiva/biológica – como representação do pensamento. Cada uma dessas concepções vai se refletir em diferentes abordagens teóricas do fenômeno linguístico. Nesse sentido, podemos dizer que “o ponto de vista é que cria o objeto”.

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Capítulo 07Propriedades das línguas naturais

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7 Propriedades das línguas naturais

As línguas naturais são línguas humanas que se opõem às línguas formais construídas por matemáticos e lógicos, e às línguas artificiais como o esperanto. São exemplos de línguas naturais: o português, o italiano, o inglês, a Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS). Vale lem-brar, ainda, que a linguística se ocupa das línguas naturais. As pro-priedades descritas a seguir caracterizam e particularizam as línguas naturais.

7.1 Flexibilidade e adaptabilidade

Nós podemos usar a língua para produzir inúmeros atos de fala: externar nossos pensamentos e sentimentos, fazer perguntas ou decla-rações, fazer pedidos ou dar ordens, fazer ameaças ou promessas etc. Assim, a linguagem humana pode desempenhar inúmeras funções, de natureza cognitiva ou comunicativa.

Considerando-se quem fala, de que se fala e com quem se fala, te-mos três funções: uma que procura traduzir a atitude do falante naquilo que ele está transmitindo (função emotiva), outra centrada no contexto ou no conteúdo transmitido (função referencial), e uma terceira centra-da no ouvinte (função conativa). Como ampliação dessas funções bási-cas, temos ainda: uma que focaliza a própria mensagem dando-lhe rele-vo (função poética), outra que checa o canal pelo qual falante e ouvinte entram em contato (função fática) e uma última que se centra no código, ou seja, na própria língua, usando-se a língua para falar sobre a própria língua (função metalinguística).

Essas seis funções foram propostas por Jakobson, considerando a natureza social da linguagem. No quadro a seguir podemos visuali-zar melhor e relação entre as funções da linguagem e os elementos que constituem a comunicação:

O esperanto é uma lín-gua criada pelo médico polonês Ludwig Lazar Zamenhof, por volta de 1887, para ser língua de comunicação internacio-nal. Possui uma gramática regular e utiliza raízes latinas e gregas, além de raízes das línguas euro-peias mais faladas.

Ato de fala é uma ativi-dade comunicativa que considera as intenções do falante e os efeitos que consegue provocar no ouvinte.

Você poderá saber mais sobre as funções da lin-guagem lendo o capítulo ‘A comunicação humana’, de Diana P. de Barros. In: FIORIN, J. L. et al. (Orgs.). Introdução à lingüística. I. Objetos teóricos. São Paulo: Contexto, 2002. p. 32-41.

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Estudos Gramaticais

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É importante observar que cada texto não tem apenas uma função, mas várias delas. O que ocorre é que existe uma ou outra que predo-mina. Por exemplo, no texto publicitário predomina a função conativa, centrada no interlocutor (ouvinte/leitor). São formas linguísticas típicas da função conativa: pronome de segunda pessoa, verbo no modo impe-rativo, perguntas – para produzir o efeito de persuasão. Outro exemplo: nas definições do dicionário predomina a função metalinguística. Veja a definição da palavra ‘metalinguagem’ no dicionário Houaiss: “lingua-gem (natural ou formalizada) que serve para descrever ou falar sobre uma outra linguagem, natural ou artificial”. Como exemplo de função fática, temos o estabelecimento de contato social por meio do uso de expressões como bom dia! alô!.

A propriedade de flexibilidade e adaptabilidade da língua, além de (i) servir para produzirmos diferentes atos de fala, permite (ii) nos re-portar no tempo: ao passado, ao presente e ao futuro, (iii) nos referir a coisas que não existem no mundo real; e assim por diante.

7.2 Arbitrariedade

A língua não é um conjunto de rótulos, ou uma nomenclatura, que se aplica a uma realidade preexistente. A realidade só passa a ter existên-cia para os homens quando é nomeada, de modo que só percebemos no

Roman Jakobson é um dos mais im-portantes represen-tantes da Escola de Praga, movimento linguístico que sur-giu na década de 1920. No Círculo Linguístico de Pra-ga começaram a germinar as ideias que vieram a cons-tituir a corrente de-nominada ‘funcio-nalismo’.

Contexto/conteúdo/referenteFunção referencial

Remetente/falante Mensagem Destinatário/ouvinteFunção emotiva Função poética Função conativa

Contato/canalFunção fática

CódigoFunção metalinguística

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Capítulo 07Propriedades das línguas naturais

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mundo o que nossa língua nomeia. A realidade é apreendida e nomeada através de signos linguísticos.

Não existe um vínculo natural entre a forma das palavras (seja a ca-deia fônica, seja a representação escrita) e o seu sentido ou significado. O vínculo - Releia a seção 2 da Unidade A, que trata dessa questão sob o ponto de vista histórico - é convencional ou arbitrário e é estabelecido social e culturalmente. É uma espécie de acordo coletivo entre os falan-tes. O signo linguístico é, portanto, arbitrário e cultural. Por exemplo, nada há que determine que a ideia que temos de ‘lar’ e ‘moradia’ seja representada pela palavra ‘casa’. O que ocorre é um processo de simbo-lização, que constitui uma espécie de filtro da realidade. A linguagem categoriza a realidade, ou seja, classifica-a em categorias na medida em que representa essa realidade. Em outras palavras:

A atividade lingüística é uma atividade simbólica, o que significa que

as palavras criam conceitos e esses conceitos ordenam a realidade, ca-

tegorizam o mundo. Por exemplo, criamos o conceito de pôr-do-sol.

Sabemos que, do ponto de vista científico, não existe pôr-do-sol, uma

vez que é a Terra que gira em torno do Sol. No entanto, esse conceito

criado pela língua determina uma realidade que encanta a todos nós.

Uma nova realidade, uma nova invenção, uma nova idéia exigem novas

palavras, mas é sua denominação que lhes confere existência. Apagar

uma coisa no computador é uma atividade diferente de apagar o que

foi escrito a lápis, à máquina ou à caneta. Por isso, surge uma nova pala-

vra para designar essa nova realidade, deletar. No entanto, se essa nova

palavra não existisse, não se perceberia a atividade de apagar no com-

putador como uma coisa diferente. (FIORIN, 2002, p.56).

Por outro lado, a relação entre a forma da palavra (o significante) e o seu valor ou conteúdo (o significado), embora arbitrária, é necessá-ria e não depende da livre escolha do falante. Veja-se, por exemplo, o dicionário. A significação ou os valores atribuídos a cada palavra estão registrados como diferentes acepções de uso. Qualquer novo significado que a palavra venha a receber só vai ser dicionarizado após se regulari-zar no uso dos falantes, ou seja, de um grupo social. O caráter necessário do vínculo entre significante e significado se deve a, pelo menos, dois motivos:

a) o significante sem o significado (e vice-versa) não tem valor

Signo linguístico é um objeto linguístico dota-do simultaneamente de forma e sentido. A forma é chamada por Saussure de significante; e o sen-tido, de significado. Por exemplo, a palavra ‘cina-momo’ tem uma forma particular constituída de uma sequência de oito fonemas (sons da fala re-presentados graficamente por letras), e também de um sentido particular (um tipo específico de árvore). Os dois juntos formam um signo linguístico. Assim, o signo é constituído de significante + significado.

Você poderá saber mais sobre esse assunto len-do o capítulo ‘Teria dos signos’, de J. L. Fiorin. In: FIORIN, J. L. et al. (Orgs.). Introdução à lingüística. I. Objetos teóricos. São Paulo: Contexto, 2002. p. 55-65.

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Estudos Gramaticais

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linguístico;

b) uma vez estabelecido um vínculo convencional entre um sig-nificante e um significado, esse valor passa a ser repetido pelos falantes e se regulariza na língua. Se ficarmos inventando li-vremente novos sentidos para palavras já conhecidas da língua portuguesa, corremos o risco de não sermos entendidos pelos nossos interlocutores.

7.3 Dupla articulação

Em Linguística, o termo ‘articulação’ é usado no sentido de seg-mentação, subdivisão de palavras em partes, que podem se recombinar em outros contextos. A língua pode ser decomposta em unidades míni-mas de duas ordens: os morfemas – unidades mínimas significativas; e os fonemas – unidades mínimas não significativas. Essas unidades po-dem se combinar e recombinar indefinidamente.

Dupla articulação da linguagem

Morfemas: unidades da primeira articulação – com conteúdo se-

mântico.

Fonemas: unidades da segunda articulação – sem conteúdo se-mântico.

Por exemplo, a palavra ‘refazer’ pode ser segmentada em quatro morfemas: re/faz/e/r. Esses morfemas significam, respectivamente:

Ӳ duplicação (prefixo re–),

Ӳ ‘realizar’ (radical faz–),

Ӳ 2a conjugação (vogal temática –e–),

Ӳ infinitivo (desinência modo-temporal –r).

Os morfemas aparecem em novas combinações como em:

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Capítulo 07Propriedades das línguas naturais

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Ӳ re/ler, re/contar, re/plantar,

Ӳ faz/ia, faz/endo, faz/edor,

Ӳ canta/r, faze/r, sorri/r.

A mesma palavra ‘refazer’ é constituída por sete fonemas: r/e/f/a/z/e/r.

Os fonemas também aparecem em novas combinações, como em:

Ӳ r/e/z/a/r, f/e/z, r/e/f/a/z.

Assim:

Ӳ numa primeira etapa de análise, isolamos unidades significa-tivas de natureza mórfica ou morfológica (1a articulação). Os morfemas são unidades significativas porque cada segmento da palavra apresenta um determinado valor: radical, vogal te-mática (1ª, 2ª ou 3ª conjugação dos verbos), marca de gênero (masculino ou feminino) ou de número (singular ou plural), desinência verbal número-pessoal ou modo-temporal etc.;

Ӳ numa segunda etapa de análise, identificamos unidades distin-tivas de natureza fônica ou fonológica (2a articulação). Os fo-nemas são unidades distintivas, embora não dotadas de signi-ficação, porque funcionam para distinguir palavras, como por exemplo: /pala/ versus /bala/ versus /mala/.

A articulação da linguagem é facilitada pelo caráter linear do sig-nificante; ou seja, o significante se desenvolve numa dimensão temporal (como numa linha), no caso da fala, ou espacial, no caso da escrita. Por linearidade, entende-se a disposição dos signos, uns depois dos outros, sem que se possa produzir mais de um elemento linguístico de cada vez.

Para refletir

– Por que se diz que a dupla articulação da linguagem é um fator de

economia linguística?

– Discuta essa questão com seus colegas.

Você poderá saber mais sobre a dupla articulação da linguagem lendo o capítulo ‘A língua como objeto da Lingüística’, de Antonio V. Pietroforte. In: FIORIN, J.L. et al. (Orgs.). Introdução à lingüística. I. Objetos teóricos. São Paulo: Contexto, 2002. p. 91-92.

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Estudos Gramaticais

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7.4 Produtividade

A produtividade é uma propriedade da língua que permite que uma dada regra seja estendida a novos casos. Assim, a partir de um nú-mero reduzido de regras combinatórias, podemos produzir um número ilimitado de novas palavras e enunciados. A noção de produtividade se aplica tanto no âmbito da formação de palavras (combinação de mor-femas), como na construção de frases (combinação de palavras). Por exemplo:

Na formação de palavras: o sufixo -idade, formador de substanti-vos, é bastante produtivo, pois aparece num número bastante significa-tivo de palavras no português (facilidade, dificuldade, seriedade, familia-ridade, legalidade). Já o sufixo -ura é menos produtivo na formação de substantivos (quentura, largura, espessura).

A regra subjacente aos casos ilustrados acima é a de formação de substantivos a partir de adjetivos:

[adjetivo + -idade/-ura = substantivo (fácil + -idade = facilidade; quente + -ura = quentura)].

Um determinado afixo (prefixo ou sufixo) pode ser produtivo numa certa época e não em outra. Por exemplo: “o prefixo disque-, próprio para formar substantivos, nem sequer existia antes dos anos 1980, mas hoje é prodigiosamente produtivo em português do Brasil: disque-pizza, disque-remédio, disque-denúncia”. (TRASK, R.L. 2004, p. 241)

Vale lembrar que a aplicação de afixos não se dá de maneira aleató-ria: existem certas condições gramaticais que precisam ser respeitadas. Assim, o prefixo re- pode se aplicar a bases verbais ou substantivas sem alterar a classe da nova palavra (re + contar = recontar; re + impressão = reimpressão). Já os processos de sufixação geralmente alteram a classe da palavra. Por exemplo, -ismo se aplica tanto a adjetivo (ótimo) como a substantivo (Marx) formando substantivo (otimismo, marxismo).

Na construção de frases ou constituintes de frases: a combinação de N (nome) + V (verbo) pode gerar: Pedro saiu; crianças brincam etc. A com-binação de Art (artigo) + N (nome) + Adj (adjetivo) pode gerar: a menina bonita; os rapazes inteligentes; uma maçã madura etc. E assim por diante.

Você poderá saber mais sobre a produtividade na

formação de palavras len-do ‘A morfologia deriva-

cional’. In: ILARI, R.; BASSO, R.M. O português da gente:

a língua que estudamos, a língua que falamos. São Paulo: Contexto, 2006. p.

103-108.

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Capítulo 07Propriedades das línguas naturais

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Curiosidades

No início da década de 1990, o então Ministro do Trabalho Antônio

Rogério Magri foi alvo de piadas porque, de modo criativo, aprovei-

tando-se do “estoque de morfemas disponíveis em nossa língua”,

mencionou que “O Plano é imexível”, referindo-se ao famigerado

Plano Collor. Toda imprensa registrou o episódio, condenando o

ministro, tendo em vista que, à época, não havia registro do termo

“imexível” nos dicionários de língua portuguesa.

O terreno futebolístico é altamente criativo também. Leia os comen-

tários a seguir e observe como ficou marcado na memória de muitas

pessoas (principalmente de jornalistas) o episódio com o ministro

relatado acima.

Para refletir

- Usando sua intuição de falante do português, como você explicaria

essa nova palavra (imexível) criada pelo então ministro Magri?

- Consulte dicionários (de preferência, Aurélio e Houaiss) e verifique se

hoje já existe o registro dessa palavra.

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Estudos Gramaticais

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7.5 Heterogeneidade

Uma outra propriedade das línguas naturais é que elas não são ho-mogêneas. Pelo contrário, as línguas variam e mudam ao longo do tem-po. Essa variação/mudança ocorre nas dimensões geográfica, social e estilística. Vamos retomar este ponto na terceira unidade.

Como vimos, as línguas naturais apresentam propriedades que as caracterizam e as particularizam.

Figura 9 - Alice a Humpty Dumpty (personagens de Aventuras de Alice, de Lewis Carrol)

Para refletir

– Observe o diálogo travado entre Alice e Humpty Dumpty (persona-

gens de Aventuras de Alice, de Lewis Carrol), e tente descobrir que pro-

priedade das línguas naturais está envolvida nesse diálogo.

– Reflita sobre os problemas daí decorrentes e discuta com seus cole-

gas.

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Capítulo 07Propriedades das línguas naturais

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Resumindo este tópico: As principais propriedades das línguas naturais são: (i) flexibilidade e adaptabilidade – a linguagem humana pode expressar várias funções (emotiva, referencial, conativa, poética, fática e metalinguística) e permite que nos reportemos no tempo e que possamos nos referir a coisas que não existem no mundo real; (ii) arbi-trariedade – a relação entre as palavras e o seu sentido é convencional e estabelecida socioculturalmente; (iii) dupla articulação – a linguagem humana é duplamente articulada, sendo decomposta em unidades mí-nimas significativas (morfemas) e em unidades mínimas não-significa-tivas (fonemas); (iv) produtividade – a partir de um número reduzido de regras combinatórias, podemos produzir um número ilimitado de novas palavras e frases; (v) heterogeneidade – as línguas variam e mu-dam ao longo do tempo.

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Estudos Gramaticais

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Capítulo 08O que é um estudo científico?

53

8 O que é um estudo científico?Vamos tratar agora da questão da cientificidade dos estudos linguís-

ticos. Como vimos na Unidade A, as preocupações com a linguagem são muito antigas, mas é apenas no início do século XX que a Linguística Moderna ganha autonomia e é reconhecida como estudo científico, a partir dos trabalhos de Ferdinand Saussure publicados no livro Curso de lingüística geral.

A linguística atende a critérios de cientificidade ao apresentar as ca-racterísticas listadas abaixo, entre outras. Essas características a opõem à chamada gramática tradicional. Assim, pode-se afirmar que linguística:

Ӳ é empírica: lida com dados verificáveis por meio da observação e da experiência; ou seja, as hipóteses teóricas podem ser ates-tadas pelos dados. A linguística não tem caráter especulativo ou metafísico. Já as gramáticas tradicionais, por serem parte da filosofia geral, tinham caráter especulativo à medida que pre-tendiam propor análises que respondessem a indagações sobre o universo.

Ӳ é objetiva: tem caráter não preconceituoso, não emite julgamen-tos de valor a respeito da língua do tipo “certo” vs. “errado”, “feio” vs. “bonito”, “superior” vs. “inferior”, “primitivo” vs. “evoluído”. A linguística, por ser descritiva (e não prescritiva), opera com a noção de adequação. Por exemplo, não falamos da mesma maneira quando nos dirigimos a nossos familiares e amigos em situações mais íntimas, e quando nos dirigimos ao nosso chefe, ao padre, ao prefeito etc. A linguagem se ajusta a novas situações comunicativas que envolvam mudança de papéis so-ciais dos interlocutores. Já os juízos de valor são característicos da abordagem tradicional, baseada na escrita literária clássica. À medida que impõe julgamentos, a gramática tradicional se constitui numa doutrina: a doutrina gramatical.

Ӳ tem caráter explícito: apresenta definição clara, coerente e deta-lhada dos pressupostos teóricos da análise; utiliza uma termi-nologia especializada; lida com critérios explícitos e objetivos.

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Estudos Gramaticais

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Em outras palavras, tem um “construto teórico” como base ex-planatória, ou explicativa, para os dados. Diferentemente, as gramáticas tradicionais apresentam, muitas vezes, definições vagas e imprecisas, com mistura de critérios. Além do mais, a maioria dessas gramáticas limita-se a repetir os mesmos con-ceitos e classificações ao longo dos anos.

Um aspecto importante a ser mencionado é que, com o advento da Linguística Moderna, a língua escrita deixa de ser considerada como mais importante que a falada. Admite-se que a língua está sujeita a va-riações e mudanças e que mudança linguística não significa deturpação ou decadência da língua. Para a linguística qualquer variedade de uma língua pode ser objeto de estudo. Enfim, rompe-se com a postura tradi-cional de que só a variedade culta escrita deve ser objeto da gramática. Separa-se, assim, a gramática prescritiva da gramática descritiva. Reto-maremos esse ponto na Unidade C.

Em relação ao caráter científico da linguística, cabe mencionarmos ainda a questão do método. O estudo sistemático da língua envolve, ge-ralmente, os seguintes passos:

Ӳ observação;

Ӳ problematização;

Ӳ formulação e testagem de hipóteses;

Ӳ checagem do modelo teórico;

Ӳ generalização.

Entretanto, como a linguística é um conjunto de saberes dos quais resultam modelos teóricos diversos, cada modelo vai requerer um apa-rato metodológico que seja compatível com suas especificidades. O im-portante é que as hipóteses sejam coerentemente testadas e sustentadas empiricamente dentro de modelos teóricos.

Perini (2006, p.35) coloca nestes termos o objetivo do linguista: fazer “uma descrição da estrutura da língua: o conjunto de regras, ele-mentos, classes e princípios que governam as associações dos diversos elementos da língua e seu significado”. Dizendo de outro modo: cabe ao

Lembre-se de que a gra-mática tradicional prioriza

a língua escrita literária, tomando-a como modelo de como escrever correta-

mente.

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Capítulo 08O que é um estudo científico?

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linguista descrever e explicar o funcionamento da língua, isto é, a rela-ção que existe entre os significados e as formas dessa língua.

O trabalho científico implica, basicamente, a observação e descrição

de fatos linguísticos a partir de certos pressupostos teóricos formu-

lados no âmbito da teoria linguística ou linguística geral. Cabe à lin-

guística geral fornecer conceitos e categorias que servirão de base

para o estudo das línguas particulares. Cabe à linguística descritiva

fornecer dados que validem ou refutem as hipóteses teóricas for-

muladas pelo linguista geral. O linguista descritivo, no entanto, não

está limitado a oferecer evidências empíricas para as formulações da

linguística geral; ele pode estar interessado em produzir gramáticas

de referência ou dicionários. Esses dois ramos da linguística (geral e

descritiva) não são estanques, e sim interdependentes.

No Brasil, temos importantes estudos descritivos, como os

trabalhos de Mattoso Camara Jr., de Mário Perini, de Maria Helena

Moura Neves, bem como os volumes de Gramática do Português Fa-

lado, produzidos pelos pesquisadores do projeto coordenado pelo

professor Ataliba de Castilho, entre muitos outros. Como os referen-

ciais teóricos podem ser diversificados, um mesmo fenômeno pode

receber diferentes descrições e explicações.

Para refletir

– Leia a passagem abaixo extraída da gramática de Cunha e Cintra, con-

siderando a diferença de ponto de vista entre linguistas e gramáticos

normativos.

– Discuta essa questão com seus colegas.

É justamente para chegarem a um conceito mais preciso de

‘correção’ em cada idioma que os lingüistas atuais vêm tentando

estabelecer métodos que possibilitem a descrição minuciosa de

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Estudos Gramaticais

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suas variedades cultas, seja na forma falada, seja na escrita. Sem

investigações pacientes, sem métodos descritivos aperfeiçoados

nunca alcançaremos determinar o que, no domínio da nossa

língua ou de uma área dela, é de emprego obrigatório, o que

é facultativo, o que é tolerável, o que é grosseiro, o que é inad-

missível; ou, em termos radicais, o que é e o que não é correto

(CUNHA; CINTRA, 1985, p. 8).

Resumindo este tópico: Alguns critérios de cientificidade opõem a Linguística Moderna à Gramática Tradicional: empiria, objetividade e caráter explicativo – presentes na primeira, mas não na segunda. A linguística se ocupa do estudo sistemático da língua, em qualquer varie-dade linguística, seguindo os seguintes passos metodológicos: observa-ção, problematização, formulação e testagem de hipóteses, checagem do modelo teórico e generalização.

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Unidade CGramática e norma

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Objetivos desta Unidade:

Ӳ Reconhecer ‘gramática’ como um termo polissêmico;

Ӳ Relacionar diferentes concepções de gramática a diferentes concepções de língua(gem) e de norma linguística;

Ӳ Reconhecer a língua como um sistema heterogêneo e os dife-rentes tipos de variedade linguística.

Nesta Unidade, vamos abordar a polissemia, isto é, a pluralidade de sentidos associados aos termos ‘gramática’ e ‘norma’, relacionando-os a diferentes concepções de língua(gem). Vamos também focalizar a heterogeneidade do sistema linguístico, distinguindo variedades: língua padrão versus não padrão, variedades regionais e sociais etc.

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Capítulo 09Concepções de gramática

59

9 Concepções de gramáticaSe ‘gramática’ é um termo polissêmico, isto é, tem mais de um sig-

nificado, quais seriam esses significados? É o que passamos a ver a se-guir. Antes, porém, procure refletir sobre as seguintes perguntas:

– O que você entende por ‘gramática’?

– Você gosta de gramática? Por quê?

– Certas pessoas consideram que estudar gramática é “unir o inútil ao

desagradável” (PERINI, 2002, p. 47). O que você pensa disso?

9.1 Gramática Universal e gramáticas de línguas particulares

Retomemos a definição (4) de linguagem apresentada no capítulo 6:

A faculdade de linguagem é uma estrutura cognitiva inata, humana e

universal, e faz parte da herança genética de cada membro da espécie

humana, do mesmo modo que a visão é parte dessa herança. Essa es-

trutura, no que tange à linguagem, é o estado mental inicial [chamado

de Gramática Universal ou GU]. Passando por estágios sucessivos, esse

estado inicial se desenvolve, seguindo um processo de maturação que

sofre a influência do meio e das experiências pessoais, do mesmo modo

como a visão, até atingir um estágio estável. (LOBATO, 1986, p. 38).

A ideia de universais linguísticos, presente no trecho acima, decor-re da crença de que a linguagem está vinculada a mecanismos inatos da espécie humana que são comuns aos membros dessa espécie. Em termos mais técnicos, segundo a teoria gerativa proposta por Noam Chomsky, a Gramática Universal (GU) é formada por (i) ‘princípios universais’ (leis rígidas e invariáveis), biologicamente determinados, que se aplicam igualmente a todas as línguas; e (ii) por ‘parâmetros’ (leis que variam entre as línguas), que são abertos, fixados pela experiência no ambiente linguístico, que dão origem à diferença entre as línguas. Assim, enquan-

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to os ‘princípios’ remetem mais diretamente à faculdade da linguagem, os ‘parâmetros’ têm a ver com as línguas particulares. Essa abordagem é conhecida como Teoria de Princípios e Parâmetros.

A questão da aquisição da linguagem é muito importante para essa teoria. É postulado que a criança tem uma GU inata que contém os princípios comuns a todas as línguas, cabendo a ela (criança) selecionar, a partir do input (dados de entrada, constituídos pelas formas linguísti-cas que ouve), as regras daquela língua que ela está adquirindo, ou seja, o valor que determinado parâmetro deve tomar. Em outras palavras, a criança nasce pré-programada com princípios universais e um conjunto de parâmetros a serem fixados de acordo com os dados da língua à qual ela estiver exposta.

Um exemplo de princípio universal é o de que operações sintáticas só podem afetar constituintes sintáticos, e não parte deles. Observe o funcionamento do constituinte sublinhado (no caso, objeto direto) nos exemplos abaixo.

1) Deixei alguns dos livros do Pedro na prateleira.

2) Alguns dos livros do Pedro, deixei na prateleira.

3) *Livros do Pedro, deixei alguns dos na prateleira.

4) *Alguns livros do Pedro, deixei dos na prateleira.

5) * Alguns dos, deixei livros do Pedro na prateleira.

Julgamos que as frases (3), (4) e (5) não são boas e não as produzi-mos, mas nunca ninguém nos ensinou isso.

Esses fatos são interpretados como indícios de que nosso cérebro é programado para aprender certas coisas, e não outras; ou seja, são ves-tígios de que existe uma GU. E dizer que certas frases são possíveis em uma língua significa dizer que elas são parte da gramática dessa língua. Por outro lado, dizer que elas não são possíveis significa dizer que elas não são parte da gramática dessa língua. Assim, quem decide se uma frase pertence ou não a uma língua é o falante nativo dessa língua, es-colarizado ou não.

Vejamos um exemplo do que se denomina, na teoria de Chomsky,

Estudos Gramaticais

60

O asterisco indica a agra-maticalidade da sentença,

ou seja, no caso dos exem-plos apresentados, aque-

les que não pertencem ao português. O ponto de in-terrogação diante da frase significa que a construção

é, no mínimo, estranha.

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Capítulo 09parâmetro: o chamado “parâmetro do sujeito nulo”. Um dos princípios universais determina que toda sentença das línguas humanas tenha uma posição sintática de sujeito. Mas em muitas línguas essa posição de sujeito não precisa ser foneticamente preenchida. Isso significa que o preenchimento fonético dessa posição é um parâmetro. Por outro lado, há línguas que sempre têm que preencher essa posição (como o inglês), e outras não (como o português, o italiano e o espanhol).

Observemos o “parâmetro do sujeito nulo” versus o “parâmetro do sujeito preenchido” nos exemplos abaixo:

Como se vê em a), “it” (pronome) ocupa a posição de sujeito. Já nas sentenças b), c) e d), basta o verbo para indicar o fenômeno meteoroló-gico, não havendo necessidade de preenchimento da posição de sujeito.

Para Chomsky, a língua é um sistema de princípios localizados na mente humana. Esse sistema abstrato de regras mentalizadas por um indivíduo coincide com seu conhecimento da língua, isto é, com sua competência linguística. Para a teoria gerativa, ter competência linguís-tica não significa ter habilidade ou aptidão para falar e escrever, e sim ter conhecimento internalizado do sistema de regras de uma língua. Essa competência é inata.

Imagine a seguinte situação: existe um conhecimento linguístico que se desenvolve independentemente dos ensinamentos escolares e outro que é aprendido na escola. O objeto de estudo da teoria gerativa é justamente a descrição e a explicação de algumas características parti-culares do conhecimento linguístico adquirido e desenvolvido nos pri-meiros anos de vida de um ser humano, independentemente de instru-ção formal. É esse conhecimento linguístico, a competência linguística, que permite às crianças construírem todas as sentenças possíveis de sua língua e somente elas.

Concepções de gramática

61

a) It rains! (inglês)

b) Ø Chove! (português)

c) Ø Piove! (italiano)

d) ¡ Ø Llueve! (espanhol)

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Se o sistema abstrato de regras mentalizadas é considerado em rela-ção à língua como um todo, ele corresponderá à gramática dessa língua, uma gramática particular. Nesse caso, a gramática é entendida como o sistema abstrato e finito de regras que permite gerar um conjunto infinito de sentenças.

Em síntese:

– A gramática universal (GU) é a faculdade da linguagem, o próprio

conhecimento inato dos falantes;

– A gramática particular é o sistema abstrato que subjaz às realiza-

ções linguísticas dos falantes.

Essa concepção de gramática – que recobre tanto a noção de gra-mática universal como de gramáticas das línguas particulares – é de natureza cognitiva/biológica. Corresponde, grosso modo, ao que se cha-ma de ‘gramática internalizada’, remetendo ao conjunto de regras que o falante conhece ou domina, ao seu conhecimento implícito da língua, independente do ensino formal ou escolarizado.

Para refletir

Perini (2004, pp.127-133) chama a atenção para as seguintes coincidên-

cias que se verificam entre as línguas:

a) aos 4 anos de idade as crianças já dominam sua língua ma-

terna (e às vezes também outras); isso sem ‘estudar gramá-

tica’;

b) há certos aspectos das línguas que nunca são ensinados, e

dos quais os falantes nem têm consciência, que são aprendi-

dos uniformemente por todos. Ou seja, temos conhecimentos

linguísticos que não são resultado de ensino. Por exemplo, po-

demos dizer:

Estudos Gramaticais

62

Você pode saber mais sobre esse assunto lendo

o capítulo ‘A competência lingüística’, de E. Negrão;

A. Scher; E. Viotti. In: FIORIN, J.L. et al. (Orgs.).

Introdução à lingüística. I. Objetos teóricos. São Paulo: Contexto, 2002. p. 95-119.

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Capítulo 09

Eu me vi na TV.

Vocês me viram na

TV.

Nós nos vimos na

TV.

Eu vi vocês na TV.

Eu nos vi na TV.

Mas a frase seguinte não é gramaticalmente boa:

? Nós me vimos na TV.

– Por que a frase assinalada acima não é gramaticalmente boa?

– Discuta essa questão com seus colegas.

Agora que já vimos a distinção entre gramática universal e gramá-ticas de línguas particulares, vamos refletir acerca de aspectos que dife-renciam a gramática prescritiva da descritiva/explicativa.

9.2 Gramática prescritiva versus gramática descritiva e explicativa

Tanto a gramática prescritiva (ou normativa) como a gramática descritiva são gramáticas de línguas particulares. A gramática prescriti-va se inspira na gramática tradicional, que, como já vimos, fundamenta sua análise em textos literários escritos, tomando-os como modelo de correção. A gramática prescritiva/normativa pode ser definida como conjunto de regras que devem ser seguidas. O uso linguístico que atende a essas regras é dito “correto”; o que não obedece às regras é taxado de “errado”. Essa é a concepção normalmente adotada nas gramáticas pe-

Figura 10 – Televisão

Concepções de gramática

63

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dagógicas e nos manuais didáticos. Já a gramática descritiva pode ser definida como o conjunto de regras que são seguidas.

A título de ilustração, observe como Cunha e Cintra tratam do em-prego do pronome sujeito:

Os pronomes sujeitos eu, tu, ele (ela), nós, vós, eles (elas) são normal-

mente omitidos em português, porque as desinências verbais bas-

tam, de regra, para indicar a pessoa a que se refere o predicado, bem

como o número gramatical (singular ou plural) dessa pessoa:

ando escreves dormiu

rimos partistes voltaram

Emprega-se o pronome sujeito:

a) quando se deseja, enfatica-

mente, chamar a atenção para a

pessoa do sujeito:

Sim! Tu sabes ligar-me a todos

os teus crimes. Tu me sopras

todos os pensamentos maus, tu

me apontas o abismo [...] (Castro

Alves, OC, 643).

b) para opor duas pessoas di-

ferentes:

Figura 11 – Capa da Gramática de Celso Cunha

Abraçamo-nos ambos contristados,Ele, porque há de ser, como eu, um velho,

E eu, por ter sido já, como ele, um moço (E. de Castro, UV, 68).

c) quando a forma verbal é comum à 1a e à 3a pessoa do sin-

gular e, por isso, se torna necessário evitar o equívoco:

É preciso que eu repita o que ele disse?É preciso que ele repita o que eu disse?

(CUNHA; CINTRA, 1985, p. 275-276 – Adaptado).

Estudos Gramaticais

64

Celso Cunha (gramático brasileiro) e Lindley Cintra

(gramático português) escreveram juntos a Nova

gramática do português contemporâneo.

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Capítulo 09Como se pode notar no quadro anterior, em se tratando de gra-

mática normativa, a regra geral prevista no português é de omissão do pronome quando estiver na função sintática de sujeito. A presença do pronome é aceita, pelas gramáticas normativas, nas seguintes situações: (i) para expressar valor estilístico marcando ênfase ou contraste, ou (ii) para evitar ambiguidade no caso de certas formas verbais idênticas para designar a 1a e a 3a pessoa do singular (eu/ele disse).

Importa salientar, entretanto, que estudos descritivos do português falado atualmente têm mostrado uma nítida preferência pela realização (ou preenchimento) do sujeito em torno de 60 a 70% dos casos. Os re-sultados desses estudos evidenciam que o português está passando por um processo de mudança no que diz respeito à presença do pronome su-jeito. (Nos termos da gramática gerativa, o português está passando por uma mudança de parâmetro, de sujeito nulo para sujeito preenchido.)

Esse é um exemplo de como uma abordagem normativa e outra descritiva tratam um mesmo objeto, no caso, o uso do pronome sujeito.

Várias vezes já mencionamos a palavra “regra” neste texto. A pro-pósito da noção de regra, observe a seguinte distinção estabelecida por Sírio Possenti:

Há dois sentidos em que se pode falar de regras: um deles traz consi-

go a idéia de obrigação, aproximando-se da noção de lei em sentido

jurídico: a regra é algo a que se obedece, sob pena de alguma sanção.

É nesse sentido que se fala das regras de etiqueta e do ‘bom comporta-

mento’. [...] O outro sentido de regra traz consigo a idéia de regularidade

e constância, aproximando-se de lei no sentido de ‘leis da natureza’. Por

exemplo, a lei da gravidade sistematiza uma parte de nossas observa-

ções sobre os objetos que nos cercam.[...] As regras de uma gramática

normativa se assemelham às regras de etiqueta, expressando uma obri-

gação e uma avaliação do certo e do errado. [...] As regras de uma gra-

mática descritiva se assemelham às leis da natureza, na medida em que

organizam observações sobre fatos, sem qualquer conotação valorativa.

Um botânico não critica plantas por apresentarem tais e tais caracte-

rísticas – descreve-as, classifica-as. [...] Pode-se falar em regras também

em relação à gramática internalizada [...] que expressam aspectos dos

conhecimentos lingüísticos dos falantes que têm propriedades sistemá-

ticas (POSSENTI, 1996, p.73-74, grifos do autor).

Concepções de gramática

65

As regras gramaticais podem ser de 3 tipos: 1) normativas – ditam o que deve ser seguido; 2) des-critivas – mostram o uso regular efetivo da língua; e 3) internalizadas – cor-respondem ao conheci-mento inato que o indiví-duo tem da língua.

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Uma observação que deve ser feita ao falarmos de gramática pres-critiva ou normativa é que, de fato, os manuais de gramática normativa não são inteiramente prescritivos. Observe a seguinte passagem da Gra-mática normativa de língua portuguesa de Rocha Lima:

Emprega-se indiferentemente tudo o que e tudo que; mais usada,

hoje, a primeira forma:

Tudo o que punge, tudo o que devora

O coração [...] (R. CORREIA apud ROCHA LIMA, 1972, p. 306).

Agora, compare com o seguinte trecho da mesma gramática:

São erros comuns dar forma oblíqua ao pronome sujeito de verbo

no infinitivo:

[...] para mim fazer [...]

(para eu fazer)

e dar forma reta aos pronomes mim e ti em regime preposicional:

Tudo ficou resolvido entre mim e ti – devemos dizer (ROCHA LIMA,

1972, p. 285).

A primeira passagem descreve o uso variável da expressão tudo (o) que, informando inclusive qual é a forma mais usada. Não há nenhum juízo de valor acerca desses usos. Já a segunda passagem condena certos usos pronominais chamando-os de “erros”.

Veja também os excertos da Nova gramática do português contem-porâneo de Cunha e Cintra (1985, p. 313-314 e p. 227, respectivamente):

Estudos Gramaticais

66

Veja, por exemplo, a Mo-derna gramática portugue-

sa, de Evanildo Bechara, que tem como título do

capítulo II: Gramática des-critiva e normativa – as unidades no enunciado.

(grifo acrescido)

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Capítulo 09

1) O pronome possessivo não exprime sempre uma rela-ção de posse [...]. Na língua moderna, ele tem assumido múltiplos valores, por vezes bem distanciados daquele sentido originário.

Mencione-se o seu emprego:

a) como indefinido:

‘A senhora há de ter tido seus apertos de dinheiro, disse Rubião’ (M.

DE ASSIS).

b) para indicar aproximação numérica:

‘Entrou uma mulherzinha de seus quarenta anos, decidida e de pas-

so firme’ (F. SABINO).

c) para designar um hábito:

‘Era lindo o bicho, com sua calma de passarinho manso’ (R. BRAGA)

2) Repete-se o artigo antes de dois adjetivos unidos por uma das conjunções e e ou quando os adjetivos acentu-am qualidades opostas de um mesmo substantivo:

‘Conhecia o novo e o velho Testamento’.

Não se repete, porém, o artigo se os dois adjetivos ligados pelas

conjunções e, ou (e mas) se aplicam a um substantivo com o qual

formam um conceito único:

‘Esqueceu que já não tinha mais a sua tristonha mas bela solidão’

(E. VERÍSSIMO)

Você deve ter percebido que, no primeiro caso, os autores descrevem diferentes valores do pronome possessivo; e no segundo, prescrevem o emprego do artigo junto de adjetivos. No entanto, é a variedade padrão da língua, ou norma culta, que é priorizada em ambas as passagens. Ob-

Concepções de gramática

67

Vamos falar mais sobre a variedade padrão no próximo capítulo.

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serve que os exemplos são retirados de obras literárias de autores clás-sicos da literatura brasileira, como Machado de Assis, Fernando Sabino, Rubem Braga e Érico Veríssimo.

Com o advento da Linguística Moderna, os estudiosos passaram a se preocupar não só com a descrição das línguas, mas também com a explicação para os fatos linguísticos. Hoje em dia, temos duas gran-des correntes teóricas que pretendem ter caráter descritivo e explica-tivo. Uma delas é a teoria gerativa proposta pelo linguista americano Chomsky na década de 1950, como uma gramática formal. A outra é a gramática funcional, que tem sua origem no chamado Círculo Linguís-tico de Praga, na década de 1920.

Uma abordagem formal da língua considera a intuição do falan-te como critério da gramaticalidade ou agramaticalidade da sentença. Uma sequência é agramatical quando não está de acordo com o conhe-cimento internalizado de que dispõe o falante (sua competência linguís-tica). Vamos pensar em algumas situações concretas? Por exemplo:

Para refletir

* De leite pudim este delícia é uma.

Considerando sua experiência de falante de português, levante hipó-

teses para justificar o porquê de a frase acima não ser considerada gra-

matical.

Já uma abordagem funcional leva em conta o uso linguístico na in-teração verbal, considerando, além de aspectos morfossintáticos, tam-bém aspectos semântico-pragmáticos e prosódicos, como entonação e ritmo. Considere as frases abaixo:

Este pudim de leite é uma delícia.

É uma delícia este pudim de leite.

Antes de explicarmos a mudança na ordem dos constituintes nessas frases, é preciso considerar a “ordem canônica”. A ordem canô-

Estudos Gramaticais

68

Leia novamente a seção sobre gramática universal e gramática internalizada.

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Capítulo 09nica dos constituintes corresponde à chamada ordem direta. As cons-truções transitivas, por exemplo, apresentam a ordem canônica SVO (sujeito + verbo + objeto). Se houver também elementos com valor cir-cunstancial (advérbios ou adjuntos adverbiais), esses virão no final da frase numa estrutura SVO Adv.

No primeiro exemplo, a frase está numa ordem canônica ou direta, ou seja, apresenta sujeito + verbo + predicativo. No segundo caso, o pre-dicativo, que é o atributo ou a qualidade do ‘pudim’, foi deslocado para o início, num movimento que chamamos de topicalização. Com esse tipo de construção, coloca-se em evidência o elemento topicalizado. Cons-truções que apresentam ruptura da ordem canônica são chamadas de construções marcadas. A marcação serve para colocar em relevo, dar destaque, enfatizar certas informações nas situações comunicativas em que as frases são proferidas.

Uma abordagem funcional da língua considera o nível textual/dis-cursivo, extrapolando os limites da frase. Por exemplo, isso é apresenta-do nas gramáticas normativas como pronome demonstrativo neutro, ou seja, como o termo usado em lugar de um nome para coisas inanimadas. No entanto, se observarmos textos escritos (ou mesmo trechos trans-critos de fala), vamos ver que isso é usado para estabelecer relações de coesão textual, retomando partes do texto. Uma abordagem funcional se ocupa desses usos de caráter mais amplo.

O quadro seguinte sintetiza algumas das características de cada tipo de abordagem (Essas características serão retomadas adiante, por isso não se preocupe se alguma delas não ficar clara para você neste momento.)

ABORDAGEM FORMAL DA LÍNGUA(GEM)

ABORDAGEM FUNCIONAL DA LÍNGUA(GEM)

1. Natureza da linguagem:Fenômeno mentalSaber individual inconscienteHerança genética comum da espé-cie humana (GU)Independente de contextoAquisição: capacidade humana es-truturada para aprender a língua

1. Natureza da linguagem:Fenômeno mental e socioculturalUsos da linguagem na sociedadeUniversais derivados da universali-dade de usos Dependente de contextoAquisição: desenvolvimento de ne-cessidades habilidades comunicati-vas da criança na sociedade

Concepções de gramática

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Veja um exemplo de aná-lise gramatical no âmbito do texto em ILARI; BASSO, 2006, p. 223-229.

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2. Concepção de língua:Objeto formal abstratoCompetência lingüística (inata)Expressão do pensamento

2. Concepção de língua:Instrumento de interação socialCompetência comunicativaProcessamento da informação e co-municação

2. Concepção de língua:Instrumento de interação socialCompetência comunicativaProcessamento da informação e co-municação

3. Concepção de gramática:Sistema adaptativo, dependente do contextoRegras comunicativamente motiva-das: foco na função + estruturaNíveis: morfossintático, semântico-pragmático (interligados)

Vimos, neste capítulo, que a concepção de linguagem/língua adotada vai implicar uma certa concepção de gramática. Para fechar o capítulo, veja como o professor Ataliba de Castilho aborda essa questão:

Como se sabe, a linguagem é um ‘objeto escondido’, assim como o ob-

jeto da Psicologia, da Sociologia e de outras Ciências Humanas. Para ela-

borar sobre ele, temos de partir de pontos de vista (expressão que tra-

duz a palavra grega ‘theoría’), de postulações prévias, que constituirão a

linguagem como um objeto cientificamente analisável. Simplificando

um pouco as coisas, pode-se dizer que há três grandes modelos teóri-

cos de interpretação da linguagem humana: a língua como atividade mental, a língua como uma estrutura e a língua como atividade social.

De acordo com a primeira teoria, a língua é uma capacidade inata do

homem, que lhe permite reconhecer as sentenças, atribuindo-lhes uma

interpretação semântica, ou produzir um número infinito de sentenças,

atribuindo-lhes uma interpretação fonológica. Em conseqüência, uma

gramática que assim entenda a linguagem será uma gramática implí-

cita (ou gramática da competência), interessada em explicar como as

pessoas adquirem uma língua, como elas produzem e interpretam a sua

ou uma outra língua. Esses postulados buscam, em última instância, a

Gramática Universal, subjacente às milhares de línguas naturais.

A teoria da língua como estrutura postula que as diferentes línguas na-

turais dispõem de um sistema composto por signos, distintos entre si

por contrastes e oposições, organizados em níveis hierarquicamente

dispostos: o nível fonológico, o nível gramatical (ou morfossintático) e,

Estudos Gramaticais

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Capítulo 09em alguns modelos, também o nível discursivo. As gramáticas estrutu-

rais buscam identificar as regularidades constantes das cadeias de fala,

são basicamente descritivas, e operam através da contextualização da

língua em si mesma.

Finalmente, a terceira teoria considera a língua como uma atividade

social, por meio da qual veiculamos as informações, externamos nos-

sos sentimentos e agimos sobre o outro. Assim, concebida, a língua

é um conjunto de usos concretos, historicamente situados, que en-

volvem sempre um locutor e um interlocutor, localizados num espa-

ço particular, interagindo a propósito de um tópico conversacional

previamente negociado. Uma gramática que assim entenda a língua

(como é o caso da Gramática Funcional) procura os pontos de contac-

to entre as estruturas identificadas pelo modelo anterior e as situações

sociais em que elas emergem, contextualizando a língua no contexto

social.

Tomadas em seu conjunto, as duas primeiras teorias postulam a língua

como [...] um produto que deve ser examinado independentemente de

suas condições de produção. Em suma, elas se ocupam de enuncia-dos, para cuja apreensão a Sintaxe assume uma grande autonomia em

relação à Semântica e à Pragmática. Já a terceira teoria postula a língua

como um fenômeno funcionalmente heterogêneo, representável por

meio de regras variáveis socialmente motivadas. A língua é, em suma,

uma enunciação, um elenco de processos, para cuja apreensão a Se-

mântica e a Pragmática se constituem em pontos de partida, sendo a

Sintaxe um ponto de chegada.

A Lingüística tem oscilado entre esses dois pólos, ora destacando a lín-

gua como um enunciado – valorizando-se as gramáticas formais, es-

truturais, gerativas – ora destacando a língua como uma enunciação

– valorizando-se as gramáticas funcionais. (CASTILHO, 2000, p. 11-12,

grifos do autor).

As duas primeiras concepções de linguagem e de gramática ex-postas na citação mostram, no seu conjunto, a língua como um produ-to que deve ser examinado independentemente de suas condições de produção. Correspondem a uma abordagem formal da língua(gem). Já a terceira concepção (de linguagem e gramática) mostra a língua como um fenômeno funcionalmente heterogêneo. Corresponde a uma abordagem funcional da língua(gem).

Concepções de gramática

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A Gramática de usos do português. São Paulo: Ed. UNESP, 2000, de Maria Helena de Moura Neves, é um exemplo de uma gramática funcional do português.

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Para refletir

1) Pense em “regras gramaticais” que lhe tenham ensinado na escola, mas que você normalmente não utiliza em sua fala.

a) Como você poderia argumentar se alguém lhe dissesse que esse uso que você faz da língua é errado?

b) Por que há diferenças entre as regras que são seguidas e as que devem ser seguidas?

2) Considerando a noção de gramática normativa e gramá-tica descritiva, pense no ensino de língua portuguesa. O que mostra a sua experiência (como professor(a) ou aluno(a)): o ensino é mais normativo, descritivo ou am-bos?

Resumindo este tópico: ‘Gramática’ é um termo polissêmico, pois pode ser usado com várias acepções, como por exemplo: (i) gramática universal – a faculdade da linguagem, o próprio conhecimento inato dos falantes; (ii) gramática particular – o sistema abstrato que subjaz às realizações linguísticas dos falantes de uma dada língua; (iii) gramática prescritiva – inspirada na gramática tradicional, pode ser definida como conjunto de regras que devem ser seguidas (opera com as noções de “certo” e “errado”); (iv) gramática descritiva – assentada na linguística, pode ser definida como conjunto de regras que são seguidas. A con-cepção de língua(gem) adotada vai implicar uma certa concepção de gramática. Com o advento da Linguística Moderna no século XX, os estudiosos passaram a se preocupar também com a explicação para os fatos linguísticos. Há duas grandes correntes teóricas, atualmente, que pretendem não só descrever, mas também explicar os fenômenos gra-maticais: uma chamada formal (postulada por Chomsky na década de 1950) e outra funcional (originada num movimento chamado Círculo Linguístico de Praga na década de 1920).

Estudos Gramaticais

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Capítulo 10A norma linguística

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10 A norma linguísticaVamos introduzir este capítulo com a seguinte citação:

Apesar de a língua escrita ser o território em que mais se evidencia a

obediência, ou não, a modelos prestigiados de uso, pode-se afirmar que

em qualquer modalidade de língua se constituem normas que emer-

gem naturalmente da média dos usos nas diferentes situações (NEVES,

2001).

Repare que Neves fala em “normas”, no plural, evidenciando-se aqui a questão da polissemia do termo mencionada no início desta Uni-dade. É de diferentes concepções de norma que tratamos a seguir.

10.1 Concepções de norma

O que vem a ser a “norma linguística”?

A primeira consideração a ser feita é que a noção de norma está associada a grupos sociais. Podemos dizer que um fator importante que identifica um grupo social e distingue um do outro é o uso que cada grupo faz da língua.

Esse uso comum caracteriza o que se chama de a norma lingüística de

determinado grupo. Assim, numa sociedade diversificada e estratificada

como a brasileira, haverá inúmeras normas lingüísticas, como, por exem-

plo, a norma característica de comunidades rurais tradicionais, aquelas

de comunidades rurais de determinada ascendência étnica, a norma

característica de grupos juvenis urbanos, a(s) norma(s) característica(s)

de populações das periferias urbanas, a norma informal da classe média

urbana e assim por diante. (FARACO, 2002, p. 38).

Vamos rever alguns conceitos já estudados. A ideia de norma apresentada anteriormente tem a ver com a noção de regras? Se você pensou que sim, acertou. Essas regras seriam descritivas ou prescri-tivas? Imaginamos que você vai responder algo do tipo: ‘Se elas têm a ver com o uso, então são descritivas’. É isso mesmo. É claro que os diferentes grupos que constituem uma comunidade não possuem di-ferentes línguas; o que os identifica são os diferentes usos que fazem de uma mesma língua, ou seja, aqueles usos que os particularizam face

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Estudos Gramaticais

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a outros grupos.

Marcamos nossa identidade pelo pertencimento a certos grupos sociais ou a grupos regionais (ser gaúcho, ser catarinense, ser parana-ense, ser mineiro, ser carioca, ser pernanbucano etc.). Ao fazer parte de determinado grupo, compartilhamos com os membros daquele grupo a mesma linguagem e os mesmos hábitos culturais; e, assim, constituímos a nossa identidade, apoiada em valores de solidariedade e lealdade entre os pares.

Se existem diferentes normas, há também diferentes gramáticas descritivas em uma língua? Mais uma vez a resposta é afirmativa. Po-demos ter, por exemplo, uma gramática da fala dos pescadores de Flo-rianópolis (SC), outra da fala dos descendentes de imigrantes italianos da zona rural de Chapecó (SC), outra dos falantes de classe média da zona central da cidade de São Paulo, e assim por diante. Mas, obvia-mente, tais grupos não são fechados. É claro que existem contatos entre os membros dos diferentes grupos. Os indivíduos desempenham dife-rentes papéis sociais no seu cotidiano e podem interagir com pessoas de diferentes estratos sociais, regiões etc. Da mesma forma, num âmbito maior, temos os fluxos migratórios que se deslocam por diferentes re-giões do país. Assim, a par de manterem características identificatórias por se agregarem a valores socioculturais, as normas linguísticas tam-bém se mesclam e se influenciam mutuamente, ou seja, são mescladas ou “hibridizadas” (FARACO, 2002, p. 39).

Para refletir

– Pense na sua situação: que tipo de intercâmbio social/regional você

costuma fazer?

– Consegue perceber interferências na sua forma de falar?

– Se você é professor(a), a que grupos sociais pertencem os alunos de

sua escola?

– Percebe diferenças na fala de seus alunos?

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Capítulo 10A norma linguística

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Nessas alturas, você deve estar se perguntando: ‘O que a escola deve ensinar se são tantas as regras, normas e gramáticas?’; ‘Será por isso que o ensino de língua portuguesa está tão caótico como dizem alguns?’. Vá pensando sobre essas questões, pois vamos retomá-las mais à frente.

Uma vez estabelecida essa correlação entre grupo social e norma (em termos mais amplos: entre sociedade e linguagem), vamos adiante em nossas reflexões.

Você já deve ter lido ou ouvido a expressão ‘norma culta’. É bastan-te discutível o uso do adjetivo ‘culta’ associado à norma. Faz supor que exista uma norma ‘inculta’, ou seja, falada por indivíduos sem cultura. Vale lembrar, entretanto, como mostram os estudos antropológicos, que não existe grupo social sem cultura, e sim com culturas diferentes. Você já ter ouvido também a expressão ‘norma-padrão’. Será que as expres-sões ‘norma culta’ e ‘norma-padrão’ são sinônimas? Para alguns autores, sim. Para outros, não. Nós também vamos tratá-las de modo diferen-ciado.

Observe como o professor Carlos Alberto Faraco define ‘norma culta’:

A expressão norma culta deve ser entendida como designando a

norma lingüística praticada, em determinadas situações (aquelas que

envolvem certo grau de formalidade), por aqueles grupos sociais mais

diretamente relacionados com a cultura escrita, em especial por aquela

legitimada historicamente pelos grupos que controlam o poder social.

(FARACO, 2002, p. 40).

Como podemos perceber, a norma culta está associada a certos va-lores sociais: os indivíduos que a praticam têm alto grau de escolarização circulam em ambientes que exigem certa formalidade e onde tem des-taque a cultura escrita. A norma culta é a língua que encontramos na mídia difundida nos grandes centros urbanos: jornais, revistas, livros etc. Corresponde ao uso linguístico de prestígio. A norma culta, como qualquer outra norma, pode ser escrita ou falada.

Curso superior completo.

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Estudos Gramaticais

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Fala e escrita

É importante observar que a escrita não é exatamente uma repre-

sentação da fala: não escrevemos como falamos. As diferenças entre

fala e escrita são decorrentes da natureza do meio ou canal de co-

municação:

– Na fala, tem papel muito importante o contexto circundante – a

presença do interlocutor, o espaço físico compartilhado, a possibili-

dade de usar gestos, diferentes entonações de voz etc; o processo

de elaboração das ideias se dá on-line permitindo reelaborações e

ajustes.

– Na escrita, não temos um interlocutor presente e precisamos ar-

ranjar recursos linguísticos para representar valores expressivos, por

exemplo; ao contrário da situação de fala, temos tempo de elaborar

as ideias para colocá-las no papel, e reescrevê-las, se for o caso, inú-

meras vezes.

Você se lembra do que comentamos há pouco sobre as normas se-rem “hibridizadas” ou mescladas? Pois bem, a norma culta, sendo de-preendida a partir do uso efetivo da língua por certo grupo social, tam-bém está sujeita a variações e mudanças. Portanto, a norma culta não é homogênea. Vamos pensar em algumas situações concretas?

Imagine uma situação em que um aluno pede um livro emprestado ao professor e este promete trazê-lo no dia seguinte. As seguintes res-postas (entre outras) são possíveis no âmbito da norma culta da língua portuguesa:

1) Trarei o livro amanhã, sem falta.

2) Vou trazer o livro amanhã, sem falta.

3) Trago o livro amanhã, sem falta.

Em certos contextos linguísticos, temos três formas alternativas para expressar o tempo futuro: o verbo flexionado no futuro do presen-

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Capítulo 10A norma linguística

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te (trarei); a perífrase com o auxiliar ir flexionado + verbo principal no infinitivo (vou trazer); e o verbo no tempo presente (trago).

É devido ao caráter heterogêneo da norma culta que há autores, como Marcos Bagno, que preferem falar em “variedades cultas” (no plu-ral) porque

[...] não existe um comportamento lingüístico homogêneo por parte

dos ‘falantes cultos’, sobretudo (mas não somente) no tocante à língua

falada, que apresenta variação de toda ordem segundo a faixa etária, a

origem geográfica, a ocupação profissional etc. dos informantes. (BAG-

NO, 2002, p.179).

Atenção!

Ӳ A norma culta deve ser vista como uma variedade da lín-gua portuguesa e não como a língua propriamente dita.

Ӳ A norma culta também está sujeita a variações e mudan-ças.

Ӳ Não devemos confundir norma culta com língua escrita.

Todas as normas são expressas em ambas as modalidades: língua falada e língua escrita. Tome-se como exemplo o projeto NURC (Proje-to de Estudo da Norma Urbana Linguística Culta). Temos, já, resultados significativos em termos de descrição da norma culta falada no Brasil. O que não significa dizer que tal descrição seja igualmente válida para a norma culta escrita. Esta é encontrada atualmente em textos de ampla circulação como livros, revistas e jornais.

Já a “norma-padrão”, grosso modo, costuma ser associada à ideia de gramática normativa. Isso porque tem um papel unificador que busca neutralizar as variações tornando-se uma “referência supra-regional e transtemporal” (FARACO, 2002, p. 42). Nesse sentido, a norma-padrão tem um caráter homogêneo sendo confundida com a própria língua, daí encontrarmos também a designação “língua padrão”.

Embora a noção de norma-padrão não se confunda com a de

O projeto NURC docu-mentou, na década de 1970, a norma culta falada em cinco capitais brasilei-ras (Recife, Salvador, Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre). É a partir de amostras linguísticas do NURC que se desenvolve o Projeto de Gramática do Português Falado coor-denado pelo professor Ataliba de Castilho. Desse projeto resultaram 8 volu-mes da Coleção Gramática do Português Falado e o volume 1 da Gramática do Português Culto Falado no Brasil, publicado em 2006.

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Estudos Gramaticais

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norma culta, há uma aproximação entre elas. Vejamos alguns exemplos:

1) A regra básica de concordância verbal normatizada em portu-guês é que o verbo deve concordar em número e pessoa com o sujeito; a norma culta também contempla essa regra de concor-dância, pelo menos quando se trata de ordem SV (sujeito–ver-bo) como em Os meninos chegaram.

2) A regra padrão de concordância nominal é que os elementos determinantes e modificadores (artigos, numerais, adjetivos etc.) devem concordar em gênero e número com o núcleo no-minal determinado; a norma culta também mostra esse uso, pelo menos em sintagmas nominais simples como meus filhos pequenos. Nesse exemplo, filhos é o núcleo nominal determina-do e meus, pequenos são elementos determinantes/modificado-res que concordam em gênero e número com o núcleo.

Há, entretanto, muitos casos de desacordo entre a prescrição nor-mativa e o uso culto. Eis alguns:

1) A regra geral de colocação do pronome átono é a ênclise, ou seja, a posposição do pronome ao verbo, como em Maria deu-me um livro. (A próclise é prevista com algumas palavras atra-toras, como elementos de negação, advérbios, entre outras). No entanto, a tendência de uso do brasileiro (salvo alguns poucos casos) é a próclise, isto é, a anteposição do pronome ao verbo: Maria me deu um livro.

2) A norma-padrão prevê a omissão dos pronomes sujeitos, uma vez que a informação número-pessoal já aparece na desinência verbal (corro; corres); a norma culta tende a realizar o sujeito (eu corro; tu corres).

É em função desse descompasso entre o que é normatizado (como uma espécie de lei) e o que é usado que nos deparamos frequentemen-te com verdadeiras campanhas de “caça a erros”, seja na fala de figuras proeminentes, seja na escrita, especialmente a midiática. Nem a norma-padrão nem a norma culta equivalem à língua portuguesa: a primeira corresponde a um ideal abstrato de língua tida como “correta”; a segun-da, a certa variedade da língua portuguesa. São equivocadas, portanto,

A norma-padrão cor-responde a regras im-

postas; e a norma culta, a padrões efetivos de uso

observável num certo grupo social.

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Capítulo 10A norma linguística

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expressões frequentemente ouvidas como: “não sei português”, “falo er-rado o português”. De fato, quem assim se expressa está querendo dizer: “não domino a variedade culta do português, ou a língua padrão”.

Para refletir

Pensando em sua prática docente (se você for professor(a)), ou na de

outros professores, como costuma ser vista a questão da norma linguís-

tica: como “norma-padrão” ou como “norma culta”?

Que implicações essas diferentes visões trazem para o ensino de língua

portuguesa?

Discuta essas questões com seus colegas.

10.2 Variedades da língua e língua padrão do Brasil

Já vimos que as noções de regra, norma, gramática estão interliga-das, apontando para a questão da diversidade linguística.

Observe novamente o trecho (que fecha o capítulo anterior) extra-ído da obra do professor Ataliba Castilho: “a terceira teoria postula a língua como um fenômeno funcionalmente heterogêneo, representável por meio de regras variáveis socialmente motivadas”. Essa passagem re-mete à ideia de que a língua portuguesa, como qualquer língua natu-ral, não é homogênea e nem uniforme. É heterogênea. Constituída de variedades linguísticas.

As variedades linguísticas podem ser: regionais, sociais e estilísticas (ou de registro formal ou informal), e ainda decorrentes da modalidade falada ou escrita da língua. Vamos ver alguns exemplos?

10.2.1 Variação regional ou geográfica

A variação regional ou geográfica corresponde às diferenças que uma mesma língua apresenta na dimensão espacial, quando é falada em

Você pode saber mais sobre esse assunto em: BAGNO, M. (Org.). Lingüís-tica da norma. São Paulo: Loyola, 2002. Trata-se de uma coletânea de 15 tex-tos de diferentes autores, que discutem a questão da norma linguística e seus desdobramentos: norma ideal versus nor-ma real; norma-padrão versus norma culta; norma objetiva versus norma sub-jetiva etc.

O fenômeno de variação e mudança ocorre em todos os níveis linguísticos: fonético-fonológico, mor-fológico, sintático, lexical e discursivo. As variedades linguísticas regionais e sociais são também cha-madas de dialetos.

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Estudos Gramaticais

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diferentes regiões de um mesmo país (ex.: Região Sul, Sudeste, Nordes-te, Norte do Brasil), ou em diferentes países (ex.: o português falado no Brasil e em Portugal). Vejamos alguns exemplos de variação nos dife-rentes níveis gramaticais:

Ӳ no nível fonético-fonológico – as vogais /e/ e /o/ pretônicas, como nas palavras “terraço” e “bolacha”, são pronunciadas como vogais abertas (é, ó) em certos locais do nordeste e como vogais fechadas (ê, ô) no sudeste e no sul;

Ӳ no nível morfológico – a marcação do diminutivo distingue “mainha” na Bahia de “mãezinha” no restante do país;

Ӳ no nível sintático – a posposição da negação como em “vou não” é típica de certas regiões do nordeste; a dupla negação como em “não vou, não” é comum no sudeste (especialmente no Rio de Janeiro); e a anteposição da negação como em “não vou” é preferida no sul;

Ӳ no nível lexical – a fruta cítrica de cor alaranjada e sabor ado-cicado é conhecida em grande parte da região Sul como “ber-gamota” ou “vergamota”. Em São Paulo, é chamada de “tange-rina”, no Rio de Janeiro de “laranja-cravo”, em Minas Gerais de “mexerica” e também em outros locais é conhecida como “laranja-mimosa” ou simplesmente “mimosa”;

Ӳ no nível discursivo – as expressões “mas bah!”, “pô, cara, aí...”, “ôrra meu!”, “pronto”, são facilmente associadas a falantes gaú-chos, cariocas, paulistas e paraibanos, respectivamente.

As diferenças linguísticas entre os falantes da zona urbana e da zona rural também estão no âmbito da variação regional.

10.2.2 Variação social

A variação social é aquela que reflete as diferenças sociais dos fa-lantes (principalmente o grau de escolaridade e o nível socioeconômi-co). Assim, temos a ‘variedade padrão’ ou ‘norma culta’ – aquela usada pelas pessoas mais diretamente relacionadas com a cultura escrita que é historicamente legitimada; e a variedade não padrão – aquela utilizada,

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Capítulo 10A norma linguística

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em geral, por indivíduos não escolarizados ou pouco escolarizados.

Exemplos:

Ӳ no nível fonético-fonológico – a variação entre /r/ e /l/ como em “brusa” e “blusa”; a despalatalização como em “muié” ou “muler” e “mulher”, são realizações características da variedade não padrão e da variedade padrão, respectivamente;

Ӳ no nível morfossintático – a conjugação verbal é frequente-mente reduzida a duas formas: eu vou / tu, “ocê”, ele, “nóis”, “ocêis”, eles vai, nos grupos com nenhuma ou pouca escolari-zação, o que implica a não concordância verbal nesses casos.

Observe, porém, que essas variações que estamos identificando como sociais são muitas vezes também regionais. Por exemplo, é muito comum ouvirmos tu foi no Rio Grande do Sul ou nós vai em parte da região Oeste, independentemente do nível de escolaridade do falante. Portanto, as motivações para a variação não são sempre as mesmas em todo o país. Estamos apontando aqui apenas tendências e não regras categóricas de uso da língua.

Para refletir

Ӳ Qual a diferença entre as noções de língua padrão, nor-ma-padrão e variedade padrão?

Ӳ Discuta essa questão com seus colegas.

10.2.3 Variação estilística ou de registro

É a variação que depende do contexto situacional em que se dá a prática discursiva. O contexto situacional envolve:

Ӳ os papéis sociais desempenhados pelos interlocutores: profes-sor – aluno; médico – paciente; vendedor – cliente; pais – fi-lhos; amigo – amigo etc;

Ӳ os domínios sociais: a escola, a igreja, o lar, o trabalho etc;

O uso da linguagem deve estar adequado às diferentes situações comunicativas, como uma “etiqueta social”. É como a roupa que usamos: ves-tido de festa para ir a um casamento, maiô para ir à praia, pijama para dormir etc.

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Estudos Gramaticais

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Ӳ o tipo de assunto: religião, lazer, política etc.

Em situações comunicativas que exigem maior formalidade, usa-mos uma linguagem mais cuidada e elaborada, ou mais monitorada – o registro formal. Em situações familiares e informais, usamos uma lin-guagem coloquial, menos monitorada – o registro informal.

10.2.4 Variação decorrente da modalidade oral/escrita

As modalidades oral e escrita se assemelham quanto às condições gerais de uso da linguagem, já que ambas expressam as mesmas inten-ções comunicativas e compartilham o mesmo código linguístico (léxico e gramática). As maiores diferenças decorrem das condições de produ-ção da linguagem, que envolvem:

Ӳ o tipo e o tempo de processamento das informações – levando, por exemplo, a hesitações, falsos começos e reparos na fala; e a maior planejamento e elaboração na escrita;

Ӳ o grau de dependência contextual – com maior envolvimento dos interlocutores, podendo fazer uso de gestos e expressões fisionômicas na fala; e maior distanciamento na escrita;

Ӳ uso de recursos gramaticais diferenciados – construções mais fragmentadas, com maior uso de coordenação e justa-posição de elementos na fala; e construções sintaticamente mais integradas, com maior uso de subordinação, de conec-tores diversificados, enfim, de adequação à norma culta, na escrita.

Há um aspecto muito importante que precisa ser considerado ao se comparar fala e escrita: a questão do gênero/tipo de texto e do registro (formal ou informal). Por exemplo: é válido comparar uma versão fala-da e outra escrita de um mesmo acontecimento relatado por um mesmo indivíduo numa situação informal; ou uma versão falada e outra escrita de uma exposição teórica numa situação formal. Já a comparação de um texto escrito acadêmico com o relato oral de um sonho a um amigo, por exemplo, não traz resultados tão significativos em termos de levantar características da modalidade escrita e da falada.

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Capítulo 10A norma linguística

83

A influência da modalidade oral ou escrita sobre os recursos linguís-

ticos utilizados pode ser mais adequadamente analisada se compa-

rarmos um mesmo gênero/texto e registro nas duas modalidades.

Por exemplo: a narrativa de um acontecimento X oralmente, depois

por escrito, feita por um mesmo sujeito, é um bom material de aná-

lise para percebermos as semelhanças e diferenças entre as duas

modalidades de expressão linguística.

Na verdade, não existem fronteiras rígidas, nem entre as varieda-des padrão e não padrão, nem entre as modalidades oral e escrita da língua. Bortoni-Ricardo (2004, p.61) propõe que pensemos na ideia de um contínuo representado numa linha imaginária que tem, localizada em cada extremidade, uma certa variedade ou modalidade.

Estudando as interações em sala de aula, a autora trabalha com as noções de “evento de oralidade” e “evento de letramento”, assim repre-sentados:

No caso da sala de aula, por exemplo, um evento de letramento pode ser permeado de eventos de oralidade. Os eventos de letramento são mediados pela língua escrita (exposição de um conteúdo a partir de um roteiro escrito, fala simultânea à escrita no quadro de giz, aula de leitura, ditado etc). Já os eventos de oralidade são intervenções curtas do professor, brincadeiras motivadoras, ou seja, situações de interação não mediadas pelo texto escrito (ex.: “Abram o livro na página tal”, “Vamu ficar quietos” etc.) (BORTONI-RICARDO, 2004, p. 26). É, pois, na ora-lidade que se manifesta mais claramente a variação inerente, a diversi-dade que constitui a língua.

No quadro a seguir, há duas versões, uma oral e outra escrita, de relato de uma informante universitária (Banco de fala e escrita/UFSC).

Bortoni-Ricado (2004) apresenta três contínuos: contínuo de urbanização, contínuo de oralidade-letramento e contínuo de monitoração estilística.

>eventos de oralidade

eventos de letramento

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Estudos Gramaticais

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Leia atentamente os textos, observando as semelhanças e diferenças en-tre as duas modalidades.

Amostra oral

Tá, meu nome é M., eu tenho 23 anos, trabalho com a educação in-

fantil, com crianças de 2 anos e meio a 3 anos e essa é a última sema-

na que eu vô trabalhá...(hes). Por um lado eu tô muito... eu tô muito

cansada e tô contente que já vai acabá, mas por outro lado eu tô...tô

muito sentida porque eu, eu sei que eu vô senti muita falta das crian-

ças, eu só tô pensando... só tô pensando o tempo todo nelas e essa

semana vai ser muita correria com festas, despedidas e eu sei que

tudo isso tá mexendo muito comigo eh entre outros fatores...mas...

mas todo ano eh a gente passa por isso, professor passa por isso e eu

sei que vai ser muito difícil eu pegá a mesma turma, as mesmas crian-

ças e a gente vai se acostumando (hes) em cada, cada final de ano é

uma despedida... dos pais das crianças, a gente se apega, os pais se

apegam à gente, muitos pais valorizam o trabalho da gente e isso faz

com que a gente cada vez queira estudá mais, se aprofunda, buscá

novos... novos cursos e também a valorizá a profissão, apesar de ser

muito desvalorizada a gente tem que acreditá e depositá ...depositar

confiança no trabalho e assim passar para as crianças e com isso eh

eles poderem fazê a diferença.

Amostra escrita

Meu nome é M., tenho 23 anos e trabalho com crianças de 2 anos e meio a 3 anos. Agora está no final do ano, eu estou contente porque está acabando por causa que estou cansada, mas por ou-tro lado eu já estou com saudade das crianças, a gente se apega. Mas todo ano acontece isso, sei que no próximo ano não vou pe-gar a mesma turma por causa da minha situação de professora ACT. Mesmo assim temos que acreditar e depositar confiança nestas crianças, confiando que eles vão ser os responsáveis por uma mudança. Isso é que nos incentiva, e o reconhecimento dos pais e o carinho das crianças, mesmo que a nossa profissão não seja valorizada.

Você pode saber mais

sobre o assunto desta

seção lendo: ILARI, R.;

BASSO, R. Português do

Brasil: a variação que

vemos e a variação que

esquecemos de ver. In:

_____. O português da

gente: a língua que es-

tudamos, a língua que

falamos. São Paulo: Con-

texto, 2006, p. 151- 196.

Os autores tratam dos

diferentes tipos de varia-

ção linguística: diacrôni-

ca, diatópica, distrática

e diamésica, ilustrando

com exemplos do portu-

guês falado e escrito.

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Capítulo 10A norma linguística

85

10.3 A questão do “erro” e suas implicações sociais

Veja a opinião do professor Mário Perini, um gramático descritivo, sobre a questão da diversidade linguística e do “erro” e suas implicações sociais:

As línguas evoluem, apesar da oposição, dos esforços e da cara fechada

dos gramáticos. Não se trata de um ‘perigo’, mas de um processo tão

natural quanto o crescimento das crianças, a rotação da Terra, o ciclo de

vida e morte dos seres vivos. Perigo, se há, está nesse complexo de in-

ferioridade lingüística que nos transmitem os autonomeados conhece-

dores e protetores da língua [...] existe perigo é quando nos dizem que

a língua usada pelos cento e muitos milhões de brasileiros não merece

respeito, e que apenas os especialistas é que detêm o poder de ‘falar

certo’. (PERINI, 2004, p. 24).

Como vimos enfatizando, na perspectiva da gramática descritiva não existe erro, o que pode haver é uma inadequação no sentido de o in-divíduo utilizar construções linguísticas de uma variedade não padrão em situações que requerem o uso da norma culta, por exemplo. É o caso da oração “Os carro passava muito rápido” pronunciada numa situ-ação de conversa informal, e produzida num relato escrito de um filme assistido. A não concordância nominal em “os carro” bem como a não concordância verbal em “os carro passava”, (i) na fala coloquial, são vis-tas como manifestação da variação inerente das regras de concordância nominal e verbal em português; e (ii) na escrita, são consideradas como desvio da norma culta, portanto um uso inadequado.

Importa salientar, no entanto, que “os carro passava” é, na perspec-tiva da gramática normativa tradicional, considerado erro tanto na fala como na escrita, por não atender às regras de concordância nominal e verbal, que ditam (i) que deve haver concordância de gênero e número entre o substantivo e os elementos determinantes dentro de um sintag-ma nominal; e (ii) que deve haver concordância número-pessoal entre o verbo e o sujeito. Tudo o que não atende às regras gramaticais é taxado de “erro”. Quais são as implicações sociais disso?

Observe as seguintes construções:

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Estudos Gramaticais

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Tu vai sair?

A gente vamos sair.

Nós vai sair.

Nas três frases acima ocorre um mesmo fenômeno gramatical: a não concordância entre o verbo e o pronome sujeito. Entretanto, o nível de aceitação das três construções é diferente. As pessoas, a depender da região, tendem a aceitar mais naturalmente o uso de “tu vai” na fala, e a rejeitar o uso de “nós vai”. Se se trata do mesmo fenômeno linguístico, por que essa diferença de avaliação dos falantes, nesse caso? Simples-mente porque o primeiro uso é mais generalizado entre os falantes do português brasileiro, independentemente do nível socioeconômico e mesmo do grau de escolaridade dos indivíduos. Já o mesmo não ocorre com o último exemplo, que é de uso mais restrito, seja regional (zona rural versus urbana, por exemplo), seja social (menos versus mais esco-laridade, por exemplo).

O que está em jogo aí? Trata-se do que se chama de valor social das formas variantes. A fala (ou escrita) é avaliada ou julgada em função do status social dos indivíduos que a utilizam, e não pelas características linguísticas em si. Esse tipo de julgamento revela preconceito linguístico, normalmente por parte daqueles que dominam a norma culta da língua e que, coincidentemente, se situam nos pontos mais altos na pirâmide social.

Para concluirmos esta Unidade, leia o seguinte excerto da obra de Faraco e Tezza (2002) Prática de textos para estudantes universitários:

[...] Do ponto de vista científico, não há como dizer que uma forma lin-

güística é melhor que outra, a não ser que a gente se esqueça da ciên-

cia e adote o preconceito ou o gosto pessoal como critério.

Entretanto, é fato que há uma diferenciação valorativa, que nasce

não da diferença desta ou daquela forma em si, mas do significado social que certas formas lingüísticas adquirem nas sociedades. Mesmo

que nunca tenhamos pensado objetivamente a respeito, nós sabemos

(ou procuramos saber o tempo todo) o que é e o que não é permiti-do... Nós costumamos “medir nossas palavras”, entre outras razões, por-

que nosso ouvinte vai julgar não somente o que se diz, mas também

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Capítulo 10A norma linguística

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quem diz. E a linguagem é altamente reveladora: ela não transmite só

informações neutras; revela também nossa classe social, a região de

onde viemos, o nosso ponto de vista, a nossa escolaridade, a nossa in-

tenção [...] Nesse sentido, a linguagem também é um índice de poder

(FARACO; TEZZA, 2002, p.51-52, grifos dos autores).

Para refletir

– Como você avalia os usos de: Tu vai sair?/A gente vamos sair./Nós vai

sair.? Você os aceita ou rejeita igualmente?

– Considerando tudo o que vimos até agora, como você interpreta a

seguinte afirmativa: “a linguagem também é um índice de poder”?

– Discuta essas questões com seus colegas.

Resumindo este tópico: ‘Norma’ é um termo polissêmico, pois en-volve várias acepções, havendo uma relação estreita com as concepções de ‘gramática’. Assim, a ideia de gramática prescritiva está associada a normas prescritivas, isto é, que devem ser seguidas. Já a ideia de gra-mática descritiva tem a ver com normas que são de fato seguidas; nesse sentido, as normas emergem naturalmente da média dos usos linguísti-cos nas diferentes situações comunicativas, em diferentes grupos sociais. Como existem diferentes grupos sociais, há também diferentes normas e, consequentemente, podem existir diferentes gramáticas descritivas. No caso do Brasil, verificamos uma espécie de encaixamento: a norma da comunidade menor (ex.: dos pescadores da Barra da Lagoa) faz parte da norma da comunidade maior (ex.: da cidade de Florianópolis) que, por sua vez, integra a(s) norma(s) do Brasil. Como os indivíduos inte-ragem em diferentes grupos sociais e regionais, as normas linguísticas também se mesclam e se influenciam mutuamente. As variedades lin-guísticas podem ser: regionais, sociais e estilísticas (ou de registro formal ou informal), e ainda decorrentes da modalidade falada ou escrita da língua.

Uma distinção conceitual importante é a que alguns autores fazem

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Estudos Gramaticais

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entre norma culta e norma-padrão. A norma culta corresponde ao uso linguístico (oral ou escrito) de prestígio na sociedade, sendo praticada por aqueles que têm alto grau de escolarização, circulam em ambientes que exigem certa formalidade e onde tem destaque a cultura escrita. A norma culta é a língua que encontramos na mídia difundida nos gran-des centros urbanos: jornais, revistas, livros etc. Esse conceito de norma culta aparece, por vezes, sob a denominação de variedade padrão. Já a noção de norma-padrão costuma ser associada à ideia de gramática normativa/prescritiva, apresentando um caráter homogêneo e sendo confundida, muitas vezes, com a própria língua. É importante distinguir a noção de uma variedade da língua da noção de a língua padrão. É nes-sa perspectiva diferenciada que se inserem, respectivamente, as noções de ‘adequação’ e ‘erro’ gramatical.

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Unidade DDescrição gramatical

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Objetivos desta Unidade:

Ӳ Desenvolver a prática de análise linguística nos diferentes ní-veis gramaticais;

Ӳ Cotejar definições e classificações com dados linguísticos;

Ӳ Refletir criticamente sobre definições/classificações das gramá-ticas normativas, percebendo as inconsistências destas.

Nesta Unidade, vamos conhecer alguns princípios e métodos para o estudo de gramática em seus diferentes níveis: fonético-fo-nológico, morfológico, sintático e semântico-pragmático. Vamos também analisar dados linguísticos à luz de definições gramaticais, avaliando o grau de adequação existente entre teoria e dados. É a Unidade em que vamos acionar com mais empenho o nosso investi-gador linguístico. Vamos colocar a “mão na massa”!

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Capítulo 11Princípios e métodos do estudo de gramática

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11 Princípios e métodos do estudo de gramática

Introduzimos esta Unidade com a seguinte citação de Perini (2002, p. 78):

[...] contrariando a crença popular, existe muita coisa desconhecida em

gramática; e, correspondentemente, faz-se grande quantidade de pes-

quisa nessa área, descobrem-se novos fatos, constroem-se novas teo-

rias. E, mais, a gramática não é nada daquilo que nos impingem na esco-

la. É uma disciplina ocupada, como as demais disciplinas científicas, em

estudar um aspecto do mundo, a saber, a estrutura e o funcionamento

das línguas. Entendida desse jeito, não só se torna muito mais interes-

sante, como abre a possibilidade de pesquisa. Há o que descobrir em

gramática, e muito.

Como bem diz o autor, a gramática é “uma disciplina ocupada, como as demias disciplinas científicas, em estudar um aspecto do mun-do, a saber, a estrutura e o funcionamento das línguas” (grifo nosso). É, portanto, da estrutura e do funcionamento da língua portuguesa que nos ocuparemos agora.

Como vimos na Unidade B, a linguística apresenta algumas ca-racterísticas que a definem como um estudo científico da linguagem: é empírica (lida com dados verificáveis), objetiva (tem caráter não precon-ceituoso) e explícita (tem um construto teórico-metodológico para des-crição e explicação dos fatos linguísticos). Vimos também que o estudo sistemático da língua envolve os seguintes passos: observação, problema-tização, formulação e testagem de hipóteses, checagem do modelo teórico, generalização. É claro que o curto espaço de tempo de nossa disciplina não permite que sigamos todas essas etapas. Por exemplo, não vamos ter condições, ainda, de checar modelos teóricos e fazer generalizações.

Mas vamos tentar alguns passos:

1) observar fatos linguísticos, isto é, o uso que os falantes fazem da língua;

2) formular hipóteses a partir dos fatos observados;

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Estudos gramaticais

92

3) verificar as hipóteses na análise dos dados, atestando-as ou re-jeitando-as (e, neste último caso, reformulando-as);

4) tentar formular regras descritivas.

Também vimos na segunda unidade que cabe ao linguista descre-ver e explicar o funcionamento da língua, isto é, a relação que existe entre os significados e as formas dessa língua.

O lingüista precisa estar sempre consciente do caráter das afirmações

gramaticais que faz: algumas se referem à forma, outras ao significado, e

outras ainda se referem à relação entre forma e significado. [...] as afirma-

ções que se referem à forma se chamam formais; as que se referem ao

significado, semânticas; e as que se referem à associação entre forma e

significado se chamam simbólicas. (PERINI, 2006, p. 68, grifos do autor).

Numa abordagem da língua como historicamente situada e sujeita a variações e mudanças, as associações entre formas e significados se dão sempre no contexto de uso linguístico envolvendo a situação comu-nicativa. Nesse sentido, a relação entre formas e significados pode ser chamada de funcional.

É o conhecimento que os falantes têm das formas, dos significados e das associações entre formas e significados, isto é, do seu funcionamento, que lhes permite usar a língua nas mais diversas situações de comuni-cação.

Ao descrevermos ou definirmos fenômenos linguísticos, utiliza-mos critérios que podem ser formais, semânticos ou funcionais. Obser-ve as afirmações:

a) Verbo é uma palavra que aceita o sufixo –rei.

b) A noção de ‘futuro’ corresponde a uma situação temporal pos-terior ao momento de fala.

c) A desinência –rei nos verbos exprime a noção de que algo ain-da vai acontecer.

Em (a) temos um critério formal, pois se trata de uma classe de pa-lavras (verbo) e a possibilidade de acréscimo de um sufixo (uma forma que é um morfema). É importante esclarecer que estamos considerando que o critério formal pode recobrir tanto o nível morfológico como o

Assim como a palavra gra-mática, o termo funcional

também é polissêmico. Pode significar as rela-

ções estabelecidas entre formas e significados no

âmbito linguístico (no sentido de “simbólicas”), ou ainda entre formas e

significados no âmbito do contexto comunicativo

(no sentido de “pragmá-ticas” ou “discursivas”). Há

ainda quem considere como critério funcional

(ou sintático) as relações estabelecidas entre as

palavras.

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Capítulo 11Princípios e métodos do estudo de gramática

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nível sintático da língua. Entretanto, há autores, como Mattoso Camara Jr., que associam o critério formal ao nível morfológico, e o critério fun-cional ao nível sintático. Para nós, o critério funcional agrega aspectos formais e semânticos. Chamamos a atenção para a necessidade de se entender os conceitos independentemente da terminologia utilizada.

Em (b) temos um critério semântico, uma vez que o que está em jogo é o significado de ‘futuro’. E em (c), um critério funcional, que as-socia a forma –rei ao significado de futuro.

Os mesmos critérios aparecem nas afirmações abaixo, respectiva-mente:

d) A palavra menino é trissílaba.

e) ‘Agente’ é o elemento que pratica a ação.

f) Em o menino saiu, o menino desempenha a função sintática de sujeito e o papel semântico de agente.

Em (d) o critério é formal, pois remete ao tamanho da palavra em termos de número de sílabas. Em (e) o critério é semântico, porque traz o significado de ‘agente’. Em (f) o critério é funcional, uma vez que as-socia uma função sintática (forma) a um papel semântico (significado).

Atenção!

Fixe bem esses aspectos metodológicos, pois você vai precisar acio-

ná-los para realizar as análises que vamos propor daqui para frente.

Sintetizando:

Na descrição e definição de fenômenos linguísticos, usamos critérios

que podem ser:

- formais: centrados na forma morfológica ou sintática dos elemen-

tos linguísticos.

- semânticos: centrados na significação.

- funcionais: centrados na associação entre formas e significados.

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Estudos gramaticais

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Resumindo este tópico: A descrição gramatical se ocupa da estru-tura e do funcionamento da língua em suas diferentes variedades. Ao descrevermos fenômenos linguísticos, utilizamos critérios que podem ser formais, semânticos ou funcionais.

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Capítulo 12Níveis de análise

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12 Níveis de análise Os níveis de análise linguística são: fonético-fonológico, morfoló-

gico, sintático (ou morfossintático) e semântico-pragmático.

12.1 Nível fonético-fonológico

Esse nível de análise se ocupa das realizações linguísticas concretas dos sons e do sistema de sons da língua. Que tal começarmos com uma piada? Atente para a variação no texto humorístico e procure entender o fenômeno fonológico envolvido:

Domingo à tarde, o político vê um programa de TV. Um assessor passa

por ele e pergunta:

– Firme? O político responde:

– Não, Sírvio Santos (POSSENTI, 1998, p. 34)

Observe o trecho abaixo, extraído do banco de dados linguísticos do projeto VARSUL. Note que se trata da transcrição de um trecho de entrevista, por isso a grafia representa aproximadamente a fala do infor-mante.

Entrevistador: Tu te lembras alguma coisa, assim, especial na tua infância, algum acontecimento que te marcou?

Informante: Ah, lembru, achei [um] muito divertidu. Na épuca qui

tava passandu aqueli fiwmi Kingui Kongui, pois a gente fomos assis-

tir, né? imagina. I comu na casa de meu avô [é] – é tipu assim uma

chacra, então a genti quando vowtô do fiwmi, né? a gente sempri

custumava brincá que ia procurá o Kingui Kongui [...]. Passávamos

o dia interu nu meiu du matu procurandu o Kingui Kongui. [...] Ah,

tem [uma]- uma brincadera qui a genti custumava fazê quandu era

criança, qui era muito divertida tamém. (SC FPL 01 F A PRI)

Não vamos tratar teorica-mente desses níveis, nem discutir a pertinência de abordá-los separadamen-te, pois no decorrer do curso você terá disciplinas específicas sobre cada um deles.

O VARSUL – Variação Linguística na Região Sul do Brasil – é um projeto de pesquisa interinstitu-cional (UFPR, UFSC, UFRGS e PUC-RS) cuja meta é organizar um banco de dados linguísticos com vistas à descrição da fala da Região Sul. Já existem inúmeras teses, disserta-ções e artigos descreven-do amostras de fala desse banco de dados, em todos os níveis gramaticais e sob diferentes abordagens teóricas.

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Estudos Gramaticais

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Podemos perceber, na fala transcrita do informante, diversos fenô-menos de variação fonético-fonológica do português:

Ӳ o átono pós-tônico realizado como /u/ (lembru, épuca)

Ӳ e átono final realizado como /i/ (aqueli, genti)

Ӳ redução do ditongo /ey/ para /e/ (interu)

Ӳ redução do ditongo /ow/ para /o/ (vowtô)

Ӳ vocalização do /l/ em /w/ (vowtô)

Ӳ apagamento do /r/ final (brincá , fazê )

Ӳ síncope, isto é, queda de um fonema no interior do vocábulo (chacra)

Observe que, algumas vezes, a alteração verificada num segmento fonológico corresponde, de fato, ao nível morfológico.Veja os dados de apagamento do /r/ final no trecho de entrevista acima: brincá, procurá, fazê. Trata-se de verbos no infinitivo: brincar, procurar, fazer. Nesse caso, o /r/ é um fonema que tem valor morfológico, pois representa a desinência verbal de infinitivo.

Os estudos sociolinguísticos sobre a realização da vibrante /r/ no português brasileiro (PB) apontam a tendência de apagamento da vi-brante pós-vocálica, preferencialmente quando o /r/ tem estatuto mor-fêmico como nos verbos infinitivos ou em nomes derivados como esco-lar, cantor. Os contextos de /r/ não morfêmico são os que ainda retêm a vibrante: azar, pior, açúcar, calor.

Em palavras como azar, pior, açúcar, calor, o /r/ é parte integrante do radical, diferente do que ocorre com os verbos no infinitivo. Esse fenômeno de variação (a realização ou não do /r/ final) está sujeito a di-ferenças regionais: nos dialetos carioca e florianopolitano, por exemplo, onde a articulação do /r/ é posterior, isto é, se dá na cavidade posterior da boca (velar), a queda é bem mais acentuada do que em Porto Alegre e Curitiba, onde a pronúncia é alveolar (a língua toca os alvéolos). A Re-gião Sul do Brasil se mostra mais conservadora quanto ao apagamento do /r/ pós-vocálico (MONARETTO, 2000).

Lembrete: o morfema é a unidade mínima significa-

tiva da língua (1ª articu-lação). Distingue-se do

fonema, que é a unidade mínima não significativa, mas distintiva (2ª articu-

lação).

Um elemento é não morfêmico quando não carrega nenhum tipo de

significação, sendo parte integrante de outro mor-

fema.

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Capítulo 12Níveis de análise

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Ainda em relação ao trecho da entrevista, observe o registro da pronúncia das palavras brincadera (brincadeira) e vowtô (voltou). São casos de redução dos ditongos /ey/ > /e/ e /ow/ > /o/, além da vocali-zação de /l/ na segunda palavra. Esse fenômeno de redução de ditongo e de vocalização de /l/ é bastante comum na fala, como você deve ter percebido, mas também aparece na escrita.

A seguir, apresentamos dois desafios na forma de situações-pro-blema: o primeiro relativo à oralidade e o segundo à escrita. Essa é uma forma de você mesmo verificar em que medida está assimilando os con-teúdos que estão sendo trabalhados. Vamos ver como você se sai no papel de investigador linguístico!

Situação-problema 1

Você é capaz de formular hipóteses sobre a redução (na fala) dos

ditongos decrescentes /ey/ e /ow/, a partir da observação das pala-

vras abaixo? Será que essa redução ocorre em todas as palavras? Use

sua intuição de falante: perceba como você pronuncia cada palavra.

seiva – reino – Leila – estudei – mineiro – manteiga – direito –

outro – ouro – peixe – veio – peito – loucura – loura – trouxa –

jardineira – beirada – colheita – sonhou – meio – soube – roupa

– ouvido – beijo – encontrou – louco – meigo – padeiro – comprei

– tesouro – meia – sei – cantou – queijo.

Compare suas hipóteses com os seguintes resultados de pesquisa

sobre redução de ditongos realizada por Paiva (1996), analisando

dados de fala do Rio de Janeiro:

– em final de palavra, há um comportamento categórico, com pre-

servação de /y/ e supressão de /w/ em todas as palavras;

– os contextos fonéticos seguintes ao ditongo que mais propiciam a

redução são: as consoantes palato-alveolares (chiantes) [, ,

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Estudos Gramaticais

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como em ‘trouxa’ <troxa> e ‘queijo’ <quejo>; e o /r/ simples, como

em ‘mineiro’ <minero> e ‘ouro’ <oro>;

– a redução do ditongo em sufixo, como em ‘padeiro’ <padero> é

bem maior do que no radical, como em ‘roupa’ <roupa> .

Ӳ Então, houve coincidência entre suas hipóteses e os re-sultados de Paiva (1996)? Você acha que pode haver va-riação regional nesse fenômeno?

Ӳ Discuta essa questão com seus colegas.

Vamos pensar agora na questão da escrita?

Situação-problema 2

O conjunto de dados a seguir apresenta a consoante lateral /l/ em

posição final de sílaba. Na escrita, especialmente das crianças, é co-

mum encontrarmos grafias variáveis com vocalização do /l/ (l > u),

como as do quadro a seguir.

vouta – azul – aniu – mel – funil – pauco – selva – amáveu – reu-

va – sausa – balsa – filtro – ultra – anzóu – lençol – canil – anéu

– falta – baude – coucha – culpa – molde – multa – carretéu –

Procure separar as palavras em grupos tomando como critério a vogal que antecede o /l/.

Considerando esse conjunto de dados, a sua experiência como professor(a) e a sua intuição de falante, formule hipóteses sobre a vocalização do /l/ na escrita tendo em vista a vogal precedente.

Veja, agora, o resultado de uma pesquisa realizada em quatro esco-las de Porto Alegre com alunos de 2a, 3a e 4a série do Ensino Funda-mental. Foi aplicado um teste de lacuna em que as crianças tinham que escrever palavras sob figuras ou palavras que completassem o sentido da frase.

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Capítulo 12Níveis de análise

99

Todas as palavras apresentavam a lateral /l/ em final de sílaba. A pes-

quisadora constatou a seguinte correlação (TASCA, 2006, p. 197):

[a, o, O, e, E] – maior índice do vocalização (ex.: lençóu por lençol)

[i] – índice intermediário de vocalização (ex.: aniu por anil)

[u] – pouquíssima vocalização (ex.: azul)

Ӳ E então, suas hipóteses coincidem com esse resultado?

Ӳ Discuta essa questão com seus colegas.

Antes de finalizar esta seção, vamos tecer algumas considerações sobre o “erro” relacionado a aspectos fonético-fonológicos e ortográfi-cos da língua.

Bortoni-Ricardo (2006, p. 271), de forma bastante pertinente, co-loca a seguinte questão: “por que falar em erros na escrita quando evita-mos enfatizar erros na oralidade?”. Na fala, tratamos as diferenças como usos mais, ou menos, adequados às diferentes situações. A fala é o ter-ritório da variação inerente; é onde o indivíduo marca sua identidade. Já na língua escrita, o chamado erro representa a transgressão de um código que é uniforme, convencionado e regulado pela ortografia – um código fixo que não prevê variação. As diferenças dialetais percebidas na fala são neutralizadas na escrita. Como bem exemplifica a autora: um professor pode aceitar de seu aluno tanto “eu encontrei ele no jardim”, quanto “eu o encontrei no jardim”; mas não pode jamais aceitar que o aluno escreva: “eu encomtrei [...]”.

“O erro ortográfico é como um erro aritmético, que se pode facilmente aferir mediante consulta a uma tabuada. O erro ortográfico também é aferível mediante consulta a um guia ortográfico ou a um dicionário” (BORTONI-RICARDO, 2006, p. 274).

Vamos pensar um pouquinho mais na questão do erro ortográfi-

co. Será que o problema que ocorre na grafia de <encomtrei> é da

mesma natureza daquele que ocorre na grafia de <lembru>, <sem-

pri>, <interu>, <cantá>, <bawdi>, <brusa>, <paia>? As palavras

do segundo grupo podem estar representando a forma como são

pronunciadas? Em quais palavras podemos perceber claramente a

influência da fala sobre a escrita?

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Estudos Gramaticais

100

Retomando o que foi dito anteriormente, a ortografia é um código fixo que não prevê variação. Isso quer dizer que se há um desvio orto-gráfico há erro. Se a ortografia é um código fixo, não deveriam existir, portanto, diferenças linguísticas regionais ou sociais na escrita. Mas, como vimos nos dados acima, encontramos algumas palavras cuja gra-fia reflete diferenças linguísticas dos falantes. Nesse caso, cabe ao pro-fessor ter conhecimento linguístico e sensibilidade para lidar com essas questões na sala de aula. A percepção da natureza diferenciada dos des-vios ortográficos e a distribuição das palavras em “graus de erros” é um bom ponto de partida.

Você deve ter percebido que é no segundo conjunto de palavras

que notamos a interferência da oralidade. Quem escreve <lembru>,

<sempri>, <interu>, <cantá>, <bawdi>, <brusa>, <paia> prova-

velmente está reproduzindo no código escrito seu modo de falar.

Nesse caso, é como se a escrita fosse o espelho da fala. Mas quem

escreve <encomtrei> não está reproduzindo uma certa pronúncia.

Nesse caso, o escrevente está rompendo com uma regra ortográfica

que diz que ‘somente antes de p e b se escreve m’.

Se fôssemos pensar em graus de erro ortográfico, certamente o

erro seria mais grave em <encomtrei> do que nas demais pala-

vras. Igualmente grave seria escrever <rrato>>, pois existe uma

regra geral em português que diz que ‘não se inicia palavra com

dois erres’.

Para refletir

Quando tratamos de “norma” na Unidade C, verificamos que existem

variações que contrastam o dialeto padrão e o não padrão, como em

<brusa> por ‘blusa’, <paia> por ‘palha’. E que também existem variações

dentro de um mesmo dialeto. Vamos refletir um pouco mais sobre isso.

Como você vê a pronúncia das vogais átonas /e/ e /o/, que são eleva-

das para /i/ e /u/, como em <divertidu>, <épuca>, <aqueli>?

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Capítulo 12Níveis de análise

101

12.2 Nível morfológico

Esse nível de análise contempla a descrição das palavras e de suas partes constituintes: radical, afixos, desinências (na terminologia tradi-cional) ou morfemas (na terminologia linguística). As gramáticas nor-mativas costumam incluir a classe, a estrutura e a formação de palavras no nível da morfologia.

Vamos começar discutindo a noção de palavra. Na escrita, uma palavra é identificada por espaços em branco que a delimitam antes e depois. Na fala, muitas vezes as palavras se pronunciam praticamente ligadas, numa espécie de contínuo fonético. Vamos tratar da palavra es-crita. Para efeitos de análise, vamos seguir a orientação de Perini (2006) e estabelecer uma distinção entre “palavra” e “lexema”. Para o autor,

Uma palavra é uma forma individual, com uma representação fonoló-

gica ou gráfica única; um lexema é uma classe de palavras relacionadas

de determinada maneira. Por exemplo, flor e flores são duas palavras,

mas pertencem ao mesmo lexema [...] Já flor e florista pertencem a

lexemas diferentes porque essa relação (com o sufixo –ista significan-

do ‘pessoa que trabalha com’) só ocorre em alguns casos, e de maneira

pouco regular. (PERINI, 2006, p.93, grifos do autor).

Vamos colocar nosso investigador linguístico em ação? Prepare-se para mais um desafio. Lembre-se de que um de nossos objetivos nesta Unidade é desenvolver a prática de análise linguística. E isso só se faz colocando a “mão na massa”. Antes, você deve se munir dos seguintes conceitos:

Derivação: processo morfológico que cria novas palavras e lexemas a partir da junção de afixos (prefixos e/ou sufixos) a um radical (ex.: enriquecer).

Trata-se de um uso não padrão ou de variação no âmbito da norma

culta (ou dialeto padrão)? Por quê?

Mattoso Camara Jr. distin-gue o “vocábulo formal” (da escrita) do “vocábulo fonológico” (da fala).

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Estudos Gramaticais

102

Considere, agora, as três afirmativas a seguir.

1) As palavras pertencem a um único lexema quando elas se re-lacionam gramaticalmente de modo sistemático e regular (PE-RINI, 2006, p. 93).

2) É preciso distinguir “sufixos flexionais” de “sufixos derivacio-nais”, pois os últimos não constituem um quadro regular, coe-rente e preciso como os primeiros, uma vez que:

a) uma derivação pode aparecer para um dado vocábulo e faltar para outro semelhante (cantar – cantarolar; falar–falarolar (?));

b) o falante tem liberdade para usar ou não um vocábulo deriva-do; já a flexão de gênero e número, por exemplo, é determinada pela construção frasal (regras de concordância);

c) enquanto a derivação estabelece “relações abertas” no âmbito do léxico, a flexão estabelece “relações fechadas” no âmbito da gramática de uma língua (CAMARA JR., 1972, pp. 71-72).

3) Na seção sobre flexões dos substantivos, Cunha e Cintra (1985, p. 174) dizem que “os substantivos podem variar em número, gênero e grau”. Os autores consideram o grau como uma flexão.

Flexão: processo morfológico que consiste em prover os radicais (verbais, nominais etc) de afixos ou desinências que variam confor-me o gênero, o número, a pessoa etc. A flexão não cria novos lexe-

mas (ex.: cantaste; meninas).

Relação aberta: corresponde ao conjunto de palavras e lexemas que se pode encontrar listadas no dicionário. Diz-se que é uma relação aberta porque as línguas estão constantemente ganhando novas

palavras. Trata-se do léxico de uma língua.

Relação fechada: corresponde às regras gramaticais que, apesar de

serem variáveis, não estão sujeitas a inovações constantes como o

léxico. Trata-se da gramática de uma língua – um conjunto de re-

gras de formação, combinação, uso de palavras etc, que funciona de

modo sistemático.

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Capítulo 12Níveis de análise

103

A partir das três afirmações apresentadas, procure analisar, com-parativamente, os três conjuntos de itens do quadro a seguir. Primeiro, tente utilizá-los em diferentes contextos frasais. Tenha em mente as se-guintes distinções para agrupar os itens:

– lexemas versus palavras

– morfema flexional versus morfema derivacional

– grau: flexão ou derivação? Cunha e Cintra têm razão ao tratar grau como flexão?

– valores semânticos dos sufixos –inho e –ão.

gato – gata

menino – menina

aluno – aluna

gato – gatos

menino – meninos

aluno – alunos

amar – amava

cantar – cantava

andar – andava

sair – sairia

partir – partiria

pedir – pediria

consolar – consolo

julgar – julgamento

testar – testagem

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Estudos Gramaticais

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fritar – fritura

cortar – corte

limpar – limpeza

chegar – chegada

inaugurar – inauguração

tentar – tentativa

pão – padeiro

casa – caseiro

música – musicista

motor – motorista

estofado – estofador casa – casinha/ casinhola/ casebre

livro – livrinho/ livreto/ livrete

colher – colherzinha/ colherinha

sofá – sofazinho

casa – casão/ casarão / casaréu

filme – filmão

carro – carrão

carro – carrinho

lombo – lombinho

camisa – camisinha

calça – calcinha

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Capítulo 12Níveis de análise

105

Se você chegou a uma conclusão próxima ao que se encontra abai-xo, parabéns! Caso contrário, volte e reflita um pouco mais sobre essas questões.

a) Somente na primeira coluna temos casos de palavras e lexe-mas: gato, gatos e gatas são três palavras e pertencem a um le-xema; o mesmo ocorre com menino, meninos e menina; e com aluno, alunos e aluna. Cada par de verbos corresponde a duas palavras e um lexema (amar e amava etc). Tanto as desinências –a (feminino) e –s (plural), como as desinências verbais –va (pretérito imperfeito) e –ria (futuro do pretérito) fazem parte de paradigmas sistemáticos e coesos. Na segunda e na terceira coluna, temos apenas palavras, pois elas não se relacionam de modo regular e coerente.

b) Apenas na primeira coluna temos morfemas ‘flexionais’: de gênero e número nos substantivos; e de número-pessoa e mo-do-tempo nos verbos. Na segunda coluna temos morfemas ‘derivacionais’: a) uma série de nove verbos derivam nomes abstratos com oito sufixos diferentes; e b) de uma série de cin-co substantivos, três derivam palavras que designam “pessoas que trabalham com”, com sufixos diferentes (–eiro em ‘padei-ro’, –ista em ‘musicista’ e –or em ‘estofador’ ). Por outro lado, ‘caseiro’ não é uma “pessoa que trabalha com casas”, e sim uma “pessoa que fica em, ou cuida de casa”; e ‘motorista’ não é uma “pessoa que trabalha com motores”, e sim uma “pessoa que di-rige carro”. Portanto, não há regularidade na formação dessas novas palavras.

c) Na terceira coluna temos dados relacionados a grau diminuti-vo e aumentativo. Também não existe uma regularidade na for-mação das palavras, uma vez que alguns sufixos se combinam

padre – padrezinho/ padrinho

porta – portão

bota – botão

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Estudos Gramaticais

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bem com certas palavras, mas não servem para outras. Por ou-tro lado, em certas formações, pode haver mudança de signifi-cado, como nos sete últimos pares (carro (veículo) – carrinho (brinquedo); lombo (costas) – lombinho (peça de carne); padre (sacerdote) – padrinho (aquele que apresenta alguém para ba-tismo), etc). Além disso, os sufixos –inho e –ão não indicam, em todas as palavras, ‘tamanho pequeno’ e ‘tamanho grande’, respectivamente. Em “ontem assisti a um filmão na TV”, o filme com certeza foi muito bom, mas não foi necessariamente lon-go; quando alguém chama outra pessoa de “queridinha”, esta pessoa não é necessariamente pequena.

d) Podemos escolher entre dizer “gostei deste livro” e “gostei deste livrinho”. Mas não temos liberdade, pelo menos na variedade culta da língua, para escolher entre “as gata andavam no jar-dim”, “as gata andava no jardim” e “as gatas andavam no jar-dim”; só é aceita esta última alternativa.

e) Em resposta ao questionamento apresentado na terceira afir-mativa, com base nos argumentos que listamos anteriormente, percebemos que os gramáticos Cunha e Cintra não têm razão, pois a categoria de grau não é flexão e sim derivação. (Veja no-vamente as justificativas apresentadas por Camara Jr. para dis-tinguir flexão de derivação.)

Divirta-se!

Leia a crônica de L.F. Veríssimo que aborda, de forma humorística, a questão do grau.

Aproveite e reflita sobre os diferentes valores semânticos dos sufi-xos –inho e –ão que você encontrar no texto.

DIMINUTIVOS, de Luis Fernando Verissimo

Sempre pensei que ninguém batia o brasileiro no uso do diminuti-

vo, essa nossa mania de reduzir tudo à mínima dimensão, seja um

cafezinho, um cineminha ou uma vidinha.

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Capítulo 12Níveis de análise

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Só o que varia é a inflexão da voz. Se alguém diz, por exemplo, “Ô vi-

dinha”, você sabe que ele está se referindo a uma vida com todas as

mordomias. Nem é uma vida, é um comercial de cigarro com longa

metragem. Um vidão. Mas se disser “Ah vidinha...” o coitado está se

queixando dela, e com toda a razão. Há anos que o seu único diver-

timento é tirar sapatos e fazer xixi. Mas nos dois casos o diminutivo

é usado com o mesmo carinho.

O francês tem o seu “tout petit peu”, que não é um diminutivo, é

um exagero. Um “pouco todo pequeno” é muita explicação para

tão pouco. Os mexicanos usam o “poco”, o “poquito” e – menos

ainda que o “poquito” – o “poquetín”. Mas ninguém bate o brasi-

leiro.

Era o que eu pensava até o dia, na Itália, em que ouvi alguém di-

zer que alguma coisa duraria um “mezzoretto”. Não sei se a grafia

é essa mesma, mas um povo que consegue, numa palavra, reduzir

uma meia hora de tamanho – e você não tem nenhuma dúvida de

que um “mezzoretto” dura os mesmos trinta minutos de uma meia

hora convencional, mas passa muito mais depressa – é invencível

em matéria de diminutivo.

O diminutivo é uma maneira ao mesmo tempo afetuosa e precavida

de usar a linguagem. Afetuosa porque geralmente o usamos para

designar o que é agradável, aquelas coisas tão afáveis que se deixam

diminuir sem perder o sentido. E precavida porque também o usa-

mos para desarmar certas palavras que, na sua forma original, são

ameaçadoras demais.

“Operação”, por exemplo. É uma palavra assustadora. Pior do que

“intervenção cirúrgica”, porque promete uma intervenção muito

mais radical nos intestinos. Uma operação certamente durará ho-

ras e os resultados são incertos. Suas chances de sobreviver a uma

operação... sei não. Melhor se preparar para o pior. Já uma opera-

çãozinha é uma mera formalidade. Anestesia local e duas aspirinas

depois. Uma coisa tão banal que quase dispensa a presença do

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Estudos Gramaticais

108

paciente. [...]

No Brasil, usa-se o diminutivo principalmente em relação à comi-

da. Nada nos desperta sentimentos tão carinhosos quanto uma boa

comidinha.

- Mais um feijãozinho?

O feijãozinho passou dois dias borbulhando num daqueles caldei-

rões de antropófagos com capacidade para três missionários. Leva

porcos inteiros, todos os miúdos e temperos conhecidos e, parece,

um missionário. Mas a dona de casa o trata como um mingau de

todos os dias.

- Mais um feijãozinho?

- Um pouquinho.

- E uma farofinha?

- Ao lado do arrozinho?

- Isso.

- E quem sabe mais uma cervejinha?

- Obrigadinho.

O diminutivo é também uma forma de disfarçar o nosso entusiasmo

pelas grandes porções. E tem um efeito psicológico inegável. Você

pode passar horas tomando “cervejinha” em cima de “cervejinha”

sem nenhum dos efeitos que sofreria depois de apenas duas cer-

vejas.

- E agora, um docinho. E surge um tacho de ambrosia que é um por-

ta-aviões.

(Disponível em: <http://intervox.nce.ufrj.br/~jobis/l-dimi.htm>.

Acesso em: 19 maio 2007)

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Capítulo 12Níveis de análise

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12.2.1 A questão do gênero

Continuemos nossa reflexão sobre os processos morfológicos. Como vimos, a flexão é um mecanismo gramatical que implica altera-ções morfológicas no final das palavras, aplicadas de modo sistemático e regular. Vamos nos deter na categoria de gênero, que distribui os no-mes em masculinos e femininos. Camara Junior considera que a flexão de gênero é redundante nos nomes substantivos em português, pois o gênero dos substantivos seria indicado pelos artigos e adjetivos que os determinam. Assim, menino é masculino porque se diz o menino estu-dioso.

A regra geral de flexão de gênero em português é a seguinte: acrés-cimo, para o feminino, do sufixo flexional –a, com a supressão da vogal temática, quando ela existe no singular:

lob(o) + a = loba (o –o de lobo corresponde à vogal temática do nome);

autor + a = autora.

É importante observar que essa é uma regra morfológica que des-creve a categoria gênero enquanto flexão. É comum, no entanto, encon-trarmos em gramáticas normativas e livros didáticos informações do seguinte tipo:

Os substantivos que designam pessoas e animais costumam flexionar-

se em gênero, isto é, têm geralmente uma forma para indicar os seres do

sexo masculino e outra para indicar os do sexo feminino [Entre os exem-

plos, os autores citam: aluno – aluna; galo – galinha; bode – cabra]

(CUNHA; CINTRA, 1985, p.184).

A afirmação acima apresenta, pelo menos, dois problemas. Você consegue detectá-los? Vamos voltar a esse ponto mais adiante.

Agora, vamos colocar novamente o investigador linguístico em ação!

Para refletir

Observe o conjunto de dados abaixo e tente distribuí-los em

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Estudos Gramaticais

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grupos de acordo com características comuns quanto à marcação de

gênero.

Pista: mantenha como critério básico a noção de flexão.

vitrine duque – duquesa homem – mulhercavalheiro – dama tataravô – tataravó marquês – marquesa

cônjuge genro – nora pastor – pastora

baleia abade – abadessa solteirão – solteirona

cortesão – cortesã cobra novo – novacantor – cantora juiz – juíza sogro – sograherói – heroína cliente garoto – garotapatrão – patroa colega pessoa

criança cadeira indivíduoimperador – imperatriz artista elefante – elefanta

nascente rádio capital

Como você deve ter percebido, o conjunto de dados acima apre-

senta palavras cujo gênero (masculino ou feminino) é indicado de

acordo com diferentes critérios. Tente identificar os dados que se

acomodam às seguintes descrições, depois discuta a análise com

seus colegas:

- há palavras que se conformam à regra geral de flexão de gênero;

- há palavras que entram na regra geral, porém com pequenas altera-

ções fonológicas;

- há palavras que indicam o gênero mediante derivação;

- há palavras que diferenciam o gênero através da mudança de radi-

cais;

- há palavras que mantêm a mesma forma para o masculino e o femi-

nino;

- há palavras que só apresentam uma possibilidade de gênero;

- há palavras que mudam o significado conforme o gênero.

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Capítulo 12Níveis de análise

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Essa mistura de critérios morfológicos e semânticos recobre tam-bém uma certa confusão entre a noção gramatical de gênero masculino e feminino e a noção semântica de sexo (macho e fêmea). Como equa-cionar esse problema?

Camara Jr. (1972, p. 82) propõe que o gênero em português, consi-derando a flexão, seja descrito por regras que distribuam os nomes em três grupos:

1) Nomes de gênero único (ex.: a rosa; o livro).

2) Nomes de dois gêneros sem flexão (ex.: o, a artista; o, a mártir).

3) Nomes de dois gêneros, com flexão redundante (ex.: o lobo, a loba; o mestre, a mestra).

12.2.2 A questão das classes de palavras

Quantas classes de palavras existem em português? Se nos ba-searmos na tradição gramatical diremos que são dez: substantivo, adjetivo, verbo, pronome, artigo, numeral, advérbio, preposição, con-junção e interjeição. Observe algumas definições encontradas em gramáticas normativas:

1) Para substantivo:

a) Substantivo é a palavra com que designamos ou nomeamos os seres em geral (CUNHA, 1972, p. 121).

b) Substantivo é a palavra com que nomeamos os seres em geral, e as qualidades, ações, ou estados, considerados em si mesmos, independentemente dos seres com que se relacionam (ROCHA LIMA, 1972, p. 61).

2) Para adjetivo:

a) Adjetivo é a espécie de palavra que serve para caracterizar os se-res ou os objetos nomeados pelo substantivo (CUNHA, 1972, p. 170).

b) Adjetivo é a palavra que modifica o substantivo, exprimindo apa-rência, modo de ser, ou qualidade (ROCHA LIMA, 1972, p. 86).

Sugerimos que você consulte estas e outras gramáticas e veja as defi-nições dadas para todas as classes.

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Estudos Gramaticais

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3) Para verbo:

a) Verbo é a palavra que exprime um fato (ação, estado ou fenôme-no) representado no tempo (CUNHA, 1972, p. 253).

b) O verbo, que denota ação, estado, ou fenômeno, é a parte da ora-ção mais rica em variações de forma ou acidentes gramaticais (ROCHA LIMA, 1972, p.107).

4) Para pronome:

a) Pronomes são palavras que servem: a) para representar um subs-tantivo; [...] b) para acompanhar um substantivo, determinando-lhe a extensão do significado (CUNHA, 1972, p. 199).

b) Pronome é a palavra que denota o ente ou a ele se refere, consi-derando-o apenas como pessoa do discurso. [...] Os pronomes, vazios de conteúdo semântico, têm significação essencialmente ocasional (ROCHA LIMA, 1972, p.98).

Vamos analisar, brevemente, todas as definições de verbo, subs-tantivo, adjetivo e pronome, dadas acima, considerando: a) os critérios utilizados; e b) a adequação de cada definição aos dados. Assuma nova-mente sua posição de investigador linguístico e dialogue conosco.

Como vimos no início desta unidade, os critérios, para descrever-mos fenômenos gramaticais, podem ser formais, semânticos ou funcio-nais. Consideremos, então, os pares de definições acima.

Em (1), substantivo corresponde a nome de seres em geral, e a qua-lidades, ações ou estados considerados independentemente dos seres (ou tomadas, elas próprias, como seres). Ou seja, a definição de subs-tantivo remete a coisas no mundo. O critério usado nessa definição é semântico, pois tem a ver com a significação.

Situação-problema

– Tente analisar os dados abaixo à luz das duas definições de substan-

tivo apresentadas.

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Capítulo 12Níveis de análise

113

Passemos ao segundo par de definições. Em (2), ambas as defini-ções se pautam pelo mesmo critério? Qual é o critério (ou critérios) utilizado? Compare: a) palavra que caracteriza os seres; e b) palavra que modifica o substantivo, exprimindo aparência, modo de ser, ou quali-dade. “Caracterizar os seres” é o mesmo que “modificar o substantivo”? Não é. A primeira definição associa o adjetivo diretamente aos seres no mundo; já a segunda relaciona o adjetivo ao substantivo, ou seja, relaciona duas classes de palavras no âmbito da língua, além de dizer para que serve o adjetivo. A primeira definição se assenta num critério semântico, e a segunda num critério funcional.

1) Os alunos acertaram a classificação do com.

2) O interessante do livro está na capa.

3) O branco é uma cor bonita.

4) Gosto de apreciar o cair da tarde.

– Quantos substantivos você identificou? (Dez?)

– Você consegue identificar que seres essas palavras designam?

– Você acha que a definição está adequada aos dados?

– Discuta suas descobertas com seus colegas.

Leia o texto de Perini: “O adjetivo e o ornitorrinco”. In: PERINI, M. Sofrendo a gramática. São Paulo: Áti-ca, 2002. p. 39-46. Neste texto, o autor discute cri-térios de classificação de substantivos e adjetivos.

Situação-problema

Agora, com base nas definições dadas para substantivo e adjetivo, exa-

mine os dados abaixo (dados adaptados de PERINI, 2002):

1) Maria demonstra uma atitude maternal.

2) Joãozinho estuda no maternal.

3) Rosa sempre tem uma palavra amiga.

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Estudos Gramaticais

114

Vamos ver agora o terceiro par de definições. Em (3), a primeira definição associa verbo a fato representado no tempo (critério semân-tico). A segunda definição, além de atribuir ao verbo a denotação de ação, estado, ou fenômeno (critério semântico), caracteriza-o como a parte da oração mais rica em variações de forma (critério formal). Em síntese: a primeira vincula verbo à ideia de tempo, e a segunda, além de não mencionar o tempo, evidencia que o verbo é rico em alte-rações formais, mas sem especificá-las.

4) Pedro se mostrou um amigo fiel.

5) Marcinha é uma menina magrela.

6) Essa magrela não para!

7) José é um homem trabalhador.

8) Os trabalhadores não chegaram ainda.

9) João tem um carro verde.

10) O verde está na moda.

11) Vítor tem um papo muito cabeça.

12) Maria estava com dor de cabeça.

13) Esse cara é um banana.

14) A banana está madura.

– O que você percebeu? Pode-se dizer que as palavras pertencem

a classes fechadas (do tipo: uma vez substantivo sempre substan-

tivo)?

– Você vê problemas nas definições de substantivo e adjetivo apresen-

tadas?

– O que você diz de: “Ele comprou um casaco muito cheguei.”?

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Capítulo 12Níveis de análise

115

Por fim, vamos à discussão do quarto par de definições. Em (4a), o pronome é apresentado como a palavra que representa um substantivo (isto é, está no lugar de um substantivo), ou que acompanha um subs-tantivo determinando-lhe a extensão do significado. Qual é o critério em jogo aqui? Como envolve relações sintáticas e semânticas, trata-se de um critério funcional. Em (4b), o pronome é visto como a palavra que denota o ente (ou ser), sendo vazio de significado, ou seja, só ga-nhando significação no contexto de uso. Pode-se dizer que o critério, neste caso, é semântico-pragmático, já que atrela a significação ao con-texto.

Quando consideramos na análise linguística o contexto de uso das formas – não só o contexto frasal, mas o contexto mais amplo que en-volve a situação comunicativa, os participantes da interação, o conheci-mento partilhado entre eles, as inferências sobre as intenções e crenças de um interlocutor –, estamos no âmbito da pragmática. A semântica se

Situação-problema

Examine as frases abaixo à luz das definições de verbo apresentadas.

1) A tempestade do final de semana foi violenta: derrubou muitas árvores, empurrou aqueles carros e nos deixou apavorados.

2) A corrida de ontem foi acidentada.

– Quais são as palavras que se encaixam nas definições?

– As definições recobrem adequadamente a classe dos verbos?

– Não poderíamos interpretar a tempestade do final de semana e a

corrida de ontem como fenômeno e ação, respectivamente, situados

no tempo?

– Não poderíamos interpretar violenta, apavorados e acidentada

como estados? Seriam, então, verbos?

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Estudos Gramaticais

116

ocupa do significado das palavras e das sentenças. Como, muitas vezes, é difícil delimitar esses campos, vamos reuni-los no nível semântico-pragmático.

Será que essas definições são adequadas? De saída, temos que con-siderar que essa classe recobre os seguintes tipos de pronomes: pessoais (retos e oblíquos), possessivos, demonstrativos, indefinidos e relativos. Observemos os exemplos:

1) Eu deixei meu livro novo de português em casa.

2) O Paulo? Encontrei-o naquela praça ontem.

3) Vários alunos assistiram ao filme que recomendei.

Os itens eu, meu, o, aquela, vários e que são considerados prono-mes. Quais representam substantivos e quais acompanham substanti-vos? Em meu livro, aquela praça e vários alunos, os pronomes acompa-nham substantivos (são, por isso, chamados de “pronomes adjetivos” pela tradição gramatical). Veja-se, porém, que novo também acompa-nha o substantivo “livro”. Seria então um pronome? O pronome o está substituindo o nome “Paulo”, e o relativo que retoma o antecedente “filme”. Mas que substantivo o pronome eu está representando? Eu re-mete à pessoa que fala, à primeira pessoa do discurso, mas não pode substituir o nome próprio. É agramatical a frase “* Maria deixei meu livro.”, em que Maria = eu. Portanto, eu não está substituindo nem acompanhando um nome.

Consideremos, agora, a questão de o pronome ser vazio de signifi-cado. O significado de eu é apenas ‘primeira pessoa do discurso’. Somen-te a cada enunciação é que eu se reveste de sentido: pode corresponder a Maria, João, Pedro etc., dependendo de quem esteja falando. Mas e quanto a vários? Independentemente da frase produzida, vários significa ‘diversos’, não sendo, portanto, uma forma vazia de significado.

Com essa rápida análise dos conceitos de pronome, percebemos que há incompatibilidades entre as definições e as supostas palavras que elas abrangem. Em outros termos, as propriedades de “substituir” ou “acompanhar” o substantivo não são adequadas para delimitar a classe tradicional dos pronomes.

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Capítulo 12Níveis de análise

117

Vamos focalizar nossa atenção nos pronomes pessoais.

Eis o quadro dos pronomes pessoais portugueses segundo a gramá-tica normativa (CUNHA; CINTRA, 1985, p. 270):

PESSOA pronomespessoais retos

pronomes pessoais retos oblíquos átonos

pronomes pessoais retos oblíquos tônicos

1ª pes. sing. eu me mim, comigo2ª pes. sing. tu te ti, contigo3ª pes. sing. ele(a) o(a)/lhe ele(a)1ª pes. pl. nós nos nós, conosco2ª pes. pl. vós vos vós, convosco3ª pes. pl. eles(as) os(as)/lhes eles(as)

Camara Jr. (1972, p. 108) já dizia que tal quadro é “puramente te-órico” porque “em nenhuma região da língua portuguesa ele se realiza exatamente”.

Situação-problema

Observe os dados abaixo e apresente um quadro que seja represen-

tativo do funcionamento do português falado atualmente (use as no-

tações P1 a P6 para designar as pessoas do discurso).

a) Você quer que eu lhe dê o livro?

b) Você quer que eu te dê o livro?

c) Você quer que ele dê o livro para ti?

d) Você disse que o João vinha contigo.

e) Tu disseste que o João vinha contigo.

f) Não posso deixar você entrar.

g) Não posso deixá-lo entrar. (dirigindo-se ao interlocutor)

h) Eu lhe disse para ficar quieto. (dirigindo-se ao interlo-cutor)

i) Eu disse a você para ficar quieto.

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Estudos Gramaticais

118

j) Eu também disse a ele que queria sair.

k) Maria levou o carro para ele.

l) A gente não gosta de cinema.

m) Nós não fomos à festa ontem.

n) Vocês vão ao cinema comigo?

o) Vou ao cinema com vocês e não com eles.

p) Essas flores são para mim? – Não, são para nós!

q) A gente fica feliz se nos trouxerem um sorvete.

r) Tu vens à festa com a gente?

s) Vens conosco?

t) Deixei eles em casa.

u) Eu contei a ele meu sonho.

v) Eu lhe contei meu sonho.

w) Eles me deram um presente.

x) Eles deram um presente para mim.

y) Encontrei ele na feira.

PESSOA pronomes pes-soais retos

pronomes pessoais oblíquos átonos

pronomes pessoais oblíquos átonos

P1P2P3P4P5P6

Compare os quadros (o seu e o de Cunha e Cintra) e tire suas con-

clusões.

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Capítulo 12Níveis de análise

119

Atentemos, agora, para o valor dos pronomes possessivos:

Os pronomes possessivos acrescentam à noção de pessoa gramatical

uma idéia de posse. (CUNHA; CINTRA, 1985, p. 310).

Para refletir

As palavras seu(s) e meus e minha indicam posse nas frases abaixo, da

mesma maneira que em “meu casaco é verde”? O que significam?

1) Saia daqui seu pirralho!

2) Ela tem seus quarenta anos.

3) Ele com certeza não puxou aos seus.

4) Venha cá, minha querida.

5) Seu João acabou de chegar.

6) Minha Nossa Senhora! O que aconteceu?

7) Meus parabéns pelo seu aniversário!

12.3 Nível sintático

Assim como os morfemas se agrupam para formar palavras, estas se agrupam para formar sintagmas. Sintagmas são constituintes que as-sociam forma e significado como se fossem “partes naturais” da oração ou do período. Assim, para identificarmos os constituintes de uma frase precisamos perceber sua organização semântica e formal em unidades (unidades de forma e de significado).

Por exemplo, ao processarmos a frase O carro de Pedro é novo., atri-buímos significados parciais a certas sequências de palavras: [o carro de Pedro] e [é novo]. Não vamos segmentar a oração em: [o carro de] e [Pe-dro é novo]. Ao ouvirmos O carro de Pedro é novo, vamos entender que o carro é de Pedro e que o carro é novo, e não que Pedro é novo. Nesse exemplo temos dois sintagmas: um sintagma nominal (cujo núcleo é

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Estudos Gramaticais

120

um nome) e um sintagma verbal (cujo núcleo é um verbo).

É por isso que Perini (2006, p.98) enfatiza que “as expressões lin-güísticas não são (apenas) seqüências de palavras, e não podem ser des-critas como se fossem; elas são seqüências de constituintes”. A sintaxe se ocupa do estudo dos sintagmas/constituintes, sua composição e sua estrutura em unidades maiores.

As gramáticas normativas tradicionais, na sintaxe, reúnem tópicos como: constituição da oração e do período (funções sintáticas: sujeito, objeto, complemento etc); concordância nominal e verbal; regência ver-bal; emprego das palavras; colocação pronominal.

Vamos examinar a definição tradicional de sujeito.

Sujeito é o ser de quem se diz algo (ROCHA LIMA, 1986, p.205).

Sujeito é o ser sobre o qual se faz uma declaração (CUNHA; CIN-TRA, 1985, p. 119).

Qual é o critério que sustenta essas definições? Veja que o sujeito é apresentado como o ‘ser’ (isto é, tem referência no mundo – critério semântico) sobre o qual se diz algo (isto é, implica a enunciação num contexto – critério pragmático-discursivo). Como você deve ter perce-bido, temos aqui um problema: uma categoria sintática (o sujeito) sendo definida mediante critérios semântico-pragmáticos.

Para refletir

Observe os dados abaixo e tente aplicar as duas definições de sujeito

que acabamos de ver.

1) Em Florianópolis, choveu muito no mês passado.

2) O livro, eu emprestei para o professor.

3) Na festa de ontem tinha muita gente.

4) Quem chegou?

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Capítulo 12Níveis de análise

121

Qual é o ‘ser’, ou o elemento sobre o qual se diz algo? Parece não ha-ver dúvidas de que são feitas declarações sobre Florianópolis, o livro e a festa de ontem, respectivamente. Mas esses três constituintes são sujeitos das orações? (Florianópolis e na festa de ontem são adjuntos adverbiais, e o livro é um ‘tópico’ no caso, um objeto direto deslocado). Por outro lado, em Quem chegou? não temos uma declaração mas uma pergunta. Outro problema que detectamos aqui: a definição proposta não dá conta dos dados.

Continuando a explorar o que diz a gramática normativa sobre su-jeito, encontramos o seguinte:

- sujeito e predicado são termos essenciais da oração;

- são tipos de sujeito: simples, composto, oculto, indeterminado e oração sem sujeito.

Qual é o problema aí? Se o sujeito é um termo essencial da oração, não pode faltar (não havendo sujeito, não há oração!). Então como pode existir um tipo identificado gramaticalmente como “oração sem sujei-to”?

Outra definição de sujeito comumente encontrada em livros di-dáticos é a seguinte: “Sujeito é o ser que pratica a ação expressa pelo verbo.”

Para refletir

Procure aplicar a definição acima aos seguintes dados:

1) O bandido levou uma surra.

2) Este presente foi comprado pelo meu filho.

3) Vítor e Cecília estão muito felizes hoje.

4) Márcia tem quinze anos.

O que você percebeu? Qual é o sujeito de cada oração? Na pri-meira, não se sabe quem praticou a ação (o bandido sofreu a ação!); na

Tópico é uma noção discursiva, que tem a ver com a função comunica-tiva. O tópico costuma ser colocado no início da frase e é o elemento sobre o qual se afirma, pergunta algo, etc.

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Estudos Gramaticais

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segunda, o agente é o meu filho (mas não é o sujeito!); nas demais não há verbo de ação, portanto não há agente. Mas todos sabemos que o sujeito de cada oração é, respectivamente, o bandido, este presente, Vítor e Cecília e Márcia.

Para evitar problemas desse tipo, e outros, Perini costuma fazer uma distinção entre classe e função e propõe uma nova classe: a dos SNs (sintagmas nominais).

Vamos observar com mais atenção o sintagma nominal (SN). Veja os exemplos:

[Cecília] chegou.

[Minha amiga de Recife] chegou.

Vou encontrar [Cecília].

Vou encontrar [minha amiga de Recife].

Trouxe um presente para [Cecília].

Trouxe um presente para [minha amiga de Recife].

Ontem saímos com [Cecília].

Ontem saímos com [minha amiga de Recife].

Os constituintes destacados (Cecília e minha amiga de Recife) são SNs. Um sintagma nominal é tudo aquilo que, em termos de gramática tradicional, pode exercer a função sintática de sujeito, objeto direto ou complemento de preposição (objeto indireto, adjuntos etc.). O sintag-ma nominal também pode ser constituído por um pronome: Ela chegou cedo.

Pela proposta desse autor, as classes se definem em relação à estru-tura da língua, independentemente de sua ocorrência em enunciados. Por exemplo, à pergunta: “a que classe de palavras pertence Cecília?”, a resposta será: “substantivo”. Segundo Perini, não haveria necessidade de observar esta palavra numa frase para identificar a sua classe.

Já as funções se definem em termos de um contexto frasal. São rela-ções (de ordem, de concordância, de papéis sintáticos etc.) que existem

Segundo Perini, as classes são verificáveis fora do

contexto frasal, e as fun-ções só são verificadas no

contexto da frase.

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Capítulo 12Níveis de análise

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entre as unidades dentro de uma frase. À pergunta: “qual é a função sintática de Cecília”?, a resposta só pode ser dada a partir da frase, ou seja, examinando a função desse constituinte na frase. Considerando o conjunto de frases acima, a reposta poderá ser: sujeito, objeto direto ou complemento de preposição.

Vamos pensar um pouco mais nessa proposta de Perini. Será que

podemos identificar a classe de qualquer palavra tomada isolada-

mente, fora do contexto da frase? Por exemplo: “a que classe de pa-

lavras pertence velho”? Qual seria a resposta: substantivo? adjetivo?

Se estivesse numa fase como Meu velho amigo chegou, seria adje-

tivo. Mas se a frase fosse O velho chegou, seria substantivo. O que

podemos concluir? Que mesmo as classes de palavras (pelo menos

algumas) parecem precisar de um contexto frasal para serem ade-

quadamente identificadas.

Uma noção importante para a classificação de formas é a de poten-cial funcional, isto é, o conjunto de funções que cada classe pode desem-penhar. Assim,

[...] as unidades da língua se classificam por seu potencial funcional: uma

classe é o conjunto das formas da língua que têm potencial funcional

semelhante. As diferentes formas da língua, juntamente com as classes

a que cada uma pertence, são parte de nosso conhecimento perma-

nente. (PERINI, 2006, p.138, grifo do autor).

Assim, a classe dos SNs se define como o conjunto de formas que podem: a) exercer a função de sujeito, objeto direto ou complemento da preposição; b) ser usadas referencialmente, isto é, designando ‘seres’ (propriedade semântica). Essas duas propriedades constituem o poten-cial funcional do SN.

Vamos ver, com mais detalhes, a questão das funções sintáticas, se-guindo a orientação de Perini (2006). Na frase abaixo, podemos distin-guir três constituintes:

[As meninas] [encontraram] [Cecília].

Temos dois SNs que aparecem em determinada ordem na frase: as

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Estudos Gramaticais

124

meninas antes do verbo, e Cecília depois do verbo. Uma primira obser-vação importante extraímos daí, relacionada à ordem dos constituintes: as meninas e Cecília têm funções diferentes porque aparecem em posi-ções diferentes na frase.

Examinemos o terceiro constituinte: o verbo encontraram aparece na terceira pessoa do plural e o morfema –m se relaciona com o SN as meninas, e não com Cecília. Uma segunda observação extraímos disso: “o SN que (nesse caso) vem logo antes do verbo, e com o qual o verbo concorda, é chamado sujeito: o outro SN se chama objeto direto” (PE-RINI, 2006, p. 106).

Veja que “sujeito” e “objeto direto” são definidos em termos pura-mente formais, com base nos critérios de ordem e concordância.

Para refletir

Compare essa definição de sujeito com aquelas vistas anteriormente.

Que diferenças você percebe?

Para encerrar este tópico, uma questão polêmica! Observe a se-guinte afirmação de Perini (2006, p. 110, grifo do autor):

Em uma frase como “Comprei um aparelho de DVD”, não há sujeito, por-

que não há na oração nenhum SN com o qual o verbo concorde, nem

nenhum SN posicionado logo antes do verbo. Essa frase tem um agente

(“eu”, que pratiquei a ação de comprar); ela está falando de alguém (de

mim, que sou um dos assuntos principais da frase). Mas, segundo nossa

definição, o sujeito não é o elemento que pratica a ação (a que chama-

mos “agente”), nem o elemento do qual se afirma alguma coisa (que se

chama “tópico”).

Situação-problema

Como as gramáticas normativas analisam o sujeito de orações como

Comprei um aparelho de DVD?

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Capítulo 12Níveis de análise

125

Compare a análise das gramáticas normativas com essa de Perini. A que

conclusões você chega?

12.4 Nível semântico-pragmático

Embora estejamos reunindo os níveis semântico e pragmático, é possível identificarmos fenômenos que são típicos de um e de outro ní-vel. É no nível semântico que identificamos funções chamadas de “pa-péis semânticos” ou “papéis temáticos”.

Podemos definir o papel temático como a relação de significado que liga uma palavra que exprime ação, estado ou evento (muitas vezes um verbo, mas nem sempre) com as unidades que exprimem os partici-pantes dessa ação, estado ou evento (PERINI, 2006, p.121).

Os papéis temáticos mais comuns são:

– Agente: indivíduo que pratica a ação, que tem controle sobre a re-

alização da ação.

Ex.: Vítor comeu uma maçã.

– Paciente ou alvo: elemento que sofre o efeito de uma ação ou

evento, podendo mudar de estado em consequência dela.

Ex.: Vítor comeu uma maçã.

– Locativo: especifica o lugar onde se dá o fato expresso pelo ver-

bo.

Ex.: Vítor mora em Florianópolis.

– Fonte/meta: indicam, respectivamente, a origem e o destino do

movimento.

Ex.: Vítor viajou de Florianópolis a Curitiba.

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– Experienciador: indivíduo que passa pelo estado psicológico

descrito pelo verbo (envolvendo pensamentos, sensações, emo-

ções).

Ex.: Vítor pensa em/ viu/ ama Cecília.

– Beneficiário: indivíduo a quem a ação traz proveito ou prejuízo.

Ex.: Vítor ganhou/ perdeu uma bola.

– Instrumento: objeto que o agente utiliza para desempenhar uma

ação.

Ex.: Vítor abriu a porta com a chave.

Os papéis temáticos não se confundem com as funções sintáticas dos SNs, mas é possível estabelecer algumas relações entre eles. Consi-derando uma “hiererquia de subjetividade”, pode-se dizer que a ordem das possibilidades de os papéis temáticos de agente, paciente e instru-mento coincidirem com a função gramatical de sujeito é: agente > ins-trumento > paciente.

Observe:

O garoto quebrou a vidraça com a bola. (agente)

A bola quebrou a vidraça. (instrumento)

A vidraça quebrou. (paciente)

Agora pense: Por que é tão comum encontrarmos a definição de sujei-

to como o “ser que pratica a ação expressa pelo verbo”?

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Capítulo 12Níveis de análise

127

Divirta-se!

Na piada seguinte, a graça está numa atribuição de papel temático

equivocado a uma certa personagem. Descubra que papéis estão

em jogo.

Mulher – Trabalhar o tempo inteiro e tomar conta da casa está me

levando à loucura! Depois do emprego, cheguei em casa e lavei a

roupa e a louça. Amanhã tenho de lavar o chão da cozinha e as ja-

nelas da frente!

Outra mulher – Então? E teu marido?

Mulher – Ah, isso eu não faço de maneira nenhuma! Ele pode muito

bem se lavar sozinho! (ILARI, 2001, p.138).

Ao analisarmos a língua em funcionamento no seu contexto de uso, percebemos, de imediato, que não podemos nos limitar ao plano da frase. Nós não nos comunicamos através de frases isoladas, e sim atra-vés de textos. Precisamos considerar, portanto, as palavras e frases num contexto textual ou discursivo mais amplo. Por isso, o nível semântico-pragmático implica levar em conta elementos discursivos.

Outro aspecto que precisa ser levado em conta é o caráter multi-funcional dos itens. Vamos ver que muitas palavras ou constituintes po-dem desempenhar diferentes funções gramaticais, entrecruzando níveis e planos linguísticos.

Em vez de partirmos de classes ou categorias, vamos, agora, par-tir do uso de alguns elementos linguísticos para depreender a função/significação desses itens. Propomos examinar, inicialmente, o funcio-namento de aí, item que as gramáticas normativas costumam classificar como advérbio de lugar. Observe os dados (oriundos do projeto VAR-SUL/Florianópolis e extraídos de Tavares, 1999):

1) Eu cheguei em casa, eles estavam sentados no muro, né? Num muro alto. Eu disse: “meu filho, [não]-não senta aí que tu não

Você pode pode saber mais sobre esse assunto lendo: ILARI, R.; BASSO, R. Língua e gramática ou Da necessidade de óculos. In: ______. O português da gente: a língua que estudamos, a língua que falamos. São Paulo: Con-texto, 2006. p. 223-229. Os autores mostram, através de exemplos, equívocos de se considerar a gramá-tica apenas no nível frasal.

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estás com equilíbrio bom”. (FLP13, L831)

2) Era coisa gostosa. Hoje, se você vai numa festinha aí, numa fes-tinha de rua aí, a gente vê é safadeza, é avacalhação. (FLP 04, L597)

3) Onze e pouco da noite. Não tinha um hotel, não tinha nada pra dormir, que o único hotel da cidade estava fechado. Aí procura-mos, procuramos, batemos nesse hospital, que é um hospital e maternidade, aí que ele estava (FLP03, L889)

4) Depois que ele morreu, né? Que aí elas já eram mais ou menos moças, né? Tinham os seus quinze, dezesseis anos, aí que come-çaram a namorar (FLP18, L1161)

5) E a carne, tu compras um quilo e tu comes duas vezes, né? E o peixe não. O peixe é aquilo ali, num instantinho vai e pronto. É isso aí. (FLP11, L1117)

6) “Ela está lá na casa da Maria dos Anjos”, disse uma outra amiga minha. Aí ela foi lá na casa da Maria dos Anjos, ver se eu esta-va... (FLP08, L831).

Vamos, juntos, analisar o aí destacado nos dados, atentos aos se-guintes pontos das gramáticas normativas: a) aí é advérbio de lugar; e b) o advérbio modifica um verbo, um adjetivo ou outro advérbio.

a) Em quais casos o aí está modificando um verbo?

b) Em quais casos o aí expressa a ideia de lugar?

c) Que outros valores o aí representa?

Antes de passarmos à análise, precisamos nos munir dos conceitos de dêixis e de anáfora.

Dêixis: diz respeito principalmente às pessoas que participam da

interação verbal, ou a lugares e tempos que são localizados a partir

da situação de fala. Realiza-se sobretudo por meio dos pronomes,

dos artigos, dos tempos dos verbos e de certos advérbios.

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Capítulo 12Níveis de análise

129

Anáfora: diz respeito a pessoas e objetos, tempos, lugares, fatos

etc. mencionados em outros pontos do mesmo texto; também na

função anafórica são úteis os pronomes, o artigo definido, os tem-

pos verbais e os advérbios.

(ILARI, 2001, p.55-56)

Em não senta aí (1), o aí se relaciona a um verbo acrescentando uma circunstância de lugar. Tem valor dêitico, isto é, aponta para a situ-ação extralinguística em que ocorre a fala, para um local do mundo real. Como se liga a um verbo e expressa ideia de lugar, atende às caracterís-ticas da definição tradicional.

Em uma festinha (de rua) aí (2), o aí modifica um substantivo (pe-los critérios da definição de advérbio, o item está excluído dessa classe). Não expressa exatamente uma ideia de lugar, mas pode ser substituído por “qualquer” (numa festinha qualquer, que não interessa identificar qual; a interpretação é, no mínimo, ambígua). O aí já não preenche as características de advérbio de lugar, funcionando com valor adjetival, pois modifica um nome.

No terceiro caso, aí que ele estava, o item retoma o antecedente que expressa lugar maternidade, por isso é um anafórico locativo. Man-teve-se a noção de lugar, mas o item perde sua característica dêitica, passando a apontar para um referente dentro do próprio texto.

No quarto dado, aí que começaram a namorar, o aí também apon-ta para elementos do texto: depois que ele morreu e elas tinham os seus quinze, dezesseis anos, só que o valor, nesse caso, é temporal. Trata-se de um anafórico temporal.

No quinto exemplo, é isso aí, o item retoma resumidamente toda a sequência discursiva precedente, funcionando como um anafórico dis-cursivo.

Por fim, em Aí ela foi lá na casa..., o aí faz as vezes de conector: está ligando orações e ordenando cronologicamente os eventos, por isso tem

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valor de sequenciador temporal.

Como vimos, além de advérbio de lugar (dêitico), aí pode atuar com valor de adjetivo (dentro do SN), como elemento anafórico apon-tando para partes do texto (com valor locativo, temporal e discursivo) e como conector. Somente numa análise que contemple os usos efetivos da língua conseguimos captar esses diferentes matizes revelando a mul-tifuncionalidade dos itens linguísticos.

Para refletir

Você pode exercitar o tipo de análise feita com aí, verificando o funcio-

namento de outros itens como: onde, assim, então, agora, mas etc. Você

pode buscar esses elementos em redações escolares, por exemplo. A

título de ilustração, observe as ocorrências a seguir (os dados de assim

foram extraídos de Gasparini, 2001; e os de então, de Tavares, 1999).

Lembrete: as gramáticas normativas costumam apresentar o assim

como advérbio de modo e o então como advérbio de tempo.

1) Antigamente, a gente fazia uns quadrados assim num ci-mento, e pulava né? (FLP18,L1214)

2) Era um local assim muito freqüentado entre os antigos e tudo. (FLP18, L176)

3) A festa estava assim de gente e ninguém me tirou para dançar. (redação, 5ª série).

4) A Internet pode ser assim, como posso dizer, comuni-cativa, mas às vezes não vale a pena tê-la. (redação, 6ª série)

5) Minha mãe às vezes não gostava muito não, mas o meu pai achava lindo, maravilhoso. O meu avô então acha-va maravilhoso, coisa mais linda do mundo. (FLP 01, L 245)

6) Botava o espetinho, assim, dentro do fogão à lenha, que

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Capítulo 12Níveis de análise

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na época não existia fogão a gás. Botava, assim, deixava assar aquela manta de carne seca. Então ela passava a mão, dividia aquele alguidar em... Lógico, ela não botava até em cima, botava até certa altura. (FLP 02, L 1081)

7) E: Que sorte, menina!

F: Então! Na época, no dia que eu fui ver, que eu meti a cara, estava [seis <bi->]- seis e quinhentos. Ele deixava por cinco e quinhentos pra mim. (FLP 20, L 658)

Quando vamos fazer análises linguísticas, podemos seguir duas di-reções:

1) partir da forma para a significação ou função (forma -> fun-ção); ou

2) partir da significação ou função para a forma (função -> for-ma).

Na análise de aí e de assim, por exemplo, partimos de formas lin-guísticas. Vamos, agora, inverter o processo: partir de uma função/sig-nificação e verificar as suas diferentes formas de expressão. Os dados a seguir mostram formas alternativas para expressar o grau superlativo em português, isto é, um elevado grau de determinada qualidade (Da-dos adaptados de Ilari e Basso, 2006, p. 110-111).

1) Essas crianças são inteligentíssimas.

2) Paula veste uma roupa chiquérrima.

3) Ela é uma pessoa muito bacana.

4) Ela é uma pessoa muito entrada em anos.

5) Ele tem um estilo muito deixa que eu chuto.

6) Ele é podre de rico.

7) Ela é chique no último.

8) O professor é exigente pra chuchu.

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9) Ele é enjoado a dar com o pau.

10) Propomos que você continue a lista...

Na interação comunicativa, todo enunciado apresenta um deter-minado grau de modalização, isto é, de expressão da atitude do falante/escrevente, seja em relação ao conteúdo do que é dito, seja em relação ao interlocutor. A categoria gramatical que expressa essa atitude do locutor chama-se modalidade. São exemplos de modalidade:

a) os graus de certeza que o falante pode imprimir ao fato enun-ciado, como em:

Talvez ele venha amanhã.

Certamente ele vem amanhã.

A modalidade relacionada a graus de certeza pode ser expressa por elementos adverbiais (talvez, certamente, provavelmente, com certeza), predicadores (é provável que, é certo que, é claro), verbos modais (dever, poder), entre outros recursos linguísticos.

b) os graus de ‘comando’ que envolvem regras sociais de polidez, ou seja, a atitude do falante em relação ao interlocutor em atos de fala diretivos (ordem, pedido, sugestão), como em:

Por favor, feche a porta.

Feche a porta!

A modalidade relacionada às intenções e interesses do falante pode se manifestar por expressões de cortesia (por favor, por gentileza), modo do verbo (imperativo), verbos modais (ter que, precisar), verbos que ex-plicitem o ato praticado pelo locutor (ordeno que, solicito que), entona-ção (interrogação, exclamação).

Como a modalidade se manifesta em uma situação comunicativa, os papéis sociais desempenhados pelos interlocutores são importantes. Por exemplo, em atos de fala manipulativos ou de comando, quando o falante quer, de algum modo, agir sobre o ouvinte para que ele reponda através de atos, os recursos de modalização utilizados deverão ser ade-quados aos papéis sociais em jogo e regras de polidez deverão ser acio-

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Capítulo 12Níveis de análise

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nadas, para que o evento seja bem sucedido. Por exemplo, a solicitação de que a porta da sala seja fechada será feita de maneira diferente nas seguintes interações: de mãe para filha, de empregada para patroa, de irmão para irmã, e assim por diante.

Para refletir

Imagine que os enunciados abaixo tenham sido proferidos na seguinte

situação:

a) uma família está almoçando num restaurante no final de semana;

b) a salada está sem sal e tem um saleiro à mesa;

c) todos gostam de salada temperada.

Tente identificar:

Ӳ quem são os interlocutores envolvidos em cada enunciado;

Ӳ que enunciados têm maior, e menor, força manipulativa;

Ӳ que enunciados apresentam maior, e menor, grau de po-lidez.

1) Você me passaria o sal, por favor?

2) A salada está sem sal.

3) Me passa o sal!

4) Me passe o sal!

5) Por favor, me passe o sal!

6) Se tivesse um salzinho...

7) Por favor, poderia me passar o sal!

8) Você quer me passar o sal?

9) Tenha a bondade de me passar o sal.

10) Me dá o sal, pô!

11) Anda logo com esse sal aí.

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Resumindo este tópico: A descrição gramatical é feita nos dife-rentes níveis linguísticos: fonético-fonológico – realizações linguísticas concretas e sistema de sons da língua; morfológico – as palavras e suas partes constituintes: radical, afixos, desinências (os morfemas); sintáti-co ou morfossintático – os sintagmas, isto é, constituintes que associam forma e significado como se fossem ‘partes naturais’ da oração ou do período; semântico-pragmático – palavras e frases vistas no contexto de uso (contexto textual ou discursivo mais amplo), considerando o caráter multifuncional dos itens e construções, que podem desempenhar dife-rentes funções gramaticais, entrecruzando níveis e planos linguísticos.

Nesta unidade:

– desenvolvemos a prática de análise linguística nos diferentes ní-veis gramaticais;

– cotejamos definições e classificações com dados linguísticos;

– refletimos criticamente sobre algumas definições/classificações das gramáticas normativas, percebendo as inconsistências destas.

Sugerimos que você reveja essas etapas, anote suas dúvidas e desta-que o que julgar mais interessante ou relevante.

Leia mais!

PERINI, M. Componentes de uma descrição gramatical. In: Gramática descritiva do português. São Paulo: Ática, 1996. p.49-57.

______. Papéis semânticos e funções sintáticas. In: Gramática descritiva do português. São Paulo: Ática, 1996. p. 260-268.

No primeiro texto, Perini discute os níveis de análise linguística e as defini-ções na gramática tradicional. No segundo texto, relaciona papéis semânti-cos e sintáticos.

CAMARA JR., J. M. A primeira articulação ou morfo-sintaxe. In: Estru-tura da língua portuguesa. Petrópolis, RJ: Vozes. p.59- 86.

Mattoso Camara Jr. aborda os critérios de classificação dos vocábulos, a fle-xão e a derivação portuguesa, entre outros aspectos.

CUNHA, Celso; CINTRA, Lindley. Nova gramática do português con-temporâneo. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. (ou outra gra-mática normativa)

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Capítulo 12Níveis de análise

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Fonte: PRETTE, Maria Carla; DE GIORGIS, Alfonso. História ilustra-da da arte: história, linguagens, épocas e estilos. Sintra, Portugal: Giras-sol, 2008.

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Tirinha – Joaninhas em: O tempo é uma construção linguística

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Unidade D

Foto de Ariadna Morguefile

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Figura 1 – Do Australopithecus ao Homo sapiens sapiens.

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Figura 4 - Ilustração “Elefante e cegos”

Fonte: Lantec/UFSC

Figura 5 – Ilustração “O cérebro humano”

Fonte: Lantec/UFSC

Figura 6 – Ilustração “Linguagem como ação interindividual”

Fonte: Lantec/UFSC

Figura 7 – Capa dos PCNs de Língua Portuguesa

Fonte: Disponível em: <http://1.bp.blogspot.com/-NP_Fr-jPE3S4/TWMYMwBATkI/AAAAAAAADhM/GaHe7KaHwaY/s1600/427318_414.jpg>.Acesso em: 20 abr. 2011.

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Figura 11 – Capa da Gramática de Celso Cunha

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Capítulo 12Níveis de análise

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