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Estudos sobre leitura: Psicolinguística e interfaces

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Estudos sobre leitura: Psicolinguística e interfaces

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ChancelerDom Dadeus Grings

ReitorJoaquim Clotet

Vice-ReitorEvilázio Teixeira

Conselho EditorialAna Maria Lisboa de MelloBettina Steren dos SantosEduardo Campos PellandaElaine Turk FariaÉrico João HammesGilberto Keller de AndradeHelenita Rosa FrancoIr. Armando Luiz BortoliniJane Rita Caetano da SilveiraJorge Luis Nicolas Audy – PresidenteJurandir MalerbaLauro Kopper FilhoLuciano KlöcknerMarília Costa MorosiniNuncia Maria S. de ConstantinoRenato Tetelbom SteinRuth Maria Chittó Gauer

EDIPUCRSJerônimo Carlos Santos Braga – DiretorJorge Campos da Costa – Editor-Chefe

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Organizadores

Vera Wannmacher PereiraRonei Guaresi

Estudos sobre leitura: Psicolinguística e interfaces

Porto Alegre 2012

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© EDIPUCRS, 2012

Lucas Costa

Ronei Guaresi

Rodrigo Valls

E82 Estudos sobre leitura: psicolinguística e interfaces [recurso eletrônico] / Vera Wannmacher Pereira, Ronei Guaresi (Organizadores). – Dados eletrônicos. – Porto Alegre : EDIPUCRS, 2012. 206 p. Sistema requerido: Adobe Acrobat Reader Modo de Acesso: <http://www.pucrs.br/edipucrs> ISBN 978-85-397-0133-9

1. Psicolinguística. 2. Linguagem. 3. Leitura. 4. Leitores – Formação. I. Pereira, Vera Wannmacher. II. Guaresi, Ronei. CDD 401.9

TODOS OS DIREITOS RESERVADOS. Proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo, especialmente por sistemas gráficos, microfílmicos, fotográficos, reprográficos, fonográficos, videográficos. Vedada a memorização e/ou a recuperação total ou parcial, bem como a inclusão de qualquer parte desta obra em qualquer sistema de processamento de dados. Essas proibições aplicam-se também às características gráficas da obra e à sua editoração. A violação dos direitos autorais é punível como crime (art. 184 e parágrafos, do Código Penal), com pena de prisão e multa, conjuntamente com busca e apreensão e indenizações diversas (arts. 101 a 110 da Lei 9.610, de 19.02.1998, Lei dos Direitos Autorais).

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Sumário

Apresentação...............................................................................6

Estudos sobre Leitura: Psicolingüística e interfaces.......................7Vera Wannmacher Pereira

A linguagem e a memória operacional..........................................12Ângela Inês KleinRafaela Janice Boeff

Metacognição e metalinguagem....................................................21Jésura Chaves Marília Lopes

Leitura e atenção: um olhar sobre o input linguístico sob a perspectiva psicolinguista..............................................................31Karine SouzaRonei Guaresi

O impacto da aquisição da leitura no cérebro: o que os estudos com neuroimagem têm a dizer........................................42Fernanda Knecht

Resumo: a relevância do objetivo de leitura..................................50Cláudia Strey

Influência da leitura ao desenvolvimento da escrita: uma incursão pela (in)consciência................................................63Ronei Guaresi

Fatores compartilhados no processamento de leitura em L1 e L2.....................................................................................76Lisiane Neri Pereira

Aspectos cognitivos envolvidos no processamento da leitura:contribuição das neurociências e das ciências cognitivas............84Gislaine Machado

Processamento de leitura: predição e inferências em pôsteres de paródias de filmes de terror.......................................96Luiza Helena Müller dos Santos

Palabras frecuentes y comprensión de lectura en L2: ¿Puede elcomputador contribuir?................................................................107Elba Beatriz Lami

Inferências e compreensão leitora...............................................115Elisangela Kipper

Processamento de leitura: cultura digital e processos inferenciais...................................................................................127Daisy Pail

Uma discussão sobre estratégias metacognitivas em leitura na escola..........................................................................142Kelli da Rosa Ribeiro

Concepção de leitura: abordagens psicolinguísticas eminterface com abordagens da neurociência...............................152Samanta Demetrio da Silva

Nível de compreensão de leitura de um aluno colombiano no processo de aprendizagem do português: um estudo de caso..159Vanessa Nery Souza

Como vender para quem não compreende o que lê?................167Luciana Braun Reis

Uma nova proposta de ensino de estratégias de leitura: autilização da teoria dos blocos semânticos em sala de aula......177João Henrique Casara Borges

A interferência das otites médias no processo de alfabetização...185Fernanda Dias

Neurofisiologia do uso da segunda língua através de estudos por imagem.........................................................197Ramon Gheno

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Apresentação

Esta publicação reúne artigos elaborados por alunos na disciplina Compreensão e processamento da leitura do Programa de Pós-Graduação em Letras da PUCRS, e por participantes do Grupo de Estudos de Psicolinguística, am-bas as situações realizadas em 2010/2, sob a orientação da Profa. Dr. Vera Wannmacher Pereira. Sob a perspectiva psicolinguística, os autores, jovens pesquisadores, desenvolvem o tema da leitura, focalizando metacognição, memória, atenção, compreensão e proces-samento, estratégias, inferência. Alguns deles apóiam suas análises fazendo conexões da Psicolinguística com outros campos da Linguística e com outras áreas de conhecimen-to, valorizando, assim, a perspectiva de interface. No final de cada artigo há um formulário em que o leitor poderá fazer observações, questionamentos, comen-tários sobre o artigo. Uma vez enviado, o autor receberá a mensagem e, na medida do possível, responderá. Dentre os objetivos dessa iniciativa estão o de aproximar escritor e leitor e o de estimular debate acadêmico em torno dos temas.

Os organizadores

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Estudos sobre leitura: Psicolinguística e interfaces

Vera Wannmacher Pereira1

Fale com a autora A publicação “Estudos sobre leitura: Psicolinguística

e interfaces” tem como objetivo disponibilizar à comunidade acadêmica artigos produzidos por jovens pesquisadores que participaram da disciplina “Processos de compreensão leitora” do Programa de Pós-Graduação em Letras da PUCRS e do Grupo de Estudos de Psicolinguística, ambas as situações realizadas em 2010/2, sob a orientação desta autora.

O presente artigo inicia esta publicação. Primeiramente, essas duas situações são caracterizadas, em relação aos conteúdos e aos procedimentos desenvolvidos. A seguir, é apresentada a área sobre a qual os estudos estão assentados, em sua evolução histórica, evidenciando as perspectivas disciplinar e de interfaces. Posteriormente, são desenvolvidos alguns tópicos sobre leitura, eixo deste e-book, sendo esclarecidos os caminhos seguidos pelos autores.

1 Situações de produção dos textos

Os artigos foram produzidos em duas situações diferentes – ao final de uma disciplina e ao final dos trabalhos de um grupo de estudos.

Na primeira situação, os estudos estiveram voltados para a compreensão e o processamento da leitura, tendo 1 Doutora em Letras/Linguística Aplicada. Professora Permanente do PPGL da FALE/PUCRS.

como tópicos centrais: a) Psicolinguística: histórico, objeto de estudo, interfaces, processos investigativos; b) leitura: aquisição/ aprendizado, memória, funcionamento no cérebro, cognição e metacognição; c) linguagem e consciência; d) compreensão da leitura: concepção, variáveis intervenientes, procedimentos e instrumentos de investigação; e) estratégias de leitura: concepção, tipos, frequência de uso, relação com a compreensão; f) predição e inferência; g) resumo e compreensão; h) processamento da leitura: concepção, variáveis intervenientes, procedimentos e instrumentos de investigação; i) pesquisa em Psicolinguística: objetivos, tendências, caminhos, possibilidades; j) Psicolinguística no ensino: objetivos, tendências, caminhos, possibilidades.

Na segunda situação, os estudos estiveram voltados para os seguintes tópicos, considerando o objetivo de verticalização de conhecimentos: memória; atenção; emoção; processamento da leitura e da escrita; estratégias de leitura; procedimentos e instrumentos de pesquisa psicolinguística; interfaces para estudos psicolinguísticos.

O grupo de participantes da disciplina, mestrandos e doutorandos do PPGL em Letras com concentração em Linguística, apresentam algumas diferenças em sua formação – embora predominantemente de Letras, são alguns originários da Comunicação, da Fonoaudiologia, da Medicina e do Direito. Além disso, seus interesses específicos estão voltados para eixos diversos da Linguística – Psicolinguística, Teoria da Enunciação, Análise do Discurso, Sintaxe, Semântica, Pragmática, Fonologia, Variação Linguística. Considerando essas características, a proposta de escrita de artigo possibilitou, ao participante,

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desenvolver um tópico psicolinguístico associado à sua área específica de interesse. Desse modo, os artigos produzidos nessa situação trazem esses traços.

O Grupo de Estudos Psicolinguísticos acolheu bolsistas do Centro de Referência para o Desenvolvimento da Linguagem - CELIN, mestrandos e doutorandos com interesse voltado diretamente para a Psicolinguística, tendo já realizado pesquisas nessa área e pretendendo dar-lhes continuidade. Diante dessas características, a proposta de escrita de artigo direcionou o participante para o desenvolvimento de um tópico psicolinguístico ao mesmo tempo desenvolvido nos seminários e vinculado aos seus interesses de continuidade dos estudos. Desse modo, os artigos produzidos nessa situação trazem essas marcas.

Sendo essas as circunstâncias de geração deste e-book, tem como foco tópicos psicolinguísticos direcionados à leitura, em perspectivas disciplinar e de interfaces internas e externas. Na sequência deste artigo, essas perspectivas são explicitadas.

2 Psicolinguística: disciplina e interfaces em estudo

A Psicolinguística consiste na área de estudos dos artigos deste e-book, vista disciplinarmente e nos contactos de interfaces. Neste item, ela é apresentada em seu processo de definição.

Sua configuração como uma disciplina tem seus primeiros sinais na curiosidade sobre o pensamento – sua origem, seu lugar de realização, sua construção – que, por sua vez, se associa à curiosidade sobre os sentimentos do

homem. Esse movimento de compreensão do pensamento e dos sentimentos tem sua raiz, na verdade, no desejo de conhecimento da essência humana – seu passado, seu presente e seu destino.

A busca desse entendimento tem provocado explicações diversas ao longo dos tempos – míticas, religiosas, filosóficas, psicológicas, linguísticas e, mais recentemente, neurocientíficas. Nesse emaranhado, a ciência tem tropeçado, apresentando primeiramente análises abrangentes, posteriormente específicas e segmentadas, chegando, atualmente a explicações ao mesmo tempo verticais, valorizando a visão disciplinar, e horizontais, buscando as interfaces (COSTA E PEREIRA, 2009a e 2009b). Nesse andar, há, na história do pensamento humano, sinalizações importantes em favor do delineamento da Psicolinguística.

Com base em reflexões filosóficas, essa disciplina é de certo modo anunciada no Mundo das Ideias de Platão, indicando concepções prévias no pensamento. Em sua argumentação está o Mito da Caverna, gerando inúmeras interpretações e atravessando os tempos. Esse anúncio está também na Maiêutica Socrática, em que o conhecimento se revela na parturição das ideias. Com Descartes, século XVII, isso se faz pelo racionalismo, sendo o pensamento indicativo da existência humana - “Penso, logo existo”. Em Humboldt, século XVIII, a língua, mesmo sendo inata e mental, não deve ser considerada uma obra acabada (energeia), mas sim uma atividade (ergon).

Essas reflexões filosóficas marcam pressupostos da Linguística que se inicia formalmente no século XX –

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assumindo-as ou negando-as. Saussure (início do século XX), embora enfatizando o social, traz a palavra “mente” como um repositório em que estão as regras linguísticas de um grupo social (langue). Menciona também a linguagem (langage) como algo que está na capacidade de todos os falantes. Refere ainda o aspecto individual (parole), próprio de cada falante. Chomsky (segunda metade do século XX) faz importante ruptura com o estruturalismo linguístico e retoma Descartes, defendendo o ponto de vista do inatismo. Nesse entendimento, a linguagem se apresenta como competência e desempenho, sendo a competência constituída de condições universais pré-existentes e o desempenho, de natureza individual, sua realização.

Podem ser ainda incluídos em seus antecedentes os estudos da linguagem humana oriundos da Psicologia que se apoiavam metodologicamente em procedimentos interpretativos. No entanto, na medida em que a Psicologia, assim como todas as áreas do conhecimento impulsionadas pelo positivismo, definiu contornos mais precisos em torno de seu objeto, na direção da autonomia e do estatuto científico, a Linguística também o fez (CABRAL, 1991). Essa condição gerou metodologias próprias, referenciais teóricos específicos, tratamento de dados próprios. As disciplinas que até então buscavam associações naturais com disciplinas externas sofreram redefinições, absorvendo elementos externos, assumindo novos rótulos e promovendo internamente suas interfaces.

A Psicolinguística buscou então seu próprio contorno, desenvolvendo um percurso no que se refere ao seu objeto de estudo – o processo comunicativo, no

que se refere à compreensão e à produção, com um lugar para a aquisição. O seu desenvolvimento abriu pontos de curiosidade científica que, para serem examinados, conduziram-na naturalmente para o estabelecimento de interfaces internas com outras áreas da Linguística (Linguística do Texto, Análise do Discurso, Teoria da Enunciação, Pragmática) e interfaces externas com outras áreas do conhecimento (Psicologia Cognitiva, Fonoaudiologia, Biologia, Medicina, Computação, Comunicação, Educação e, mais recentemente, Neurociências).

Neste momento de sua evolução, a Psicolinguística busca espaço entre os estudos sobre a linguagem percebida pelo ângulo da cognição (EISENCK; KEANE, 2007), com ênfase no processamento cognitivo (SMITH, 2003) da leitura e da escrita.

Essas novas interfaces trouxeram junto novas possibilidades de instrumentos de pesquisa, absorvendo tecnologias avançadas, que trazem importantes acréscimos aos até então utilizados (DEHAENE, 2007).

3. Leitura: objeto de estudo dominante

Os estudos sobre leitura vêm sendo dominantes na Psicolinguística e constituem-se também assim no presente e-book. Esses estudos abrangem frequentemente compreensão, processamento e estratégias de leitura (KLEIMAN, 2008).

A concepção de leitura é a de processamento cognitivo (GOODMAN, 1991), constituindo-se em procedimentos de natureza ascendente e/ou descendente.

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10 Estudos sobre Leitura: Psicolingüística e interfaces

O ascendente caracteriza-se por movimentos das partes para o todo, em que o leitor privilegia a observação das marcas linguísticas do texto. O descendente caracteriza-se por movimentos do todo para as partes, em que os conhecimentos prévios do leitor preponderam.

Esses tipos de processamento se realizam por meio de estratégias de leitura, como o skimming, o scanning, a seleção, a leitura detalhada, o automonitoramento, a autoavaliação, a autocorreção e a predição.

A escolha, pelo leitor, do processamento e das estratégias está associada aos seus conhecimentos prévios, ao seu estilo cognitivo, ao seu objetivo e à natureza do texto (KATO, 1999).

Os procedimentos de leitura contam com a consciência linguística do leitor, o que exige o confronto dos seus conhecimentos prévios com as marcas fônicas, morfossintáticas e semântico-pragmáticos do texto, e com os diversos tipos de memória, sendo os resultados de compreensão fortemente influenciados pela atenção e pela emoção.

Os artigos deste e-book desenvolvem diferentes aspectos da leitura, tomando como perspectiva dominante a de interfaces. Este, que inicia a publicação, define a Psicolinguística em seu percurso histórico, como disciplina e em suas interações. Os dois seguintes focalizam tópicos fundadores - metacognição e metalinguagem. Os seis posteriores tratam da leitura, buscando conexões entre a Psicolinguística e as Neurociências – leitura e atenção; impacto da aquisição da leitura no cérebro; aspectos cognitivos da leitura; concepção de leitura; influência

da leitura no desenvolvimento da escrita; inferências e compreensão leitora. Na sequência, três artigos exploram relações entre a Psicolinguística e a Pragmática – a relevância do objetivo da leitura no resumo; a cultura digital e os processos inferenciais no processamento de leitura; predição e inferências na leitura de pôsteres de paródias de filmes de terror. Após, três artigos tratam da leitura na escola, utilizando diferentes interfaces com a Psicolinguística: estratégias metacognitivas no trabalho de leitura na escola; uma proposta de ensino de estratégias de leitura, fazendo interface Psicolinguística e Teoria dos Blocos Semânticos; a interferência das otites médias na alfabetização, desenvolvendo interface da Psicolinguística com a Fonoaudiologia; na continuidade, quatro artigos abordando L2 - Neurofisiologia do uso da segunda língua através de estudos por imagem; compreensão de leitura de um aluno colombiano no processo de aprendizagem do português; fatores compartilhados no processamento de leitura em L1 e L2; palavras frequentes e leitura em L2. Por último, fechando a sequência, um artigo estabelece interface Psicolinguística e Comunicação, analisando a relação entre a venda de produtos e usuários que não leem.

Assim organizado, o e-book disponibiliza artigos científicos produzidos por jovens pesquisadores do PPGL da FALE/PUCRS, focalizando tópicos sobre leitura sob a perspectiva da Psicolinguística em interfaces internas e externas.

RESUMO – O presente artigo busca a) situar os textos deste ebook no universo da Psicolinguística com suas

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interfaces possíveis e b) definir a Psicolinguística em seu percurso histórico, como disciplina e em suas interações. A Psicolinguística, ao longo desse percurso histórico, definiu seu objeto de estudo – o processo comunicativo, no que se refere à compreensão e à produção, com um lugar para a aquisição. A explicação desses processos suscitou o estabelecimento de interfaces internas com subáreas da Linguística e interfaces externas com outras áreas do conhecimento. Atualmente, a Psicolinguística busca espaço entre os estudos sobre a linguagem percebida pelo ângulo da cognição (EISENCK; KEANE, 2007), com ênfase no processamento cognitivo (SMITH, 2003) da leitura e da escrita.

Palavras-chave: Psicolinguística. Histórico. Interfaces.

ABSTRACT – This article tries to: a) place the texts of this e-book in the world of Psycholinguistics, in its possible interfaces; and b) determine Psycholinguistics as a discipline and as interacting with other fields. Along this historical trajectory, Psycholinguistics defined its object of study - the communicative process concerning comprehension and production, and reserving a position for acquisition. The account for these processes has led to the establishment of internal interfaces, including subareas in Linguistics and external interfaces with other fields of knowledge. Nowadays, Psycholinguistics searches for a place among language studies from the point of view of cognition (EYSENCK; KEANE, 2007), laying emphasis on cognitive processing (SMITH, 2003) of reading and writing.

Keywords: Psycholinguistics. History. Interfaces.

Referências

CABRAL, Leonor Scliar. Introdução à Psicolinguística. São Paulo: Ática, 1991.

COSTA, J. C.; PEREIRA, V. W. (orgs.). Linguagem e cognição: relações interdisciplinares. Porto alegre: EDIPUCRS, 2009a.

COSTA, J. C.; PEREIRA, V. W. (orgs.).. Letras de Hoje. Linguagem, cognição e interfaces. Porto Alegre: EDIPUCRS, v.44, n.2, jul.-set. 2009b.

DEHAENE, Stanislas. Les neurones de La lecture. Paris: Odile Jacob, 2007.

EYSENCK, Michael W. ; KEANE, Mark T. Manual de Psicologia Cognitiva. Porto Alegre: Artes Médicas, 2007.

GOODMAN, K. S. Unidade na leitura – um modelo psicolingüístico transacional. Letras de Hoje, n. 86, p. 9-43. Porto Alegre: EDIPUCRS, dez. 1991.

KATO, Mary. Aprendizado da leitura. São Paulo: Martins Fontes. 1999.

KLEIMAN, Angela. Leitura: ensino e pesquisa. Campinas: Pontes, 2008.

SMITH, F. Compreendendo a leitura. Porto Alegre: Artes Médicas, 2003.

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A linguagem e a memória operacional1

Ângela Inês Klein2

Rafaela Janice Boeff3

Fale com as autoras

As lembranças que guardamos em nossa memória são determinantes para a formação de nossa personalidade, pois influenciam diretamente o âmbito cognitivo. É a partir da evocação de nossas memórias que a vida adquire significado. Sem elas, perdemos a identidade, sequer recordaríamos as pessoas mais próximas e todas as habilidades que usamos no cotidiano teriam que ser reaprendidas, ou melhor, nem seria possível aprendermos.

Essa faculdade humana é de vital importância para qualquer processo de obtenção e elaboração de informação. Segundo Colomer e Camps (2002), não se pode pensar a não ser por meio dos dados de que nosso cérebro dispõe, ou seja, informações introduzidas, retidas e possíveis de serem recuperadas quando necessário.

Nossas memórias provêm de nossas experiências e, portanto, podemos dizer que existem diferentes tipos de memórias, que podem ser classificadas de acordo com seu conteúdo e sua duração. Entre elas, destacamos a memória operacional, fortemente ligada à linguagem, entre outras funções cognitivas.

1 Este artigo é resultado da comunicação proferida pelas autoras no minicurso Leitura e Cognição: uma perspectiva psicolinguística, em 28/10/2010.2 Doutoranda em Linguística pela PUCRS, bolsista CNPq. Email: [email protected] Doutoranda em Linguística pela PUCRS. Email: [email protected]

Essa memória é composta de multicomponentes, segundo Baddeley (2003), que integrados garantem um gerenciamento do input recebido pelo cérebro, fazendo um link entre essas informações novas e aquelas já armazenadas nas demais memórias, a fim de encontrar sentido, como veremos adiante. Passemos, primeiro, para uma breve explanação sobre o que é memória e sua classificação nos diferentes tipos.

1 Memória

Memória é a aquisição, conservação e evocação de informações e pode ser avaliada por meio de sua evocação. O conceito de memória, conforme Izquierdo (2004), envolve abstrações, uma vez que o cérebro converte a realidade em códigos e a evoca por meio desses códigos. Segundo o autor, pode-se dizer que há um processo de tradução entre a realidade das experiências e a formação da memória respectiva; e outro processo de tradução entre esta e a correspondente evocação. Esses processos de tradução, tanto na aquisição quanto na evocação, devem-se ao fato de que em ambas as ocasiões, assim como durante o longo processo de consolidação ou formação de cada memória, são utilizadas redes complexas de neurônios.

Os códigos e os processos utilizados pelos neurônios não são idênticos à realidade da qual extraem ou à qual revertem as informações. Ao converter a realidade em um complexo código de sinais elétricos e bioquímicos, são os neurônios os responsáveis por essas traduções. Novamente essa tradução ocorre no momento da evocação, quando os

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13 Ângela Inês Klein e Rafaela Janice Boeff

neurônios reconvertem sinais bioquímicos ou estruturais em elétricos, de maneira que nossos sentidos e nossa consciência possam interpretá-los como pertencendo a um mundo real. Nós, humanos, usamos muito da linguagem para fazer essas traduções (IZQUIERDO, 2004).

Nossas memórias provêm das experiências e por isso é mais sensato falar em memórias e não em memória, uma vez que há tantas possíveis quanto são as experiências possíveis. Os mecanismos nervosos de cada um desses tipos de memória não são os mesmos e tampouco os componentes emocionais de cada um. Dessa forma as memórias podem ser classificadas quanto ao seu conteúdo em declarativa e não declarativa e, quanto a sua duração, em memória de longo prazo, memória de curto prazo e memória operacional.

As memórias que registram fatos, eventos ou conhecimentos são chamadas declarativas e são consideradas explícitas, porque permitem evocar conscientemente fatos e eventos mediante verbalização, sendo exclusiva dos seres humanos. Entre elas, as referentes a eventos aos quais assistimos ou dos quais participamos são denominadas episódicas; as de conhecimentos gerais, semânticas. Por outro lado, as memórias procedimentais são memórias de capacidades ou habilidades motoras e sensoriais e são consideradas não declarativas, implícitas.

Como mencionado anteriormente, as memórias também podem ser classificadas pelo tempo que duram. As memórias de longa duração não ficam estabelecidas em sua forma estável ou permanente imediatamente

após sua aquisição, o processo que leva à sua fixação definitiva, da maneira que poderão ser evocadas dias ou anos mais tarde, denomina-se consolidação. A memória de curta duração é aquela que dura minutos ou poucas horas, justamente o tempo necessário para que as memórias de longa duração se consolidem. As memórias de curta e a de longa duração envolvem processos paralelos e até certo ponto independentes. Elas requerem as mesmas estruturas nervosas, mas envolvem mecanismos próprios e distintos.

O conteúdo das memórias de curta e longa duração é basicamente o mesmo, a informação aferente aos dois sistemas mnemônicos é a mesma, e a resposta também é a mesma. A diferença entre os dois tipos de memória (de curta e de longa duração), que faz com que sejam sensíveis a diferentes tratamentos e respondam a processos distintos, não reside no input nem no output, mas sim nos mecanismos subjacentes a cada uma delas (IZQUIERDO, 2006).

Finalmente, a memória operacional que, segundo o autor, é muito breve e fugaz, serve para “gerenciar a realidade” e determinar o contexto em que os diversos fatos, acontecimentos ou outro tipo de informação ocorrem, e se é válido ou não fazer uma nova memória disso ou se esse tipo de informação já consta dos arquivos. Ela serve para manter durante alguns segundos, no máximo poucos minutos, a informação que está sendo processada no momento e se diferencia das demais, porque não deixa traços e não produz arquivos. Sendo essa memória foco deste estudo, na próxima seção nós a abordaremos mais detalhadamente.

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14 A linguagem e a memória operacional

2 Memória operacional

Segundo Izquierdo (2006), a memória operacional é processada fundamentalmente pelo córtex pré-frontal e depende, simplesmente, da atividade elétrica dos neurônios dessas regiões, sendo acompanhada de poucas alterações bioquímicas. Essa atividade elétrica neuronal percorre os axônios e, ao chegar a sua extremidade, libera neurotransmissores sobre proteínas receptoras dos neurônios seguintes, comunicando as traduções bioquímicas da informação processada. O córtex pré-frontal recebe ainda axônios procedentes de regiões cerebrais vinculadas à regulação dos estados de ânimo, dos níveis de consciência e das emoções. Os neurotransmissores liberados por esses axônios, que vêm de estruturas muito distantes, modulam intensamente as células do lobo frontal que se encarregam da memória operacional.

Baddeley (2009) afirma que a memória operacional envolve armazenamento temporário e manipulação de informação. Além disso, o autor sustenta que ela é capaz de realizar tarefas cognitivas, tais como raciocínio, compreensão e resolução de problemas. Sua duração é de segundos ou poucos minutos, o tempo suficiente para examinar as informações novas e compará-las às já existentes no acervo de memórias de curta ou longa duração, declarativas ou não declarativas de cada indivíduo.

O papel gerenciador da memória operacional decorre do fato de que, no momento em que recebe qualquer tipo de informação, ela analisa o input e o compara às informações já armazenadas nas demais memórias ou ainda determina

se é uma informação nova e, neste caso, se é útil ou não. Para fazer isso, a memória operacional deve ter acesso rápido às memórias preexistentes no indivíduo; se a informação que lhe chega é nova, não haverá registro dela no resto do cérebro, e o sujeito pode aprendê-la (formar uma nova memória); caso contrário, a memória operacional a relacionará aos conhecimentos prévios, na tentativa de estabelecer sentido.

As possibilidades de que, diante de uma situação nova, ocorra ou não um aprendizado estão determinadas, de acordo com Izquierdo (2006), pela memória operacional e suas conexões com os demais sistemas mnemônicos, através de conexões do córtex frontal, via córtex entorrinal, com o hipocampo e com as demais áreas envolvidas nos processos de memória em geral.

Baddeley (2003) propõe o modelo de memória operacional de multicomponentes, sendo composta por quatro subsistemas. O primeiro deles refere-se às informações verbais e acústicas – trata-se da alça fonológica; o segundo se interessa pelas informações visuais e espaciais – é o componente viso-espacial. Ambos os componentes dependem de um terceiro, o executivo central, um sistema de controle limitado de atenção. Finalmente, o quarto componente, mais recentemente proposto pelo autor, o buffer episódico, é responsável por conectar as informações da memória operacional à memória de longo prazo, como mostra a figura abaixo.

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15 Ângela Inês Klein e Rafaela Janice Boeff

Figura 1 – Modelo de memória operacional de multicomponentes proposto por Baddeley (2003).

A alça fonológica, segundo o autor, compreende um sistema de armazenamento temporário de informações verbais e acústicas e pode ser dividida em dois subcomponentes: um sistema de armazenamento temporário que realiza traços de memória em segundos e outro subcomponente que mantém e registra a informação no armazenamento desde que possa ser nomeada, realizando um processo ativo de ensaio articulatório verbal, denominado de sistema de ensaio subvocal.

As informações auditivas que chegam à memória operacional são processadas pela alça fonológica, sendo analisadas e alimentadas em um armazenamento de curto prazo. Essas informações podem manifestar-se na fala ou no ensaio subvocal que permite reciclar as informações. Visualmente o material apresentado pode ser transferido de código ortográfico a código fonológico e assim ser registrado no buffer de saída fonológica.

As bases neuroanatômicas da alça fonológica encontram-se basicamente no hemisfério esquerdo. Baddeley e Wilsom (1985), a partir de estudo com neuroimagem, sustentam a hipótese de que o sistema de armazenamento temporário e o sistema de ensaio subvocal estão localizados em áreas distintas do cérebro, sendo o primeiro associado à área de Brodmann, área 44, e o segundo, à área de Broca, correspondente às áreas de Brodmann 6 e 40. Em alguns casos particulares, no entanto, se percebe ativação em áreas homólogas no hemisfério direito.

O componente visoespacial, por sua vez, tem a função de integrar informações visuais e espaciais em uma representação unificada que pode ser armazenada e manipulada (BADDELEY, 2003). Esse componente pode ser mais bem explicado por meio de um exemplo, tal como quando nos é pedido para dizermos quantas janelas há em nossa casa. Para realizar essa tarefa, utilizamos o componente visoespacial da memória operacional e percorremos mentalmente a casa, contando as janelas de cada cômodo. Com auxílio de neuroimagem, Della Sala e Logie (2002) observaram que esse subsistema depende principalmente, mas não exclusivamente, do hemisfério direito.

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16 A linguagem e a memória operacional

Ambos os subsistemas, acima mencionados, são controlados pelo executivo central, que é responsável pelo controle atencional da memória operacional e baseia-se fortemente, mas não exclusivamente, do lobo frontal (BADDELEY, 2003).

Baddeley (2009) afirma que o executivo central coordena o sistema que é responsável por selecionar os estímulos a serem codificados e armazenados temporariamente; tem a capacidade de combinar o desempenho de duas atividades; controla a atenção, permitindo a atenção dividida e a troca de atenção quando se realizam duas ou mais tarefas ao mesmo tempo, estando ligado à inibição da atenção. Os processos executivos são, para Danemann e Carpenter (1980), provavelmente os principais fatores determinantes das diferenças individuais da memória operacional.

O último subsistema do modelo de multicomponentes de memória operacional, proposto por Baddeley (2003), é o buffer episódico, um sistema de armazenamento temporário de informações em um código multidimensional, que conecta os subcomponetes da memória operacional às informações da memória de longo prazo.

O buffer episódico combina as informações verbais, semânticas e visoespaciais e reúne essas informações aos conceitos da memória de longo prazo, construindo novas combinações, manipuladas pela memória operacional. Todas essas informações são combinadas de modo consciente dentro do buffer, que apresenta uma capacidade limitada e é controlado pelo executivo central (BADDELEY, 2009).

Atualmente esse subsistema tem sido objeto de pesquisa para Baddeley, que procura investigar como a

memória operacional e a memória de longo prazo estão conectadas. Tendo visto um pouco sobre o funcionamento da memória operacional e seus quatro subcomponentes, passemos agora para suas relações com a linguagem.

3 Memória operacional e linguagem

A memória operacional e a linguagem encontram-se em estreita relação, uma vez que tanto a produção quanto a recepção da linguagem exigem grande demanda dos recursos cognitivos da memória operacional, para seu processamento (reconhecer itens lexicais, especificações sintáticas e semânticas, interpretações do significado) e armazenamento (representação imediata desses processamentos).

A alça fonológica está ligada à compreensão, como mostram os estudos realizados por Baddeley (2003), em que pacientes com distúrbios nesse componente apresentaram dificuldades na produção e compreensão de sentenças longas e complexas, cuja compreensão depende da manutenção da estrutura da superfície da sentença no início, para permitir a desambiguação posterior.

Esse sistema também parece estar associado a facilidades na aquisição de linguagem. Indivíduos com boa memória verbal imediata – alça fonológica – são melhores aprendizes de língua estrangeira que outros com baixa capacidade nesse componente da memória operacional, tanto na aquisição de vocabulário, quanto na aquisição da sintaxe como indicam os estudos de Atkins e Baddeley (1998), Hitch e cols (1999).

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17 Ângela Inês Klein e Rafaela Janice Boeff

Em relação à aquisição de língua materna, Baddeley (2003) cita suas pesquisas com crianças que apresentam distúrbio específico da linguagem (DEL), comparadas a dois grupos de controle, um com crianças de mesma idade cronológica e outro com crianças mais jovens e, teoricamente, com linguagem menos desenvolvida. Os achados mostram uma performance significativamente inferior à do grupo de controle, tanto no critério idade, quanto no critério desenvolvimento linguístico, indicando que essas crianças com DEL têm um atraso de 4 anos no desenvolvimento da linguagem. O autor atribui esse déficit à insuficiência no componente de armazenamento da alça fonológica. No entanto, ele salienta que, à medida que as crianças crescem, a relação torna-se mais recíproca, pois no caso de haver melhora no desempenho da memória fonológica, há também melhora no aprendizado de vocabulário.

O componente visoespacial apresenta menor influência na linguagem, se comparado à alça fonológica, entretanto esse componente está diretamente envolvido na leitura, sendo responsável pela manutenção e retenção do layout da página, o movimento preciso dos olhos do começo ao fim da linha e até o começo da próxima, o que torna esse componente importante para a compreensão leitora.

O executivo central, por controlar todo o sistema de manipulação e armazenamento de informações da memória operacional, seleciona os estímulos que serão codificados e armazenados temporariamente. As pesquisas mostram que o executivo central está relacionado com a atenção dividida e a inibição. Baddeley (2009) observou em seus estudos que pacientes com déficits no componente

executivo central podem ser hábeis em manter uma conversa com uma pessoa, mas se perdem quando há várias pessoas envolvidas na conversa, pois apresentam dificuldades em inibir o pensamento sobre o que estavam discutindo com o primeiro interlocutor para começar um novo raciocínio com o segundo.

Em relação ao buffer episódico, o autor afirma que componente permite novas combinações, criando conceitos irreais, como, por exemplo, a combinação de patinação mais cachorro, a qual nos permite imaginar a exibição de um cachorro patinando. O buffer episódico é responsável também por fazer as ligações de palavras dento das sentenças com o seu significado. Durante a leitura, o retentor episódico ainda armazena temporariamente o modelo mental recém construído do significado do texto lido e o associa a memórias constituídas anteriormente, os conhecimentos prévios, construindo novas combinações.

Para medir o span da memória operacional, Danemann e Carpenter (1980) criaram um paradigma de avaliação, que consiste na leitura de uma série de sentenças, tendo que relembrar a última palavra de cada uma delas imediatamente após a leitura. Seus estudos revelam que uma boa capacidade de memória operacional prediz a realização de uma ampla gama de atividades cognitivas complexas, tal como compreensão oral e escrita, facilitando a recuperação de referentes pronominais e a resolução de ambiguidades lexicais em sentenças.

A memória operacional pode ser um forte potencial de diferenças em compreensão leitora, pois se o indivíduo executa os processos específicos à compreensão em

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18 A linguagem e a memória operacional

leitura – decodificação de letras e palavras, acesso lexical, segmentação sintática, construção e monitoramento de inferências e integração de texto – de maneira ineficiente, consome grande parte dos seus recursos de memória, consequentemente tem menos recursos disponíveis para armazenar os produtos parciais da compreensão e para executar os processos de compreensão em linguagem, que envolvem a memória operacional (DANEMANN e CARPENTER, 1980).

Tomitch (2003), ao analisar a habilidade de leitores mais ou menos proficientes em monitorar sua compreensão durante a leitura de textos completos e incompletos, percebeu que leitores mais proficientes utilizaram seu conhecimento da estrutura do texto para organizar o fluxo de informação. Assim não sobrecarregaram a memória operacional com o processamento da informação, sendo mais capazes de monitorar sua compreensão de forma mais apropriada. Os leitores menos proficientes, por sua vez, tenderam a aplicar um processamento excessivamente ascendente (bottom-up) ou excessivamente descendente (top-down), não sendo capazes de captar a distorção e ficando com uma percepção de que compreenderam os textos.

A autora salienta ainda que a capacidade da memória operacional está diretamente envolvida nesse processo, pois para que uma contradição seja detectada, é necessário que o leitor tenha as informações contraditórias ativadas na memória ao mesmo tempo e, mesmo havendo detectado a contradição, o leitor ainda precisa reestruturar a interpretação anterior para que a coerência seja estabelecida no texto. E para haver a ativação concomitante

das informações em questão, o leitor precisa utilizar os recursos da memória operacional, seja para manter a informação anterior ou para reativá-la na memória de longo prazo para a memória operacional, e então contrastá-la com a informação mais recente advinda do texto, para daí poder perceber a contradição.

A relação entre a memória operacional e a leitura, mais especificamente entre memória operacional e habilidade de construir as ideias principais em textos mal sinalizados em língua materna e língua estrangeira, também foi pesquisada por Torres (2003). Seus achados mostram que não há uma diferença significativa entre a média do teste de alcance de leitura (Reading Span Test) entre a língua materna e a língua estrangeira, bem como para a habilidade de construir a ideia principal em textos mal sinalizados em língua materna e língua estrangeira.

A pesquisadora observou ainda que a capacidade da memória operacional está positivamente correlacionada à habilidade de construir a idéia principal. Leitores com maior capacidade de memória foram capazes de construir a ideia principal com mais frequência do que leitores com menor capacidade, tanto em língua materna quanto em língua estrangeira.

Essas pesquisas têm corroborado a tese de Baddeley (2003) de que a memória operacional é capaz de realizar tarefas cognitivas, tais como raciocínio, compreensão e resolução de problemas.

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Conclusão

Vimos, neste trabalho, que memória é aquisição, conservação e evocação de informações, as quais provêm de nossas experiências e que, portanto, podem ser de diversos tipos, sendo classificas de acordo com seu conteúdo em declarativa e não declarativa e, de acordo com sua duração, em memória de longo prazo, curto prazo e operacional.

Essa última, processada fundamentalmente pelo córtex pré-frontal, a partir da atividade elétrica dos neurônios dessas regiões, é muito breve e não produz arquivos. Ela serve para gerenciar o input recebido pelo cérebro, realizando um armazenamento temporário e manipulação dessas informações, durando apenas o tempo necessário para examinar as informações novas e compará-las às já consolidadas na memória de longo prazo.

Apresentamos, então, o modelo de memória operacional multimodal, composto por alça fonológica, responsável pelo armazenamento temporário e processamento de informações verbais; alça visoespacial, responsável pelo armazenamento temporário de informações imagéticas; executivo central, sistema de controle atencional; e buffer episódico, elo entre a memória de trabalho e a memória de longo prazo.

A memória operacional é capaz de realizar tarefas cognitivas, tais como raciocínio, compreensão e resolução de problemas. Ela está envolvida no processamento das informações durante a produção e compreensão da linguagem, auxiliando no reconhecimento dos itens lexicais, nas especificações sintáticas e semânticas e

na interpretação do significado, além da representação imediata desses processos.

Problemas na capacidade da memória operacional podem trazer déficits na aquisição tanto de língua materna quanto estrangeira; na produção e compreensão da linguagem, seja oral ou escrita; na manutenção do diálogo; na criação de novos conceitos; enfim, na aprendizagem em geral.

RESUMO – Pretendemos neste trabalho trazer algumas questões sobre a relação entre a linguagem e a memória operacional. Para tanto, partimos dos diferentes tipos de memória, conforme a classificação sugerida por Izquierdo (2006), focando-nos na memória operacional, a partir do modelo de multicomponentes, proposto por Baddeley e finalmente fazemos um levantamento de relações importantes entre a memória operacional e a linguagem, dentro desta, em especial, a leitura.

Palavras-chave: Memória. Memória Operacional. Linguagem. Leitura.

ABSTRACT – We intend to bring some questions about the relationship between language and memory. For this, we start from different types of memory, according to the classification suggested by Izquierdo (2006), we focus on working memory, from the multicomponent model proposed by Baddeley and finally we do a survey of important links between working memory and language, within this, in particular, reading.

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20 A linguagem e a memória operacional

Keywords: Memory. Working Memory. Language. Reading.

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Metacognição e Metalinguagem

Jésura Chaves1

Marília Lopes2

Fale com as autoras

Estudos no campo da metacognição e da metalinguagem perpassam as áreas da Psicologia, da Linguística e da Psicolinguística. Contemplam, sobretudo, operações mentais que envolvam consciência, pois, como elucida Gombert (1992, p. 9), “toda consciência é necessariamente meta do ponto de vista do observador”. Nesse sentido, o presente artigo objetiva traçar um recorte de conceitos e de objetos de estudo concernentes à metacognição e à metalinguagem, uma vez que consistem em ferramentas que podem trazer importantes contribuições a áreas de investigação interessadas no desenvolvimento cognitivo dos indivíduos.

Num primeiro momento, importa estabelecer reflexões a respeito da consciência, elemento presente tanto na metacognição quanto na metalinguagem. A consciência insere-se, primeiramente, no campo de estudos da Psicologia; mais recentemente tem sido focalizada também em pesquisas linguísticas. Verifica-se, sobretudo, uma variedade de definições para o termo. Matlin (2004), sob a perspectiva da Psicologia Cognitiva, adota um conceito amplo: consciência significa saber que as pessoas possuem imagens e sentimentos sobre o mundo exterior e suas percepções. Sendo assim, seu conteúdo pode tanto incluir

1 Doutoranda do curso de Linguística da PUCRS. Email: [email protected] Doutoranda do curso de Linguística da PUCRS: Email: [email protected]

percepções do indivíduo sobre o mundo ao seu redor, sobre suas imagens visuais, comentários silenciosos com ele mesmo, lembranças de fatos de sua vida, crenças sobre o mundo, planos para atividades posteriores e atitudes perante outras pessoas. Sternberg (2008), por sua vez, estabelece uma distinção entre atenção e consciência, que estão intimamente ligadas, mas apresentam processos diferentes. Atenção consiste no meio pelo qual se processa ativamente uma quantidade limitada de informação a partir da enorme quantidade disponível através dos sentidos, das memórias armazenadas e de outros processos cognitivos. Em contrapartida, consciência inclui o sentimento de percepção consciente e o conteúdo da consciência, parte do qual pode estar sob o foco da atenção. Sob esse prisma, trata-se de dois conjuntos sobrepostos.

Importa destacar ainda quatro questões inter-relacionadas à consciência que têm despertado a atenção de psicólogos cognitivistas. Como explica Matlin (2004), a primeira diz respeito à consciência dos processos mentais superiores, ou seja, à capacidade do ser humano de remeter os pensamentos à consciência. Segundo estudos recentes, é possível ao homem estar plenamente consciente dos produtos de seus processos de pensamento, mas, em geral, ele não consegue mostrar-se consciente dos processos que criaram esses produtos. Se for indagado, por exemplo, sobre o nome de solteira de sua mãe, a tendência é de a resposta logo emergir na sua consciência; todavia, se a pergunta remeter a como ele chegou à resposta dada, provavelmente não saberá explicar o processo de pensamento transcorrido. A segunda questão reside na supressão do pensamento: muitas vezes há dificuldade em eliminar algumas informações

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da consciência. Quando se imprime esforço para controlar mentalmente um pensamento, a tendência é de que seu conteúdo retorne insistentemente à consciência. A terceira denomina-se questão cega, que representa visão sem percepção. Em alguns casos, as pessoas podem executar uma tarefa cognitiva com bastante exatidão, sem qualquer tomada de consciência de que seu desempenho seja exato. Trata-se de uma condição em que uma pessoa vítima de um dano no córtex cerebral (parte mais externa do cérebro) alega não ser capaz de ver um objeto. O quarto e último ponto refere-se ao inconsciente cognitivo, que tem sido tradicionalmente mais explorado por estudos que seguem a linha de Sigmund Freud. Para Matlin, trata-se de informações processadas fora da percepção consciente, cujo tratamento científico é bastante dificultado pela falta de evidências de seu funcionamento. Deve-se enfatizar, sobretudo, que o consciente e o inconsciente não estão divididos em duas categorias inteiramente separadas; são dois processos que se conectam num continuum.

Nessa perspectiva, importa distinguir os níveis de consciência. Conforme explica Poersch (1998), a escala de conscientização inicia-se no nível inconsciente, que implica ausência de conhecimento, remetendo a tudo que está totalmente fora da consciência. Num nível intermediário, por sua vez, há uma vasta gama de graus de conscientização que constitui o pré-consciente, ou o que os psicolinguistas denominam sensibilidade. Refere-se ao dar-se conta de que algo existe, sem reflexões que levem o sujeito a explicitar o como e o porquê. Trata-se, assim, de um conhecimento tácito. No outro extremo, há a consciência plena, nível que permite que o objeto focalizado seja controlado, alvo de

reflexão, de manipulação e de descrição. Nesse patamar, o conhecimento pode ser explicitado.

Neste estudo, interessa particularmente entender a capacidade do indivíduo de trazer o pensamento à consciência. Como visto, parece mais fácil tomar consciência do produto desse pensamento do que de seu processo. Com efeito, torna-se relevante distinguir dois processos básicos que envolvem a consciência: o cognitivo e o metacognitivo.

Segundo Poersch (1998), a cognição é um processo mental que permite a apreensão, o processamento e a recuperação de conhecimento, de informação. Nesse sentido, os processos cognitivos dizem respeito aos aspectos automáticos e inconscientes ou aos aspectos pré-conscientes utilizados pelos indivíduos quando desempenham alguma tarefa. Como não são conscientes, não podem ser controlados ou monitorados. Os processos metacognitivos, por sua vez, são aspectos conscientes. O ser humano, ao mesmo tempo que desempenha uma atividade cognitiva, utiliza estratégias de ação e de reflexão para atingir o propósito desejado. Ele estaria monitorando seu comportamento, utilizando, assim, estratégias metacognitivas. Ou ainda, como elucida Kato (2007), se estratégias cognitivas em leitura designam os princípios que regem o comportamento automático e inconsciente do leitor, as metacognitivas remetem aos princípios que regulam a desautomatização consciente das estratégias cognitivas.

Deve-se destacar, no entanto, que existem divergências quanto a essas delimitações. Alguns autores defendem que as atividades metacognitivas são inconscientes; outros sugerem que são conscientes. Mas o que se observa é que a metacognição pode incluir aspectos tanto conscientes

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como automatizados, ou inconscientes, como afirmou Flavell (1979). Já Brown (1980) defende os critérios consciente/inconsciente para distinguir a metacognição da cognição. Essa definição não leva em conta que a cognição envolve não somente tarefas automatizadas durante a leitura, mas também aquelas que exigem certo nível de consciência. Leffa (1996) propõe uma visão que não adota o critério de “atividade consciente”, mas considera o tipo de conhecimento exigido para determinada tarefa, que pode ser declarativo (atividade cognitiva) ou processual (atividade metacognitiva). O conhecimento declarativo diz respeito ao sujeito saber o tipo de tarefa que deve realizar; já o processual envolve saber o que deve fazer e também ter consciência de que sabe. Pode ser visto como uma instância superior a qualquer tarefa cognitiva, ou seja, o sujeito sabe os meios e os fins na medida em que ele não só conhece o resultado da tarefa, mas sabe o que pode fazer para chegar a esse resultado.

A pesquisadora portuguesa Ribeiro (2003) defende que as ações em benefício do aumento e da avaliação do progresso cognitivo podem ser, respectivamente, estratégias cognitivas e metacognitivas. Assim, o leitor aprende estratégias cognitivas de modo a progredir em termos cognitivos; e aprende as metacognitivas para poder monitorar o progresso cognitivo. O indivíduo que conhece os próprios recursos cognitivos tem condições de melhor regular o próprio conhecimento por meio de planificação, verificação e avaliação dos próprios avanços. Recentemente, a metacognição pode ser tratada como tendo caráter consciente ou inconsciente, e inclui também aspectos afetivos e intuitivos.

Outra distinção necessária a se fazer diz respeito à relação entre metacognição e metalinguagem. Conforme

Gombert (1992), não há um consenso a respeito de os estudos metalinguísticos se inserirem ou não no campo da metacognição. Deve-se considerar, no entanto, que objetos da metalinguagem são mais perceptíveis e, provavelmente, manipulados com maior frequência pelos sujeitos, sendo importantes para o desenvolvimento do pensamento e da metacognição. Segundo Poersch (1998), metacognição tem como objeto de interesse a cognição: busca-se saber como se conhece, refletir sobre os processos envolvidos nas atividades cognitivas. Saber como se adquire o conhecimento de mundo, como se formam os conceitos, como se abstrai e se generaliza, como se transferem conhecimentos ou como se solucionam problemas são atividades específicas da metacognição. No que tange à metalinguagem, trata-se de usar a linguagem para compreendê-la. A descrição dos diversos níveis linguísticos, das variedades dialetais, dos desvios e das interferências linguísticas, da linguagem infantil, dos estilos e das tipologias de discurso, dos tipos de argumentação ilustra atividades de metalinguagem. Embora os objetos de ambos os campos muitas vezes se correlacionem, a perspectiva estabelecida é diferente: enquanto a metacognição focaliza o processo, a metalinguagem detém-se sobre o produto de variadas atividades, sendo a consciência um elemento imprescindível que estabelece um elo entre elas.

Não obstante se reconheçam as diferenças entre ambos os enfoques, assume-se aqui a posição de que tanto habilidades metalinguísticas como metacognitivas dependem do desenvolvimento cognitivo. Todavia, tomando como pressuposto a primeira questão levantada por Matlin (2004) – consciência dos processos mentais superiores – é preciso considerar que é mais fácil o acesso

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à metalinguagem do que à metacognição. No que concerne à metalinguagem, deve-se especificar que tal noção é definida de forma diferente sob o prisma da Linguística e da Psicolinguística. Como elucida Gombert (1992), na perspectiva linguística, a metalinguagem é entendida como uso da linguagem para referir a ela mesma, acepção que tem por base o postulado de Jakobson (1963) sobre as funções principais e secundárias da linguagem. Nesse sentido, a metalinguagem é considerada uma função secundária, cujo foco de interesse é a autorreferenciação da língua, sendo a linguagem usada para descrever a própria linguagem. Na perspectiva psicolinguística, deve-se entender metalinguagem como uma atividade realizada por um indivíduo que trata a linguagem como um objeto cujas propriedades podem ser examinadas a partir de um monitoramento intencional e deliberado. Essa atividade requer do indivíduo um distanciamento em relação aos usos da linguagem e em relação ao seu conteúdo, para aproximar-se de suas propriedades. Em outras palavras, é necessário afastar-se do significado veiculado pela linguagem para aproximar-se da forma como a linguagem se apresenta para transmitir um significado.

Importa ainda distinguir as concepções de metalinguagem e de consciência linguística. Conforme explica Tunmer et al. (1984), embora consciência linguística esteja relacionada à acepção do termo metalinguagem, há uma diferença pontual. Enquanto esta se refere à linguagem usada para descrever a linguagem e inclui vocábulos como fonema, palavra, frase, etc. (os autores estariam aqui assumindo a concepção linguística), aquela remete à sensibilização para a instância desses termos, mas não

ao conhecimento desses termos propriamente. Nesse sentido, uma criança consciente metalinguisticamente pode executar bem uma tarefa que envolva manipulação de fonemas sem saber o significado dessa palavra.

Feito esse rápido recorte conceitual, procura-se agora elucidar peculiaridades da metacognição e da metalinguagem, bem como possíveis formas de exploração dessas áreas.

No que concerne à metacognição, várias têm sido as instâncias de tratamento: no âmbito da inteligência artificial, do aprendizado de matemática, do trabalho com a memória, dos estudos sobre retardo mental, entre outros. Também tem sido abordada ao se tratar de problemas na leitura. John Hurley Flavell foi o pioneiro nos estudos da metacognição, sendo que suas teorias a respeito dos aspectos metalinguísticos da inteligência têm por base o pensamento de Piaget. O teórico suíço, por sua vez, tratou do pensamento formal, que indicaria o máximo grau de equilíbrio - processo contínuo e progressivo de adaptação ao meio, que orienta a coordenação das ações.

Após Piaget, os estudos sobre a metacognição trataram do desenvolvimento de sistemas para o benefício da metamemória. Flavell (1979) utilizou o termo metacognição para referir-se à habilidade do indivíduo para manejar e monitorar o input, o armazenamento, a busca e a recuperação de conteúdos de sua memória. Juntamente com seus colaboradores, afirmava que, para que ocorra a memorização, o sujeito deve saber identificar as situações viáveis para adotar certas estratégias e desenvolver conhecimento sobre aspectos como sujeito, tarefa e meios para realizá-la.

A metacognição tem sido abordada, a partir dos anos 70, como uma terceira categoria, ao lado das capacidades

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cognitivas e dos fatores motivacionais que visam ao desempenho na escola. Refere-se ao monitoramento da compreensão do indivíduo ao longo da leitura, quando ele faz observações sobre o entendimento do assunto e decide adotar alguma atitude ao encontrar dificuldades. Nesse momento, o conteúdo fica em segundo plano, dando lugar aos processos que o leitor usa para compreendê-lo. Os pesquisadores da área voltaram-se à monitoração cognitiva, que inclui conhecimento metacognitivo, experiências metacognitivas, objetivos da cognição e ações ou estratégias para a avaliação do progresso cognitivo. As estratégias cognitivas objetivam o progresso da própria cognição, enquanto as metacognitivas, por sua vez, avaliam a eficácia das estratégias cognitivas.

A metacognição, para Flavell (1979), compreende duas dimensões: 1) conhecimento metacognitivo, ou elaboração de conhecimento; 2) experiência metacognitiva, ou a utilização desse conhecimento para gerenciar os processos mentais. O conhecimento metacognitivo manifesta-se em três categorias diferentes, que podem ser esquematizadas da seguinte forma:

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O conhecimento metacognitivo consiste numa interação entre essas variáveis. Já as experiências metacognitivas ocorrem antes, durante e depois de o sujeito realizar uma tarefa. Cita-se, como exemplo, o planejamento, a realização propriamente dita de uma tarefa e a avaliação da tarefa, como a releitura de um texto para melhor compreensão. Essas experiências são importantes porque é com elas que se podem avaliar dificuldades e criar meios para solucioná-las.

Flavell também identificou as três “metas” adquiridas gradualmente pela criança em contextos de armazenamento e de recuperação de informações: a) a criança aprende a identificar situações em que será útil, no futuro, o armazenamento consciente e intencional de certas informações; b) ela aprende a reter informações que possam ser úteis na resolução de problemas; c) aprende também a fazer buscas sistemáticas e deliberadas de informação útil para resolver problemas, mesmo quando a necessidade não foi prevista. A primeira tentativa desse pesquisador de criar um modelo de metacognição foi feita em 1979, quando reconheceu sua importância em inúmeras aplicações como leitura, habilidades orais, escrita, aquisição da língua, memória, atenção, interações sociais, autoinstrução, desenvolvimento da personalidade e educação, em geral.

Pode-se acrescentar a pesquisadora Brown (1980), que cerca a questão da compreensão em leitura de modo mais detalhado, destacando algumas atividades relacionadas com estratégias de controle/monitoramento da leitura: a) definição do objetivo da leitura; b) identificação dos elementos mais e menos relevantes; c) direcionamento da

atenção aos itens mais importantes; d) avaliação da qualidade da compreensão; e) adoção de atitudes de modo a sanar dificuldades na leitura; f) verificação quanto aos objetivos – se foram atingidos ou não; g) correção dos rumos da leitura de modo a sanar interferências, como estados de dispersão. Essas atividades metacognitivas, além de se desenvolverem de acordo com o aumento natural da capacidade reflexiva do sujeito, também são relacionadas aos contextos de educação formal, em que o educador atua de modo mais específico no desenvolvimento das habilidades de raciocínio do aluno.

Há divergências a respeito do surgimento da capacidade de refletir sobre a organização do conhecimento da criança. Alguns pesquisadores afirmam que somente aos 11 anos de idade a criança adquire essa capacidade. Para outros, ela começa a surgir aos cinco anos, tendo como precursora a “linguagem interior” da criança; aos onze anos, inicia-se propriamente a metacognição, que corresponde ao nível de operação formal.

Para tratar a metalinguagem, tendo em vista a proximidade de sua definição, pelo viés psicolinguístico, com a consciência linguística, ilustram-se as várias formas de abordá-la. Citam-se, a título de exemplo, a consciência fonológica, cuja unidade tomada para análise é o fonema; a consciência morfológica, que focaliza sua atenção sobre o morfema; a consciência sintática, que tem como unidade de análise a frase; a consciência lexical, cujo foco de interesse é a palavra. Mais recentemente, novas pesquisas têm voltado sua atenção à consciência pragmática (relação entre o sistema linguístico e o contexto no qual a linguagem se insere) e a consciência textual, que trata do monitoramento

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intencional do sujeito sobre o texto. Ressalva-se que, muitas vezes, são utilizadas expressões como consciência metalinguística, metapragmática, metalexical ou metatextual na literatura, evitadas aqui por se considerar que toda atividade meta já pressupõe a presença de consciência.

Com o objetivo de compreender a consciência linguística quanto às suas ramificações, procura-se aqui especificá-las sob a perspectiva dos estudos de Tunmer, Pratt e Herriman (1984). Os autores subdividem-na em consciência fonológica, lexical (ou da palavra), sintática e pragmática. Gombert (1992), por sua vez, acrescenta a essa classificação a consciência textual.

No que tange à consciência fonológica, trata-se de uma sensibilização que diz respeito à unidade mais elementar do idioma: a unidade fonológica. Nesse sentido, interessa saber em que medida jovens e crianças podem segmentar a palavra falada em seus componentes fonológicos e sintetizá-los no intuito de produzir palavras. Conforme os autores, uma série de estudos recentes tem mostrado o papel significativo da consciência fonológica como um facilitador para que as crianças aprendam a ler. Para ler corretamente uma linguagem alfabética, a criança, primeiramente, precisa saber falar e discriminar as unidades ortográficas do alfabeto. Mais tarde, ela pode seguir pelo menos duas estratégias para aprender a ler, as quais exigem uma ou mais habilidades adicionais. A primeira estratégia requer que se aprendam as formas auditivas e visuais correspondentes no nível das palavras. Consiste em um procedimento holístico que propiciaria às crianças aprender um vocabulário a partir de formas

visuais reconhecíveis, tornando possível o progresso para a leitura de textos que utilizam essas palavras. Já a segunda estratégia, analítica, envolve a relação entre componentes ortográficos da palavra escrita e a estrutura do segmento da palavra falada. Conhecendo a unidade fonêmica da palavra falada, a criança pode, quando confrontada com a palavra escrita, mapeá-la. Sendo assim, a criança que não adquire a habilidade de fazer análises fonêmicas pode apresentar dificuldades na leitura. Em contrapartida, aquela que recebe algum treinamento quanto à conscientização fonêmica é impulsionada, de forma significativa, à realização da leitura.

Quanto ao desenvolvimento da consciência lexical, deve-se considerar, primeiramente, a dificuldade existente em torno da definição do termo palavra, o que sugere que essa sensibilização pode não ser facilmente adquirida. Se a habilidade para defini-lo envolve um nível extremamente alto de consciência linguística, é preciso estar ciente de que a criança não necessariamente partilha o mesmo entendimento que o adulto a respeito desse termo. Segundo Tunmer, Pratt e Herriman (1984), há três componentes envolvidos na consciência lexical que não emergem simultaneamente. São eles: a) consciência da palavra como uma unidade da linguagem; b) consciência da palavra como um rótulo fonológico arbitrário; c) compreensão do termo palavra pela metalinguística. É preciso, em cada componente, diferenciar graus de consciência da palavra. Toma-se, como exemplo, o fato de a categorização dos objetos preceder a habilidade para nomeá-los.

É preciso considerar ainda que estudos relacionados à habilidade das crianças para definir o termo palavra

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têm recebido sérias críticas. Ainda que as mais jovens demonstrem pleno entendimento do conceito de palavra, não conseguem definir um termo abstrato da mesma forma. As mais velhas, por sua vez, ao formular respostas sobre o termo, são influenciadas a desenvolver sua capacidade de fornecer definições. Nesse sentido, estudos que requerem que crianças compreendam o termo palavra a fim de executar alguma tarefa experimental tendem a subestimar a sua compreensão a respeito de outros aspectos lexicais.

Já a consciência sintática centra-se na habilidade das crianças para refletir sobre a estrutura gramatical interna das sentenças, medida, geralmente, por tarefas que envolvam julgamentos de aceitabilidade, sinônimos e ambiguidades, bem como discriminação entre sentenças bem formuladas ou não. Segundo os autores, pesquisas sugerem que essa habilidade emerge a partir dos cinco anos de idade. No entanto, há alterações surpreendentes no desenvolvimento de crianças entre quatro e oito anos, o que apoia a hipótese de que competência linguística na média infância desenvolve-se de forma distinta.

Deve-se considerar, sobretudo, a dificuldade que elas apresentam para emitir julgamentos estáveis sobre sua linguagem. Sendo assim, a capacidade das crianças para fornecer tais juízos torna-se uma questão crucial nos estudos sobre consciência sintática. Jovens crianças tendem a aceitar sentenças cujo sentido elas compreendem e a rejeitar as não compreendidas. Nessa perspectiva, o fator semântico predomina, uma vez que encontram dificuldades para emitir julgamentos sobre aceitabilidade sintática. É necessário, então, usar técnicas e procedimentos

apropriados para avaliar a habilidade dos sujeitos de refletir sobre propriedades sintáticas e semânticas nas sentenças por eles produzidas e compreendidas.

A consciência pragmática, por sua vez, refere-se tanto às relações obtidas dentro do sistema linguístico quanto às obtidas entre esse sistema e o contexto em que a linguagem se insere. Diferentemente da consciência fonológica e da sintática, abrange aspectos que vão além dos componentes do sistema linguístico. As pesquisas nessa área têm se concentrado especialmente em três campos de estudo: a) sensibilização das crianças para perceber mensagens não adequadas em virtude da ambiguidade; b) habilidade para detectar inconsistências nas informações que lhes forem apresentadas; c) habilidade para modificar seu discurso a fim de atender as demandas específicas da situação.

Resultados de pesquisas revelam que a idade pode determinar diferenças de performances entre as crianças, visto que as mais velhas monitoram seus conhecimentos mais facilmente que as mais novas. Apesar da aparente obviedade dessa constatação, ela deve ser levada em conta no momento em que os desempenhos forem avaliados. Crianças mais novas frequentemente não notam sinais em uma situação comunicativa, o que não deve ser compreendido como falha de avaliação quanto às insuficiências ou às inadequações da linguagem.

No que concerne à consciência textual, Gombert (1992) postula a respeito da existência de operações metatextuais envolvidas no controle deliberado, na compreensão e na produção, bem como na ordenação de frases em unidades linguísticas maiores. Trata-

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29 Jésura Chaves e Marília Lopes

se, sobretudo, de uma instância de funcionamento metalinguístico pouco explorada em abordagens teóricas, visto que focaliza a reflexão de um indivíduo sobre a estrutura e a organização de textos e de variados gêneros. Consciência textual, portanto, deve ser entendida como uma atividade realizada por um indivíduo que tem como objeto de análise o texto, cujas propriedades podem ser examinadas a partir de um monitoramento intencional.

Levando-se em conta essas breves reflexões, parece plausível afirmar que o desenvolvimento de habilidades metacognitivas e metalinguísticas consiste em um eficiente instrumento para potencializar o aprendizado. Tendo em vista estarem diretamente envolvidas em operações cognitivas, como desenvolvimento do raciocínio, aprendizagem da leitura, aprimoramento da memória, conhecimento linguístico, entre outros, tornam-se mecanismos que podem ser utilizados em diferentes áreas do conhecimento. Sendo assim, áreas de pesquisa interessadas no desenvolvimento cognitivo devem, cada vez mais, atentar para a capacidade dos indivíduos de refletir sobre a natureza e as propriedades da linguagem, bem como sobre os processos que levam ao domínio dessas habilidades.

RESUMO – Estudos no campo da metacognição e da metalinguagem perpassam as áreas da Psicologia, da Linguística e da Psicolinguística. A metacognição, em linhas gerais, remete aos aspectos conscientes envolvidos numa atividade cognitiva, como utilização de estratégias de ação e de reflexão para atingir o propósito desejado. A metalinguagem, na perspectiva psicolinguística, deve ser

concebida como uma atividade realizada por um indivíduo que trata a linguagem como um objeto cujas propriedades podem ser examinadas a partir de um monitoramento intencional e deliberado. Com efeito, o presente artigo objetiva traçar um recorte de conceitos e de objetos de estudo concernentes à metacognição e à metalinguagem, uma vez que consistem em ferramentas que podem trazer importantes contribuições a áreas de investigação interessadas no desenvolvimento cognitivo dos indivíduos.

Palavras-chave: Metacognição. Metalinguagem. Consciência.

ABSTRACT – Studies on metacognition and metalanguage are present in Psychology, Linguistics and Psycholinguistics. Broadly, metacognition refers to conscious aspects involved in cognitive activities, like the use of strategies and reflections to reach some purpose. In psycholinguistics perspective, metalanguage is conceived as an activity done by a person who sees language as an object whose properties can be analyzed through an intentional monitoring. This article intends to show concepts and objects of study related to metacognition and metalanguage, once they consist of instruments which can contribute considerably to investigations of individual cognitive development.

Keywords: Metacognition. Metalanguage. Conscience.

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30 Metacognição e metalinguagem

Referências

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Leitura e atenção: um olhar sobre o input linguístico sob a perspectiva psicolinguista1

Karine Souza2

Ronei Guaresi3

Fale com os autores

O PISA é uma avaliação internacional que objetiva verificar como as escolas estão preparando os jovens para os desafios futuros nas áreas de leitura, matemática e ciências. Isso se dá através da aplicação de um teste a adolescentes com 15 anos em países membros da OCDE (Organização para Coordenação e Desenvolvimento Econômico) e convidados. Na compreensão em leitura, o Brasil (com 412 pontos em 2009) figura entre os últimos lugares, tanto no resultado de 2000 quanto no de 2009. Neste último, comparando com países latinoamericanos, atrás de Chile (449 pontos), Uruguai (426), México (425) e Colômbia (413), e à frente de Argentina (398), Panamá (371) e Peru (370).4

Embora possa ocorrer em diferentes níveis da escala de consciência, a aprendizagem com nível satisfatório se 1 O presente texto foi apresentado em Minicurso de Psicolinguística para docentes da Educação Básica, na PUCRS, promovido pelo Grupo de Estudos de Psico-linguística coordenado pela Profa. Dr. Vera Wannmacher Pereira. Por isso, esse texto tem finalidade mais informativa não concentrando sua discussão em torno de uma tese específica. 2 Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da PUCRS. E-mail: [email protected] Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da PUCRS. E-mail: [email protected] 4 Dados disponíveis no site do INEP: http://www.inep.gov.br/download/in-ternacional/pisa/2010/pisa2009_apresentacao_resultados_divulgacao.ppt#265,6,Desempenho Brasil

dá por meio da consciência plena do objeto de ensino. A atividade cognitiva responsável por elevar esse objeto ao nível da consciência é a atenção, atividade cognitiva que seleciona alguns dos inúmeros estímulos – input – que ocorrem em nossos sentidos. Em experimento, Boujon e Quaireau (2000, pag. 97) mostraram que a recordação de questões repetidas com indivíduo plenamente consciente foi bastante elevada; de indivíduos em adormecimento (fase do sono em que o indivíduo pode ser facilmente acordado) a recordação cai acentuadamente (no experimento em torno de 5% de acerto) e de indivíduos em sono profundo o número de respostas corretas foi quase nulo.

É quase consenso entre profissionais da educação que um dos aspectos que compromete a qualidade do ensino é a falta de atenção dos alunos nas atividades pedagógicas. A falta de atenção dificulta o aprofundamento de questões salutares das disciplinas. De maneira geral, os alunos não se sujeitam a discutir determinada questão com profundidade e nem se dispõem, em muitas escolas deste país, a escutar as propostas dos professores. As experiências dos autores deste estudo permitem afirmar que muitos destes docentes que conseguem condições de trabalho o fazem de forma autoritária através do estabelecimento do comportamento como um dos critérios de avaliação.

Também é fato que em contrapartida desse argumento está o fenômeno do controle químico tanto da atenção quanto da hiperatividade, atualmente com ampla administração pelos profissionais da saúde no Brasil. É assustador o número de estudantes que fazem uso de medicamentos com essa finalidade. Segundo Boujon

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e Quireau (2000), nos EUA, entre 3 e 10% das crianças avaliadas como desatentos ou hiperativos fazem uso regular de metilfenidato (Ritalina) ou dextroanfetamina (Dexedrina).

Ao ser percebido pelo cérebro, o input pode receber diferentes níveis de processamento. Segundo Craik e Tulving (1975), o nível de processamento determina o grau de consolidação de uma informação. Uma das classificações possíveis sugerida pelos autores compreende os níveis: perceptivo, fonético e semântico. Considere as questões envolvendo o termo sol:

(A) A primeira letra da palavra sol é maiúscula?(B) A palavra sol rima com chão?(C) A palavra sol pode completar a frase: o _____ brilha?

Ao termo sol diferentes perguntas são possíveis dependendo do nível requerido. A pergunta (A), em relação ao nível, pode ser classificada como nível perceptivo, pois, sob a perspectiva do processamento, basta um leitor proficiente olhar o termo para responder à pergunta. A pergunta (B) envolve um segundo nível de processamento, denominado por Craik e Tulving (1975) como de nível fonético. A pergunta (C), denominada pelos autores de nível semântico, promove no indivíduo maior intensidade de processamento. Em (C) é necessário que o leitor pense algum tempo antes de responder. Esse tempo requerido é usado pelo cérebro para processar, analisar e produzir uma resposta.

Os pesquisadores constataram que os indivíduos reconhecem mais facilmente as palavras quando estas

foram codificadas em um nível semântico, comparado aos níveis fonético e perceptivo. Ou seja, a informação com maior intensidade de processamento é mais bem consolidada que as outras informações ficando mais disponível para o indivíduo evocá-la. Enfim, uma codificação semântica é mais profunda, mais bem elaborada e favorece armazenamento a longo prazo. Os autores, ainda, registraram o tempo que os indivíduos empregaram para responder às perguntas e constataram que as respostas mais imediatas foram do nível perceptivo e as mais demoradas para o semântico.

Ainda sobre o tempo de processamento, numa leitura proficiente, o tempo gasto para decodificar e dar sentido a um texto depende da importância dada a cada uma das frases. Pesquisa de Gaonac’h e Passerault (1990) in Boujon e Quaireau (2000) indica que o leitor passa mais tempo observando as frases que julga difíceis, ambíguas ou importantes.

Boujon e Quaireau (2000), numa posição radical, afirmam que a atenção é condição para que se possa memorizar. Segundo eles, perceber, memorizar e aprender são ações que necessitam da atenção. Essa posição, no entanto, não é consenso. Muitos pesquisadores admitem que o cérebro percebe estímulos fora dos domínios da consciência e naturalmente da atenção, processa esses estímulos e utiliza esses conhecimentos. A respeito da cronologia e do processamento, Dehaene (2007) em Les neurones de la lecture trata da cronologia do estímulo até a consciência do mesmo. Segundo ele, o cérebro leva entre 30 e 50 milissegundos para perceber o estímulo, enquanto o início da consciência daquele estímulo se dará entre os 270 e 300 milissegundos. Um estímulo apresentado ao

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33 Karine Souza e Ronei Guaresi

indivíduo num tempo inferior aos 270 milissegundos pode ser considerado uma mensagem subliminar, ou seja, uma mensagem captada pelo cérebro, mas não processada conscientemente pelo indivíduo.

Os psicólogos já acreditaram que atenção era o mesmo que consciência. Hoje, contudo, reconhecem que parte do processamento ativo de atenção da informação sensorial, da informação lembrada e da informação cognitiva acontece sem consciência. Boujon e Quaireau (2000) definem a atenção como a disposição para selecionar e controlar objetos, informações, ações de maneira voluntária ou não. Segundo eles, a eficácia e a rapidez da atenção dependem do nível de vigilância ou de alerta no momento em que se exercita, mas também de nossa capacidade de mantê-la.

A capacidade de prestar atenção está estreitamente relacionada ao desenvolvimento do lobo frontal, responsável pelo controle, pela orientação e pela seleção, feita pelo indivíduo, de uma ou mais formas de atividade. Essa capacidade não pode ser mantida indefinidamente (BOUJON, 1996).

Várias classificações são possíveis quando tratamos da atenção. Neste texto só abordaremos a atenção contínua ou sustentada e atenção dividida por serem as mais pesquisadas. A atenção contínua ou sustentada não pode se dar indefinidamente. A continuidade da atenção gera redução na eficácia dos comportamentos. Esse tipo de atenção pode ser testada pelos chamados “testes de barragem”, nome genérico de três testes: a) tarefa de performance contínua de Rosvold (1956) in Boujon e Quaireau (2000); b) relógio de Mackworth (1958) in Boujon

e Quaireau (2000); e c) teste dos números de Bakan (1959) in Boujon e Quaireau (2000).

O teste de Rosvold, 1956, consistia na apresentação da letra X e, em seguida, da sequência AX em duas séries de 10 minutos de 600 letras cada. O teste de Bakan, 1959, na identificação da sequência de três números ímpares sucessivos numa série de 4800 números durante 80 minutos. Mackworth, 1958, concebeu um relógio no qual o ponteiro faz 100 deslocamentos numa volta completa. Por vezes, esse ponteiro faz deslocamentos duas vezes maiores que os outros. Cabe ao sujeito contar o número de deslocamentos duplos. O teste tem duração de duas horas em que o ponteiro faz 7152 deslocamentos dos quais 48 são deslocamentos duplos (BOUJON e QUAIREAU, 2000). Com a aplicação dos testes citados foi possível verificar que, depois de meia hora, a capacidade de prestar a atenção da maioria dos indivíduos reduziu drasticamente.

A atenção dividida remete à ideia de situação rica de estímulos, sejam eles auditivos, visuais ou outros, que necessita de utilização conjunta de várias operações cognitivas. As pesquisas têm mostrado que a realização conjunta de atividades leva a importante redução ou atraso das respostas corretas, pois a atenção está dividida. Deduz-se daí que a capacidade de atenção humana, também chamada de recursos de tratamento ou recursos atencionais, é limitada. A maior parte das pesquisas sobre atenção dividida se dá com motoristas que têm que gerenciar a divisão da atenção nas manobras ao volante.

Ao desenvolverem pesquisas sobre atenção, Boujon e Quaireau (2000) fizeram descobertas interessantes: a)

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o relógio biológico afeta o comportamento de um ser vivo (pag. 114); b) o sono é necessário para a aprendizagem (pag. 114); c) a capacidade atencional varia ao longo do dia: aumenta regularmente mas tem uma queda no início da tarde (pag. 114); d) a presença de outra pessoa facilita as provas mais simples, mas dificulta as mais complexas (pag. 120); e) crianças dissipadas não necessariamente apresentam distúrbios de atenção (DADH) (pag. 141); f) a capacidade de automatizar é determinante para a aquisição das competências escolares; e g) as crianças que apresentam um distúrbio grave de atenção podem automatizar, embora mais lentamente (pag. 141).

Fonseca, Ferreira, Liedtke, Muller, Sarmento e Parente (2006) associam atenção, percepção, memória visuoespacial, esquema corporal, dentre outros, ao hemisfério direito. Myers (2001) em seus estudos corrobora tal associação. Segundo esse autor, lesões no hemisfério direito dificultam tarefas simples da vida diária que exigem manutenção da atenção (sustentada) ou distribuição dela em dois ou mais estímulos concorrentes (dividida).

Chan (1999) sustenta o que parece obvio no caso da atenção dividida, quando os sujeitos são estimulados em situações distintas, recursos cognitivos são dispensados para cada estímulo concorrente. A hipótese de que a performance de alocação de recursos cognitivos para cada estímulo seja distinto entre jovens e adultos foi estudada por Dywan, Segalowitz e Webster (1998). Os pesquisadores observaram que a performance foi similar nos dois grupos tanto comportamental como eletrofisiologicamente.

Ribaupierre e Ludwig (2003) estudaram 81 jovens e 96 idosos e observaram diferenças entre os grupos na execução de tarefas simples e duais.

Anderson, Iidaka, Cabeza e Craik (2000) avaliaram a relação entre idade e atenção dividida, por meio da análise de variância, entre dois grupos: o primeiro de 17 sujeitos com idade entre 21 e 31 anos e outro grupo de 12 sujeitos com idade entre 63 e 76 anos. A tarefa compreendia uma lista de 20 pares de palavras moderadamente relacionadas como dentista/luva. Os pesquisadores observaram que o primeiro grupo, o dos jovens adultos, obteve melhor desempenho em relação ao segundo grupo, o dos adultos mais velhos.

Com a finalidade de investigar se a atenção dividida melhoraria com a idade, Tun e Wingfield (1995) aplicaram o teste de atenção divida DAQ (Divided Attention Questionnaire) a 83 sujeitos entre 18 e 27 anos e 245 entre 60 e 91. Ainda, os pesquisadores investigaram se a habilidade de atenção dividida influenciaria a performance dos indivíduos. Os resultados mostraram que não houve mudanças sistemáticas ou diferenças significativas, embora as pessoas mais velhas tenham indicado as tarefas como mais difíceis.

Korteling (1993) investigou se os efeitos da idade em tarefas duais iriam depender do nível de similaridade entre tarefas independentes. Foram testados 26 sujeitos adultos divididos em dois grupos: 19-30 anos e 64-77 anos. Eram apresentados dois estímulos não relacionados. Os resultados indicaram que, com o aumento de similaridade dos estímulos, a performance na tarefa de sujeitos mais velhos foi pior que dos mais jovens.

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Zeef e Kok (1993) testaram a atenção dividida e sustentada em dois grupos de 12 sujeitos, o primeiro de sujeitos com idade média de 22 anos e o segundo de sujeitos com idade média de 72 anos. Os resultados mostraram que os sujeitos mais jovens eram mais rápidos, contudo, erraram mais.

McDowd e Craik (1998) também compararam o desempenho de jovens e adultos em tarefas perceptuais-motoras envolvendo atenção dividida. Os pesquisadores observaram evidência de decréscimo na atenção dividida com a idade. As diferenças de idade foram altas quando a complexidade da tarefa também o era.

Ponds, Brouwer e Van-Wolffelaar (1988) investigaram a hipótese do decréscimo da habilidade de atenção dividida pela idade numa tarefa de simulação de direção com 3 grupos: 17 sujeitos com idade entre 21 e 37 anos; 17 sujeitos com idade entre 40 e 58 anos; e 41 sujeitos com idade entre 61 e 80 anos. A tarefa dos sujeitos era compensar o traçado do veículo no simulador e reagir de forma rápida a estímulos visuais apresentados. Os sujeitos mais velhos apresentaram pior desempenho nas atividades quando comparados com os sujeitos mais jovens e de meia idade que não diferiram entre si.

Noronha, et al (2008) realizaram estudo com 369 sujeitos com idade entre 18 e 73 anos. Esse estudo encontrou correlações significativas e negativas entre as medidas de atenção dividida e a idade, indicando que conforme aumentava a idade, havia uma diminuição nas pontuações de atenção dividida.

No gerenciamento da atenção assumem papel fundamental os processos automáticos e os controlados. Processos automáticos são importantes, necessários e não envolvem controle consciente. Eles demandam pouco ou nenhum esforço atencional ou mesmo intenção e são implementados como processos paralelos aos processos monitorados pela atenção. As ações podem ocorrer ao mesmo tempo ou sem qualquer ordem sequencial específica, sendo relativamente rápidas.

Os processos controlados são acessíveis ao controle consciente e até mesmo o requerem. Esses processos ocorrem em série. Em comparação aos processos automáticos, levam tempo para serem executados e podem ocorrer paralelamente. Com prática suficiente, até mesmo tarefas extremamente complexas, a leitura é um dos principais exemplos de atividade amplamente complexa, são possíveis de serem automatizadas. Para John Anderson (2005, p. 245), a linguagem é “talvez o sistema mais complexo que as pessoas têm que aprender” e se dá pela aprendizagem predominantemente implícita.

É razoável entender os processos como um contínuo em que determinada atividade cognitiva com prática suficiente vai da extremidade de processos controlados para a extremidade dos processos automáticos.

A passagem de determinada atividade cognitiva da extremidade controlada para a automática está ligada à frequência e intensidade do input. Através dos nossos órgãos dos sentidos, os estímulos chegam ao cérebro. Os neurônios, por meio de uma complexa cadeia eletroquímica, recebem os estímulos e provocam

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grande ou pequena excitação dos neurônios seguintes numa relação de equivalência da estimulação recebida. O “armazenamento” da informação se dá através de uma rede neuronial engramada num determinado padrão de ativação (freqüência / potencial de ação) e sua disponibilidade para evocação depende do quão forte essa informação está engramada nos neurônios. Uma vez que algum dos elementos da rede for ativado naquele padrão de ativação, então toda rede será ativada e a informação, recuperada.

A aprendizagem de uma informação, portanto, compreende a criação de conexões sinápticas, estabelecendo novo padrão de ativação integrado a conexões já existentes. Alguns pesquisadores consideram aceitável a ideia de empregar o termo aprendizagem para o reforço de conexões/conhecimentos já existentes no cérebro. A simples lembrança de um evento altera a força sináptica de determinada rede neuronial e a torna ainda mais disponível. Quanto maior ativação neuronial, maior serão as alterações na força das sinapses deixando mais disponível aquele conhecimento a tal ponto de a evocação ser automática. Vale lembrar que essas ativações neuroniais podem ocorrer no âmbito da consciência ou não. Pesquisas mostram que mesmo em estados avançados do sono há algum tipo de processamento de estímulos.

Outro fenômeno amplamente estudado sob o jugo de falsas memórias é o da evocação, especialmente do universo do conhecimento declarativo, que pode alterar a memória evocada. Ou seja, a evocação se dá num contexto de estímulos que podem alterar minimamente aquela

memória. Sob esse aspecto, podemos nos dar conta de que as memórias declarativas que temos apresentam-se com algum grau de alteração da realidade.

Quando tratamos do input linguístico, surgem questões que têm polemizado os estudiosos nas últimas décadas: a linguagem é inata ou adquirida? Ou mesmo o andar, nas pessoas, é inato ou adquirido?

a possibilidade de aprender a andar é inata. Mas para que saiba caminhar é preciso que faça as experiências necessárias no momento adequado. (...) Não acredito que a aprendizagem se desenvolva de forma muito diferente noutros campos (SPITZER, 2007, p. 185).

Segundo o autor, para aprender a andar, o cérebro da criança aprende a coordenar os 600 músculos do corpo sem esforço e sem o conhecimento explícito de leis de alavancas, forças, medidas, pesos e acelerações, ou seja, sem representações explícitas das equações diferenciais necessárias.

Se concordarmos com o pesquisador, então devemos aceitar que a aprendizagem da língua nativa ocorre predominantemente por meio da aprendizagem implícita, informal, não intencional, sem esforço, como defende Smith (1983). O fato é que sem input linguístico não há aprendizagem do idioma que, de acordo com Spitzer (2007) começa antes mesmo de nascer. Cabe a lembrança da descrição da linguagem dos inúmeros casos de crianças selvagens que, ressalvadas os exageros, apresentam

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dificuldade de comunicação com outras pessoas pela ausência de input adequado.

Sobre esse aspecto Cerutti-Rizzatti (2009), em pesquisa com alunos e famílias nas periferias de Florianópolis constatou que as famílias colocam como prioridade as condições mínimas de sobrevivência. Nesse caso, é mais importante a merenda na escola em detrimento da apropriação da leitura e da escrita. Nas famílias e nos professores entrevistados foi identificada uma subutilização da linguagem escrita se considerado seu potencial na sociedade grafocêntrica atual. Ainda segundo Cerutti-Rizzatti (2009), não é possível, em se tratando das discussões entre aprendizagem e desenvolvimento cognitivo, denegar a importância da dimensão social, cultural e histórica do input que alimenta o processamento neural. A pesquisadora afirma, ainda, que, em se tratando especificamente da língua escrita, parece notório que o entorno de letramento em que vivem as crianças oferece ou não a eles o input de que precisam para a ressignificação de suas redes neurais.

Diante do contexto concebido acima, é consenso entre pesquisadores das diversas áreas o papel instrutivo da leitura para a formação linguística, cultural e pessoal do indivíduo. Seguramente uma iniciativa que poderia contribuir para a modificação do cenário descrito pelo PISA seria o hábito de leitura. Segundo Dehaene (2007) e Spitzer (2007), nosso cérebro não teve tempo suficiente para adaptar-se biologicamente à leitura. Dehaene hipotetiza que alguns núcleos neuronais foram reciclados para o processamento da leitura e que foram

os elementos linguísticos – signos – que adaptaram-se ao cérebro e não o contrário.

O fato de a leitura parecer, para a maioria das pessoas, tão isenta de dificuldades, é o resultado de milhares de horas de exercício e mostra, mais uma vez, como o cérebro humano é flexível (SPITZER, 2007, p. 215).

O ato de ler está ligado diretamente com o ganho de conhecimentos quando lemos, não somos passivos, pois produzimos – de forma mais evidente do que noutros processos perceptivos – significados (SPITZER, 2007, p. 216).

Dificuldades em leitura estão relacionadas com alterações nos percursos das fibras conectivas, alterando os fluxos de informação na leitura (PAULESCU e col., 1996; SHAYWITZ e col., 1998). Estão relacionadas com pior coordenação da ativação das zonas implicadas no processo de leitura (HORWITZ e col., 1998), havendo uma perturbação das “ligações” entre os centros da linguagem do hemisfério cerebral esquerdo (BASSER, 1995; CONTURO e col., 1999).

John Anderson (2005) cita a leitura como importante fonte de aprendizagem indireta ou indutiva. Em seu artigo sobre aprendizagem indutiva, o autor defende que a maior parte do aprendizado de estruturas e de regras de determinado campo de conhecimento ocorre sem o

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recebimento de instruções diretas. Para ele a indução é o processo pelo qual o sistema faz inferências prováveis sobre o ambiente com base na experiência (p. 227). A maior parte da aprendizagem humana implica indução. Ex.: operação de utensílios domésticos sem quaisquer orientações diretas. As crianças nesse aspecto são prodigiosas: a) aprendem a diferenciar cães e gatos sem orientação; b) aprendem o idioma nativo praticamente sem instruções diretas. Quem já ensinou uma criança a diferença entre uma cadeira e uma mesa? Segundo esse autor, “ninguém instrui explicitamente as crianças sobre quais são as regras da língua. As crianças têm que inferir essas regras ouvindo a língua que é falada com elas” (p. 245). Estudos psicolinguísticos apontam a leitura como o caminho para a escrita, entendendo leitura não apenas como apreensão temática, mas como desvelamento do funcionamento linguístico do texto (ORLANDI, 1983). Quem lê também escreve, pois faz uma busca de reconstituição do caminho linguístico do autor e, portanto, dos sentidos produzidos (SMITH, 1983, 1999 e 2003). Segundo Braine (1971) e MacWhinney (1993), pesquisas sugerem que eventuais correções de adultos não ajudam as crianças que as recebem.

John Anderson (2005) cita Alan Baddeley, Michael W. Eysenck e Michael C. Anderson, em que os pesquisadores submeteram carteiros ingleses (British Post Office) a uma rotina de treinamento. Os treinados por somente 1 hora por dia aprenderam em menos horas de treinamento e melhoraram suas performances mais rapidamente do que aqueles treinados por 2 horas ao dia, os quais aprenderam

mais rapidamente do que aqueles que receberam o treinamento em 4 horas diárias. O grupo treinado em 1 hora aprendeu em 55 horas o que o grupo treinado em 4 horas aprendeu em 80. Esses resultados mostram que o aprendizado é mais efetivo quando o input é distribuído.

Manfred Spitzer (2007, p. 200) chama especial atenção ao risco que o computador representa como input ostensivo para a criança. Segundo ele, as imagens e os sons fornecidos pelo computador fornecem um meio empobrecido, porque os sinais estão muito mal correlacionados e não beneficiam em nada a criança na aprendizagem da vida. O significado das coisas só surge quando nos relacionamos com ela. A realidade é que fornece imagens em três dimensões, sons e imagens de vários locais. O cérebro precisa dimensionar isso. Só a realidade fornece estímulos para o pleno desenvolvimento normal da visão e da audição. A televisão não estimula o aparelho motor. O pesquisador faz, ainda, alguns questionamentos sobre esse tipo de input tão comum nos lares: a) como seriam aprendidas no computador as competências sociais? b) como queimar as energias mobilizadas? c) como ficaria o aprendizado com a ausência de treino de autoridade?

Até o final da escola secundária um estudante fica aproximadamente 13 mil horas na escola e 25 mil horas em frente a um televisor. Segundo Spitzer (2007, p. 310), deve-se ter cuidado, pois pesquisa de conteúdo de 180 horas de televisão incluíram 1846 atos de violência explícita, dos quais 751 com situações de ameaça de morte e 175 com desfecho de morte.

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Spitzer argumenta que

Se a televisão nunca tivesse sido introduzida, existiriam atualmente, nos EUA, anualmente, menos 10 mil homicídios, menos 70 mil violações e menos 700 mil delitos com ferimentos (SPITZER 2007, p. 315 apud CENTERWALL, 1992).

RESUMO – Baseado em pesquisadores e teóricos, a saber, Spitzer (2007), Anderson (2005), Smith (1983, 2003), Cerutti-Rizzatti (2009), Boujon e Quaireau (2000), Dehaene (2007), entre outros, o presente texto trata do input, especialmente o linguístico, e a atenção no contexto escolar. Em se tratando de input linguístico entende-se a leitura como input linguístico privilegiado e, normalmente, de qualidade. Duas das causas da baixa qualidade do ensino no Brasil residem, a nosso ver, na (falta de) atenção que, em situação de sala de aula é amplamente dividida, e na falta do hábito de leitura.

Palavras-chave: Atenção. Leitura. Input Linguístico. Ensino.

ABSTRACT - Based on researchers and theorists, namely, Spitzer (2007), Anderson (2005), Smith (1983; 2003) Cerutti-Rizzatti (2009), Boujon Quaireau (2000), Dehaene (2007), among others, this paper deals with the input, especially the linguistic, and attention at school. In terms of linguistic input it is meant the reading as a privileged linguistic input, and usually, of high quality. Two of the causes of the low quality of education

in Brazil is, in our view, the (lack of) attention in the classroom, which is widely divided, and the lack of reading habits.

Keywords: Attention. Reading. Linguistic Input. Teaching.

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O impacto da aquisição da leitura no cérebro: o que os estudos com neuroimagem têm a dizer

Fernanda Knecht1 Fale com a autora

A leitura é uma das habilidades mais importantes que somente nós, seres humanos, temos a capacidade de aprender. Não é surpreendente, então, que a leitura tenha se tornado o foco de inúmeros pesquisadores, que utilizam as mais variadas metodologias para alcançar os mais diversos propósitos. Há estudos sobre leitura focados no ensino e aprendizagem de línguas; há aqueles de caráter mais clínico, que se dedicam a estudar o processamento da leitura em pessoas disléxicas ou que sofreram algum dano cerebral; há também aqueles que envolvem pessoas que não têm nenhum distúrbio ou dano cerebral.

Nas últimas décadas, as técnicas de neuroimagem têm sido amplamente utilizadas como parte integrante de diversas metodologias e objetivos, no que se refere a pesquisas sobre leitura. Elas proporcionam a análise, in vivo, do que está acontecendo no cérebro do participante no momento em que este está desempenhando uma tarefa requisitada pelo pesquisador. Além disso, a neuroimagem possibilita que os pesquisadores façam uma espécie de mapeamento das áreas do cérebro que estão relacionadas com atividades de leitura e de que forma elas são ativadas.

O objetivo deste artigo é fazer uma breve revisão de estudos que tratam do impacto da aprendizagem da leitura 1 Mestranda em Linguística na PUCRS, bolsista CAPES. Email: [email protected]

no cérebro humano. Portanto, todos os estudos discutidos aqui foram desenvolvidos com técnicas de neuroimagem, ou, pelo menos, têm como base estudos realizados com essa técnica (como, por exemplo, Standardized Low Resolution Electromagnetic Tomography – SLORETA; Functional Magnetic Resonance Imaging – fMRI; Event-related Potential – ERP; Positron Emission Tomography – PET). As principais perguntas a que pretendo responder com esta revisão são:

I- a aquisição da habilidade de leitura modifica o cérebro? II- em caso positivo, de que maneira e em que medida isso ocorre?

Todas as pesquisas ilustradas neste artigo pertencem à mesma base de dados, o Portal de Periódicos Capes. Entretanto, elas foram retiradas de diversos periódicos. O estudo mais antigo data de 1998 e, o mais recente, de 2010.

Ao final do artigo, procuro relacionar esses estudos com questões concernentes à sala de aula de língua materna e / ou estrangeira. A leitura no cérebro

A leitura é uma aquisição cultural recente. Segundo Dehaene (2009), nosso cérebro é produto de milhões de anos de evolução em um mundo onde não havia escrita. Essa afirmação leva, inevitavelmente, à seguinte pergunta:

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como, então, o cérebro se adapta a ponto de reconhecer palavras e símbolos? Em outras palavras: se o cérebro humano não foi projetado para a atividade de ler, de que maneira ele consegue dar conta dessa habilidade? Voltarei a essa questão em breve.

No que se refere ao nível auditivo, estudos relatam que a alfabetização leva à consciência fonêmica e à habilidade de manipular as menores unidades da língua falada, os fonemas (MORAIS et al., 1986 apud DEHAENE et al., 2010).

Já em relação à fala, Castro-Caldas et al. (1998) desenvolveram um estudo com PET envolvendo mulheres adultas alfabetizadas na infância e não alfabetizadas e seus principais resultados, assim como os de vários estudos descritos anteriormente, indicam que aprender a ler e escrever na infância influencia a organização do cérebro adulto. Os estudiosos constataram que o aprendizado da forma escrita da palavra interage com o funcionamento da linguagem oral do indivíduo. A esse respeito, os autores citam modelos cognitivos que lidam com os mecanismos do processamento da língua falada e que consideram o conhecimento da escrita como um caminho de processamento paralelo. Isso indica que os sistemas escrito e oral da língua estão intimamente relacionados. Os resultados também evidenciam que certos aspectos da habilidade de lidar com unidades fonéticas da fala não são adquiridos espontaneamente, mas, sim, resultam da aprendizagem da leitura. Nesse sentido, aprender a ler e a escrever modifica o sistema fonológico humano, pois esse aprendizado adiciona uma dimensão visual-gráfica, ou seja, a correspondência entre o grafema e o fonema. Os resultados

de Ventura, Morais e Kolinsky (2007) vão ao encontro dos da pesquisa anterior. Em uma série de experimentos realizados com crianças leitoras e não leitoras e adultos leitores, os autores afirmam que há evidências de que a aprendizagem do sistema ortográfico da língua influencia em grande escala o reconhecimento da palavra falada. Nesse sentido, a habilidade de leitura parece alterar o processamento da fala. Os resultados do estudo de Perre et al. (2009), realizado com adultos, também corroboram com os de Castro Caldas et al. (1998) e os de Ventura, Morais e Kolinsky (2007). Entretanto, os pesquisadores vão além da investigação do efeito da aprendizagem da ortografia na língua falada. De acordo com eles, não há nenhuma explicação precisa de como, exatamente, o conhecimento ortográfico afeta o reconhecimento da palavra falada. Então, os autores discutem duas hipóteses: a primeira diz que a informação ortográfica é ativada no cérebro sempre que ouvimos uma palavra. De acordo com essa hipótese, aprender a ler e a escrever cria fortes e permanentes associações entre as principais áreas cerebrais relacionadas com a língua falada e regiões responsáveis pelo processamento de informação ortográfica, cujo principal representante é o giro fusiforme esquerdo2, que contém a área visual da forma da palavra3, proposta por Dehaene, Cohen e colegas (2001; 2004). A esse respeito, Ventura et al. (2007) argumentam que a especialização funcional progressiva dessa área parece estar intimamente relacionada com a habilidade de decodificação. A segunda hipótese diz que a ortografia influencia a fonologia durante o processo de aprendizagem de leitura e escrita, alterando, 2 Tradução minha para left fusiform gyrus.3 Tradução minha para visual word form area.

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dessa forma, a natureza das representações fonológicas. Os resultados da pesquisa corroboram com a segunda hipótese, ou seja, os autores acreditam que acontece uma reestruturação da representação fonológica ao longo do aprendizado da leitura e escrita, assim como Castro-Caldas et al. (1998). Interessantemente, os resultados mostraram que não houve ativação cerebral na área visual da forma da palavra, embora os próprios pesquisadores atribuam isso a possíveis problemas com a técnica de neuroimagem utilizada.

Em relação ao nível visual, o estudo de Schlaggar et al. (2002) teve o objetivo de investigar a relação entre idade e ativação cerebral durante atividades de reconhecimento de palavras escritas. Para tanto, o estudo foi desenvolvido com crianças e adultos. Os resultados indicam que o cérebro de crianças entre sete e dez anos de idade utiliza, em partes, uma neuroanatomia funcional diferente da dos adultos, ao desempenharem a mesma atividade. Segundo os autores, uma explicação possível para isso é que as crianças dessa idade não possuem algumas regiões cerebrais completamente desenvolvidas e, por esse motivo, o cérebro ativa outras regiões para auxiliar na resolução da tarefa. Já nos adultos, apenas algumas áreas são ativadas porque elas já estão maduras o suficiente para dar conta da tarefa sem auxílio de outras regiões. Outra explicação seria que as crianças dessa idade ainda não teriam adquirido algumas estratégias de leitura, e os adultos, sim. De maneira geral, os resultados de Schlaggar et al. (2002) permitem afirmar que a maturação do cérebro da criança, nos primeiros anos escolares, entre sete e dez anos de idade, ainda não está completa.

A pesquisa de Gaillard et al. (2003) apresenta resultados que vão na direção oposta. Os pesquisadores realizaram o estudo com crianças de seis e sete anos de idade e adultos. Os resultados sugerem que as redes neuronais que processam a leitura estão fortemente estabilizadas e regionalizadas quando a criança tem apenas sete anos. Nesse sentido, os autores afirmam que as redes neuronais de crianças dessa idade são semelhantes às de adultos. Entretanto, os pesquisadores reconhecem que parte desses resultados pode estar ligada ao fato de que os cérebros das crianças são menores que os cérebros dos adultos e que, com isso, há diferenças na maturação de algumas regiões cerebrais.

O estudo longitudinal de Maurer et al. (2006) envolveu crianças, antes e depois de aprenderem a ler e, posteriormente, comparou resultados provenientes desses participantes com os resultados de procedimentos desenvolvidos com adultos leitores. Os resultados mostram que as crianças que ainda não sabem ler, quando expostas a uma palavra escrita, não possuem ativação cerebral na área visual da forma da palavra que, como já disse antes, é considerada a principal área de processamento da palavra impressa. O objetivo da pesquisa foi investigar se o desenvolvimento dessa área cerebral aconteceria de maneira rápida, assim que a criança aprendesse a ler, e continuaria se desenvolvendo na fase adulta. Mesmo no início da aprendizagem da leitura, as crianças já mostraram ativação cerebral na área visual da forma da palavra. Esse resultado, de acordo com os autores, evidencia uma reestruturação plástica muito rápida do cérebro durante a infância. Além disso, percebeu-se uma ativação muito maior

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em resposta a palavras impressas do que a uma sequência de símbolos impressos, por exemplo. Os resultados do estudo também sugerem que as crianças que apresentam ativação cerebral muito maior quando expostas a palavras, em comparação a quaisquer outros símbolos, se tornam leitoras mais fluentes rapidamente. Os pesquisadores afirmam que semelhante investigação pode ser útil para determinar, por exemplo, déficits de aprendizagem em crianças disléxicas, permitindo ao professor ou educador o uso de diferentes abordagens de ensino que levem em consideração os resultados dos testes.

Ainda sobre dislexia, Shaywitz et al. (2002) confirmam que crianças disléxicas apresentam uma disfunção em sistemas neuronais relacionados com o reconhecimento de palavras escritas e afirmam que, quanto mais jovem a criança, mais essa deficiência pode ser percebida. Em suma, os resultados de Maurer et al. (2006) evidenciam que aprender a ler leva, aproximadamente um ano e cinco meses depois dos primeiros contatos com a palavra escrita, a uma notável especialização neurofisiológica para a palavra impressa. Entretanto, essa especialização das crianças difere, em certos aspectos, da dos adultos, principalmente no que tange a características neurofisiológicas e a sensibilidade a novas palavras.

Ao contrário da aquisição da habilidade de leitura, que melhora e se desenvolve durante a trajetória escolar e com a prática, a sensibilidade da área visual da forma da palavra parece não se desenvolver no mesmo ritmo, ou seja, há um decréscimo na especialização conforme o tempo passa. Nesse sentido, de acordo com os autores, sob

a influência do treino de leitura, uma extensa rede neuronal se torna sensível à palavra escrita em recém leitores (principalmente na fase que vai do jardim de infância até o segundo ano). Com a prática posterior, a sensibilidade a alguns aspectos impressos pode diminuir em partes nessa rede neuronal, resultando numa ativação cerebral mais seletiva por parte dos adultos. Esse resultado se opõe aos estudos de Cohen e Dehaene (2004) e Simos et al. (2001), que evidenciam que o desenvolvimento da sensibilidade e, por sua vez, especialização de uma área do cérebro mais relacionada com a palavra escrita se desenvolve de maneira linear, com o aumento da proficiência na leitura.

Os resultados de todos os estudos descritos acima, de acordo com Dehaene et al. (2010), deixam importantes perguntas a serem respondidas. Por exemplo, a alfabetização leva a efeitos cooperativos ou competitivos no processamento cortical? Ou seja: o cérebro se desenvolve para desempenhar novas funções decorrentes do aprendizado da leitura ou deixa de desempenhar funções que outrora desempenhava para passar a exercer outras? Volto também à pergunta que destaquei no início desta seção: se o cérebro humano não foi projetado para a atividade de ler, de que maneira ele consegue dar conta dessa habilidade?

A esse respeito, Dehaene (2009) introduz o conceito de reciclagem neuronal, ao assumir a perspectiva de que a leitura é uma invenção cultural demasiadamente recente para envolver genética ou mecanismos de desenvolvimento. De acordo com o autor, o que acontece é que, durante a alfabetização, processos relativos à leitura

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reciclam neurônios que, anteriormente, eram responsáveis por outras funções, como, por exemplo, o reconhecimento de faces, casas e objetos. Isso possibilita dizer que tais funções sofrem impacto com a aquisição da leitura. Ou seja, aprender a ler causa mudanças na organização do cérebro, como evidencia também o estudo mais recente de Dehaene et al. (2010). A pesquisa, realizada com brasileiros e portugueses não alfabetizados, alfabetizados na infância e alfabetizados na fase adulta, mostrou que todas as pessoas que aprenderam a ler apresentam semelhanças na organização de seu córtex. O objetivo dos autores era entender quais estímulos, especificamente, são processados na área visual da forma da palavra antes do aprendizado da leitura e, em que medida sua representação cortical (que é sabido, aumenta durante o período escolar) é afetada pela alfabetização. Os resultados evidenciam que aprender a ler causa um enorme impacto nas redes neuronais relacionadas à visão e à fala, independentemente da idade em que a pessoa foi alfabetizada. Tais estudos corroboram os resultados de outras pesquisas apresentadas anteriormente. A alfabetização aumenta a organização do córtex visual, particularmente através da indução de respostas para um estímulo escrito no idioma já conhecido pela área do cérebro responsável pela forma da palavra. Além disso, a alfabetização permite que toda a rede neural do hemisfério esquerdo, relacionada à linguagem falada, seja ativada por sentenças escritas.

Dessa forma, a leitura, que é uma invenção social recente, aproxima-se da eficiência do canal de comunicação mais evoluído da espécie humana, a fala.

Conforme os estudos anteriores, a pesquisa de Dehaene et al. (2010) também mostra que a alfabetização aprimora o processamento da linguagem falada, reforçando a região fonológica, o plano temporal e fazendo com que o código ortográfico seja disponível de modo top-down, ou seja, de maneira holística. Os autores argumentam que essas mudanças corticais, embora altamente positivas, levam, assim como outras habilidades que se tornam especialidades, a efeitos competitivos no cérebro. Por exemplo, na região do cérebro que, entre outras partes, possui a área responsável pela forma das palavras, os resultados mostram que houve uma diminuição significativa do reconhecimento de faces por parte das pessoas alfabetizadas em relação às não alfabetizadas. Como identificar rostos, assim como palavras escritas, é uma parte essencial da comunicação e da interação social significativa (TURKENTAUB et al., 2005), Dehaene et al. (2010) sinalizam que essa intrigante possibilidade de que o reconhecimento de rostos possa sofrer danos proporcionais às nossas habilidades de leitura será explorada em futuras pesquisas.

O estudo de Turkeltaub et al. (2005), assim como o de Castro-Caldas et al. (1998), defende que a organização cerebral é modificada com a aquisição de qualquer habilidade, não somente a leitura. Para tanto, os pesquisadores desenvolveram um estudo utilizando técnicas de neuroimagem com adultos e crianças com formação musical. Os pesquisadores discutem a formação musical, argumentando que, assim como a leitura, aquela também é adquirida somente por seres humanos, através de anos de estudo e esforço, que, normalmente, se iniciam

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na infância. O estudo envolveu diferentes e diversas atividades de leitura. Os resultados evidenciam que há regiões do cérebro que apresentam mais modificações do que outras, comparando um leitor adulto e um leitor criança. Por exemplo, o córtex temporal superior esquerdo não apresentou muitas mudanças, visto que tanto no adulto quanto na criança as ativações foram similares. No entanto, o giro frontal inferior esquerdo apresentou mais mudanças: seu desenvolvimento aumenta consideravelmente durante o processo de aquisição da leitura. Essa área do cérebro é comumente dividida em duas: a área dorsal fonológica e a área ventral semântica (BOKDE et al., 2001). O estudo mostrou que, nas crianças, essas duas regiões praticamente não são ativadas, enquanto que nos adultos a ativação é forte. No que se refere à anatomia do cérebro dos participantes, notaram-se diferenças em relação aos músicos mais habilidosos comparados com outros não tão habilidosos. Com base nisso, os autores sugerem que diferenças anatômicas também poderiam ser observadas em cérebros de bons leitores, leitores medianos e pessoas não alfabetizadas. Outro resultado interessante apontado pelos pesquisadores é que não houve nenhuma evidência direta que apontasse que os mecanismos de processamento das palavras, dentro da área visual da forma da palavra, se desenvolvem durante o período de aquisição da leitura. Nesse sentido, os resultados parecem ir ao encontro de pesquisas, como a de Price e Devlin (2003), que mostram que várias áreas do cérebro são responsáveis pelo reconhecimento de palavras, e não apenas a região conhecida com área visual da forma da palavra. Na verdade, os referidos autores nem

mesmo concordam com essa nomeação. Em relação a isso, Turkeltaub et al. (2005) argumentam que mais pesquisas são necessárias para confirmar se a área visual da forma da palavra é exclusivamente dedicada ao processamento de palavras ou se esta área tem outra função concomitante.

Conclusão

Muitos dos estudos descritos neste artigo apresentam resultados semelhantes, que permitem conclusões semelhantes. Por outro lado, pode-se perceber que existem pesquisas que mostram resultados bastante diferentes, até mesmo opostos. Isso pode estar relacionado com a metodologia utilizada, com as perguntas que os pesquisadores se propuseram a responder e, também, com diferenças individuais entre os participantes dos estudos. Em vista disso, mais pesquisas se fazem necessárias para que seja possível comprovar ou descartar hipóteses, assim como acrescentar novas. Entretanto, mesmo os estudos mais discrepantes entre si apresentam, em certa medida, alguma semelhança: todos mostram que algo acontece no cérebro com a aprendizagem da leitura. Volto agora, então, às perguntas que me moveram na construção deste artigo:

I- a aquisição da habilidade de leitura modifica o cérebro? II- de que maneira e em que medida isso ocorre?

Como as duas perguntas se complementam, tentarei respondê-las concomitantemente. O aprendizado da leitura

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causa profundas alterações no cérebro, tanto em sua anatomia quanto em sua funcionalidade. Essas alterações acontecem, principalmente, no plano visual e no que se refere à fala. Além disso, há evidências, ainda que em pouco número, se levarmos em consideração a quantidade de estudos sobre isso, de que a aquisição da leitura também tem impacto no plano auditivo.

Em relação ao plano visual, algumas pesquisas mostram que a criança, assim que aprende a ler, começa a ativar áreas do cérebro, relacionadas com o reconhecimento da palavra impressa, que não ativava antes de adquirir essa habilidade. Além disso, constatou-se que essa área cerebral se desenvolve de maneira muito rápida ainda quando a criança está na fase inicial da aquisição da leitura. Isso sugere uma capacidade plástica e de adaptação do cérebro muito rápida nas crianças. Mais estudos são necessários para investigar como, de fato, esse desenvolvimento continua acontecendo na fase adulta. As pesquisas existentes que abordam esse tema não apresentam resultados similares: em alguns estudos o desenvolvimento da região do cérebro responsável pelo reconhecimento da palavra escrita continua acontecendo na fase adulta, com a prática e a experiência; em outros, esse desenvolvimento ou especialização tem seu auge na infância e parte da adolescência e depois disso começa a diminuir.

De acordo com as pesquisas, a aquisição da leitura, ou seja, o conhecimento ortográfico da língua causa mudanças relacionadas aos aspectos fonológicos. Em outras palavras, aprender a ler leva a uma reestruturação do sistema fonológico no cérebro humano. Além disso, acredita-se que a aprendizagem da leitura possibilita ao

indivíduo manipular com mais facilidade todos os fonemas de sua língua. Nesse sentido, a aprendizagem da leitura tem impacto no processamento da fala.

O conhecimento de pesquisas dessa natureza pode ser bastante relevante para o trabalho do professor de língua, que utiliza muito a leitura de textos como base para as aulas. Resultados de experimentos como os relatados aqui podem auxiliar no entendimento de como se dá a aprendizagem do aluno e até mesmo do porquê de alguns alunos apresentarem dificuldades para aprender com determinadas atividades. No caso de alunos que apresentam algum distúrbio, como por exemplo, a dislexia, o conhecimento de pesquisas que relatam o impacto da aprendizagem da leitura no cérebro parece ser ainda mais relevante.

RESUMO - O objetivo deste artigo é fornecer uma breve revisão teórica acerca de estudos com neuroimagem sobre a aprendizagem da leitura e seu impacto no cérebro humano. Resultados evidenciam que aprender a ler, independentemente da idade, causa profunda reorganização do córtex, principalmente no que se refere à fala e à visão.

Palavras-chave: Leitura. Cérebro. Neuroimagem.

ABSTRACT - The aim of this paper is to provide a brief review about neuroimage studies that involve reading acquisition and the impact it may have on the human brain. Results show that learning to read, independently of the age of acquisition, causes deep restructuration on the cortex, mainly related to speech and vision.

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Resumo: a relevância do objetivo de leitura

Cláudia Strey1

Fale com a autora

Para que se faça uma definição apropriada do que é leitura, é necessário que se defina a interface2 em que se trabalha. Se a área de interface é a Social, pode-se entender leitura como uma prática de inclusão social, em que se trabalha com conceitos de capacidade crítica e de exercício da cidadania. Se a área é a Cognitiva, leitura passa a ser definida como processo cognitivo, em que se estudam aspectos como inferência, predição, memória. Por fim, se a área de interface é a Ciência Formal, leitura pode ser estudada no sentido de observar como questões lógicas interferem a compreensão leitora.

Nesse estudo, o objeto contruído se dará na interface entre Psicolinguística (uma interface entre Linguística e Psicologia) e Pragmática (uma subárea da linguística), em que se assumem hipóteses de leitura (SOLÉ, 1998) e de comunicação (Teoria da Relevância - SPERBER & WILSON, 1995) para derivar conclusões que possam ser interessantes para ambas as áreas envolvidas. O artigo procura abordar um problema evidente no atual cenário

1 Mestranda em Linguística – PPGL-PUCRS e bolsista CNPq. Artigo apresentado para a cadeira de Compreensão e Processamento da Leitura. Email: [email protected] A visão de que o estudo das ciências deve ser feito por meio de interfaces está de acordo com a Metateoria das Interfaces, desenvolvida por Campos (2007), que argumenta que, somente através de interfaces, consegue-se explicar uma maior quantidade de fenômenos adequadamente. Para a Filosofia da Ciência (e, consequentemente, da Linguística), isso implica construir um objeto de acordo com a perspectiva adotada, e não observar um objeto pré-existente a essa perspectiva.

escolar: atualmente, em relação a obras literárias, os jovens parecem preferir ler resumos a ler o texto original. As perguntas norteadoras emergem dessa constatação: por que, na escola, a maior parte dos alunos tem essa preferência de leitura? Como explicar a diferença de leitura entre esses dois gêneros (obra literária e resumo)? Qual o papel dos objetivos de leitura e da avaliação feita pelos professores? Como a Teoria da Relevância pode ajudar a explicar essa escolha?

Partindo desses questionamentos e do objetivo principal – construir uma interface entre Psicolinguístca e Pragmática –, algumas hipóteses são construídas: (a) o objetivo de leitura e o tipo de avaliação parecem guiar a leitura feita pelos alunos; (b) o princípio da Relevância ajuda a explicar a escolha de qual forma de leitura é mais relevante de acordo com o seu objetivo; (c) a leitura é determinada pelo menor custo cognitivo, e não pelo maior benefício.

O artigo que se segue está organizado da seguinte forma: primeiro, aborda-se como a leitura pode ser compreendida no aporte teórico da Teoria da Relevância, para, em seguida, mostrar a perspectiva de leitura à luz da Psicolinguística. A terceira e a quarta seção são destinadas à construção da interface: qual o custo cognitivo envolvido na leitura de resumos e de obras literárias, e qual sua relação com os objetivos de leitura e de avaliação escolar. Utiliza-se, como exemplo ilustrativo para demonstrar a interface, trechos da obra Iracema de José de Alencar e de alguns resumos dessa obra, encontrados na internet.

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1. Da leitura na perspectiva da Relevância

Após o desenvolvimento de teorias que abordam aspectos pragmáticos da linguagem, a comunicação verbal deixou de ser compreendida apenas como um processo de codificação e de decodificação, baseado no modelo de código (SHANNON e WEAVER, 1949). A comunicação passou a ser entendida como inferencial, em que não somente o dito tem papel fundamental para a compreensão, mas também o implicado. Grice3 foi um dos filósofos que mais contribuíram para esse processo, pois reconheceu o papel da intencionalidade e da inferência na comunicação, além de criar um modelo de pesquisa abrangente, capaz de dar estímulos a investigações futuras.

Partindo do modelo griceano, Sperber e Wilson (1986/1995) desenvolvem a Teoria da Relevância, que busca explicar a linguagem na interface entre comunicação e cognição. A Teoria da Relevância é um modelo de comunicação ostensiva, no qual o falante tornará manifesta a sua intenção informativa e comunicativa; e inferencial, em que o ouvinte deverá construir o contexto para chegar à interpretação do enunciado. A teoria fundamenta-se em duas propriedades que não podem ser dissociadas: a ostensão por parte do comunicador e a inferência por parte do receptor.

A ideia principal da teoria, como enfatiza Silveira (2005), está no conceito de Relevância, em que se estabelece uma relação entre custo cognitivo despendido e efeito 3 Grice propôs uma teoria baseada no modelo inferencial de comunicação. Para ele, as inferências resultantes no processo de comunicação são derivadas a partir de um acordo entre falante e ouvinte, chamado de Princípio da Cooperação e ligado a quatro máximas (quantidade, qualidade, relação e maneira). Seus trabalhos mais conhecidos são Meaning (1957) e Logic and Conversation (1975).

contextual alcançado. Essa característica refere-se ao fato de que os seres humanos prestam atenção àquilo que lhes parece relevante, desencadeando um processo inferencial. Para tal, Sperber e Wilson (1995) propõem dois princípios: o primeiro é o Princípio Cognitivo: “A comunicação humana tende a ser dirigida para a maximização da relevância” (SPERBER & WILSON, 1995, p. 260). Isso não significa dizer que os seres humanos sempre alcançam a relevância máxima (maiores efeitos cognitivos com menores efeitos contextuais), mas, ao contrário, significa que a mente humana possui uma tendência a escolher os estímulos, a ativar o conjunto de informações mais relevantes e a processá-los da maneira mais produtiva.

O segundo princípio fundamental é o Princípio Comunicativo: “Todo estímulo ostensivo comunica a presunção de sua própria relevância ótima” (SPERBER & WILSON, 1995, p. 260). Em relação à noção de relevância ótima, os autores afirmam que um estímulo será otimamente relevante se, e somente se, ele for relevante o suficiente para merecer esforço de processamento da audiência; e o mais relevante compatível com as habilidades e preferências do comunicador.

Outro conceito fundamental da teoria e importante para a interface com a Psicolinguística refere-se à noção de contexto, que não é dado de antemão, mas construído a partir do processo comunicativo. O contexto pode ser definido como um conjunto de premissas usadas para interpretar um enunciado, que se referem a um subconjunto de crenças do ouvinte sobre o mundo. A seleção do contexto é parte do processo de interpretação, ou seja,

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as “suposições são acrescentadas a partir do enunciado a ser interpretado, indicando que o contexto não é dado de antemão, mas construído no curso da informação” (SILVEIRA & FELTES, 2002, p. 46).

A partir da noção principal de relevância – relação custo-benefício –, pode-se transpor a comunicação oral para a escrita, e se analisar o processo de leitura através da relação entre ouvinte-leitor e falante-autor. Dessa forma, Silveira e Feltes (2002, p. 64) afirmam:

Se, conforme Sperber e Wilson, o papel do ouvinte é tão importante nesse processo [comunicativo], e se o comportamento verbal dos falantes é restringido pela expectativa de Relevância do ouvinte, então, em termos de autor e leitor, tal expectativa deve ser considerada a base para a análise do texto/discurso.

Assume-se, assim, que a leitura também é baseada no princípio inato da Relevância, que parece ser determinante para explicar a comunicação humana. Nessa perspectiva, Campos (2009, p. 58-59) afirma que

Ler consiste, essencialmente, num processo de construir cognitivamente uma espécie de código mental a partir de um código escrito, em que de grafemas visuais chegamos a representações isomórficas internas. (...) A noção de composicionalidade sintático-semântica é vital no processo

de leitura; é a soma dos fatores mínimos como grafemas em sílabas, palavras e sentenças, tudo dentro de uma certa ordem de boa formação, que gera o processo em pauta. Dizendo de outro modo, ler não é adivinhar, é decodificar e compreender.

Compreender o texto significa, portanto, ser capaz de produzir inferências relevantes, com o menor custo para maiores efeitos. Como se dá, então, a produção de inferências durante o processo da leitura? Há algum outro fator que pode influenciar a geração de inferências? Qual o papel da predição e das hipóteses construídas ao longo da leitura, por exemplo? Essas perguntas serão abordadas na próxima seção, que abordará a perspectiva Psicolinguística da leitura.

2. Da leitura na perspectiva da Psicoloinguística

Na maior parte dos estudos de Psicolinguística, a leitura é compreendida como um processo complexo, que ocorre de maneira ascendente (bottom up) ou descendente (top down). A escolha de qual processo será utilizado envolve algumas variáveis, como tipo de texto, objetivo de leitura, conhecimentos prévios do leitor e estilo cognitivo (PEREIRA, 2010).

O modelo ascendente de leitura (bottom up) é um modelo centrado no texto, desenvolvido por Gough (1972), que considera a leitura como um processo linear, serial, que vai da identificação de letras e palavras à extração do

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significado no texto. A leitura é vista como um processo passivo, no qual o leitor é apenas um decodificador do significado que o próprio texto carrega.

No modelo descendente (top down), proposto por Goodman (1970), o leitor utiliza seus conhecimentos prévios para fazer antecipações e predições sobre o conteúdo do texto, fixando-se para verificá-las. Segundo Solé (1998), esse processo também é hierárquico, embora descendente, pois, a partir de hipóteses e antecipações prévias, o texto é processado para verificação.

Há, no entanto, um terceiro modelo que faz uma síntese dos outros dois enfoques para explicar o processamento da leitura. Segundo a teoria dos esquemas de Rumelhart (1981), o leitor constrói o texto a partir de informações linguísticas (lexicais, sintáticas, semânticas) associadas ao conhecimento de mundo. Os processamentos ascendente e descendente seriam não-excludentes e aconteceriam simultaneamente ou em paralelo.

A perspectiva assumida nesse artigo é que, durante a leitura, é necessário utilizar diferentes estratégias inerentes a cada tipo de processamento. Ou seja, não há predomínio somente de um ou de outro processo, mas a forma como se dá a compreensão depende de níveis de relevância. Além de a decodificação ser imprescindível, é preciso que se assuma a importância do processo inferencial (através de construção de contexto e de acesso à memória enciclopédica), de acordo com a Teoria da Relevância. A hipótese que se assume é que, independente do processo, a compreensão envolve

inferências multiformes4, que vão desde inferências fonológicas até inferências pragmáticas.

Assumindo-se a importância do processo inferencial, é importante observar quais outros fatores influenciam a formação de inferências. A Psicolinguística descreve alguns fatores, como o tipo de texto, o objetivo de leitura e os conhecimentos prévios. Em relação aos objetivos de leitura, Solé (1998) afirma que eles determinam como o leitor se situa perante um texto para que haja uma melhor compreensão. Segundo a autora, parece haver um acordo geral de que os bons leitores leem textos diferentes de diferentes maneiras, sendo esse fato um indicador da competência leitora, ou seja, da capacidade de se utilizar distintas estratégias em distintas leituras.

Solé ainda afirma que os objetivos de leitura podem ser muito variados, sendo impossível elencar todos. Entretanto, a autora propõe alguns objetivos genéricos, cuja presença é importante na vida adulta e podem ser trabalhados na escola: (a) ler para obter uma informação precisa; (b) ler para seguir instruções; (c) ler para obter uma informação de caráter geral; (d) ler para aprender; (e) ler para revisar um escrito próprio; (f) ler por prazer; (g) ler para comunicar um texto a um auditório; (h) ler para praticar a leitura em voz alta; (i) ler para verificar o que se compreendeu (SOLÉ, 1998, p. 93-101).

Vários estudos na Psicolinguística abordam a relação entre objetivo de leitura e quantidade e tipos de

4 Inferências multiformes são inferências que podem ser geradas por diversas fontes (lógicas, lexicais, semânticas, pragmáticas). Para mais detalhes, ver Campos (disponível em http://www.jcamposc.com.br/O_Texto_Juridico.pdf)

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inferências, como, por exemplo, Narvaez et al. (1999), Vivas (2004), Sponholz, Gerber e Volker (2006), Gerber e Tomitch (2008). A maior parte dos estudos utiliza o Protocolo de Pausa (CAVALCANTI, 1989), em que os informantes devem verbalizar qualquer pensamento que ocorra durante a leitura. Entretanto, deve-se observar que a própria metodologia é passível de questionamento, pois há várias inferências que são praticamente automáticas. Ou seja, ao ler, fazem-se inferências que muitas vezes não são verbalizadas, mas são de extrema importância para a compreensão de como se dá a leitura.

Para tentar solucionar esse problema, intrínseco aos estudos da Psicolinguística, recente área da Linguística, propõe-se explicar como os objetivos de leitura influenciam na construção das inferências, em uma interface entre a Psicolinguística e a Teoria da Relevância.

3. Da relevância dos objetivos de leitura: resumos

A leitura de obras clássicas da literatura parece, hoje, nas escolas, estar perdendo espaço para a leitura dos resumos das obras. Como explicar essa escolha? Em um primeiro momento, é preciso observar como a leitura está sendo encaminhada na sala de aula, ou melhor, quais objetivos de leitura estão sendo propostos pelos professores. Em um segundo momento, há que se pensar na relação custo-benefício, em que o custo cognitivo (a quantidade de esforço demandada) de ler um clássico, cuja linguagem pode ser muito distante daquela vivenciada pelos jovens, parece ser muito alto para os benefícios (efeitos cognitivos alcançados).

Como explicar a preferência dos jovens em ler os resumos ao invés da obra literária? Ao propor uma leitura, a maior parte dos professores quer que os alunos leiam o texto literário para estudá-lo. Entretanto, a avaliação feita não é compatível com a intenção inicial dos professores, pois, ao fazer questões que abordem apenas as informações gerais do texto, os alunos ajustam sua leitura para que ela seja a mais relevante possível. Dessa forma, a relação objetivo-relevância-avaliação parece ser essencial para explicar a leitura na escola.

Suponha que o objetivo inicial de leitura seja ler para aprender. Segundo Solé (1998), a finalidade desse objetivo é ampliar, de forma explícita, os conhecimentos a partir da leitura de determinado texto. O aluno estará em um processo em que irá estabelecer relações com o que já sabe, rever o que já conhece, formular novas hipóteses. Entretanto, para esse objetivo, o aluno precisa ter claro o que ele deve aprender (SOLÉ, 1998. p. 95-96).

O objetivo de ler para aprender pode estar ligado a outro: ler por prazer. O professor pode associar a leitura para um trabalho ao hábito de ler literatura. Solé (1998, p. 97) ressalta que

(...) seria útil distinguir entre ler literatura só para ler e ler literatura – e aqui tem sentido, por exemplo, que todos os alunos leiam o mesmo fragmento – para realizar determinadas tarefas que, se abordadas adequadamente, não só interfirão no primeiro objetivo, como também ajudarão a elaborar critérios pessoais que permitam aprofundá-lo.

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Entretanto, apesar de muitos professores terem esses objetivos iniciais, suas avaliações supõem outro tipo de leitura, cujo objetivo é ler para obter uma informação de caráter geral.

Segundo Solé,

Quando lemos para obter uma informação geral, não somos pressionados por uma busca concreta, nem precisamos saber detalhadamente o que diz o texto; é suficiente ter uma impressão, com as ideias mais gerais (SOLÉ, 1998, p. 94).

Apesar desse objetivo de leitura ser também essencial para a contrução de uma leitura crítica, ele não é devidamente trabalhado na escola. Não parece haver um cuidado para que se desenvolvam estratégias em que o aluno consiga, durante a leitura, perceber o que está relacionado às suas ideias e o que não está, por exemplo. Além disso, esse objetivo parece estar ligado a textos mais informativos do que literários. Dessa maneira, caso se entenda que o resumo é mais informativo e objetivo do que a obra literária, que possui inúmeras figuras de linguagem e passagens mais sugestivas do que objetivas, pode-se afirmar que ele é mais apropriado para o tipo de avaliação que é feita pelos professores: obter uma informação de cunho mais geral.

O argumento parece simples: se a avaliação feita acerca da obra literária aborda os fatos e se o resumo apresenta-os objetivamente, então os alunos leem os resumos. Mas como explicar cognitivamente que o resumo é mais relevante em termos de custo-benefício?

4. Do custo cognitivo das inferências

Em termos de relação custo-benefício, se o objetivo de leitura for claro e a avaliação coerente com esse objetivo, a leitura do texto original se justifica. Ou melhor, o alto custo será compensado com altos efeitos cognitivos, como pode ser visto nas análises a seguir. Observe os textos abaixo, um trecho do primeiro capítulo de Iracema, de José de Alencar e um resumo desse capítulo, retirado da internet.

A – Iracema, de José de Alencar

Três entes respiram sobre o frágil lenho que vai singrando veloce, mar em fora;

Um jovem guerreiro cuja tez branca não cora o sangue americano; uma criança e um rafeiro que viram a luz no berço das florestas, e brincam irmãos, filhos ambos da mesma terra selvagem.

A lufada intermitente traz da praia um eco vibrante, que ressoa entre o marulho das vagas:

— Iracema!...O moço guerreiro, encostado ao mastro, leva os olhos

presos na sombra fugitiva da terra; a espaços o olhar empanado por tênue lágrima cai sobre o jirau, onde folgam as duas inocentes criaturas, companheiras de seu infortúnio.

Nesse momento o lábio arranca d’alma um agro sorriso.Que deixara ele na terra do exílio?Uma história que me contaram nas lindas várzeas

onde nasci, à calada da noite, quando a Lua passeava no céu argenteando os campos, e a brisa rugitava nos palmares. <http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bn000014.pdf> fragmento

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B – Resumo de Iracema, de José de Alencar

Martim está numa jangada com seu filho e o seu cachorro de estimação. De repente, ele ouve alguém gritar o nome de Iracema e chora.

<http://pt.wikipedia.org/wiki/Iracema> fragmento

O Princípio Cognitivo da Relevância (SPERBER e WILSON, 1995, p. 260) postula que a cognição humana tende a ser guiada à maximização da relevância, ou seja, maiores efeitos cognitivos com menores custos cognitivos. Partindo da suposição de que a leitura também é regida pela maximização da relevância, podem-se explicar as preferências de leitura dos alunos.

Primeiro, comparar-se-á, em termos de custo-benefício, o texto original (A) com o resumo5 (B). A linguagem do texto de José de Alencar é muito rebuscada, sendo que várias palavras não são usuais e muitas outras são desconhecidas pelos jovens. Considere as duas primeiras frases do fragmento, que fazem parte do primeiro capítulo do livro:

Três entes respiram sobre o frágil lenho que vai singrando veloce, mar em fora;

Um jovem guerreiro cuja tez branca não cora o sangue americano; uma criança e um rafeiro que viram a luz no berço das florestas, e brincam irmãos, filhos ambos da mesma terra selvagem.

Provavelmente, para que se consiga decodificar (note que essa é uma primeira parte do processo de compreensão),

5 Não se trata, aqui, de discutir como o resumo é formado ou qual sua relação com a obra original em termos de escrita. Trata-se apenas sobre a leitura, em que se compara o resumo com um outro texto, no caso literário.

é necessário buscar na memória enciclopédica informações lexicais sobre o que significa, por exemplo, ente, lenho, tez, singrando, rafeiro, o que já implica certo custo cognitivo. Entretanto, caso o leitor não conheça essas palavras, provavelmente terá que procurá-las no dicionário, o que irá aumentar consideravelmente o custo cognitivo.

Após a decodificação, parte-se para a construção da explicatura e da implicatura6:

- Dito (após a decodificação): Três entes (seres) respiram sobre o frágil lenho (barco de madeira) que vai singrando (navegando) veloce, mar em fora. Um jovem guerreiro cuja tez (pele) branca não cora o sangue americano; uma criança e um rafeiro (cachorro) que viram a luz (nasceram) no berço das florestas, e brincam irmãos, filhos ambos da mesma terra selvagem.

- Explicatura: Três seres (jovem guerreiro, criança e cachorro) respiram sobre o frágil barco que vai navegando veloz, mar em fora. Um jovem guerreiro (Martim) cuja pele branca não cora o sangue americano (dele); uma criança (Moacir) e um cachorro que nasceram no berço das florestas (no Brasil), e brincam irmãos, filhos ambos da mesma terra selvagem.- Premissas implicadas: S1: Três seres estão no mar viajando de barco: duas pessoas e um cachorro.S2: O jovem guerreiro não é brasileiro.S3: O jovem guerreiro estava lutando no Brasil.S3: A criança e o cachorro nasceram no Brasil.6 Segundo Sperber & Wilson (1995, p. 182), entre o código (ou dito) e aquilo que é implicado, está a explicatura, proposição explicitamente comunicada e base para raciocínios inferenciais. Parte-se das explicaturas para as implicaturas, que se desdobram em premissas e conclusões implicadas.

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Conclusão implicada 1: Jovem guerreiro, criança e cachorro estavam no Brasil e estão indo embora de barco.

O que pode ser visto nessa passagem é que o custo cognitivo é alto, principalmente por causa da decoficação (palavras desconhecidas) e do processamento sintático, semântico e pragmático. Os efeitos cognitivos são altos, também, pois há várias premissas e suposições implicadas.

Observado o processo inferencial necessário para que se compreenda a primeira passagem da obra literária, passa-se para a análise do resumo do capítulo em que o fragmento está localizado (B):

Martim está numa jangada com seu filho e o seu cachorro de estimação. De repente, ele ouve alguém gritar o nome de Iracema e chora.

O processo de decodificação parece ser automático, pois não há palavras desconhecidas. Esse custo cognitivo é, portanto, praticamente nulo. Passa-se a analisar o processo inferencial, com a construção da explicatura e da implicatura.

- Explicatura: Martim está numa jangada com seu filho (de Martim) e com seu cachorro (de Martim). De repente, ele (Martim) ouve alguém gritar o nome de Iracema e (Martim) chora.

- Premissas implicadas:S1: Martim tem um filho e um cachorro (por

acarretamento).S2: Martim, seu filho e seu cachorro estão viajando.S3: Martim sente saudade de Iracema (acessado

pelo léxico chora).Conclusão Implicada: Martim não queria deixar Iracema.

É preciso observar que, nesse resumo, não aparece a descrição de quem são Martim e Iracema, o que faz com que, caso o leitor não saiba quem são as personagens, busque essa informação, o que levará a um maior custo cognitivo.

Ao comparar o processo inferencial de um trecho do primeiro capítulo com o seu resumo, percebe-se que:

- a quantidade de esforço mental exigido pelo texto original é alta, pois os léxicos não são usuais, o que compromete, de certa maneira, o processamento sintático e semântico;

- não há quase esforço cognitivo no processamento do resumo, pois as informações são ditas, não implicadas, ou seja, quase não há necessidade de inferências;

- há mais efeitos cognitivos no texto original, pois se derivam mais implicaturas, como a de que o jovem guerreiro não é brasileiro e a criança e o cachorro são – algo que não é implicado no resumo;

- a primeira frase do resumo corresponde ao trecho analisado da obra literária em que as implicaturas são do tipo acarretamento (nota-se que a informação de que o jovem guerreiro e a criança são parentes não é possível de ser derivada no trecho observado. Somente após a leitura de toda a obra, pode-se fazer essa inferência, pois o primeiro capítulo corresponde ao último acontecimento da narrativa);

- poder-se-ia afirmar, segundo os princípios da Teoria da Relevância, que ler a obra original é mais relevante, pois há mais efeitos do que custos cognitivos.

Entretanto, mesmo que, na perspectiva da Teoria da Relevância, a leitura do texto original seja mais relevante, como explicar que os jovens prefiram ler o resumo? Essa

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58 Resumo: a relevância do objetivo de leitura

resposta pode ser dada caso se considere o objetivo de leitura e, consequentemente, a avaliação feita dessa leitura. Para tal, considere a análise entre um resumo da obra (C) e uma questão de vestibular (D), abaixo.

C – Resumo de Iracema, de José de Alencar

Lenda criada por Alencar, Iracema explica poeticamente as origens de sua terra natal. A ‘virgem dos lábios de mel’ tornou-se símbolo do Ceará, e o filho Moacir, nascido de seu amor com o colonizador branco Martim, representa o primeiro cearense, fruto da integração das duas raças. Em Iracema, a relação amorosa entre a jovem índia e o fidalgo português Martim, domina toda a obra. Toda a força poética do livro advém dessa relação amorosa; os demais, a saber, a natureza, a bravura selvagem, a lealdade do índio etc., são elementos já tratados em O Guarani e posteriormente em Ubirajara. Por outro lado, a ação é reduzidíssima, o que dá ao livro um notável espaço lírico de que se valeu Alencar para escrever sua obra mais poética. A desorientação inicial de Martim, jovem fidalgo português, que se perdera nas matas, o surpreendente encontro com a jovem índia, a hospitalidade do selvagem brasileiro, o ciúme do guerreiro, o amor entre os representantes das duas raças - Iracema e Martim, a rivalidade entre as tribos tabajara e potiguara, a nostalgia de Martim por sua terra natal, suas viagens e a tristeza de Iracema com a mudança inesperada de seu amado, o nascimento de Moacir, filho de dor, e a morte de Iracema.

Essa é praticamente a síntese da fábula do livro.Destaca-se, nesta obra, a linguagem bem elaborada de

Alencar. O estilo é artisticamente simples, procurando recriar a poesia natural da fala indígena, plena de comparações e personificações, o que dá ao livro as características de um verdadeiro poema.http://www.algosobre.com.br/resumos-literarios/iracema.html

D – Questão de vestibular

(UFU-MG/2001) Sobre Iracema, de José de Alencar, podemos dizer que:1) As cenas de amor carnal entre Iracema e Martim são de tal forma construídas que o leitor as percebe com vivacidade, porque tudo é narrado de forma explícita.2) Em Iracema temos o nascimento lendário do Ceará, a história de amor entre Iracema e Martim e as manifestações de ódio das tribos tabajara e potiguara.3) Moacir é o filho nascido da união de Iracema e Martim. De maneira simbólica ele representa o homem brasileiro, fruto do índio e do branco.4) A linguagem do romance Iracema é altamente poética, embora o texto esteja em prosa. Alencar consegue belos efeitos lingüísticos ao abusar de imagens sobre imagens, comparações sobre comparações (sic). Assinale:(A) se apenas 2 e 4 estiverem corretas.(B) se apenas 2 e 3 estiverem corretas.(C) se 2, 3 e 4 estiverem corretas.(D) se 1, 3 e 4 estiverem corretas.

In: DESTRO, I. O CPV ajuda a ler FUVEST, UNICAMP e PUC 2007. São Paulo: CPV Editora, 2007.

A questão de vestibular envolve conhecimentos gerais sobre a obra literária, ou seja, é necessário que o leitor/aluno tenha um conhecimento amplo sobre o que a obra representa, sua história e seus personagens. Não há necessidade de conhecer os detalhes, as inferências vagas veiculadas pelo dito. Isso significa que, se o aluno tiver como objetivo de leitura obter uma informação de caráter geral (SOLÉ 1998, p. 94), ele

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poderá ler somente o resumo, que, como visto anteriormente, possui linguagem mais direta e menor custo cognitivo.

Certamente, para responder à questão, são necessárias diferentes inferências e relações com o que foi lido. Entretanto, o resumo é mais objetivo e aborda aspectos amplos da obra; enquanto a obra em si possui uma linguagem não usual, em que o próprio processo de decodificação já demanda alto custo cognitivo. O resumo, assim, é suficiente para responder à questão, sem que haja necessidade da leitura da obra literária (e maior esforço de processamento), como pode ser visto no quadro ilustrativo a seguir:

Questão Trecho do Resumo

1) As cenas de amor carnal entre Iracema e Martim são

de tal forma construídas que o leitor as percebe com vivacidade, porque tudo é narrado de forma explícita.

Não há correspondência com o resumo

2) Em Iracema temos o nascimento lendário do

Ceará, a história de amor entre Iracema e Martim e as manifestações de ódio das tribos Tabajara e Potiguara.

- A ‘virgem dos lábios de mel’ tornou-se símbolo do Ceará, e o filho Moacir, nascido de seu amor com o colonizador branco, Martim representa o primeiro cearense, fruto da integração das duas raças.- A rivalidade entre as tribos

Tabajara e Potiguara

3) Moacir é o filho nascido da união de Iracema e Martim. De maneira simbólica ele

representa o homem brasileiro, fruto do índio e do branco.

- A ‘virgem dos lábios de mel’ tornou-se símbolo do Ceará, e o filho Moacir, nascido de seu amor com o colonizador branco, Martim representa o primeiro cearense, fruto da integração das duas raças.

4) A linguagem do romance Iracema é altamente poética, embora o texto esteja em prosa. Alencar consegue belos efeitos linguísticos ao abusar de imagens sobre imagens, comparações sobre comparações.

- Destaca-se, nesta obra, a linguagem bem elaborada de Alencar. O estilo é artisticamente simples, procurando recriar a poesia natural da fala indígena, plena de comparações e personificações, o que dá ao livro as características de um verdadeiro poema.

Ao fazer uma análise entre os dois fragmentos, percebe-se que o resumo é suficiente para responder à questão. Ou seja, para uma questão cujo objetivo é verificar aspectos gerais do texto, o objetivo de leitura também será esse: lê-se para ter uma ideia ampla do assunto. Caso houvesse questões que necessitassem de uma leitura com o objetivo de ler para aprender ou, até mesmo, ler literatura, talvez a leitura da obra literária compensasse.

Algumas considerações podem ser feitas:- apesar de, segundo os princípios da Relevância,

a obra literária ser mais relevante (maior custo, mas maior benefício), na realidade escolar, os resumos são mais lidos, pois estão relacionados a aspectos gerais do texto, assim como a maior parte das avaliações;

- nesse contexto, o resumo parece ser mais relevante, pois não haveria necessidade de tantos efeitos

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60 Resumo: a relevância do objetivo de leitura

cognitivos. Em outro momento escolar, talvez a obra literária fosse mais relevante.

Essas constatações trazem um grande problema para a Teoria da Relevância: a cognição humana parece ser dirigida pelo baixo custo, e não pelo impacto do maior benefício. Isso significa que a leitura de obra literária, muitas vezes, implica um custo cognitivo muito alto, que, apesar de gerar mais benefícios, não compensa. O resumo, porém, que apresenta menos benefícios, possui um custo também mais baixo. Para que a leitura da obra literária compense (ou seja, o alto custo seja compensado) na realidade escolar, há necessidade de um benefício externo que também compense, como, por exemplo, ir bem em uma prova, ou passar no vestibular (lembrando que para isso ocorrer, é necessário que a prova seja elaborada de forma a compensar custo). Assim como afirma Campos (2005), o princípio da inércia parece se impor, e não somente em momentos de lazer, mas também de estudo.

A maior parte dos alunos, portanto, parece despender energia cognitiva até que determinado objetivo seja alcançado. Se uma inferência resolve a questão proposta, para que concentrar esforços em duas?

Considerações Finais

Este artigo buscou demonstrar a necessidade de construção de interfaces na Linguística para que se compreenda um objeto de estudo de forma diferenciada. Na interface entre Psicolinguística e Pragmática, procurou-se mostrar que a leitura feita por estudantes do Ensino Básico é guiada pelo menor custo cognitivo, aliado ao objetivo de leitura e ao tipo de avaliação feito.

Levando em consideração que o estudo em interface deve ser feito de forma a gerar impactos nas áreas envolvidas, pode-se afirmar que o artigo trouxe importante questionamento para a Teoria da Relevância: a mente humana parece não ser guiada pelo maior benefício, mas pelo menor custo, o que implicaria diretamente o Princípio Cognitivo da Relevância. Além disso, pode-se questionar sobre o que é benefício, pois, em situações de sala de aula, ele parece não ser cognitivo, mas altamente real e objetivo (ir bem na prova, por exemplo).

Em relação à Psicolinguística, uma das contribuições do artigo encontra-se no fato de que outra variável parece ser essencial para saber como se dá o processamento de leitura na sala de aula. Além do tipo de texto, conhecimentos prévios e objetivo de leitura, parece essencial que o tipo de avaliação da leitura seja considerado. Como demonstrado, o leitor (e estudante) irá definir o modo como a leitura será feita de acordo com o que ele espera da avaliação. Cabe ao professor, assim, direcionar a avaliação de acordo com o objetivo de leitura que ele quer (obter informação geral, aprender).

O objetivo central do trabalho – a construção da interface – foi essencial para que o estudo pudesse ser feito. Sem a perspectiva de uma ou de outra área, talvez os resultados não fossem tão elucidativos para o problema construído. Dessa forma, o que se apresentou não foi uma verdade absoluta sobre o objeto, mas uma perspectiva teórica interessante e que merece mais estudos e aprofundamentos.

RESUMO – O seguinte artigo objetiva demonstrar a construção de uma possível interface interna entre Psicolinguística e

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Pragmática a fim de explicar o processo inferencial durante leitura. Para tal, constrói-se o objeto de estudo a partir da observação da realidade: por que os estudantes parecem preferir ler resumo a obra original? Argumenta-se que essa escolha se dá pelo menor custo cognitivo e não pelo maior benefício, o que vai de encontro ao Princípio Cognitivo proposto pela Teoria da Relevância (SPERBER & WILSON, 1995). Além disso, o objetivo de leitura e o tipo de avaliação feita parecem interferir na escolha do que é mais relevante (em termos de custo-benefício). Por fim, mostra-se que a interface feita é uma interessante perspectiva teórica para explicar os processos inferenciais envolvidos na leitura.

Palavras-chave: Psicolinguística. Pragmática. Relevância. Objetivo de leitura. Avaliação.

ABSTRACT – The following article aims to demonstrate a possible construction of an interface between Psycholinguistics and Pragmatics in order to explain the inferential process in reading. For this purpose, the object of study raises from the observation of reality: high-school students seem to prefer reading summaries than reading the original literary text. We argue that this choice is lead by lower cost and not greatest cognitive benefit, which goes against the Cognitive Principle proposed by Relevance Theory (SPERBER & WILSON, 1995). Furthermore, the purpose of reading and the type of evaluation might influence the choice of what is most relevant (in terms of effort-benefit). Finally, we show that this interface is an interesting theoretical perspective to explain the inferential processes in reading.

Keywords: Psycholinguistics. Pragmatics. Relevance. Purpose of reading. Evaluation.

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Influência da leitura no aprendizado da escrita: uma incursão pela (in)consciência

Ronei Guaresi1

Fale com o autor

O desempenho dos alunos brasileiros no PISA2 deixa a todos os que prezam pela educação deste país pelo menos constrangidos (INEP, 2010). Embora de 2000 para 2006 tenha havido uma diferença positiva de 16 pontos, os resultados dos alunos brasileiros devem, no mínimo, nos preocupar. Também constatando esse problema e buscando razões para os problemas do aproveitamento escolar, Gastaldo (2000, p. 104) em estudo sobre a produção escrita de alunos do 1º ano do Ensino Médio concluiu que a escassez de leitura também pode ser uma das causas mais importantes dos desvios do registro formal escrito dos estudantes. Segundo o pesquisador, a habilidade de expressão, sobretudo da expressão escrita, não se pode adquirir sem a leitura. Vocabulário mais amplo e domínio de estruturas linguísticas mais complexas, tais como o uso da coordenação e da subordinação, são elementos linguísticos adquiridos predominantemente pela leitura, antecipou o pesquisador.

Com uma linha de reflexão semelhante, Smith (1983) sugere que é precipitado acreditar que a instrução prescritiva possa ser suficiente para transmitir o que um escritor precisa saber. O pesquisador também aponta 1 Doutorando em Linguística pela PUCRS. Email: [email protected] 2 Para uma análise mais criteriosa desse teste internacional ver em http://www.inep.gov.br.

a leitura como a fonte em que o indivíduo adquire conhecimento linguístico, sem esforço ou intenção, de maneira natural.

Com o exposto, partindo da pressuposição de que a leitura influencia a escrita, hipótese que buscarei confirmar neste estudo, surgem algumas questões instigantes: a) a leitura influencia na aquisição e no aprimoramento de elementos de todos os planos linguísticos? b) em todas as faixas etárias? c) qualquer material de leitura pode influenciar, mesmo textos com alto índice de informações novas, já que esses textos não encontrarão conhecimentos prévios? (Ausubel e colegas (1983) chamam de subsunçores, ou seja, elementos no cérebro que ancoram informações novas); d) o objetivo de leitura é variável distintiva para essa questão, já que é elemento que determina a(s) estratégia(s) de leitura? e) essa influência pode ser explicada pela aprendizagem indireta, fora dos domínios da consciência?

Sem a pretensão ingênua de acreditar que há, ou haverá, alguma resposta definitiva para as questões acima, o estudo em questão pretende contribuir com elementos para a discussão de respostas possíveis a algumas dessas questões. Isso se dará através de a) levantamento bibliográfico de pesquisas que envolvam leitura e escrita e b) desenvolvimento, aplicação e análise de instrumento cujo objetivo principal é verificar a aquisição de termos lexicais e de estrutura de voz passiva por meio de leitura exclusivamente. A hipótese que norteia este estudo é de que a leitura é importante ferramenta de aquisição da escrita por meio de aprendizagem implícita.

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Com esse intento, abordam-se a) os principais elementos cognitivos envolvidos no ato de ler, b) a potencial influência da leitura à escrita, c) a (in)consciência como fenômeno presente em nossas atividades diárias e, naturalmente, nos momentos de leitura, d) como o cérebro percebe estímulos nos diferentes graus de consciência e e) análise de uma experiência em leitura e seu reflexo em ditado e mostras de produção escrita.

Leitura sob a perspectiva cognitiva

Entender os elementos cognitivos envolvidos na leitura permitem compreender, analisar e reforçar as hipóteses deste trabalho. A bibliografia sobre o assunto sugere como hipótese mais provável de que quem lê mais escreve melhor, ou seja, de que a leitura é importante ferramenta de aprendizagem da língua (GUARESI, 2004; FLORIANI, 2005).

A leitura é uma das atividades cognitivas mais impressionantes do cérebro humano. Afinal, através de pistas linguísticas, absolutamente arbitrárias, o leitor é levado a reconstruir, pelo menos proximamente, o sentido pretendido pelo escritor. É uma atividade tão intensa e tem impacto tão significativo no cérebro que o pesquisador Iván Izquierdo, diretor do Instituto do Cérebro do Hospital São Lucas, a defende como uma atividade que atrasa o aparecimento de problemas de memória. Segundo ele, “a melhor recomendação possível para o exercício da prática da memória é ler, ler, ler” (IZQUIERDO, 2004, p. 51).

A compreensão do sentido em leitura, finalidade buscada pelo leitor, pressupõe automatização de uma série de processos, entre eles recodificação, decodificação e interpretação. Segundo Poersch (1993), a recodificação é o processo de substituição dos signos verbais escritos pelos signos verbais sonoros e a decodificação é o processamento e atribuição de significado aos signos verbais. Segundo o autor, a interpretação envolve os aspectos pragmáticos ligados ao ato de fala. A automatização desses processos permite que eles ocorram no cérebro em paralelo, permitindo que os recursos atencionais do leitor, amplamente limitados e seriais, possam ser levados a abstrair o sentido pretendido pelo escritor.

A automatização desses processos está relacionada à direção dos processamentos cognitivos que ocorrem no processamento da leitura, top-down e botton-up. O primeiro tipo de processamento, top-down, ocorre na direção do mundo – elementos pragmáticos, conhecimentos prévios, entre outros – às unidades menores do texto. No segundo, botton-up, o processo é inverso, a direção é das menores unidades textuais para fora do texto. Um aprendiz da leitura está tão preocupado na decodificação do texto, através do processamento botton-up, que a reconstituição do sentido fica comprometida pela falta de recursos atencionais para tal processo.

A compreensão de um texto lido decorre, dentre outros aspectos, de dosagem adequada de informações novas e dadas. Quando todas as informações são dadas, ou conhecidas pelo leitor, a leitura de um texto torna-se enfadonha e, sob o ponto de vista informacional, sem benefícios, já que nada há de novidade. Por outro lado,

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quando as informações são demasiadamente novas, o leitor não encontra no cérebro conhecimentos prévios para significar aquela leitura e reconstruir o sentido pretendido pelo escritor. A adequada dosagem pelo escritor na relação entre informações dadas e novas permite que o leitor, durante a leitura, faça antecipações, formule hipóteses que ao longo da leitura são confirmadas ou não, ou seja, participa ativamente do processo de leitura (GOODMAN, 1976). O conhecimento prévio do leitor, portanto, é importante elemento na reconstituição do sentido.

O aprendizado da leitura representa impacto importante no cérebro. Segundo Dehaene, aprender a ler aumenta a nossa competência, adicionando uma representação ortográfica de nossas representações existentes da palavra falada. Esse aumento no espaço mental dedicado à codificação de idioma, talvez, consiste noutra grande diferença entre alfabetizados e analfabetos - aprender a ler aproximadamente dobra a capacidade de memória de curto prazo3 (DEHAENE, 2010). Segundo esse autor, o cérebro de um leitor proficiente foi profundamente transformado pela escolarização precoce e intensa que caracteriza a nossa sociedade. Segundo o autor, aprender a ler profundamente humaniza o nosso cérebro, especialmente num setor especializado da via ventral visual esquerda, que lida eficientemente com símbolos escritos, sendo um dos pontos de entrada do sistema de linguagem no hemisfério.

Smith (1983) defende a ideia de que muito dos conhecimentos necessários para a escrita se devem à 3 É possível ver mais sobre o impacto da leitura no cérebro em www.unicog.org – uma unidade cognitiva de neuroimagem em Paris, dirigido por Stanislas Dehaene.

leitura. Muitas pesquisas apontam que a consciência de determinado fenômeno potencializa a memorização do mesmo. Contudo, pouco ainda se sabe sobre a influência da leitura no aprendizado de múltiplos aspectos linguísticos nem sempre possíveis de serem adequadamente abordados no ensino formal, dada a complexidade que envolve o aprendizado da escrita. Como é possível ensinar formalmente todas as sutilezas que envolvem circunstâncias formais, tipologias textuais adequadas para cada momento e intenção, estilo, entre outros aspectos?

Smith argumenta a favor da tese de que as convenções da escrita penetram na mente sem que o sujeito se aperceba do aprendizado que está ocorrendo. A aprendizagem para Smith (1983, p. 561) “(...) é inconsciente, sem esforço, acidental, indireta e essencialmente cooperativa”. Para ele, é cooperativa no sentido de que se aprende pela ajuda, normalmente inconsciente, dos professores, dos pais, dos colegas mais competentes, dos clubes e de outros. Mesmo crianças muito pequenas aprendem as sutilezas de gesticulação, de entonação, de coesão, de níveis de linguagem, e sem qualquer educação formal. Ainda conforme o mesmo autor, as crianças instruem-se nos clubes a que pertencem, ou seja, aprendem primeiramente com os pais, com os coleguinhas, mais tarde com os heróis preferidos, com os ídolos, sempre com base no critério de seletividade desses clubes. Ela aprende a língua sem que ninguém precise ensiná-la formal e explicitamente e sem que trabalhe conscientemente para isso.

O autor estende esse conceito para o aprendizado da escrita. Para ele, aprende-se a escrever, lendo. Na maior

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parte do tempo dedicado à leitura, um leitor proficiente recebe informações a respeito da gramática que são captadas sem que se perceba, de forma inconsciente.

Os estudantes, na aprendizagem da escrita, precisam encontrar e assimilar uma multiplicidade de fatos e exemplos que variam desde grafias individuais à organização adequada de textos completos. Smith (1983) sugere que é precipitado acreditar que a instrução prescritiva possa ser suficiente para transmitir pelo menos parte daquilo que um escritor precisa saber. Diante disso, Smith (1983, p. 560) conclui que “a prática e a orientação podem ajudar a refinar habilidades de escritura, mas não podem, de modo algum, explicar a sua aquisição”.4 Ou seja, segundo o autor, a educação formal tem sua parcela de contribuição para o aprimoramento da prática da escrita; porém, grande parte dos elementos constitutivos de qualquer texto é aprendida sem grande esforço. Segundo ele, os textos estão aí e contêm todo conhecimento necessário para o domínio prático da escritura. Para o autor, a leitura e a escrita são interdependentes, pois a escrita,

requer enorme bagagem de conhecimentos específicos que não podem ser adquiridos em palestras, livro-texto, treinamento, tentativa e erro, ou mesmo pelo próprio exercício da escrita5 (Smith 1983, p. 558).

4 Practice and feedback may help to polish writing skills, but cannot account for their acquisition in the first place.5 (...) I was left with the shattering conundrum that writing requires an enormous fund of specialized knowledge which cannot be acquired from lectures, textbooks, drill, trial and error, or even form the exercise of writing itself.

(In) Consciência e aprendizagem implícita

Os novos achados das neurociências sugerem que os estímulos são percebidos pelo cérebro tanto pela via da consciência quanto pela via da inconsciência. Estímulos percebidos pelo cérebro significam alterações das conexões sinápticas e essas alterações significam aprendizagem. Aprender é, em última análise, alterar a força das conexões sinápticas no cérebro.

Nesse sentido, a todo o momento aprende-se em múltiplas atividades como assistir a um filme, conversar com alguém, escutar uma música, assistir à televisão, passear no shopping, navegar pela internet, conhecer alguém, dirigir, olhar e apreciar uma janta, um vinho, um perfume, ou seja, altera-se a força de conexões em tudo o que fazemos, inclusive e especialmente durante a leitura. Ao olhar para alguém, ativam-se todas as conexões que particularizam aquele indivíduo como a fisionomia, a cor do cabelo, o jeito de falar, o timbre de voz, a maneira de andar, etc. Esse conjunto de estímulos ativam e/ou reforçam as conexões existentes que dão conta das particularidades desse indivíduo. Esses estímulos, contudo, são percebidos pelo cérebro predominantemente fora do domínio da consciência. Uma vez ativados reforçam as sinapses daquele conhecimento. A simples visualização do indivíduo diariamente reforça aquele conhecimento a ponto de ficar plenamente disponível para eventuais evocações. Lembrar-se de alguém que não vemos todo dia exige do cérebro maior esforço de processamento para evocar o nome, por exemplo, o que nem sempre é possível. Por outro lado, é fácil e rápido lembrar-se do nome

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de um irmão, por exemplo, cujas conexões sinápticas são reforçadas diariamente. Como é possível esquecer, por exemplo, o nome de um irmão com o qual convivo? Quanto mais reforçada determinada conexão mais disponível ela ficará. Ocorre também que assim como um músculo que se não usado se atrofia, nossos conhecimentos, se não ativados, se esmaecem com o tempo.

De qualquer experiência nosso cérebro abstrai algo, contudo, ele retém muito mais informações de nossas experiências do que aquilo que se pode falar a respeito. Aquilo que o cérebro adquire, sem que se tenha consciência, é chamado de conhecimento implícito e o processo de armazenamento desse tipo de conhecimento é chamado de aprendizagem implícita. A principal característica do processo de aprendizagem implícita é a ausência da consciência e da intenção sobre o processo de percepção do conhecimento por parte do sujeito.

A crença de Smith sobre o aprendizado implícito – aprendizado inconsciente – encontra respaldo em recentes estudos neurocientíficos. Cabe uma ressalva ao termo aprendizagem que, a meu ver, não é prontamente adequado para a circunstância. A meu ver, o termo que mais bem responde para o que se quer é o termo aquisição, já que não pressupõe ensino. Adquirir pressupõe a ocorrência de alterações na força das sinapses sem que se queira ou que se faça algum esforço. Nesse sentido, parece adequada a afirmação de que se adquire um primeiro idioma e aprende-se um idioma adicional.

Dienes e Perner (1996) concebem a aprendizagem humana não só como um processo de mudança resultante

da experiência, mas como aquisição de conhecimento, por processos tanto implícitos quanto explícitos. Tal posição, segundo eles, tem como vantagem uma visão não reducionista do processo de aprendizagem, diversa de perspectivas que a veem ou só como mudança de comportamento, ou apenas como mudança de processos e representações. O primeiro caso trataria dos processos implícitos, como a associação, e os segundos dos explícitos, como a reestruturação. O processamento tanto explícito quanto implícito é realizado pelo cérebro de forma a detectar regularidades ambientais e realizar cômputos probabilísticos acerca dos estímulos.

Nesse sentido, podemos ver que mesmo crianças ainda não alfabetizadas em idade pré-escolar são capazes de identificar classes de palavras como verbos, baseadas em regularidades como a sua terminação (LITMAN e REBER, 2005). Como isso seria possível se não pudéssemos abstrair regularidades do input que recebemos? Entretanto, as crianças não permanecem nesse estágio de mera discriminação ou associação do som final com o tipo de palavra, pois aprendem a identificar e extrair significado de verbos na escrita, de modo flexível, estando eles expressos em terminações variadas como tempo, pessoa, entre outros aspectos. São ainda capazes, em um segundo momento, baseadas em seu conhecimento gramatical, de usar um verbo de modo correto, mesmo que nunca o tenha encontrado antes.

O conhecimento procedimental é essencialmente um conhecimento adquirido pelo que se chama de aprendizagem implícita. Grande parte do conhecimento declarativo, por sua vez, é adquirido pela aprendizagem explícita.

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Em se tratando da consciência, é notório que a mesma tem sido negligenciada pela ciência, por sua natureza imensurável e obscura. Segundo Flores (2009), um dos principais motivos foi de caráter religioso. Segundo a pesquisadora, as crenças existentes nos vários períodos da história da humanidade propiciaram que se criassem obstáculos e objeções as mais estapafúrdias às investigações em andamento, inclusive, problemas de aceitação social aos estudiosos da temática. Atualmente, contudo, especialmente com o advento da tecnologia, alguns autores têm procurado desmitificar e desenvolver hipóteses sobre a consciência humana (FLORES, 2009; DEHAENE, 2009) especialmente de aspectos que Steven Pinker chama, ao tecer comentário sobre a exposição de Stanislas Dehaene à Fundação Edge6, de cientificamente tratáveis.

Ao se falar de consciências, fala-se em graus de consciência, numa das extremidades da escala da consciência é a inconsciência. Segundo Flores (2009), é impossível ignorar que o ser humano pode apresentar diferentes graus de consciência, equilibrando-se no limiar entre um processo interno inconsciente e um produto da consciência daí emergente, podendo, ainda, dar mostras de absoluta inconsciência. Deixar de lado a inconsciência significaria, de acordo com a autora, adotar uma postura reducionista.

Nesse contínuo que caracteriza a consciência, claro está que a linguagem e a (in) consciência enredam-se em muitos aspectos. Dehaene ao estudar a linguagem 6 Entrevista concedida à chamada Fundação Edge em 17 de outubro de 2009. A Fundação Edge foi criada em 1988 como uma consequência de um grupo conhe-cido como The Reality Club que se caracteriza de uma reunião de caráter informal com as mentes mais interessantes do mundo para discutir questões intelectuais, filosóficas, literárias e artísticas. Ver mais em http://www.edge.org/about_edge.html

no cérebro procura marcas da consciência. Em todas as vezes que o cérebro é estimulado, Dehaene mostrou que os participantes eram conscientes de apenas uma parte muito pequena de todos os estímulos percebidos. Na entrevista à Edge, Dehaene (2009) cita o exemplo de algumas garrafas em que há uma etiqueta vermelha. Muito dificilmente as etiquetas, se não citadas como exemplo, seriam processadas pelo cérebro no nível da consciência, embora a informação das etiquetas vermelhas estivesse presente na retina de todos o tempo todo.

Então, quais seriam os limites da relação linguagem e consciência no cérebro? No que diz respeito à inconsciência pode-se reconhecê-la em dois aspectos: a) estímulos percebidos no tempo anterior ao processamento consciente e b) estímulos percebidos em paralelo ao processamento consciente.

Dehaene afirma que ao piscar palavras em uma tela por um período de aproximadamente 30 milissegundos, não haverá energia suficiente no estímulo para que se possa vê-lo. O cérebro, contudo, percebe o estímulo sem problemas. O pesquisador revela que ao considerar o tempo zero o momento em que a primeira palavra aparece na tela, a diferença entre o processamento consciente e inconsciente está entre 270-300 milissegundos. Durante esse quarto de segundo pode-se observar uma série de instâncias de acesso lexical, acesso à semântica e outros processos sem que o sujeito se dê conta conscientemente do estímulo.

Claro está que o processamento subliminar ou inconsciente pode mesmo continuar depois de um quarto de segundo. Em qualquer atividade que façamos há muitos

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estímulos concorrentes e apenas uma fração destes é percebido pelo cérebro de maneira consciente. A leitura é atividade privilegiada como exemplo dessa natureza. Um leitor proficiente que aparentemente lê para reconstruir o sentido, seguramente está processando paralelamente muitos estímulos sob a via da inconsciência.

Em relação às marcas da passagem da inconsciência para a consciência, Dehaene afirma que a ressonância magnética funcional (fMRI) só permite que se veja o padrão estático de ativação em uma escala de um ou dois segundos. Com outras técnicas, tais como eletro ou magneto-encefalografia, no entanto, pode-se realmente seguir em tempo, milissegundo por milissegundo, como avança a ativação de um local para o outro.

Retornando à inconsciência, a apresentação de um estímulo em condição subliminar não significa, segundo Dahaene (2009), que o córtex não o processe. Algumas pessoas pensaram inicialmente que o processamento subliminar significava processamento subcortical. Dehaene, nesse aspecto, afirma que essa defesa é completamente falsa. Pesquisas com neuroimagem mostram que há ativação cortical de estímulos verbais subliminares. Os estímulos verbais subliminares ativam inicialmente o córtex visual, e percorre as áreas visuais da face ventral do cérebro. Se as condições forem adequadas, uma palavra subliminar pode mesmo alcançar níveis mais altos de processamento, incluindo níveis semânticos. Para Dehaene (2009), a mensagem subliminar pode viajar todo o caminho até o nível do significado da palavra, tudo isso sem qualquer forma de consciência.

Segundo o autor, ao se fazer experiência com fMRI, o que se pode ver são duas grandes diferenças entre o processamento consciente e o inconsciente. A primeira diferença diz respeito à intensidade e localização da ativação. É possível observar, no processamento consciente, um aumento da ativação das mesmas áreas do processamento subliminar ou inconsciente, contudo, a ativação pode ser até dez vezes mais intensa. A segunda diferença é que o processamento consciente ativa outras áreas distantes do cérebro, incluindo o córtex pré-frontal; em particular, ativação na região frontal inferior e nos setores parietal inferior do cérebro.

Pesquisas relevantes ao tema

Além das pesquisas já citadas sobre o assunto em questão, há outras que merecem destaque. Dentre elas, Astrin (1993), Johstrone, Ashbaugh e Warfield (2002) e Norman Mailer (2003) mostraram através de estudos criteriosos que a prática em escrita melhora a habilidade em escrita.

Reber (1967) mostrou que os sujeitos aprenderam as regras de uma gramática artificial, sem saberem explicar como eles haviam aprendido a tarefa. Os sujeitos foram capazes, ainda, de transferir as habilidades aprendidas para uma segunda gramática com estrutura equivalente, mas com letras diferentes. Isso sugere que o que fora aprendido foram as regras e não as letras.

A natureza implícita da aprendizagem também é mostrada pelo fato de que os sujeitos conseguem melhorar o desempenho na execução de tarefas abstraindo

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inconscientemente regularidades (NISSEN e BULLEMER, 1987; NISSEN, KNOPMAN e SCHACTER, 1987).

A aprendizagem claramente tende a ser melhor quando se está acordado. Embora que nem tudo possa ser aprendido durante o sono, as pesquisas mostram que a aprendizagem é possível na ausência da consciência normal. Há evidências, ainda, de que o sono pode ajudar a consolidar o que já aprenderam (DRUCHMAN e BJORK, 1994, p. 258-259). Medidas implícitas, como o priming, sugerem que algumas aprendizagens podem ocorrer sob anestesia (ANDRADE, 2005; DEEPROSE e ANDRADE, 2006).

Hazeltine, Grafton e Ivry (1995; 1997) mostraram em um estudo de neuroimagem que aprendizagem com condição implícita envolveu área do córtex motor esquerdo e o córtex motor suplementar, ao passo que a passagem para o hemisfério direito ocorreu nas condições de tarefa simples, com o córtex pré-frontal direito, córtex pré-motor e no lobo temporal direito.

Elley et al. (aput STOTSKY, 1983) mostraram que alunos que estudaram exclusivamente literatura ou dedicaram-se a leituras adicionais ao invés de frequentarem aulas de gramática, tiveram um desempenho melhor em atividades de escritura que aqueles que estudaram apenas gramática tradicional ou transformacional.

Heys (1962), Christiansen (1965) e De Vries (1970) (aput STOTSKY, 1983) comprovaram uma maior eficiência de programas adicionais de leitura sobre programas de estudo especialmente direcionados à prática da escrita, para o aperfeiçoamento da escritura.

Guaresi (2004), em estudo com alunos de 8ª série do Ensino Fundamental, mostrou que alunos com maior experiência em leitura apresentavam desempenho linguístico melhor que alunos com pouca ou nenhuma experiência de leitura diária. Floriani (2005), em estudo com alunos de 4ª série do Ensino Fundamental, observou que a leitura influenciou na aprendizagem implícita de estruturas da voz passiva da Língua Portuguesa.

Os estudos acima sugerem clara influência da leitura no aprendizado da escritura. Igualmente, os estudos parecem sugerir que o aprendizado se dá de forma indireta, implícita, sem que se deseje explicitamente aprender aquela estrutura, ou seja, de forma inconsciente, situações que requerem menos ou nenhuma atenção e consciência às estruturas da gramática.

Metodologia

Participaram deste estudo 30 alunos de uma escola particular de Porto Alegre, de 5ª a 8ª séries, divididos em dois grupos de 15: grupo de controle e grupo experimental.

Foram adaptadas 33 fábulas com as seguintes alterações: a) 106 ocorrências de voz passiva (foram agregadas 100 ocorrências, sendo que 6 faziam parte da escritura original); b) 100 ocorrências do termo todavia e c) 33 ocorrências do termo compreenção (propositalmente com ç) em substituição ao termo moral no final de cada fábula.

O grupo controle leu as fábulas originais e o grupo experimental leu as fábulas adaptadas. Após a leitura das fábulas pelos alunos foi aplicado teste para levantamento

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dos dados com as seguintes características: a) frases com lacunas para serem completadas pelos participantes, sendo que 50% delas eram distratoras e outras 50% para serem respondidas com alguma conjunção adversativa (investigou-se aqui se os leitores usaram ou não o termo todavia); b) breve ditado em que entre as palavras ditou-se a palavra compreensão (investigou-se aqui se os participantes escreveram o termo com s ou ç); c) escritura de breve texto tomando como motivação a história em quadrinhos Bolsa Amarela utilizada por Floriani (2005) também para motivar produção de texto. Essa história é constituída de 11 quadros e sugere uma menina jogando uma bolsa no lixo e uma segunda menina ficando feliz em encontrar a bolsa.

Resultados e discussões

Os dados levantados a respeito do uso do termo todavia podem ser visualizados na tabela 1. Cada sujeito poderia usar até 20 vezes o termo todavia. Como são 15 sujeitos de cada um dos grupos, o número de ocorrências possíveis era de 300.

Tabela 1 – Ocorrências do termo todavia

Grupo controle Grupo experimental

Número de ocorrências 0/300 3/300

Esses dados chamam a atenção para alguns aspectos. Dentre eles, a inexistência de ocorrências do termo para o grupo de controle. O uso do termo é incomum pelos participantes avaliados.

Outro aspecto que chama a atenção é o baixo número de ocorrências para o grupo experimental. Apesar de terem um input de 100 ocorrências do termo todavia, a opção na maioria das vezes foi pela conjunção mas. Contudo, mesmo que de maneira não significativa estatisticamente, observou-se que 2 sujeitos usaram o termo todavia. Um dos sujeitos usou duas vezes. O uso do termo pelos sujeitos pode ter sido influenciado pela leitura. É possível deduzir que essa quantidade de input é abaixo do requerido para mostrar resultado significativo.

Os dados a respeito da grafia do termo compreensão e sua variação compreenção podem ser visualizados na Tabela 2. O mesmo ditado foi feito a todos os participantes.

Tabela 2 – Grafia do termo compreensão e sua variação

Grupo controle Grupo experimental

Grafia 1 – compreensão 7/15 6/15

Grafia 2 – compreenção 8/15 9/15

Os dados da Tabela 2 chamam a atenção para alguns aspectos: a) alto índice de desvio da norma culta do Grupo Controle, mais da metade dos participantes: 8; b) diferença não significativa dos resultados dos grupos.

Os dados levantados tornam qualquer conclusão definitiva como precipitada, uma vez que os dados do Grupo Experimental não permitem sustentar a hipótese deste estudo, de maneira significativa, embora 9 sujeitos do grupo experimental tenham grafado a variação compreenção e 6 compreensão. O grupo controle 8 sujeitos grafaram a variação

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compreenção. Esses números podem ter sido influenciados pelo input recebido pelos participantes. Seguramente há aqui uma questão metodológica, especialmente na quantidade de input e no número de participantes que deve ser reestruturada para avaliação das hipóteses.

Os dados a respeito da ocorrência de voz passiva, como podemos ver na Tabela 3, são mais esclarecedores. Enquanto na mostra de produção textual não se observou nenhuma ocorrência de voz passiva no Grupo Controle, no Grupo Experimental 6 dos sujeitos somaram 16 ocorrências de voz passiva.

Tabela 3 – Ocorrência de voz passiva

Grupo controle Grupo experimental

Voz passiva 0 16

Esses dados permitem afirmar com mais segurança que os seis sujeitos foram influenciados pela leitura realizada. Possivelmente aqui ocorreu aprendizagem indireta e pela via da inconsciência.

Expostos esses dados, cabem duas questões que ficam para reflexão e debate: a) definiu-se metodologicamente que a leitura das 33 fábulas pelos participantes ocorresse a partir das três horas da tarde, enquanto a aplicação do instrumento para levantamento dos dados ocorresse a partir das oito horas. Diante disso cabe a questão: se o instrumento para o recolhimento dos dados fosse aplicado logo após o término da seção de leitura, os resultados não seriam diferentes? b) como explicar o fato de o mesmo material de leitura mostrar boa diferença entre os dois grupos se levadas

em consideração a estrutura sintática e a diferença pouco significativa em relação a elementos lexicais?

Os resultados deste estudo corroboram os achados de Floriani (2005) em relação à aquisição da estrutura da voz passiva. Em relação à influência da leitura no aprendizado de elementos linguísticos, mesmo a diferença não sendo significativa, seguramente por questões metodológicas, esses resultados estão de acordo com Guaresi (2004), Litman e Reber (2005), Reber (1967), Nissen e Bullemer (1987), Nissen, Knopman e Schacter (1987), Heys (1962), Christiansen (1965), De Vries (1970), os últimos três citados por Stotsky (1983).

Esses resultados, pelo menos parte deles, reforçam a tese de Smith (1983) sobre a influência da leitura no aprendizado da escrita que, segundo o pesquisador, ocorre incidentalmente, sem esforço e de maneira indireta.

Considerações finais

Embora os resultados não tenham sido significativos, a hipótese de que a leitura é importante ferramenta de aquisição da escrita pode ser reforçada. A aquisição de diferentes níveis da língua – neste estudo lexical e sintático – é possível por meio da chamada aprendizagem implícita.

A maior parte dos estímulos são percebidos pelo nosso cérebro sob a via da inconsciência. Esses estímulos, como cita Dehaene (2009), são processados pelo cérebro humano não apenas subcorticalmente, mas também no córtex. A partir dessa afirmação é possível defender a tese de que parte do conhecimento declarativo

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que adquirimos é de forma implícita. Claro está que o conhecimento procedimental ou não declarativo é adquirido predominantemente pela via da inconsciência.

A leitura é uma das importantes atividades de estímulos indiretos aos leitores. Os resultados confirmam que é importante a estimulação dos alunos para a leitura, devido aos benefícios por ela proporcionados, benefícios e aprendizados nem sempre possíveis pela instrução formal. Se de fato acreditamos que as atividades de leitura e de escritura envolvem quantidade considerável de conhecimentos, então, cabe-nos concordar com a afirmação de Smith (1983) que pouco pode ser encontrado dentro da educação formal.

Isso não significa dizer que a consciência não seja necessária à aprendizagem. Dentro dessa perspectiva, impõe-se, como tarefa fundamental do professor, repensar constantemente a abordagem da leitura em aula. É necessário que se verifiquem os meios de que a escola dispõe, para otimizá-los, incentivando os alunos a lerem. Por isso, a reflexão sobre métodos de ensino que deem prioridade às habilidades efetivas de ler, escrever e a toda forma de expressão linguística devem sobrepor-se ao ensino puramente gramatical. Talvez uma adequada abordagem da leitura seja uma das principais iniciativas para o desenvolvimento da educação brasileira e a ascensão dos alunos brasileiros em testes internacionais como o PISA, referido anteriormente.

RESUMO - O presente estudo objetiva argumentar em favor da tese de que a leitura é importante ferramenta para o aprendizado da escrita. Como mostra Dehaene (2009), o

cérebro processa estímulos tanto sob a via da consciência quanto sob a via da inconsciência. Nesse cenário, a leitura é importante instrumento, pois oferece múltiplos estímulos linguísticos, alguns dos quais não são possíveis de a educação formal dar conta, proporcionando aprendizado implícito de elementos da língua. No presente estudo foram adaptadas 33 fábulas de tal forma que tivessem múltiplas ocorrências de estruturas de voz passiva e de determinados termos lexicais. Os participantes, alunos de 5ª a 8ª série do Ensino Fundamental, foram divididos em dois grupos: experimental e controle. Os resultados sugerem que houve aprendizado implícito de parte dos elementos linguísticos manipulados.

Palavras-chave: Aprendizagem Implícita. Inconsciência. Leitura. Voz Passiva. Léxico.

ABSTRACT - This study aims at arguing in favor of the view that reading is an important tool for learning writing. According to Dehaene (2009), the brain processes stimuli both through consciousness and unconsciousness. In this frame, the reading is an important instrument since it offers multi-linguistic stimuli, some of which are not possible to formal education to approach them all, providing implicit learning of language elements. In the present study 33 fables were adapted so that they had multiple occurrences of passive structures and certain lexical terms. The participants, students from 5th to 8th grade of elementary school, were divided into two groups: experimental and controlling group. The results suggest an implicit learning of part of manipulated linguistic elements.

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Keywords: Implicit Learning. Unconsciousness. Reading. Passive Voice. Lexicon.

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Fatores compartilhados no processamento de leitura em L1 e L2

Lisiane Neri Pereira1

Fale com a autora

A habilidade de ler é reconhecida como sendo a mais durável e estável dentre as habilidades de linguagem em uma segunda língua (BERNHARDT, 1991). Em decorrência de ser uma atividade de linguagem, a leitura não envolve somente a decodificação de sinais escritos ou impressos, mas também, habilidades cognitivas, tais como inferência e memória para a extração do sentido de mensagens escritas.

Entendemos também que leitura em L1 e L2 compartilha de elementos básicos, ainda que ambos os processos variem significativamente, acalentando a discussão sobre a existência de dois processos cognitivos paralelos em atividade ou de compartilhamento de estratégias de processamento para a acomodação de ambas as línguas.

Ainda no âmbito da leitura, salientamos a marginalização de pesquisa em leitura em L2, no sentido de que a maioria dos estudos colocam a leitura em L2 como sendo derivada da leitura em L1 ou, ainda, frequentemente vista como uma versão mais lenta da mesma tarefa em língua nativa. Tais comparações nos levam a entender que tarefas em L2, principalmente de leitura, são tarefas de mapeamento, ou seja, tarefas de substituição de um modo de comportamento por outro. Nesse sentido, ainda que 1 Email: [email protected] ou [email protected]

examinássemos as diferenças cruciais entre os processos de leitura em ambas as línguas, conferindo à leitura em L2 o status de fenômeno único, considera-se importante salientar os fatores em comum que sustentam a base para leitura, seja em L1 ou L2.

Primeiramente, colocaremos nossa compreensão sobre o que é leitura, dentre tantas compreensões, assumindo os componentes de leitor, texto e sua interação para definir o ato de ler ou decodificar um texto.

Leitura e leitor

Quaisquer definições sobre leitura devem considerar aspectos cognitivos, como por exemplo, memória e inferência, para a extração de sentido de mensagens escritas, além do simples ato de decodificação da linguagem escrita. A leitura é, portanto, uma habilidade linguística que recruta o engajamento de consciência e a familiaridade com aspectos óbvios da linguagem, como sintaxe e conhecimento lexical. Resumidamente, uma definição abrangente de leitura recai sobre a interpretação bem sucedida de um texto envolvendo o leitor, o texto e a interação entre leitor e texto (RUMELHART, 1985).

O leitor, engajado como a parte ativa do processo, baseia-se em suas experiências prévias sobre o aprendizado da leitura, educação e também na maneira em que a leitura se ajusta às suas necessidades. Algumas fontes experienciais que podemos citar incluem a influência familiar, comunitária, escolar, cultural e influência de características individuais de cada leitor. Veremos, a seguir, como cada

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uma delas contribui com informações específicas, as quais serão utilizadas no momento da decodificação de um texto.

Seja individualmente ou em conjunto, os hábitos de leitura de uma família, especialmente de pais e adultos, são notados desde cedo, modelando o comportamento de futuros leitores no âmbito de conferir à leitura uma importante ferramenta para a aquisição de informação sobre profissões, eventos no mundo, lazer, manutenção de equipamentos domésticos e explorar novos interesses. Ao observar os hábitos de leitura em uma família, surge em futuros leitores a ideia de que a atividade confere novas perspectivas, conhecimentos e ideias.

Complementando a estrutura familiar, a comunidade provê experiências sob diferentes aspectos, ou seja, pessoas que crescem em fazendas, cidades, metrópoles, apropriam-se de suas diversas atividades, desde tarefas com agricultura a ida a eventos urbanos, enraizando memórias específicas e conceitos mentais relacionados aos ambientes, formando um background de experiências que serão ressaltadas para um acesso mais facilitado da informação.

Além das fontes mencionadas, a escola pode proporcionar o contato dentre os diversos backgrounds ou, também, quando instituição de natureza homogênea, refletir valores compartilhados. Ainda assim, memórias e formação de hábitos de leitura podem dar-se pelas estratégias utilizadas na leitura escolar e seus objetivos, ou seja, leituras para avaliação de compreensão, para a identificação de léxico ou, ainda, objetivar conhecimentos de passagens específicas no texto.

A influência cultural, além de englobar os fatores familiares, comunitários e escolares, é associada a fatores cognitivos de um grupo, ou seja, enfatiza a maneira pela qual um grupo interpreta o ambiente em que vive. Indivíduos portam diferentes conhecimentos de mundo e estes se refletem através de sua música, linguagem e expressão pela arte. A cultura, portanto, caracteriza-se como um filtro que permite realçar padrões e atitudes aprendidos.

Devido à ampla gama de diferenciação entre os backgrounds individuais, tais características permitem uma percepção variada durante o processo de leitura. Essa percepção, então, é auxiliada pelos estilos individuais de aprendizagem de leitura, níveis de motivação, atitude, inteligência, inibição, ansiedade, autoestima e tomada de risco frente a novas situações. A influência de características individuais retoma o debate natureza e ambiente, ou a dicotomia conhecida por nature versus nurture, ambos os escopos operacionalizando na influência do aprendizado à leitura e auxiliando na formação de perspectivas que serão formadas durante a leitura. Crenças e hábitos advindos das experiências de vida formam conhecimentos que serão trazidos ao texto, criando um esquema particular que definirá o grau de sucesso na compreensão de um texto.

Dentre os modelos de processamento de leitura, bottom-up, top-down e o modelo interativo, descritos por Rumelhart (1985), entendemos que este último seja o mais utilizado pelos leitores, uma vez que assume os dois primeiros componentes, propondo uma visão simultânea dos processos de leitura. Respectivamente, os modelos bottom-up e top-down, referem-se à construção da

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leitura a partir de unidades menores do texto e à carga de conhecimento trazida ao texto, confirmando ou não as expectativas do leitor em relação ao texto.

O modelo interativo de processamento de leitura também pode ser denominado modelo interativo-compensatório, proposto por Stanovich (1980), o qual sugere que leitores utilizam de informação contextual para compensar habilidades não satisfatórias para o reconhecimento de palavras. Dos componentes desse modelo, a Facilitação Contextual ou Facilitação de Percepção de Palavras, não é característica comum de leitura normal; ao contrário, ao utilizar-se dessa estratégia, bons leitores estariam desperdiçando capacidade cognitiva, uma vez que leem com facilidade. Tal estratégia é utilizada por leitores não proficientes, compensando suas dificuldades ao tentarem decodificar. Bons leitores percebem as palavras utilizando-se de estratégias direcionadas pelos dados, economizando reservas cognitivas para monitoramento de compreensão.

Texto

A variedade de informação escrita presente na vida diária modela-se em diferentes tipos de texto, compreendendo desde artigos em jornal a bulas de remédio. O conhecimento da estrutura destes antecipa expectativas e traz à tona habilidades e estratégias para compreensão textual. Essa organização de informação escrita pode ocorrer através de estruturas retóricas funcionais para descrição, argumentação, comparação, contraste, persuasão e informação, entre outros objetivos aos quais podem propor-se um texto.

Além disso, sintaxe, gramática e vocabulário serão utilizados para garantir a relação implícita ou explícita entre as ideias de um autor, garantindo uma coesão expressiva peculiar em um texto. A familiaridade com os termos e estruturas utilizados contribuem também para as nuances interpretativas que surgirão a partir da leitura.

Interação entre leitor e texto

Os elementos da leitura relacionados anteriormente, o leitor e o texto, ainda que cruciais, por si só não garantem a compreensão dos símbolos escritos. É necessário que ocorra uma interação entre tais elementos, resultando então na colocação de sentido ao texto ou, visto sob outro prisma, a compreensão aproximada do que o escritor intencionou. Sugerimos compreensão aproximada, uma vez que o leitor contribui inferencialmente na decodificação de um texto, alternando a compreensão do mesmo de leitor para leitor, conforme suas experiências de vida e de aprendizado.

Os objetivos e a maneira com que um texto é lido alteram a percepção leitora, bem como as estratégias de leitura utilizadas. Dentre esses fatores, mencionamos a rapidez com a qual um texto é lido, os objetivos, sejam de focar informação específica (scanning) ou para compreensão de ideias (skimming), e as estratégias de identificação de palavras chave, uso de títulos e subtítulos para antecipar conteúdo, tolerar ambiguidades lexicais, distinguir ideias principais de informações complementares, uso do contexto para auxiliar na compreensão e releitura de partes do texto ou do texto como um todo. Ainda, salienta-se

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a importância do esquema de conhecimentos adquiridos, os quais proveem fundamentação para análise, comparação, identificação e compreensão da informação.

Durante a interação, estratégias de leitura são utilizadas pelo leitor para o alcance do significado. Muitas dessas estratégias são compartilhadas, derivando compreensões similares de um mesmo texto por diferentes leitores. Algumas estratégias incluem o reconhecimento rápido de palavras, uso de conhecimento de mundo, análise de palavras não familiares, monitoramento de compreensão, distinção entre ideias principais e adjacentes, paráfrase, contextualização para construção de sentido, entre outras (ANDERSON et al. 1991; BARNETT 1989; CLARKE 1979 in AEBERSOLD and FIELD, 1997).

Esquemas também proveem auxílio ao entendimento bem sucedido de um texto. Esquemas de conteúdo auxiliam com uma base de conhecimento que pode ser utilizada para comparação de experiências, esquemas formais elicitam estruturas retóricas e organizacionais de textos escritos e esquema linguístico, que inclui as características de decodificação necessárias para o reconhecimento de palavras e de que forma essas encaixam-se em uma sentença, por exemplo. A teoria de esquemas de leitura, estudada desde a década de 70, inclui verificações sobre alunos com melhor compreensão textual quando estes se utilizam de esquemas de conteúdo (STEFFENSEN & JOAG-DEV 1984 in AEBERSOLD and FIELD, 1997) e, também, estudos que investigam a interferência de esquemas na leitura (CARRELL 1988 in AEBERSOLD and FIELD, 1997).

Leitura em L1 e L2: diferenças e similaridades

O ato da leitura em L1 e L2, como mencionado na introdução deste artigo, varia significativamente, primeiramente devido à cronologia de aquisição: L1 é sempre masterizada antes da L2, salvo em casos de bilinguismo concomitante, em que dois sistemas linguísticos são aprendidos simultaneamente, ainda assim com ressalvas sobre a aquisição simultânea de duas línguas, sendo que uma delas geralmente domina, caracterizando-a como L1. Ainda, das distinções entre leitura em L1 e L2, consideramos as bases linguísticas de sintaxe, fonologia, semântica e retórica, as quais diferem de uma língua para a outra. Adicionalmente, leitores de L2, não familiarizados com o contexto cultural ou esquema de conteúdo da língua-alvo, podem enfrentar dificuldades na interpretação textual, colocando o leitor à mercê de uma compreensão fortemente baseada em dados linguísticos. Em contraponto, essa deficiência, aliada à falta de familiarização com dados gramaticais da L2, aumenta a possibilidade de falha na decodificação e interpretação de um texto. Assim, a leitura em ambos os contextos requer o conhecimento linguístico e de conteúdo pertencentes a cada língua e, quanto maior a diferença entre as línguas, maior o grau de dificuldade na significação textual.

Conforme mencionado anteriormente, leitura é um processo de construção de sentido, envolvendo a interação entre texto e leitor, o qual se utiliza de atividades mentais para dar significação aos caracteres escritos ou impressos. Tais atividades mentais, referidas como estratégias de leitura,

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80 Fatores compartilhados no processamento de leitura em L1 e L2

estão engajadas no processo de leitura em ambas - L1 e L2 e incluem, além das mencionadas na seção anterior, predição de informações, teste e confirmação de tais predições para a compreensão do material escrito. Dessa forma, apontamos um contraponto às diferenças entre o processamento de leitura diferenciado em L1 e L2, iniciando uma composição similar de leitura para ambas as línguas.

Estudos sobre leitura em L1 e L2 demonstraram que a relação entre ambas é mais atuante em processos de leitura do que no produto da leitura (YAMASHITA, J. p. 274). Nos processos de leitura, diversas atividades mentais estão engajadas, não somente processos linguísticos e cognitivos tais como reconhecimento de palavras, construção de proposições, predição, inferência e parsing - derivação de representações através das relações sintáticas e semânticas de um texto ou de uma sentença - mas também processos metacognitivos e aqueles que refletem fatores afetivos e de personalidade. Ainda que processos alterem, devido a fatores como dificuldades do leitor ou objetivos da leitura, podemos acompanhá-los durante a aproximação de um leitor ao texto e como este sucede ou falha a cada passo da construção do sentido. O produto da leitura, no entanto, demonstra os resultados das operações internas realizadas pelos leitores durante os processos, demonstrando a compreensão ou o nível de entendimento do texto. A influência da leitura em L1 na leitura em L2, fortemente relacionada às atividades mentais envolvidas no processo sugere que estratégias em L1 podem não ser inteiramente úteis na construção de uma representação em L2 devido a fatores como a fraca proficiência linguística de um leitor em L2.

Leitura e bilinguismo

Derivada da discussão na seção anterior, a relação entre leitura e bilinguismo pode ser colocada caracterizando um leitor bilíngue como aquele que pode ler em duas línguas. A habilidade de ler implica a compreensão textual e os conhecimentos de quais estratégias utilizar.

Leitores bilíngues utilizam estratégias como aplicar contextualização a partir de subtítulos, figuras e títulos, procurar por informações importantes ou focar atenção em diferentes aspectos, relacionar informações para o entendimento do texto com um todo, ativar e usar conhecimentos prévios, incluindo os esquemas de conteúdo, formal e linguístico, reconsiderar e revisar hipóteses sobre o significado de palavras não reconhecidas, monitorar compreensão textual, inferir ideias principais, reconhecer a estrutura do texto, antecipar informação pelo conhecimento advindo do texto, entre outras. Ainda que essa lista de fatores não esteja completa, tais estratégias são comumente identificadas em leitores bilíngues e as mesmas são compiladas de forma mais abrangente sob a seguinte classificação de Aebersold & Field (1997):

- desenvolvimento cognitivo e orientação de estilo cognitivo no início da aquisição de L2;

- proficiência em L1;- proficiência em L2;- conhecimento metacognitivo de estrutura da L1,

gramática e sintaxe;- grau de diferença entre L1 e L2: sistemas de escrita,

estruturas retóricas, estratégias apropriadas.

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81 Lisiane Neri Pereira

Finalmente, leitores bilíngues, independente do tipo de texto, tipo de linguagem ou ortografia, desenvolvem esquemas para lidar com diferentes línguas e textos e caracterizam-se como leitores flexíveis e possuidores de conhecimentos, habilidades e estratégias que serão acomodadas em cada e toda a situação linguística, automatizando o processo de leitura em qualquer uma das línguas.

Modelo Unificado

Apesar das diferenças mencionadas entre a aquisição de L1 e L2 e, principalmente as diferenças relacionadas ao ato da leitura, o modelo unificado, proposto por MacWhinney (2005), considera a relação entre várias tarefas realizadas por aprendizes de L1 e L2.

No caso de multilinguismo, há evidências de que, mesmo adquirindo as diferentes línguas como entidades separadas, estas interagem através de processos de transferência ou code-switching, ambos em crianças e adultos.

Ainda, MacWhinney coloca que ambos os grupos necessitam segmentar o discurso em palavras, aprender o significado das palavras, compreender os padrões que governam construções sintáticas, desenvolver o conhecimento adquirido para apurar fluência, além dos objetivos principais e adjacentes de leitura serem similares quando no intuito de atingir o mesmo propósito, tornando o modelo unificado uma ferramenta eficaz na explicação dos processos anteriores.

A teoria do modelo unificado considera mecanismos de aprendizagem em L1 como sendo um subgrupo que influencia a aprendizagem em L2, ainda que alguns sejam mais fortes

em L1, e que frequentemente estarão disponíveis em ambas as línguas. Nesse modelo, formas linguísticas são organizadas em mapas associativos para sílabas, léxico, construções e modelos mentais. Durante o processamento, a seleção de uma forma em particular é regida pela força de uma dica num processador sintático central, o qual integra informação lexical e fonológica durante reconhecimento de palavras. Essa força da dica como uma função de validação da mesma, integra o modelo de Competição (BATES & MacWHINNEY, 1982; MacWHINNEY, 1987a), adotado pelo modelo unificado.

O modelo comporta, ainda, o fato de os processos de aquisição de L1 e L2 estarem fortemente relacionados, por exemplo: o método utilizado para o aprendizado de novas palavras em L2 é basicamente uma extensão dos métodos utilizados para o aprendizado de palavras em L1; similar, o fato de que, ao combinar palavras para formar frases em L2, utiliza-se das mesmas estratégias usadas ao aprender a L1. Não obstante, o fato de que o aprendizado de L2 é fortemente influenciado pela transferência de L1, significa que seria impossível construir um modelo de aprendizado de L2 que não considerasse a estrutura da L1.

Este Modelo Unificado enfatiza o papel do armazenamento em mapas lexicais e a integração de construções durante o processamento de L1 e L2. Muitas partes desse modelo baseiam-se em diferentes teorias, clamando por relações com abordagens construcionistas em direção a uma ampla abordagem cognitivista.

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Conclusão

A análise dos processos de leitura em L1 e L2 nos coloca frente a similaridades e diferenças entre ambos os sistemas. Procuramos aqui realçar as similaridades do processamento de leitura em L1 e L2, uma vez que estas recaem, principalmente, sob as habilidades e capacidades cognitivas da linguagem. O leitor bilíngue torna-se objeto das reflexões, por possuírem, automatizados, os processos de leitura similares tanto em L1 quanto em L2. Da definição de leitura, passando a seus componentes e considerando leitura e bilinguismo bem como as diferenças e similaridades entre leitura em L1 e em L2, concluímos com uma breve exposição do Modelo Unificado, proposto por MacWhinney, fornecendo um vasto território a ser explorado sobre a interdependência entre sistemas de processamento, especialmente de leitura em L1 e L2. Fatores considerados que contribuem para a diferenciação entre os processos de L1 e L2 não apagam a similaridade entre outros fatores, especialmente cognitivos, dos processos de leitura em ambas as línguas.

RESUMO – Este artigo reflete sobre alguns aspectos cognitivos presentes em leitores de L1 e L2, assumindo a hipótese de um sistema cognitivo único de linguagem no processamento da leitura em indivíduos bilíngues - adaptação da ideia do Modelo Unificado. O objetivo dessa abordagem é sugerir a complementação de estudos sobre os sistemas de linguagem comuns a leitores de L1 e L2. Entendemos que o uso dos conhecimentos de linguagem, tanto para a leitura em L1 quanto para leitura em L2, reflete

a competência linguística de um indivíduo em determinado contexto, momento ou situação, porém, apoia-se em um sistema cognitivo único, o qual serve de base para a compreensão textual.

Palavras-Chave: Cognição. Leitura. Aspectos cognitivos. Leitura em L1 e L2. Modelo Unificado.

ABSTRACT – This article reflects upon some cognitive aspects existent in L1 and L2 readers, taking into consideration the assumption of the hypothesis of only one cognitive system of language in the reading processing by bilingual individuals – adapted from the Unified Model. The aim of proposing this approach is to suggest complementary studies on the common language systems to L1 and L2 readers. We understand that the use of language knowledge for both L1 and L2 reading, reflects the linguistic competence of an individual in a certain context, moment or situation, however, it finds support in only one cognitive system which servers as a basis for text comprehension.

Keywords: Cognition. Reading. Cognitive aspects. Reading in L1 and L2. Unified Model.

Referências

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Aspectos cognitivos envolvidos no processamento da leitura: contribuição das

neurociências e das ciências cognitivas

Gislaine Machado Jerônimo1

Fale com a autora

Dentre as quatro habilidades linguísticas, a saber: fala, audição, leitura e escrita, é a leitura a habilidade que mais tem recebido atenção nas pesquisas dos últimos tempos. Tal fato se ancora na necessidade de pesquisas darem conta da grande dificuldade de compreensão leitora apresentada por estudantes de diversas partes do mundo, em especial, do Brasil.

No intuito de tentar explicar essa problemática, a comunidade científica em um trabalho, que engloba uma grande interface entre diferentes áreas do conhecimento como linguística, neurociência e psicologia cognitiva, une forças e traz contribuições que podem esclarecer muitas dúvidas e dificuldades encontradas pelos docentes a respeito de como se dá o processamento da leitura.

A natureza cognitiva da leitura revela-se no fato de a compreensão do texto ser realizada na mente do leitor. Em linhas gerais, o processo de leitura pode ser explicado a partir de três modelos predominantes nas pesquisas de cunho psicolinguístico: o modelo bottom-up, também chamado de ascendente, o modelo top-down, chamado de

1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Linguística da Pontifícia Univer-sidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS. Email: [email protected]

descendente e o modelo interativo (KLEIMAN, 1993). “Esses modelos lidam com os aspectos ligados à relação entre o sujeito leitor e o texto enquanto objeto, entre linguagem escrita e compreensão, memória, inferência e pensamento” (KLEIMAN, 1993, p. 31).

Partindo desses modelos, este artigo pretende problematizar a noção de compreensão do sentido/significado2 na leitura, pois, segundo Kleiman & Moraes (2002) e Machado (2006), um texto, por um princípio de economia, não carrega toda informação que se quer comunicar por meio dele, já que grande parte do(s) sentido(s) do texto repousa no conhecimento partilhado pelos interlocutores, mas não explicitado. Sendo assim, só as informações contidas no texto não são suficientes para que o leitor possa compreendê-lo. Ao mesmo tempo, não se pode desconsiderar o seu conteúdo semântico nem os mecanismos visuais utilizados, uma vez que são necessários para a apreensão rápida do material escrito.

Ao longo do trabalho, tentaremos responder aos seguintes questionamentos: O sentido da leitura está no texto, no leitor ou em ambos? Qual é o papel da memória nos modelos botton-up e top-down? O que nos dizem os avanços da neurociência sobre o modelo ascendente?

Apresentaremos nossa reflexão por meio das seguintes seções: na seção um mostraremos maiores detalhes sobre o modelo botton-up e recentes avanços das neurociências; o modelo top-down e fatores que interferem na compreensão leitora serão apresentados na seção dois; a seção três apresentará o modelo interativo; enquanto a

2 No presente artigo, as palavras sentido e significado serão utilizadas indistintamente.

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85 Gislaine Machado

seção quatro trará considerações advindas das ciências cognitivas a respeito da memória e, por fim, serão trazidas as considerações finais envolvendo retomadas e perspectivas. Ao longo do trabalho, serão trazidas contribuições para o ensino da leitura.

1. O modelo botton-up e avanços das neurociências

No modelo ascendente (botton-up), a leitura é vista basicamente como uma questão de decodificação de uma série de símbolos escritos em seus equivalentes orais. O texto, nessa perspectiva, é o depositário de um sentido imanente, cabendo ao leitor, no processo de leitura, a tarefa de extrair o significado, exercendo, portanto, um papel passivo, segundo Kleiman (1993). Essa visão alimenta a crença sobre a leitura como um processo linear, com base no qual o leitor constrói significados por meio das palavras do texto.

Segundo Kato, a leitura aqui

Constitui-se numa leitura minuciosa, vagarosa, em que todas as pistas visuais são utilizadas. É um processo de composição, uma vez que as partes gradativamente vão formando o todo (KATO, 1999, p. 62).

Esse modelo é baseado em uma concepção estruturalista da linguagem, pois “vê a leitura como um processo instantâneo de decodificação de letras em sons e associação destes com o significado” (KATO, 1999, p. 50).

Evidentemente, há leitores que permanecem, ao longo da sua experiência de vida, realizando apenas uma leitura mecânica e não conseguem ultrapassar o nível da decodificação. Entretanto, nessa fase, é a criança - o leitor iniciante - quem deve receber especial atenção.

Todos os leitores passam pelo processamento bottom-up, porém, o leitor proficiente demanda de muito pouco tempo nessa tarefa, que passa a ser automática pela prática. No caso da criança em fase de aprendizado da leitura, esse estágio não se dá de forma tão automatizada e eficiente, visto que ela precisa de um grande esforço cognitivo, a fim de processar as letras, no nosso caso - o sistema alfabético. A escola, por sua vez, deve considerar o grau de dificuldade aqui presente e proporcionar atividades que estimulem e facilitem a compreensão da leitura nessa fase, através de textos simples que não demandem do conhecimento inferencial da criança para o seu entendimento, já que o processamento pautado no conhecimento de mundo do leitor se desenvolve posteriormente no processamento top-down, em outras palavras, não se pode exigir da criança mais do que aquilo que ela está apta a realizar.

Para que essa decodificação ocorra e a palavra escrita seja processada - segundo estudos advindos da neurociência - é preciso esclarecer que há um processamento anterior menos específico nas áreas visuais primárias da região occipital que diz respeito ao processamento da palavra pelo movimento ocular. Apenas a parte mais central da retina, denominada fóvea, é apta a processar as letras, por ser rica em células fotorreceptoras. De certo modo há

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limitações nesse sistema, mas em cada fixação do olhar, independe o tamanho das letras, importando apenas a quantidade delas (SCLIAR-CABRAL, 2008; CRYSTAL, 2006, 2010, & DEHAENE, 2009).

McConkie e Keith Rayner em 1975, nas palavras de Scliar-Cabral (2008, p. 24) e Dehaene (2009), fizeram um experimento muito engenhoso chamado “janela móvel”. Tal experimento acusa o movimento dos olhos (“controlado pelas projeções do córtex pré-frontal sobre o núcleo caudal” (MERCIER, FOURNIER, & JACOB, 1999, p. 27 apud SCLIAR-CABRAL, 2008, p. 25)) ao detectar as palavras, de modo que é possível detectar as letras que ficam à direita e à esquerda da fóvea. Scliar-Cabral adaptou o experimento utilizando à primeira página de Os Maias de Eça de Queiroz, a fim de ilustrá-lo, o qual segue abaixo:

A casa que xx xxxxx xxxxxx xxxxxxx xx xxxxxxxA tela do computador vai sendo renovada, assim que

o olhar se movimenta, resultando, no final, o seguinte: x xxx xxx os Maias xxxxxx xxxxxx xx xxxxxxx xxx xxx xx xxxxx vieram xxxxxx xx xxxxxxx xxx xxx xx xxxxx xxxxxx habitar xx xxxxxxx xxx xxx xx xxxxx xxxxxx xxxxxx em Lisboa

Por fim, ficou comprovado que os sujeitos dos experimentos não perceberam os x. O centro da fixação também ficou nas palavras que continham conteúdo lexical: substantivos, adjetivos, verbos e advérbios. O experimento de McConkie e Rayner mostrou que conscientemente nós

processamos apenas uma pequena parte do nosso input visual (DEHAENE, 2009).

Grande parte da dificuldade de leitura, de acordo com Spitzer (2007, p. 215) reside no fato de que “o nosso cérebro não está construído para ler”. E complementa: “[...] a pessoa que lê abusa, em primeiro lugar, do seu aparelho de percepção para uma atividade não apropriada à espécie”.

Segundo Dehaene (2009), visto que o cérebro não foi desenvolvido para a leitura, de fato, aprender a ler parece ser uma das mais importantes mudanças no cérebro de nossas crianças, pois o cérebro não evoluiu para a cultura, mas a cultura evoluiu para poder ser apreendida pelo cérebro. Desse modo, possuímos uma região no cérebro que processa as letras, a qual o autor denomina “the letter box”. Após seu processamento nas áreas primárias da visão, as letras são canalizadas em direção à região occípito-temporal ventral do hemisfério esquerdo. Esses achados foram confirmados através das modernas técnicas de neuroimagem como PET (Positron Emission Tomography), fMRI (Functional Magnetic Resonance Imaging) e EEG (Electroencephalography). Dehaene diz que é fascinante a ideia de haver esse lugar especializado em letras e ele ser o mesmo local em todos nós – independente se a leitura for feita em chinês, hebraico ou inglês.

Dehaene (2007, 2009) propõe a hipótese da reciclagem neuronal. Scliar- Cabral (2008) ressalta a importância dessa descoberta. De acordo com essa hipótese, existe uma hierarquia de neurônios que respondem a estímulos visuais quando aprendemos a ler, parte dessa hierarquia de neurônios se ocupa da nova tarefa de reconhecer letras

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87 Gislaine Machado

e palavras. Assim, a capacidade de ler, de acordo com o autor, é resultado de um sofisticado processo evolucionário, e não simplesmente fruto da plasticidade cerebral, que muitas vezes é considerada como uma propriedade inata do cérebro. Dehaene defende a ideia de que a plasticidade cerebral é fruto de evolução e do instinto para aprender que os humanos possuem.

Segundo o mesmo autor (2009), outro conceito fundamental que serve de base para a compreensão do processamento botton-up é o problema ou princípio de invariância. Scliar Cabral assim o define:

Sejam quais forem as variantes de uma ou mais letras que constituem um grafema e de cuja articulação depende o reconhecimento da palavra escrita, a elas será acoplado sempre o mesmo valor fonológico que teria naquele contexto grafêmico, no caso do português brasileiro (SCLIAR-CABRAL, 2008, p. 26).

Em outras palavras, é por meio desse princípio que reconhecemos que as palavras dois, dois, dois, dois, dOIS são a mesma palavra, pois o reconhecimento da letra independe o seu tamanho, tipo ou posição, visto que nós negligenciamos as variações irrelevantes. Só desenvolvemos essa capacidade porque o nosso sistema visual não se detém nos contornos da palavra, mas está interessado nas letras que ela contém (DEHAENE, 2009). Cabe ressaltar que esse caminho é realizado pelo leitor que já tem familiaridade com o sistema escrito. Entretanto,

um leitor iniciante precisa de uma informação clara e de um tipo de letra que seja legível, pois do contrário, pode ficar confuso e não reconhecer a letra ou palavra.

Tais considerações oriundas das Neurociências permitem refletir sobre o que ocorre nos bastidores da leitura e do processo botton-up. E, desse modo, compreender a forma como o cérebro processa a leitura, destacando as maiores dificuldades e facilidade do percurso. Permite ainda reflexões a respeito do ensino da leitura, pois o professor que tem conhecimento do complexo percurso que o aprendiz percorre até conseguir dominar esse tipo de processamento pode preparar material didático mais apropriado às necessidades do leitor/aprendiz.

2. O modelo top-down e fatores que interferem na compreensão leitora

Enquanto o modelo botton-up trata do percurso ocular, do reconhecimento da palavra, da informação presente no texto e o leitor é visto de forma passiva, o modelo top-down enfatiza o esforço cognitivo do leitor em buscar informações extratextuais e esse passa a ser ativo no processo de leitura e compreensão, pois o sentido é construído a partir do seu conhecimento de mundo.

De acordo com Kato (1999), nesse tipo de processamento, é o leitor que apreende facilmente as ideias gerais e principais do texto, é fluente e veloz, mas, por outro lado, faz excessos de adivinhações. É o tipo de leitor que faz mais uso do seu conhecimento do que da informação efetivamente dada pelo texto.

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Aqui, o centro do processo é o leitor, pois é ele quem detém a chave para a construção do sentido do texto, já que “o significado de um texto não se limita ao que apenas está nele” (KLEIMAN & MORAES, 2002, p. 62). Isto é, o significado não é dado de antemão a espera de ser compreendido, mas, ao contrário, o texto é um todo cheio de lacunas, cujo preenchimento é feito pelo leitor, a partir de seu conhecimento de mundo.

Pesquisadores como Kenneth S. Goodman e, posteriormente, Frank Smith, lançaram bases teóricas para romper com as teorias ascendentes sobre o processamento da leitura, cuja principal contribuição foi a de chamar a atenção para fenômenos de “adivinhação”, comuns na leitura de aprendizes, que até então eram considerados apenas erros de decodificação.

Segundo Smith,

a maneira como os leitores procuram os significados é não considerando todas as possibilidades, não fazendo “adivinhações” inconsequentes somente quanto a um sentido, mas, em vez disso, fazendo previsões dentro da faixa mais provável de alternativas. Assim, os leitores podem superar as limitações do processamento da informação do cérebro e, também, a inerente ambiguidade da linguagem (2003, p. 192).

Goodman (1967), por sua vez, propõe refutar a ideia de que a leitura seja um processo preciso, que envolva

percepção e identificação exata de letras, palavras, padrões de escrita e unidades linguísticas maiores. Propõe, em substituição a isso, a ideia de que a leitura é um processo seletivo, em outras palavras, que a leitura é um processo que envolve o uso parcial de pistas linguísticas selecionadas a partir das expectativas do leitor, o qual durante o percurso da leitura faz inúmeras previsões.

As previsões são realizadas por meio do conhecimento prévio do leitor, que, de acordo com Kleiman (1995), se organiza em três tipos: linguístico, textual e de mundo. Para a compreensão dos textos lidos, acionamos a nossa memória semântica3 para resgatar o conhecimento já adquirido.

Zakaluk (1988) pontua que, quanto mais conhecimento de mundo o leitor tiver, melhor será sua compreensão, uma vez que, quando não se tem o sentido completo de um texto, ele é preenchido com os conhecimentos prévios do leitor para construir sentido.

Por outro lado, Randi et al. (2005) nos alerta que para uma leitura bem-sucedida, apenas a suposição da existência de um conhecimento prévio, não é suficiente, visto que algumas atividades de leitura não ultrapassam o nível literal, e, desse modo, não alcançam uma interação entre o conhecimento do leitor, a informação textual e as motivações contextuais. Isso quer dizer que, em alguns casos, o leitor depende mais do processamento botton-up do que do top-down para a compreensão do texto, visto que os textos se enquadram em gêneros e alguns deles são mais informativos do que outros. “Pode-se dizer que os próprios textos fornecem contextos para

3 A definição desse tipo de memória será trazida na seção cinco.

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89 Gislaine Machado

a sua interpretação” (KLEIMAN & MORAIS, 2002, p. 62). É incumbência de o professor identificar o tipo de processamento necessário, isto é, as limitações do texto e organizar tarefas que deem conta de sua necessidade.

Estudos que tratam do processamento da linguagem apontam que indivíduos com algum tipo de lesão cerebral no hemisfério direito apresentam maior dificuldade em sua capacidade de empregar o conhecimento prévio ao abordar o texto de forma top-down (MOLLOY e colegas, 1990; HUBER e colaboradores, 1990 apud SCHERER, 2009).

Durante a leitura, o conhecimento prévio é peça fundamental para a realização de inferências. Conforme se mencionou anteriormente, o leitor, no momento da leitura, deixa aflorar o seu conhecimento de mundo, as suas crenças, as suas vivências, além de seu conhecimento linguístico e textual, isto é, todo o seu conhecimento prévio. A partir desses conhecimentos se dá a realização do processo inferencial, que consiste no estabelecimento de conexões entre os enunciados, com o preenchimento de lacunas deixadas pelo texto.

De acordo com Kleiman (1995), as inferências ocorrem quando o leitor realmente assimila e agrega as informações à sua memória semântica. A partir da interação entre os saberes que traz e o que está disponível no texto é possível a significação do texto.

3. O modelo interativo

A partir da constatação de que nenhum dos tipos de processamento citados dava conta de explicar a compreensão de um texto, a teoria interacionista ou

interativista de leitura passou a propor a leitura como uma associação de processos cognitivos em que se integram o processamento ascendente (bottom-up) com o processamento descendente (top-down), na qual o conhecimento prévio do leitor é acionado durante a leitura e as informações do texto interagem com esse conhecimento.

Desse modo, o modelo interativo une os dois modelos apresentados anteriormente: top-down e bottom-up, pois considera que o fluxo da informação opera de modo descendente e ascendente, uma vez que os processos top-down e bottom-up ocorrem alternativamente ou ao mesmo tempo, dependendo das características do texto, do conhecimento prévio e da capacidade de previsão do leitor, da memória, da atenção e do domínio das estratégias de leitura.

No caso da previsão, segundo Kato (1999, p. 102), a qual ela denomina “adivinhação”, podemos dizer que esta “é parte da estratégia top-down, por ser mais preditiva, porém é a estratégia bottom-up a responsável pela sua confirmação, pelo refinamento e pela revisão da teoria”. Assim, calculamos a importância da união entre as estratégias acima referidas, uma vez que uma serve de base para a outra.

Ainda sobre a predição, há estudos da neurociência que mostram uma participação maior do hemisfério esquer-do, pois é ele o responsável: por fazer as relações entre a informação nova e os elementos previstos; ativar os itens prováveis de serem encontrados; atuar sobre a atenção; considerar o contexto; ser mais veloz, entre outros fatores (FEDERMEIER & KUTA, 1999 apud SCHERER, 2009).

O significado/sentido, nessa perspectiva, é construído através dos dados do texto que são percebidos

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pelos olhos e logo transmitidos pelo nervo óptico até o cérebro, o qual irá processá-los, juntamente com informações previamente armazenadas. Caso não haja informações no cérebro do leitor que possam ser ativadas durante a leitura, então ele fará novas conexões que permitam depreender o significado que o escritor quis passar com o texto. Contudo, para isso, o leitor precisa ter um conhecimento prévio que permita que ele faça essas novas conexões (POERSCH, 2002).

Solé (1998) traz considerações bastante relevantes para esse modelo ao mostrar que o leitor utiliza simultaneamente seu conhecimento de mundo e seus conhecimentos linguísticos para construir a compreensão do texto. Desse modo, é o leitor maduro quem utiliza esse processo de forma adequada e no momento apropriado, pois sabe identificar os processos bottom-up e top-down complementarmente.

Já o leitor iniciante apresenta dificuldades para realizar essa união, como é o caso da criança, que lê vagarosamente, sílaba por sílaba. Ao mesmo tempo, se o leitor iniciante for capaz de reconhecer instantaneamente as palavras, ele poderá ler mais rapidamente, conseguindo, de tal forma, lembrar unidades passíveis de interpretação semântica, assim como detectar uma série de palavras cuja ocorrência no texto é predizível pelo assunto. Cabe, então, ao professor “a tarefa de ajudar esse leitor a prever e predizer focalizando, mediante diversas abordagens e atividades prévias à leitura, as palavras-chave no texto”, bem como propiciar contextos a que o leitor deva recorrer, simultaneamente, a fim de compreendê-lo em diversos

níveis de conhecimento, tanto gráfico, como linguístico, pragmático, social e cultural (KLEIMAN, 1993, p. 35-36).

4. O papel da memória para o processamento da leitura

O estudo da memória é uma das maiores contribuições das ciências cognitivas ao estudo da linguagem. Ela é uma função cognitiva que desempenha papel fundamental à leitura, pois sem ela não conseguiríamos identificar as unidades mínimas das palavras, muito menos as mais complexas de significação. Desse modo, ela é recrutada tanto para o processamento ascendente como descendente. No primeiro caso, utilizamos mais a memória de trabalho, enquanto no segundo, fazemos mais uso da memória de curto e longo prazo (memória semântica).

A rapidez com que os olhos se movimentam durante a leitura e processam o seu material visual, das letras em sílabas e palavras, destas em frases, destas em proposições, chama muito a atenção. Esse fato só é possível porque o material visual é estocado na memória de trabalho, que permite a organização em unidades sintáticas, seguindo regras e princípios de nossa gramática implícita (KLEIMAN, 1993). Quando reconhecemos uma palavra é o hemisfério esquerdo que desempenha papel dominante e é por meio do PET e fMRI que temos acesso a esse dado (DEHAENE, 2009).

Segundo Izquierdo (2002, p. 19-20), a memória de trabalho serve para manter durante alguns segundos, no máximo alguns minutos, a informação que está sendo processada no momento. Usamos esse tipo de memória para

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conservar na consciência, por exemplo, a terceira palavra da frase anterior. “Tal retenção só serve para compreender o sentido dessa frase, seu contexto e o significado do que veio a seguir”. Seu processamento se dá fundamentalmente no córtex pré-frontal, a porção mais anterior do lobo temporal. Essa região recebe axônios procedentes de regiões cerebrais vinculadas à regulação dos estados de ânimo, isso explica o fato de, em um estado de ânimo negativo, haver perturbações na memória de trabalho como cansaço, por exemplo.

Uma de suas limitações, no que tange ao texto, se dá pelo fato de que ela não pode conter demasiada informação de uma vez só (SMITH, 1997). De acordo com Kleiman (1993, p. 34), a memória de trabalho pode trabalhar com aproximadamente 7 unidades ao mesmo tempo. Caso o leitor esteja lendo letra por letra, ele não conseguirá manter todas essas unidades na memória e não poderá apreender essa sequência visto que as partes não se integram num todo significativo. Assim, no início, a leitura será muito mais difícil para o leitor, ficando quase que limitada à decodificação.

Segundo a proposta de Goodman, a leitura deve ser vista como um jogo psicolinguístico de adivinhação, por meio do qual ocorrem as predições sobre o significado, que o leitor retém na memória de curto prazo e compara aquilo que lê com o repertório de linguagem guardado na memória de longo prazo (GOODMAN, 1967, p. 108). Trata-se, dessa maneira, de estabelecer um elo entre a memória de curto e longo prazo, onde o leitor busca no seu conhecimento já adquirido uma relação possível com aquilo que está presente no texto.

A memória de curta duração, diferentemente da memória de trabalho, estende-se desde os primeiros segundos ou minutos seguintes ao aprendizado e pode durar até 3-6 horas (IZQUIERDO, 2002). Ela é fundamental para a aprendizagem e, portanto, para a leitura, pois todo o nosso conhecimento de mundo ou conhecimento prévio, primeiramente, passa por ela e depois se consolida na memória de longo prazo.

Ao contrário da informação na memória de curto prazo, a informação na memória de longo prazo exige uma ação positiva para recuperá-la, é o que diz Smith (1999), pois quando acrescentamos algo ao nosso conhecimento de mundo, modificamos a informação já existente. Isto é, qualquer coisa que queiramos aprender exige que se faça uma relação com o que já existe na memória. Se essa nova informação não puder ser relacionada com algo que já temos é bem possível que a mesma não faça sentido para nós. Assim, é somente por meio da organização que a informação pode ser estabelecida, pois é ela a chave à lembrança.

Para o ensino, atividades de pré-leitura podem ser uma sugestão ao professor. Pois elas facilitam a compreensão do aprendiz, uma vez que ativam a memória de longo prazo e diminuem a carga na memória de trabalho.

Considerações finais

A natureza cognitiva da leitura abarca os modelos botton-up, top-down e interativo. No primeiro, se assentam as práticas de leitura que enfatizam o processamento ascendente do texto. Sua limitação se dá no momento em

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que o texto não contém todas as informações necessárias à compreensão. Por outro lado, se o texto é meramente informativo e não necessita da atuação do leitor, ele se mostra bastante útil. O modelo top-down, por sua vez, responde às limitações do texto, complementando as suas lacunas com base no conhecimento de mundo, nas predições e inferências do leitor. Caso o texto seja de cunho informativo, esse modelo se mostra ineficiente.

Tendo em vista as limitações dos modelos anteriores, parece mais adequado optar pelo modelo interativo, uma vez que se apresenta mais relevante para o desenvolvimento de estratégias flexíveis à leitura e considera como complementares os dois modelos citados acima. Assim, o sentido da leitura não está só no texto, nem só no leitor, mas em ambos.

O leitor que faz uso do modelo interativo é considerado um leitor maduro, pois a escolha de um processo ou outro já é uma estratégia metacognitiva, isto é, é o leitor que tem um controle consciente e ativo do seu comportamento (KATO, 1999, p. 51).

No caso do leitor iniciante, haverá maior dificuldade em fazer essa união, que só se realizará a partir do momento em que ele tiver domínio dos dois tipos de processamento. Do contrário, demandará de tempo na decodificação, processo que, como visto a partir de dados das neurociências, não é tão simples quanto parece, já que o nosso cérebro não foi desenvolvido para

a leitura. Nesse caso, “o professor deve ajudar o aluno leitor mediante diversas abordagens e atividades prévias à leitura” (KLEIMAN, 1993, p. 36).

O educador é peça chave para despertar no aprendiz o gosto pela leitura e também ajudar na redução do insucesso dos leitores.

É ele quem deve propiciar contextos a que o leitor deva recorrer, simultaneamente, a fim de compreendê-lo em diversos níveis de conhecimento, tanto gráficos, como linguísticos, pragmáticos, sociais e culturais (KLEIMAN, 1993, p. 35).

A memória, por sua vez, desempenha papel de grande importância, tanto no modelo ascendente como descendente de leitura. Pois, ela é responsável pelo processamento e retenção online da informação, no caso da memória de trabalho. E todo o processamento top-down se apoia na memória de longo prazo aliada à de curto prazo para o acesso ao conhecimento de mundo do leitor.

Logo, fizemos aqui uma tentativa singela de explicar onde reside o sentido na leitura, através de uma perspectiva cognitiva. Trouxemos uma visão de leitura pautada na psicolinguística, bem como contribuições das neurociências e ciências cognitivas. Contudo, a compreensão plena do processo de leitura reside em um grande mistério que, aos poucos, com a interface de diversas áreas do conhecimento, irá se desvelando.

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RESUMO – A natureza cognitiva da leitura revela-se no fato de a compreensão do texto ser realizada na mente do leitor. Em linhas gerais, o processo de leitura pode ser explicado a partir de três modelos de cunho psicolinguístico: botton-up, top-down e interativo, os quais lidam com os aspectos ligados à relação entre o sujeito leitor e o texto enquanto objeto, entre linguagem escrita e compreensão, memória, inferência e pensamento (KLEIMAN, 1993). Partindo desses modelos, neste artigo pretendemos problematizar a noção de compreensão do sentido na leitura, pois, segundo Kleiman & Moraes (2002) e Machado (2006), um texto, por um princípio de economia, não carrega toda informação que se quer comunicar por meio dele, já que grande parte do(s) sentido(s) do texto repousa no conhecimento partilhado pelos interlocutores, mas não explicitado. Tentaremos responder aos seguintes questionamentos: o sentido da leitura está no texto, no leitor ou em ambos? Qual é o papel da memória nos modelos botton-up e top-down? O que nos dizem os avanços da neurociência sobre o modelo ascendente? Ao longo do trabalho, serão trazidas contribuições para o ensino da leitura.

Palavras-chave: Botton-up. Top-down. Leitura. Memória. Neurociência.

ABSTRACT – The cognitive nature of reading is based on the comprehension in the reader’s mind. Considering the psycholinguistics, the reading process can be explained through: bottom-up, top-down and interactive models

(KLEIMAN, 1993). Based on these models, in this work it is intended to make a theoretical revision and also propose problems to the notion of meaning in reading. According to Kleiman & Moraes (2002) and Machado (2006), a text does not bring all the information needed due to the fact that part of the meaning of the text rests in the readers world knowledge. So, we are going to try to answer these questions: Where is the meaning in reading, in the text, in the reader’s mind or in both? What is the role of memory in the botton-up and top-down models? What does the neuroscience tell us about the ascendant reading model? Along this work, we are going to bring some contributions for teaching.

Keywords: Botton-up. Top-down. Reading. Memory. Neuroscience.

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Processamento de leitura: predição e inferências em pôsteres de paródias

de filmes de terror

Luiza Helena Müller dos Santos 1

Fale com a autora

O presente artigo trabalha com conceitos psicolinguísticos de leitura, especificamente com a estratégia de leitura conhecida como predição leitora e conceitos pragmáticos de inferência presentes na Teoria da Relevância de Sperber & Wilson (2005). O trabalho tem como objetivo ilustrar os conceitos teóricos através de uma análise do processo de leitura de pôsteres de paródias de filmes de terror.

A estrutura desenvolvida permite ao trabalho primeiramente elucidar conceitos de leitura, predição leitora e inferências segundo teorias e estudiosos (SMITH, 2003 e PEREIRA 2009a e 2009b), partindo do que consiste a leitura e suas ferramentas e estratégias principais até os conceitos de inferências como decorrentes de implicaturas griceanas e base para a predição leitora. Logo após, é descrita a Teoria da Relevância (TR) para melhor entendimento sobre o papel das inferências na comunicação humana.

Assim, se segue um breve histórico sobre o objeto de análise, sendo a paródia o foco principal. A análise dos pôsteres é feita de acordo com formulações das inferências, juntamente com a estratégia de predição leitora, de forma com que hipóteses sejam criadas a partir de um input de 1 Mestranda em Linguística pela PUCRS, Bolsista CAPES, [email protected]

informações explícitas para que sejam feitos processamentos cognitivos pelo leitor, até chegar a uma conclusão implicada.

Leitura, predição leitora e inferências

Segundo Pereira (2009a e 2009b), a leitura é uma atividade cognitiva significativa, dirigida a um objetivo, dependendo de conhecimentos anteriores e encaminhada pelas expectativas do leitor.

O processamento da leitura pode ocorrer ascendentemente ou descendentemente como afirma Pereira (2009b, p. 135):

Esse processamento ocorre de forma ascendente (botton-up) e/ou de forma descendente (top-down), sendo que, no primeiro, o leitor faz o movimento das unidades menores para as maiores e, no segundo, o leitor realiza o movimento das unidades maiores para as menores. A escolha do movimento, pelo leitor, decorre de variáveis como os conhecimentos prévios de que dispõe, o objetivo da leitura, o gênero e o tipo de texto e os caminhos cognitivos já por ele desenvolvidos.

Durante o processo da leitura, além do tipo material de leitura e planos linguísticos para a compreensão posterior, a concepção de leitura é uma das bases psicolinguísticas para o processo da leitura. A concepção de leitura agrega tanto as estratégias de leitura como os

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processamentos que se desencadeiam. Assim, tornam-se ferramentas importantes para o leitor as estratégias de compreensão que possam ajudá-lo na identificação e no processamento das informações, como seleção de tópicos, leitura detalhada, autocorreção, marcações, skimming entre outras. No presente artigo, as inferências e a predição leitora são as ferramentas exemplificadas através das análises de cartazes de paródias de filme de terror.

A predição leitora consiste na antecipação do conteúdo e formulação de hipóteses que são derivadas de processos inferenciais realizados pelo leitor. Segundo Pereira (2009, p. 135), a predição pode ser considerada uma espécie de jogo psicolinguístico, já que o leitor interage com o texto de maneira em que faz suas próprias formulações e as verifica e corrige ao longo do processo:

Associada a previsão, antevisão, antecipação, adivinhação, a predição consiste numa estratégia leitora que propõe uma interação entre o leitor, por meio de seus conhecimentos prévios, e o texto, por meio das pistas linguísticas deixadas pelo escritor em todos os planos. Essa condição a configura como um jogo psicolinguístico de antecipação e de verificação da correção do movimento realizado, isto é, de formulação e testagem de hipóteses de leitura. Trata-se, assim, de um jogo de risco automonitorado, apoiado em traços grafo-fônicos, morfossintáticos e semântico-pragmáticos.

O fator que leva o leitor a usar adequadamente essas ferramentas é a relevância das pistas contidas no material. A predição leitora se dá a partir da relação estabelecida entre cada pista, relevante para o leitor, encontrada no material de leitura.

Dessa forma, a tipologia textual e o contexto moldam o processo da leitura. Dependendo dessas variáveis, os planos (fonológicos, morfossintáticos ou semântico-pragmáticos) acionados pelo leitor construirão o processamento da leitura e a compreensão.

Durante a estratégia de predição leitora, voltar-se para a memória em busca de conhecimentos ‘de mundo’, ou seja, procurar conhecimentos previamente conhecidos é recurso utilizado por leitores que buscam contextualizar as informações.

Assim, a estratégia de predição é configurada não apenas como uma decodificação das pistas encontradas, mas sim um jogo de ‘quebra-cabeças’ no qual cada informação encontrada levará a uma suposição que ajudará na compreensão do material.

As inferências levantadas pelo leitor também fazem parte do grupo de ferramentas utilizadas pelo leitor, assim como a predição. Neste artigo, as inferências psicolonguísticas serão relacionadas com as inferências pragmáticas contidas na Teoria da Relevância, que se seguirá no próximo tópico do artigo. Portanto, as inferências feitas pelo leitor são fundamentais para o processo da predição leitora.

As inferências decorrem de processos inferenciais que constroem o sentido das proposições e suas relações.

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Segundo Grice, podemos descrever e explicar os efeitos de sentido que vão além do que é dito.

As inferências provêm de implicaturas, que podem ser convencionais, quando presas ao significado convencional das palavras e conversacionais, quando não dependem da significação usual, sendo determinadas por certos princípios básicos do ato comunicativo (CAMPOS, 2009).

Durante o ato comunicativo, existe um princípio de cooperação que liga as proposições dos locutores para que sejam geradas inferências, deduções e conclusões. Grice descreve algumas máximas e implicaturas dentro do princípio, como refere Campos (2009).

É importante ressaltar que a relevância também é considerada por Grice. Sendo relevante, o locutor apresenta ao ouvinte suas ideias diretamente para que este possa obter o maior benefício em relação ao custo quando se comunicar.

Teoria da Relevância

A Teoria da Relevância (TR), de Sperber & Wilson (1986), parte dos princípios de Grice (1975) para trabalhar a comunicação humana e estabelece algumas reformulações de seus apontamentos. As inferências feitas por um indivíduo sobre um material são importantes para a conclusão de um processo cognitivo de formulações acerca da compreensão do mesmo.

A TR considera aspectos sócio-contextuais e usa elementos da pragmática para se basear inteiramente nas informações contextuais que lidam desde o comportamento

de um falante até um conjunto de suposições que possam concluir a compreensão de um material.

Prezando pelos elementos ostensivos das informações, a TR estabelece que de um lado do ato comunicacional uma pessoa está envolvida com a relevância da informação através da ostensão e no outro lado uma pessoa está envolvida nas deduções. Segundo Campos (2008, p. 11):

Todo estímulo ostensivo (intenção informativa e comunicativa) comunica a presunção de sua própria relevância ótima – o estímulo é relevante suficiente para merecer o esforço de processamento da audiência e – é o mais relevante compatível com as habilidades e preferências do comunicador. O grau de relevância é diretamente proporcional à relação entre esforço de processamento e efeito cognitivo positivo. Em contextos idênticos, tanto menor o primeiro e tanto maior o segundo, mais relevante o estímulo.

Logo, um falante A comunica intencionalmente a B através de um código linguístico, também apresentando aspectos contextuais que geram inferências em B. A se torna relevante para B quando apresenta suas informações ostensivamente, e é criada uma relação entre A e B de menor custo de processamento da informação para maior benefício na conclusão e compreensão da informação.

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Vemos a seguir em S&W (2005, p. 03):

Intuitivamente, um input (uma visão, um som, um enunciado, uma memória) é relevante para um indivíduo quando ele se conecta com informação de background disponível, de modo a produzir conclusões que importam a esse indivíduo: ou melhor, para responder uma questão que ele tinha em mente, aumentar seu conhecimento em certo tópico, esclarecer uma dúvida, confirmar uma suspeita, ou corrigir uma impressão equivocada. Nos termos da Teoria da Relevância, um input é relevante para um indivíduo quando seu processamento, em um contexto de suposições disponíveis, produz um efeito cognitivo positivo.

A contextualização do ato comunicativo é fundamental para as formulações cognitivas de cada falante, logo, cada discurso representa um estímulo ostensivo que tem de ser adequadamente interpretado. Em S&W (2005, p. 13), vemos que o processo de interpretação se dá naturalmente pelo caminho de menor esforço:

...quando um ouvinte segue o caminho de menor esforço, ele chega a uma interpretação que satisfaz suas expectativas de relevância que, na ausência de evidências contrárias, é a hipótese mais plausível sobre o significado do falante. Uma vez que

a compreensão é um processo de inferência não demonstrativo, essa hipótese bem pode ser falsa; porém, ela é a melhor que um ouvinte racional pode fazer.

Durante o processo comunicativo, um ambiente cognitivo envolve processos mentais dos indivíduos que tomam suposições como verdadeiras mutuamente.

Um falante pode supor as inferências do interlocutor, também, as intenções do falante podem ser reconhecidas pelo interlocutor mesmo quando implícitas durante o processamento da informação já que o ambiente cognitivo é conhecido dentro de um contexto cognitivo específico. O contexto pode se dar de formas diferentes, como o contexto físico em que se encontra o ato comunicacional (lugar) ou o contexto em que se insere o ato comunicacional dependendo de discursos anteriores, logo, uma informação passa a ser relevante somente quando ligada a um determinado contexto.

Figuras de linguagem como a ironia, por exemplo, pode levantar premissas específicas em determinados contextos, podendo ainda ser relevante para a audiência de um comunicador desde que os contextos se apresentem mutuamente, como em S&W (2005, p. 26):

A ironia verbal não envolve nenhuma maquinaria especial ou procedimentos que não os já necessários para abordar um uso básico da linguagem, o uso interpretativo, e uma forma específica

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de uso interpretativo, o uso ecóico. Um enunciado pode ser interpretativamente usado para (meta) representar outro enunciado ou pensamento que se assemelha a ele em conteúdo. O tipo de uso interpretativo mais conhecido é a fala ou pensamento reportado. Um enunciado é ecóico quando ele alcança a maior parte de sua relevância ao expressar a atitude do falante para pontos de vista que ele tacitamente atribui a outrem.

As explicaturas ou as implicaturas podem passar informações. As explicaturas tratam das inferências entre o implícito e o dito, já as implicaturas tratam das suposições implícitas contextuais que pretendem manifestar a relevância da informação do falante.

Como as implicaturas tratam do contexto e não do expresso, elas variam de acordo com a interpretação que depende de vários aspectos como ambiguidade, modo de elocução, comportamento do falante. Desse modo, em S&W (2005, p. 24) vemos que:

Uma proposição pode ser mais ou menos fortemente implicada. Ela é fortemente implicada (ou é uma implicatura forte) se sua recuperação é essencial para se chegar a uma interpretação que satisfaça as expectativas de relevância do destinatário. Ela é fracamente implicada se sua recuperação ajuda na construção de certa interpretação,

mas não é, em si, essencial, porque o enunciado sugere uma escala de implicaturas similares possíveis.

Sendo alguns conceitos fundamentais da TR esclarecidos, a discussão da mesma, juntamente com os conceitos psicolinguísticos já citados, analisará o processo de leitura dos elementos presentes nos pôsteres de paródias de filmes de terror.

Pôsteres de paródias de filme de terror

Os filmes de terror são expostos na cultura de massa há muito tempo, fazem parte da cultura mundial e passíveis de avaliações e críticas por parte da audiência. A paródia simboliza um tipo de crítica sobre o objeto.

Bakhtin (1987) apontou, em seu estudo sobre carnavalização, que o festejo carnavalesco propiciava a criação de novos símbolos e linguagens sendo ligados ao riso. Afirmou, também, que a paródia é decorrente do riso carnavalesco e da reformulação de uma referência. A paródia moderna seria puramente negativa e formal e o riso ambivalente da época moderna, mesmo alegre, é ao mesmo tempo sarcástico.

Com um caráter crítico, sarcástico e irônico, a paródia moderna, por vezes, busca o humor através da reapresentação satírica do mesmo. Logo, mostra uma semelhança ao objeto de referência, entretanto, distorce características marcantes.

Sendo uma fuga do discurso e das normas tradicionais e mais conhecidas, a paródia dá liberdade ao comunicador de passar sua intenção ao público de

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forma indireta com o uso de ironias, mas também pode ser direta, já que o público, inserido no contexto em que conhece a referência, está apto a receber aquele tipo de input e espera a realização da paródia satírica.

Trabalhando com a aplicação da paródia satírica nas produções audiovisuais conhecidas da cultura de massa, podemos aplicar o conceito de paródia moderna nos filmes feitos a partir dos filmes clássicos e convencionais de terror, uma vez que as paródias distorcem histórias, personagens clássicos e/ou conhecidos e reformulam o objetivo da película original. Assim, uma paródia pode apresentar características dos filmes de terror, porém o objetivo não é aterrorizar e sim divertir através do humor proveniente da ironia.

Análises de pôsteres

Tendo em vista que as paródias possuem uma re-ferência, vejamos o exemplo abaixo, sendo um pôster do filme ‘A Bruxa de Blair: A Paródia’:

(Fonte:ht tp: / / img.mercadol ivre.com.br/ jm/ img?s=MLB&f=72295266_ 6904.jpg&v=E)

Pode-se ver que o processo de leitura parte da relevância e do contexto do leitor, se o mesmo é familiarizado com o filme original, imediatamente o pôster trará a entrada enciclopédica, indicando que esse pôster é similar a

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um cartaz de outro filme. Ao prestar atenção na imagem principal, verá que a pessoa tem o dedo no nariz e lembrará que indica falta de educação, inferindo, assim, que possivelmente esse cartaz não seria sobre um filme sério ou aterrorizante, e concluindo que não seria o mesmo cartaz do filme original. O efeito cômico produzido pela imagem se dá pela relação entre a seriedade do filme original e sua paródia, uma vez que em nenhum momento esse tipo de imagem seria vinculado ao original.

É importante também ressaltar que o texto indica que não se trata do filme original, mas sim ‘A Paródia’, ou seja, uma reformulação engraçada do filme original de terror. Há uma quebra no texto que descreve o filme, o leitor contextualizado com o conteúdo e seriedade do filme original, ao ler ‘descubra o que pode acontecer com diretores novatos que se perdem sozinhos em florestas’ pode remeter o texto ao suspense e terror passado no filme original, entretanto, o segmento ‘shopping centers e parques públicos’ quebra o suspense causando um efeito cômico, cujo beneficio é o riso, uma vez que invalidam o suspense do filme original. Após o processamento da leitura do pôster, a conclusão implicada é que o filme em questão usa o humor para distorcer o filme de terror, logo, deve ser engraçado.

Também vemos que a paródia não necessariamente se desenrola sobre apenas um filme, mas pode envolver muitos aspectos latentes e emergentes na cultura e no período em que é produzido.

(Fonte:http://2.bp.blogspot.com/_f7VsN7cr56s/TM4nhEEXWCI/AAAAAAAAAWg/A1M_pn59PBw/s400/Os+Vampiros+Que+se+Mordam.jpg)

Nesse exemplo temos muitos elementos que tratam de um tipo de personagem clássico do terror: o vampiro. Um leitor contextualizado de que o pôster se trata de uma paródia verá que cada personagem ali

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retrata personagens conhecidos, por exemplo, que os três principais personagens são muito similares aos da saga de filmes ‘Crepúsculo’. Também, poderá inferir que os personagens menores retratam tanto figuras populares quanto vampiros conhecidos, estereótipos.

O leitor começa a inferir que se trata de um cartaz de um filme na medida em que foca a atenção em cada elemento, e assim concluirá qual filme e seu conteúdo assim que assimilar as informações.

Intencionalmente, as figuras destacadas farão o leitor começar o processamento da informação. Algumas inferências começam a ser feitas já que as imagens mostram similaridades com outros cartazes, retratando personagens vampirescos.

São inferências possíveis, por exemplo, sobre o homem aparentemente nu na figura principal, mesmo que possa representar o personagem de ‘Crepúsculo’, que a posição indica apelo sexual, porém, com características homossexuais. Essa inferência acaba refletindo no resto da construção de sentido, já que rompe com a seriedade do filme original, causando um efeito humorístico na compreensão da leitura.

Outro elemento bastante estranho ao contexto vampiresco é a figura do que seria a cantora Lady Gaga juntamente com o elenco. O leitor poderá buscar em sua memória enciclopédica e conhecimento de mundo sobre a caricatura presente, reforçando a ideia de que o filme não tratará sobre vampiros clássicos, e sim sobre uma reformulação das histórias sobre vampiros ridicularizados de maneira engraçada.

Os textos presentes marcam que o tema é a distorção humorística do vampiro, já que no lugar de um nome conhecido como diretor, sarcasticamente é explicito que o filme é feito por ‘caras que não aguentam mais filmes de vampiros’. Um leitor contextualizado sobre o sucesso e a popularidade da saga de filmes ‘Crepúsculo’ poderá inferir o texto como um tipo de crítica.

A indústria cinematográfica trabalha com algumas paródias de sucesso. Os pôsteres de ‘Todo Mundo em Pânico’ e suas sequências retratam paródias de muitos filmes diferentes, em sua maioria filmes de terror, suspense e ficção.

Muitos elementos textuais e imagéticos informam ao leitor pistas que o levarão a uma série de inferências e conclusões. Nas figuras abaixo, os quatro pôsteres de ‘Todo Mundo em Pânico’ e suas sequências mostram caricaturas de diversos personagens, cada um poderá criar uma inferência no leitor, este apoiado nas entradas enciclopédicas e contextos necessários para o entendimento e compreensão de cada material.

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(Fonte: http://uphunter.files.wordpress.com/2009/10/panico.jpg)

No primeiro cartaz, alguns personagens representam caricaturas de outros personagens em outros filmes. A figura principal centralizada dá ao leitor contextualizado pistas para fazer inferências acerca do conteúdo. De acordo com o conhecimento de mundo do leitor, a máscara pode ser uma clara referência à série de filmes de terror ‘Pânico’, no qual o assassino em série usa uma máscara idêntica. Porém, o personagem aparece segurando um pacote de pipoca, assim, a suposição de que o cartaz seria de um filme de terror é cancelada, já que outra inferência é produzida, a de que um assassino é perigoso e não segura pipocas. Também, vemos que o homem negro expressando medo e segurando algo que parece ser um lençol, em que está escrito ‘I see dead people’; esses elementos podem produzir inferências no leitor, que busca em sua memória uma referência para a frase. Esta pode pertencer ao filme de terror/suspense ‘O Sexto Sentido’ e é dita por um pequeno menino caucasiano. Logo, pode ser inferido que o homem negro está na mesma situação, com as mesmas emoções do menino no filme ‘O Sexto Sentido’. A relação estabelecida produz um efeito cômico, uma vez que o homem adulto é completamente oposto ao menino frágil do filme original.

A conclusão implicada é de que o filme é uma paródia de filmes de terror anteriores, e é reforçada pelo texto ‘Você vai morrer... ’ que implica uma ameaça direta ao leitor, porém o complemento dá suporte para a conclusão de que o filme é engraçado já que diz que a forma da morte do leitor seria ‘... de tanto rir!’.

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Conclusão

O artigo trabalhou conceitos psicolinguísticos de leitura, principalmente com a predição leitora e também conceitos pragmáticos de inferência presentes na Teoria da Relevância de Sperber & Wilson, para ilustrar os conceitos teóricos por meio de uma análise do processo de leitura de pôsteres de paródias de filmes de terror.

A leitura, sendo uma atividade cognitiva significativa, dirigida a um objetivo e dependente de conhecimentos prévios do leitor, trabalha com diversos processos cognitivos. Entre eles, a predição leitora consiste na antecipação do conteúdo e formulação de hipóteses que são derivadas de processos inferenciais realizados pelo leitor. Os processos inferenciais, neste artigo, têm base na Teoria da Relevância.

Através de análises de determinados elementos e pistas encontrados pelo leitor durante o processo de leitura de pôsteres de paródias de filmes de terror, vê-se que as figuras principais são os elementos fundamentais para focar a atenção do leitor, que julga a relevância da informação para iniciar o processo de compreensão do material.

Os pôsteres, em geral, apresentam personagens que se assemelham a personagens de filmes sérios, remetendo o leitor a buscar seus conhecimentos anteriores, ou, ‘de mundo’ em sua memória para situá-lo diante da informação. Assim, o contexto deverá ser reconhecido pelo leitor para se estabelecer a relação, caso contrário o leitor não identificará a intenção do material, não julgará as informações como relevantes ou até mesmo não conseguirá compreender o mesmo.

Estabelecida a relação por meio das imagens semelhantes, os processos inferenciais começam a ser

realizados. As primeiras inferências auxiliam a conectar o filme original com o pôster em questão; a partir daí, efeitos cognitivos, geralmente produzindo humor, moldam o entendimento do material, já que algumas características dos personagens são distorcidas, rompendo a seriedade do papel do personagem no filme original.

O leitor poderá concluir que o pôster que apresenta tais características seria sobre uma paródia de outros filmes, assim, mesmo apresentando características dos filmes sérios, poderá ser engraçado. O riso, proveniente da paródia, é um alto e relevante beneficio para o leitor, mesmo com os altos custos de processamento de leitura do pôster.

RESUMO – O presente artigo trabalha com conceitos psicolinguísticos de leitura, especificadamente com a predição leitora e conceitos pragmáticos de inferência presentes na Teoria da Relevância. O trabalho tem como objetivo ilustrar os conceitos teóricos através de uma análise do processo de leitura de pôsteres de paródias de filmes de terror.

Palavras-chave: Predição Leitora. Inferências. Teoria da Relevância. Paródia.

ABSTRACT – This article deals with concepts of reading and psycholinguistics, specifically on the prediction reader and pragmatic inference concepts present in relevance theory. The paper aims to illustrate theoretical concepts through an analysis of the process of parodies of horror movies’ posters.

Keywords: Prediction Reader. Inferences. Relevance Theory. Parody.

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Palabras frecuentes y comprensión de lectura en L2: ¿Puede el computador contribuir?

Elba Beatriz LamiFale com a autora

Muchas áreas dedicadas al estudio del lenguaje se han beneficiado, en estos últimos años, de la explotación de los datos extraídos de corpus electrónicos y los estudios sobre la adquisición y procesamiento de segunda lengua no han sido ajenos a esta tendencia. Una de las invaluables ventajas que el corpus proporciona es su confiabilidad, basada esta en la autenticidad de los datos de acontecimientos del lenguaje natural que pueden ser examinados por el investigador.

Este texto tiene como objetivos: destacar la importancia del conocimiento de vocabulario en el proceso de lectura en L2 y reflexionar sobre la conveniencia de la enseñanza explícita de las palabras frecuentes informadas por herramientas computacionales para mejorar la comprensión de textos en L2.

1. Conocimiento de vocabulario y comprensión de lectura.

Se ha aceptado desde hace tiempo que el conocimiento del léxico es instrumental en la comprensión de la lectura. En la investigación en primera lengua (L1) tanto como en segunda lengua (L2), se han escuchado varias propuestas en relación a qué se entiende por “conocimiento

de vocabulario”. ¿Qué significa conocer una palabra y cuánto conocimiento es considerado suficiente y por qué?

Qian (2002, p. 514) cita una primera definición de Cronbach del año 1942, en donde dicho autor dividió el conocimiento de vocabulario en dos categorías principales: conocimiento del significado de la palabra (generalización, amplitud de significado y precisión de significado) y los niveles de acceso a este conocimiento (disponibilidad y aplicación). No obstante, como señala Qian, la pronunciación, la ortografía y la colocación parecen estar ausentes en este marco definitorio.

En la última década, continúa el autor, ha habido tendencias en considerar al conocimiento lexical como constituido por dos dimensiones primarias: amplitud y profundidad. La amplitud se refiere al tamaño del vocabulario o el número de palabras cuyo significado conocemos, por lo menos, superficialmente. Profundidad de vocabulario involucra cómo correctamente uno conoce una palabra. La dimensión de la profundidad de vocabulario tanto cuanto su tamaño son indicadores de un buen desempeño en la lectura en L2, especialmente de textos académicos según lo afirma el mismo autor.

En el contexto de la investigación sobre la lectura, la dimension de la profundidad del vocabulario puede contener componentes tales como pronunciación, ortografía, significado, registro, frecuencia y propiedades morfológicas, sintácticas y colocacionales (QIAN, 2002, p. 515).

Estructuralmente y funcionalmente estos componentes están interconectados. En el proceso de lectura

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108 Palabras frecuentes y comprensión de lectura en L2: ¿Puede el computador contribuir?

ellos interactúan y se informan unos a otros para que de ese modo se pueda lograr el mejor resultado en la comprensión.

Aprender vocabulario es un importante aspecto del desarrollo del lenguaje. Así lo afirman Tozcu y Coady (2004) quienes agregan que, para algunos estudiosos, el conocimiento de vocabulario es considerado el factor más importante en los logros académicos en aprendices de lengua segunda o extranjera, y que esto está íntimamente ligado a la proficiencia en la lectura. Todo esto conduce a un mayor suceso en el ámbito escolar.

Los mismos estudiantes de L2 piensan que el vocabulario es importante y ellos están entusiasmados en aprender tantas palabras cuanto puedan. No obstante, como Coady observó, los profesores tienen la tendencia en creer que el vocabulario es fácil de aprender y que la gramática es el desafío. El autor señala que muchos académicos y maestros parecen concluir que “las palabras van a ser aprendidas naturalmente de la lectura y no necesitan ser enseñadas”. En contra de este supuesto, él es partidario de la memorización directa de ítems lexicales de “alta frecuencia” (TOZCU Y COADY, 2004, p. 477). De esta manera, la automatización en el reconocimiento de la palabra puede ser lograda enfatizando la enseñanza explícita de palabras en los primeros estadios de la adquisición, en etapas posteriores, no obstante, el aprendizaje de vocabulario será basado contextualmente. De acuerdo con Nation (1993), citado por Tozcu y Coady (2004):”learners of a foreign language should learn the 2,000 most frequent words as quickly as possible by using any efficient means but especially including direct vocabulary learning”.

De lo expuesto hasta ahora, podemos observar la necesidad de ampliar el vocabulario para una mejor comprensión en la lectura de textos en L2. El conocimiento de las palabras más frecuentes en la lengua objeto de estudio es sinónimo de éxito en la comprensión lectora y requisito necesario para lograr la proficiencia. Pero ¿cómo podemos obtener información sobre las palabras más frecuentes en las diferentes tipologías o géneros textuales y en determinadas áreas especializadas? Las herramientas ofrecidas por la nueva rama de la lingüística; la Lingüística de Corpus, a través de un proceso asistido por computadores parece darnos la respuesta a nuestro interrogante.

2. Breves consideraciones sobre la Lingüística de Corpus y sus herramientas

De acuerdo con Gries,

La expresión Linguística de Corpus se refiere a un método en lingüística que comprende la recuperación computarizada, y subsecuente análisis, de elementos y estructuras lingüísticas de los corpora (GRIES, 2008, p. 411).

Ahora bien, ¿qué es un corpus? John Sinclair (1991), uno de los primeros lingüistas de corpus, lo define como “una colección de textos naturalmente producidos, elegidos para caracterizar un estado o variedad del lenguaje”.

Es decir, nos encontramos frente a una disciplina que se alimenta de las informaciones extraídas de

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datos del uso real de la lengua, datos auténticos: producidos por hablantes reales y no imaginarios o hipotetizados. Toda esta significativa fuente de gran porte cuantitativo es accesible por computadores mediante softwares especializados y ofrecida al lingüista para poder analizarla y hipotetizar sobre ella. La prioridad de los datos empíricos y con ello la visión probabilística de la lengua son, a prima facie, los presupuestos teóricos de esta metodología o disciplina.

¿Por qué esta vacilación entre disciplina y metodología? Pues bien, los estudiosos de esta área se encuentran divididos en cuanto a considerarla una disciplina autónoma o una simple metodología. Debido al gran desarrollo que este tipo de investigación lingüística ha alcanzado en las últimas décadas, se la considera una disciplina de estudio en sí misma, conocida como Lingüística de Corpus; no obstante existen algunos académicos que la consideran una metodología:

[...] but is corpus linguistics really comparable with these other hyphenated branches of linguistics? (socio-linguistics, psycholinguistics,

text linguistics) No, because “corpus linguistics” refers not to a domain of study, but rather to a methodological basis for pursuing linguistic research (LEECH, 1992, p. 105).

Fig. 2. Ejemplo de una parte de una concordancia en el primer corpus compilado para investigación lingüística: El Corpus Brown. (Brown University Standard Corpus of Present-Day American English).

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110 Palabras frecuentes y comprensión de lectura en L2: ¿Puede el computador contribuir?

Habiendo presentado compendiosamente lo que la Lingüística de Corpus estudia, pasamos a mencionar las herramientas que ella nos ofrece. Existen tres tipos de métodos: la lista de frecuencias y lista de colocaciones; las coligaciones y las concordancias (GRIES, 2008, p. 413). Las colocaciones constituyen el método más descontextualizado con la posibilidad de búsqueda de una expresión ignorando el contexto en donde la palabra o frase fue producida (Fig.1).

Fig. 1. Ejemplo de una parte de una lista de frecuencia de palabras en el Protocolo de Kioto. Proyecto Termisul Univerdidad Federal de Rio Grande do Sul. Accesible en: <http://www6.ufrgs.br/termisul/>

En las coligaciones o “collonstructions” como Gries las denomina, nos encontramos frente a la co-ocurrencias de elementos lexicales con una gramática o estructura particular. Nesselhauf (2003, pag. 223) señala que “las colocaciones, esto es, combinaciones de palabras como to make a decision o a bitter disappointment son una parte importante de la competencia del hablante nativo” y agrega también que “las colocaciones son de una particular importancia para los aprendices luchando por conseguir un alto grado de competencia en la segunda lengua”. De ahí, su importancia como metodología para estudios en adquisición de vocabulario en segunda lengua.

El fenómeno de colocación ha sido el más tradicionalmente enfocado en el estudio de corpus como bien señala Beber Sardinha (2000, p. 360), quien cita a Firth (1957) como el primero a acuñar la famosa frase “you shall judge a word by the company it keeps”. Sardinha menciona tres principales definiciones de colocación en la literatura. Una definición textual, de Sinclair, donde “colocación es la ocurrencia de dos o más palabras distantes un pequeño espacio del texto una de las otras”. Otra definición psicológica de Leech, “ el sentido colocacional consiste en las asociaciones que una palabra hace a causa de los sentidos de las otras palabras que tienden a ocurrir en el mismo ambiente”. Y la estadística de Hoey, donde “colocación ha sido un nombre dado a la relación que un item lexical tiene con ítems que aparecen con probabilidad significativa en su contexto textual”.

Finalmente, las concordancias, con un contexto más amplio, generalmente con cuatro palabras a la derecha o a la izquierda de la expresión (Fig.2). Y , así como Hunston (2002,

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pag. 42), nos podemos preguntar: ¿Qué se puede observar de las líneas de concordancias? La respuesta será lo “central y típico del uso” de esa expresión o palabra.

Dependiendo del tipo de corpora a disposición, Gries (2008) afirma que estos diferentes métodos pueden ser empleados en datos de interés para la investigación en adquisición de L2 y observar todos los tipos de lenguaje que influencian el resultado de los aprendices.

3. Frecuencia y reconocimiento automático de palabras.

Como hemos podido observar de lo expuesto hasta el momento, la gran contribución de la metodología de corpus son los datos de frecuencia de palabras. Ellis (2002) afirma que el procesamiento del lenguaje está íntimamente ligado a la frecuencia del input y que la frecuencia es un componente necesario de las teorías sobre adquisición del lenguaje y su procesamiento, en el caso que nos interesa en este trabajo: el proceso de lectura. No obstante, el autor nota, que ella no es la explicación que basta; existen también otros determinantes.

Frequency is a necessary component of theories of language acquisition and processing . . . Of course, frequency is not a sufficient explanation; otherwise we would never get beyond the definite article in our speech. There are many other determinants of acquisition (ELLIS, p. 178).

La psicoliguística y las teorías cognitivas de la adquisición, como menciona el autor, sostienen que todas las unidades linguísticas son abstraídas del uso del lenguaje. En esa perspectiva basada en el uso, la adquisición de la gramática es un aprendizaje por etapas de miles de construcciones y de la abstracción parcial de frecuencia de las regularidades entre ellas.

Language learning is the associative learning of representations that reflect the probabilities of occurrence of form-function mappings. Frequency is thus a key determinant of acquisition because “rules” of language, at all levels of analysis (from phonology, through syntax, to discourse), are structural regularities that emerge from learners’ lifetime analysis of the distributional characteristics of the language input. Learners have to figure language out (ELLIS 2002, p. 144).

La estrecha conexión entre la Lingüística de Corpus y la Lingüística Cognitiva, como argumenta Stefan Gries (2008, p. 412) se evidenciaría en el hecho de que la Lingüística de Corpus trata básicamente sobre frecuencias y es este tipo de datos los que están “en el corazón” de la Lingüística Cognitiva. ¿Cómo podemos explicar mejor esto? Para la Gramática Cognitiva el único tipo de elementos que el sistema lingüístico contiene son las unidades simbólicas. Para una unidad ser considerada simbólica es necesario que ella haya ocurrido con frecuencia suficiente para ser

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fijada en el sistema lingüístico del hablante / oyente. La Lingüística Cognitiva en general y la Gramática Cognitiva en particular son enfoques basados en el uso. El supuesto es el siguiente: la alta frecuencia de los tokens se correlaciona con la fuerte fijación y, como argumenta Gries citando a Langacker (2008, p. 410) “ a mayor fijación mayor acceso a la unidad simbólica de forma automática”.

Esta accesibilidad automática a la unidad simbólica, rápida y sin necesidad de analizar la estructura interna, sería otro ejemplo de afinidad entre la Gramática Cognitiva y la Lingüística de Corpus. De acuerdo con la teoría interactiva de la lectura, ambos procesos top-down y bottom-up ocurren durante la lectura fluente. En otras palabras, como menciona Coady (1993) citado por Tozcu y Coady (2004, p. 478)

readers do graphophonemic processing of word-forms and retrieval of their meaning, as well as inferencing from global and local context.’ The important point is that with more fluent readers vocabulary processing is automatic which, in turn, allows for more cognitive processing attention to be given to top-down interpretation (COADY, 1993, p. 18).

Sintetizando, el autor afirma que enseñando las palabras más frecuentes aumentará la cantidad de vocabulario visual lo que resultará en más logros en la proficiencia de la lectura. Igualmente, en relación a la importancia de la automatización, Akamatsu (2008, p. 175) nota la limitación en nuestros recursos cognitivos y el

impacto que esto tiene en las teorías sobre procesos de lectura y automatización en el reconocimiento de palabras considerado como crucial: “automatization (i.e., the process leading to automaticity) in word recognition is recognized as a crucial role in reading development”. Asimismo, Wooley (2010, p. 110) salienta que muchos autores han postulado que la comprensión de la lectura mejora cuando hay una disminución en la carga cognitiva en la memoria de trabajo:

during reading, the ability to comprehend is enhanced when there is a reduction in the overall cognitive load in working memory. It is asserted that memory load is affected by how attention is allocated within and between the different component subsystems of working memory during a particular reading episode.

4. Conclusiones

La metodología de corpus es una alternativa moderna y eficaz en la producción de datos significativos para la investigación lingüística. Diferentes ramas de la lingüística están haciendo uso fructífero de ella y los estudios en el procesamiento de la lectura en L2 no pueden desaprovechar la oportunidad que ella ofrece en la facilidad de almacenamiento de datos y “visualización” de los mismos gracias a los sistemas computarizados.

El papel que juega la frecuencia en la adquisición del lenguaje ha sido ampliamente reconocido por los académicos especializados en el área. Los datos de

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frecuencia obtenidos con gran facilidad de los corpus computarizados abren las puertas para poder lograr una profundidad de vocabulario que resultará en una mejora en el desempeño en la comprensión de la lectura.

El estudio individualizado de vocabulario aprendido gracias al auxilio del computador ciertamente facilitará su adquisición. Además, el aumento del conocimiento de vocabulario es probable de producir un efecto positivo significativo en la comprensión de la lectura y velocidad en el reconocimiento de palabras frecuentes.

La significativa influencia de la frecuencia del input en los aprendices de segunda lengua, como dato importante obtenido en algunos estudios empíricos, debe ser profundizada y corroborada con nuevos estudios que puedan abarcar diferentes grupos de hablantes de distintas lenguas y con diferentes variables individuales. Estos resultados seguramente ayudarán en la reformulación de métodos de enseñanza de lenguas extranjeras en el marco de un mundo globalizado.

RESUMEN – La importancia del papel que el conocimiento de vocabulario juega en la comprensión de la lectura en el contexto académico ha sido ampliamente reconocido por los estudiosos del área. La manera de ayudar a los aprendices de L2 a incorporar la mayor cantidad de palabras en menos tiempo y de forma efectiva es el desafío que se presenta a los profesores de lengua extranjera. Este trabajo tiene como objetivos presentar las herramientas que la Lingüística de Corpus nos proporciona para la obtención de datos de frecuencia de palabras; y

destacar la estrecha relación entre la automatización en el reconocimiento de palabras y la comprensión proficiente de lectura.

Palabras claves: Comprensión de Lectura en L2; Lingüística de Corpus; Frecuencia y automatización de palabras.

ABSTRACT – The important role that vocabulary knowledge plays in reading comprehension in academic context has been widely recognized by scholars of the field. The way to help L2 learners to incorporate the greatest amount of words in less time and in an effective manner is the challenge that foreign language teachers have to face.This work is aiming at introducing the tools that Corpus Linguistics offers to gather data of word frequency; and pointing out the close relation between automatization in word recognition and proficient reading comprehension.

Keywords: L2 Reading Comprehension; Corpus Linguistics; Word Frequency and automatization.

Referencias

AKAMATSU, Nobuhiko. The effects of training on automatization of word recognition in English as a foreign language. Applied Psycholinguistics Vol. 29, p. 175-193, 2008.

COADY, J. Research on ESL/EFL vocabulary acquisition: puting in context. In.: HUCKIN, T.; HAYNES, M.;COADY, J. (Eds.). Second Language reading and vocabulary learning, Norwood NJ, Ablex Publishing Corporation. p. 3-23, 1993.

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ELLIS, Nick C. Frequency effects in language processing: A review with implications for theories of implicit and explicit language acquisition. Studies in second language acquisition. Vol. 24(2), p. 143-188, 2002.

GRIES, Stefan Th. Corpus-based methods in analyses of second language acquisition data. In ROBINSON, Peter and ELLIS, Nick C. (eds.).Handbook of Cognitive Linguistics and Second Language Acquisition. U.S.A.: University of Michigan, p. 406-431, 2008.

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NESSELHAUF, Nadja. The use of collocations by advanced learners of English and some implications for teaching. Applied Linguistics. Vol. 24(2), p. 223-242, 2003.

QIAN, David. Investigating the Relationship between Vocabulary Knowledge and Academic Reading Performance: An Assesment Perspective. Language Learning Vol.52 N. 3, p. 513-536, 2002.

SARDINHA, Tony Beber. Lingüística de Corpus: Histórico e Problemática. D.E.L.T.A. Vol.16 N.2, p. 323-367, 2000.

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WOOLEY, Gary. Developing reading comprehension: combining visual and verbal cognitive processes. Australian Journal of Language and Literacy. Vol. 33. N. 2. p. 108-125, 2010.

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Inferências e compreensão leitora

Elisângela Kipper1

Fale com a autora

Nas sociedades letradas a questão da importância

da leitura é indiscutível visto que ela faz parte da vida cotidiana, desde as tarefas mais banais como tomar o ônibus, ler informações nas ruas, nomes de estabelecimentos comerciais, até a leitura necessária nas mais diversas profissões: o pintor precisa ler as instruções de seu material de pintura a secretária lê e responde a diversos emails durante o dia, a dona de casa lê uma receita nova, o professor, o estudante, todos precisam da leitura. Percebe-se que nessas sociedades manusear o código escrito é uma questão de cidadania, porém existe uma grande parte da população que não possui acesso a esse tipo de código. Da mesma forma, existem aqueles que tiveram algum contato com a alfabetização, sendo considerados alfabetizados pelas estatísticas, mas que não compreendem o que leem, somente decodificam o código escrito, os chamados analfabetos funcionais.

Por algum tempo o simples ato de decodificar era entendido como sinônimo de leitura, porém esse é apenas um primeiro nível, embora fundamental, visto que possibilita o acesso ao código por parte do leitor e sem ele não existiria a leitura. Quanto mais experiente for o leitor, melhor será sua habilidade de decodificação, pois esta acaba tornando-se um processo automático e à medida que esse leitor, 1 Mestranda em Linguística- PUCRS. Email:[email protected]

mais experiente, não necessitar direcionar tanta atenção a aspectos mais básicos da leitura, como é a decodificação, irá fazer menos fixações durante os movimentos sacádicos2 e essa atenção poderá ser focada na compreensão do texto e na realização de inferências que o auxiliarão nesse processo. Este seria um segundo nível de leitura, o da compreensão, mais profundo que a simples decodificação.

Nesse sentido este artigo procurará refletir sobre a leitura como um processo de representação da realidade e como a busca de significado sobre os dois lados da leitura: informação visual e não visual. Discorrerá também sobre o tema dos processos de leitura: ascendente, descendente e integrativo, por entender que essa discussão é pertinente para chegar-se à questão da compreensão, a qual, por sua vez, é adquirida através da capacidade inferencial dos leitores.

A compreensão é o fator que relaciona os aspectos relevantes do mundo a nossa volta, estando diretamente ligada aos conhecimentos prévios e aos esquemas mentais. Sendo assim, este artigo também procurará discutir sobre predição e inferências, duas estratégias fundamentais na leitura e que se inter-relacionam. Em se tratando de predição cabe destacar a relevância das pistas oferecidas pelo texto, tanto o aspecto estrutural, quanto o aspecto da redundância das pistas. O foco principal do trabalho será na estratégia da inferência e, a partir dela, serão feitas algumas análises de tiras do autor argentino Quino.

2 Saccade (francês) = espasmo. Seriam os saltos rápidos, irregulares, mas acurados do movimento ocular, importantes na leitura, os quais englobam em torno de sete palavras por vez nos leitores mais proficientes e um número bem menor de palavras durante a leitura por parte de um leitor não proficiente, ou daquele que encontra problemas durante a leitura, por exemplo, ao se deparar com termos desconhecidos.

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1. Reflexões sobre leitura

Segundo Leffa (1996), a leitura seria um processo de representação, sem se dar por acesso direto à realidade, visto que existe a intermediação de outros elementos incutidos nessa realidade. Então, ocorre um processo de triangulação da leitura, uma vez que, por meio da visão, olha-se uma “coisa” e vê-se outra, pois a percepção está repleta de conhecimentos prévios que irão intermediar e influenciar o que se vê. “Não se lê, portanto, apenas a palavra escrita, mas o próprio mundo que nos cerca”. Ainda, “ler é na sua essência, olhar para uma coisa e ver outra” LEFFA (1996, p. 10).

Corroborando com o pensamento de Leffa, é possível perceber que Smith (2003), no capítulo titulado “Entre os olhos e o cérebro”, também alude à questão da leitura como algo muito além de somente decodificar.

Sob a perspectiva psicolinguista, Smith (2003) argumenta que os olhos não veem, eles observam, pois são dispositivos de coleta para o cérebro, que por sua vez, determina o que e como vemos. O autor aponta dois lados da leitura: o primeiro seria o da informação visual, aquilo que vemos na página impressa e que desaparece quando as luzes se apagam; o segundo lado, ou a segunda percepção da leitura seria a informação não visual, que ocorre por trás dos globos oculares e que está com o leitor o tempo todo, não desaparecendo quando as luzes se apagam, pois essa informação é oriunda das experiências do leitor, ou seja, seus conhecimentos prévios. Assim, para Smith, existe uma relação recíproca entre os dois

tipos de informação: quanto mais informação não visual o leitor possua, menos informação visual necessitará durante a leitura, muito embora esta sempre envolverá uma combinação de informações visual e não visual. Na leitura é importante aquilo que ocorre por trás dos olhos, onde se localizam o conhecimento anterior, a finalidade, incertezas e questões a serem feitas.

Percebe-se que ambos os autores citados acreditam que a ‘bagagem’ trazida pelo leitor irá influenciar diretamente no processo de compreensão do texto, visto que nela se encontram as representações mentais que darão significado ao que se lê. Através dessa perspectiva verifica-se que a leitura não é uma tarefa fácil, ela exige do leitor ampla atividade cognitiva que envolve os sentidos, a memória, a atenção, a capacidade de decodificação, assim como a familiaridade com aspectos linguísticos dos mais diversos níveis como fonológico, semântico, sintático e também pragmático que estarão implicados de uma forma ou de outra no que Smith denomina “visão de mundo” do leitor, e que, por sua vez, implica diretamente no processo da compreensão leitora.

Leffa (1996) propõe definições de leitura em que é possível verificar a dicotomia entre leitura como extração de significado de um determinado texto e leitura como atribuição de significado ao texto. Na primeira visão de leitura tem-se a direção do texto para o leitor e a ênfase é dada no objeto escrito, como se este tivesse um significado preciso, exato e completo a ser captado pelo leitor à medida que este vai decodificando, linearmente, da esquerda para a direita, palavra por palavra, a mensagem trazida pelo

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texto. Nessa concepção o leitor estaria subordinado ao que aparece nas páginas escritas, o que ele recebe é o centro da leitura, esta vai subindo do texto em direção ao leitor, de maneira ascendente e a compreensão acontece enquanto o leitor avança no texto. Pereira (2009, p.12) nomeia essa visão como um processamento cognitivo de movimento bottom-up.

Uma segunda visão de leitura entende que ler é atribuir significado ao texto. Dessa forma, o centro do processo de leitura seria o próprio leitor, é ele quem atribui e extrai significado do texto dependendo da bagagem e das experiências prévias que inferem no momento da leitura, o que possibilita um mesmo texto provocar diferentes leituras dependendo da percepção da realidade de cada leitor.

A riqueza da leitura não está necessariamente nas grandes obras clássicas, mas na experiência do leitor ao processar o texto. O significado não está na mensagem do texto, mas na série de acontecimentos que o texto desencadeia na mente do leitor (LEFFA, 1996, p. 15).

Essa segunda visão de leitura, ao contrário da primeira, acredita na possibilidade de o leitor prever (“adivinhar”, segundo Leffa) o que as frases seguintes trazem, não sendo necessário buscar significados de palavras desconhecidas no dicionário, visto que o contexto geralmente autoexplicará o vocábulo desconhecido. Nessa concepção, o entendimento se efetiva através de um

processo de leitura descendente, ou seja, desce do leitor ao texto. Cabe salientar que, embora as diferentes realidades possam inferir em múltiplas interpretações, existe um limite quanto ao número de inferências possíveis nesse diálogo entre texto (que também implica autoria) e leitor. Esse movimento descendente, não linear é nomeado por Pereira (2009, p. 12), como movimento top-down.

Entender o processo de leitura apenas como uma das visões mencionadas acima implicaria não perceber que na maioria das vezes essa dicotomia torna-se una, havendo um processo complexo de interação entre texto e leitor, em que ambos interagem em busca da compreensão, o que vem, então, a gerar uma terceira visão, em via dupla: a de leitura como interação texto/leitor e entre uma concepção ascendente e descendente de leitura. Nessa concepção, o leitor usa seu conhecimento prévio para interagir com a informação do texto, processo conhecido como interativo.

Ao entender a leitura como um processo interativo, a visão de leitor passivo, que recebe informações do texto, deve ser abandonada, em direção a uma visão de leitor ati-vo, atuante na completude do texto. Esse tipo de visão im-plica diretamente o entendimento da compreensão como o fator que relaciona os aspectos relevantes do mundo a nossa volta (Smith, 2003). Por meio da leitura é possível agregar algo novo ao que já conhecemos e ao mesmo tem-po modificar nossos conhecimentos anteriores, integrando o dito no texto e os conhecimentos prévios do leitor.

Para entender um texto devemos relacionar os dados fragmentados do texto com a visão que já construímos

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de mundo. Todo texto pressupõe essa visão de mundo e deixa lacunas a serem preenchidas pelo leitor. Sem o preenchimento dessas lacunas a compreensão não é possível (LEFFA 1996, p. 25).

Para a compreensão do mundo, segundo Leffa (1996) e Smith (2003), o leitor necessita possuir uma representação mental do mesmo, que lhe é fornecida através de esquemas. Esses são estruturas abstratas, construídas pelo próprio indivíduo para representar sua teoria de mundo, sendo que aos poucos o indivíduo percebe que suas experiências possuem características comuns a outras e vão se estabelecendo convenções. Para Smith (2003), compartilhar a mesma cultura significa ter a mesma base categórica para organizar os conhecimentos; assim, a linguagem reflete a maneira como certa cultura organiza a experiência.

Dentro da representação mental de um indivíduo e de uma determinada sociedade, tem-se o esquema de uma sala de aula, de um restaurante, de um almoço, de uma fazenda, etc. No esquema do almoço, por exemplo, temos uma série de elementos comuns que nos dão essa representação mental: a hora, o uso de talheres, a comida, etc. Leffa (1996) denomina esses elementos como sendo variáveis, mutáveis e adaptáveis. Para ele “o que caracteriza um determinado esquema é, portanto, uma determinada configuração de variáveis” (p. 35). Dessa forma, segundo a Teoria dos Esquemas, “a leitura não é nem atribuição nem extração de significados, mas a interação adequada entre os dados do texto e o conhecimento prévio do leitor” (p. 44).

Outros dois conceitos relevantes em se tratando de leitura, entendidos também como estratégias, são a predição e a inferência. Segundo Pereira (2009) essas duas estratégias seriam os “alicerces do raciocínio para compreensão leitora”. Segundo Goodman (1991, p. 28), “os leitores utilizam uma quantidade mínima da informação textual disponível necessária em comparação com os esquemas linguísticos e conceituais do leitor existentes para obter o significado”.

A estratégia da predição, também entendida como previsão, permite a fluência do processo de leitura, pois o leitor, à medida que vai adquirindo experiências, consegue perceber as pistas trazidas pelo texto que irão facilitar sua capacidade antecipatória. Para Smith (2003), a previsão é a eliminação anterior de alternativas improváveis e a projeção de possibilidades, o que permite reduzir a ambiguidade e eliminar, de antemão, alternativas irrelevantes. Esse autor relaciona diretamente a estratégia em questão com a compreensão. Para ele, previsão é “fazermos perguntas, e compreensão é respondê-las”. Também entende que previsão significa que a incerteza do ouvinte ou leitor está limitada a umas poucas alternativas prováveis, visto que os diversos contextos - silábico, da palavra, da frase e o próprio sentido do texto - irão direcioná-lo para as pistas corretas.

Várias são as pistas que o leitor poderá perceber, Smith comenta a relevância da organização textual em estruturas formais pré-estabelecidas, os esquemas de gêneros, que auxiliam as previsões do leitor e também na recordação do lido. Segundo ele: “quanto mais um autor conhece e respeita as formas que o leitor irá prever, mais o texto será fácil de ler e recordar” (SMITH, 2003, p. 61).

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As estruturas também determinam a memória. Quanto mais o leitor puder antecipar as estruturas formais que um autor utiliza, mais poderá compreender e recordar o que lê. Da mesma forma, quanto mais um autor conhece e respeita as formas que o leitor irá prever, mais o texto será fácil de ler e recordar. O leitor precisa conhecer os diferentes gêneros textuais para entender a leitura e o autor precisa usá-los para facilitar a compreensão e a memória, diretamente relacionadas.

Outras pistas são oferecidas ao leitor através da redundância. Segundo Smith (2003) ela existe sempre que a mesma informação está disponível em mais de uma fonte, ou seja, quando as mesmas alternativas podem ser eliminadas através de mais de uma maneira e envolvendo vários níveis linguísticos. Smith (2003, p. 76) explica a redundância com o exemplo a seguir:

O capitão ordenou que o marujo lançasse a ân-

Para o autor existem diferentes modos (pistas) que possibilitam o leitor a prever (“reduzir a incerteza”) no que tange ao restante da sentença. Primeiro poderia ser feita uma eliminação visual, virando a página e seguindo a lei-tura através da evidência propiciada pelo sentido da visão. Outro modo de previsão seria através de uma pista orto-gráfica, então não poderia ser “b, m, p, x,” uma vez que não ocorrem após “ân”. Provavelmente o leitor pensaria que se trata de um substantivo ou adjetivo, uma vez que essas classes de palavras são precedidas pelo artigo, pro-piciando então uma eliminação sintática. Pode-se, também,

eliminar vários substantivos e adjetivos que começam com “ân”, como ânfora (vaso grego), ânafe (trevo) uma vez que se entende que não são objetos que marujos lançam ao mar, usa-se assim uma eliminação semântica. Para o autor, essas formas de eliminação visual, ortográfica, sintática e semântica fornecem informações sobrepostas, implicando redundâncias que facilitarão no processo preditivo. Assim, quanto mais redundância existir, menos informações visu-ais serão necessárias para o leitor experiente.

Goodman (1991) postula três sistemas de indícios, de onde o leitor extrairia as pistas preditivas de informação na leitura: o sistema grafofônico (envolvendo os sistemas ortográfico, fonológico e fonético); o sistema sintático (gra-mática da língua) e o sistema semântico (envolve o senti-do, a pragmática).

Os leitores utilizam uma seleção de indícios grafofônicos, sintáticos e se-mânticos. Esses indícios estão dentro do texto e do leitor. Os leitores devem ter esquemas para a ortografia, para a sintaxe da língua e para os conceitos pressupostos pelo autor, a fim de se-lecionar, utilizar e fornecer os indícios apropriados para o texto dado (GOOD-MAN, 1991, p. 35).

Percebe-se que a estratégia da previsão fornece pistas para que o leitor vá lançando suas hipóteses sobre o que está por vir no texto, tal estratégia está intimamen-te relacionada com a inferência, visto que para prever ele parte de indícios do que já conhece, tanto no que tange

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120 Inferências e compreensão leitora

a microestrutura (conhecimentos linguísticos), quanto a macroestrutura (sua visão de mundo).

Este artigo procurará, a seguir, focar as estratégias inferenciais de leitura, pois entende que as interpretações de mundo possíveis estão diretamente ligadas ao que o lei-tor infere durante a leitura.

2. Inferências e compreensão leitora

Para entender o processo inferencial é necessário ter presente a noção de esquema (estruturas para a re-presentação de conceitos na memória), já discutida ante-riormente. Segundo os defensores dessa teoria, os esque-mas servem para preencher lacunas durante o processo de compreensão e são acionados pela ativação inferencial que é dada através de hipóteses. À medida que o texto vai se solidificando, tais hipóteses vão se concretizando, ou não, dependendo das inferências a que o leitor recorreu.

Para que as hipóteses se concretizem é preciso ha-ver uma espécie de “harmonia”, uma integração entre au-tor, texto e leitor. Madruga (2006) aponta três motivos que explicariam a interpretação incorreta de um texto: quando não existem os esquemas apropriados ao leitor (a baga-gem não é suficiente); quando o escritor não proporciona os indícios adequados; ou quando o leitor constrói uma re-presentação inferencial coerente, porém, incorreta. Nesse sentido, a parte quatro deste artigo fará a análise prática de algumas tiras da Mafalda, com o intuito de refletir sobre algumas das inferências possíveis, por parte do leitor.

Segundo Madruga (2006), as inferências são o nú-cleo do processo de compreensão e de comunicação hu-mana, servindo para unir a informação nova a um todo re-lacionado. Ou seja, por meio delas o indivíduo consegue interligar o input recebido nas inúmeras situações de sua vida com a informação trazida pelo texto, gerando um novo conhecimento e, este, por sua vez, irá interferir novamente na aquisição de novas experiências, como em uma cadeia.

Entendendo esse processo é possível perceber por que leitores mais experientes conseguem fazer reflexões mais profundas em suas leituras, enquanto os menos expe-rientes muitas vezes não conseguem compreender um tex-to em sua totalidade, pois a compreensão está intimamente relacionada com o acúmulo de experiências (na memória) que refletirão diretamente na capacidade de fazer inferên-cias. Por isso, para Madruga o conceito de inferência é vis-to como um processo de recuperação da informação na memória de longo prazo e como um processo de geração de novos conhecimentos, que irão posteriormente para a memória de longo prazo.

Para Pereira (2009), a inferência é definida como o percurso cognitivo para a predição, no intuito de beneficiar a compreensão leitora. A autora utiliza duas categorizações que abarcam perfeitamente os processos inferenciais: a inferência linguística episódica (que envolve os níveis grafofônico, morfológico, sintático, semântico e pragmático, entendendo que estes podem ocorrer simultaneamente) e a inferência metalingüística, que se detém apenas nas pistas linguísticas.3

3 Para uma análise mais profunda ver: Predição e inferência, PEREIRA (2009, p. 14 - 17)

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No que tange à classificação dos tipos de inferências, Madruga (2006) também apresenta uma categorização bastante interessante. Ele divide as inferências em duas maneiras de análise: a primeira considera o tipo de processo mental implicado (inferências automáticas ou controladas), a segunda leva em consideração os tipos de tarefas e o nível de representação em que as inferências estão relacionadas (inferências com coerência local e base no texto, inferências relacionadas com a coerência global, inferências relacionadas com o modelo situacional e inferências relacionadas com o gênero do discurso)4.

Outra discussão interessante de Madruga diz respeito às teorias sobre a realização de inferências, que nas últimas décadas geraram algum tipo de polêmica: a teoria minimalista e a teoria construtivista.5 Essas duas visões divergem acerca do momento em que se geram os diversos tipos de inferências. Segundo o autor, a primeira teoria centra-se na distinção entre inferências automáticas e estratégicas, estas últimas controladas pelos objetivos do leitor, sustentando que as inferências automáticas estão disponíveis na coerência local (através das conexões do texto).

A segunda teoria sustenta que, além das inferências depreendidas pelas conexões do texto, geram-se inferências globais a partir do modelo mental que os leitores constroem quando compreendem um texto. Nessa perspectiva, para a compreensão é preciso mais do que o texto em si, é

4 Para um estudo mais detalhado dessa classificação ver: MADRUGA (2006, p. 81 - 91).5 Para um aprofundamento na questão das teorias inferenciais ver: MADRUGA (2006, p. 92 -94).

necessário abarcar o modelo situacional6 (o texto mais os conhecimentos de mundo do leitor).

De acordo com os aspectos discutidos até aqui se verifica que a inferência é importantíssima no processo de leitura, e, como mencionado anteriormente, as interpreta-ções de mundo possíveis estão diretamente ligadas ao que o leitor infere durante a leitura. No entanto, se faz necessá-rio evidenciar que a estratégia inferencial não ocorre sozi-nha, estando diretamente envolvida com a predição e com a quantidade de esquemas mentais disponíveis no leitor, sendo impossível separar essas noções.

3. A estratégia da inferência na prática

Para uma maior reflexão prática no que tange à es-tratégia da inferência, selecionaram-se três tiras do escri-tor de histórias em quadrinhos Quino, o argentino Joaquín Salvador Lavado, que em 1964 começou a publicar as histórias de Mafalda, uma menina muito esperta que com menos de oito anos faz análise dos problemas políticos, odeia sopa, quer fazer faculdade (o que não era comum às mulheres da época) e trabalhar na ONU, questiona sua mãe pelo fato de dedicar-se apenas aos cuidados da casa e não ter uma profissão. Enfim, a personagem faz uma relexão cômica e irônica dos problemas e acontecimentos da época em que eram escritos (1964 a 1973), mas que são adequados e atuais para gerar reflexões nos dias de 6 “A principal função do chamado modelo de situação é estabelecer a coerência da rede, o que é feito por meio do preenchimento das lacunas textuais, o que o leitor realiza, ao mobilizar seu conhecimento prévio. Ou seja, é o conhecimento prévio que permite ao leitor produzir inferências, construindo, dessa forma, a representa-ção mental do texto” GABRIEL (2009, p. 06). Ver também MADRUGA (2006, p. 50).

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122 Inferências e compreensão leitora

hoje, misturando o trágico com o cômico, ao passo que diverte e denuncia ao mesmo tempo.

As tiras em questão foram distribuídas para cinco adolescentes cursando a oitava série do Ensino Fundamen-tal (14 e 15 anos) e cinco estudantes do curso de pós-gra-duação em letras (25 a 35 anos), com o intuito de perceber como as variáveis idade e escolaridade poderiam interferir na quantidade e profundidade das inferências.

Solicitou-se que os participantes escrevessem o entendimento que tiveram numa primeira e rápida leitu-ra; posteriormente eles deveriam ler novamente as tiras e relatar de forma escrita as interpretações mais profundas (geradas por um maior número de inferências, com uma maior refexão). Outra solicitação feita foi no sentido de pon-tuarem as palavras ou ícones que serviram de pistas para a compreensão (pistas que auxiliaram o direcionamento das inferências). Importante salientar que a tarefa foi solicitada sem nenhuma atividade de pré-leitura.

Com relação à primeira tira (anexo I) verificou-se que os adolesentes fizeram interpretações literais, ficando num nível apenas linguístico, reproduzindo o escrito na tira, não relacionando-a com acontecimentos sociais e históricos. Não houve nenhuma referência a conflitos estudantis, que seguramente nunca vivenciaram, mas que poderiam ter sido acompanhados na televisão, ou ser fruto de conhecimento de leituras prévias. No momento da realização das inferências, se os adolescentes já possuíam algum tipo de ‘bagagem’ com relação ao tema, estes não foram acionados, seguramente porque não lhes foram relevantes. Já os estudantes mais velhos, certamente com a bagagem de suas leituras e

conhecedores das críticas do autor argentino, puderam remeter-se ao período da ditadura quando os conflitos entre universitários e policiais eram frequentes.

No que tange à segunda tira (anexo II) foi possível perceber que a capacidade de abstração dos adolescentes precisa ser mais trabalhada, visto que a maioria deles, mais uma vez, somente parafraseou o dito na tira, não fazendo inferência crítica com a realidade, o que se percebe na interpretação de um dos participantes do grupo em questão: “A aluna entendeu que a professora estava falando sobre sua própria vida, mas sendo que na realidade ela estava apenas explicando a matéria”.

Em se tratando dessa segunda tira, observou-se que, com o aumento dos conhecimentos prévios, adquiridos paralelamente com as variáveis idade e escolaridade, os estudantes do segundo grupo, mais uma vez, mostraram capacidade inferencial mais elevada, percebendo a intenção de crítica ao sistema educacional vigente.

A capacidade de fazer inferências é condicionada à capacidade de abstração. Para Madruga (2006), a abs-tração é característica do pensamento de adolescentes e adultos, não sendo algo universal, pois é fruto de longos anos de estudos e práticas intelectuais aos quais começa-mos a ser expostos no início dos anos escolares.

Rossa (2002) aborda a questão da experiência lei-tora como determinante na compreensão, entendendo-a como algo treinável:

Quanto mais experientes como leito-res, mais os aprendizes conseguem lembrar e compreender parágrafos

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inteiros, em especial as informações explícitas no texto. Com o treinamento adequado o aluno consegue estabele-cer relações cada vez mais adequadas e profundas e consegue ler as idéias que estão presentes no texto, embora não ditas diretamente. A leitura entre-linhas é mais facilmente treinável a partir de aproximadamente 12 anos de idade... (ROSSA, p. 137).

Com relação à terceira tira (anexo III) verificou-se que as inferências de ambos os grupos geraram interpretações com um mesmo nível de profundidade. Embora mais novos, o grupo de adolescentes conhece as adversidades do mundo, pois as vivenciam, e está diariamente em contato com o discurso da mídia que também as relatam. Conhecer o tema da tira certamente facilitou a interpretação no sentido de comprender que a crítica estava voltada aos problemas do mundo, implicando a descrição do original como um desastre, palavra que fez com que todos os leitores, independente da idade e escolaridade, inferissem em seu sentido negativo que abarca a violência, os desastres ecológicos, os conflitos entre as nações, o abuso de autoridade, os preconceitos, etc. Nesse sentido percebe-se a relevância das experiências significativas na construção das inferências, outro fator que facilita a compreensão.

Através dessa reflexão prática verificou-se que as variáveis idade e escolaridade implicam diretamente a quantidade e a profundidade das inferências trazidas ao texto no momento da compreensão. Conforme o verificado através da análise da terceira tira, percebeu-se

que, além das variáveis acima mencionadas, é mais fácil compreender elementos que condizem com a realidade vivida, visto que estes implicam uma maior significação e consequentemente será gravado na memória do indivíduo, podendo ser resgatado com maior facilidade no momento de fazer inferências durante a compreensão leitora.

Obviamente a quantidade de participantes dessa atividade prática é questionável e não possui um peso relativo capaz de generalizar seus resultados; no entanto, este trabalho objetivou apenas uma pequena amostragem do quanto os conhecimentos prévios que se adquirem no decorrer da idade e da escolarização, assim como os elementos significativos, podem interferir na compreensão leitora.

Conclusão

Através das reflexões aqui apresentadas, que di-recionam a uma visão integrativa do processo de leitura, verificou-se que o significado não está somente no texto, embora seja nele que se encontre o sentido pretendido pelo autor, a completude da compreensão somente se dará quando as ideias do autor se unirem com o conheci-mento de mundo que o leitor trará para o texto. Assim, a compreensão leitora implica autor, texto e leitor.

As diferentes realidades vividas pelos leitores e trazidas ao texto implicarão diferentes maneiras de re-construção do texto, condicionando uma polissemia de sentidos, que se verifica nas diferentes interpretações possíveis. Nesse sentido é impossível entender a leitura apenas como ato de decodificar, visto que o leitor ne-

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cessita inferir para poder extrair as ideias implícitas nas entrelinhas do texto. Quanto mais experiente for o leitor, maior o número de inferências possíveis no processo de compreensão. As experiências são gravadas na memória segundo sua relevância, ou seja, armazenam-se experi-ências segundo o seu grau de significação para o indi-víduo. As inferências jamais ocorrem sozinhas, estando diretamente envolvidas com a predição e com a quanti-dade de esquemas disponíveis na mente do leitor, sendo impossível separar essas noções.

RESUMO – Este artigo faz uma reflexão sobre o processo de compreensão leitora entendendo-o como busca de significado por parte do leitor e não como simples decodificação do código escrito. Nesse sentido abordará a questão da predição e inferências, estratégias de leitura entendidas por Pereira (2009) como “alicerces” da compreensão, discutirá também sobre alguns conceitos relevantes para o entendimento de tais estratégias procurando analisar de forma prática as possíveis inferências em tiras da Mafalda.

Palavras-chave: Leitura. Compreensão. Inferências. Predição. Esquemas.

ABSTRACT – This article reflects on the process of reading comprehension, undestanding this process as the pursuit for meaning by the reader and not simply by decoding the written code. In this sense, the article will address the issue of prediction and inference, which are the reading strategies understood by Pereira (2009) as foundations of

understanding, it will also discuss some relevant concepts to the understanding of such strategies in a practical attempt to analyze the possible inferences in Mafalda comic strips.

Keywords: Reading. Comprehension. Inferences. Prediction. Schemes

Referências

ARAUJO, Denise de Castilhos. A comunicação iconográfico/verbal: Uma análise hermenêutica de Mafalda. 2003, 193fls. Tese (Doutorado em Comunicação Social) – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto alegre, 2003.

GABRIEL, Rosângela; SOUSA, Lucilene. Fundamentos Cognitivos para o Ensino de Leitura. Signo. Santa Cruz do Sul, v. 34 n. 57, p. 47-63, jul.-dez., 2009. Disponível em: http://online.unisc.br/seer/index.php/signo/index, acesso em 24 de novembro de 2010.

GOODMAN, Kenneth S. Unidade na leitura – um modelo psicolinguístico transacional. Letras de Hoje, n. 26, n.4, p. 9-43. Porto Alegre: EDIPUCRS, dez. 1991.

LEFFA, VILSOM J. Aspectos da leitura: Uma perspectiva sociolinguística. Porto Alegre: Sagra- D.C Luzzatto, 1996.

MADRUGA, Juan García: Lectura y conocimiento: Cognición y desarrollo humano. Barcelona: Paidós, 2006.

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125 Elisangela Kipper

PEREIRA, Vera Wannmacher. Predição Leitora e Inferência. In: CAMPOS, Jorge. Inferências linguísticas nas Interfaces. Porto Alegre, EDIPUCRS. p. 10-22, 2009. Disponível em: http://www.pucrs.br/edipucrs/inferencias.pdf. Acesso em outubro de 2010.

______; KRÁS, Cléa Silva Biasi. Compreensão leitora: Uma visão Psicolinguística. Disponível em http://forum.ulbratorres.com.br/2010/mini_texto/miini11.pdf-. Acesso em novembro de 2010.

ROSSA, Adriana Angelim. Uma abordagem cognitiva no aprendizado da leitura. In: PEREIRA, Vera Wannmacher. Aprendizado de Leitura: Ciências e Literatura no Fio da História. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002. p. 129-139.

SMITH, Frank. Compreendendo a leitura: uma análise psicolinguística da leitura e do aprendera ler. Porto Alegre: Artes Médicas, 2003.

ANEXO I:

Fonte: Araujo, 2003, p. 62.

ANEXO II:

Fonte: http://clubedamafalda.blogspot.com/2007_03_01_archive.html

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ANEXO III:

Fonte: http://clubedamafalda.blogspot.com/2007_03_01_archive.html

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Processamento de leitura: cultura digital e processos inferenciais

Daisy Pail1

Fale com a autora

“Food for the mind is like food for the body:

the inputs are never the same as the outputs”.

Marshall McLuhan

Neste artigo serão analisados tweets para ilustrar interface entre teorias linguísticas, ciências sociais e ciências cognitivas, a fim de explanar o processamento de leitura em contexto de cultura digital. A fundamentação teórica do trabalho envolve a Teoria das Implicaturas (GRICE, 1975), Teoria da Relevância (SPERBER & WILSON, 1995), a Teoria do Diálogo (COSTA, 2010) e Esquemas Mentais (JOHNSON-LAIRD, 1983).

Tentar-se-á ilustrar a interface proposta e explicar os processos inferenciais assumindo as hipóteses: i. sem inferências não há compreensão leitora; ii. em cultura digital, o conhecimento prévio ou informações enciclopédicas não precisam existir a priori, pois o conhecimento pode se dar online.

Nas seções 1 e 2 são explicadas, respectivamente, a Teoria das Implicaturas e a da Relevância. Na seção 3, expõe-se qual movimento e qual estratégia de leitura são 1 Possui especialização em Assessoria e Consultoria Linguística (2010) e está cursando mestrado em Linguística pela PUCRS com bolsa do CNPq. Email: [email protected]

pressupostas para mensagens do twitter, enquanto na seção 4 fala-se sobre qual papel os esquemas mentais podem desempenhar nesse tipo de contexto. Na seção 5, aborda-se a teoria em desenvolvimento sobre o diálogo. Na penúltima seção, é explicado o que é cultura digital e quais seriam alguns de seus efeitos sobre a comunicação. Por último são apresentadas as análises do tweets.

1. Teoria das Implicaturas

H.P. Grice parte da diferença entre significado da sentença (presente do modelo de código) e significado do falante, portanto uma abordagem pragmática. No artigo Lógica e Conversação, 1975, Grice apresenta um modelo inferencial de comunicação, segundo o qual o falante dá evidência de sua intenção de provocar certo significado, que será inferido pelo ouvinte com base nas evidências manifestas pelo falante.

Todo enunciado linguístico cria expectativas que guiam o ouvinte para a interpretação. Essas expectativas são descritas no Princípio de Cooperação (PC). Esse é um conjunto de normas que governam o ato comunicativo entre os envolvidos. Ao PC se vinculam máximas conversacionais. A violação (ou não) das máximas permite gerar as implicaturas, que podem ser conversacionais ou convencionais. Em seu modelo inferencial, além das implicaturas, são abordadas as noções de intencionalidade e contexto a partir da ideia de que o que é comunicado vai além do que é decodificado linguisticamente.

Como exemplo, segue o diálogo abaixo:

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128 Processamento de leitura: cultura digital e processos inferenciais

Mel e Ana estão no bar conversando sobre relacionamentos.

(A) Ana: Paulo perguntou por que tu não ligou mais pra ele.

(B) Mel: Se eu quisesse algo tão carente, comprava um cachorro!

Conforme observa Grice, certos diálogos, como esse acima, apresentam duas formas de significação: o significo da sentença e o significado do falante. Para melhor demonstrar isso, os enunciados serão analisados um por vez. Em (A), a primeira é que Paulo perguntou por que (B) não ligou mais para ele e a segunda, implicitada pela primeira, que Paulo e (B) chegaram a ter algum tipo de relacionamento, mas que (B) cortou a ligação entre eles sem muita explicação. O enunciado de (A) leva ao (B), em que a primeira significação é que se (B) quisesse algo carente, compraria um cachorro, implicitando a segunda significação: (B) não ligou mais para Paulo, pois ele é muito carente e B não gosta disso. A segunda significação diz respeito ao que (A) e (B) poderiam entender, mas que não está no dito. Objetivando organizar um sistema que explique esse tipo de significação, Grice apresenta os termos implicitar (implicate), implicatura (implicature) e implicitado (implicatum).

Há dois tipos de implicatura:Implicatura convencional — presa ao significado

convencional das palavras (valor semântico) e aImplicatura conversacional — não está presa ao

valor semântico, sendo determinada por certos princípios básicos do ato comunicativo.

Seguem alguns exemplos de implicatura convencional:a- Ester saiu cedo, mas ainda não chegou.b- Absolute Sandman tem quatro volumes. A Panini lançou o primeiro, portanto deve lançar o segundo em breve.c- Peter é super-herói, mas tem má fama.

Está dito em a. que Ester saiu cedo e que ainda não chegou e implicitado que ela já deveria ter chegado. O que permitiu essa implicatura é o valor convencional de ‘mas’. Da mesma forma ocorre em b. e c., em que através dos conectores se têm as implicaturas, respectivamente: que, uma vez que a Panini lançou um dos volumes, deve lançar os demais e que Peter deveria ter boa fama por ser herói. Nos três casos, a implicatura se deve ao valor convencional das palavras.

Segundo Grice, o outro tipo de implicatura pode ser subdividido em outras duas:

Implicatura conversacional generalizada — quando não depende de um contexto específico e

Implicatura conversacional particularizada — quando depende de um contexto particular.

Como dito, o PC é um conjunto de normas. Esse princípio é sistematizado em torno de quatro categorias fundamentais relacionadas a máximas e supermáximas.

Categoria de quantidade — relacionada com a informatividade. Correspondem a essa categoria duas máximas: a) faça com que sua mensagem seja tão informativa quanto necessária para a conversação; b) não dê mais informações do que o necessário.

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129 Daisy Pail

Categoria de qualidade — diz respeito à veracidade das informações fornecidas. Essa categoria está diretamente relacionada à supermáxima “Procure dizer coisas verdadeiras” e indiretamente a outras duas: a) não afirme o que acredita ser falso; b) não afirme algo para o qual você não possa fornecer evidência adequada.

Categoria de relação — diz respeito à máxima “seja relevante”.

Categoria de modo — relacionada à supermáxima “seja claro” e a máximas como: a) evite obscuridade de expressão; b) evite ambiguidade; c) seja breve; d) seja ordenado.

As implicaturas podem ser geradas em três situações: a) nenhuma máxima é violada, b) uma máxima é violada para que outra não seja e c) violação de uma máxima para obter implicatura conversacional.

Enquanto as implicaturas convencionais são presas ao valor semântico convencional das palavras e reconhecidas pela intuição linguística, as implicaturas conversacionais devem ser calculáveis ou dedutíveis, canceláveis, não separáveis, indetermináveis, não convencionais e não determinadas pelo dito.

2. Teoria da Relevância ― comunicação e cognição

Sperber e Wilson (1995) buscaram explicar como a comunicação humana ostensiva2 se realiza. Em Relevância: comunicação e cognição, os autores apresentaram uma reinterpretação cognitiva do modelo inferencial de Grice.3

2 Ver crítica sobre outras situações em Fábio Rauen e Jorge Campos.3 Apresentado na primeira seção.

Sperber e Wilson (S&W), apoiados em estudos sobre a cognição humana e sobre lógica, partem da hipótese de que o Princípio de Relevância, baseado numa relação de economia e eficiência da informação, faz parte da cognição humana. A partir disto, os autores desenvolveram uma abordagem pragmático-cognitiva de como se processa inferencialmente a comunicação.

Sperber e Wilson (S&W), devido à sua abordagem cognitivo-comunicativa, descrevem outro tipo de inferên-cias: as não-demonstrativas. Essas funcionam na base de suposições que podem ser apenas confirmadas, mas não provadas. Devido ao funcionamento baseado em suposi-ções se pode explicar por que, mesmo nas melhores condi-ções, pode ocorrer falha na comunicação4.

Segundo o princípio cognitivo, a cognição humana tende a se dirigir para a maximização da relevância5. Algo se torna relevante a um indivíduo na medida em que hou-ver equilíbrio entre esforço cognitivo para processamento de informação e efeitos cognitivos conseguidos: (a) quan-to maior é o número dos efeitos cognitivos, maior é a rele-vância; (b) quanto menor é o esforço de processamento, maior é a relevância6.

Os efeitos cognitivos são entendidos como alteração(s) no ambiente cognitivo7 de um indivíduo. Esses efeitos podem ser de fortalecimento das suposições — quando as suposições já existentes são reforçadas através

4 Falha de comunicação significando “mal-entendido”.5 Sperber e Wilson, 2001, p. 11.6 Sperber e Wilson, 2001, p. 11.7 S&W definem o ambiente cognitivo como um “conjunto de suposições manifes-tas em graus diversos” (...). Se as suposições se tornam mutuamente manifestas, tem-se o ambiente cognitivo mutuamente manifesto (...) (SILVEIRA, 2002, p. 28)

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130 Processamento de leitura: cultura digital e processos inferenciais

de mais evidências —, de contradição das suposições — quando há fornecimento de evidências contrárias entre duas suposições, sendo eliminada aquela que tiver menos evi-dências —, e de implicações contextuais – combinação da informação nova com as suposições existentes. Esse último efeito é o que os autores chamam de P em C: a informação nova (P) é processada no contexto de suposições (C) exis-tentes na memória enciclopédica ou advindas do ambiente físico observável para derivar uma nova informação.

Toda e qualquer informação pode servir como pre-missa em um processo inferencial. A escolha de qual é mais relevante dependerá do contexto selecionado, do ambiente cognitivo de um indivíduo e da disponibilidade de informação. As formas de armazenamento de informação são: enciclopé-dica (“informações armazenadas na mente sobre a extensão e a denotação de um conceito: isto é, sobre os objetos, acon-tecimentos e/ou propriedades que o representam”)8, lógica (conjunto de regras dedutivas estáveis e finitas) e lexical (in-formações linguísticas de caráter representacional).

De acordo com Sperber e Wilson (1995), o contexto será uma representação mental formada por suposições. As suposições fatuais podem advir: da percepção, da de-codificação linguística, das suposições e esquemas de su-posições armazenadas na memória, e da dedução.9 Em outras palavras, ele não é dado e sim construído.

Retomando-se o primeiro exemplo (seção 1):Ana: Paulo perguntou por que tu não ligou mais pra ele.Mel: Se eu quisesse algo tão carente, comprava

um cachorro!

8 Sperber e Wilson, 2001, p. 144.9 Sperber e Wilson, 2001, p. 137.

Mel, através dessa afirmação, quis tornar manifesto um conjunto de suposições e premissas. Esse comportamento, tornar manifesta10 a intenção de tornar algo manifesto, é chamado, por S&W, de ato de comunicação ostensiva.

O conjunto de suposições e premissas, nesse caso, será formado a partir do input linguístico ― para fins de demonstração mais rápida, somente o enunciado de Mel será analisado ―:

Premissa implicada 1: Mel e Paulo tiveram pelo menos um encontro.

Premissa implicada 2: Mel não procurou mais por Paulo.

Como emprego de oração subordinada condicional, Mel já dá ao seu enunciado um tom de dúvida sobre querer sair de novo com Paulo. Entretanto, ela implica muito mais, como demonstrado a seguir:

Suposição 1: Paulo é muito carente.Suposição 2: Mel não gosta de carência afetiva.Suposição 3: Cachorros também são carentes.Suposição 4: Mel preferia um cachorro carente a um

Paulo carente.Conclusão implicada: Mel não pretende sair de novo

com Paulo.Suposição 1 é reforçada pelo advérbio de intensidade

‘tão’. Já a suposição 2 é reforçada pela estrutura condicional do enunciado de Mel. As suposições 1, 2, 3 e 4 formam uma implicação contextual, na qual 4 é a informação nova (P) processada num conjunto de suposições antigas (1,2 e 3), permitindo a conclusão implicada.10 Tornar algo manifesto é chamar atenção para algo, ter algo manifesto é estar ciente sobre algo.

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131 Daisy Pail

A ostensão carrega uma garantia tácita de relevância, pois, ao produzir um estímulo, cria no receptor uma expectativa de que é relevante o bastante para merecer atenção. Assim, através de seu enunciado, Mel comunicou a presunção de relevância ótima. É nesse primeiro momento, no qual ocorre um estímulo ostensivo por parte de quem comunica, que o receptor inicia um processo inferencial, sendo a primeira inferência a que vale o esforço para processar a informação fornecida.

3. Processamento de leitura e processos inferenciais

Dentre as estratégias de leitura ― o scanning, o skimming, a seleção, o automonitoramento, a autoavaliação, a autocorreção, a predição e a inferência ― a predição é apontada por alguns autores como a mais importante para a compreensão. Entre esses autores se encontra Smith (2003).

Segundo este autor, a nossa teoria de mundo não é estática, ela se modifica e desempenha papel na previsão e na predição da qual depende o processo de leitura. Ele afirma que predição surge da associação entre previsão (elaboração de questionamentos durante o processo de leitura) e compreensão (respostas a esses questionamentos).

Ainda de acordo com esse autor, a previsão é a responsável por dar ao texto potencial significativo, reduzindo ambiguidades, eliminando alternativas irrelevantes e projetando possibilidades.

Contudo, essa visão de leitura pode ser explicada através de teorias inferenciais, como a de Grice e S&W, pois a elaboração de perguntas e respostas durante a

leitura é resultado de um processo inferencial, no qual o leitor elabora um conjunto de suposições passíveis, nos termos da TR, dos efeitos cognitivos, levando a conclusões implicadas.

Posição semelhante é adotada por Pereira, como se demonstrará a seguir. Para essa autora,

Entre todas as (estratégias de leitura) mencionadas, são mais recorrentes as duas últimas (predição e inferência), possivelmente por constituírem o alicerce do raciocínio de compreensão da leitura. (PEREIRA, 2009, p. 150)

O processamento de leitura ou os movimentos bottom-up e top-down, segundo Pereira (2009), “sofrem a influência de variáveis como o objetivo da leitura, os conhecimentos prévios do leitor, o tipo de texto e os caminhos cognitivos já desenvolvidos por ele”.

Enquanto o movimento bottom-up é caraterizado como um movimento das partes para o todo ― ou seja, uma leitura minuciosa e linear, na qual “todas as pistas visuais são utilizadas” (PEREIRA, 2009) ―, o movimento top-down é não linear, partindo da “macroestrutura para a microestrutura, da função para a forma” (PEREIRA, 2009).

A inferência está sendo assumida como caminho com esforço cognitivo para a predição, com vistas ao benefício da compreensão leitora, o que faz uma aproximação com a Teoria da Relevância (PEREIRA, 2009, p. 152).

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Diferentemente da autora, que considera inferências metalinguísticas e episódicas, se assumirá neste artigo a noção de inferências multiformes, como proposto por Jorge Campos da Costa.

4. Esquemas e modelos

Modelos cognitivos são “estruturas complexas de conhecimentos, que re-presentam as experiências que viven-ciamos em sociedade e que servem de base aos processos conceituais. São frequentemente representados em for-ma de redes, nas quais as unidades conceituais são concebidas como va-riáveis ou slots, que denotam caracte-rísticas estereotípicas (defaults) e que, durante os processos de compreensão, são preenchidas com valores concretos (fillers)”. Assim, quanto mais contato um leitor tiver com a leitura, mais facilidade deverá haver na compreensão do lido (KOCH, 2002, p. 44).

Segundo Smith,

os leitores desenvolvem e necessitam de um grande número de esquemas espacialmente organizados: os gêneros, esquemas para vários tipos de textos que são convencionais (Smith 2003, p. 156).

Segundo Anderson (apud OLIVEIRA, p. 51), há seis funções dos esquemas que podem colaborar na compreensão:

a) o esquema oferece uma estrutura bá-sica e ideal para que seja possível assi-milar a informação do texto;b) o esquema facilita a focalização sele-tiva da atenção;c) o esquema facilita o uso da inferência;d) o esquema favorece a evocação de informações armazenadas na memória;e) o esquema facilita a organização e a sumarização das informações;f) o esquema permite a reconstrução do sentido.

Considerando-se o exposto, os esquemas ofereceriam um número inicial de premissas para o processo inferencial envolvendo a leitura, neste artigo especificamente de tweets.

5. A Teoria do Diálogo

As teorias (Teoria das Implicaturas e Teoria da Relevância) explicitadas são de conteúdo, porém há algo anterior a esse nível que permite e provoca o diálogo: uma tendência natural para a conectividade ― em concordância com a teoria de Darwin. Essa tendência é defendida na teoria em desenvolvimento11 por Costa (2010) sobre o diálogo como Principio da conectividade não-trivial:

11 Não há ainda publicações oficiais sobre a teoria além da que consta nas referências.

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hipótese de sustentação da presente abordagem (é) que deve existir uma tendência inata para a conectividade não-trivial ― ser uma conexão não apenas mecânica, mas interativa e criativa, entendida como comunicação humana básica. Nesse sentido, a pri-meira expressão de tal princípio é o de que ele se expressa através de uma linguagem especial, humana, e a se-gunda é que ele representa, de manei-ra geral, compromissos informativos não redundantes.

O diálogo é assumido como unidade básica de comunicação social, na qual o bilateral é a forma mais elementar. Porém, em cultura digital o diálogo é bilateral apenas na relação homem-máquina, pois em sua realização ele é realizado entre muitas pessoas12. Este tipo de diálogo foi cunhado por Costa (2009) como virtuálogo.

De acordo com Costa (2010), “a estrutura significativa do Diálogo envolve aspectos lexicais, sintáticos, semânticos e pragmáticos”. Esses aspectos desempenham papel importante em todos os níveis de articulação do diálogo e também para proporcionar condições de veracidade.

Um entrave para o estudo das condições de verdade em uma interface entre lógica strictu senso e linguagem natural é a aceitação existente de argumentos falaciosos. Strawson viu, na “conexão entre significado e intenção, binômio capaz de preencher a lacuna aberta pelo tratamento puramente lógico das condições

12 Não se dispõe aqui de dados sobre esses números.

de veracidade das proposições” (apud COSTA). Contudo, Costa (2010) entende que há diferença entre potencialidade para condições de verdade e condições de verdade. Com a finalidade de eliminar esse problema, é assumido o conceito de condições de veracidade que se realizam nas condições de boa formação sintática, de boa formação semântica e de adequação pragmática. Além disso, as condições de veracidade são uma verdade provisória ou online.

Há pelo menos quatro níveis de articulação para descrição do diálogo, quais sejam: o dito explícito, o dito implícito, o intencional e o inferencial.

O contexto codificado semanticamente no dito é relacionado com o dito implícito. Este é pressuposto pelo contexto. No dito implícito não é feito cálculo inferencial para a recuperação dessas informações, pois o dito explícito é que ficou econômico.

Por exemplo, voltando ao pequeno diálogo de Ana e Mel:

Ana: Paulo perguntou por que tu não ligou mais pra ele.

Mel: Se eu quisesse algo tão carente, comprava um cachorro!

O dito explícito é somente o expresso no enunciado de ambas, já o dito implícito ― entre colchetes ― em Ana é “Paulo perguntou [para mim, Ana] por que tu [Mel] não ligou mais para ele [Paulo]” e em Mel é “Se eu [Mel] quisesse algo tão carente [como Paulo], comprava um cachorro [que é tão carente quanto Paulo]”.

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O intencional, ligado ao emocional, guia um diálogo afetando o inferencial. “Dada uma certa intenção, o significado dialógico é obtido pela interatividade das subpartes” (COSTA, 2010).

Supondo-se que no exemplo acima a intenção de Ana não fosse apenas saber por que Mel não telefonou mais para Paulo, mas saber se a outra ficaria chateada caso viesse a se relacionar com aquele. Então, a conclusão implicada no enunciado de Ana seria outra que não apenas a curiosidade.

Apesar de as teorias de Grice e S&W considerarem a intencionalidade, a TR não abarca situações nas quais o princípio de relevância é contrariado. Essas situações são descritas por Costa e Rauen (2009) e podem ser justificadas, segundo os autores, pela hipótese da conectividade não trivial, assumida aqui para melhor explicitar os tweets escolhidos.

6. Cultura digital e twitter

Desde a criação da World Wide Web, por Tim Berners-Lee em 1989, a mudança iniciada pela computação se acelerou e se globalizou. E como “qualquer nova tecnologia de transporte ou comunicação tende a criar seu respectivo meio ambiente humano” (McLUHAN, 1979), se tem hoje uma verdadeira cultura digital, na qual estamos conectados através de diferentes meios.

“A nova interdependência eletrônica recria o mundo à imagem de uma aldeia global” (McLUHAN, 1979), pois permite ao homem estar em mais de um lugar, aumentando seu alcance geográfico e tornando-o representante

de “comunidades inteiras em estado de conexão”, nas palavras de Costa.

Nessa concepção, os chamados meios se tornam “infovias com efeitos impressionantes ao nível do movimento das massas, da ocupação de espaços, da integração sociocultural, da globalização econômica, etc” (COSTA13). A distinção antes existente entre forma e conteúdo se desfaz, como vaticinado por McLuhan em The médium is the mas-sage (1969). Segundo essa concepção, o meio faz parte da mensagem, uma vez que a importância recai sobre o como, e não mais apenas no que, e esta (a mensagem) produz na massa um efeito semelhante ao de massagem modeladora ao mesmo tempo em que o meio valoriza a era da massa.

De acordo com Costa,

o interessante de se considerar é que estamos num mundo digital, somos inforgs, tipos conectados numa infosfera dentro da biosfera e interagindo com ela, e, ainda, não temos resposta para o conceito elementar de fatos (COSTA, 2010, p.7).

Porém, apesar de não termos essa resposta não é possível ignorar que a cultura digital necessita passar por investigações para elaboração de educação para essa nova concepção. Supondo-se, como proposto por Costa,

que, ao invés de uma microvisão sobre os meios, a interface a ser estabeleci-da seja com uma visão mais ampla das

13 http://www.jcamposc.com.br/textos_para_as_disciplinas.html

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Ciências Sociais. Nessa direção, antes do que conteúdos, as redes comuni-cativas representam em si mesmas o centro das atenções, já não modeladas pelo microângulo cognitivo.

Conforme Costa,

o meio em si tem sido identificado com o suporte material, entidade física, enquanto o conteúdo veiculado tem sido apresentado como entidade abstrata, talvez psicológica ou cognitiva, de natureza não típica, em oposição ao suporte que o transporta (COSTA, 2010, p.8).

Modelos como de Shannon e Weaver (modelo de códigos) e de Sperber e Wilson (inferencial) consideram meio e conteúdo de forma separada, ocupando-se apenas do segundo. Entretanto, dentro do quadro esboçado nesta seção, conforme Costa, o universo da comunicação

assume uma visão não-dualista na direção de uma semiótica das materialidades em que as redes, estruturas e conexões estão no centro das investigações. Isso instaura, então, uma outra perspectiva analítica das comunicações, em que a natureza dos meios passa a ter o papel sociocultural mais relevante.

Este artigo é uma tentativa de dar um passo a essa perspectiva. Como ilustração da tentativa dessa interface, serão analisados alguns tweets, mensagens da rede social twitter. O twitter foi criado em 2006 por Jack Dorsei. Suas mensagens são limitadas a 140 caracteres, assim afetando não só a forma, mas também a mensagem.

7. Processos inferenciais em contexto de cultura digital

Apesar de se assumir que os tweets constituem um virtuálago, nos termos de Costa (2009), alguns deles serão analisados separados dos demais, como é o caso dos três primeiros. Se há uma tendência natural para a conectividade não-trivial (COSTA, 2010), então se pode dizer que, trivializando um pouco o conceito de S&W (1995), o primeiro benefício será o da conexão através da interação. Os tweets serão processados dentro do esquema já existente para o twitter, se e somente se não se tratar de novo usuário. Nesse caso, se novo usuário, então o processamento será do esquema origem para o esquema alvo.

Assumindo-se não ser esse o caso, as seis funções dos esquemas, apontadas por Anderson, oferecem a estrutura básica dos tweets: o ponto para o qual deve dirigir a sua atenção, a evocação ou busca de informações ― como a hipótese apresentada na Introdução ―, a organização e a reconstrução de sentido. Essas funções facilitam o movimento top-down.

Os processos inferenciais serão demonstrados pela teoria do Diálogo, pela teoria das Implicaturas, para as quais serão considerados os seguintes conceitos da TR: princípio

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da relevância, ambiente cognitivo, efeitos cognitivos e entradas de informação.

Neste tweet se tem uma implicatura conversacional particularizada a partir da quebra da máxima de modo.

Fonte 1 - http//:www.twitter.com

Relacionado com o dito explícito se tem o dito implícito demonstrado entre colchetes:

“Cinco traficantes foram passear, além do Complexo [do alemão] para brincar, o BOPE [Batalhão de OPerações Especiais] falou, pá pá pá pá... E nenhum traficante voltou de lá [Complexo do Alemão]”.

Através das entradas lexicais abaixo são acionadas as seguintes entradas enciclopédicas:

‘Complexo do Alemão’: território dominado por traficantes;

‘BOPE’: tem histórico de extrema violência, incluindo execuções.

Por meio disso é possível fazer as seguintes suposições:

S1 Os traficantes não possuíam inimigos em seu território;

S2 O BOPE usou força bélica para enfrentar os traficantes;

S3 Dizer que alguém não voltou de um confronto bélico é implicar que este morreu.

Conclusão implicada: O BOPE matou os traficantes.A S1 é gerada a partir de ‘brincar’, no primeiro verso,

devido à despreocupação que brincar acarreta. Já S2 é gerada através da onomatopeia ‘pá pá pá pá’ que indica, dentro do contexto do tweet, disparos de armas de fogo. Essa suposição reforça a subsequente que permite a conclusão implicada.

Através da estrutura e da sequência fonética é acionada a entrada enciclopédica referente à

música infantil da Xuxa. Para demonstrar isso, será posto entre colchetes o que foi modificado ao lado de seu original em negrito.

“Cinco patinhos [traficantes] foram passear, além da montanha [do Complexo] para brincar, a mamãe chamou [falou]: quá, quá, quá, quá [pá pá pá pá], mas [e] nenhum patinho [traficante] voltou de lá”.

Houve quebra intencional da máxima de modo para gerar, além da conclusão implicada, um efeito de paródia, conseguido através da associação de música infantil com um quadro de violência.

No tweet abaixo, o esquema existente para análise de gênero fará parte da paródia. Em algumas redes sociais é exibido o complemento ‘sorte do dia’ que é utilizado para gerar uma implicatura conversacional particularizada através da aparente quebra da máxima de relação ― no entendimento de Grice: manutenção do tópico.

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Fonte 2 - http://www.twitter.com

Assim como no primeiro tweet analisado, o dito implícito será posto entre colchetes:

“Sorte do dia [25 de novembro de 2010]: “Você [leitor] não mora na Vila Cruzeiro [do Rio de Janeiro, capital] e nem no Complexo do Alemão [do Rio de Janeiro, capital]””.

A entrada lexical ‘sorte’ é relacionada a algo bom, enquanto ‘dia’ se refere ao dia da invasão da Vila Cruzeiro e vésperas da invasão do Complexo do Alemão pelo exército e pelas polícias civil e militar.

O tweet corresponde à informação nova processada em um contexto de informações antigas, acionadas pelas entradas enciclopédicas referentes à ‘Vila Cruzeiro’ e ao ‘Complexo do Alemão’. Nesse exemplo, as suposições podem ser:

S1 Algo bom vai ou está acontecendo;S2 Haverá confronto entre polícia e exército contra

os traficantes da Vila Cruzeiro e do Complexo do Alemão;S3 Esses lugares serão zona de batalha;S4 Pessoas inocentes que morarem lá podem

ser feridas.Conclusão implicada: Quem não morar na Vila

Cruzeiro e no Complexo do Alemão pode se considerar agraciado pela sorte do dia.

Com a aparente quebra da máxima de relação foi gerado um efeito sarcástico, podendo ser este considerado o benefício: a percepção do sarcasmo.

No tweet que segue, também ocorre aparente quebra da máxima de relação por não mencionar a

invasão da Vila Cruzeiro e do Complexo do Alemão.

“Ibope informa que [o time de futebol] flamengo tem a maior torcida [de futebol] do Brasil. BOPE informa que amanhã [depois da invasão Vila Cruzeiro e do Complexo do Alemão pelo BOPE] não terá mais”.

A entrada lexical ‘flamengo’, além de se referir ao time de futebol, permite acesso à entrada enciclopédica referente à ligação entre a concentração de torcedores desse time e essas comunidades. A entrada enciclopédica ‘BOPE’, dentro do contexto do Rio de Janeiro no dia 26 de novembro de 2010, também se refere ao histórico de violência, com casos de execução. As suposições que podem vir a ser geradas a partir desse conjunto de informações são:

S1 O maior número de torcedores do Flamengo se encontra no Complexo do Alemão;

S2 Há muitos traficantes no Complexo do Alemão;S3 Os traficantes torcem para o Flamengo;

Fonte 3 - http://www.twitter.com

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S4 O BOPE invadirá o Complexo do Alemão;S5 O BOPE matará muitos traficantes.Conclusão implicada: O Flamengo não terá mais

a maior torcida do Brasil, pois o BOPE matará muitos de seus torcedores.

O benefício, nesse caso, se encontra na compreensão do humor negro.

No conjunto de tweets abaixo é gerada uma implicatura conversacional generalizada a partir da quebra da máxima de quantidade.

Fonte 4 - http://www.twitter.com

Explicitando o dito implícito entre colchetes, o tweet ficará assim:

“Qual a semelhança entre Casseta e Planeta [programa humorístico da Rede Globo no ar há 19 anos] e essa piada [que estou contando agora]? R: Nenhum dos dois [Casseta e Planeta e essa piada] tem mais graça”.

Através do input linguístico ‘Casseta e Planeta’ é acionada a entrada enciclopédica sobre o programa. Este está no ar há quase duas décadas e há muito perdeu seu caráter crítico, se focando apenas em parodiar a novela

das nove horas. A partir da quebra de máxima de quantidade através do retweeted da piada é possível as seguintes suposições:

S1 Quando a piada é repetida muitas vezes, ela perde a graça;

S2 Casseta e Planeta tornou-se repetitivo.Nesse caso a conclusão implicada é que

Casseta e Planeta não é mais atrativo enquanto programa humorístico.

Apesar de nenhum dos exemplos serem passíveis às condições de verdade, todos possuem condições de veracidade: boa formação sintática, boa formação semântica e, principalmente, adequação pragmática. Devido a essas características os tweets são aceitos como possíveis e verossímeis.

Considerações finais

Tentou-se demonstrar aqui como e por que foi assumido que processos inferenciais estão na base

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da compreensão leitora, sem eles não se chegaria às conclusões implicadas e consequentemente ao sentido dos tweets. Os processos inferenciais foram demonstrados de maneira superficial, haveria outros níveis para serem incluídos na ilustração da interface, mas estes tornariam a explicação muito extensa.

Apesar de o valor informativo dos tweets ser muito baixo, o principal benefício é a satisfação do princípio da conectividade não-trivial, todos buscavam a criatividade e a interatividade. Outro ponto a ser acrescido às observações é que o próprio custo parece se realizar como parte do benefício por misturar elementos linguísticos e extralinguísticos, tais como a repetição.

Embora as entradas enciclopédicas tenham sido descritas como existentes a priori, elas não são assumidas como necessárias, visto que, por se tratar de rede social de cultura digital, é pressuposto que o leitor esteja conectado a web. Se assim for, as informações necessárias para compreensão podem ser adquiridas online, isto é, no momento da leitura. Isso, claro, se se considerar que o leitor não esteja sendo guiado pelo baixo custo.

Por último, cabe lembrar a frase de McLuhan: “the medium is the massage”, pois o próprio meio e estrutura serviram para a elaboração das suposições, como demonstrado nas análises.

RESUMO – Neste artigo é apresentada uma tentativa de explicitar o processamento de leitura em contexto de cultura digital através de uma interface entre linguística e ciências cognitivas. A interface, mais especificamente, é entre a

Teoria de Implicaturas, a Teoria da Relevância, a Teoria do Diálogo e a Teoria de Modelos Cognitivos. São assumidas, neste artigo, as hipóteses: i. sem inferências não há compreensão leitora, ii. em cultura digital, o conhecimento prévio ou informações enciclopédicas não precisam existir a priori, pois o conhecimento pode se dar online. Para demonstração do processamento inferencial, foram escolhidos alguns tweets e estes analisados de acordo com a interface criada.

Palavras-chave: Processamento de Leitura. Processos Inferenciais. Teoria das Implicaturas. Teoria da Relevância. Teoria do Diálogo. Esquemas Mentais.

ABSTRACT – This paper presents an attempt to explain the process of reading in the context of digital culture through an interface between linguistics and cognitive sciences. The interface, more specifically, will be among the theory of implicatures, Theory of Relevance, theory of dialogue and theory of cognitive models. The following assumptions will be assumed in this paper: i. there is no reading comprehension without inference, ii. in digital culture, prior knowledge or encyclopedic information do not need toexist a priori, since knowledge can take place online. To demonstrate the inferential processing, we chose some tweets and they were analyzed according to the interface created.

Keywords: Read Processing. Inferential Processes. Theory of Implicatures. Relevance Theory. Theory of Dialogue. Mental Schemes.

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Uma discussão sobre estratégias metacognitivas em leitura na escola

Kelli da Rosa Ribeiro1

Fale com a autora

Cada dia mais, nós, professores de Língua

Portuguesa, temos a necessidade de contribuir para o desenvolvimento da competência de leitura nos estudantes de Ensino Fundamental e Médio, para que se tornem cidadãos capazes de exercer sua cidadania em qualquer situação que a sociedade lhes impõe. Assim, torna-se indispensável que a finalidade do ensino de língua materna seja leitura e produção de textos de diversos gêneros que tenham relevância social.

Pensando nessas questões de ensino, iniciamos esse artigo com os seguintes questionamentos: como formar leitores, como despertar o aluno para a importância e, principalmente, para o prazer na leitura? Estas são talvez as problemáticas mais levantadas nos últimos tempos tanto nas escolas quanto nas academias.

Dessa forma, escolhemos para fundamentar nossas reflexões sobre leitura a corrente teórica da Psicolinguística, levando em consideração a sua preocupação com os processos que envolvem atividade de leitura e compreensão. Assim, esse trabalho tem por objetivo oferecer subsídios teórico-práticos sobre estratégias metacognitivas que são

1 Mestranda em linguística pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Email: [email protected]

mobilizadas na compreensão leitora de textos, observando vários aspectos que constituem a leitura no momento da construção de sentidos de um texto.

Trataremos desses subsídios, a partir da reflexão e sistematização metodológica do instrumento Escala de estratégias metacognitivas de leitura, utilizado em pesquisa por Joly e Marini (2008) no artigo A leitura no Ensino Médio e o uso das estratégias metacognitivas2. A partir das bases teóricas apresentadas e das informações da escala apresentada pelas autoras, formularemos alguns procedimentos norteadores de atividades de leitura em sala de aula.

Visando cumprir tais metas o presente artigo está dividido em três seções seguidas das considerações finais. A primeira traz algumas considerações sobre a Psicolinguística e sua contribuição para a área das pesquisas em leitura. A segunda mostra noções de leitura e estratégias metacognitivas fundamentadas na corrente teórica da Psicolinguística. A terceira seção, com base em pesquisa realizada sobre estratégias metacognitivas em leitura, tenta dar alternativas de questões que ajudem os professores na condução da atividade de leitura.

A proposta da Psicolinguística: breves considerações

Conforme Cabral (1991), foi o impacto da Segunda Guerra Mundial que desencadeou a “necessidade de desenvolver o conhecimento sobre os sistemas de comunicação”. Surge, então, dessa necessidade, uma 2 Artigo publicado na revista Estudos e pesquisa em psicologia da UERJ, RJ, ano 8, n2, pg. 505-522, 1º semestre de 2008.

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possibilidade de unir as descobertas e os avanços de pesquisas da área da Psicologia e da Linguística no sentido de entender os processamentos da linguagem e a mente.

Assim, por volta dos anos 50, nasce a Psicolinguística enquanto disciplina autônoma, tendo como principal objeto de estudo os processos cognitivos e psicológicos subjacentes à produção e compreensão da linguagem verbal. Segundo Leitão (2008), o principal interesse dessa disciplina pode ser resumido em três pontos, tais como: modo de aquisição da linguagem verbal, modo de produção da linguagem e a compreensão da mesma.

Alguns autores merecem destaque no surgimento da Psicolinguística. É com as ideias inatistas de Noam Chomsky que a disciplina dá seus primeiros passos, pois, se baseando na ideia de que a faculdade da linguagem é inata na mente humana, os pesquisadores da área se posicionam contra o modelo estruturalista de Ferdinand Saussure para quem a linguagem era essencialmente um fato social.

Nesse sentido também se direcionavam as reflexões de Humboldt que se preocupava basicamente com a relação entre os processos mentais e o comportamento verbal. Scliar-Cabral (1991) salienta que Humboldt fazia distinção entre dois aspectos da linguagem: ergon (produto) e energeia (processo). Resumidamente, ergon passa a ser o objeto da linguística de Saussure e a energeia passa a ser o objeto da Psicolinguística.

Vale ressaltar, nesse espaço de breves considerações sobre a Psicolinguística, as importantes contribuições de J. Piaget e L. Vygotsky para o desenvolvimento das pesquisas.

Esses dois grandes pensadores socioconstrutivistas se preocupavam com o desenvolvimento das estruturas mentais e como isso influi no desenvolvimento do indivíduo.

Os dois estudiosos partiam de pontos diferentes para explicar essa questão: Piaget utilizava uma abordagem epistemológica e Vygotsky uma abordagem genética. Enquanto Piaget acreditava que o conhecimento se constrói através da ação do sujeito sobre o objeto, ou seja, na interação homem-meio, sujeito-objeto, Vygotsky afirma que é na família e nas diversas relações e interações sociais que o sujeito adquire o conhecimento. Uma importante contribuição para a Linguística proposta por Vygotsky é que a relação entre homem e mundo é uma relação mediada, na qual, existem elementos que auxiliam a atividade humana. Estes elementos de mediação são os signos e os instrumentos.

Como não é função deste trabalho pormenorizar e aprofundar as propostas de cada teórico fizemos apenas um panorama geral do terreno no qual nasce e frutifica a atual disciplina chamada de Psicolinguística. Passemos à próxima seção que abordará questões de leitura e estratégias, foco deste trabalho.

Leitura e estratégias

Como este artigo tem por objetivo refletir sobre os processos de leitura relacionados ao ensino-aprendizagem de língua materna, é pertinente trazer para nossas reflexões noções de leitura que constam em documentos oficiais brasileiros.

Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN’s) de

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Língua Portuguesa do terceiro e quarto ciclos do Ensino Fundamental trazem uma proposta de tratamento didático a vários conteúdos dessa disciplina. Segundo esse documento

a leitura é o processo no qual o leitor realiza um trabalho ativo de compreensão e interpretação do texto, a partir de seus objetivos, de seu conhecimento sobre o assunto, sobre o autor, de tudo que sabe sobre a linguagem (PCNs: p. 69)

Dessa forma, não podemos conceber uma ideia de leitura como mera e simples decodificação de letra por letra, palavra por palavra, a fim de extrair as informações do texto. Mais do que isso, “trata-se de uma atividade que implica estratégias de seleção, antecipação, inferência e verificação, sem as quais não é possível proficiência3”. Assim, podemos entender que muitos alunos não leem de forma competente, porque não lhes são dados os instrumentos necessários para o ato da leitura.

Além disso, a Lei de Diretrizes e Bases (LDB) determina que o Ensino Fundamental tenha por objetivo a formação básica do cidadão, “mediante o desenvolvimento da capacidade de aprender, tendo como meios básicos o pleno4 domínio da leitura, da escrita e do cálculo”. (Artigo 32 – inciso I)

Percebemos em tais documentos ideias de leitura como processo ativo e por meio da qual a aprendizagem em geral é possibilitada. Desse modo destacamos que a 3 Grifo meu. O trecho citado se encontra na página 69 dos PCNs.4 Grifo meu

leitura é um fenômeno complexo e dinâmico, pois mobiliza vários mecanismos de apreensão e compreensão do que está sendo lido.

Segundo Kato (1985), o processo de leitura pode ser entendido como um conjunto de habilidades que envolvem estratégias de vários tipos. Em tais habilidades, como, por exemplo, encontrar parcelas significativas do texto, estabelecer relações de sentido, coerência e de referência entre certas partes do texto, avaliar a verossimilhança e a consistência das informações e inferir o significado, bem como o efeito pretendido pelo autor, o leitor utiliza esquemas.

Esses esquemas conduzem o percurso da leitura e, segundo Kato (1985), podem ser ativados basicamente de duas formas: de um lado temos o processamento top-down, que é uma leitura realizada do todo para as partes, ou seja, de maneira descendente. Por outro lado, verificamos o processamento bottom-up, uma leitura feita em caminho inverso em relação ao da anterior, isto é, das partes para o todo (caminho ascendente).

Interessante observarmos que há dois tipos de estratégias de leitura. Ao lado das estratégias metacognitivas estão as estratégias cognitivas, ou seja, princípios que regem o comportamento automático e inconsciente do leitor. Já as estratégias metacognitivas são princípios que regulam a desautomatização consciente das estratégias cognitivas (KATO, 1985: 102).

Kato (1985) destaca algumas estratégias em leitura que corroboram as estratégias apresentadas na escala utilizada por Joly e Marini (2008). São elas: esclarecer os propósitos da leitura; identificar aspectos da

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144 Uma discussão sobre estratégias metacognitivas em leitura na escola

mensagem que são importantes; distribuir a atenção para que haja mais concentração nos conteúdos principais; monitorar as atividades em processo para verificar se ocorre compreensão; revisar se os objetivos estão sendo atingidos; adotar ações corretivas quando se detectam falhas na compreensão; prevenir-se contra truncamentos e distrações. Estas estratégias são autodirigidas e estão no nível da metacognição, ou seja, quando o indivíduo monitora conscientemente sua atividade.

Importante sublinhar que, para as estratégias metacognitivas terem êxito no ensino de leitura, é necessário serem traçados objetivos para a leitura. Dessa forma, cada estratégia será utilizada tendo em vista um objetivo específico de leitura e isso acontece nas mais variadas situações da vida cotidiana. Nessa perspectiva, Solé (1998) aponta alguns objetivos que podem auxiliar o professor de língua materna a organizar a atividade de leitura na escola, dentre os quais destacamos:5

• ler para obter uma informação precisa: consiste em localizar no texto alguma informação que interessa ao leitor, como por exemplo, a busca de uma palavra no dicionário;

• ler para obter uma informação de caráter geral: é uma leitura guiada e mais aprofundada, como por exemplo, a consulta a materiais específicos para a elaboração de trabalho acadêmico;

• ler para aprender: é a busca de ampliação dos conhecimentos, através da leitura de um texto, como

5 Esses objetivos foram extraídos de Solé (1998: 93 a 99)

por exemplo, a leitura de textos para estudar, em que se fazem anotações, sublinham-se partes importantes do texto, estabelecem-se relações com outros textos;

• ler para revisar um escrito próprio: é a revisão do próprio texto para verificar se ficou adequado para transmitir o significado que o levou a ser escrito;

• ler por prazer: experiência individual e subjetiva do leitor, sendo que muitas vezes o texto literário é o mais utilizado em leituras de lazer;

• ler para comunicar um texto a um auditório: a leitura prévia é uma ação indispensável nesse caso;

• ler para verificar o que se aprendeu: ler para verificar a compreensão parcial ou total do texto.

Solé (1998) ainda aponta outros aspectos que são de fundamental importância para o entendimento do texto. Corroborando as tabelas que serão mostradas na seção seguinte com as estratégias metacognitivas globais, de suporte à leitura e solução de problemas, a autora pontua que o professor deve explorar os conhecimentos prévios do aluno e isso aconteceria antes e depois da leitura.

Além disso, antes da leitura o professor pode explorar um mecanismo de previsões sobre o que diz o texto. Segundo Solé (1998) muitas vezes “só com a leitura do título e dos subtítulos é possível imaginar o que vamos encontrar no texto”.

Nessa perspectiva, na próxima seção, abordaremos questões práticas seguidas de reflexões teóricas. Sistematizaremos em duas tabelas o instrumento utilizado por Joly e Marini (2008) e estabeleceremos alguns princípios

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145 Kelli da Rosa Ribeiro

norteadores na elaboração da atividade de leitura.Da teoria à prática: sistematização para fins metodológicos

É função da escola a formação de cidadãos proficientes em sua língua materna. E, sobretudo, o professor de Língua Portuguesa tem destaque no direcionamento de atividades que desenvolvam a competência em leitura. Por isso, a instrumentalização do aluno através do ensino de estratégias de leitura permite que ele seja cada vez mais autônomo e perspicaz nas diversas leituras que faz na sociedade.

É nessa direção que segue o artigo de Joly e Marini (2008), que teve como principal objetivo identificar a frequência de uso de estratégias metacognitivas de leitura por estudantes de Ensino Médio, levando em consideração a variável idade, gênero, série, turno e rede de ensino frequentada. Ao todo,

Estratégias metacognitivas globais Estratégias metacognitivas de suporte à leitura

Estratégias metacognitivas de solução de problemas

Fazer perguntas sobre o conteúdo do texto

Ver como é a organização do texto

Organizar um roteiro para ler

Levantar hipóteses sobre o conteúdo do texto

Fazer comentários críticos sobre o texto

Opinar sobre as informações do texto

Relacionar o assunto com conhecimento prévio

Grifar o texto para destacar informações

Fazer anotações ao lado do texto

Fazer anotações sobre o texto

Interpretar o que autor quis dizer

Escrever com as próprias palavras

Fazer lista dos tópicos mais importantes

Parar de ler para ver se estou entendendo

Reler trechos quando tenho dificuldade

Reler em voz alta os trechos que não compreendeu

Voltar e ler alguns parágrafos

Verificar se as hipóteses que fiz estão certas ou erradas

Consultar o dicionário

participaram da pesquisa 641 estudantes de escolas públicas e particulares, com idades entre 14 e 17 anos. Os resultados mostraram que das estratégias metacognitivas globais, de suporte e de solução de problemas, a mais solicitada é a de solução de problemas. Além disso, é durante a leitura que as estratégias são mais utilizadas.

Com base nas informações contidas no estudo feito pelas autoras sistematizaremos a escala que possui 39 estratégias de leitura, de forma que fiquem claro, em um quadro, quais estratégias metacognitivas são globais, de suporte e solução de problemas. Em outro quadro mostraremos quais estratégias são mais adequadas antes, durante e depois da leitura. Cabe destacar que será uma sistematização metodológica e didática, pois sabemos que as estratégias ocorrem sem fronteiras tão delimitadas. Analisemos o primeiro quadro.

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146 Uma discussão sobre estratégias metacognitivas em leitura na escola

É evidente que o estudante de Ensino Fundamental e Médio não utilizará tais estratégias se não for trabalhado e preparado para tal. Cabe ao professor juntamente com a turma o direcionamento, aos poucos, dessas estratégias. Importante notar que é, necessariamente, o objetivo de leitura e o gênero que conduzirão as escolhas estratégicas mais adequadas. Por exemplo, se o aluno deve falar aos colegas sobre as principais informações de uma notícia policial a estratégia metacognitiva de solução de problemas “ficar atento aos nomes, datas, épocas e locais” torna-se indispensável.6

O professor pode e deve participar ativamente de algumas estratégias e, inclusive, consideramos que algumas

66Dependendo do gênero que se está lendo.

Quadro 1 – Estratégias metacognitivas

Deduzir informações do texto

Ler com atenção e devagar

Reler trechos para relacionar as informações

Questionar o texto para entendê-lo melhor

Fazer suposições sobre o significado de um trecho

Diferenciar as informações da opinião do autor

Identificar se fez hipóteses corretas

Fazer um resumo do texto

Fazer um esquema do texto

Copiar os trechos mais importantes

Listar as informações que entendi

Fixar a atenção em determinados trechos do texto

Ler novamente os trechos para fazer relações

Analisar se as informações são lógicas

Concentrar-se na leitura quando o texto é difícil.

Ficar atento aos nomes, datas, épocas e locais6

Ler em voz alta quando o texto é difícil

Pensar por que fez suposições certas e erradas

Relembrar os principais pontos

Verificar se atingiu o objetivo

estratégias dependem dele para que o aluno aprenda a usá-las. É o caso da estratégia metacognitiva global “organizar um roteiro para ler” apontada no quadro 1. Tal estratégia exige que os primeiros roteiros sejam preparados pelo professor e que gradativamente a tarefa seja desempenhada pelo estudante.

Assim também é a estratégia metacognitiva de solução de problemas “consultar o dicionário”. É através do auxílio do educador que o aluno desenvolverá a capacidade de procurar as palavras no dicionário quando lhe surge uma dúvida no momento da leitura. Outro exemplo de auxílio do professor é quando se estabelece o objetivo de ler para pesquisar algum tema determinado, as estratégias utilizadas podem ser “ler com atenção e devagar” que é uma estratégia metacognitiva global, “ler novamente os trechos para fazer relações” que

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147 Kelli da Rosa Ribeiro

é uma estratégia metacognitiva de solução de problemas. Além disso, para o objetivo de pesquisa também é possível usar estratégias de suporte à leitura como “copiar os trechos mais importantes” e “listar as informações que entendeu” para dar suporte ao futuro texto do aluno-pesquisador.

Podemos ainda supor que o professor separe um tempo das aulas para o objetivo de ler por prazer. Assim, as estratégias metacognitivas globais “fazer comentários críticos sobre o texto”, “opinar sobre as informações do texto” e “relacionar o assunto com conhecimento prévio”

ajudam numa possível discussão com os colegas sobre o que cada estudante leu. O professor pode aproveitar esta tarefa de leitura de escolha pessoal e prazerosa de um texto e solicitar que a turma faça um resumo do texto, para que um tenha conhecimento do que outro gosta de ler.

Vejamos no segundo quadro como podemos organizar as estratégias metacognittivas globais, de suporte à leitura e solução de problemas em estratégias que podem ser utilizadas antes, durante ou depois da leitura:

Estratégias utilizadas antes da leitura Estratégias utilizadas durante a leitura Estratégias utilizadas depois da leitura

Fazer perguntas sobre o conteúdo do texto

Ver como é a organização do texto

Organizar um roteiro para ler

Levantar hipóteses sobre o conteúdo do texto

Fazer comentários críticos sobre o texto

Opinar sobre as informações do texto

Parar de ler para ver se estou entendendo

Reler trechos quando tenho dificuldade

Reler em voz alta os trechos que não com-preendi

Voltar e ler alguns parágrafos

Verificar se as hipóteses que fez estão certas ou erradas

Grifar o texto para destacar informações

Fazer anotações ao lado do texto

Fazer anotações sobre o texto

Interpretar o que autor quis dizer

Relembrar os principais pontos

Verificar se atingiu o objetivo

Escrever com as própriaspalavras

Fazer lista dos tópicos mais importantes

Fazer um resumo do texto

Fazer um esquema do texto

Copiar os trechos mais importantes

Listar as informações que entendeu

Identificar se fez hipóteses corretas

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148 Uma discussão sobre estratégias metacognitivas em leitura na escola

Estratégias utilizadas antes da leitura Estratégias utilizadas durante a leitura Estratégias utilizadas depois da leitura

Consultar o dicionário

Fixar a atenção em determinados trechos do texto

Ler novamente os trechos para fazer relações

Relacionar o assunto com conhecimento prévio

Deduzir informações do texto

Analisar se as informações são lógicas

Concentrar-me na leitura quando o texto é difícil.

Ficar atento aos nomes, datas, épocas e locais

Ler em voz alta quando o texto é difícil

Quadro 2 – Estratégias utilizadas antes, durante e depois da leitura

Destacamos que as estratégias metacognitivas de suporte à leitura predominantemente fazem parte do processo, ou seja, é durante a leitura que o aluno utilizará as estratégias que o auxiliarão na atividade. Depois, são as estratégias metacognitivas de solução de problemas que compõem o quadro das estratégias utilizadas durante a leitura. Segundo Kato (1985) as estratégias metacognitivas são ativadas “quando o leitor sente alguma falha em sua compreensão”. Dessa forma, segundo a autora, tais estratégias funcionariam como “mecanismos detectores de falhas e são resultado de um esforço maior de nossa capacidade de processamento” (KATO, 1985:84).

Como não é pretensão deste trabalho criar uma receita de como trabalhar leitura em sala de aula, trouxemos discussões a respeito do assunto que não devem se esgotar num simples artigo. Aliás, é impossível e improdutivo colocar a atividade dinâmica e complexa da leitura numa forma. Assim, para suscitar reflexões e a fim de redirecionar estratégias de leitura, formularemos, com base em todos os subsídios vistos anteriormente, alguns procedimentos norteadores da atividade.

Acreditamos que o primeiro procedimento que guiará o professor é o conhecimento da turma, ou seja, de suas dificuldades, habilidades, necessidades do público leitor. A partir do mapeamento da turma, o professor tem a tarefa de selecionar o gênero textual a ser trabalhado

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149 Kelli da Rosa Ribeiro

com os alunos, de maneira que a dificuldade aumente gradativamente. O terceiro procedimento é estabelecer e variar objetivos para a leitura e explicitar aos alunos que o objetivo guia a atividade de ler. Isso ajudará nas leituras fora dos muros escolares.

O quarto procedimento é a seleção de estratégias metacognitivas que auxiliem na compreensão do texto. Nesse procedimento é importante lembrar que estratégias metacognitivas globais, de suporte à leitura e solução de problemas precisam estar articuladas e cabe ao professor escolher quais são pertinentes a serem usadas, dependendo do gênero lido. O terceiro procedimento é crucial para a seleção das estratégias.

O quinto e último procedimento estabelecido por este trabalho é a seleção das estratégias e atividades que serão utilizadas antes, durante e depois da leitura. Esse é o último procedimento, pois necessariamente depende dos anteriores. Nesse sentido, resumimos que o aluno-leitor precisa aprender a adaptar o uso das estratégias de acordo com o texto lido, com seus conhecimentos prévios e com seus objetivos de leitura.

Considerações finais

É preciso, nesse sentido, articular diversas situações de ensino de leitura em que se garanta sua aprendizagem significativa de leitura. Em se tratando de ensinar as estratégias responsáveis pela compreensão, o aluno deve aprender vivenciando a própria atividade em sala de aula. Isso fica evidente nos resultados obtidos por Joly e Marini (2008), em que as autoras chegam à conclusão de que os alunos

participantes da pesquisa fazem pouco uso das estratégias metacognitivas e que não o fazem por falta de treino e preparo.

É justamente na escola o lugar de aprender e treinar a leitura em suas diversas formas e com seus variados objetivos. É na escola que a criança aprende a manusear o dicionário, elaborar resumos, fazer roteiros de leitura e outras estratégias que fazem parte do processo de leitura. É o professor que ensina a adequação ao gênero, levando textos de diferentes tipos e graus de complexidade. É o professor quem desafia o aluno a entrar no texto e entender seu funcionamento.

Foram essas reflexões e discussões que guiaram este trabalho. Acreditamos que a posição da Psicolinguística no que tange a leitura é bastante pertinente e viável, pois tal disciplina trabalha com o processamento e não só com o produto final da leitura. Ao término deste artigo destacamos que as pesquisas em leitura de todas as áreas da Linguística e da Psicologia são pertinentes, pois trazem discussões e convites a novas pesquisas. Através de pequenos passos podemos avançar em conhecimento e, talvez, o ensino de leitura nas escolas ganhe espaço menos secundário.

RESUMO – Leitura é o processo ativo de compreensão e interpretação do texto, sendo realizada pelo sujeito a partir de objetivos, de conhecimentos prévios sobre o assunto, bem como de informações contextuais que envolvem o texto. Pensando nessa questão e baseando-se nela, este artigo faz reflexões teóricas e práticas sobre os processos e as estratégias que envolvem a atividade de leitura e compreensão. Além disso, tais reflexões, apoiadas na corrente interdisciplinar da Psicolinguística, têm por objetivo oferecer,

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150 Uma discussão sobre estratégias metacognitivas em leitura na escola

ao professor de língua materna, subsídios teórico-práticos sobre estratégias metacognitivas que são mobilizadas na compreensão leitora de textos, observando alguns aspectos que constituem a atividade de leitura. Para tanto, mostramos alguns referenciais teóricos sobre leitura e estratégias metacognitivas e sistematizaremos as informações do instrumento Escala de estratégias metacognitivas de leitura utilizado em pesquisa por Joly e Marini (2008) no artigo A leitura no Ensino Médio e o uso das estratégias metacognitivas. Por fim, elaboramos alguns procedimentos norteadores da atividade de leitura em sala de aula.Palavras-chave: Compreensão Leitora. Estratégias Metacognitivas. Psicolinguística.

ABSTRACT – Reading is an active process of understanding and interpretation of the text, being performed by the subject from goals, prior knowledge on the subject, as well as contextual information surrounding the text. Thinking about this issue and based on it, this article will cause theoretical and practical reflections on the processes and strategies that involve the activity of reading and understanding. Moreover, these considerations, supported by current psycholinguistic interdisciplinary, aim to offer the teacher of language, theoretical-practical information on metacognitive strategies that are mobilized in the reading comprehension of texts, noting some aspects that constitute the reading activity. To this end, we show some theoretical references about reading and metacognitive strategies and organize information of the instrument range metacognitive reading strategies used in research by Joly and Marini (2008) Reading the article in the

school and the use of metacognitive strategies. Finally, work out some procedures of reading activities in the classroom.Keywords: Reading Comprehension. Metacognitive Strategies. Psycholinguistics.

Referências

BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental: língua portuguesa/ Secretaria de Educação Fundamental. Brasília: MEC/SEF, 1998.

LDB – Leis de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. LEI No. 9.394, de 20 de dezembro de 1996.

JOLY, Maria Cristina; MARINI, Janete Aparecida. A leitura no ensino médio e o uso das estratégias metacognitivas. In Estudos e pesquisas em psicologia. UERJ, Rio de Janeiro. ISSN: 1808-4281. p. 505-522, 2008.

KATO, Mary. O aprendizado da leitura. São Paulo: Martins Fontes, 1985.

LEITÃO, M. Psicolingüística Experimental: Focalizando o processamento da linguagem. In: Martelotta, M. (org.) Manual de Lingüística. São Paulo: Contexto, 2008.

SCLIAR-CABRAL. L. Introdução à psicolingüística. São Paulo: Ática, 1991.

SOLÉ, Isabel. Estratégias de leitura. Porto Alegre: Art Med, 1998.

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151 Samanta Demetrio da Silva

Concepção de leitura: abordagens psicolinguísticas em interface com

abordagens da neurociência

Samanta Demetrio da Silva1

Fale com a autora

A leitura é um dos processos fundamentais da

comunicação humana. As concepções de leitura existem sob diversos modelos teóricos. O foco de nossa atenção, no presente texto, são dois modelos que se entrelaçam: a psicolinguística em interface com a neurociência. Segundo Leonor Scliar Cabral, em entrevista à revista Revel, a psicolinguística, como o nome indica, é uma ciência híbrida que resultou da intersecção entra a linguística e a psicologia, acrescidas pela teoria da informação, no que elas têm em comum.

As bases epistemológicas que possibilitaram o surgimento da psicolinguística no seminário de verão, na Universidade de Cornell, realizado de 18/06 a 10/08 de 1961, eram semelhantes. A interdisciplinaridade passou a prevalecer cada vez mais no cenário científico atual em que as neurociências dominam. O olhar da linguística até meados do séc. XX, tanto sob a influência do pensamento saussureano, quanto nos Estados Unidos, sob a ótica do distribucionalismo, era focado sobre o objeto língua, desvinculado de como era processado por falantes e ouvintes ou leitores e escritores. Sendo assim, a interface 1 Graduada pelo Centro Universitário Leonardo Da Vinci – UNIASSELVI – em Letras em 2009. Email: [email protected].

proposta é fundamental e elucida com bases teóricas o processo tanto de aquisição da linguagem quanto de compreensão da leitura.

Pesquisas psicolinguísticas entendem que o ato de ler é interagir com o texto. As relações texto-autor-leitor regem pesquisas realizadas por inúmeros autores em que essa interação, muitas vezes, rege o processamento da leitura. De acordo com Smith, a leitura não pode ser separada da escrita e do pensamento. Para esse teórico, ler não é simplesmente extrair informações do que está impresso. Sabemos que existe um conjunto de enfoques necessários para dar conta do que é o ato de ler. Existem necessidades tais como objetivos e expectativas de leitura. Nesse processo estão embricados o conhecimento prévio, a compreensão, as previsões tanto globais quanto focais, as estratégias de processamento do texto entre outras. Stanislas Dehaene, em seu livro Reading in the brain, descreve pesquisas pioneiras de como nosso cérebro processa a linguagem, sob diversos aspectos. Em se tratando da leitura, propriamente dita, Dehaene afirma que temos a ilusão de que a leitura é algo simples e que não demanda esforço porque através de vários anos de prática desenvolvemos essa habilidade. É através desse cenário teórico das contribuições psicolinguísticas e das recentes pesquisas e contribuições das neurociências que discorremos nosso artigo. Para tanto, contaremos com uma divisão em tópicos em que desenvolveremos, separadamente, elementos dessas duas grandes áreas.

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152 Concepção de leitura: abordagens psicolinguísticas em interface com abordagens da neurociência

Leitura: abordagem psicolinguística

Muito tem se discutido acerca do ato de ler. Pesquisas sob a perspectiva da Psicolinguística sugiram a fim de dar conta de todo o processo de leitura e todo o conjunto cognitivo envolvido na leitura. Para Goodman (1976, p. 498), existe na leitura uma espécie de jogo psicolinguístico de adivinhação, envolvendo, através de tentativas, processamento de informações. Em seu modelo nos coloca, ainda, que a eficiência na leitura não é resultado da identificação exata de todos os elementos nem da percepção precisa, mas da habilidade e a capacidade de selecionar a maior quantidade de “pistas” necessárias para elaborar as “adivinhações” que estavam certas desde o início. Sendo assim, nesse jogo de adivinhações consideramos que as “adivinhações” e as “pistas” são de suma importância para a compreensão do que está sendo lido. Esse conjunto cognitivo engloba as inferências e as predições. As inferências são as pistas que nos levam às adivinhações, o que pode estar ou está implícito, e as predições são as habilidades de antecipar o que será dito, as informações a seguir. Ao analisarmos esse processo percebe-se a importância em encontrar o sentido na leitura. As predições e as inferências configuram estratégias de leitura que dão sentido ao que está sendo lido.

Uma série de fatores faz parte do processamento da leitura. Segundo Smith (1999, p. 116-119), em princípio, o sentido da aprendizagem da leitura é para encontrar sentido na escrita. As crianças se empenham para encontrar sentido na escrita, e, como consequência, aprendem a ler. É evidente as muitas facetas da leitura a serem dominadas e

em situações diferentes. Nesse sentido, atualmente existem estudos que se dedicam, exclusivamente, ao ensino de estratégias para a compreensão leitora, a docência para a proficiência efetiva. Deixemos claro que esse não é o foco central deste texto, mas é uma questão que envolve, também, os tópicos que abordamos.

As estratégias de leitura podem ser classificadas em cognitivas e metacognitivas. Em Kato (2007) e Solé (1998) encontra-se uma distinção entre estratégias cognitivas e metacognitivas. Para essas autoras, estratégias cognitivas são aquelas que regem o comportamento automático e inconsciente do leitor, enquanto que as metacognitivas referem-se aos princípios que regulam a desautomatização consciente das estratégias cognitivas.

Metacognição refere-se, assim, ao conhecimento do leitor e ao controle que este tem de seu próprio conhecimento na atividade de leitura. Outro uso das estratégias metacognitivas ocorre quando a leitura é feita com a intenção de memorizar ou de aprender. Kato (2007) postula que as estratégias metacognitivas funcionam como mecanismos detectores de falhas e que são resultados de um esforço maior de nossa capacidade de processamento. Ainda assim, resumidamente, dizemos que estratégias cognitivas são operações inconscientes sem um objetivo pré-estabelecido e as metacognitivas são conscientes, com algum objetivo já em mente. Além dessas estratégias é fundamental no processo de compreensão leitora o conhecimento prévio. Segundo Kleiman (2002, p. 13-17), a compreensão de um texto é um processo que se caracteriza pela utilização de conhecimento prévio: o leitor utiliza o que

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153 Samanta Demetrio da Silva

ele já sabe, o conhecimento adquirido ao longo de sua vida. É mediante a interação de diversos níveis de conhecimento, como o conhecimento linguístico, o textual, o conhecimento de mundo que o leitor consegue construir o sentido do texto. A leitura é considerada um processo interativo porque o leitor utiliza justamente diversos níveis de conhecimento que interagem entre si..

Para Kleiman (2002), sem o conhecimento prévio do leitor não haverá compreensão. Para Frank Smith (1999, p. 73-75), a compreensão depende da previsão. O que já temos em nossa mente é a nossa única base tanto para encontrar o sentido de mundo como para aprender sobre ele. A interface com os estudos cerebrais começa a delinear-se. Smith (1999, p. 73-75) diz que para entender o processo de compreensão precisamos entender como funciona o cérebro humano. Para o autor, o que temos no cérebro é um modelo do mundo intrincadamente organizado e inteiramente consistente, construído como resultado da experiência, não da instrução, e integrado em um todo coerente como resultado de uma permanente aprendizagem e pensamento adquiridos com total desenvoltura. F. Smith fala que em nossas mentes temos uma teoria de como é o mundo, e essa teoria é a base de toda a nossa percepção e compreensão.

Com efeito, para dar sentido ao que lemos utilizamos todo esse conhecimento de mundo, guardado no cérebro, na memória. É essa uma estratégia de leitura que nos leva a realizar mais seguramente as inferências, as previsões e compreender mais eficientemente o texto e o que o texto nos diz. Conforme Smith (1989, p. 32-35), nossa habilidade

para extrair sentido do mundo, como nossa habilidade para recordar eventos, para agir apropriadamente e para prever o futuro é determinada pela complexidade do conhecimento que já possuímos. Nesse sentido todas as pessoas fazem previsões todo o tempo. Esse constante estado de antecipação é pelo fato de nossa teoria de mundo, nosso conhecimento prévio, funcionar tão bem. Previsão e compreensão estão interligadas. A previsão significa que fazemos perguntas ao lermos um texto, e a compreensão significa que somos capazes de responder a algumas das perguntas formuladas. À medida que fazemos mais perguntas e somos capazes de respondê-las, então compreendemos. Para tanto, a leitura não pode ser separada do pensamento. A leitura é uma atividade carregada de pensamentos. Na visão psicolinguística de Smith, a leitura pode ser definida como um pensamento que é estimulado e dirigido pela linguagem escrita. Leitura: abordagem da neurociência

Stanislas Dehaene (Collège de France), pesquisador francês considerado uma autoridade mundial na neurociência cognitiva da linguagem e do processamento de números, em sua obra Reading in the brain, descreve pesquisas pioneiras sobre como o cérebro humano processa a linguagem, sob os mais diversos aspectos. De acordo com Dehaene, temos a ilusão de que a leitura é algo simples e que não demanda esforço porque desenvolvemos essa habilidade através de vários anos de prática. Na realidade, esse processo é bastante complexo: ao ser visualizada

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154 Concepção de leitura: abordagens psicolinguísticas em interface com abordagens da neurociência

pela retina, a palavra é dividida em inúmeros fragmentos, visto que cada parte da imagem visual é reconhecida por um fotorreceptor distinto. A questão e o desafio, então, é reorganizar esses fragmentos em forma de letras, colocá-los na ordem correta para, finalmente identificar a palavra. Ancorado em pesquisas realizadas com tecnologia de ponta, Dehaene (2009) nos coloca sobre o tema proposto, o que ele denomina de “paradoxo da leitura”. Nosso cérebro é produto de milhões de anos de evolução em um mundo em que não havia escrita; então, ele se adaptou a ponto de reconhecer palavras e símbolos. Segundo o autor, o cérebro humano não foi projetado para a leitura. Como conseguimos, então, dar conta dessa habilidade? Para ele, a ideia de que o cérebro possui uma infinita capacidade de se adaptar à cultura é refutável. Entretanto, propõe uma teoria que tenta resolver o “paradoxo da leitura” que é a hipótese da reciclagem neural. De acordo com essa hipótese, a arquitetura do cérebro humano submete-se a fortes restrições genéticas, mas alguns circuitos cerebrais desenvolveram-se a uma margem de variabilidade. Sendo assim, através dessa reciclagem neural pode-se explicar a alfabetização, seus mecanismos no cérebro e sua história. Em seu livro, aborda que cada leitor adapta sua estratégia de exploração visual de acordo com sua língua ou com a língua que estiver lendo. Os movimentos rápidos dos dois olhos para a mesma direção de uma pessoa que está lendo um texto em chinês tendem a ser menores do que uma pessoa que está lendo um texto em português, porque o sistema de escrita chinês é através de ideogramas, que representam ideias e conceitos, e não de letras.

Dessa mesma forma, o reconhecimento de grafemas e fonemas nos remete à questão da invariância, ponto em que as pesquisas de Stanislas também se debruçam. A tarefa realizada pelo cérebro que reconhece que aspectos da palavra não variam independentemente do tamanho ou forma em que a palavra se apresenta. Sob esse princípio conseguimos reconhecer que as palavras SETE, sete e sete são a mesma palavra. A região que processa especificamente a palavra escrita é a região occípito-temporal ventral esquerda. Essa região cerebral é a mesma tanto para leitores de português, japonês ou italiano. O autor, a partir de seus estudos, comprova a ideia de que existem mecanismos universais responsáveis pela leitura. Essa área do hemisfério esquerdo do córtex podem ser visualizadas com o uso de tecnologias de neuroimagem, como PET (Position Emission Tomography), FMRI (Functional Magnetic Resonance Imaging) e EEG (Eletroencephalography).

Ao longo de muitos estudos concluiu-se que existe uma universalidade fundamental nos circuitos de leitura. Isso significa que, independentemente da diversidade dos sistemas de escrita e das normas ortográficas de uma língua, todas as pessoas solicitam as mesmas áreas cerebrais quando leem. A esse lugar é dado o nome de “caixa de palavras”. Logo os estímulos escritos, ao entrar em contato com o córtex, são canalizados na região da caixa de palavras e então reconhecidos independentemente de seu tamanho ou forma. Esse input visual é enviado para uma de duas rotas principais: uma que converte o input em som (rota fonológica) e outra que converte em significado

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155 Samanta Demetrio da Silva

(rota lexical). As duas rotas, fonológica e lexical, operam de maneira simultânea e paralela.

De acordo com estudos desenvolvidos, Stanislas Dehaene argumenta que existe uma hierarquia de neurônios que respondem a estímulos visuais. Através da hipótese da reciclagem neural, quando aprendemos a ler, parte dessa hierarquia de neurônios se ocupa da nova tarefa de reconhecer letras e palavras. Então, a capacidade de ler, segundo o autor, é resultado de um sofisticado processo evolutivo, e não somente resultado da plasticidade cerebral, que muitas vezes é considerada como uma propriedade inata do cérebro. Os estudos e pesquisas realizados por ele defendem a ideia de que a plasticidade do cérebro é fruto da evolução e do instinto de aprender que nós, humanos, possuímos. Portanto, fica mais fácil compreender como pessoas com acidentes cerebrais e até mesmo com parte do cérebro removida conseguem, ainda assim, dar conta da leitura. Retomando a ideia expressa pelo “paradoxo da leitura”, de que nossos genes não se desenvolveram com a finalidade de nos habilitar a ler, o cientista afirma que os sistemas de escrita devem ter se desenvolvido de acordo com as limitações de nosso cérebro. A explosão das atividades em neurociência vem delineando caminhos interessantes para as pesquisas nesse campo. Através da hipótese da reciclagem neural, Dehaene explica as principais fases da aquisição da leitura, dividida em estágios. Primeiro o estágio pictórico, em que a criança registra (fotografa) algumas poucas palavras; o segundo, estágio fonológico, em que a a criança aprende a decodificar grafemas em

fonemas; e o terceiro, estágio ortográfico, em que o reconhecimento da palavra se torna rápido e automático.

De acordo com as pesquisas, o autor afirma que estudos envolvendo neuroimagem mostram que muitos circuitos do cérebro são alterados durante esses estágios, principalmente aqueles ligados à caixa das palavras. Para Stanislas, o ponto chave da aquisição da leitura e ponto de partida para a efetiva compreensão leitora, está no estágio fonológico na conversão das letras em sons. Sendo assim, podemos dizer que a psicolinguística contribuiu efetivamente durante décadas e através de estudos, e modelos tais como o conexionista, para a chegada até as pesquisas em neurociência. Um ponto é, ainda, bastante discutido pelos pesquisadores: apenas a espécie humana é capaz de se adaptar as invenções culturais tão sofisticadas quanto a leitura. Para Dehaene, somos a única espécie que criou uma cultura que foi capaz de adaptar seus circuitos cerebrais a novos usos. Ou seja, ao longo de sua trajetória, os homens foram descobrindo progressivamente, que podiam reutilizar seus sistemas visuais como um input substituto à língua e, dessa forma, chegaram à leitura e à escrita.

Os estudos desenvolvidos sobre leitura abrem novas perspectivas a respeito da natureza da interação entre cérebro e cultura. Sob esse olhar, essa fusão de cultura e cérebro, o autor chega a suas conclusões de que sua ideia inicial sobre o paradoxo da leitura na realidade não existe. A evolução biológica, de acordo com o autor, não explica o desenvolvimento do cérebro para essa habilidade da leitura. Para ele, o cérebro humano nunca se desenvolveu

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156 Concepção de leitura: abordagens psicolinguísticas em interface com abordagens da neurociência

para esse fim. A única evolução que aconteceu foi cultural. A habilidade de leitura desenvolveu-se progressivamente para uma forma adaptada aos circuitos de nosso cérebro. O ser humano é a única espécie culturalmente sofisticada. Os estudos e as pesquisas, nesse âmbito, são capazes de auxiliar e resolver qualquer problema relacionado à leitura e à escrita. A Psicolinguística e a Neurociência desempenham um papel fundamental para descobrir e desvendar como o cérebro leitor funciona.

Considerações finais

Em suma, de acordo com os estudos teóricos propostos pela Psicolinguística, o processamento da leitura é dinâmico, é resultado da interação do leitor com o texto e do leitor com o autor. Esse processo é altamente ativo na construção de sentidos e envolvem uma série de fatores tais como: estratégias cognitivas e metacognitivas, conhecimentos linguísticos e extralinguísticos, predições e um brilhante esforço cognitivo. Desse modo, o significado na leitura vai sendo construído a partir dessa relação feita com o texto. Os avanços propostos pela neurociência trazem contribuições mais do que efetivas que dão conta de todo o esquema cerebral envolvido nessa tarefa. Nosso trabalho passa por essas etapas revisando-as, com base nas teorias reconhecidas atualmente. Deve ser levado em consideração que todas as pesquisas realizadas nesse âmbito e em outras áreas voltadas para o ensino e a compreensão de tais processos podem se fundir em uma única ciência da leitura. Através de tantos subsídios, chega-se a um ponto

fundamental que deve unir todos os esforços: como a leitura deve ser ensinada e como compreender esse processo de ensino da leitura. Para tanto, fica a mensagem de que os avanços de todas as áreas envolvidas devem dar conta de melhorar a compreensão e o ensino da leitura. Os elementos teóricos disponibilizados ao longo do texto elucidam o cerne da questão. Além dos tópicos desenvolvidos, cabe ressaltar em nossas considerações finais que viabilizar esses estudos, colocá-los em prática, só poderá ser possível em um país com políticas públicas voltadas para a educação. São necessárias políticas que assegurem esses conhecimentos a professores e alunos e não só em forma de propostas ou diretrizes.

RESUMO – O presente artigo tem como proposta apresentar uma breve revisão acerca da concepção de leitura sob o olhar teórico da Psicolinguística em interface com algumas abordagens teóricas da Neurociência. O processamento da leitura, conhecimento prévio e estratégias de leitura são os aspectos enfatizados, no presente trabalho, à luz das perspectivas teóricas da Psicolinguística e da Neurociência. O texto destaca algumas contribuições recentes de pesquisas pioneiras realizadas pelo renomado cientista Stanislas Dehaene sobre o processo cerebral da leitura em interface com as contribuições psicolinguísticas – ramo da Linguística que analisa os processos cognitivos de produção e recepção da linguagem verbal na compreensão leitora. Palavras-chaves: Concepção de leitura. Psicolinguística. Neurociência. Processamento da Leitura. Conhecimento Prévio. Estratégias.

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157 Samanta Demetrio da Silva

ABSTRACT – This article aims to present a brief review on the concept of reading from the perspective of theoretical psycholinguistic interface with some theoretical neuroscience. The process of reading, prior knowledge and reading strategies are emphasized aspects of the present work in light of the theoretical perspectives of psycholinguistics and neuroscience. The following text is intended to highlight the recent contributions of pioneering research conducted by renowned scientist Stanislas Dehaene on the brain’s process of reading in the interface between psycholinguistic contributions - branch of linguistics that examines the cognitive processes, also in reading, which is the difficulty of text comprehension.

Keywords: Concept of reading. Psycholinguistics. Neuroscience. Reading Processing. Prior Knowledge. Strategies.

Referências

KLEIMAN, Ângela. Oficina de leitura: Teoria e Prática. 9ª ed., Campinas, SP: Pontes, 2002.

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DEHAENE, Stanislas. Reading in the Brain – The Science and Evolution of a Human Invention. Viking Penguim, 2009.

GOODMAN, Kenneth. Reading: A Psicholinguistic Guessing Game. In: SINGER, Harry; RUDDELL, Robert B. (orgs.) Theoretical Models and Processes of Reading. 2ed. Dlawere: International Reading Association, 496-508, 1976.

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Revista Virtual de Estudos da Linguagem - ReVEL Vol. 6 – número 11 - agosto de 2008 - ISSN 1678-8931 TEMA: Psicolinguística

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SOLÈ, Isabel. Estratégias de leitura. 6ª ed., Porto Alegre: ArtMed, 1998.

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158 Nível de compreensão de leitura de um aluno colombiano no processo de aprendizagem do português: um estudo de caso

Nível de compreensão de leitura de um aluno colombiano no processo de aprendizagem do

português: um estudo de caso

Vanessa Nery Souza1

Fale com a autora

O bom desempenho de leitura está relacionado a quanto e como a criança compreende um determinado texto. Este estudo trata do processo de compreensão de leitura na aprendizagem do Português por um aluno colombiano, que está apresentando dificuldades na disciplina de Português do Ensino Fundamental (7ª série) em tarefas de compreensão de leitura; analisado através do Teste Cloze que serve para mensurar o grau de compreensibilidade de determinado texto por parte do leitor. O objetivo desta pesquisa é verificar se existe relação entre o desempenho obtido pelo aluno e os resultados do teste Cloze. Para aplicação do teste Cloze foi selecionado um texto – A canoa que virou coisa.

1. Referencial teórico

O processo de leitura é mais complexo do que nos parece, devido aos inúmeros fatores que interferem diretamente na nossa capacidade de compreensão, sejam eles físicos ou psicológicos. Mesmo assim, há pessoas que consideram a leitura como a simples percepção da forma

1 Email: [email protected]

das palavras e seus significados. As experiências proporcionadas pela leitura, além de facilitarem o posicionamento do ser humano diante da sociedade, são, ainda, as grandes fontes de energia que impulsionam a descoberta, a elaboração e a difusão de conhecimento. Sendo assim, o processo da leitura não pode ser visto apenas como a transcrição fonética da fala. Conforme Kleimann (1997), leitura é um ato social entre dois sujeitos - leitor e autor, que interagem entre si, obedecendo a objetivos e necessidades socialmente determinados. Da mesma forma, Kato (1987) considera a leitura como um ato de reconstrução dos sentidos alinhavados pelo autor, ou seja, segundo a autora, há necessariamente uma interação entre leitor-autor. Ao ler, acompanhamos o pensamento do autor, ou seja, entendemos o texto, imaginando-nos como um de seus produtores. O texto reúne em si um conjunto de pistas, o que significa dizer que o mesmo texto lido por vários leitores poderá ter várias significações, já que cada leitor tem objetivos pessoais, próprios, para ler, isto é, cada qual formula perguntas que acha importantes sobre o assunto, buscando encontrar respostas para elas. Cada leitor tem suas barreiras, suas superações. E a cada texto há uma informação nova a ser processada.

Aspectos cognitivos envolvidos no processo da leitura

Ler consiste, basicamente, no processamento de in-formações de um texto escrito com a finalidade de compre-

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159 Vanessa Nery Souza

endê-las e interpretá-las. Mas o processo não é simples, pois o leitor não pode se fixar somente nas palavras e no aspecto visual do texto, a compreensão dependerá do co-nhecimento prévio do leitor, adquirido ao longo da vida.

Kleiman (1997) classifica o conhecimento prévio em três dimensões: conhecimento linguístico, que possibilita ao leitor compreender diferentes textos, conforme sua es-truturação linguística, ou seja, o leitor deverá ser capaz de agrupar elementos que possam estar alternados no texto; conhecimento textual, que é a capacidade do leitor inte-ragir com diferentes tipologias textuais. O domínio maior desse conhecimento facilitará a construção de significados para os textos lidos; e conhecimento de mundo, ou seja, o repertório de informações adquiridas ao longo da vida.

Ao final da leitura, é esperado que o leitor, valendo--se das três dimensões de conhecimento envolvidas, consi-ga formular boas hipóteses sobre os sentidos do texto lido. Colomer e Camps (2002) afirmam que, além das três di-mensões de conhecimento referidas, o leitor também deve estar decidido a ler, tendo uma intenção para realizar a lei-tura, ou seja, um objetivo de leitura.

Dessa maneira, o processo da leitura envolve apropriação, invenção e produção de sentidos (CHARTIER, 1999).

Assim, o resultado alcançado dependerá do desempenho de cada leitor ao ler, analisar e criar um sentido para o que está posto ou implicitado no texto.

O ato de ler será aqui compreendido como um processo, no qual a interpretação do que é lido depende, não só do que está impresso, mas também das hipóteses

do próprio leitor, formuladas com base no seu conhecimento prévio e no estabelecimento de conexões intertextuais que permitem a leitura significativa (ALVES, 2003).

Teste Cloze

Criada por W. Taylor em 1953, a Técnica Cloze é uma técnica da psicolinguística, fundamentada na Teoria da Informação e na noção de amostra aleatória, cujo objetivo é a mensuração da compreensibilidade (ADELBERG; RAZEK, 1984). Essa técnica consiste na retirada de palavras e substituição por um espaço pontilhado. Os leitores têm que preencher, de acordo com o contexto, tais espaços, sendo que o índice de compreensibilidade do texto é dado pela maior ou menor facilidade que o leitor tem para reconstituir tal texto (STEVENS, STEVENS e STEVENS, 1992). Conforme Williams et al. (2002), para medir a clareza pelo método Cloze seguem-se os passos abaixo: a) os trechos do texto a ser avaliado são escolhidos aleatoriamente; b) a décima sexta palavra e, a partir dela, toda quinta palavra do trecho selecionado é retirada e substituída por lacunas de tamanho único; c) o trecho é repassado aos participantes, que não tiveram contato prévio com o trecho completo; d) aos participantes, é dada a instrução de preencherem as lacunas com as palavras que acreditem terem sido retiradas; e) as respostas são consideradas corretas quando eles completam a lacuna com a palavra que foi retirada; f) a passagem que proporcionar o maior número de acertos será considerada

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160 Nível de compreensão de leitura de um aluno colombiano no processo de aprendizagem do português: um estudo de caso

a mais clara, com relação ao assunto em questão e, também, a mais clara para o público-alvo representado pelo grupo participante da avaliação. O trecho que permitir a segunda pontuação mais alta será considerado o segundo mais claro e assim por diante. Bormuth (1968) demonstrou que os resultados do método Cloze possuem correlação com os de outros métodos como, por exemplo, de métodos de compreensão. Ele verifica ainda a existência de algumas vantagens comparativas para o uso da versão comum do método Cloze como medidor da clareza: a) os testes pelo método Cloze são simples e fáceis de preparar, gerenciar e avaliar; b) os itens do método Cloze estão embutidos no próprio texto, evitando, assim, sofrer a influência daqueles que fazem o teste; c) os testes pelo método Cloze demonstraram ser altamente confiáveis e válidos como medidores da clareza relativa dos materiais propostos; d) as respostas podem ser avaliadas de forma objetiva e simples. O método Cloze não apresenta nenhuma suposição quanto à correlação entre a facilidade de compreensão e a frequência de aparecimento de elementos como comprimento de palavras e sentenças, palavras diferentes ou semelhantes, partes do discurso, voz ativa ou termos concretos. As unidades avaliadas no método Cloze são as reproduções do texto efetuadas com sucesso (WILLIAMS et al., 2002). Bormuth (1968) comenta ainda que, diferentemente da fórmula da clareza, o método Cloze permite uma medição direta da eficácia com que um leitor interage com o texto. A eficiência do processo de compreensão leitora depende da capacidade do leitor de prever o conteúdo, do conhecimento

prévio do assunto pelo leitor, da simplicidade e consistência do estilo de escrita e do uso, pelo autor, das convenções da linguagem (WILLIAMS et al., 2002). Segundo esse autor, o método Cloze capta o ponto de partida em que se encontra o leitor, suas experiências, compreensão e expectativas, como por exemplo: uso de frases não convencionais ou obscuras, jargão não familiar. O grau até o qual o leitor consegue prever a parte ausente do texto é considerado um indicativo da eficácia na comunicação. Santos et al. (2002) argumenta que a técnica Cloze é bastante eficaz sob o ponto de vista prático em função dos altos índices de correlação positiva de seus resultados com o desempenho acadêmico; isto é, alunos com maiores percentuais no teste apresentam melhores resultados nas médias das disciplinas. Diante da importância da leitura, independente da concepção de compreensão adotada, o objetivo da pesquisa é verificar se existe relação entre o desempenho obtido pelo aluno na disciplina de português e os resultados do teste Cloze. A hipótese de trabalho é de que relação entre o desempenho obtido pelo aluno na disciplina e o desempenho no teste Cloze e, ainda, de que o desempenho acadêmico está relacionado a outras questões de sua história.

A escola e o ensino da leitura

De acordo com Foucambert (1994), o acesso ao “poder” só é possível a partir da reflexão. Segundo esse autor, tal feito só é viável através do acesso ao processo de produção do saber e não apenas por meio da transmissão dos saberes.

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161 Vanessa Nery Souza

Nesse sentido, Foucambert (1994) juntamente com Smith (1999) e Solé (1998) defendem um ensino de leitura no qual se aprenda a ler lendo, em um processo em que o aluno deve estar em contato com os mais diversos gêneros e tipologias textuais. Para esses autores, saber ler não se confunde com saber decodificar, já que a mera decodificação do código escrito não garante o desenvolvimento da capacidade de ver além do que é visível aos olhos. Para Smith (1999), o significado precede a leitura da palavra, enquanto unidade específica. Já a compreensão, que seria o núcleo da leitura, está além das palavras ou da informação visual. Pois a cada nova leitura, ainda que seja do mesmo texto, o leitor já não é mais o mesmo do instante anterior. Foi modificado pelo que leu, adquiriu novos conhecimentos que vão interferir, por sua vez, na próxima leitura. Segundo Silva (1993), a prática da leitura a partir de interpretações pré-estabelecidas, sem análise e reflexão do grupo envolvido na atividade, sem mobilização do conhecimento prévio e sem, portanto, qualquer chance de formular inferências, permite apenas que o leitor decodifique um enunciado que já está elaborado, pronto e embalado para uso, não havendo a possibilidade de construção de significado para o texto lido. Nesse sentido, Soares (1979) traz sugestões que podem ser aplicadas pelos professores durante o estudo de textos em sala de aula. Segundo a autora, o professor deve proporcionar aos alunos leituras de acordo com as habilidades que quer que os estudantes desenvolvam.

A autora ainda reitera que o que ocorre, na maioria das vezes, é a manifestação de pouco (ou nenhum) interesse dos alunos em pensar sobre o texto, bem como a pouca preocupação do professor em fazê-los refletir e envolvê-los no assunto, com a finalidade de gerar uma interpretação crítica e produtora de sentidos. O envolvimento do professor é de suma importância para melhorar as propostas de atividades de leitura no contexto escolar, já que é exclusivamente através do convívio com os alunos, que o professor pode desenvolver e dispor de uma metodologia adequada para possibilitar o conhecimento.

2. Desenvolvimento da pesquisa

O projeto foi realizado a partir da constatação do baixo desempenho no nível de compreensão leitora que um aluno colombiano vem apresentando no processo de aquisição do Português. A pesquisa foi desenvolvida com a participação de um aluno da sétima série do Ensino Fundamental, com a finalidade de detectar o nível de conhecimento prévio que o aluno possuía sobre o assunto tratado no texto e avaliar a compreensão leitora do sujeito pesquisado. O objetivo do presente trabalho foi o de analisar os fatores que intervêm no processo de compreensão leitora, considerando os aspectos cognitivos envolvidos através do aprofundamento dos conhecimentos e do nível detectado de compreensão leitora do sujeito. A fim de alcançar o objetivo do trabalho, foram levantadas duas hipóteses a serem investigadas:

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162 Nível de compreensão de leitura de um aluno colombiano no processo de aprendizagem do português: um estudo de caso

a) a primeira hipótese considera que a compreensão leitora varia dependendo de vários fatores, dentre eles o conhecimento linguístico, o conhecimento textual e, por fim, o conhecimento de mundo. Isto é, se o texto apresenta um vocabulário desconhecido, ou faz uso de uma temática considerada hermética sobre a qual o leitor não possa fazer inferências, sua compreensão será afetada. Quanto menos inferências o leitor for capaz de realizar, menos conhecimento prévio ele possui acerca do assunto lido. Como consequência, menor será seu nível de compreensão. b) a segunda hipótese propõe que a compreensão leitora pode ser influenciada pelo desenvolvimento cognitivo atingido, pela capacidade de memorizar e pelas experiências anteriores. Além disso, o ambiente no qual o leitor está inserido também poderá facilitar ou dificultar a leitura, conforme valorize ou não essa atividade, abrindo-lhe os espaços necessários ou interditando-os. Para testar essas hipóteses, nossa pesquisa de campo foi dividida em duas etapas. Primeiramente, foram coletados dados pessoais do sujeito pesquisado: idade, sexo, nível socioeconômico e experiência de leitura. Na segunda etapa, o aluno preencheu um texto – A Canoa que virou coisa - ANEXO 1 - através da técnica Cloze – e, em seguida, foi solicitado a ler e a contar o que entendeu do texto.

O caso

O sujeito deste estudo é um aluno colombiano, 15 anos de idade, sexo masculino, estudante repetente da sétima série do Ensino Fundamental de uma escola particular

de classe alta de Porto Alegre/RS. O aluno estudou até o ano de 2008 na Colômbia, quando os pais (médicos) foram transferidos para o Brasil. Os pais do aluno procuraram atendimento fonoaudiológico por sugestão da escola para auxiliar no processo de compreensão de leitura, visto que vinha apresentando dificuldades com a mesma na escola. O menino recebeu o texto para preencher quarenta lacunas de acordo com a palavra que julgasse mais adequada.

Análise dos resultados

Tradicionalmente, o significado dos escores do teste Cloze é conferido segundo três níveis de leitura (ADELBERG, 1979; SANTOS et al., 2002; SMITH e TAFFLER, 1992). Um percentual de até 44% de acerto indica que o leitor conseguiu retirar poucas informações da leitura e, consequentemente, obteve pouco êxito na compreensão. Um percentual de acertos entre 44% a 57% do texto mostra que a compreensão da leitura é suficiente, porém indica a necessidade de auxílio adicional externo. Por fim, um nível de acertos superior a 57% equivale a um nível de autonomia de compreensão do leitor. Os escores do teste Cloze apontam que o aluno em questão preencheu mais de 57% das lacunas de forma satisfatória, o que indica que consegue retirar informações da leitura para a compreensão do texto, e, sendo assim, que ele tem autonomia para a compreensão de textos na Língua Portuguesa. Nesse diapasão de entendimento, considera-se que os resultados obtidos com a amos tra desta investigação

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163 Vanessa Nery Souza

indicam compreensão e autonomia suficientes para o bom entendimento do que está sendo lido, a questão no caso, não é o português, então, este estudo será continuado a fim de ampliar sua representatividade, para verificar como a influência de outras variáveis desse contexto como, por exemplo, a história do paciente, a mudança de país, entre outras, podem influenciar negativamente o desempenho escolar desse aluno.

RESUMO – O objetivo deste relato é apresentar os resultados de uma investigação sobre o processo de compreensão/interpretação leitora acompanhado por um estudo de caso – considerando os aspectos cognitivos, de natureza individual e social e a forma como esses aspectos vinham sendo trabalhados na escola que o participante frequenta. A metodologia de estudo envolveu o preenchimento de um texto através da técnica Cloze. Além disso, comprovou–se a tendência de o professor constatar o problema existente, porém não se observou busca de solução para a dificuldade detectada. A questão é quanto ao modo como vem sendo avaliada a compreensão de leitura por um aluno colombiano no processo de aprendizagem do Português.

Palavras-chave: Compreensão. Leitura. Teste Cloze.

ABSTRACT – The purpose of this report is to present the results of an investigation into the process of understanding / interpreting reader accompanied by a case study - considering the cognitive aspects of individual and social nature, and how these issues were being worked on in

school that the participant attend. The methodology of the study involved completing a cloze text by the technique. Moreover, it proved the tendency of the teacher to see the existing problem, but there was no attempt to solve the difficulty detected. The question is about the way has been assessed on reading comprehension by a Colombian student in the process of learning Portuguese.

Keywords: Comprehension. Reading. Test Cloze.

Referências

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BORMUTH, J. R. Cloze Test Readability: Criterion Reference scores. Journal of Education Measurement, v. 5, n. 3, p. 189-196, 1968.

CHARTIER, Roger. A aventura do livro: do leitor ao navegador. Trad. Reginaldo de Moraes. São Paulo: UNESP, 1999.

COLOMER, Teresa; CAMPS, Ana. Ensinar a ler, ensinar a compreender. Trad. Fátima Murad. Porto Alegre: Artmed, 2002.

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164 Nível de compreensão de leitura de um aluno colombiano no processo de aprendizagem do português: um estudo de caso

FOUCAMBERT, Jean. A leitura em questão. Trad. Bruno Charles Magne. Porto Alegre: Artmed, 1994.

KATO, Mary. O aprendizado da leitura. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1987.

KLEIMAN, Ângela. Texto e leitor: aspectos cognitivos da leitura. 5. ed. São Paulo: Pontes, 1997.

SILVA, Ezequiel Theodoro da. Elementos da pedagogia da leitura. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1993.

SMITH, Frank. Leitura significativa. Trad. Beatriz Affonso. 3. ed. Porto Alegre: Artmed, 1999.

SMITH, M.; TAFFLER, R.. Readability and Understandability: Different measures of the Textual Complexity of Accounting Narrative. Accounting, Auditing e Accountability Journal, v. 5, n. 4, p. 84-98, 1992.

SANTOS, A. A. A. et al. O Teste Cloze na Avaliação da Compreensão em leitura. Psicologia: Reflexão e Crítica, v.15, n. 3, p. 549-557, 2002.

SOARES, Magda Becker et al. Ensinando comunicação em língua portuguesa no 1° grau: sugestões metodológicas 5ª a 8ª series. Rio de Janeiro: MEC/DEF/UFMG, 1979.

SOLÉ, Isabel. Estratégias de Leitura. Porto Alegre. Artmed, 1998.

STEVENS, K.; STEVENS, K. T.; STEVENS, W. P. Measuring the Readability of business writing: the Cloze procedure versus readability formulas. The Journal of Business Communication, v. 29, n.4, p. 367-382, 1992.

WILLIAMS, J. et al.. Measuring Readability in Accounting: an Application and Evaluation of the Close Procedure. Journal of financial Education, p. 1-17, 2002.

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165 Vanessa Nery Souza

ANEXO 1

A CANOA QUE VIROU COISA(Luiz Raul Machado)

Era uma vez um índio que resolveu fazer uma canoa bem bonita da casca de uma árvore. Quando ele estava quase terminando, a mulher dele teve um filho. Como índio não trabalha logo depois que nasce um filho, ele ficou em casa e deixou a canoa quase pronta lá no mato.

Um dia, ele foi ________ (1) de novo. Mas, quando ________ (2) no mato, a canoa ________ (3) estava mais lá. O ________ (4) sentou e ficou pensando:

“ ________ (5) será que aconteceu com ________ (6) minha canoa?”

Aí ele ________ (7) um barulho e viu ________ (8) a canoa estava voltando ________ (9) pro lugar dela. “Ué, ________ (10) que a minha canoa ________ (11) virando uma coisa?”

A ________ (12) tinha olhos e andava ________ (13) um bicho. Ele resolveu ________ (14) dentro dela e falou:

- ________ (15) pode me levar pra ________ (16)?A canoa mexeu um ________ (17) e foi pra lagoa.

________ (18) que entrou na água, ________ (19) os peixes começaram a ________ (20) pular pra dentro dela. ________ (21) canoa começou a comer ________ (22) peixes. Aí mais peixes . ________ (23) pra dentro dela e ela ________ (24) deu pro índio. Depois, ________ (25) canoa saiu da lagoa ________ (26) foi pro lugar dela. ________ (27) homem ainda disse:

- Fica ________ (28) quietinha que depois eu ________ (29). Quando ele chegou em ________ (30) com os peixes, a ________ (31) perguntou:

- Onde é que ________ (32) pegou tanto peixe?Ele ________ (33) :- Encontrei um lugar muito ________ (34) de pescar.

Dias depois ________ (35) foi pescar de novo. ________ (36) no mato e a ________ (37) não estava lá. Dali ________ (38) pouco, ele ouviu o ________ (39) de coisa se arrastando. ________ (40) ela.

A canoa chegou, balançou pra lá e pra cá e ele pensou: “Quando ela mexe assim é porque está me chamando”.

Entrou e a canoa foi para a lagoa. Lá, os peixes começaram a pular pra dentro dela. O homem quis pegar logo os peixes pra ele. Aí a canoa não gostou e o comeu.

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Como vender para quem não compreende o que lê?

Luciana Braun Reis1

Fale com a autora

A comunicação como ciência debate em sua essência os processos envolvidos no ato comunicativo. Variáveis foram introduzidas à análise do processo comunicativo, elevando sua complexidade. O que no início consistia numa relação entre emissor e receptor, na contemporaneidade há outras variáveis entre esses extremos, por exemplo: o canal, as condições de produção da mensagem, a adequação de linguagem e principalmente o ruído existente nesse circuito.

O ruído pode ser de muitas naturezas, sua descrição e análise permite diagnosticar as mutações, as alterações de sintonia no processo de comunicação, entre outros. Diga-se que é na divergência, no anacrônico e vernacular que existe a renovação e suas manifestações no cotidiano.

A análise do processo de comunicação, na visão desta autora, requer um olhar hermenêutico, contextualizando a comunicação. Essa afirmação encontra respaldo em Mafesolli (2008) em que aborda “comunicação como entendimento de mundo”, isto é, requer que se considere não o sintoma isolado, mas a problemática dos atores sociais, sua história, sua essência e sua deficiência. Nesse caso o ruído encontra relevância na atualização do processo comunicacional.1 Email: [email protected].

Nesse sentido, Irene Machado (2001) faz referência à noção de Mafesolli:

Em todos esses campos, o estudo das mensagens como fenômeno de troca visa uma maior compreensão do modo como acontecem as interações por meio da linguagem. Emissão e recepção, canais de transmissão, códigos que organizam as informações em mensagem centralizam grande parte dessas abordagens (abordagens como possibilidade de estudo da comunicação) (p. 279).

Nesse contexto observa-se a comunicação como um fenômeno complexo, suscetível de interferência e suscetível às idiossincrasias comuns do cotidiano. Acredita-se que o signo não é perene e sim se adapta conforme a cultura, o tempo, o lugar, e essas são apenas algumas entre tantas variáveis desse fenômeno. Muitos elementos estão envolvidos no mistério da comunicação e da compreensão. Segundo Machado, é importante “estar no lugar de, para alguém”,ou seja, é preciso entender qual é a visão de mundo que existe na audiência alvo da comunicação.

Em relação à audiência, um fato merece atenção e desvela a incapacidade de se comunicar dos brasileiros: grande número de alunos com 15 anos não sabe ler. A compreensão em leitura é uma das habilidades que constituem a prova do PISA - Programa Internacional de Avaliação de Estudantes, juntamente com habilidades de matemática e ciências.

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167 Luciana Braun Reis

O site do INEP, Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, traz maiores informações sobre a prova do PISA e as questões que a subjazem bem como os objetivos da aplicação do programa:

Até que ponto os jovens adultos estão preparados para enfrentar os desafios do futuro? Eles são capazes de analisar, raciocinar e comunicar suas idéias efetivamente? Têm capacidade para continuar aprendendo pela vida toda?2(sic)

Em 2003 participaram do PISA 250 mil adolescentes com 15 anos de idade em 41 países, sendo 30 deles membros da OCDE e os demais países convidados.3

Comparativamente, o Brasil, apesar de uma visão até certo ponto otimista do governo federal, está muito aquém do que se poderia considerar aceitável, conforme pode-se averiguar no anexo 1. Analisaremos especialmente a questão do letramento, pois acreditamos que esse aspecto relaciona-se diretamente com a eficiência do ato comunicativo bem como da compreensão do sujeito e da sua interação com o mundo.

Segundo Cecília Goulard, o aluno de baixa renda precisa entender para que serve a leitura, sendo que entender a origem do aluno e os conhecimentos prévios têm muito valor.

2 Disponível em http://www.inep.gov.br/internacional/pisa/ acesso em 06/12/2010.3 Idem.

2000Posição / Pontuação

2003Posição /

Pontuação

2006Posição / Pontuação

39º - BRASIL - 396,03

38º – BRASIL - 402,80

49º – BRASIL - 392,89

43 países 41 países 56 países

O ser letrado, que tem fluência em leitura, tem capacidade de analisar, compreender, manipular e construir sua realidade de forma autônoma e plena. O indivíduo que não domina a leitura, não domina os códigos e limita-se à “periferia” do mundo contemporâneo. Ele não consegue ter acesso, por exemplo, à compreensão bulas de remédios, de contratos, de jornais, de folhetos, de publicidade ou de embalagens. Observa-se que, na tabela acima, o desempenho dos alunos brasileiros está sistematicamente piorando a média, bem como sua posição entre os países que participam da prova. Ou seja, não se está ensinando os alunos a ler um texto escrito e a retirar dele as conclusões e reflexões esperadas. Isto é, tem-se no Brasil uma população que não domina a leitura e se comunica de forma limitada, uma vez que não atinge nível razoável de compreensão do que lê.

Poderíamos discorrer, talvez em vão, sobre as causas que contribuem para esse cenário. Algumas considerações, contudo, são importantes, especialmente aspectos econômicos e sociais. A escola, na ausência de uma força institucional, familiar ou governamental, tem de dar conta de várias atividades que a desloca da função de ensinar. Investe-se o tempo do aluno e o dos

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168 Como vender para quem não compreende o que lê?

professores em alimentação, ações sociais, algumas vezes assistencialistas que, na tentativa de retirar esta população do abandono, as entregam ao mesmo, não conferindo competência aos alunos para, no mínimo, ler, compreender e refletir sobre o mundo. Ou seja, a escola tornou-se o “núcleo do bem” das comunidades ao invés de ser um núcleo de conhecimento e compreensão.

Essa constatação impacta várias áreas que não estão diretamente relacionadas ao mundo escolar, mas que dependem do ensino para tornarem-se mais eficientes. Essas áreas são mais bem descritas a seguir:

Economia. Em relação aos países pertencentes ao BRIC (Brasil, Rússia, Índia e China) o Brasil está sistematicamente atrás da Rússia nas três edições, assim como da China na última edição. Isso mostra que a velocidade de mudança e capacidade de tornar-se produtivo está favorável naqueles países mais bem localizados no ranking.

Estrutural. Há quem pense que o problema da educação é questão de remuneração e de investimento tanto humano, técnico, bem como financeiro. Sim, são questões a serem consideradas, mas não únicas. Especula-se que deva se pensar sobre o que se está ensinando e qual a validade de relevância para os alunos em seu meio. Em questão à universalidade do ensino, empregam-se os mesmos conteúdos tanto para quem terá uma educação sistemática e continuada, como àqueles que, por estatística, sabe-se que a fase escolar é restrita a episódios normalmente isolados de sua realidade. Em alguns casos, não há integração entre o conhecimento de mundo dos alunos e o projeto pedagógico.

Cultura. Observa-se a diminuição da percepção do ensino como elemento de modificação da hierarquia social. Surgem celebridades endeusadas por outros atributos como aspectos físicos, quantidade financeira, carisma ou até violência, entre outros. Ou seja, as manifestações culturais distanciam-se do ensino ou das práticas escolares.

Cotidiano. A problemática aparece com ênfase na Publicidade, área de interesse da autora. A pergunta que abre o artigo volta à tona: como vender para quem não compreende o que lê? Essa limitação do ensino ainda não tinha sido considerada como um ruído no processo de comunicação contemporâneo. Ou seja, acreditamos que é necessário considerar como o texto é utilizado na publicidade: esse recorte é a inovação e contribuição do artigo à área.

A publicidade e seu entendimento ancorado no texto

O varejo, por exemplo, utiliza em profusão textos. Isso descortina a falta de reflexão da Publicidade sobre questões sociais. Oferecem-se aos consumidores textos em splash, que entram na tela ou aparecem rompendo as páginas dos jornais. Inúmeros itens como diminuição de juros ou outros recursos racionais dificilmente são decodificados ou fazem sentido a grande parte da população.

Observam-se anúncios cuja tônica criativa e comunicacional se dá através de texto, que, em muitos casos, não será decodificado, pois grande número de brasileiros não mostra habilidade efetiva para ler e compreender questões que estão no texto, como mostra o anexo 2.

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169 Luciana Braun Reis

A pergunta continua: “como vender ou se comunicar de forma eficiente com esse público não letrado?” Parece-me que não cabe à publicidade resgatar essa população do anonimato educacional e sim adaptar-se às condições da audiência a fim de prover discurso aceitável. O contrato de fala só se estabelece se quem fala é reconhecido como ser falante. Ou seja, como autoridade e representante de parte do seu mundo.

Ao observar o Contrato de Comunicação Publicitária de Patrick Charaudeau (2006), observamos que a publicidade entende e se apropria das intenções do mundo dos consumidores, na esfera real (amarela) atuando nos ambientes psicossociais. A marca, EUe, é construída a partir da noção de mundo da audiência, criando elos comunicacionais, e fazendo a construção de sentido do diálogo a partir dos reconhecimentos de ambos: EUe e TUd.

Segundo Reis (2008), sobre o contrato de comunicação exposto:

É a possibilidade de aceitar que existem, na formulação do projeto final, seres independentes, porém articulados e empenhados no entendimento e persuasão do outro. De forma inovadora avaliam os aspectos psicossociais, ou seja, situacionais, que interferem na leitura, compreensão e interpretação das peças publicitárias pelo público-alvo. Como se vê, não existe relação simétrica entre os parceiros da comunicação publicitária, mas uma assimetria que caracteriza a relação dialética entre o processo de produção e o de interpretação de uma peça publicitária (p. 117).

Essa noção colabora com Viana (2000) quando esta afirma:

Fatores de ordem cognitiva e interacional caracterizam as produções individuais, e o falante, com base no conhecimento de mundo partilhado com o ouvinte, é capaz de desempenhar-se lingüisticamente, de forma adequada ao contexto situacional. Nesse processo, a consciência metalingüística permite a manifestação não apenas de fatores lingüísticos e extralingüísticos mas também da atividade de autocorreção na produção oral (sic).

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170 Como vender para quem não compreende o que lê?

A problemática deve ser balizada pela questão: de qual comunicação se está falando? Fala-se da comunicação que extrapola o “Be à Bá” instrumental da publicidade tradicional. Há os que acreditam que a comunicação deve explorar a base emocional. Segundo Machado, “as mensagens não apenas têm sentido, mas são sentidas. Produzir sentido não é transmitir algo já dado, mas construir uma dimensão sensível em ato de troca” (p. 290).

Então como fazer para, além de ter sentido, ser sentido? Na prática, a comunicação não deve ser preguiçosa, ao contrário, deve sair às ruas, fazendo parte da vida dos consumidores como agente presente em seu território. Isso é entender que o ser humano é provido de emoção e estas são estabelecidas através das experiências que o consumidor tem com a marca.

Segundo Lindstrom (2008), é por meio das emoções que o cérebro codifica coisas que têm valor, boa parte do que acontece no cérebro é emocional e não cognitivo. Lindstrom (2008) constata que a maioria das atitudes dos consumidores é emocional, ou seja, há espaço para conversar e se relacionar com indivíduos não letrados através de atitudes relacionais, ou seja, constrói-se uma marca somando experiências positivas e essas experiências são vitais à distinção, preferência e fidelidade da marca.

Concluindo, o estudo do ruído “ineficiência de leitura e compreensão do texto”, ineficiência mostrada pela avaliação do PISA, requer atenção dos publicitários na elaboração e gestão da publicidade em relação à

eficiência comunicativa. Espera-se que o artigo tenha alertado à presença desse ruído e sugerido caminhos e mediações para que se consiga vender para quem não compreende o que lê.

RESUMO - A falta de habilidade na decodificação do código letrado dos jovens brasileiros, constatado na avaliação do PISA, pode ser considerado mais um dos muitos ruídos que podem levar à incompreensão de peças publicitárias, bem como do mundo no qual o indivíduo está inserido.

Palavras-chave: Comunicação. Publicidade. Pisa. Leitura. Compreensão.

ABSTRACT - The lack of capacity in decoding the lettered code used by Brazilian youth, assessed by means of PISA (Programme for International Student Assessment), can be considered as one of the many noises that lead to the misunderstanding of advertisements, as well as of the world the individual is inserted.

Keywords: Communication. Advertising. PISA. Reading. Understanding.

Referências

CHARAUDEAU, Patrick. Discurso das mídias. São Paulo: Contexto, 2006.

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171 Luciana Braun Reis

LINDSTROM, Martin. A lógica do consumo : verdades e mentiras sobre por que compramos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, p. 207, 2008.

MAFFESOLI, M. A terra fértil do cotidiano. Revista Famecos, n° 36. Porto Alegre, agosto. 2008, p. 5-9.

REIS, Luciana Braun. A Comunicação do varejo popular: o que (por que) não muda?: o varejo do Rio Grande do Sul – 1970 a 2000. – Porto Alegre, p. 287, 2008.

VIANA, Marília Processos metalingüísticos e matacognitivos na compreensão da leitura. UNICAP. Revista SymposiuM. Ano 4, Número Especial, novembro 2000.

Programa Internacional de Avaliação de Estudantes. PISATM 2006. Competências em ciências para o mundo de amanhã. Volume 1: Análise. MODERNA LTDA. 2008.

Entrevista com Cecília GOULARD, disponível em http://www.youtube.com/watch?v=vMf-YOPHoOE

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172 Como vender para quem não compreende o que lê?

Anexos 1:2000 2003 2006

Clas. País Média Clas. País Média Clas. País Média1 FINLANDIA 546,47 1 FINLANDIA 543,46 1 COREIA 556,022 CANADA 534,31 2 COREIA 534,09 2 FINLANDIA 546,873 HOLANDA 531,91 3 CANADÁ 527,91 3 HONG KONG 536,074 NOVA ZELANDIA 528,80 4 AUSTRALIA 525,43 4 CANADÁ 527,015 AUSTRALIA 528,28 5 LIECHTENSTEIN 525,08 5 NOVA ZELANDIA 521,036 IRLANDA 526,67 6 NOVA ZELANDIA 521,55 6 IRLANDA 517,317 HONG KONG 525,46 7 IRLANDA 515,48 7 AUSTRÁLIA 512,898 KOREA 524,75 8 SUECIA 514,27 8 LIECHTENSTEIN 510,449 REINO UNIDO 523,44 9 HOLANDA 513,12 9 POLONIA 507,64

10 JAPÃO 522,23 10 HONG CONG 509,54 10 SUECIA 507,3111 SUÉCIA 516,33 11 REINO UNIDO 507,01 11 HOLANDA 506,7512 AUSTRIA 507,13 12 BELGICA 506,99 12 BELGICA 500,9013 BELGICA 507,13 13 NORUEGA 499,74 13 ESTÔNIA 500,7514 ISLANDIA 506,93 14 SUIÇA 499,12 14 SUIÇA 499,2815 NORUEGA 505,28 15 JAPÃO 498,11 15 JAPÃO 497,9616 FRANÇA 504,74 16 MACAO 497,64 16 CHINA (TAIWAN) 496,2417 ESTADOS UNIDOS 504,42 17 POLÔNIA 496,61 17 REINO UNIDO 495,0818 DINAMARCA 496,87 18 FRANÇA 496,19 18 ALEMANHA 494,9419 SUIÇA 494,37 19 ESTADOS UNIDOS 495,19 19 DINAMARCA 494,4820 ESPANHA 492,55 20 DINAMARCA 492,32 20 ESLOVENIA 494,4121 REPUBLICA TCHECA 491,58 21 ISLANDIA 491,75 21 MACAO 492,2922 ITÁLIA 487,47 22 ALEMANHA 491,36 22 AUSTRIA 490,1923 ALEMANHA 483,99 23 AUSTRIA 490,69 23 FRANÇA 487,7124 LIECHTENSTEIN 482,59 24 LATVIA 490,56 24 ISLANDIA 484,4525 HUNGRIA 479,97 25 REPUBLICA CHECA 488,54 25 NORUEGA 484,2926 POLÔNIA 479,12 26 HUNGRIA 481,87 26 REP. TCHECA 482,7227 GRECIA 473,80 27 ESPANHA 480,54 27 HUNGRIA 482,37

Page 174: Estudos sobre leitura: Psicolinguística e interfaces

173 Luciana Braun Reis

28 PORTUGAL 470,15 28 LUXEMBURGO 479,42 28 LETÔNIA 479,4929 RUSSIA 461,76 29 PORTUGAL 477,57 29 LUXEMBURGO 479,3730 LATVIA 458,07 30 ITÁLIA 475,66 30 CROACIA 477,3631 ISRAEL 452,17 31 GRÉCIA 472,27 31 PORTUGAL 472,3032 LUXEMBURGO 441,25 32 ESLOVÁQUIA 469,16 32 LITUANIA 470,0733 TAILANDIA 430,68 33 FEDERAÇÃO RUSSA 442,20 33 ITÁLIA 468,5234 BULGARIA 430,40 34 TURQUIA 440,97 34 ESLOVÁQUIA 466,3535 ROMENIA 427,93 35 URUGUAI 434,15 35 ESPANHA 460,8336 MÉXICO 421,96 36 TAILANDIA 419,91 36 GRECIA 459,7137 ARGENTINA 418,25 37 SERVIA 411,74 37 TURQUIA 447,1438 CHILE 409,56 38 BRASIL 402,80 38 CHILE 442,0939 BRASIL 396,03 39 MÉXICO 399,72 39 RUSSIA 439,8640 MACEDONIA 372,51 40 INDONÉSIA 381,59 40 ISRAEL 438,6741 INDONESIA 370,61 41 TUNÍSIA 374,62 41 TAILANDIA 416,7542 ALBANIA 348,85 Total 459,58 42 URUGUAI 412,5243 PERU 327,08 43 MÉXICO 410,50

Total 460,36 44 BULGÁRIA 401,9345 SERVIA 401,0346 JORDANIA 400,5847 ROMENIA 395,9348 INDONÉSIA 392,9349 BRASIL 392,8950 MONTENEGRO 391,9851 COLOMBIA 385,3152 TUNISIA 380,3453 ARGENTINA 373,7254 AZERBAJÃO 352,8955 CATAR 312,2156 QUIRZIQUISTAO 284,71

Total 446,13

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174 Como vender para quem não compreende o que lê?

Limite inferior do escore O que os estudantes tipicamente são capazes de fazer

Nível 5 - 625,6Localizar e possivelmente dispor em sequência ou

combinar informações múltiplas profundamente inseridas, algumas das quais podem estar fora do corpo principal do texto.

Inferir qual das informações do texto é pertinente para a tarefa. Lidar com informações concorrentes altamente plausíveis e/ou abrangentes.

Construir o significado de linguagem matizada ou demonstrar entendimento pleno e detalhado de um texto.

Avaliar criticamente ou formular hipóteses com base em conhecimento especializado.

Lidar com conceitos contrários às expectativas e basear-se em uma compreensão profunda de textos longos ou complexos.

Em textos contínuos, os estudantes são capazes de analisar textos cuja estrutura discursiva não é óbvia nem claramente assinalada, a fim de discernir a relação de partes específicas do texto com intenções ou temas implícitos.

Em textos não-contínuos, os estudantes são capazes de identificar padrões entre muitas informações apresentadas em uma representação visual, que pode ser longa e detalhada, às vezes buscando referências em informações externas à representação visual.

O leitor pode necessitar compreender de maneira independente que uma compreensão plena daquela parte do texto requer que ele busque referência em uma parte separada do mesmo documento – por exemplo, uma nota de rodapé.

Limite inferior do escore O que os estudantes tipicamente são capazes de fazer

Nível 4 - 552,9Localizar e possivelmente dispor em sequência ou

combinar informações múltiplas inseridas, sendo que cada uma delas pode precisar atender a critérios múltiplos, em texto cujos contextos ou formas sejam familiares. Inferir qual informação presente no texto é relevante para a tarefa. Utilizar alto nível de inferências baseadas no texto para entender e aplicar categorias em um contexto não-familiar, e construir o significado de uma parte do texto, levando em conta o texto como um todo. Lidar com ambiguidades, ideias contrárias à expectativa e ideias enunciadas em forma negativa. Utilizar conhecimento formal ou público para formular hipóteses sobre um texto ou avaliá-lo criticamente. Mostrar compreensão exata de textos longos ou complexos. Em textos contínuos, os estudantes são capazes de perceber ligações linguísticas ou temáticas ao longo de diversos parágrafos, muitas vezes na ausência de marcadores claros do discurso, a fim de localizar, interpretar ou avaliar informações inseridas ou de inferir significado psicológico ou metafísico. Em textos não-contínuos, os estudantes são capazes de esquadrinhar um texto longo a fim de encontrar informações relevantes, muitas vezes com pouca ou nenhuma ajuda de elementos organizadores, tais como etiquetas ou formatação especial, para localizar diversas informações a serem comparadas ou combinadas.

Anexo 2:

Descrições resumidas dos cinco níveis de proficiência em leitura

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175 Luciana Braun Reis

Limite inferior do escore O que os estudantes tipicamente são capazes de fazerLimite inferior do escore O que os estudantes tipicamente são

capazes de fazer

Nível 3 - 480,2Localizar e, em alguns casos, reconhecer a relação entre

informações, cada uma das quais pode necessitar atender a critérios múltiplos. Lidar com informações concorrentes proeminentes. Integrar diversas partes de um texto a fim de identificar a ideia principal, entender uma relação ou explicar o significado de uma palavra ou frase. Comparar, contrastar ou categorizar levando em conta muitos critérios. Lidar com informações concorrentes. Fazer conexões ou comparações, dar explicações ou avaliar uma característica de texto. Demonstrar uma compreensão detalhada do texto com relação a conhecimentos familiares do cotidiano, ou basear-se em conhecimento menos comum. Em textos contínuos, os estudantes são capazes de utilizar convenções de organização de texto, quando presentes, e seguir ligações lógicas implícitas ou explícitas – tais como relações de causa e efeito – por meio de sentenças ou parágrafos, para localizar, interpretar ou avaliar informações. Em textos não-contínuos, os estudantes são capazes de considerar uma representação visual à luz de uma segunda representação, separar documentos ou representações visuais, possivelmente em formatos distintos, ou combinar diversas informações espaciais, verbais e numéricas em um gráfico ou mapa, para tirar conclusões sobre a informação representada.

Nível 2 - 407,5 Localizar uma ou mais informações, cada uma das quais pode precisar atender a critérios múltiplos.Lidar com informações concorrentes. Identificar a ideia principal em um texto, compreender relações, formar ou aplicar categorias simples, ou explicar significado dentro de uma parte delimitada do texto, quando as informações não são proeminentes e são

exigidas inferências de nível inferior. Fazer uma comparação ou conexões entre o texto e conhecimentos externos, ou explicar uma característica do texto baseando-se em experiência e atitudes pessoais. Em textos contínuos, os estudantes são capazesde seguir conexões lógicas e linguísticas dentro de um parágrafo, a fim de localizar ou interpretar informações, ou sintetizar informações por meio de textos ou partes de um texto, a fim de inferir a intenção do autor. Em textos não-contínuos, os estudantes demonstram alcançar a estrutura essencial de uma representação visual – tal como um diagrama de árvore simples ou uma tabela – ou combinar duas informações de um gráfico ou tabela.

Nível 1 - 334,8 Localizar uma ou mais informações independentes apresentadas de maneira explícita, que atendem tipicamente a um critério simples, com pouca ou nenhuma informação concorrente presente no texto. Reconhecer o tema principal ou a intenção do autor em um texto sobre um tópico com o qual o estudante tenha familiaridade, quando a informação requerida no texto é proeminente. Fazer uma conexão simples entre informações contidas no texto e o conhecimento cotidiano comum. Em textos contínuos, os estudantes são capazes de utilizar redundância, títulos de parágrafos ou convenções comuns de edição para formar uma impressão da ideia principal do texto, ou localizar informações mencionadas de maneira explícita dentro de um trecho curto de texto. Em textos não-contínuos, os estudantes são capazes de focalizar informações individuais, geralmente dentro de uma única representação visual – tal como um mapa simples, um gráfico linear ou um gráfico de barras –, que apresenta somente uma pequena quantidade de informações de modo direto, e na qual a maior parte do texto verbal limita-se a um pequeno número de palavras ou frases.

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Uma nova proposta de ensino de estratégias de leitura: a utilização da teoria dos blocos

semânticos em sala de aula

João Henrique Casara Borges1

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Questões relacionadas ao ensino são debatidas

constantemente no ambiente acadêmico, especialmente dentro de uma faculdade que visa formar novos professores. Cada área de conhecimento preocupa-se em como se pode fazer os alunos compreenderem da melhor forma possível o que se está sendo proposto. No caso do ensino de Língua Portuguesa, tem-se a preocupação em colaborar para uma formação do estudante como leitor proficiente e ativo dos textos em sala de aula.

Acreditamos que é de fundamental importância que os professores possuam uma boa base nos conhecimentos linguísticos, pois dessa forma serão capazes de diagnosticar possíveis problemas na leitura e produção textual. Aqui trataremos primordialmente da forma como se pode fazer uma leitura aprofundada e ativa de textos, criando assim leitores com capacidade de compreender bem um texto escrito, logo, se tornando capazes de discernir quais informações importantes são subtraídas desse texto.

A Teoria dos Blocos Semânticos (daqui em diante denominada TBS) é o momento atual de estudo da Teoria 1 Mestrando em Linguística Aplicada pela PUCRS, autor do trabalho de conclusão de curso: A construção do sentido em Pão de cada dia de Gabriel, o Pensador, à luz da Teoria dos Blocos Semânticos. E-mail: joã[email protected]

da Argumentação na Língua, desenvolvida por Oswald Ducrot e colaboradores. O ponto principal desses estudos é verificar o papel do linguístico na construção do sentido em objetos de estudo, tais como textos didáticos, ou quaisquer formas de texto escrito. A Teoria dos Blocos Semânticos parte do princípio de que o sentido encontra-se na língua, nos fatores linguísticos inerentes ao texto de forma que esses fatores devem ser os primeiros a serem levados em consideração na leitura. A teoria ainda afirma que todo texto é argumentativo, sendo assim, para seu estudo, criam-se encadeamentos argumentativos que são os responsáveis pela compreensão do sentido no texto.

O presente trabalho será desenvolvido da seguinte forma. Em um primeiro momento serão apresentados os conceitos da Teoria dos Blocos Semânticos que podem servir como base para o estudo do texto. Apenas alguns conceitos serão abordados, porém deixamos claro que o conhecimento da totalidade da teoria é a melhor forma de capacitar o professor a utilizá-la em sala de aula. Além da exposição dos conceitos, serão explicitados seus benefícios para a construção de estratégias de leitura, ainda nesse momento observaremos como a visão cognitivista pode colaborar com o estudo do texto.

Após a fundamentação teórica, os conceitos serão aplicados de forma a demonstrar e validar sua utilização em sala de aula, tentando criar assim uma proposta de ensino de estudo do texto que venha a acrescentar na árdua tarefa de trabalhar leitura em sala de aula. Este trabalho tem o intuito de servir como iniciação a estudos sob esta perspectiva.

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177 João Henrique Casara Borges

Fundamentação teórica

Existem muitas formas de se trabalhar o texto escrito e também diversos modos de abordagem. Neste trabalho usaremos uma abordagem que trata principalmente dos componentes linguísticos, pois acreditamos que o estudo do texto deve começar pelo que o próprio texto contém, para a seguir trabalhar com informações extratextuais.

Inicialmente o conceito de encadeamento argumentativo se faz necessário. Um encadeamento argumentativo é composto por um suporte (primeiro segmento) e um aporte (segundo segmento), unidos por um conector. O conector pode ocorrer de duas formas: uma normativa, representada por donc (DC); e outra transgressiva, representada por pourtant (PT). Esses conectores representam as formas de normatividade e transgressividade e não necessariamente condizem exatamente com o que a gramática normativa estabelece para a conjunção francesa donc e pourtant.

Os encadeamentos terão uma interdependência semântica, ou seja, o sentido criado por esses encadeamentos precisa ter a mesma significação independente dos conectores usados. Tomemos Pedro é feliz. Ele tem muito dinheiro, como exemplo. Nesse caso podemos ter o seguinte encadeamento argumentativo dinheiro DC felicidade, em que dinheiro é o suporte e felicidade o aporte. Isso criaria um bloco semântico em que a ideia de ter dinheiro corresponde à ideia de felicidade, ou seja, para ser feliz é preciso dinheiro. Partindo desse exemplo podemos criar outros três encadeamentos: neg-dinheiro PT felicidade, dinheiro PT neg-felicidade e ainda

neg-dinheiro DC neg-felicidade. Se chamarmos dinheiro de A e felicidade de B, teremos os seguintes encadeamentos respectivamente: A DC C, Neg-A PT B, A PT Neg-B e Neg-A DC Neg-B. Temos assim dois aspectos normativos e dois transgressivos que são interdependentes e correspondem à ideia de que para a felicidade é preciso dinheiro.

A negação de um dos segmentos, ou ambos, é parte fundamental na construção do bloco semântico. No caso dos encadeamentos descritos acima, se temos apenas uma negação teremos um sentido transgressivo para o encadeamento, caso os dois segmentos sejam negados voltamos a ter o aspecto normativo.

Mostraremos agora como um bloco semântico é estabelecido. Um encadeamento argumentativo é constituído pela relação entre duas informações, aqui chamadas de A e B. Quatro encadeamentos formam um bloco semântico, mas para isso eles devem ter a mesma interdependência semântica.

Por exemplo, o enunciado de Carel (2005, p. 23): “temos um verdadeiro problema, portando, deixemo-lo de lado” pode ser descrito através do seguinte encadeamento A DC B, em que A significa dificuldade e B tem o significado de postergar. Esse encadeamento encabeça o bloco semântico que chamaremos de 1. Depois dele temos a variação de conector e também da posição da negação. Sendo assim, forma-se o seguinte bloco que daqui em diante será denominado BS1:

1 A DC B A PT NEG-B NEG-A PT B NEG-A DC NEG-B

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178 Uma nova proposta de ensino de estratégias de leitura: a utilização da teoria dos blocos semânticos em sala de aula

Podemos ainda construir outro bloco semântico partindo do enunciado, também de Carel (2005, p. 23): “temos um verdadeiro problema, portanto não deixemo-lo de lado”. Esse enunciado pode ser representado por A DC Neg-B. Como visto anteriormente, mudando o conector e a posição da negação temos outros três aspectos, além desse, e eles formam o bloco semântico que denominaremos BS2:

2 A DC NEG-B A PT B NEG-A DC B NEG-A PT NEG-B

Os segmentos A, como sendo dificuldade, e B, postergar, mantêm o mesmo sentido em ambos os blocos, porém devemos frisar que no BS1 se tem a ideia de que frente a uma dificuldade devemos postergar a solução, enquanto que em BS2 a ideia é de que quando encontramos uma dificuldade não devemos postergar sua solução. Dessa forma podemos afirmar que a interdependência varia de BS1 para BS2.

Fica claro que a interdependência semântica depende do objeto escolhido para o estudo. Em ambos os blocos descritos A corresponde a dificuldade e B a postergar. No entanto, de acordo com cada enunciado temos uma forma diferente de relação entre eles.

A noção de bloco semântico é formalizada através do quadrado argumentativo. A e B podem se combinar de forma a criar oito aspectos diferentes que são agrupados

em dois blocos distintos. Cada bloco semântico formará um quadrado argumentativo.

Para a formalização do quadrado argumentativo, devemos seguir algumas convenções. São elas: CON significa conector (tanto o normativo, quanto o transgressivo); se CON designa um conector de certo tipo, CON’ designará o oposto; e também as letras X e Y designam o que precede e o que sucede os conectores.

Dessa forma construiremos o quadrado da seguinte forma:

O quadrado argumentativo ilustra bem as relações entre os segmentos. Por exemplo: dinheiro DC felicidade encontra-se no canto superior esquerdo do quadrado, seu aspecto recíproco, no canto superior direito, corresponderia ao encadeamento neg-dinheiro DC neg-felicidade. Isso mostra que o exato oposto de um encadeamento, ou seja, a utilização de negação nos dois lados do encadeamento forma

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179 João Henrique Casara Borges

uma ideia recíproca. Enquanto a utilização de apenas uma negação e a troca de conector forma um aspecto converso, representado na parte inferior direita, no caso de A DC B.

Os encadeamentos esclarecem as relações de sentido nos textos e partem do linguístico presente no texto, ou seja, traduzem de forma argumentativa o que está presente. Assim a importância é inegável, pois o texto significará o que está escrito nele. De acordo com o contexto presente criamos as relações possíveis. Nem todas as relações são possíveis, apenas aquelas que podem ser descritas pelos blocos e pelo quadrado argumentativo.

No ensino temos a preocupação de mostrar aos alunos as ideias presentes nos textos. Utilizando os encadeamentos argumentativos teremos uma base fortemente fundamentada para o estudo, pois tratam do que está presente estruturalmente no texto.

Passemos agora ao conceito de Argumentação Interna (AI). Para Carel (2005, p. 64),

a argumentação interna de uma entidade e está constituída por um certo número de aspectos aos quais pertencem os encadeamentos que parafraseiam essa entidade e.2

Em outras palavras, a AI diz respeito às paráfrases que são possíveis de serem construídas a partir de um item lexical.

Carel (2005, p. 65) traz os seguintes exemplos: prudente, temeroso e inteligente, como podendo ser

2 La argumentación interna (AI) de una entidad e está constituida por un cierto número de aspectos a los que pertenecen los encadenamientos que parafrasean esta entidad e.

parafraseados, respectivamente, da seguinte forma através da utilização de encadeamentos: perigo DC precaução, neg perigo PT precaução e difícil PT compreende. É importante destacar que se queremos parafrasear um item lexical não podemos utilizá-lo na paráfrase. Devem ser utilizados diferentes itens ou expressões. Paráfrase, aqui, quer dizer um encadeamento que pode ser construído a partir da entidade em análise, que pode ser um item lexical, um sintagma, um enunciado ou parte de um discurso.

No caso da Argumentação Externa (AE) o sentido contido em uma determinada entidade nos leva mais adiante, ou ainda nos faz chegar naquela entidade. A AE pode ser encontrada de duas formas: à direita ou à esquerda. As AE à esquerda são constituídas pelas continuações e as AE à direita são formadas por tudo aquilo que pode preceder a entidade e. Na AE à direita de prudente, podemos ter o seguinte encadeamento prudente DC segurança, e na AE à esquerda o segmento tem medo DC é prudente é possível (CAREL, 2005, p. 63).

Ainda no caso da AE, temos mais duas definições importantes: AE estruturais e contextuais. Para CAREL (2005, p. 63-64):

as AE são estruturais se fazem parte da significação linguística de uma entidade, se estão previstas pela língua. É o caso de prudente DC segurança / prudente PT neg-segurança. Ambos aspectos fazem parte da significação de prudente

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180 Uma nova proposta de ensino de estratégias de leitura: a utilização da teoria dos blocos semânticos em sala de aula

pelo fato de que prudente está vinculado a segurança por um DC e por Neg-segurança por um PT3.

No caso das AE contextuais, é a situação de discurso que vincula o sentido à entidade. Por exemplo, como visto acima, prudente pode ter a seguinte AE estrutural: É prudente DC confio nele. No entanto se criarmos uma situação discursiva em que ser prudente não inspire confiança, o encadeamento pode ser outro.

Vejamos a seguinte situação: uma pessoa contrata um guarda costas que deve protegê-lo de assassinos. Se o guarda costas for prudente, não arriscará a própria vida para proteger aquele que o contratou, logo podemos criar o seguinte encadeamento prudente DC neg-confiança (CAREL, 2005, p. 64).

As argumentações externas demonstram quais as possibilidades de relação de uma determinada entidade, sendo assim podemos afirmar que os textos possuem um número limitado de possibilidades de interpretação. Isso garante que em estudos interpretativos em sala de aula os alunos possam ser direcionados a reler os textos em busca das informações corretas. A releitura é parte importante da boa compreensão de um texto, delimitando as possibilidades de interpretação estaremos levando o aluno a buscar no texto as informações presentes que proporcionem interpretações condizentes. 3 Las AE son estructurales si forma parte de la significación lingüística de una entidad, si están previstas por la lengua. Es el caso de prudente PLT seguridad / prudente SE Neg-seguridad. Ambos aspectos forman parte de la significación de prudente por el hecho de que prudente está vinculado a seguridad por un PLT y a Neg-seguridad por un SE.

O cognitivismo expressa uma visão diferenciada, mas que pode servir como apoio à TBS. Enquanto a TBS parte do texto para a construção do conhecimento, o cognitivismo estuda as atitudes do leitor frente a seu objeto, ou seja, analisa as possíveis inferências que podem estar sendo feitas no momento da leitura.

O estudo do texto corresponde ao conhecimento linguístico (conhecimento do léxico e da gramática, respon-sável pela escolha dos termos e da organização do mate-rial linguístico na superfície textual, inclusive dos elementos coesivos) e a análise das inferências diz respeito ao conhecimento enciclopédico (compreende as informações armazenadas na memória de cada indivíduo. O conheci-mento do mundo compreende o conhecimento declarativo, manifestado por enunciações acerca dos fatos do mundo).

Para Smith (1999) a leitura é a ponte entre o que está atrás dos olhos com o que está na frente dos olhos. É necessário, além de decodificar, encontrar o sentido de um texto, caso contrário não podemos chamar de leitura. Então, a leitura é uma atividade que acontece por meio de antecipação, realizada através do conhecimento prévio e exige do leitor uma atitude reflexiva, a qual lhe favorece compreender e explicar as coisas.

Solé (1998) mostra que para uma leitura proficiente é necessário que o leitor sinta que é capaz de ler, de com-preender o texto tanto de forma autônoma como buscando ajuda de leitores mais experientes. Aponta ainda que a lei-tura de verdade é aquela que os leitores têm o domínio de experimentá-la da forma como for mais conveniente.

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181 João Henrique Casara Borges

Proposta de estudo de um texto

Escolhemos um texto retirado da Folha de S. Paulo, Caderno de Esportes. Publicado em São Paulo, sábado, 27 de maio de 2000, escrito por Eduardo Ohata (da Reportagem Local). O texto foi previamente adaptado para estudos em sala de aula. Chama-se O homem de gelo. A seguir o texto:

A – 30 ºC, o sangue frio será, em diversos sentidos, a principal arma de Waldemar Niclevicz, 33, em sua terceira tentativa de se tornar o primeiro brasileiro a escalar o K2, segunda maior montanha do mundo e a mais perigosa, localizada no norte do Paquistão, perto da fronteira com a China.

O K2, com 8.611m, por seu alto grau de dificuldade — 54 pessoas morreram ao tentar escalá-lo —, foi conquistado por só 164 alpinistas e também já provocou muitas mortes na descida. Embora seja o mais alto e famoso do mundo, o Everest, de 8.848m, teve a escalada concluída por 1.200 pessoas.

Niclevicz, o primeiro brasileiro a escalar o Everest e que tentou e teve de desistir da escalada do K2 em 1998 e 1999, deixa o país nesta quarta, acreditando que estar frio será importante em dois aspectos: o climático e o psicológico.

“Quanto mais frio, melhor. Isso significa que o clima está estável e há menos riscos de avalanches. Sinto-me mais seguro quando estamos a – 30 ºC ou temperaturas

mais baixas. É quando a temperatura começa a oscilar que chega a hora de nos preocuparmos”.

O alpinista brasileiro acredita que pare ser bem sucedido nesta nova tentativa também vai ser fundamental o sangue-frio que adquiriu com a experiência acumulada nas duas vezes em que tentou escalar o K2, por já conhecer bem a rota de escalada, chamada de Esporão dos Abruzzos.

O K2 é considerado mais difícil de escalar — há três anos ninguém alcança seu topo —, pois tem um alto grau de inclinação, com contornos abruptos, além de ficar na parte mais inacessível da Cordilheira do Himalaia, onde não há estrutura ou vilas.

Em sua primeira tentativa, em 1998, o brasileiro foi obrigado a desistir por causa de uma avalanche, após ter alcançado os 8.040m. Na segunda, no passado, a morte de um colega romeno, atingido na cabeça por uma pedra, impressionou o grupo de alpinistas e levou Niclevicz a desistir.

Hoje, ele acha que tem mais sangue-frio, ao se acostumar com ocorrências que antes o assustavam, como, além dos acidentes, as avalanches com pedaços de corpos de pessoas desaparecidas.

“Respeito muito o K2, é realmente uma escalada perigosa. Mas hoje não fica mais impressionado com ele. Sabemos

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182 Uma nova proposta de ensino de estratégias de leitura: a utilização da teoria dos blocos semânticos em sala de aula

como chegar ao topo, depende de nós mesmos, é uma escalada interna”, filosofa. “Perguntam se eu gosto de adrenalina. Ao contrário, sou muito prudente, com os pés no chão. Esse é meu segredo”.

A estrutura apresenta parágrafos curtos e com as

ideias bem elaboradas, cada parágrafo tem, claramente, um tema principal.

De acordo com a fundamentação teórica apresentada, iremos tratar primeiramente das argumentações internas de algumas palavras. Por exemplo, no primeiro parágrafo temos a palavra arma, em que podemos criar o seguinte encadeamento sangue-frio DC ajuda para escalar, que pode ser considerado a AI da palavra arma, dentro desse texto, mais especificamente, dentro desse parágrafo. A forma como a palavra é empregada deixa claro que sangue-frio será importante para a escalada. No entanto, aqui, arma tem um sentido diferente de outros possíveis. Não se trata de uma arma de fogo e nem de algo que pode ser usado para ferir. Esse esclarecimento ajudará os alunos a compreenderem a importância de uma leitura um pouco mais cuidadosa do texto, em que se deve levar em consideração o contexto presente no objeto de estudo.

Ao pensar na Argumentação Externa, podemos concluir algo como possuir uma arma DC mais condições de escalar então se pode afirmar que, de acordo com o texto, e com a AI de arma construída anteriormente, a posse de uma arma é algo positivo. Esse é um caso de AE contextual. Não podemos analisar o item lexical de forma

isolada, devemos sempre analisá-lo em suas relações com o resto do texto. Ao se chegar a um encadeamento argumentativo, derivado do anterior, como arma DC bom podemos utilizar essa ideia para chamar a atenção dos estudantes para o texto. Se uma questão como “Por que é positivo possuir uma arma?” for levantada, e indicações de que ela seja respondida de acordo com o texto, os alunos terão o esforço de entender o que significa o item lexical arma e também de que forma ele pode ser utilizada em um contexto que diga que arma é algo positivo.

Vamos agora à formação de um bloco semântico a partir de uma ideia presente no texto. No quarto parágrafo temos o seguinte enunciado Quanto mais frio, melhor. Usando-o como base para criar um bloco semântico podemos começar com o encadeamento frio DC bom, e usando o quadrado argumentativo podemos criar os outros três restantes: neg frio PT bom, frio PT neg bom e neg frio DC neg bom. Esses quatro encadeamentos representam o bloco semântico que afirma que o frio traz benefícios. É importante frisar que a ideia traduzida pelo bloco é uma opinião contida no texto, não deve ser levada como uma verdade arbitrária, pois em outras situações o frio pode não trazer benefício algum.

Ao esclarecer para os alunos que as condições de verdade dependem do objeto que está sendo estudado, a atenção do aluno se volta, mais uma vez, para o texto fazendo com que a opinião pessoal seja deixada para outro momento. As opiniões de cada indivíduo são extremamente importantes, mas não devem ser colocadas como a prioridade no estudo linguístico de um texto, pois, se isso acontecer, os estudos serão baseados em opiniões e interpretação que podem não

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183 João Henrique Casara Borges

estar presentes no texto. E retirar informações que não estão no texto, nem podem ser ativadas por inferências, pode ser considerada uma forma não apropriada de leitura.

Acreditamos que o próprio texto indique o momento de se buscar mais fortemente uma inferência extralinguística, ou seja, aquela que não está presente na estrutura linguística do texto devendo ser acessada pelo conhecimento de mundo. O caso da palavra arma referido acima é um bom exemplo disso. Para entender o contexto em que ela está sendo usada, e compreender seu sentido, necessitamos do conhecimento de mundo associado ao contexto linguístico do texto em que ela está inserida.

RESUMO – O presente artigo visa propor uma forma de trabalho com o texto em sala de aula. Para isso acreditamos ser necessário o conhecimento de teorias linguísticas por parte do professor, que deve criar uma ponte entre a teoria que deseja utilizar e sua aplicação na metodologia de ensino. Nessa proposta utilizaremos alguns conceitos da Teoria dos Blocos Semânticos, tais como argumentação interna e externa e encadeamentos argumentativos, como uma forma de estudo do texto, e também levaremos em consideração a visão cognitivista da atividade de leitura.

Palavras-chave: Ensino. Texto. Blocos Semânticos. Cognitivismo.

ABSTRACT – This paper intends to demonstrate a new way of working the text in classroom. In order to achieve this we believe is necessary that teachers know the linguistic

theories. Teachers who must create a bridge between theory and its application in teaching methodology. In this proposal we will use some concepts of the Theory of Semantic blocks, such as internal and external arguments and chains of argument, as a way to study the text. The article will also take into account the view of the cognitive activity of reading.

Keywords: Teaching. Text. Semantics Blocks. Cognitive Science.

Referências

CAREL, Marion. La semántica argumentativa: una introduicción a la teoría de los bloques semánticos. 1ªed. Buenos Aires: Colihue, 2005. Tradução: Maria Marta García Negroni e Alfredo M. Lescano.

SMITH, Frank. Leitura significativa. 3ªed. Porto Alegre: Editora Artes Médicas Sul Ltda.1999. Tradução: Beatriz Affonso Neves.

SOLÉ, Isabel. Estratégias de leitura. 6ªed. Porto Alegre: Artmed, 1998.

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A interferência das otites médias no processo de alfabetização1

Fernanda Dias2

Fale com a autora

A aquisição da linguagem escrita tem sido objeto de

investigação de diferentes campos do conhecimento. Tais estudos contribuem para o entendimento da aprendizagem normal da leitura. Contudo, oportunizam espaço para ques-tionamentos quanto a possíveis intercorrências no início da alfabetização. Um quadro clínico comum e muitas vezes despercebido em sala de aula é o das otites de repetição, mais conhecido como otite média crônica. Em função da grande incidência dessa doença na faixa etária pré-escolar e escolar, faz-se necessário investigar se o prejuízo auditi-vo decorrente de tal problemática pode interferir nas habili-dades de consciência fonológica e, consequentemente, na emergência da leitura.

Consciência fonológica é definida por Freitas (2004) como a habilidade de fazer uma reflexão consciente sobre os sons que compõem a fala. Dessa maneira, é possível jul-gar e manipular a estrutura sonora das diferentes palavras. Existem tarefas de consciência fonológica, as quais reque-rem o armazenamento da unidade na memória enquanto é realizada a manipulação. Elas podem variar de acordo com

1 Artigo elaborado para a disciplina Compreensão de Processamento da Leitura 2010/2.2 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Linguística da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS. Email: [email protected].

a quantidade de sílabas, o contexto, a posição do som na palavra, a quantidade de operações cognitivas exigidas e o tipo de operação. Estas habilidades são desenvolvidas gradualmente, sendo que o nível mais complexo é o dos fonemas. Os níveis anteriores são os das sílabas e das uni-dades intrassilábicas.

A literatura tem reconhecido a relação entre a cons-ciência fonológica e o processo de alfabetização. Para melhor compreender as possíveis interlocuções entre tais aspectos, é fundamental conhecer os diversos pontos de vista que compõem a relação da consciência fonológica e a aprendizagem da leitura e escrita.

A partir dessas considerações, três concepções con-trárias foram desenvolvidas sobre a relação dessa habilida-de com a escrita. A primeira sugere que são as capacidades metafonológicas que possibilitam a aquisição da escrita. Constata-se, entretanto, a sensibilidade grafêmica aparen-ta já estar presente antes que se desenvolva a consciência fonológica. Assim, Freitas (2004) traz um segundo ponto de vista, o qual refere que a escrita é adquirida antes das habi-lidades metafonológicas. Se ainda não se alfabetizaram, as crianças não pensam com clareza sobre a organização da fala. Porém, essa colocação limita-se apenas à consciên-cia fonêmica, esquecendo os outros dois níveis, certamente emergidos antes da alfabetização.

Finalmente, uma última abordagem afirma, segun-do Freitas, que a consciência fonológica e a aquisição do código escrito são mutuamente influenciadas. Assim, a aprendizagem da leitura proporciona o aprimoramento das habilidades metalinguísticas, ainda que alguns níveis de

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185 Fernanda Dias

consciência fonológica precedam à alfabetização. O pro-cessamento de leitura do tipo ascendente (KATO, 2007), característico dos leitores em fase de aprendizagem, tanto requer a análise dos segmentos da palavra quanto propor-ciona uma maior consciência dos mesmos.

A discussão anterior aponta para uma relação en-tre a consciência fonológica e o aprendizado lectoescrito. Entretanto, para manipular os fonemas durante a alfabeti-zação, a criança precisa de uma boa acuidade auditiva, a fim de identificar os traços que os diferenciam. Gonçales (2002) lembra que o fato da acuidade auditiva existir desde o período intraútero não é o bastante para a compreensão das informações auditivas e seu uso como instrumento de comunicação. A capacidade de análise e interpretação dos sons, os quais foram detectados pelo sistema auditivo pe-riférico, é fundamental para aquisição de tais habilidades.

Crianças que apresentam perdas auditivas frequen-tes devido aos episódios de otite podem ter dificuldades para desenvolver as habilidades auditivas. Um dos traços mais sutis a ser discriminado é o de sonoridade, que pode, entretanto, alterar o sentido de toda a palavra. Sendo as-sim, tal habilidade é fundamental no processo de decodifi-cação. Outro fator relacionado é a redução da capacidade atencional a esses sons. Prejuízos dessa natureza podem, portanto, gerar problemas de aprendizagem, especialmente no processo de alfabetização.

Um questionamento que se faz necessário é se os prejuízos auditivos gerados pela otite média crônica podem alterar a aquisição das habilidades de manipulação dos sons durante a leitura. Dessa forma, busca-se no presente

artigo encontrar possíveis inter-relações entre as variáveis alfabetização, consciência fonológica e alta incidência de otites. Pretende-se, assim, buscar na literatura indicadores que apontem para essa relação, os quais possam sugerir a importância de um olhar atento a essas possíveis intercor-rências nos primeiros anos de vida.

1. As hipóteses e os desafios no processo de alfabetização

É possível observar que as crianças interessam-se pelas questões relacionadas à leitura e escrita muito antes do ingresso no Ensino Fundamental. Desde muito cedo elas formulam suposições acerca desse processo. É inegável o reconhecimento do trabalho de Ferreiro e Teberosky (1999) sobre as hipóteses em questão. Seus estudos realizados com crianças em faixa etária pré-escolar, desde o quarto ano de vida, indicaram cinco diferentes níveis no percurso de apropriação da língua escrita. Os dois primeiros níveis são correspondentes à escrita pré-silábica; o terceiro refere-se à hipótese de escrita silábica; o quarto nível está relacionado à escrita silábico-alfabética; e o quinto nível, à hipótese de escrita alfabética.

No nível inicial, o infante busca reproduzir os traços que julga como básicos na escrita. Embora as escritas nesse período sejam parecidas, as crianças as consideram diferentes, uma vez que a intenção ao realizá-las era distinta. Nesse momento, Ferreiro e Teberosky entendem que a escrita ainda não parece transmitir informação, a interpretação só é possível pelo escritor. Ainda existe a

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escrita de substantivos para a escrita de frases, porém, pode atribuir uma letra para cada constituinte imediato. Nesse último caso, irá selecionar uma letra para o sujeito e outra para o predicado, por exemplo.

O quarto nível pode ser considerado o momento de transição da hipótese de escrita silábica para a alfabética. O conflito entre a hipótese silábica e o número mínimo de grafemas leva a criança a buscar uma análise diferenciada da que tem realizado até então. Agora a criança já sabe que as letras correspondem a valores sonoros menores do que as sílabas, de acordo com Ferreiro e Teberosky (1999). Aqui, a atenção está voltada para os aspectos intrassilábicos (ZORZI, 2009).

O nível alfabético indica que a criança já se alfabetizou, conforme Ferreiro e Teberosky. Nesse período, o infante consegue segmentar os vocábulos em seus constituintes fonêmicos. Todavia, Zorzi (2009) alerta que tal capacidade não representa garantia de compreensão das regras que estabelecem as convenções da escrita. Assim, já pode analisar as palavras fonemicamente, porém passa a lidar com as dificuldades que a ortografia impõe.

Uma proposta alternativa de apresentação das fases de aquisição de leitura é trazida por Dehaene (2009a). O autor realiza uma divisão em três etapas. A primeira delas é a fase pictórica, um período relativamente curto no qual os pequenos «fotografam» apenas alguns vocábulos. A segunda fase é denominada estágio fonológico, período em que aprendem a decodificar grafemas em fonemas. A última etapa é chamada de fase ortográfica, momento no qual observa-se um reconhecimento de palavras mais rápido e automático.

crença de que o tamanho da palavra seja proporcional ao objeto a que ela se refere ou às características do objeto. Este é possivelmente um dos fatores que impossibilita a relação entre a escrita e a sua forma sonora. Zorzi (2003) complementa com a afirmação de que nesse período não se observa correspondência entre os sons e suas representações gráficas, uma vez que a criança ainda não analisa os componentes sonoros dos vocábulos. Ela já consegue manipular seus componentes silábicos, mas não o faz na escrita. Mesmo distinguindo a escrita do desenho, estes últimos são eventualmente usados para assegurar o significado.

No nível dois, as crianças acreditam que palavras diferentes não podem ter a mesma grafia. A partir desse momento, passa a haver um registro de um número mínimo de grafismos, diferentes de uma palavra para outra. Ferreiro e Teberosky sugerem a possibilidade da aquisição de certas formas fixas (ex: seu nome) e a recusa em escrever palavras que desconhecem a grafia. A criança pode também usar modelos que já conhece para escrever outras palavras (ex: mudando as letras do nome de lugar).

No nível silábico, a criança já tenta atribuir um valor sonoro a cada um dos grafemas de uma escrita. Dessa forma, cada sílaba é representada por uma letra, cuja grafia pode ser diferente ou não do grafema. A sílaba também pode apresentar um valor sonoro estável. Outra possibilidade apontada por Ferreiro e Teberosky é a criança inserir letras a mais quando houver conflito da hipótese de escrita silábica com a de quantidade mínima de grafemas. O aluno pode manter a hipótese silábica ao passar da

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187 Fernanda Dias

O processo de aprendizagem da leitura também é discutido por Scliar-Cabral (2008). A autora refere que, num primeiro momento, a criança percebe sua fala como um contínuo, escrevendo símbolos gráficos não separados por espaços. Apenas no período seguinte ela consegue relacionar um símbolo para cada sílaba, etapa que pode ser considerada equivalente à hipótese silábica de Ferreiro e Teberosky (1999). Nessa etapa, a criança é capaz de segmentar a cadeia da fala em sílabas em um nível consciente. Contudo, não entende como uma ou mais letras não são correspondentes a uma sílaba, mas sim a um fonema. Percebe-se, portanto, que ela não consegue conscientemente decompor uma sílaba em uma unidade menor. Para dar conta dessa demanda, Scliar-Cabral entende que os neurônios precisam aprender determinadas regras para a atribuição dos valores fonológicos aos grafemas. Entre elas, são citadas as regras de correspondência fonema-grafema, as que dependem da metalinguagem e as que dependem do léxico mental ortográfico. O aprendizado da leitura ocorre, para a autora, por meio de processos bottom-up, pelo qual as letras são relacionadas aos seus valores fonológicos. Ela entende, portanto, a aquisição leitora como um processo analítico.

Algumas considerações reiteram esse processo de aprendizagem da leitura, que se dá de forma ascendente (das partes ao todo). Dehaene (2009b) sugere que a cultura evoluiu para que o cérebro pudesse apreendê-la. Essa ideia justifica o fato de as formas das línguas escritas evoluírem para uma gradual simplificação. Assim, é provável que os grafemas tenham se originado dos contornos de formas visuais naturais. O autor entende

que é possível “reciclar” uma área do encéfalo, de modo a atribuir-lhe uma nova função. A leitura pode ser um destes exemplos de “reciclagem neuronal”. A aprendizagem da leitura ocorre a partir de sutis alterações nos circuitos do cérebro, partindo de uma estrutura que já existia anteriormente. Dehaene defende que o cérebro não utiliza os contornos gerais do vocábulo e sim realiza rapidamente uma segmentação deste em letras. Dessa forma, a pessoa acredita que a palavra foi lida de forma global.

2. A metalinguagem e a consciência fonológica

Consciência e linguagem são assuntos intimamente relacionados. De acordo com Flôres (2009), muitos estudos têm buscado diálogo entre os temas. O ingresso na escola e o processo de alfabetização demandam a tomada de consciência de aspectos como a relação entre fonemas e letras, por exemplo. Talvez seja esse o motivo que levou Flôres a destacar a grande quantidade de pesquisas na área de consciência fonológica.

A capacidade de manipular a linguagem, tanto em sua produção quanto em sua compreensão, ocorre precocemente. Gradativamente, essa habilidade vai se tornando consciente. As atividades de metalinguagem correspondem justamente a essas tarefas conscientes e reflexivas dos aspectos linguísticos. Elas implicam, portanto, uma habilidade de reflexão e autocontrole em relação à linguagem. No entanto, Gombert (1999) lembra que o surgimento da habilidade metalinguística não deve ser confundido com o surgimento da faculdade da linguagem.

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O conceito de consciência metalinguística é definido por Yavas (1998) como a habilidade do ser humano de tratar a linguagem como objeto de análise e reflexão, além da possibilidade de planejar e controlar seus processos linguísticos. Dessa forma, o indivíduo consegue refletir sobre a sua linguagem. Tunmer e Bowey (apud FLÔRES, 2009) complementam a definição de consciência linguística afirmando que esta trata da utilização do sistema linguístico para que o indivíduo possa compreender e produzir sentenças. Segundo os autores, elas se manifestam tanto por meio de atividades linguísticas espontâneas quanto pelas baseadas em conhecimentos que foram internalizados e aplicados de maneira intencional.

A expressão da habilidade metalinguística demanda, de acordo com Flôres (2009), o domínio de diversas capacidades. As habilidades citadas contemplam segmentar a fala em suas unidades constitutivas, ressaltar os vocábulos de seus referentes, perceber semelhanças sonoras entre as palavras, analisar a adequação dos aspectos semânticos e sintáticos da frase ou texto, examinar a forma de distribuição das informações no texto. Tais habilidades são consideradas fundamentais para o processo de alfabetização.

Dentro das muitas dimensões que a consciência linguística apresenta, optou-se por destacar a consciência fonológica, uma vez que o principal prejuízo gerado pelo quadro de otites frequentes seria possivelmente nesse nível. As perdas auditivas de condução, muitas vezes causadas pelas otites médias, não seriam suficientes para afetar a compreensão do sentido global dos enunciados nem mesmo da maneira como as frases se estruturam.

Sendo a consciência fonológica um dos objetos da presente discussão, é necessário conceituá-la. Freitas (2003) discute o assunto, referindo que a consciência fonológica requer uma habilidade em reconhecer que os vocábulos são constituídos por sons, os quais podem ser manipulados de modo consciente. Tal capacidade, segundo a autora, possibilita o reconhecimento de que as palavras rimam, terminam ou começam com o mesmo som. Além disso, a criança consegue perceber que os vocábulos são formados por sons individuais e que estes, por sua vez, podem ser manipulados para a construção de palavras novas.

As habilidades conceituadas no parágrafo anterior abrangem diferentes capacidades, as quais se desenvolvem em momentos distintos. Dessa maneira, podemos concluir que a consciência fonológica se manifesta em diferentes níveis. Os principais são o das sílabas, o das unidades intrassilábicas e o dos fonemas. Moojen & Santos (2001) referem que tais níveis exigem aumento gradual de complexidade linguística. Dessa forma, os processos iniciais encontram-se primeiro no nível das sílabas, passando pelas unidades intrassilábicas e, finalmente, os fonemas. Esses níveis são constituídos por tarefas, as quais demandam graus de complexidade distintos. Nesse contexto, é possível citar tarefas referentes a contagem, segmentação, união, adição, supressão, substituição e transposição de sílabas e fonemas.

Os diferentes níveis de consciência fonológica podem ser observados durante todo o processo de alfabetização. A fim de posteriormente relacioná-los com aquisição da linguagem escrita, os mesmos serão elucidados a seguir.

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O nível silábico da consciência fonológica contempla a capacidade que a criança adquire para segmentar palavras em sílabas, aglutinar sílabas para formar vocábulos e reconhecer que certas sílabas compõem palavras. Zorzi (2009) conclui que nessa fase já se pode observar que as palavras são decompostas em subunidades. Em geral, esse é o nível mais simples (exceto pela sensibilidade à rima) e, portanto, o primeiro que a criança acessa. A sílaba é entendida por Gombert (1992) como a unidade natural de segmentação da fala, por isso seria mais fácil para a criança, se comparado aos demais. Tal habilidade manifesta-se precocemente e de forma espontânea nas brincadeiras.

As habilidades de nível intrassilábico referem-se à percepção de que os vocábulos podem ser divididos em unidades maiores que o fonema, contudo, menores que a sílaba. Zorzi (2009) refere que as sílabas são compostas por “onset” (também chamado de ataque, que se refere à(s) consoante(s) inicial(ais)) e “rima” (alude os elementos que surgirem a partir da primeira vogal).

A consciência de nível fonêmico está relacionada com a habilidade de segmentar palavras e sílabas em unidades sonoras menores que as anteriores. Essas unidades são os fonemas. Scherer (2008) lembra que tal nível também é comumente chamado de consciência fonêmica. Ao citar Goswami & Bryant (1990), destaca que o fonema é considerado a menor unidade sonora que pode transformar o sentido da palavra. A autora ressalta que o nível fonêmico, comparado aos demais, é o que demanda maior maturidade linguística da criança, devido ao fato de solicitar que ela manipule com as menores unidades da

língua. A tarefa pode tornar-se difícil, visto que muitas vezes o falante ainda nem percebe esses sons dentro da palavra.

O fato de a consciência fonêmica ser a mais complexa leva ao questionamento de sua possível relação com as hipóteses que a criança realiza ao ler. A literatura ainda diverge sobre qual dos dois aspectos seria mais influente ao outro, discussão a ser trazida no seguimento do trabalho. Scherer (2008) ainda cita Goswami & Bryant (1990) em defesa da importância da consciência fonêmica para a alfabetização. Os autores argumentam que o conjunto de grafemas em uma palavra corresponde a um grupo de fonemas que o pequeno falante deve perceber para o ato de ler, uma vez que as letras do alfabeto representam os sons da língua. A afirmação aponta para a relevância da relação entre consciência fonêmica e o processo de aprender a ler.

Capacidades como consciência fonológica, atenção, memória, síntese, compreensão, interpretação de informações auditivas, entre outras não são consideradas pela ASHA (2005) competências do processamento auditivo, ainda que estejam relacionadas à integridade das funções auditivas centrais. Essas últimas são consideradas funções superiores cognitivo-comunicativas ou ainda, funções relacionadas aos aspectos linguísticos. Rueda (1995) relaciona os processos cognitivos que desempenham alguma influência nas atividades que mensuram o conhecimento fonológico em diferentes graus de complexidade. Os processos cognitivos de ouvir o estímulo e o de perceber os sons separadamente, por exemplo, estão relacionados com quase todas as tarefas. O processo de discriminação relaciona-se à tarefa de comparação de

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palavras, o que se mostra claro no exemplo do parágrafo anterior. Esta última tarefa, somada à capacidade de isolar e omitir fonemas, requerem os processos cognitivos de segmentar, identificar e isolar o som.

Alterações nessas habilidades, ocasionadas por otite média crônica, podem prejudicar a alfabetização. Costa-Ferreira e Sávio (2009) mencionam diversos trabalhos que relacionam processamento auditivo e aquisição de leitura, citando inclusive o trabalho de Costa (2003) que aponta para tal relação. Outro trabalho destacado pelas autoras é o de Margall (2002), o qual salienta o importante papel da função auditiva entre as habilidades indispensáveis para um satisfatório aprendizado da leitura e da escrita.

3. Consciência fonológica e alfabetização: relações possíveis

Uma questão discutida ao longo do texto remete às interlocuções que as habilidades de consciência fonológica e a aprendizagem de leitura e escrita podem fazer. Esta discussão abre espaço para divergências, pois alguns autores, como Dehaene (2009a) e Scliar-Cabral (2008), consideram que há influência do nível fonológico da metalinguagem na alfabetização e outros, como Freitas (2004), a posição oposta. Este último insiste que apenas com o aprendizado da leitura e escrita a criança desenvolverá a consciência fonológica. Contudo, tais autores parecem fazer referência apenas ao nível fonêmico, desconsiderando os dois anteriores (silábico e intrassilábico). Devido à polêmica estabelecida nesse assunto, faz-se necessário esclarecer

alguns aspectos. A exposição visa elucidar se um possível prejuízo na percepção dos fonemas (decorrente de otites médias crônicas) poderia interferir na manipulação dos sons e, consequentemente, na alfabetização.

Uma das possibilidades sugeridas no livro de Freitas (2004) traz a necessidade de a criança já estar alfabetizada para poder refletir sobre os sons da língua. Essa concepção, como comentado anteriormente, parece desconsiderar que a consciência fonêmica não é o único nível de consciência fonológica adquirido pelo ser humano. Os níveis das sílabas e das unidades intrassilábicas já estão presentes antes mesmo que o aluno conheça a escrita. Além disso, a própria consciência fonêmica pode ser treinada em crianças que ainda não aprenderam a ler.

Alguns autores apontam para a necessidade da alfabetização como favorecedora da consciência fonológica. Scherer (2008) cita Baddeley e Gathercole (1993) ao trazer dois motivos para a consciência fonêmica não ocorrer tão precocemente. O primeiro argumenta que o sistema fonológico da criança ainda está em desenvolvimento, num período pré-escolar. Coloca ainda que o pequeno não consegue perceber as particularidades das configurações dos gestos articulatórios. Os autores atribuem, dessa forma, à necessidade da alfabetização para que a consciência fonêmica desenvolva-se. Eles consideram que o aprendizado da leitura requer a compreensão de que a fala, a qual é um sistema contínuo e é constituída por fonemas, cuja representação se dá por símbolos gráficos na escrita.

A proposta anterior sugere que as crianças em processo de aprendizagem de um sistema alfabético,

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191 Fernanda Dias

ao formularem hipóteses, percebem que a escrita não representa o objeto ao qual se refere, mas sim a fala. O domínio desse sistema requer o conhecimento necessário para analisar e manipular os sons que compõem as palavras, o que aconteceria pela alfabetização. Contudo, Zorzi (2009) argumenta que o conhecimento silábico pode ser adquirido antes mesmo da alfabetização.

Outro ponto de vista destaca a necessidade do desenvolvimento da consciência fonológica para a alfabetização. Entretanto, tal perspectiva não considera que a criança possa vir a aperfeiçoar suas habilidades metafonológicas após alfabetizar-se. A principal relação estabelecida é a de quão mais bem desenvolvida for a consciência fonológica, melhor será a correspondência entre fonema e grafema ao escrever. Desse modo, a criança precisa dominar a relação fonema-grafema para compreender a escrita, recorrendo de seu saber oral.

A terceira abordagem sobre o assunto referida por Scherer (2008) considera que existe uma relação de reciprocidade entre a consciência fonológica e o processo de alfabetização. Isso significa que certas habilidades de consciência fonológica favorecem o aprendizado da leitura e da escrita e outras podem ser promovidas por ela. Existem alguns aspectos da consciência fonológica que podem ser alcançados num período anterior à alfabetização e beneficiam esse processo, bem como há certos níveis de conhecimento fonológico que apenas são adquiridos no momento em que a criança apropria-se da linguagem escrita.

A autora entende que tal relação de reciprocidade parece acontecer como um mecanismo de retroalimentação.

Assim, a pessoa dispõe de certas capacidades em consciência fonológica que lhe permitem iniciar a alfabetização. Entretanto, a escrita alfabética lhe possibilita o aprimoramento das habilidades de consciência fonológica que já possui, desenvolvendo novas capacidades. Zorzi (2003) concorda que existe uma relação de dependência recíproca. Desse modo, quanto maior o aprendizado da criança sobre a escrita, maior o seu conhecimento fonêmico, porém o aprendizado sobre os fonemas também proporciona ampliação do saber sobre a escrita e a leitura.

A consciência fonológica é considerada por Viana (2000) uma das capacidades linguísticas relacionadas ao ato de ler, no que se refere ao processo de decodificação fonema/ grafema. Nesta associação, ela destaca a habilidade de segmentação fonêmica. A autora afirma ainda que a compreensão de leitura contempla o desenvolvimento de habilidades cognitivas e a consciência da criança quanto às mesmas. Viana considera a mesma relação de reciprocidade discutida anteriormente. Gombert (1999) concorda com a colocação, argumentando que apenas o contato com a escrita não garante o desenvolvimento de habilidades de processamento. A criança precisa de alguma dedicação paraUn effort de l’apprenti lecteur est nécessaire pour mettre adquirir o controle intencional do processamento linguístico, que a aquisição leitora exige. O autor também compartilha com a hipótese de reciprocidade já apresentada. Assim, pode-se inferir que a capacidade metalinguística e a aquisição de leitura beneficiam-se mutuamente.

É importante relembrar que, inicialmente, o processamento de leitura é do tipo ascendente. Também

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192 A interferência das otites médias no processo de alfabetização

chamado de bottom-up por Kato (2007), pode-se considerá-lo linear e indutivo, uma vez que realiza análise-síntese durante o ato de leitura. Tal estratégica exige uma capacidade de perceber os sons da palavra, ao passo que favorece uma maior consciência dos mesmos. A decodificação das palavras somente é possível, segundo Scliar-Cabral (2008), se houver acesso à via fonológica de leitura. Ela é utilizada inclusive em leitores mais experientes, ainda de forma automatizada. Essa via é a responsável pela conversão de grafemas em fonemas, sendo essencial que tal correspondência seja inequívoca. Dessa forma, deve-se investigar se uma privação sensorial auditiva, mesmo que leve e/ou temporária, poderia interferir nessa relação.

4. As otites médias de repetição e sua interferência na alfabetização

Uma vez estabelecida a relação inegável entre consciência fonológica na aprendizagem de leitura e escrita, é preciso determinar a importância da acuidade auditiva nesse processo. A aquisição de símbolos gráficos exige uma adequada integridade sensorial. Além disso, é necessário que a criança seja capaz de integrar experiências não verbais, conseguindo diferenciar um símbolo do outro, atribuindo sentido a ele para, por fim, retê-lo. A integridade auditiva é, dessa forma, fundamental para a alfabetização.

Uma das intercorrências mais comuns na infância, devido à diferença anatômica na tuba auditiva é a otite média.

Segundo Fialho (1999), a otite média crônica consiste em alterações irreversíveis da orelha média, muitas vezes com perfuração da membrana timpânica e pela presença de muco catarral vindo da orelha média. A otite média crônica pode ser decorrente de otite média aguda de repetição, sem tratamento clínico adequado ou ser consequência de um único episódio com má evolução.

Os episódios de otite na infância têm aumentado gradativamente nos últimos anos. Klausen, Møller, Holmefjord, Reisærter e Asbjørnsen (2000, apud BALBANI e MONTOVANI, 2003) alertaram que em torno de 80% das crianças em seu estudo apresentaram ao menos um episódio de otite média secretora até completarem oito anos. Desse grupo, cerca de 55% teve perda auditiva leve nas frequências da fala. Essa alteração pode prejudicar a discriminação dos fonemas tanto na fala quanto na alfabetização.

É importante ressaltar que não há necessidade da existência de um grau profundo nem um caráter irreversível de perda auditiva para prejudicar a aquisição da linguagem. Balbani e Montovani (2003) citam Santos et al. (2001) para destacar que inclusive os quadros de hipoacusia (perda auditiva) leve é o bastante para interferir em algumas funções auditivas. A característica flutuante (alterando com fases de audição normal) dos déficits auditivos nas otites médias conduz a uma estimulação sonora inconsistente do sistema nervoso auditivo central. Tal alteração prejudica a percepção dos sons da língua. Outra possível intercorrência é a de o fluido na orelha média causar ruído junto à cóclea (na orelha interna), distorcendo a percepção dos sons.

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193 Fernanda Dias

Muitas pesquisas têm apontado os prejuízos deste tipo de alteração no processo de aquisição linguística. Um dos estudos sugere que as perdas auditivas que ocorrem entre um e três anos de idade geram maior dificuldade para adquirir linguagem, percepção reduzida dos sons da fala os quais incluam consoantes surdas ou fricativas como /s/ e /z/ (PETINOU, SCHWARTZ, GRAVEL e RAPHAEL, 2001 apud BALBANI e MONTOVANI, 2003). Os autores também citam o trabalho de Paradise (1998) lembrando que a etiologia mais frequente nesse tipo de dificuldade é a hipoacusia condutiva leve ocasionada por otite média, mesmo que seja em apenas uma das orelhas. Nos períodos de infecções, os estímulos sonoros são percebidos de maneira distorcida. Considerando que o leitor iniciante utiliza um processamento ascendente de leitura (KATO, 2007), é necessário que ele tenha acesso a uma percepção clara dos fonemas para compor o todo da palavra ao decodificá-la.

Algumas investigações encontraram danos a longo prazo relacionados à doença em questão. Balbani e Montovani (2003) discutem o estudo de Van Cauwenberge, Watelet, Dhooge (1999), o qual observou a persistência até os onze anos de defasagens para o entendimento de linguagem visual, articulação de palavras, atenção e capacidade de leitura nas crianças que apresentaram otites médias nos primeiros três anos de vida. Outra pesquisa trazida pelos autores é a de Luotonen et al. (1998), a qual identificou prejuízos escolares na leitura, compreensão de textos, expressão verbal e escrita nas crianças com histórico de otite média aguda recorrente nos

três primeiros anos de vida. Assim, autores como Ruben (1999) e Zielhuis, Gerritsen, Gorissen, Dekker, Rovers, Van der Wilt, et al. (1998) são citados para a conclusão de que as dificuldades causadas por otites médias e a provável perda auditiva nos três primeiros anos de vida podem prejudicar o desenvolvimento linguístico e, até mesmo, a aprendizagem do infante.

Considerações finais

Ao final desta discussão, evidencia-se uma notável interferência das otites médias de repetição na aquisição da língua escrita. A alfabetização, como antes mencionado, demanda integridade das vias auditivas. Mesmo uma alteração sutil, como uma otite, pode gerar comprometimentos importantes na manipulação dos sons da língua e, consequentemente, na relação destes fonemas com sua representação escrita.

Embora existam perspectivas distintas sobre a relação entre consciência fonológica e aquisição da língua escrita, todas apontam uma relação muito próxima entre ambas. A capacidade de manipular os sons requer que estes sejam percebidos de maneira adequada para o sucesso na alfabetização. Scherer (2008) entende que atualmente exista um consenso entre os pesquisadores de que a consciência fonológica e o aprendizado da leitura e escrita influenciam-se mutuamente. Assim, é necessário atenção a todos os fatores que possam interferir nessa relação. Scherer define a noção de reciprocidade como o fato de a consciência fonológica favorecer a alfabetização,

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194 A interferência das otites médias no processo de alfabetização

ao mesmo tempo que a aquisição de um sistema alfabético auxilia no desenvolvimento da consciência fonológica.

A concepção de reciprocidade apontada no texto sugere coerência, pois a aquisição da língua escrita requer algumas aprendizagens específicas de consciência fonológica, ao passo que outras habilidades sejam resultado da alfabetização. Então, a criança que aprende a ler começa a desenvolver habilidades metalinguísticas, mas são justamente estas que irão facilitar a aprendizagem da língua escrita. Contudo, para analisar e conhecer os sons que formam a fala, bem como para aprender a decodificar os sons dos grafemas na leitura, a criança não pode ter qualquer privação para percebê-los.

Ao longo desta discussão, foram apresentadas diferentes pesquisas que apontam para possíveis interferências da otite média no processo de alfabetização. A percepção dos traços que diferenciam os fonemas é imprescindível para manipulá-los sem alterar-lhes o sentido. A não discriminação do traço de sonoridade, por exemplo, pode levar a criança a confundir a palavra “vaca” com a palavra “faca”.

O trabalho de Rueda (1995) realiza uma relação com os processos cognitivos que exercem algum tipo de influência nas atividades que medem o conhecimento fonológico, como discutido anteriormente. Eles referem-se à função chamada de processamento auditivo, a qual se julgou relevante considerar ao fim desta discussão, uma vez que se encontram em relação muito próxima às tarefas de consciência fonológica.

Uma vez apontada a necessidade de observar e acompanhar possíveis quadros de otites antes e ao longo do aprendizado da leitura e escrita, deve-se salientar a importância da estimulação de todos os aspectos que a favoreçam. Cielo (1996) considera que a sensibilização fonológica leva ao aumento da sensibilidade fonológica e de decodificação das crianças em processo de aprendizado lectoescrito. As tarefas que a pesquisadora utilizou abordaram a capacidade de reconhecer e produzir rimas; excluir, analisar, sintetizar, contar e substituir fonemas; identificar palavras com o mesmo fonema inicial; sintetizar, analisar e contar sílabas. Também trabalhou com a conceituação e a discriminação de sons verbais e não verbais. A relação de reciprocidade entre a consciência fonológica e a aquisição da leitura e escrita evidencia que a estimulação de tais habilidades associadas à correspondência fonema-grafema seja favorecedora das habilidades de alfabetização, confirmando a discussão trazida anteriormente.

Portanto, é fundamental que se estimulem, antes mesmo da primeira série, a manipulação e a reflexão dos sons da fala, de modo a promover a facilitação da aquisição da língua escrita. Esta, por sua vez, também irá auxiliar no desenvolvimento das habilidades fonológicas. O processamento ascendente da leitura iniciante requer integridade do sistema auditivo para realizar os processos de análise-síntese sem alterar o significado da palavra. O acompanhamento e a observação das crianças com histórico de otite média crônica, associada à estimulação das habilidades de consciência fonológica, certamente

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195 Fernanda Dias

favorecerão a apropriação da língua escrita, minimizando aspectos que poderiam prejudicar tal processo. A revisão de literatura apresentada destaca ainda como tais cuidados também podem ser favorecedores da capacidade de decodificação dos símbolos gráficos e, portanto, da leitura.

RESUMO – O objetivo deste trabalho é apresentar algumas reflexões quanto às possíveis interferências dos quadros de otite crônica no percurso da alfabetização. Os processos inflamatórios na orelha podem causar perdas de audição transitórias do tipo condutivas, prejudicando a percepção adequada dos sons da língua. Tal capacidade pode ser considerada fundamental na aprendizagem de leitura e escrita, pois está relacionada às habilidades de consciência fonológica. O presente artigo busca, portanto, alertar sobre a necessidade de observar tais aspectos nas crianças em fase de aquisição da língua escrita, buscando algumas considerações acerca dos aspectos envolvidos no processo de aprendizado da leitura.

Palavras-chave: Alfabetização. Consciência Fonológica. Otites de Repetição.

ABSTRACT – This paper presents some reflections about the possible interferences of the management of chronic otitis in the path of literacy. The inflammatory processes in the ear can cause temporary hearing loss of conductive type, impairing the adequate perception of speech sounds. Such capacity can be considered fundamental in learning reading

and writing, as it is related to phonological awareness. This article aims, therefore, warn about the need to observe these aspects in children in the course of acquisition of written language, looking for some comments about aspects of the process of learning to read.

Keywords: Literacy. Phonological Awareness. Recurrent Otitis.

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Neurofisiologia do uso da segunda língua através de estudos por imagem

Ramon Gheno1

Fale com o autor

A linguagem possui um papel fundamental na

organização social de comunidades e estados. Certos países ou regiões apresentam uma enorme variedade de línguas oficiais, sendo um dos exemplos mais significativos a comunidade europeia, onde vinte e três línguas são reconhecidas oficialmente2. Nessa região, são vários os indivíduos multilíngues que se adaptam às mais variadas circunstâncias linguísticas para atingirem uma comunicação adequada. Tal situação requer a obtenção de várias habilidades gramaticais (fonológicas, morfológicas, sintáticas, etc.) e lexicais.3 Entretanto os mecanismos neurofisiológicos que modulam a linguagem, em especial o aprendizado da segunda língua (L2), ainda são pouco compreendidos4.

Dentre os métodos de imagem atualmente disponíveis e comumente utilizados para a avaliação fisiológica do cérebro, podemos citar a Tomografia por Emissão de Pósitrons (TEP) (Figura 1) e a Ressonância Magnética Funcional (Rmf) (Figura 1 Email: [email protected] “[[Europa (web portal)|Europa]],” in Consolidated version of Regulation No 1 de-termining the languages to be used by the European Economic Community ([[Eu-ropean Union]], [s.d.]), http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=CONSLEG:1958R0001:20070101:EN:PDF.3 Frédéric Isel et al., “Neural circuitry of the bilingual mental lexicon: effect of age of second language acquisition,” Brain and Cognition 72, n. 2 (Março 2010): 169-180.4 Dehaene, “Fitting two languages into one brain”; C J Price, D W Green, e R von Studnitz, “A functional imaging study of translation and language switching,” Brain: A Journal of Neurology 122 ( Pt 12) (Dezembro 1999): 2221-2235.

2). O primeiro método possui a habilidade de demonstrar a atividade metabólica cerebral através do consumo de radionuclídeos; já o segundo nos permite avaliar e quantificar o fluxo sanguíneo cerebral, e inferir que áreas do parênquima encefálico podem estar mais ativadas.5

Figura 1: Tomografia por Emissão de Pósitrons cerebral nos planos sagital e axial.6

5 Daniel Branco e Jaderson Costa da Costa, “Ressonância Magnética Funcio-nal de Memória: Onde Estamos e Aonde Podemos Chegar,” J Epilepsy Clin Neurophysiol 12, n. 1 (2006): 25-30; Alessandro A Mazzola, “Ressonância magnética: princípios de formação da imagem e aplicações em imagem fun-cional,” Rev Bras Fís Médica 3, n. 1 (2009): 117-29; Vibhu Kapoor, Barry M McCook, e Frank S Torok, “An introduction to PET-CT imaging,” Radiographics: A Review Publication of the Radiological Society of North America, Inc 24, n. 2 (Abril 2004): 523-543.6 D Klein et al., “The neural substrates underlying word generation: a bilingual

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Figura 2: Ressonância Magnética Funcional cerebral em diferentes níveis no plano axial.7

O aprendizado da linguagem pode ser hipotetizado de numerosas formas, sendo a revisão proposta por Rodrigues-Fornells uma das mais atualizadas (Figura 3). Nela, o processo é realizado por diferentes mecanismos:

functional-imaging study,” Proceedings of the National Academy of Sciences of the United States of America 92, n. 7 (Março 28, 1995): 2899-2903.7 Denise Klein et al., “Bilingual brain organization: a functional magnetic resonance adaptation study,” NeuroImage 31, n. 1 (Maio 15, 2006): 366-375.

- uma interface audiopremotora, a qual é concebida como um simulador motor interno que pode ser muito importante no aprendizado de novas palavras fonologicamente,

- a interface integradora do significado, a qual é imaginada como sendo um mecanismo que envolve significados de inferências usando múltiplas pistas internas e externas e

- interface lexicoepisódica, a qual é encarregada do mapeamento rápido de palavras novas em contextos específicos e na consolidação a longo termo desse novo trajeto lexical.

A interação entre esses três sistemas é modulada por um controlador cognitivo comum de funções complexas; como o córtex pré-frontal médio é envolvido no raciocínio dedutivo, e os circuitos subcorticais talamoestriados são envolvidos na coordenação de diferentes caminhos para a retroalimentação de recompensa.8

8 Antoni Rodríguez-Fornells et al., “Neurophysiological mechanisms involved in lan-guage learning in adults,” Philosophical Transactions of the Royal Society of London. Series B, Biological Sciences 364, n. 1536 (Dezembro 27, 2009): 3711-3735.

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Figura 3: Interconectividade entre os três sistemas do processo de aprendizagem.

A rota dorsal (verde) começa com a representação fonológica da palavra nova (PN) processada no giro temporal superior (gTs) e no giro temporal superior posterior (gTsp), o qual conecta a alça dorsal e a rota de processamento. A interface da inferência semiótica ventral (amarelo) começa com a informação contextual do aprendizado (pontos pretos representam os grupamentos

conceituais) via regiões temporais inferior, medial e anterior fartamente conectadas pelo fascículo uncinado com o giro frontal inferior (gFi) ventral. Finalmente, a palavra nova e o seu contexto correspondente pode desencadear um processos de armazenamento dependente no lobo temporal medial (lTm) (interface episódico-lexical). Com repetidas exposições a palavra nova e após a conexão com o seu significado (via associação direta ou inferência da rota ventral), essa nova representação episódica-palavra nova pode ser armazenada no léxico mental (nível palavra-forma), independente do mecanismo de ensaio do lTm. Muitas regiões envolvidas no controle cognitivo, raciocínio dedutivo e motivação (relacionada à retroalimentação) podem ser seletivamente desencadeadas dependendo da demanda e da situação

do aprendizado da língua. PN: palavra nova, L1: traçado léxico, lTm: lobo temporal medial, gTai: giro temporal ântero-inferior, gTm: giro temporal medial posterior, pTa: polo temporal anterior, gFiv: giro frontal inferior ventral, gFm: giro frontal médio, cvpm: córtex pré-motor ventral, gFip: giro frontal inferior posterior, gsm: giro supra-marginal, gTsp: giro temporal súpero-posterior. As linhas espessas representam as principais conexões entre as diferentes correntes dos processos de aprendizagem. Caixa verde:

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interface audiomotora dorsal, azul: interface episódico-lexical, amarelo: interface semiótica ventral, descoloridas: mecanismos cognitivos compartilhados.9

Várias pesquisas demonstram que a língua materna (L1) e a segunda língua (L2) são mediados por um sistema neuronal unitário, embora recursos adicionais possam ser requisitados para tarefas específicas10. Cabe ressaltar que a aquisição da L2 é mais suscetível ao ambiente e a fatores idiossincráticos11.

No estudo de Gandour et al. foram avaliados indivíduos com conhecimento do mandarim(L1) e do inglês (L2) em sentenças do tipo focada (sentença inicial versus final) e outras classificadas como tipada (declarativas e interrogativas). A comparação direta entre L1 e L2 não mostrou diferença significativa na sequência tipada, mas na sequência focada uma maior ativação para L2 ocorreu bilateralmente na ínsula anterior e no sulco frontal superior. Os diferentes padrões de ativação são atribuídos, primariamente, devido a disparidades entre L1 e L2 quanto a manifestações fonéticas. Tais diferenças acarretam uma maior demanda computacional para o processamento da L212.

9 Ibidem.10 Isel et al., “Neural circuitry of the bilingual mental lexicon”; Klein et al., “The neural substrates underlying word generation”; Klein et al., “Bilingual brain organization”; Jackson Gandour et al., “Neural basis of first and second language processing of sentence-level linguistic prosody,” Human Brain Mapping 28, n. 2 (Fevereiro 2007): 94-108; S Dehaene et al., “Anatomical variability in the cortical representation of first and second language,” Neuroreport 8, n. 17 (Dezembro 1, 1997): 3809-3815.11 Kuniyoshi L Sakai et al., “Distinct roles of left inferior frontal regions that explain individual differences in second language acquisition,” Human Brain Mapping 30, n. 8 (Agosto 2009): 2440-2452.12 Gandour et al., “Neural basis of first and second language processing of sen-tence-level linguistic prosody”.

Klein et al. utilizaram a TEP para avaliar sujeitos proficientes em francês e inglês a fim de mostrar que um substrato neuronal comum está envolvido em mecanismos de busca da linguagem e que a região frontal inferior esquerda é ativada tanto através de pistas fonológicas quanto de semânticas13. Posteriormente, os mesmos autores, num estudo envolvendo RMf, monstrou que num nível lexical, os substratos neurológicos de L1 e L2 são compartilhados, mas que provavelmente diferentes populações neuronais são utilizadas na percepção de palavras em L1 e L214.

Após a obtenção de dados dispersos com o uso da TEP, Dehaene e colaboradores utilizaram, num de seus estudos, a RMf para avaliar as diferenças entre as regiões corticais em indivíduos proficientes em francês (L1) e moderadamente proficientes em inglês (L2). Nesse estudo muitos sujeitos apresentaram uma ativação significativa no giro frontal inferior esquerdo e no cíngulo anterior apenas quando escutavam a L2. O cíngulo anterior tem sido relacionado como uma região central executiva no processamento de tarefas, o que sugere que alguns indivíduos têm maiores recursos da atenção para a L2 do que os processos automatizados da língua materna. Também, a ativação frontal inferior pode refletir uma estratégia interna de ensaio em L1 das palavras utilizando a alça fonológica enquanto mantém sentenças L2 na memória de trabalho. Além disso, a variabilidade na lateralização da linguagem parece estar relacionada com a diversidade na representação de L2. Esse trabalho suporta a hipótese de que a aquisição de L1 baseia-se numa rede 13 Klein et al., “The neural substrates underlying word generation”.14 Klein et al., “Bilingual brain organization”.

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dedicada do hemisfério cerebral esquerdo, enquanto que a aquisição de L2 não está necessariamente associada com alguma área específica15.

O grupo de trabalho liderado por Isel avaliou adultos bilíngues precoces, expostos, com cerca de 3 anos, ao alemão e ao francês, e bilíngues tardios, apresentados ao francês (L2) com cerca de 11 anos. Além disso, todos os participantes tinham o conhecimento do inglês (L3). Foi constatado que a L1 e a L2 compartilham a mesma região espacial para bilíngües, tanto falantes precoces como falantes tardios. Entretanto, a maturação neuronal parece afetar a representação conceitual das palavras na L1 e na L2, no que se refere ao conhecimento lexical16.

Numa pesquisa que comparou as diferentes formas de aquisição da linguagem, Jeong e colaboradores estudaram de que forma ocorre a representação cortical da L2 em japoneses (L1) submetidos ao aprendizado da língua coreana (L2). O giro supra-marginal direito e o giro médio-frontal esquerdo estiveram envolvidos nas situações do aprendizado baseado em vivência e baseadas em textos, respectivamente, enquanto que o giro frontal inferior esquerdo foi ativado quando os aprendizes usavam o conhecimento da L2 em um modo diferente. Esses dados sugerem que as regiões cerebrais que mediam a L2 diferem da maneira como as palavras de L2 são aprendidas e usadas17.

15 Dehaene et al., “Anatomical variability in the cortical representation of first and second language”.16 Isel et al., “Neural circuitry of the bilingual mental lexicon”.17 Hyeonjeong Jeong et al., “Learning second language vocabulary: neural disso-ciation of situation-based learning and text-based learning,” NeuroImage 50, n. 2 (Abril 1, 2010): 802-809.

O grupo de Price avaliou se existe uma correlação entre os achados de imagem e o modelo Inibitório Controlador. Nesse estudo, foram avaliadas a tradução e a permutação das línguas em indivíduos proficientes em alemão (L1) e inglês (L2). De acordo com o modelo inibitório controlador, as tarefas linguísticas são externas ao sistema lexicossemântico e competem para o controle da saída. A produção de uma palavra na língua dominante (L1) está em competição com a produção da segunda língua (L2). Assim, para falar na linguagem L2, os indivíduos devem inibir a forma de produção de L1. Os dados demonstram que a tradução modula regiões associadas especificamente com a semântica, córtex temporal extrassylviano e ínferofrontal esquerdos, e a articulação18.

Além disso, sabe-se que tanto em bilíngues como em monolíngues, usualmente a percepção e a compreensão envolvem uma interação dinâmica entre múltiplas regiões, não apenas de um único hemisfério19.

Quanto ao amadurecimento neuronal, os dados obtidos por Newman-Norlod et al. demonstraram que, além do papel comum da área de Broca para a aquisição de línguas, esse processo ocorre de maneira similar, não apenas em crianças, mas em adultos, indivíduos esses considerados fora da puberdade, ou “período crítico”20.

18 Price, Green, e von Studnitz, “A functional imaging study of translation and lan-guage switching”.19 Gandour et al., “Neural basis of first and second language processing of sen-tence-level linguistic prosody”.20 Aaron J Newman et al., “A critical period for right hemisphere recruitment in American Sign Language processing,” Nature Neuroscience 5, n. 1 (Janeiro 2002): 76-80; Roger D Newman-Norlund et al., “Anatomical substrates of visual and audi-tory miniature second-language learning,” Journal of Cognitive Neuroscience 18, n. 12 (Dezembro 2006): 1984-1997.

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Devemos ressaltar que a discrepância entre os resultados das pesquisas relacionadas ao PET e à Rmf, provêm, muitas vezes, da metodologia empregada em que fatores como os parâmetros de obtenção de imagem, a língua materna, a idade de aquisição da linguagem e o grau de proficiência na mesma influenciam de maneira significativa os resultados.

Além do grande avanço nas técnicas de imagem tanto para estudos anatômicos quanto funcionais do cérebro, o que resultou numa ampla gama de teorias neurofuncionais, é imperativo que tais achados sejam correlacionados com diferentes áreas neurológicas, como a eletroneurofisiologia, neuroendocrinologia e neuroimunologia. Dessa forma, a obtenção de teorias sobre o funcionamento da segunda língua encontrar-se-ão mais próximas da realidade.

RESUMO – As teorias referentes aos mecanismos fisiológicos responsáveis pelo aprendizado da segunda língua apresentam um grande avanço nas duas últimas décadas em virtude do desenvolvimento de técnicas radiológicas, notadamente a tomografia por emissão de pósitrons e a ressonância magnética funcional. Através delas, numerosos centros de pesquisa vêm desenvolvendo diversas hipóteses referentes ao metabolismo do encéfalo. Apesar da grande diversidade metodológica empregada, os resultados sugerem que centros específicos do lobo temporal (regiões inferior, medial e anterior) são responsáveis por boa parte do processamento da segunda língua.Entretanto, apesar do desenvolvimento tecnológico por imagem, cabe ressaltar que esses resultados refletem

somente uma das formas com a qual podemos abordar o funcionamento do cérebro. Assim, para uma correta compreensão é necessária a correlação entre as diversas áreas que estudam a sua neurofisiologia.

Palavras-chaves: Fisiologia. Segunda Língua. Radiologia.

ABSTRACT - The theories regarding the physiological mechanisms responsible for learning a second language had a major breakthrough in the last two decades due to the development of radiological techniques, notably positron emission tomography and functional magnetic resonance imaging.Through them, numerous research centers, have developed several hypotheses regarding the brain metabolism. Despite the great diversity of methodologies employed, the results indicate that some regions in the temporal lobe (inferior, medial and anterior regions) are responsible for a considerable part of this learning process. However, despite the development of imaging technology, it is noteworthy that these results reflect only one of the ways in which we can study the brain. Thus, for a correct understanding is necessary the correlation between different neurophysiological areas.

Keywords: Physiology. Second Language. Radiology.

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