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1. PRESSUPOSTOS O presente artigo tem como propósito chamar a atenção para o que designamos por ética do cuidado. É um conceito que, em nosso entender, se reveste de uma importância capital ao nível da nossa concepção de existência humana e de de- sempenho profissional. Em particular daquele(s) que lida(m) de perto com as pessoas, mais do que com os sintomas. O facto de o propormos aqui como fundamento duma praxis específica, a saber, a da intervenção comunitária e social, fica a dever-se ao facto de integrar os conteúdos centrais da cadeira de Ética e Direitos Humanos da Licenciatura em Desenvolvimento Comunitá- rio e Saúde Mental do ISPA. O sentido do cuidado e/ou do cuidar integra, antes de mais, o sentido do próprio existir huma- no. Cuidamos “naturalmente” de nós e dos ou- tros, pelo simples facto de existirmos-com-o(s)- outro(s)-no-mundo. É por isso que criamos, a partir daí, contextos específicos destinados à sua valorização através de procedimentos “técni- cos” concretos. Contudo, e a seu modo, todo o ser humano possui a capacidade do cuidado e/ou do cuidar. Do mesmo modo, todo o ser hu- mano, independentemente das suas diferenças e da sua singularidade própria, é um ser ético. Se dispensarmos alguma atenção aos grandes modelos éticos do pensamento ocidental (Aristó- teles, 1983; Espinosa, 1940; Fichte, 1986; Hegel, 1998; Heidegger, 1985; Husserl, 1986b, 1985; Kant 1986a, 1986b; Leibniz, s/d.; Levinas, 1988; Moore, 1999; Nietzsche, 1966; Ricœur, 1993, 1967; Santo Agostinho, 1986, 1985; Sartre, 1983; Scheler, 1955; Tomás de Aquino, 1984; re- ferindo apenas alguns exemplos) podemos repa- rar que em todos eles, directa ou indirectamente, e apesar do que os distingue entre si, a natureza ética própria do ser pessoa se caracteriza por um cuidado que, enquanto tal, não é uma atitude ou um acto, mas um a priori existencial de onde derivam as atitudes e os actos, as vontades, os sentimentos e as situações. A nossa exposição estabelece, desta forma, e como pressuposto, a ética e o cuidado na base da 485 Análise Psicológica (2003), 4 (XXI): 485-497 A ética do cuidado na intervenção comunitária e social: Os pressupostos filosóficos (*) ANTÓNIA CRISTINA PERDIGÃO (**) (*) O presente artigo é complementado por um ou- tro intitulado «Ética do Cuidar, Deontologia e Inter- venção Comunitária» a publicar nas Actas da Licen- ciatura em Desenvolvimento Comunitário e Saúde Mental do ISPA. (**) Instituto Superior de Psicologia Aplicada, Lis- boa.

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1. PRESSUPOSTOS

O presente artigo tem como propósito chamara atenção para o que designamos por ética docuidado. É um conceito que, em nosso entender,se reveste de uma importância capital ao nível danossa concepção de existência humana e de de-sempenho profissional. Em particular daquele(s)que lida(m) de perto com as pessoas, mais doque com os sintomas. O facto de o propormosaqui como fundamento duma praxis específica, asaber, a da intervenção comunitária e social, ficaa dever-se ao facto de integrar os conteúdoscentrais da cadeira de Ética e Direitos Humanosda Licenciatura em Desenvolvimento Comunitá-rio e Saúde Mental do ISPA.

O sentido do cuidado e/ou do cuidar integra,antes de mais, o sentido do próprio existir huma-

no. Cuidamos “naturalmente” de nós e dos ou-tros, pelo simples facto de existirmos-com-o(s)-outro(s)-no-mundo. É por isso que criamos, apartir daí, contextos específicos destinados àsua valorização através de procedimentos “técni-cos” concretos. Contudo, e a seu modo, todo oser humano possui a capacidade do cuidadoe/ou do cuidar. Do mesmo modo, todo o ser hu-mano, independentemente das suas diferenças eda sua singularidade própria, é um ser ético.

Se dispensarmos alguma atenção aos grandesmodelos éticos do pensamento ocidental (Aristó-teles, 1983; Espinosa, 1940; Fichte, 1986; Hegel,1998; Heidegger, 1985; Husserl, 1986b, 1985;Kant 1986a, 1986b; Leibniz, s/d.; Levinas, 1988;Moore, 1999; Nietzsche, 1966; Ricœur, 1993,1967; Santo Agostinho, 1986, 1985; Sartre,1983; Scheler, 1955; Tomás de Aquino, 1984; re-ferindo apenas alguns exemplos) podemos repa-rar que em todos eles, directa ou indirectamente,e apesar do que os distingue entre si, a naturezaética própria do ser pessoa se caracteriza por umcuidado que, enquanto tal, não é uma atitude ouum acto, mas um a priori existencial de ondederivam as atitudes e os actos, as vontades, ossentimentos e as situações.

A nossa exposição estabelece, desta forma, ecomo pressuposto, a ética e o cuidado na base da

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Análise Psicológica (2003), 4 (XXI): 485-497

A ética do cuidado na intervençãocomunitária e social: Os pressupostosfilosóficos (*)

ANTÓNIA CRISTINA PERDIGÃO (**)

(*) O presente artigo é complementado por um ou-tro intitulado «Ética do Cuidar, Deontologia e Inter-venção Comunitária» a publicar nas Actas da Licen-ciatura em Desenvolvimento Comunitário e SaúdeMental do ISPA.

(**) Instituto Superior de Psicologia Aplicada, Lis-boa.

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prática profissional e não a prática profissionalna base da ética e do cuidado. Ou seja, entende-mos que a prática profissional se deve perfilartendo em consideração o respeito pela naturezahumana, ao invés duma ética e um cuidado per-filados em função dos contextos e das suas fun-cionalidades. Além disso, e no que se refere àdistinção que estabelecemos entre cuidar e curar(Barbero, 1999; Torralba i Roselló, 1998; Winni-cott, 1990), não pretendemos desvalorizar o se-gundo mas apenas salientar que, vezes sem con-ta, é no próprio acto de cuidar que pode residir“a cura”. Por outras palavras, o cuidado é sempreanterior a qualquer um destes gestos (Heidegger,1984). Como se da intencionalidade (Husserl,1985) se tratasse sendo, contudo, mais amplo doque esta (Pires, 1989).

Numa perspectiva filosófica (Heidegger, 1984),podemos então compreendê-lo a partir de doisníveis: um nível originário e um outro que pode-mos designar por ex-sistência. No primeiro, eenquanto estrutura originária, o cuidado é cuida-do de e significa não só o garante da autentici-dade possível pela proximidade ao ser, mastambém que o homem se projecta a si mesmo; nosegundo, estamos ao nível do cuidado com, dapreocupação por ou do “viver em cuidado”, eexprime a diversidade de possibilidades do ser-no-mundo (aí incluídas a intelectual, a afectiva ea própria praxis). É à luz deste último que de-vemos pensar a ética profissional1.

Embora a sua actualidade se manifeste emqualquer época, o “nosso tempo” parece, maisdo que nunca, carente deste sentido do cuidar. Eé por isso que, a seu modo, contribui tambémpara a renovação da complexa questão que nósdesignamos por transição do “problema dohomem” para o homem como problema. Podedizer-se que, num trilho diferente do de SantoAgostinho (1984), esta questão re-despertouquando Max Scheler (1951) a trouxe ao centroda reflexão filosófica2 e foi depois encontrando

na «desorientação ética» (Tugendhat, 2000),resultante do declínio da fundamentação religio-sa, uma forma discreta de se agudizar. Nas socie-dades contemporâneas, o grande desafio parececontinuar a ser de facto o do próprio homem co-mo o ilustra, por exemplo, a metáfora de Chris-topher Lasch (1991) à luz da qual, e no seu sen-tido mais preciso, o narcisismo continua a seruma metáfora que descreve o estado de espíritoem que o mundo aparece como um espelho doself.

A nossa exposição tentará, a partir daqui, eem função desta breve introdução, fundamentara elevação do cuidado à qualidade de eixo éticocentral e, por consequência, à qualidade de pré--suposto da própria moral e da ética profissional.A partilha de pressupostos que aproxima a quepassaremos a designar por ética do cuidado e aantropologia filosófica torna inequívoca, paranós, a centralidade da questão antropológica.Apesar disso3, consideramos que esta deve ser“lida”, aprofundada e ampliada a partir do crité-rio ético que ela própria encerra. Desta forma, etendo em consideração o cogitare que está naraiz do termo cuidado (Pires, 1989), a nossa su-gestão é a de um re-pensamento do próprio ho-mem-de-todos-os-dias a partir da ética do cuida-do, enquanto proposta de fundamentação prática(em sentido kantiano – Kant, 1986a e 1986b), edando particular importância ao seu quotidianoprofissional.

2. O CUIDAR COMO VALOR DE REFERÊNCIANA INTERVENÇÃO COMUNITÁRIA

O que é, então, cuidar ou ter cuidado, a pontode constituir um solo ético? Não o fazemos quo-tidianamente, por exemplo, sempre que batemosà porta antes de entrar ou sempre que deixamosas regras das boas maneiras responderem deforma costumeira em nós? Sem dúvida. Mas,apesar disso, também são, ou podem ser, essasmesmas regras que nos ajudam a escondermo--nos, vezes sem conta, do mais importante.

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1 Que designamos também (no segundo capítulo des-te artigo) por deonto-logia.

2 «(...) Jamais dans l’histoire telle que nous la con-naissons, l’homme n’a été autant qu’aujourd’hui unproblème pour lui-même» (Scheler, 1951, p. 17).

3 E à semelhança do que propomos no artigo «Éticado Cuidar, Deontologia e Intervenção Comunitária».

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Por outro lado, já a raposa falara disso aoPrincipezinho quando, a respeito da importânciade «arranjar o coração», e numa altura em queele estava a descobrir que as «coisas» simplessão as mais belas mas também as mais difíceis,lhe disse: «se vieres, por exemplo, às quatro ho-ras, às três, já eu começo a ser feliz. E quantomais perto for da hora, mais feliz me sentirei»(Saint-Exupéry, 1987, p. 70). De facto, nemsempre o facto de se responder como se deve auma determinada situação equivale a tudo o quese pode fazer nessa mesma situação porque omais importante é aprender a «arranjar o cora-ção». O conteúdo desta aprendizagem assumeum valor precioso onde quer que se esteja, aíincluído o contexto profissional.

Trivial, às primeiras impressões, a expressão“ética do cuidado” ou “ética do cuidar” encerraum sentido de responsabilidade e dignidade fun-damentais ao ser pessoa. A todo e a cada serpessoa. Remete para um nível mais profundo doser humano relativamente ao qual as boas manei-ras e as regras de etiqueta constituem um ténuereflexo daquilo em que consiste um cuidar au-têntico. Além disso, e embora o cumprimento dodever constitua um contributo decisivo para uma“boa” praxis do cuidar, nem sempre é suficiente.Pretende-se que a presença de alguém (nestecaso, a presença do interventor comunitário)não se limite apenas a um estar, mas tenha deigual modo a densidade e a autenticidade do ser.Valorizando as potencialidades do léxico espa-nhol, Barbero (1999) releva a distinção necessá-ria entre estar perto e ser próximo, entre próximoe prójimo: «el otro no es sólo el prójimo-próxi-mo, sino todo ser humano, porque nada de lohumano me puede ser ajeno. Lo que une a laspersonas no es necesariamente el contacto coti-diano o la interacción direta sino su pertenenciaa la humanidad» (pp. 129-130)4. O mais impor-tante reside no respeito incondicional pelo outro,na sua liberdade, dignidade e diferença.

Saliente-se que, no sentido em que a interven-ção comunitária, na qualidade de intervenção so-cial, se deve reger pela clara intenção de ajudar o

outro, ela acaba por se revestir necessariamentedum cariz moral (Sánchez Vidal, 1999). Razãopela qual a ética do cuidado, cuja preocupaçãocentral reside no reconhecimento do alter ego,não deva ser-lhe estranha.

Este reconhecimento pressupõe, contudo, umapostura activa e criativa que requer a valorizaçãodialógica (Ricœur, 1993) do outro na sua liber-dade nomeando-o5, escutando-o e dando-lhe apalavra6. Acolhendo-o na sua dignidade ontoló-gica, ética e volitiva (Barbero, 1999; Torralba iRoselló, 1998), mas também na sua diferençauma vez que «(...) é pela forma como cada um,individualmente, actualiza essa condição comuma todos que os seres humanos se identificam, istoé, se diferenciam uns dos outros» (Lessing cit. inAurélio, 2001, p. 134). «L’autre est mon sembla-ble! Semblable dans l’altérité, autre dans la simi-litude» (Ricœur, 1993, p. 63). E quando a dife-rença se estende à deficiência mental, ser dife-rente não significa ser menos (Amor Pan, 1995).Há sempre algo que o sujeito portador de defi-ciência tem em comum com todas as outraspessoas e que é o facto de nunca poder deixar deser ele mesmo. «Las limitaciones personales, elser distinto de los demás, forman parte de ladefinición del ser del hombre como persona, que,en este sentido, es siempre un ser carente» (p. 46).

Sem um desempenho profissional de excelên-cia dificilmente se conseguirá construir ou mol-dar um contexto de actuação permeável a estaabertura ao outro na sua liberdade, dignidade ediferença. Os alicerces de tal desempenho pas-sam, em primeiro lugar e durante a própria for-mação académica, por uma consciencializaçãodos múltiplos factores e dimensões envolvidasde modo a poder criar uma sensibilidade que ascontemple ou, pelo menos, as reconheça. Ao ní-vel da ética profissional, partilhamos o ponto devista de Bermejo (1996) quando apela à comple-mentaridade e à valorização das diferentes di-mensões que a caracterizam. O profissional, o in-

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4 Esta diferença que assinalamos será retomada, comesta mesma terminologia, no Quadro 1.

5 Porque, como refere Gusdorf (1986), nomear é tra-zer à existência, ou seja, é tirar do nada.

6 Na medida em que a palavra não é o ser nem a au-sência de ser, mas um compromisso da pessoa entre ascoisas e as pessoas (Gusdorf, 1986).

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terventor social, neste caso, não deve, por exem-plo, cingir-se à aparente segurança que a «di-mensão deontológica» lhe possa trazer. Na ver-dade, e apesar de ser o terreno dos deveres e dasobrigações, dos imperativos e das normas, ela éclaramente insuficiente e nem mesmo a impres-cindível formação contínua subsequente à for-mação académica bastará para a complementardevidamente. Contudo, em nosso entender, e nes-te aspecto não concordamos inteiramente comBermejo, ela não deve ser encarada como «deon-tológica», mas antes como deonto-lógica ou re-guladora. Estabelecemos uma diferença substan-cial entre as duas expressões na medida em quenos permitem valorizações distintas do conceitoe do sentido do dever.

Consideramos que, enquanto o aspecto deon-to-lógico7 nos remete para um domínio concretoque diz directamente respeito ao que se costumadesignar por ética profissional e que, quando en-carada isoladamente, reduz o dever a uma “ló-gica do dever” em função da sua aplicação fun-cional e restritiva (esquecendo, por vezes, que ocódigo de ética não garante um comportamentoético – Corey, Corey & Callanan, 19988); o as-pecto deontológico9 valoriza o dever na sua am-plitude de saber prático (em sentido kantiano –Kant, 1985, 1986a, 1986b) cujo fundamento re-side no respeito pela norma que, ao nível daacção, se traduz no respeito pela autonomia eliberdade e, neste sentido, é o aspecto que se re-fere ao que podemos designar por consciênciaética. Ou seja, enquanto o primeiro remete paraas pautas objectivas e os códigos concretos que

regem e organizam internamente um determina-do grupo profissional contribuindo para a defini-ção da sua identidade grupal e para o seu reco-nhecimento social, e por isso o definimos aquipor regulador, o segundo é de ordem subjectiva(Kant, 1985) ou transcendental (Husserl, 1986a;1985) na medida em que diz respeito à possibi-lidade de reconhecimento, por parte do sujeito,da própria natureza do dever e do seu sentido.Ou seja, a este nível, o dever é valorizado na suaessência universal e não na sua aplicação parti-cular a partir de um padrão de funcionamento10.

Face à anterioridade da ética em relação àmoral (Ricœur, 1993) e à sua prioridade sobre adeonto-logia (usualmente referida como «deon-tologia» – Bermejo, 1996), sugerimos que a di-mensão que designamos por reguladora seja per-manentemente complementada tanto por umadimensão teleológica, como por uma dimensãopragmática11. A primeira contribuirá para a elu-cidação a respeito do por que fazer algo, a se-gunda permitirá ao profissional ter uma visão deconjunto que lhe permitirá concretizar a sua ta-refa específica de acordo com os pressupostosanteriores.

Tendo em consideração que a referida dimen-são teleológica antecede as outras duas e corres-ponde à interrogação que permite aprofundar adimensão ética da profissão ou actividade pro-fissional, propomos a ética do cuidado, a estenível, na qualidade de telos que, encarado comofinalidade e não como fim, diz respeito ao «Bem»(Aristóteles, 1983) (mais do que ao “bom”, ao“muito” e ao “quanto”) e constitui12 o ponto re-gulador fundamental que guiará globalmente aconduta do interventor comunitário e dará umsentido à questão “o que se pretende, no fundo,alcançar?”.

Se o conteúdo desta interrogação se traduzirnuma pré-ocupação pelo cuidar, a atitude de

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7 Deontos (dever) + logos (“lógica”). Estabelecemosesta correspondência entre logos e “lógica” dando aeste último termo o sentido da epagoge aristotélica emque, em virtude da sua proximidade à sensação, a in-dução se torna mais convincente e popular apesar de,e precisamente por isso, confinar o universal aoslimites materiais. Para um acompanhamento mais de-talhado destes termos sugerimos a obra de F. E. Peters(1983).

8 A este respeito, remetemos para o artigo «Ética doCuidar, Deontologia e Intervenção Comunitária».

9 Deontos (dever) + logos (episteme). Esta distinçãopode ser acompanhada pela leitura da alínea designadapor “Âmbito”, no Quadro 1.

10 Uma vez que este padrão nunca conseguirá a ma-leabilidade necessária à diversidade das situaçõescom que o profissional se defrontará.

11 Esta ideia é igualmente apresentada no artigo «Éti-ca do Cuidar, Deontologia e Intervenção Comunitária».

12 Por adaptação do sentido desse «Bem» aristotélicoao contexto que aqui nos traz.

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empowerment, que deve caracterizar a interven-ção comunitária e social (Ornelas, 2000; Sán-chez Vidal, 1996), conquista uma dimensão deautêntico reconhecimento e acolhimento do ou-tro na sua liberdade, dignidade e diferença radi-cais, bem como de respeito pelas suas fragilida-des e valorização das suas potencialidades.

Sempre que o interventor, no desempenho dasua professio (França-Tarragó, 1996) se questio-nar acerca da finalidade última ou do âmbitomais profundo da praxis que representa, espera-se que a sua resposta convirja para um «valor»(Guardini, 1999), que deve ser um «valor intrín-seco» (Moore, 1999), e que este seja claramenteo de cuidar ou acolher e reconhecer. De tal for-ma que esta prática profissional específica seconverta numa ferramenta privilegiada em qual-quer um dos três eixos de actuação designadospor prevenção primária, secundária e terciária(Sánchez Vidal, 1996), e se traduza, para o outro,em mais um passo para a descoberta de queexistir é muito mais do que viver.

3. A “GRADAÇÃO” DE VALORES INERENTEAO CUIDAR

Distinguiremos agora possibilidades diferen-tes para uma mesma prática profissional, ao ní-vel da intervenção comunitária e social. O Qua-dro 113 apresenta a gradação de valores (que cor-responde a uma gradação de atitudes) que, emnosso entender, pode legitimar posturas e opçõesprofissionais distintas, muitas vezes confundidasna prática quotidiana. Através desta grelha gos-taríamos de relevar a distinção fundamental queestabelecemos entre curar (cure) e cuidar (care),fazer e agir, dever ser e poder ser, estar e ser, naqualidade de critérios ético-profissionais.

Se, encaradas de forma isolada, elas se tradu-zem à partida em critérios redutores e limitado-res ao nível da procura e realização duma exce-lência profissional, a valorização da sua inter-complementaridade necessária reverterá decertoa favor da dignificação e responsabilização de-onto-lógicas. A percepção e a reflexão em tornodo que as aproxima e distancia será um caminhoa considerar no aprofundamento da consciênciaético-moral e na “humanização” do ser-com.

Quando nos referimos aos valores referenciaisda ética do cuidado estamos a concebê-la como

fundamento, e não tanto como estratégia, da in-tervenção comunitária e social. Somente na qua-lidade de fundamento da praxis do interventor éque ela poderá ser posteriormente valorizadacomo estratégia de intervenção. Por outras pala-vras, ela exige do interventor uma tomada de po-sição reflectida e consciente a respeito dos pi-lares que suportarão as suas decisões futuras.

Assim, a construção do referido Quadro obe-dece a uma “recolha” dos conceitos mais rele-vantes da ética do cuidado13 e a dois eixos princi-pais que, repita-se, devem ser analisados a partirda sua complementaridade, e surgem a tracejadoporque não estabelecem uma distinção fixa: umeixo de cariz moral que permite relacionar e dis-tinguir a designada “ética da justiça” e a “éticado cuidado”, e um eixo de cariz pragmático quecontempla e diferencia a “ética das profissões” ea “ética do quotidiano”. A excelência profissio-nal requer uma capacidade de articulação destesquatro aspectos que remetem, entre si, para aética do cuidar que, por sua vez, se re-flecte aonível do quotidiano, ao nível profissional, comu-nitário e social. É importante que as considere-mos a partir da dialéctica que as inter-valoriza.Se as encaramos individualmente, e apesar deisso já poder traduzir algum cuidado com o“humano”, é ainda um cuidar fechado num crité-rio específico. De acordo com a sua natureza, ocuidado não precisa de critério para ser cuidado,basta-lhe o existir humano.

Assinalamos também uma outra nuance valo-rativa através da linha a negro que divide o Qua-dro. Com ela pretendemos salientar aquilo que,de um ponto de vista filosófico, classificamoscomo “natureza e especificidade” da ética docuidado14, e o que, em conformidade com ela,valorizamos como fundamento, em primeirolugar, e como estratégia, em segundo, da inter-venção comunitária15.

A leitura de conjunto tem como propósito re-

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13 E que são aqueles que vão situando cada um doscinco capítulos deste artigo.

14 Os dez aspectos que aparecem abaixo da linha anegro.

15 Os cinco aspectos que aparecem acima da linha anegro.

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lembrar que a intervenção comunitária e/ou so-cial não deve ser encarada como “um penso parauma ferida”, mas como uma actividade respon-sável e responsabilizante de acompanhamento eseguimento a acontecer na quotidianeidade decada dia. Neste sentido, os principais pontos dereferência da intervenção comunitária (Ornelas,2000) parecem partilhar os pressupostos do cui-dar como pré-ocupação e vocação. A começarpela importância reconhecida à diversidade, e ovalor atribuído ao potencial humano.

Como filosofia subjacente à intervenção co-munitária, Ornelas (2000, p. 3) sugere «(...) par-tir sempre do princípio de que as pessoas têm umpotencial humano ilimitado, pelo que é necessá-rio que aprendamos a sua cultura e o seu percur-so existencial». Esta perspectiva de empower-ment16, que remete também para a de empowe-ring ou doação de poder mencionada por Sán-chez Vidal (1999), tem em comum com a éticado cuidar a valorização fundamental da face in-ter-subjectiva do ser-no-mundo.

A ética do cuidado privilegia precisamente es-te aspecto do ser-com-o(s)-outro(s)-no-mundo17

característico de todo e qualquer ser humanoenquanto ser-aí. Neste sentido, tanto o existirindividual como, e em resposta à questão destetexto, o desempenho profissional concreto, po-dem quedar-se num estar ou ampliar-se no ser.Acontece com alguma frequência que o carácterpúblico da nossa quotidianeidade (a mútua ex-posição própria da ex-sistência), sob a aparênciaduma presença-ao-outro do ser-um-com-o-outro,dissimule que «por trás da máscara do “um-para-o-outro” actua um “um-contra-o-outro”» (Hei-degger, 1984, § 37, p. 194); dissimule a indife-rença e a distância de um-para-com-o-outro.

Encarado na sua dimensão mais profunda, ocuidado (Sorge) (Heidegger, 1984, § 39 e segs.),

enquanto «cuidar-por», «preocupação-com e para-com», é o meio para a transcendência necessáriadessa dissimulação. Se fizermos esta mesma leituracom uma preocupação deontológica, ela pressupõea denúncia e o reconhecimento de que a meca-nização quotidiana de um modo de estar ocupadopode não ser mais do que uma mera simultanei-dade de vacuidade e de agitação próprias de umaparente-estar-ocupado. A fenomenologia destequotidiano transforma-se então numa «fenome-nologia de frenética inércia» (Steiner, 1990), e afamiliaridade do quotidiano desvanece-se deixandono seu lugar um quotidiano árido e inóspito, inau-têntico, no seio do qual se deserta de si mesmo e daprincipal razão de estar ali: o destinatário da inter-venção comunitária.

Esta co-possibilidade constante de escolherentre um modo de ser autêntico, dialogante eaberto à proximidade com o que constitui a es-sência de todo o ser humano, e um outro modode ser, o inautêntico, que tem ao seu dispor o“parque de diversões” da sua vida ex-posta ao(s)outro(s), repleta de (pseudo-)acontecimentos, masvazia do essencial, pode criar dificuldades e acen-tuar alguns dilemas ético-profissionais. Para esteesvaziamento também contribui o modo comodesempenhamos os nossos papéis sociais e pro-fissionais sempre que o critério dessa acção con-verge para a facilitação concedida pela repetiçãocostumeira de um “dever ser” que, entretanto, setransformou numa distância inter-pessoal franca-mente limitadora da própria situação e do res-pectivo desempenho profissional. O que se podedesignar por «produtivamente insatisfeito» (Hei-degger, 1984) acaba quase sempre por se fazeracompanhar pelo insatisfatoriamente produtivo.

4. O INTERVENTOR FACE À ÉTICA DOCUIDADO

Nesta quarta parte, começamos por referir aimportância de se encarar com seriedade aquiloem que reside a especificidade própria de cadacontexto e situação profissionais. De acordocom o que temos vindo a afirmar, é importantenão confundir, por exemplo, a “arte” do cuidarcom a atitude de curar (Barbero, 1999; Torralbai Roselló, 1998; Winnicott, 1990) o que, com al-guma facilidade reverteria no “adormecimento”característico da já referida filosofia de blaming

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16 Que encontramos também em Sánchez Vidal(1996).

17 A hífenização pretende traduzir, ao nível da es-crita, essa ligação essencial que caracteriza de formadecisiva a existência individual e colectiva como Dasein-em (ser-no-mundo) e Dasein-com (ser-com-o(s)-ou-tro(s)-no-mundo).

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the victims, contrária ao que se espera do inter-ventor comunitário. Ou confundir competênciaprofissional e profissionalismo uma vez que ocumprimento da agenda, a preocupação com osdéfices e a resolução de problemas não bastarãopara fazer do interventor um profissional de ex-celência.

No Quadro 2, indicamos o que se poderia con-siderar o “perfil ideal” de um interventor comu-nitário e social face a outras alternativas. Nãopretendemos limitar o seu campo de actuaçãonem criar um padrão de comportamento18. Gos-taríamos somente de evidenciar e reforçar as di-ferenças que podem tipificar critérios ético-pro-fissionais distintos chamando a atenção para osvalores que os demarcam. Dos quatro, e emnosso entender, apenas o da ética do cuidado po-derá abrir caminho a uma intervenção de exce-lência.

Ao nível do que designamos por “outras alter-nativas”, e por contraposição à ética do cuidado,

identificamos três cenários19 de acordo com osquais o trabalho de intervenção comunitária e so-cial se traduzirá inevitavelmente num resultadodesarmonioso porque a intervenção não reconhe-ce, à partida, a totalidade e unidade específicasde cada parte da relação.

Se a opção ético-profissional do interventorfor o primeiro dos três critérios (que poderíamosdesignar por perspectiva da cura), ele cria umcontexto de clara assimetria e desequilíbrio aoassumir uma posição de poder em relação aodestinatário que encara como parte visivelmentefragilizada e dependente (IP → DF). Coloca-sena posição de alguém que não tem (leia-se, queignora as suas) fragilidades próprias e ocupa olugar de “salvador” (Barbero, 1999). Assumemuitas vezes a responsabilidade do problema dooutro pelo que lhe dá conselhos e soluções ime-diatas (que até podem corresponder ao que pro-vavelmente faria se estivesse no lugar do outro,

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QUADRO 2Ilustração de critérios ético-profissionais distintos na intervenção comunitária e social

Ética do IPF → DFPCuidado (interventor potenciador com fagilidades → destinatário fragilizado com potencialidades)

1 IP → DF(interventor com potencialidades → destinatário fragilizado)

OutrasAlternativas 2 IP → DP

(interventor com potencialidades → destinatário com potencialidades)

3 IF → DF(interventor fragilizado → destinatário fragilizado)

Fonte: Adaptado de Barbero (1999).

18 É precisamente isso que se rejeita, implícita e ex-plicitamente, neste texto.

19 O critério da sua numeração não responde a ne-nhum propósito de hierarquização. Do nosso ponto devista, qualquer uma delas constitui uma alternativa re-dutora da conduta ético-profissional.

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esquecendo as diferenças de cada um). Este bi-nómio, constituído por um interventor que seidentifica apenas com as suas potencialidades epor um destinatário perspectivado unicamenteem função das suas fragilidades, diminui a capa-cidade de resposta e dificulta seriamente os re-cursos internos do destinatário.

Uma outra possibilidade é a que resulta de umbinómio constituído por um interventor que, àsemelhança do anterior, se identifica somentecom as suas potencialidades, mas que, nestecaso, perspectiva igualmente o destinatário emfunção das suas potencialidades e possibilidadesagindo como se o verdadeiro problema não exis-tisse, correndo o risco de negar as fragilidades eo sofrimento do outro (IP → DP).

No terceiro binómio, tanto o interventor comoo destinatário são encarados unicamente a partirdas suas fragilidades (IF → DF). Nesta situação,não é difícil que a actuação do interventor sejarecebida como simpática em função da solidarie-dade, proximidade e partilha que oferece aodestinatário ao identificar-se com as fragilidadesdele. Neste contexto, é bastante provável que osaldo do encontro se traduza num agravamentodo sentimento de impotência de ambos os lados,uma vez que o profissional acaba por não utilizaros seus recursos e por não ajudar o destinatário arentabilizar os seus.

Numa perspectiva filosófica, estas alternativastêm em comum o que tentámos relevar a partirda fundamentação heideggeriana do modo de serinautêntico: o afastamento de “casa”. Apesar dasua mútua presença, o interventor e o destinatá-rio estão afinal muito distantes um do outro. É asituação do “estar-longe-de-casa” porque se estámuito distante do seu próprio ser (Heidegger,1985). O amontoado de “tarecos” que (pseudo-)aconchegam o indivíduo nesta situação impede-o de ver com clareza a amputação quotidiana dasua liberdade mais profunda porque já não valo-riza a distinção entre o essencial e o acessório.Vive-se num «sem casa», num «estar-desalojado(unheimlich)» (Heidegger, 1984) que nós de-signaríamos aqui por “moral sem ética”, ou seja,a moral-do-homem-de-fora20 (auto-)des-culpado

pelo(s) costume(s). Por outras palavras, “o pro-fissional desempenhou um papel” e, se calhar,até cumpriu o código.

No entanto, e de acordo com as suas origens(Aranguren, 1995; Aristóteles, 1983; Cabral,1990; Renaud & Renaud, 1996, 1991), o éthos (ocostume) só conquista a sua plenitude de sentidoatravés da complementaridade e unidade com oêthos (a casa ou habitação). É esta mútua postu-lação que confere ao humano um sentido de res-peito pela sua natureza profunda e essencial. Ne-nhum homem se realiza só por fora ou só pordentro. A ética originária, ta ethica, parece pres-supor que a plenitude da existência humana de-pende dessa unidade entre ambos. Se o éthos pa-rece remeter para o costume encarado comonorma (as regras de conduta), o êthos remete, nasua significação mais primitiva, para o lugar on-de se guardam os animais e, na sua evoluçãosubsequente, para o lugar de onde brotam osactos, a morada habitual, culminando na ideia demaneira de ser ou carácter.

Embora este abrigo onde o homem se sentirásempre seguro ou, como para Binswanger, umpaís natal ou um «Heim» mais sólido do que opróprio mundo em que o Dasein se encontra(Dupuis, 1994), constitua a essência da ética en-quanto proximidade ao ser (Heidegger, 1985), averdadeira dimensão ética pressupõe e significasempre, em cada escolha individual, a escolha dooutro na sua liberdade (Ricœur, 1993). Significa,portanto, seguindo as palavras de Martin Buber(1999) começar por si, mas não acabar por si;tomar-se como ponto de partida, mas não porfim; conhecer-se, mas não se preocupar consigo.

Se voltarmos ao Quadro 2, torna-se visívelque a ética do cuidar como critério ético-profis-sional é aquele que mais se aproxima do respeitopelo outro na sua liberdade, dignidade e diferen-ça. Apresenta-se como modelo integrador e pre-tende valorizar a totalidade do ser humano indoao encontro de uma acção de «promoção do ho-mem e de mobilização de recursos humanos»(Carmo, 2000, p. 48) como a que caracteriza oknow how da intervenção comunitária. Consistenuma inter-presença entre um interventor que,sem negar as suas fragilidades próprias, desem-penha um papel potenciador em relação às possi-bilidades e potencialidades do destinatário, eum destinatário que não é confinado nem redu-zido às suas feridas, mas perspectivado a partir

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20 Um estrangeiro (Camus, 1962) na sua própria ca-sa e/ou no seu contexto profissional.

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das diversas potencialidades que essas feridasnão esgotam (IPF → DFP). A definição dashierarquias e os vínculos de dependência desva-necem-se porque «what is significant is the inter-personal relationship in all its rich and complexhuman colors21» (Winnicott, 1990, p. 115).

Nesta óptica, vislumbra-se um futuro (Carva-lho Teixeira, 1999) e um sentido a-vir com essemesmo futuro, e a possibilidade de uma plura-lidade de nascimentos a incluir na mais vasta«pluralidade dos nascimentos do homem» queEdgar Morin retoma de Moscovici (Morin, 2001).Desta forma, a prática profissional não é enca-rada nem identificada como um fazer, mas comoum agir porque, em primeiro lugar, a presençado outro, apesar de apreendida de forma quoti-diana e espontânea, é sempre um acto e não umaimpressão (Misrahi, 1996); em segundo lugar,porque deste modo se estará a trabalhar para umapostura de desenvolvimento e de progresso semesquecer a identificação das barreiras (Viana,2001); em terceiro lugar, porque «a existêncianão é estar parado, como que suspenso no tem-po» (Carvalho Teixeira, 1999, p. 125), mas ques-tionar-se e escolher-se re-fundamentando, em ca-da questão e em cada escolha, uma nova possi-bilidade para a pergunta antiga-actual “o que é ohomem?” (Cassirer, 1995; Coreth, 1985; Gevaert,1976; Langlois, s/d; Lima Vaz, 1991, 1992) que,através do agir, pode ser permanentemente re-dimensionada num infinito “quem é o homem?”,porque Infinito (Levinas, 1988) é o outro de cadaum e cada um para o outro.

Do ponto de vista do “dever ser”, a prática docuidar situa-se na transição de uma moral teleo-lógica (Aristóteles, 1983) para uma ética deonto-lógica ou formal (Kant, 1986a, 1986b). O deverfunde-se com a forma do querer e o homem élegislador pela liberdade porque sem esta não háautonomia e, nesse caso, o homem não seria oseu próprio legislador. Neste sentido, somenteuma ética formal pode, como reforçou MaxScheler (1955), fundar e garantir a autonomia e a

dignidade da pessoa (assim como a moralidadedo querer). E sem a pessoa não pode haver «nor-ma-do-dever».

Ao partir desta ideia de que «é o ser da pessoaque “funda” todos os actos essencialmente diver-sos» (Scheler, 1955, p. 388), é sempre possívelvislumbrar um novo caminho para cada encruzi-lhada. E quando passamos para o domínio ético--profissional, este percurso começa pela transfor-mação do que designámos atrás por dimensãodeonto-lógica22 de modo a que o quotidiano pro-fissional se possa traduzir num o que se pode fa-zer que passará então a ser concordante com oque se deve fazer, convergente para uma éticadeontológica. O que se espera, ou seria desejávelesperar, de um interventor comunitário e/ou so-cial é que ele tente entender as pessoas comquem trabalha por dentro (Carmo, 2000) (ou,dizemos nós, a partir de dentro) sem ignorar anecessidade de se conhecer também a si próprio(auto-vigilância).

5. O CUIDADO NA BASE DE UM SENTIDO DECOMUNIDADE

Não faria sentido concluirmos sem reflectir naimportância de que se reveste esta ética do cui-dar ao nível da própria comunidade no seio daqual a «vita activa» (Arendt, 1998) conquistauma parte importante da sua compreensibilidadee da sua significação humana.

Antes de mais, e em concordância com o queexpusemos até aqui, ela pode constituir precisa-mente uma das formas inovadoras de comple-mentaridade requeridas pela proposta de pensa-mento de um novo paradigma de «sociedade ci-vil forte, independente e interventiva» (Moniz,2003) à luz da qual a comunidade deixa de poderser vista como uma ilha porque os seus elemen-tos também o não são. A participação e o envol-vimento da comunidade na resolução dos seuspróprios problemas, os princípios da interdepen-dência e do encontro com o indivíduo no con-texto que o define e a valorização da multidi-

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21 O que é significativo é a relação interpessoal comtoda a riqueza e complexidade das suas cores humanas(T. A.). 22 Cf. pp. 486-489 deste texto.

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mensionalidade e complexidade humanas cons-tituem pontos de referência da intervenção co-munitária (Ornelas, 2000) e, em nosso entender,simultaneamente, formas de inter-cuidar.

No seguimento do seu diálogo com o povoamericano, Bill Clinton (1996), ainda na quali-dade de Presidente dos Estados Unidos da Amé-rica, reforçava que a sua visão para o novo sécu-lo era a de que o sonho americano é uma reali-dade para aqueles que estiverem dispostos e ti-verem vontade de trabalhar para isso. Mas acres-centava que essa visão se alcança perseguindouma estratégia tripartida: criar oportunidade,responsabilidade e um forte sentido de comuni-dade23. Talvez por isso, e como refere Kolakowski(2001), a interrogação respeitante à nossa partereal de responsabilidade seja sempre um proble-ma delicado. É importante que esta seja encaradacomo responsabilidade prospectiva (Schmidtz &Goodin, 2000), ou seja, virada para o futuro ele-vado à qualidade de valor comunitário (e, por-tanto, de dever em sentido kantiano), e não comoresponsabilidade retrospectiva confinada àsquestões dos méritos e das culpas.

Em sentido heideggeriano (1984), o cuidado(Sorge) permite precisamente conferir sentido esignificação a toda a ex-sistência humana, pelodesvelamento do ser. Cada caminho do Eu (queé, sempre e simultaneamente, um Tu – Buber,1969), como compreensão, exige que ele se assu-ma como Dasein-para passando, então, o cuida-do, a significar «cuidar-por», «preocupação-come para-com». Esta compreensão traduz-se, porsua vez, num «pré-ser-se» que constitui a essên-cia de todo o cuidar.

Não é possível descobrir ou construir um ple-no sentido de comunidade sem o «cimento co-munitário» (Morin, 2001) que é o cimento da«terra-pátria» e que é uma necessidade de huma-nidade e de vida. Contudo, o mais difícil hoje emdia é ser sensível à unidade e à diversidade hu-manas. Implicitamente, elas equivalem à sensi-

bilidade pelo «o que é humano no homem» semfazer dele uma abstracção, um objecto quantifi-cável ou um conceito que desencarna o própriohomem (Sojcher, 2001); equivale a que o homemaprenda a «arranjar o coração» pelo(s) outro(s),mesmo que isso corresponda ao confronto comdúvidas e dificuldades subjacentes aos dilemasprofissionais e comunitários.

Quando nos perguntam o que é a ética do cui-dado e o que é que ela tem a ver com a interven-ção comunitária e social, nós respondemos, coma ajuda dos três agás questionados e pensadospor Heidegger (1984), indicando simplesmente ocaminho de regresso a casa: a «humanitas dohomo humanus».

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23 De acordo com as suas palavras, uma das liçõesmais profundas que aprendeu durante o exercício doseu primeiro mandato foi a de que «(...) when we aredivided, we defeat ourselves...» (p. 114).

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RESUMO

Neste artigo, propomos a ética do cuidado comocontributo para um re-pensamento do ser-com-o(s)--outro(s)-no-mundo e, por consequência, da ética pro-fissional assumida como uma das suas faces. No seuinterior, a mó dum re-despertar para o ser pessoa giraem torno do conceito de cuidado, pensado a partir daobra de Heidegger e valorizado como pré-ocupação oupré-ser(-se).

Apesar de comungar dos valores centrais da antro-

pologia filosófica, a ética do cuidado amplia-a e apro-funda-a na medida em que o seu ponto de partida re--flecte a anterioridade da própria essência. Neste sen-tido, a pergunta pelo homem é já, em si mesma, umgesto de cuidado.

Tendo em consideração a especificidade do ângulode análise estabelecido pelo título do artigo, gostaría-mos de salientar que o nosso propósito é evidenciar deque modo(s) consideramos que a ética do cuidado sereveste da máxima importância ao nível das referên-cias ético-profissionais que devem pautar a excelênciaprofissional, e não confiná-la a esse mesmo desem-penho. Ela constitui-se, em nosso entender, comouma ferramenta ao alcance de todos e cada vez maisnecessária no nosso quotidiano individual, profissionale colectivo.

Palavras-chave: Ética, cuidado, pessoa, outro, auto-nomia, liberdade, dignidade, diferença, quotidiano,conduta profissional.

ABSTRACT

In this article, we propose an ethics of care as acontribution to a re-thinking of the being-with-the-other(s)-in-the-world and, by consequence, of theprofessional ethics assumed as one of his faces. In hisinterior, the mill-stone of a re-wakening to the beingperson turns around the concept of care, thought fromHeidegger’s work and valued as pre-occupation orpre-being.

Despite of sharing the philosophical anthropologymain values, the ethics of care amplifies and deepensit, in the way that his starting point re-flects the ante-riority of his own essence. In this sense, the questionfor man is already, in his own, a gesture of care.

Considering the analysis’ angle specificity esta-blished by the article’s title, we would like to point outthat our purpose is to evidence in what way(s) weconsider that the ethics of care is covered by the ma-ximum importance at an ethical-professional references’level that must rule the professional excellency, and donot confine it to that same performance. It constitutesitself, in our understanding, as a tool reaching everyone, and further more necessary in our individual, pro-fessional and collective quotidian.

Key words: Ethics, care, person, other, autonomy,freedom, dignity, difference, quotidian, professionalconduct.

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