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Etnobotânica: uma questão de gênero? Etnobotany: a gender question? VIU, Alessandra F. M.1; VIU, Marco Antônio de O. 2; CAMPOS, Letícia Z. O. 3 1 Universidade Federal de Goiás, Campus Jataí, Jataí/GO, Brasil, [email protected]; 2 Universidade Federal de Goiás, Campus Jataí, Jataí/GO, Brasil, [email protected]; 3 Universidade de Brasília, Brasília/DF, Brasil, [email protected] RESUMO: O estudo etnobotânico de plantas de uso medicinal pode ser uma interessante ferramenta de análise das relações de gênero na agricultura. Este trabalho foi desenvolvido junto à comunidade de Jataí-GO, como parte de um projeto que visa o resgate cultural do saber tradicional sobre o uso de plantas medicinais na região e objetivou delinear o perfil e a contribuição de homens e mulheres nas atividades relacionadas ao conhecimento e uso destas plantas. Foram estabelecidas entrevistas semi- estruturadas utilizando-se dois diferentes métodos de amostragem dos informantes (“Snow Ball” e “aleatório”). Os dados foram submetidos à análise estatística descritiva e de correlação, sendo investigadas as relações entre o grau de conhecimento dos entrevistados sobre plantas medicinais, sexo, idade e grau de escolaridade. As informações obtidas revelam que a comunidade local apresenta um forte conservadorismo cultural, baseado em valores patriarcais, mas sugerem uma tendência à maior participação feminina. PALAVRAS-CHAVE: Plantas medicinais, métodos de amostragem, gênero, agricultura familiar. ABSTRACT: Ethnobotanical study of medicinal plants may be an interesting analysis tool for gender relations in agriculture. This work was developed with the community of Jataí-GO, as part of a project which aimed to rescue the folk knowledge about uses of medicinal plants in this region and targeted to design the profile and the contribution of men and women in activities related to knowledge and use of these plants. Research-administered surveys were established using different sampling methods from interviewees (“Snow Ball” and “random”). Data were submitted to descriptive and correlation statistical analysis, searching the relationship among interviewees knowledge degree about medicinal plants and its sex, age and scholarity degree. The results obtained revealed a strong cultural conservadorism in local community, based in patriarchal values, but suggest a higher female participation tendency. KEY WORDS: Medicinal plants, sampling methods, gender, familiar agriculture. Revista Brasileira de Agroecologia Rev. Bras. de Agroecologia, Porto Alegre, 5(1): 138-147 (2010) ISSN: 1980-9735 Correspondências para: [email protected] Aceito para publicação em 24/03/2010

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Etnobotânica: uma questão de gênero?

Etnobotany: a gender question?

VIU, Alessandra F. M.1; VIU, Marco Antônio de O. 2; CAMPOS, Letícia Z. O. 31 Universidade Federal de Goiás, Campus Jataí, Jataí/GO, Brasil, [email protected]; 2

Universidade Federal de Goiás, Campus Jataí, Jataí/GO, Brasil, [email protected]; 3

Universidade de Brasília, Brasília/DF, Brasil, [email protected]

RESUMO: O estudo etnobotânico de plantas de uso medicinal pode ser uma interessante ferramenta deanálise das relações de gênero na agricultura. Este trabalho foi desenvolvido junto à comunidade deJataí-GO, como parte de um projeto que visa o resgate cultural do saber tradicional sobre o uso deplantas medicinais na região e objetivou delinear o perfil e a contribuição de homens e mulheres nasatividades relacionadas ao conhecimento e uso destas plantas. Foram estabelecidas entrevistas semi-estruturadas utilizando-se dois diferentes métodos de amostragem dos informantes (“Snow Ball” e“aleatório”). Os dados foram submetidos à análise estatística descritiva e de correlação, sendoinvestigadas as relações entre o grau de conhecimento dos entrevistados sobre plantas medicinais,sexo, idade e grau de escolaridade. As informações obtidas revelam que a comunidade local apresentaum forte conservadorismo cultural, baseado em valores patriarcais, mas sugerem uma tendência à maiorparticipação feminina.

PALAVRAS-CHAVE: Plantas medicinais, métodos de amostragem, gênero, agricultura familiar.

ABSTRACT: Ethnobotanical study of medicinal plants may be an interesting analysis tool for genderrelations in agriculture. This work was developed with the community of Jataí-GO, as part of a projectwhich aimed to rescue the folk knowledge about uses of medicinal plants in this region and targeted todesign the profile and the contribution of men and women in activities related to knowledge and use ofthese plants. Research-administered surveys were established using different sampling methods frominterviewees (“Snow Ball” and “random”). Data were submitted to descriptive and correlation statisticalanalysis, searching the relationship among interviewees knowledge degree about medicinal plants andits sex, age and scholarity degree. The results obtained revealed a strong cultural conservadorism inlocal community, based in patriarchal values, but suggest a higher female participation tendency.

KEY WORDS: Medicinal plants, sampling methods, gender, familiar agriculture.

Revista Brasileira de AgroecologiaRev. Bras. de Agroecologia, Porto Alegre, 5(1): 138-147 (2010)ISSN: 1980-9735

Correspondências para: [email protected] para publicação em 24/03/2010

Introdução

A etnobotânica, compreendida como a ciênciaque estuda e busca captar as diferentesdimensões da relação de grupos humanos e asplantas torna-se uma interessante ferramenta deanálise sobre as relações de gênero naagricultura, permitindo um novo olhar sobre opapel culturalmente atribuído à mulher, como mãee esposa responsável pelas atividadesdomésticas.

As mulheres têm valor histórico e cultural ao seconsiderar a tradição alimentar de uma região(OLIVEIRA & DALCIN, 2008) e o estudoetnobotânico de plantas medicinais permite umamelhor compreensão do papel da mulher comoresponsável pela saúde da família e, por suasegurança alimentar. Segundo Pastore (2005), oespaço doméstico permanece, na grande maioriadas famílias, ainda sob responsabilidade dasmulheres e as atividades por elas desenvolvidas,extrapolariam o espaço delimitado da casa e docuidado dos filhos, incluindo também as atividadesda horta e da roça, assumindo trabalhos regularesde plantio, capina, colheita e outros,especialmente na produção das chamadasmiudezas (produtos para consumo próprio dafamília), e do cuidado de um pequeno pomar.

Quisumbing e Meizen-Dick (2001) relatam aconstatação dos papéis desempenhados pelasmulheres como produtoras de alimentos,administradoras dos recursos naturais,angariadoras de receitas e zeladoras daalimentação doméstica e da segurança nutricionaldas pessoas.

De acordo com Pastore et al. (2009), no meiorural as relações de gêneros desiguais são maisvisíveis e se manifestam de forma mais aparente,devido ao forte conservadorismo ainda presentenas famílias e na cultura rural, principalmenteligadas às questões religiosas e de origem étnica,que constituem valores patriarcais que mantém afigura masculina com superioridade. Assim, aparticipação na esfera pública sempre foi

compreendida como “tarefa” masculina,naturalizando-se a idéia de que o homem é orepresentante e “chefe” da família,consequentemente é quem cuida dos “negócios”da família e a representa em espaçosorganizativos.

Segundo Silva (2007), é possível compreenderque o conhecimento a respeito do uso de plantase das práticas do benzimento cumpriu, em suahistória de construção, um duplo papel. Seinicialmente mantinha a mulher apenas no espaçodoméstico, progressivamente a aplicação dessesaber-fazer com outras pessoas da comunidadefez com que acelerasse o processo da conquistae da sua valorização no espaço público, surgindo,então, o reconhecimento destas mulheres comoespecialistas locais.

Neste contexto, torna-se pertinente o estudosobre a cultura de sociedades formadas eestabelecidas a partir da migração de indivíduosde diferentes regiões do país ou até mesmo deoutros países, como é o caso dos produtores quese estabeleceram nas regiões de Cerrado visandoa expansão das fronteiras agrícolas na regiãoCentro-Oeste do Brasil. Estes indivíduostrouxeram consigo valores, crenças eexperiências vividas que, associadas àquelas dascomunidades anteriormente estabelecidas naregião, compõem o acervo cultural desta novasociedade formada.

Szabó (1997 citado por ALBUQUERQUE,1999), apresentou o conceito deetnobiodiversidade como o estudo da “diversidadebiológica influenciada não apenas pelascondições ecológicas, mas também pelastradições culturais e a experiência ecológicaacumulada por comunidades humanas mais oumenos tradicionais durante o manejo sustentadode seu ambiente”.

De acordo com Diegues (1996), naspopulações tradicionais o uso dos recursosvegetais está fortemente presente na cultura

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popular que é transmitida de pais para filhos nodecorrer da existência humana e/oucontemporâneas, e pelo que se tem observado,tende à redução ou mesmo ao desaparecimento,quando sofre a ação inexorável da modernidade.

A vegetação do Cerrado abriga uma granderiqueza de plantas de uso medicinal, empregadasna medicina natural, cujo conhecimento seencontra disperso nas feiras populares, farmáciasde manipulação, raizeiros, mateiros e pessoasdetentoras de conhecimentos tradicionais(CEBRAC, 1999).

O conhecimento de plantas nativas é baseadonas práticas e transmissão oral que sãovulneráveis à deterioração e transformação com oprocesso de globalização (BRODT, 2001). Estesfatores são influenciados por idade, grau deaculturação e outros fatores socioculturais quepodem gerar a variabilidade em um ajusteparticular (LOZADA et al., 2006).

O conhecimento tradicional sobre o uso deplantas é vasto e é, em muitos casos, o únicorecurso disponível que a população de países emdesenvolvimento tem ao seu alcance (PASA,2005). Este conhecimento, se manuseado deforma espontânea, pode contribuir commecanismos sociais e culturais de conservação dabiodiversidade do bioma Cerrado. Abiodiversidade contida nas fitofisionomias dobioma Cerrado constitui o valor socioculturalatribuído pelas populações tradicionais e, nãosimplesmente, pelo que representa comopotencial de preservação de um manancial, porexemplo (RIGONATO & ALMEIDA, 2003).

A abordagem de gênero neste trabalho tem aintenção de identificar a contribuição de homens emulheres nas atividades relacionadas aoconhecimento e uso de plantas medicinais comoum novo processo de produção e comercializaçãoagrícola, bem como delinear o perfil destesprotagonistas.

Metodologia

Este estudo é parte de um projeto que visa oresgate cultural do saber tradicional sobre o usode plantas medicinais na região de Jataí – GO,cidade inserida numa área de Cerrado, fortementeantropizada em virtude de sua economia agrícolaparticularmente voltada ao cultivo da soja, milho emais recentemente da cana-de-açúcar que,beneficiou-se da contribuição cultural demigrantes advindos, segundo Fockink (2005),principalmente da região Sul do país e também(em menores proporções) daqueles advindos deMG, MT, MS, BA, MA, GO e RO, além de outrospaíses.

Durante dois anos consecutivos (2006-2007)foram realizadas entrevistas semi-estruturadasutilizando-se dois diferentes métodos deamostragem dos entrevistados. As técnicas deamostragem utilizadas foram as denominadas“Snow Ball” e “amostragem aleatória”.

As entrevistas realizadas objetivaram odelineamento do perfil do grupo, por meio deinformações como sexo, idade e grau deescolaridade, além do levantamento etnobotânicopropriamente dito, por meio de informaçõesacerca da identificação botânica, usos e formasde preparo das plantas com potencial medicinalna região.

O levantamento etnobotânico propriamentedito não é o foco principal deste artigo e, portanto,a metodologia enfatiza procedimentos adotadosno delineamento do perfil dos entrevistados alémde contrastar as metodologias de amostragemdenominadas “Snow Ball” e “AmostragemAleatória” aplicáveis ao propósito de se resgatarinformações sobre o uso e importância dasplantas medicinais nos diversos grupos sócio-econômicos da comunidade local.

Para a realização de 53 entrevistas no primeiroano de estudo, a técnica de amostragem eseleção dos informantes foi aquela denominada“bola de neve” (Snow ball) (ALBUQUERQUE &LUCENA, 2004), ou seja, optou-se por trabalhar

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com o conjunto de indivíduos reconhecidossocialmente como detentores de conhecimentossobre plantas medicinais (universo amostral), poisa partir de um contato inicial, um “especialistalocal” ao ser entrevistado indicava outro e assimsucessivamente.

No segundo ano de estudo, o método deamostragem utilizado foi o método “aleatório”,sendo realizadas 150 entrevistas que geraraminformações para análise descritiva do perfil dosentrevistados. Idade, grau de escolaridade equantidade de plantas citadas foram as variáveisconsideradas, no delineamento deste perfil e estesresultados foram comparados com aquelesobtidos pelo método “Snow Ball” de amostragem.

A abordagem aos informantes foi feitadiretamente no domicílio dos entrevistados, ondeforam explicados em detalhes os objetivos dapesquisa. Para a anuência desses, contou-se coma sua disponibilidade, interesse e boa vontade oque implicou em grande demanda de tempo etambém na criação de uma atmosfera amigável,onde as conversas fluíram de maneira confiável einformal. Houve receptividade e cordialidade porparte de todos os entrevistados.

Optou-se pela técnica da abordagem direta aosentrevistados sem uma prévia apresentaçãoformal a líderes comunitários, pois assim, asinformações fornecidas seriam fruto de seu realconhecimento e não de uma preparação préviapor parte deles para responder satisfatoriamenteaos entrevistadores, o que tornaria a amostragemtendenciosa.

Embora a confiabilidade das respostasconcedidas nas entrevistas seja subjetivamenteavaliada pelo pesquisador, esta metodologia visouminimizar a probabilidade de erro ao se analisarformalmente uma comunidade por meio demetodologia informal, como é o caso dasentrevistas ou diálogos participativos.

Análise Estatística DescritivaPor análises quantitativas foram investigadas

as relações entre o grau de conhecimento dasplantas medicinais e alguns fatores como: sexo,idade e grau de escolaridade. Ao sexo dosinformantes foram atribuídos os códigos (1) para osexo masculino e (2), para o sexo feminino. Ograu de conhecimento sobre plantas medicinaisfoi medido pela quantidade de plantas citadaspelo informante e o grau de escolaridade foiestabelecido pelos anos de estudo completadospor eles, sendo que este variou de analfabeto (0)a 15 anos efetivos de estudo.

Análise de CorrelaçãoPara o estudo da intensidade com que se

manifesta uma associação entre duas variáveis,optou-se pelo uso do coeficiente de correlação dePearson, calculada pelo pacote computacionalWINSTAT® (2006), cujo modelo matemático éexpresso da seguinte forma:

Segundo RIBEIRO JÚNIOR (2001), o valor rcalculado através dos n pares de valores dasvariáveis X e Y, representa apenas umaestimativa do verdadeiro coeficiente de correlaçãopopulacional ρ. Para testar a hipótese de que ocoeficiente de correlação é igual a zero (H0: ρ=0),é necessário aplicar o teste “t”, cuja expressãomatemática é:

Segundo o mesmo autor, o ‘t’ calculado serácomparado ao tabelado, a um nível α designificância, com n-2 graus de liberdade. Se ItcalI≥ IttabI, rejeita-se H0, ou seja, existe umacorrelação entre as variáveis avaliadas, dada pelovalor de r.

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Por meio desta metodologia avaliou-se aintensidade de associação entre as variáveis doperfil do entrevistado (idade, grau de escolaridadee quantidade de plantas citadas). Como a variávelgrau de escolaridade não possuía distribuiçãonormal, optou-se por análise não paramétrica pormeio do uso do teste H de “Kruskal-Wallis”.

Para se realizar as comparações entre asmédias obtidas segundo os diferentes métodos deamostragem (“Snow Ball” e “Aleatório”), utilizou-seo Teste-U (Mann-Whitney).

Resultados e discussõesResultados parciais referentes ao número de

espécies e respectivas famílias botânicas maiscitadas durante este estudo, aos principaissintomas e doenças passíveis de serem tratadospelo uso de plantas medicinais, bem como aossistemas orgânicos tratados pela comunidade e onúmero de espécies úteis no tratamento de cadasistema, no município de Jataí – GO, estãodisponíveis em Viu, et. al (2007).

Perfil dos EntrevistadosForam realizadas um total de 203 entrevistas

semi-estruturadas. Idade, grau de escolaridade equantidade de plantas citadas foram as variáveisconsideradas no delineamento deste perfil e osresultados foram comparados de acordo com ométodo de amostragem adotado (“Snow Ball” e“aleatório”) (Tabela 1). A quantidade ou número deplantas citadas por homens e mulheres foi ocritério adotado para aferir o grau deconhecimento de cada gênero sobre o uso deplantas medicinais.

No primeiro ano do estudo foram entrevistados15 homens e 38 mulheres, num total de 53entrevistas, segundo o método “Snow Ball”.

No segundo ano da pesquisa foramentrevistadas 37 pessoas do sexo masculino e113 pessoas do sexo feminino, sob o método“aleatório” de amostragem.

Nota-se que na amostragem aleatória foram

entrevistados generalistas enquanto no Snow Ballforam entrevistados especialistas e, em virtudedisto, os volumes de amostragem foram distintos.

A predominância das mulheres pode serjustificada ao se considerar que ao longo dahistória, nas várias sociedades, tem sidodesignada às mulheres a responsabilidade comas tarefas domésticas e o cuidado das crianças.Elas são as principais responsáveis pelotratamento caseiro das doenças mais simplesatravés de plantas (VASCONCELOS, 2001).

Isto estaria de acordo com os resultados aquiencontrados, em que a maioria dos entrevistados,independentemente do método de amostragemadotado, são mulheres, em geral donas de casa,mães ou avós de família que conduzem as tarefasde casa e a criação de filhos ou netos. Mulheresque contribuíram com o estabelecimento eadaptação de sua família ao novo ambiente emque estavam se inserindo como resultado damigração e da ocupação ou abertura de novasáreas de plantio por parte de seus esposos, pais,irmãos, cunhados, sogros (agricultores na região),ou ainda, mulheres nativas da região queprecisaram se adequar à “invasão” de novasculturas e à redução da vegetação nativa localpara dar lugar à expansão da área agrícola.

A idade média dos entrevistados do sexomasculino no método “Snow Ball” foi de 60,80anos ± 13,28 enquanto na “Amostragem Aleatória”foi de 46,18 ± 18,75. No primeiro método a idademédia do sexo feminino foi de 57,53 anos ± 16,07enquanto no segundo foi de 44,98 ± 17,60. Nota-se uma redução na média da idade das pessoasentrevistadas de ambos os sexos quando adotadoo método de amostragem aleatória, o que sugereque, os “especialistas” entrevistados pelo método“Snow Ball” tendem a ser mais idosos, e por isso,mais experientes no uso e conhecimento dasplantas.

Quanto ao grau de escolaridade, no método“Snow Ball”, o sexo masculino apresentou média

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de 5,27 ± 4,68 anos de escolaridade e no métodode “Amostragem Aleatória” a média foi de 5,85 ±4,26. No sexo feminino, a média do grau deescolaridade apresentado no método “Snow Ball”foi de 5,18 ± 4,35 e no método de “AmostragemAleatória” foi de 6,96 ± 4,67 anos de estudo. Apartir dos resultados aqui apresentados é possívelafirmar que o grau de escolaridade dosentrevistados no método “Snow Ball” foi menorque na “Amostragem Aleatória” para ambos ossexos. No primeiro método quem mais haviafreqüentado as escolas foram os homens, mas na“Amostragem Aleatória” foram as mulheres, o querefletiria uma maior busca por parte das mulheresem se qualificar para o mercado de trabalho.

A quantidade média de plantas citadas pelosexo masculino no método “Snow Ball” foi de11,87 ± 11,02 e na “Amostragem Aleatória foi de2,31 ±1,81. No sexo feminino, a médiaapresentada no primeiro método foi de 7,89 ± 6,04enquanto que no segundo método a médiaapresentada foi de 3,80 ± 2,86. Percebe-se umaredução no número de plantas citadas, quando se

comparam os métodos utilizados. No entanto, noprimeiro método os maiores “conhecedores” deplantas foram os homens, enquanto no segundo,foram as mulheres.

Embora os métodos de amostragem sejamdistintos e conseqüentemente o número deentrevistados homens e mulheres também osejam, houve diferenças estatisticamentesignificativas entre o número de plantas citadaspor cada gênero, enquanto critério adotado paraquantificar seu grau de conhecimento sobre o usode plantas medicinais (Tabela 1).

Estes dados são relevantes ao se analisar aquestão de gênero nesta área de conhecimento, epodem justificar a temática relacionada ao papelde homens e mulheres nesta atividade agrícola.Ou seja, o método “Snow Ball” de amostragempermitiu a análise das informações prestadas por“especialistas” que em geral são pessoasrelacionadas com a comercialização das própriasplantas medicinais e/ou de informaçõesrelacionadas ao uso, preparo e indicação dasmesmas, como é o caso de raizeiros, feirantes,

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benzedores, enfim, pessoas relacionadas com asatividades de representação e venda de plantas eprodutos na esfera pública.

Nota-se que os homens, embora em menornúmero, sabem indicar ou conhecem um maiornúmero de plantas, o que configuraria sua maiorexperiência em atividades “externas” àpropriedade, que não apenas àquelasrelacionadas ao tratamento e cura dos membrosda família. Mulheres conhecem plantas e formasde uso de maneira mais restrita, pois visam aatender principalmente, as suas necessidadesfamiliares. Homens tenderiam a sistematizar esteconhecimento de modo a torná-lo mais “vendável”,como estratégia de sucesso da atividadecomercial que desempenham, além da suainerente responsabilidade pelos “negócios” dafamília, o que estaria de acordo com Pastore et al.(2009).

O grande número de mulheres entrevistadassob este método de amostragem (em que foramentrevistados especialistas) sugere uma ascensãoda participação feminina no mercado de trabalho,entretanto, o reduzido número de plantas citadaspor elas indicaria sua pouca experiência ematividades relacionadas com o público, ou seja, asnecessidades financeiras e de realização pessoalas impulsionaram para o mercado de trabalho,

mas ainda lhes falta vivência fora do âmbitofamiliar ou da propriedade em que aprenderamsobre as plantas.

Possivelmente, o método “aleatório” deamostragem tenha permitido uma caracterizaçãomais fidedigna da contribuição de homens emulheres nas atividades relacionadas aoconhecimento e uso de plantas medicinais, poisnota-se que tanto o número de mulheresentrevistadas quanto o número médio de plantascitadas por elas foi maior quando comparados aoshomens. Isto estaria absolutamente de acordocom o contexto histórico do papel feminino naagricultura, na segurança alimentar e na saúde dafamília, ou seja, comparando-se o grau deconhecimento sobre plantas entre homens emulheres que não têm a pretensão decomercializar este conhecimento (como no casode especialistas feirantes, raizeiros, curandeiros,etc.) as mulheres são as maiores detentoras porserem tradicionalmente atribuídas a elas estastarefas.

Quando estudada a relação entre a idade doentrevistado e o conhecimento sobre plantasmedicinais constatou-se (independentemente dométodo de amostragem utilizado), que quantomaior a idade do entrevistado, maior oconhecimento que este possui (Figura 1).

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Quanto ao grau de escolaridade o número médiode anos efetivos de estudo no “Snow Ball” foi de5,21 ± 4,40 e o coeficiente de variação foi de84,58%. Na “Amostragem Aleatória” a média deescolaridade foi de 5,86 ± 4,32 e o coeficiente devariação foi de 73,69%. As diferençasprovenientes da comparação entre estas médiasrevelaram-se significativas (P<0,01).

Tais resultados corroboram vários outrosestudos (ALBUQUERQUE & ANDRADE, 2002;VOEKS & LEONY, 2004; DANTAS &GUIMARÃES, 2006) que afirmaram que aspessoas que menos freqüentaram os bancos dasescolas são os maiores detentores doconhecimento sobre plantas medicinais. Istopoderia ser explicado pela baixa oferta edisponibilidade de escolas e condições de estudo(na fase escolar destas pessoas) quandoassociadas aos dados referentes à idade médiados entrevistados, além da própria condição sócio-econômica dos mesmos.

Os resultados referentes à relação entre aidade e conhecimento sobre plantas medicinaissão comumente associados à erosão doconhecimento tradicional e, segundo VOEKS &LEONY (2004), deve-se ter cautela nestainterpretação, uma vez que isso pode nãocorresponder necessariamente a uma erosão doconhecimento tradicional ao longo do tempo,sendo que outros fatores como o maior tempo deexposição das pessoas idosas a problemas desaúde e à cultura tradicional, podem estarrelacionados. Sendo assim, os jovens aindaestariam neste processo de exposição à cultura e,por assim dizer, formando seu conhecimento acerca de plantas medicinais.

Quando analisada a relação entre o número deplantas citadas e o grau de escolaridade doentrevistado, pôde-se observar uma associaçãoinversa entre estas variáveis, independentementedo método de amostragem adotado. No métodode “Amostragem Aleatória” nota-se que, embora

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esta associação seja indireta (r = - 0,26; P< 0,05),sendo os analfabetos os maiores detentores deconhecimentos sobre plantas, as pessoas comensino médio completo citaram mais plantas doque aquelas que concluíram o ensinofundamental. Para se determinar se estasdiferenças foram significativas usou-se o teste Hde comparação de médias (Figura 2).

Estes dados estão de acordo com asconsiderações que Westman e Yongvanit (1995),fizeram sobre as pessoas com a maior habilidadepara identificar espécies vegetais com potenciaisalimentícios possuírem também os menores anosde educação formal.

Considerações Finais

As informações geradas neste estudo sugeremque a comunidade local atuante na produção ecomercialização de plantas de uso medicinalapresenta um forte conservadorismo culturalbaseado em valores patriarcais, mas revela aindauma tendência à maior participação feminina.

A caracterização do perfil das pessoasenvolvidas com o conhecimento e uso de plantasmedicinais na região pode servir como ponto departida para novos estudos e pesquisas, além defornecer diretrizes para a adoção de políticas deinclusão e de valorização do trabalho da mulher.Os dados obtidos apontam para uma realidade emque a mulher se revela interessada em ocuparespaços antes reservados aos homens, a umaidade cada vez mais jovem e com mais anos deestudo formal do que o homem.

Os resultados permitem concluir que osmétodos de amostragem avaliados possuemaplicações distintas, ou seja, enquanto o método“snow ball” objetiva preservar ou resgatar oconhecimento tradicional, o método “aleatório”visa conhecer as plantas medicinais consagradaspelo uso da população de modo geral. Acomparação entre diferentes metodologias detrabalho aqui desenvolvidas constatou a diferenteaplicabilidade das mesmas, podendo orientar

futuros estudos.A partir dos resultados avaliados, pôde-se

observar que o conhecimento sobre plantasmedicinais vem sendo perdido ao longo dasgerações, o que pode ser conseqüência daenorme influência da medicina moderna namedicina tradicional além da efetiva perda debiodiversidade regional (representada pelaredução no número de espécies botânicas,citadas e identificadas ao longo da pesquisa)resultante do manejo ambiental.

Agradecimentos

Os autores agradecem ao Programa Bolsistade Iniciação Científica CNPq/UFG pela concessãode bolsa para a realização deste trabalho e àFundação de Amparo à Pesquisa do Estado deGoiás, FAPEG, pelo apoio financeiro.

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Etnobotânica: uma questão de gênero?

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