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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MONTES CLAROS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTU SENSU EM CIÊNCIAS
BIOLÓGICAS
ETNOECOLOGIA E BIOLOGIA REPRODUTIVA: UM ESTUDO
SOBRE A PESCA E O PIRÁ (Conorhynchos conirostris) NA
BARRA DO URUCUIA, MINAS GERAIS.
THOMÁS TOSHIO YOSHINAGA
MONTES CLAROS, MINAS GERAIS
2015
THOMÁS TOSHIO YOSHINAGA
ETNOECOLOGIA E BIOLOGIA REPRODUTIVA: UM ESTUDO
SOBRE A PESCA E O PIRÁ (Conorhynchos conirostris) NA
BARRA DO URUCUIA, MINAS GERAIS.
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação Strictu Sensu em Ciências
Biológicas da Universidade Estadual de
Montes Claros como requisito necessário para
a conclusão do curso de Mestrado em Ciências
Biológicas.
Orientadora: Profª. Drª. Ana Paula Glinfskói Thé
Co-orientador: Dr. Daniel Vieira Crepaldi
MONTES CLAROS, MINAS GERAIS
2015
THOMÁS TOSHIO YOSHINAGA
ETNOECOLOGIA E BIOLOGIA REPRODUTIVA: UM ESTUDO
SOBRE A PESCA E O PIRÁ (Conorhynchos conirostris) NA
BARRA DO URUCUIA, MINAS GERAIS.
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação Strictu Sensu em Ciências
Biológicas da Universidade Estadual de
Montes Claros como requisito necessário para
a conclusão do curso de Mestrado em Ciências
Biológicas.
APROVADO:
Profª. Drª. Ana Paula Glinfskoi Thé – Orientadora
Prof. Dr. Anderson Medeiros dos Santos
Prof. Dr. Igor Simoni Homem de Carvalho
A minha fortaleza: Mãe, Pai, Túlio, Tiemi, Tássio e Mônica.
Aos amigos pescadores da Barra do Urucuia.
AGRADECIMENTOS
A meus pais, dona Valéria Yoshinaga, ao seu Antônio Yoshinaga e aos irmãos Tulio,
Tiemi e Tássio! Por proporcionarem os meios necessários para que pudesse “viver” de
estudar. Não existiria dissertação sem o apoio moral, financeiro e braçal de vocês. Hora
nenhuma vocês “negaram fogo”! Yoshi’S!
A Mônica Neli Alves que vem me acompanhando, suportando e incentivando a
alcançar um a um os objetivos pessoais que tanto almejo para o futuro. Te amo!
A Ana Thé que confiou em um aluno de “fora” e me proporcionou a oportunidade de
crescer pessoalmente e profissionalmente, sob sua orientação entrei na carreira acadêmica e
aprendi a olhar o mundo com outros olhos.
Ao Daniel Vieira Crepaldi, o co-“des”-orientador, com um pragmatismo sem igual, foi
prestativo nas horas de dúvidas, teve a paciência de ensinar e abriu as portas para
experiências incríveis.
Aos pescadores da “Barra do Urucuia” que abriram as suas casas para esse “Japa”
desconhecido e compartilharam os seus vastos conhecimentos sobre o ecossistema do “Velho
Chico”, pelos momentos de descontração proporcionados e também pela oportunidade de ver
o mundo por uma ótica diferente.
Aos tios Kiyoshi e Sonísia e os primos Harumi e Hiroyuki pelo carinho, apoio e pouso
quando foi necessário; a ajuda de vocês foi essencial.
As famílias Paiva (Dona Rusa, Luana, Ramon e Murilo) e Ribeiro (Dona Elenice,
Amanda, Jordana e Silvinho) pelo abrigo oferecido a um estranho e pelo apoio moral, as
conversas sobre a vida e o futuro da profissão foram inestimáveis.
A Érika Alvarenga pela paciência nos ensinamentos da prática histológica e aos
integrantes do LAQUA da UFMG, pela companhia e experiência compartilhada.
Aos companheiros de campo e risadas, Natália, Amanda, Tássio, Tiemi, Luana,
Camila, Aline, Ana Carina, Denis, Marília, Luciana Gomes, Maria Fernanda, Luciana dos
Anjos, Mariana Frois, Karen, Mariana Souto, Guilherme e Michelle, sem vocês as coletas
seriam bem mais pesadas e tediosas.
Aos colegas de mestrado os quais compartilharam o sofrimento, angustias,
conhecimento, alegrias, scripts do R, cerveja, risadas, em especial a Francine, Maíra, Sara,
Bárbara, Sergio Renato, Ozorino Neto, Paulo D’angelis e Paulo Bittencourt, sem vocês essa
caminhada teria sido bem mais difícil e monótona.
Ao professor Alberto Peret da UFSCar em São Carlos-SP e a Diana Luz, bibliotecária
da CODEVASF em Brasília-DF, agradeço lhes os inúmeros auxílios prestados de tão boa
vontade sem me conhecer, espero algum dia poder agradecer pessoalmente as gentilezas
recebidas.
Ao IBAMA pelo apoio financeiro e logístico para a execução das coletas e análises de
biologia reprodutiva.
Ao Laboratório de Aquacultura da UFMG, por meio do professor Edgar de Alencar,
ao de Anatomia Vegetal da Unimontes, por meio da professora Olívia Mercadante; ao Núcleo
de Experimentação Animal da UFVJM, por meio do professor Alex Sander Machado, aos
quais possibilitaram as análises histológicas deste trabalho e contribuíram com vários
ensinamentos aqui utilizados.
A Companhia de Saneamento de Minas Gerais – Copasa/São Francisco e a Companhia
Hidro Elétrica do São Francisco - CHESF pelo fornecimento dos dados físico-químicos e
parâmetros hidrológicos.
Ao PPGCB da UNIMONTES.
A CAPES pelo fornecimento de bolsa.
A todos estes devo a gratidão, pois sem eles não existiria dissertação alguma, o meu
título é ter vivido experiências incríveis e feito grandes amigos, o papel é um detalhe.
HITOTSU! JINKAKU KANSEI NI TSUTOMURU KOTO!
Primeiro! Esforçar-se para a formação do caráter!
HITOTSU! MAKOTO NO MICHI O MAMORU KOTO!
Primeiro! Fidelidade para com o verdadeiro caminho da razão!
HITOTSU! DORYOKU NO SEISHIN O YASHINAU KOTO!
Primeiro! Criar o intuito do esforço!
HITOTSU! REIGI O OMONZURU KOTO!
Primeiro! Respeito acima de tudo!
HITOTSU! KEKKI NO YU O IMASHIMURU KOTO!
Primeiro! Conter o espírito de agressão!
Dojo Kun – Lemas do Dojo
“Never say never, because limits, like fears, are often just an illusion”
Michael Jordan
RESUMO
As comunidades ribeirinhas do rio São Francisco há anos vêm se relacionando com o
ambiente em que vivem, acumulando experiências, desenvolvendo saberes e crenças a
respeito deste ecossistema. O conhecimento ecológico tradicional dos pescadores da Barra do
Urucuia é amplo, abrangendo aspectos reprodutivos como, época e local de desova,
dimorfismo sexual, cuidado parental e comportamento reprodutivo; aspectos ecológicos
como, a importância das lagoas marginais e ciclo biológico das espécies; além do
conhecimento sobre espécies pouco estudadas como o pirá (Conorhynchos conirostris), um
peixe listado como ameaçado de extinção, mas abundante na região do estudo. Esta proibição
causa descontentamento por parte dos pescadores, pois a espécie possui importância social e
econômica para os mesmos. Em função desta demanda social, buscou-se trabalhar com a
biologia reprodutiva do pirá, determinando os parâmetros básicos como o período e o pico
reprodutivo, fecundidade e tamanho de primeira maturação, que são fatores importantes para
a gestão pesqueira, buscando assim promover um diálogo sobre a situação atual da espécie.
Dedicou-se aqui também a discussão do modelo de gestão adotado no país, propondo-se uma
mudança na forma de gestão, que passaria então a levar em consideração a participação dos
pescadores e seu conhecimento no processo de manejo dos recursos pesqueiros. Para isso,
foram relacionados os benefícios desta incorporação em um processo de gestão compartilhada
fazendo com que esta seja realmente eficaz e equitativa.
Palavras Chave: Etnoecologia; Biologia reprodutiva; Conorhynchos conirostris; Urucuia;
Pesca profissional; Conhecimento Ecológico Tradicional.
ABSTRACT
The riverine communities of the São Francisco River for years have been in a
relationship with the living environment, accumulating experience, developing knowledge
and beliefs about this ecosystem. The traditional ecological knowledge of Barra do Urucuia
fishermen is broad, covering issues such as reproductive, time and place of spawning, sexual
dimorphism, parental care and reproductive behavior; ecological aspects, the importance of
lagoons and biological cycle of the species; besides the knowledge of species little studied as
pirá (Conorhynchos conirostris), a fish listed as threatened of extinction, but abundant in the
study area. This prohibition causes discontentment on the part of fishermen, because the
species has social and economic importance for them. In view of the fact that this social
demand, we tried to work with the reproductive biology of pirá, determining the basic
parameters such as period and the reproductive peak, fecundity and size at first maturity,
which are important factors for fisheries management, thus seeking to promote a dialogue on
the current status of the species. We devoted here also the discussion of the management
model adopted in the country, proposing a change in management, which would then consider
the participation of fishermen and their knowledge in the management process of fishing
resources. For this, were related benefits of this merger in a shared management process
causing this to be truly effective and equitable.
Key words: Ethnoecology; Reproductive biology; Conorhynchos conirostris; Urucuia;
Professional fisheries; Traditional Ecological Knowledge.
10
SUMÁRIO
1. PREFÁCIO ................................................................................................................................................... 11
2. CAPÍTULO I - CONHECIMENTO ECOLÓGICO TRADICIONAL SOBRE A REPRODUÇÃO DOS
PEIXES DO SÃO FRANCISCO .......................................................................................................................... 13
2.1 INTRODUÇÃO .......................................................................................................................................... 13
2.2 OBJETIVOS ............................................................................................................................................... 22
2.3 MATERIAIS E MÉTODOS ....................................................................................................................... 22
2.4 RESULTADOS E DISCUSSÃO ................................................................................................................ 23
2.4.1 Descrição Socioeconômica da Comunidade Estudada ........................................................................ 23
2.4.2 Etnoictiologia Reprodutiva .................................................................................................................. 29
2.4.3 A Pesca na Barra do Urucuia ............................................................................................................... 42
2.5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................................................... 52
2.6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................................................ 53
2.7 APÊNDICE A – ROTEIRO ENTREVISTAS LIVRES ............................................................................. 58
2.8 APÊNDICE B – ROTEIRO ENTREVISTAS ESTRUTURADAS ............................................................ 59
3. CAPÍTULO II – ASPECTOS DA BIOLOGIA REPRODUTIVA DO PIRÁ (Conorhynchos conirostris) . 63
3.1 INTRODUÇÃO .......................................................................................................................................... 63
3.2.1 Espécie alvo e sua demanda ................................................................................................................. 64
3.2.2 A ictiologia no São Francisco. ............................................................................................................. 66
3.2 OBJETIVOS ............................................................................................................................................... 70
3.3 MATERIAIS E MÉTODOS ....................................................................................................................... 70
3.4. RESULTADOS E DISCUSSÃO ............................................................................................................... 76
3.4.2 Frequência nos estágios de maturação ................................................................................................. 78
3.4.2 Índices Somáticos e Correlação com as Variáveis Ambientais ........................................................... 83
3.4.3 Relação peso-comprimento e Fator de Condição................................................................................. 86
3.4.4 Fecundidade e Tamanho de Primeira Maturação ................................................................................. 87
3.5 CONCLUSÕES .......................................................................................................................................... 90
3.6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................................................ 91
4. CAPÍTULO III – POR UMA GESTÃO SOCIOAMBIENTAL NO SÃO FRANCISCO ............................ 96
4.1 INTRODUÇÃO .......................................................................................................................................... 96
4.2 A contribuição dos pescadores e do seu conhecimento ecológico tradicional para uma gestão
compartilhada da pesca no São Francisco. ...................................................................................................... 101
4.2.1 Informações sobre biologia reprodutiva ............................................................................................ 101
4.2.2 Contribuição para a determinação do período de defeso ................................................................... 103
4.2.3 Informações básicas sobre espécies raras, em extinção ou pouco estudadas. .................................... 104
4.2.4 Contribuição com insights para estudos ............................................................................................ 106
4.3 CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................................................... 107
4.4 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...................................................................................................... 108
11
1. PREFÁCIO
Este estudo surgiu da vontade de se desenvolver uma pesquisa envolvendo a
etnoecologia e a ictiologia, pois estas são as áreas ao qual me identifico e tenho prazer em
estudar. Sob a orientação da professora Dra. Ana Paula Glinfskoi Thé durante a graduação
surgiu à oportunidade do mestrado, por meio dela vim a conhecer o analista e pesquisador do
IBAMA Dr. Daniel Crepaldi que trabalha com monitoramento de desembarque pesqueiro no
médio São Francisco.
Através da necessidade de atualização dos dados da biologia reprodutiva de peixes da
bacia do São Francisco, e determinar parâmetros importantes para a regulamentação da pesca;
surgiu a ideia de unir o útil ao agradável, vinculando a avaliação do conhecimento tradicional
detido pelos pescadores a respeito dos eventos reprodutivos, perfazendo assim o conteúdo
deste trabalho.
A pesquisa foi realizada na localidade denominada aqui como “Barra do Urucuia”,
formalmente existe pescadores filiados a duas comunidades distintas “Comunidade Angico
Branco II” e “Comunidade Amigos e Moradores da Barra do Urucuia”. Existem
aproximadamente 62 famílias morando na Barra do Urucuia, os quais vivem basicamente da
pesca, e ainda muitos moradores encontraram no turismo pesqueiro, uma forma alternativa de
renda. No local, há três hotéis e inúmeros ranchos de pesca que são alugados para pescadores
amadores que vão ao local em busca de lazer.
A Barra do Urucuia é um bom local de estudo tanto para se trabalhar com o
conhecimento tradicional quanto com a biologia reprodutiva, pois lá residem famílias, cujos
seus ascendentes trabalhavam em fazendas da região, e que posteriormente foram se
estabelecendo na localidade, além das famílias que vieram da Bahia e as quais também se
firmaram no local. O fato em comum é que estes residentes estão trabalhando com a pesca há
anos e assim acumulando um extenso corpo de conhecimento, prática e crença sobre o
ambiente ao qual vivem. Nesse local também se localiza um trecho do rio São Francisco, que
está relativamente bem preservado sem intervenção de hidrelétricas, com a presença de lagoas
marginais e grandes afluentes como Paracatu, Urucuia e Pandeiros, sendo um local propício
para populações de peixes saudáveis.
Realizar este trabalho não foi tarefa simples, desdobrar-me para trabalhar com duas
áreas distintas, certas horas tornou-se complicado, entretanto com todas as dificuldades
encontradas e contornadas, posso afirmar que o fiz com prazer e espero que em meio a esta
grande quantidade de informações eu tenha me feito entender.
12
O Capítulo I intitulado “Conhecimento ecológico tradicional sobre a reprodução das
espécies de peixes do São Francisco” traz informações sobre os aspectos reprodutivos das
espécies da bacia, como comportamento reprodutivo, dimorfismo sexual, cuidado parental,
migração e ciclo de vida; este capítulo traz ainda informações socioeconômicas dos
pescadores e também sobre a pesca na Barra do Urucuia.
O Capítulo II denominado “Aspectos da biologia reprodutiva do pirá (Conorhynchos
conirostris)” é referente à parte da biologia pesqueira, determinando parâmetros reprodutivos
como os índices somáticos, fecundidade e tamanho de primeira maturação estimado para
auxiliar na gestão pesqueira. Entretanto esta espécie consta como ameaçada, sendo sua
liberação constantemente reclamada pelos pescadores fundamentados nas observações diárias
de que a espécie é abundante e não está em extinção.
O Capítulo III nomeado “Por uma gestão socioambiental da pesca no Rio São
Francisco” surgiu numa tentativa de estabelecer uma discussão sobre a gestão da pesca no
médio São Francisco, buscando uma alternativa ao atual modelo adotado pelo Estado de
Minas Gerais, evidenciando as tentativas de mudança e as possíveis alternativas para uma
gestão realmente eficaz e equitativa.
13
2. CAPÍTULO I - CONHECIMENTO ECOLÓGICO TRADICIONAL SOBRE A
REPRODUÇÃO DOS PEIXES DO SÃO FRANCISCO
2.1 INTRODUÇÃO
A sobrevivência do homem sempre esteve relacionada com o uso dos recursos
naturais, partindo da coleta e extração para sua manutenção e posteriormente evoluindo para
atividades mais complexas (MARRUL-FILHO, 2009). Estas estreitas relações com o meio
ambiente permitiram o acúmulo de experiências ao longo dos milhares de anos, e é este corpo
de conhecimento que representa o Conhecimento Ecológico Tradicional (BERKES, 1993).
Desta maneira, define-se etnoecologia como o estudo das crenças e saberes
acumulados a partir das experiências vividas com base na estreita relação com o meio
ambiente (GADGIL; BERKES; FOLKE, 1993; TOLEDO, 1992). Estes saberes acumulados
são extremamente versáteis, abrangem desde relações ecológicas até aos campos da
etnociência como a agricultura, etnobotânica, etnozoologia, etnofarmacologia,
etnoveterinária, conservação da água e solo, alimentação humana e cura, dentre outros
campos (BERKES, 2008). Esta é uma área que envolve vários profissionais como
antropólogos, geógrafos humanos, biólogos, ecólogos, economistas e políticos teóricos
(BERKES, 1985). De acordo com Toledo e Barrera-Bassols (2009) a etnoecologia é um novo
campo de estudo, que valoriza os conhecimentos milenares é caracterizada como sendo uma
área pós-normal por desafiar os paradigmas da ciência moderna, além de transdisciplinar e
híbrida, por permear entre diversas áreas de estudo promovendo o diálogo de saberes e a
revalorização das culturas e povos geralmente ignorados.
Na etnoecologia, o foco está nos sistemas de conhecimento de populações locais e
converge para a discussão do Conhecimento Ecológico Tradicional (CET) que é definido
como: “um corpo cumulativo de conhecimento, prática e crença, evoluindo por processos
adaptativos e transmitidos através das gerações por transmissão cultural, sobre as relações dos
seres vivos (incluindo humanos) com os outros e seu ambiente” (BERKES, 2008, p.7).
Existe ainda o termo Conhecimento Ecológico Local (CEL) que é definido como
“conhecimento recente não tradicional” (BERKES, 2008, p.9), desta forma, tal conhecimento
se dá a partir das observações dos usuários locais em seus contextos específicos (THÉ, 2003).
Trabalhos citados por Berkes (1999) como “The Land Ethics” de Aldo Leopold
(1949), “Gaia” de Lovelock (1979), “Deep Ecology” de Naess (1989), demonstraram o
interesse nesse tipo de conhecimento baseado na experiência acumulada ao longo de milhares
de anos, buscando o elemento pessoal e espiritual que é ausente na ecologia científica. Outros
14
trabalhos como Callicott (1994); Bruun e Kalland (1995) também citados por Berkes (1999)
exploraram as religiões orientais e a visão dos nativos americanos em busca de insights para o
manejo sustentável dos recursos naturais.
A importância do CET, de acordo com Berkes et al. (1995), vai além do seu valor
sociocultural, existindo razões práticas principalmente para a conservação da biodiversidade
onde este conhecimento pode ser utilizado, como:
O CET oferece novos conhecimentos biológicos e insights ecológicos;
Alguns sistemas CET fornecem modelos para o manejo sustentável dos
recursos;
O CET é relevante para áreas protegidas e educação ambiental;
O uso do CET é crucial para o plano de desenvolvimento;
O CET pode seu utilizado na avaliação ambiental.
Em Berkes (1993); Berkes et al (1995) afirmam que o CET é uma forma de
conhecimento paralela à ciência ocidental e se difere da mesma por diversos pontos como:
O CET é principalmente qualitativo (em oposição ao quantitativo);
O CET possui um componente intuitivo (ao contrário de ser puramente
racional);
O CET é holístico (em oposição ao reducionismo);
Para o CET, mente e matéria são consideradas uma só (contrário a ideia de
separação de mente e matéria);
O CET é moral (em oposição ao livre-valor);
O CET é espiritual (oposto ao mecânico);
O CET é baseado em observações empíricas e acumulação de fatos por
tentativa e erro (oposto à experimentação sistemática e acumulação deliberada
de fatos);
O CET é baseado em dados gerados pelos próprios usuários do recurso (oposto
a aqueles gerado pelo grupo especializado de pesquisadores);
O CET é baseado em dados diacrônicos, por exemplo, longas séries de
informações em uma localidade (oposto aos dados sincrônicos, por exemplo,
pequenas séries de tempo sobre amplas áreas);
15
É necessário entender que há diferentes formas de compreender a natureza e o
relacionamento do ser humano com esta; a maneira ocidental com base na ciência moderna é
uma delas, além desta, existe aquela que reúne inúmeras formas de entender o mundo natural
e as quais são entendidas como conhecimentos tradicionais (GADGIL; BERKES; FOLKE,
1993; TOLEDO; BARRERA-BASSOLS, 2009).
São discutidas pelo menos três formas de conhecimento existentes seguindo a proposta
de Lévi-Strauss1: a paleolítica que é uma ciência anterior ao advento da agricultura e do gado,
a neolítica com idade até 10.000 anos e a moderna que remonta os últimos trezentos anos,
coincidindo com a criação das primeiras sociedades científicas na Inglaterra e na França e que
desde então tem dominado o espaço formal do saber (espaço científico). Esta última forma
tem atuado na busca por variedades de espécies geneticamente melhoradas, no avanço dos
agroquímicos e maquinarias (TOLEDO; BARRERA-BASSOLS, 2009).
Contudo, observa-se uma mudança nos tempos modernos a partir da década de 1980,
na qual o resgate de outras formas de conhecimento torna-se necessário, visto que a crise
ecológica vivenciada nesta época trouxe fortes evidências de que os recursos naturais estavam
sendo sobre-explotados, levando a entender que estes estavam sendo manejados de maneira
ineficaz.
A justificativa para a ineficácia do manejo e consequentemente na contribuição à crise
ecológica está ligada a ideia hegemônica de que a ciência ocidental com seu pensamento
racional, o seu método científico de análise, a estratégia de manejo baseado no comando e
controle são as únicas formas corretas e suficientes para gerenciar os recursos naturais
(GOMEZ-POMPA; KAUS, 1992; HENLEY; BERKES, 1997; HOLLING; MEFFE, 1996;
THÉ, 2003).
Além desta ideia hegemônica de que a ciência moderna é a única forma capaz de
manejar e gerenciar os recursos naturais; existe também a ideia da criação de parques e
reservas como estratégia de conservação da natureza, sendo estes locais considerados como
um mundo natural, selvagem e intocável. Mas seria difícil afirmar a existência de uma
natureza em estado puro, virgem, pois pesquisas demonstram que as áreas consideradas
naturais já foram extensivamente manipuladas por outras populações no passado (DIEGUES,
2001).
Este neomito2 transpassado dos Estados Unidos para os países considerados
subdesenvolvidos, não se adequa a realidade brasileira, já que a situação ecológica, social e
1 Claude Lévi-Strauss – O Pensamento Selvagem (1964) 2 Mito moderno segundo Diegues (2001)
16
cultural é totalmente distinta. Embora aparentemente vazias, as florestas tropicais abrigam
diversas populações como povos indígenas, comunidades ribeirinhas, extrativistas e de
pescadores artesanais, que detém uma cultura tradicional, seus próprios mitos e
principalmente relações com o mundo natural distintas das sociedades urbano-industriais
(DIEGUES, 2001).
Gerenciar os recursos naturais baseado em decisões sobre o acesso, uso e conservação
da biodiversidade, negligenciando as percepções e as experiências daqueles que estão
intimamente relacionados com a natureza, resultará em ação ineficaz e incorreta pelo fato de
gerar conflitos de caráter ético, social, econômico, político e cultural (DIEGUES, 2001).
O manejo convencional dos recursos naturais, denominado manejo por “comando e
controle”, busca minimizar o alcance das variações do ambiente em detrimento da
previsibilidade e/ou estabilidade. Soluções deste tipo só funcionam quando o problema é bem
delimitado; é claramente definido e com a relação causa-efeito linear (HOLLING; MEFFE,
1996). Tratando de sistemas com alta complexidade como as florestas de países tropicais, a
aplicação desta metodologia está fadada ao fracasso com consequências imprevisíveis e
indesejáveis (HOLLING; MEFFE, op. cit.).
Para encontrar um manejo que seja realmente ideal, é preciso primeiramente
reconhecer que o sistema abrange diversas áreas das ciências como ecologia, economia e
sociais. Outro passo importante é entender que tais sistemas social e ecológico são
profundamente interconectados e co-evoluem através da escala espaço-temporal (FOLKE,
2007).
Tanto cientistas naturais, quanto sociais, estudando em várias regiões do mundo
relatam o sucesso do manejo dos recursos por algumas populações locais, que mantem
sistemas de manejo viáveis nas atividades de extração (BERKES, 1985). Tais resultados
levantam questionamentos de como estas populações escapam da “tragédia dos comuns,”
teoria que postula sobre a exaustão dos recursos naturais pelos seus usuários, em função do
uso sem limites (HARDIN, 1968).
Especificamente dentro destes sistemas que envolvem a pesca, existem diferentes
modelos de manejo de recursos pesqueiros com níveis de complexidade variáveis, desde
sistemas que obtém êxito por exibir um manejo a nível local, até aqueles em que este arranjo
local foi inexistente e fracassaram trazendo consequências como a sobre-pesca (BERKES,
1986).
Acresce que para entender estes sistemas, primeiramente é necessário compreender
com quais tipos de recursos se trabalha; em teoria existem cinco tipos de recursos: livre
17
acesso, propriedade privada, propriedade comum, propriedade do estado e propriedade global
ou internacional (OSTROM, 1990).
Segundo Marrul-Filho (2009) baseado em Ostrom (1990), os recursos de livre acesso
são aqueles que não existem proprietários e nem regras de acesso, sendo desta forma, livre
para qualquer indivíduo ou empresa. Os de propriedade privada pertencem aos indivíduos ou
empresas que possuem o direito exclusivo de uso, inclusive de comercialização total ou parte
dos recursos obtidos, podendo ainda transferir o direito de uso. Os recursos de propriedade
comum são aqueles que pertencem a uma comunidade ou usuários que possuam relações
culturais muito fortes, sendo vetado o uso para aqueles não pertencentes à comunidade, não
podem fazer uso exclusivo ou transferir o direito de uso, sendo este igual para todos os
membros. Os de propriedade do estado são aqueles em que a Constituição do País estabelece
que pertençam ao estado, cabendo a este decidir como os recursos devem ser explorados,
manejados e ceder direitos de acesso aos seus cidadãos ou empresas. Por último, os de
propriedade global ou internacional são aqueles que se encontram além das zonas
econômicas exclusivas (ZEE’s) sendo de uso comum entre as nações e prevalecendo o livre
acesso, com ressalvas de alguns recursos importantes para a economia ou meio ambiente, para
estes são criadas regras de uso visando evitar o livre acesso e suas consequências para os
estoques.
A Constituição Brasileira determina que os recursos pesqueiros sejam de propriedade
da União, desta forma, o mesmo regula o acesso a tais recursos. Porém em muitos casos os
recursos estão enquadrados mais como livre acesso do que propriedade do estado (RUFFINO,
2005), já que embora o Estado brasileiro exija o registro de pesca como forma de regular o
acesso, não existe a fiscalização para distinguir quem está utilizando o recurso legal e ou
ilegalmente.
Todavia em meio à crise que se encontra o setor pesqueiro nacional, o Estado tem
firmado parcerias com as comunidades de pescadores e empresários de pesca em algumas
situações para redesenhar e reestabelecer sistemas e regras mais eficientes para a gestão
pesqueira (MARRUL-FILHO, 2009).
O uso do CET e as práticas de manejo associadas a ele são demonstrados em diversos
estudos ao redor do mundo, estes trabalhos ilustram que o uso destas práticas podem ser
utilizadas como alternativa na gestão convencional dos recursos naturais. Em seguida, estão
sumarizados alguns exemplos, os quais as populações locais por meio da criação de diferentes
tipos de regras obtiveram sucesso na explotação dos recursos.
18
Um estudo sobre o uso dos recursos pesqueiros em uma comunidade indígena Cree no
norte do Canadá, no qual Berkes (1977) demonstrou que ela possuía um alto grau de
ordenamento, principalmente na organização social do esforço de pesca, na regulação do
tamanho da malha das redes utilizadas, na limitação da pesca apenas em águas rasas e sítios
tradicionais e na utilização de todas as partes dos peixes capturados, possibilitando a
população dos Cree um total controle do esforço pesqueiro.
Johannes (1978) buscou compreender como os nativos da Oceania exploravam os
recursos pesqueiros marinhos, assim observou que as populações estudadas eram conscientes
de que os recursos explorados eram finitos, e assim desenvolveram meios para a conservação
da biota, tais como: direitos de pesca controlados, áreas e períodos proibidos para a pesca,
soltura de parte da captura e proibição da captura de indivíduos pequenos. Além disso, os
habitantes destas ilhas possuíam um vasto conhecimento acumulado sobre o comportamento e
movimentos de animais marinhos através da observação e captura cotidiana, possibilitando
diversas "descobertas" para a ciência (JOHANNES, 1989).
O trabalho sobre a comunidade de pescadores comerciais de Outer Long Point Bay no
Lago Erie realizado por Berkes e Pocock (1981), demonstrou que estes possuíam um sistema
de autorregulação que evitava conflitos causados por aglomerações de pescadores com redes
de emalhar, e impunha limites no tamanho dos indivíduos capturados e nos tamanhos das
malhas das redes de pesca. Neste estudo observou-se que o modelo surgiu devido uma crise
dos recursos pesqueiros do Lago Erie, como uma resposta adaptativa dos pescadores à
percepção de vulnerabilidade dos estoques pesqueiros. De forma que, com o estabelecimento
de regras para controlar o uso dos recursos, foi possível manter os estoques e produção
pesqueira suficiente com bons retornos financeiros.
Um estudo realizado sobre a pesca costeira na Turquia comparou cinco localidades e
explicitou que em três delas havia evidências de manejo a nível local dos recursos. Nestas
localidades, as cooperativas restringiam o número de pescadores e diversas outras medidas de
controle foram estabelecidas como: a vigilância da área de pesca, os financiamentos para seus
pescadores, o investimento na estocagem de pescado para controle dos preços, a proteção
contra invasão de barcos de arrasto, o banimento de técnicas predatórias como o uso de
dinamites e arpões. Desta maneira o autor ressalta que a pesca de pequena escala onde a
comunidade é relativamente homogênea e o grupo é pequeno, as ações de reciprocidade e
mutualidade são viáveis facilitando assim o manejo apropriado (BERKES, 1986).
Nas corredeiras de Buritizeiro, situada as margens do rio São Francisco, existe um
sistema de manejo que funciona há mais de 30 anos, utilizando quatro pontos divididos na
19
corredeira e possui um rotacionamento de usuários com horários específicos (THÉ e NORDI,
2006; THÉ, 2003). Trata-se de um sistema que permite o regime de pesca e de descanso do
sítio pesqueiro, além de possuir especificidades que restringe a entrada de novos usuários,
mas que ao mesmo tempo evitam conflitos. As únicas formas de obter acesso às corredeiras
são por "direitos adquiridos", os quais compreendem àqueles pescadores que participaram da
divisão dos sítios após a proibição da pesca em corredeiras pela SUDEPE; "direito por
consentimento" que corresponde ao empréstimo do horário, quando os donos não podem
pescar sob o possível pagamento da metade da produção; "direito por compra" por aqueles
que compram o horário do "dono do ponto" e "direito por herança" que corresponde ao direito
de uso por descendência dos antigos pescadores (THÉ; NORDI, 2006; THÉ, 2003).
O mecanismo apresentado no sistema que visa evitar ou minimizar os conflitos é
denominado “ir na aguarda”, onde um segundo pescador vai ao sítio de pesca junto com o
dono do horário, lançando seu petrecho logo após o dono (THÉ; NORDI, 2006), este exemplo
demonstra como a população local é capaz de manejar os recursos naturais, apesar deste ser
um sistema de pesca ilegal por ocorrer em um local proibido, nas “corredeiras”, os seus
rendimentos são semelhantes aos de outros locais do rio (GODINHO; BRITO; GODINHO,
2003). Entretanto nenhum esforço por parte dos órgãos legisladores foi realizado para
legalizar este sistema de manejo.
A saber, a proibição da caça das baleias da Groenlândia (Balaena mysticetus) levou a
interrupção de uma tradicional atividade dos esquimós do Alasca, em contrapartida os
mesmos se organizaram e criaram uma comissão para representar a comunidade de caçadores
na luta pelo seu direito. Após a proibição foi realizado um censo por pesquisadores, baseado
na observação e contagem de indivíduos passando pelas rotas conhecidas, estimando a
existência de 2000 a 3000 baleias, e a partir deste número foram estabelecidas as cotas de
captura para a população esquimó. Eles não concordaram com a estimativa realizada pelos
pesquisadores, os esquimós por considerarem haver um número bem maior de indivíduos do
que o amostrado, desta forma questionaram a acurácia da amostragem realizada. As
pressuposições do censo visual eram de que todas as baleias passavam pelas fendas no gelo e
se não existe caminho no gelo, as mesmas não migrariam pelo local. Entretanto, os esquimós
afirmaram que as baleias migravam por outras rotas abaixo do gelo, para confirmação das
informações, pesquisadores foram até os locais indicados pelos esquimós e através da
visualização e com o auxílio de equipamentos de escuta puderam complementar a estimativa,
atualizando o cálculo para valores entre 6000 e 8000 baleias. Concluíram que as baleias
migravam sob o gelo e quando não havia aberturas neste, elas respiravam através de pequenas
20
falhas ou quebravam o gelo forçando seus respiradores em locais mais finos (ALBERT, 2000;
HUNTINGTON, 1989 apud HUNTINGTON, 2000).
Em outro estudo, a integração dos pescadores ao processo de manejo foi essencial
para a recuperação dos estoques pesqueiros do pirarucu (Arapaima spp.) na bacia Amazônica
(CASTELLO et al., 2009). A declaração realizada pelo IBAMA em 1996 de que o pirarucu
estaria em estágio crítico de sobre-explotação levou o órgão a decretar a proibição da pesca
desta espécie, por dois anos, em todo o estado, e renovada ainda por mais duas vezes. Os
pescadores já afirmavam que sem o pirarucu e o tambaqui, outra espécie que foi proibida na
mesma ocasião, não obteriam lucro sobre a pesca. Entendendo que a pesca do pirarucu estava
proibida e que esta atividade só poderia ser realizada mediante aos sistemas genuinamente
gerenciados, os pescadores se organizaram e propuseram um sistema de manejo do pirarucu
baseado no rotacionamento em trinta e um dos lagos entre os oitenta existentes. A proposta
encaminhada ao IBAMA foi aprovada em junho de 1999 e esta requisitava três toneladas de
pescado no final do ano de 1999 (VIANA et al., 2004).
Após a proposta de manejo ter sido bem vista principalmente pelos pescadores’ em
função dos rendimentos obtidos, outra “ferramenta” tornou-se disponível e através do
conhecimento mantido pelos pescadores foi possível padronizar um método de contagem dos
pirarucus. Devido estes peixes serem respiradores obrigatórios de ar, através da visualização e
audição no momento em que os peixes subiam a superfície para respirar, possibilitou aos
pescadores distinguir e estimar a quantidade de peixes em cada lago baseado em uma série de
características como: tamanho, cor, quantidade de água deslocada, som da respiração e
comportamento. As contagens realizadas foram fortemente correlacionadas com os
experimentos e marcação-recaptura (CASTELLO, 2004).
Com oito anos de manejo, a população desta espécie aumentou de 2200 para 20650
indivíduos, consequentemente as cotas para captura também cresceram consideravelmente,
levando ao incremento de mais pescadores ao manejo, os quais foram beneficiados com um
melhor retorno financeiro. Os pescadores da comunidade de Jarauá ainda desenvolveram
outras formas de manejar os recursos pesqueiros, criando algumas regras, por exemplo, a
proibição de uso de redes de emalhar no mês em que o nível de água estiver baixo devido a
facilidade de captura, o que poderia ocasionar na depleção dos estoques (CASTELLO et al.,
2009).
21
A Resex do Mandira3 situada no município de Cananéia, no estado de São Paulo,
também é um exemplo de integração entre os usuários do recurso e seu conhecimento
acumulado, auxiliou-os na gestão dos recursos naturais. Os próprios “mandiranos” já
percebiam um declínio nos recursos da Resex, sendo as causas atribuídas aos próprios
comunitários, principalmente pelo extrativismo das ostras abaixo do tamanho mínimo
permitido pela legislação, e vendidas em grandes quantidades a um baixo preço. Foi
elaborado um plano de manejo e por meio de assembleia, os comunitários foram ouvidos e
então o plano foi firmado, as principais mudanças foram à exclusão de usuários não
pertencentes à Resex, mudança na forma de abastecimento dos viveiros de engorda de ostras e
não extração de ostras nos períodos de defeso entre os anos de 2005 a 2007 (CARDOSO,
2008; MACHADO et al., 2011).
Consequentemente houve o abandono da extração fora da Resex em função do
aumento dos estoques, assim também os manguezais da reserva tornaram-se suficientes para
manter toda a comunidade, além disso, foi perceptível para comunidade o aumento visual nos
estoques, principalmente no tamanho comercial e no número de sementes ou “crias” presentes
nas raízes, ainda houve a constatação da melhoria na produtividade e rendimento financeiro
(CARDOSO, 2008; MACHADO et al., 2011). Tal estudo demonstra como a integração dos
usuários ao manejo é a melhor forma de gerenciar o uso de recursos; sem o apoio local, as
chances de o manejo obter sucesso são mínimas (MOLLER et al., 2004), sendo a inversão de
gestão de um modelo top-down para bottom-up a possível solução.
As divergências sobre os períodos de defeso estabelecidos surgiram a partir do conflito
entre pescadores e órgãos gestores na região do Guaporé em Rondônia. Para os pescadores, a
legislação não condizia com o que ocorria biologicamente com os peixes, o que acarretaria na
depleção do estoque pesqueiro, já que as espécies não estariam protegidas na época
reprodutiva (DORIA et al., 2008).
A partir do estudo conduzido por Doria et al. (2008) utilizando o CET acumulado
pelos pescadores e comparado com dados experimentais de biologia reprodutiva, foi possível
comprovar as divergências entre o que a legislação estabelecia como defeso e o que ocorria
biologicamente no ambiente estudado. Desta forma, percebe-se como o CET contribuiu para o
manejo dos recursos pesqueiros, complementando com informações essenciais que muitas
vezes passam despercebidos pelos pesquisadores. O trabalho ainda propôs a adequação das
3 Reserva Extrativista (RESEX) criada através do Decreto s/nº de 13 de dezembro de 2002.
22
portarias de defeso para a bacia do Guaporé para cinco espécies, contribuindo para a
preservação dos recursos pesqueiros no período correto.
De fato, a manutenção dos estudos, e o reconhecimento e a utilização do
Conhecimento Ecológico Tradicional dos usuários de recursos naturais se faz necessário. As
populações tradicionais possuem o conhecimento sobre a biota, a área, as águas, o clima e
suas variações sazonais, o que lhes conferem a vantagem para sua sobrevivência. Estas
populações tendem familiarizarem com plantas e animais, suas preferências de habitat e
distribuição local, ciclo de vida e suas manifestações sazonais, comportamentos e usos
(DIAMOND, 1989 apud BERKES; FOLKE; GADGIL, 1995).
Como demonstrado pelos exemplos, o Conhecimento Ecológico Tradicional mantido
pelos povos e comunidades é fruto das estreitas relações com o ambiente com o qual vivem, e
o esforço em descrever este complexo de saber, crença e prática pode trazer inúmeros
benefícios para a ciência.
2.2 OBJETIVOS
Concatenar dados etnoecológicos a respeito do sistema socioambiental da pesca na
região, com ênfase nos aspectos reprodutivos dos peixes;
Descrever o calendário etnoecológico para as principais espécies de peixes comerciais
em contribuição a determinação mais adequada dos períodos de piracema e defeso na
gestão da pesca na Bacia do São Francisco;
Demonstrar como a utilização do Conhecimento Ecológico Tradicional pode
contribuir com a gestão dos recursos pesqueiros.
2.3 MATERIAIS E MÉTODOS
O estudo foi realizado no município de São Francisco, em uma comunidade
denominada neste trabalho como “Barra do Urucuia”, situada na margem direita do rio São
Francisco. Trata-se de uma comunidade com aproximadamente 62 famílias residentes, e que
possui seu modo de vida baseado na pesca e no turismo pesqueiro, além de possuir estrutura
para receber turistas, como hotéis, ranchos de pesca, bares e quiosques.
A coleta de dados etnoecológicos foi realizada inicialmente através de entrevistas
livres e posteriormente estruturada por amostragem intencional (VALENCIO, 2007), através
da identificação dos pescadores mais experientes. A partir das entrevistas livres foram
levantados os pontos de interesse para as entrevistas estruturadas, nesta etapa permitiu ainda o
23
melhor entendimento das expressões utilizadas pelos informantes, conforme proposto por
Marques (2001). Utilizou-se um roteiro de questões abertas (APÊNDICE A) e fechadas
(APÊNDICE B) as quais intercalavam o diálogo aberto entre o pesquisador e o sujeito
informante com respostas diretas. Os dados foram gravados, quando possível, ou anotados
diretamente no diário de campo para posterior análise. Foi utilizada à metodologia "geradora
de dados" proposta por Posey (1987) na qual procurou ser o menos restritivo possível para
evitar o constrangimento do entrevistado, podendo assim responder de acordo com os seus
próprios conceitos e lógica. Os dados obtidos foram utilizados para comparações com a
literatura científica, onde foram elaboradas tabelas de cognição comparada, conforme a
metodologia utilizada por Marques (2001) e Thé (2003).
A coleta de dados etnoecológicos estendeu-se até a saturação das respostas obtidas, no
caso, quando foi observada a repetição das respostas, optou-se por interromper a pesquisa,
devido ao fato de que o acréscimo de novas informações que ampliassem o entendimento do
conhecimento etnoecológico e da pesca em si seria raro em função da quantidade de
entrevistas a serem realizadas. (VALENCIO, 2007).
2.4 RESULTADOS E DISCUSSÃO
2.4.1 Descrição Socioeconômica da Comunidade Estudada
2.4.1.1 Família e Escolaridade
Foram entrevistados 17 pescadores da comunidade, para a parte socioeconômica
obteve-se os seguintes dados: idade, tempo de pesca, cidade de origem, escolaridade, registro
de pesca profissional, renda vinculada à pesca e outras atividades econômicas e expectativas
sobre os filhos na perpetuação da profissão desempenhada por eles.
Destes, 88% eram homens, 70% naturais do próprio município de São Francisco-MG
como demonstrado na Figura 01. A média de idade de 41 anos sendo o mais novo com idade
de 27 anos e o mais velho 67 anos. A maioria dos pescadores é casado ou possui união
estável, além disso, observou-se também a presença de alguns solteiros ou divorciados. As
famílias dos entrevistados são compostas por pai, mãe e filhos com exceção de alguns casos
em que netos também vivem juntos.
Dois pescadores não possuem filhos; entre os que possuem, o número de descendentes
varia entre 1 e 12, com média de três filhos por pescador. No que diz respeito à vontade de
que seus filhos continuem na profissão de pescador, 88% responderam que não, apenas um
entrevistado respondeu que sim e outro não soube responder.
24
Figura 01 – Cidades de origem dos pescadores entrevistados.
A família dos pescadores entrevistados é do tipo nuclear, aquela composta por pai,
mãe e filhos, corroborando com as afirmações para o perfil do pescador profissional artesanal
do Alto-Médio São Francisco (VALENCIO et al., 2003; VALENCIO, 2007).
Pode-se também observar uma mudança da própria percepção de alguns pescadores no
que diz respeito ao sustento das suas famílias através da pesca. Segundo os relatos de alguns
pescadores, eles e seus irmãos foram criados a partir do que era pescado pelo seu pai, estes
criaram seus filhos com o que era provido pela pesca, mas atualmente não conseguem
“render” a família com dinheiro de peixe. O seguinte trecho ilustra a dificuldade em se criar
os filhos com a renda da pesca.
P-11 – “...eu vou contar, vai diminuir mais (os peixes) eu mesmo só espero
do rio aí, sempre falo com os meninos, os meus estão todos criados também,
mas eu falo pra eles irem cuidando de outras coisas. É trabalhar, todos já
trabalham aqui e acolá, e já estão criados, mas eu criei eles com peixe, eles
todos criei foi pescando, agora de uns anos pra cá uns quinze anos pra cá,
comprei essas terrinha aí e vivia de grão em grão aí, só tinha o lugar de
morar na casinha e eu criei com peixe, papai também me criou foi pescando.
E hoje em dia muitos desses pescadores aí que tem criança se ele não
rebolar ele não dá conta de criar. Pra dar conta de criar um bocado de filho
aí, remédio, escola e tudo, num dá não, escola hoje em dia ainda até que tá
tendo uma ajuda aí do governo, mas ninguém sabe se vai ser cortado
também não... mas a pessoa viver de peixe aí pra manter casa, manter
família não vive mais não moço. E ainda tem uns novo aí que só ele, a
mulher e igualmente uns meninos ali em cima só vivem de peixe, pescando,
pode-se dizer que é dia e noite, dia e noite. Mas as familiazinha é miudinha,
pode dizer que é a mulher e a filha, outro pode dizer que nem filho não tem...
mas o camarada pra render família pra viver desse rio aí vai passar
apertado”
O grau de escolaridade dos entrevistados centrou-se no fundamental incompleto,
sendo que 29% não obtiveram nenhum tipo de instrução escolar formal e 59% não concluíram
0
20
40
60
80
Icaraí Pintópolis Remanso São Francisco São Romão
(%)
Municípios
Cidade de Origem
25
o ensino fundamental, os anos iniciais, equivalente à antiga 4ª série como demonstrado na
Figura 02.
Figura 02 – Grau de escolaridade dos entrevistados
A baixa escolaridade é uma característica que marca esta profissão, 88% dos
pescadores entrevistados não possuem instrução escolar formal ( não concluíram a educação
básica), os resultados encontrados não estão distantes de outros municípios do Alto-Médio
São Francisco, Valêncio et al. (2003) citou que 64,2% dos entrevistados em sua pesquisa não
tiveram nenhuma forma de escolarização formal ou até quatro anos de estudo.
“Como a maioria dos pescadores” não tiveram condições de ter um ensino formal,
desta forma, trabalham e fazem esforço para que seus filhos estudem e sigam outras
profissões e justificam que a “pesca está declinando”, “que o peixe está acabando” e “que
precisa estudar e virar doutor”. Percebe se nas entrevistas, a valorização do estudo, a busca
por novos trabalhos mais “promissores” e o reconhecimento de que a pesca é uma atividade
desgastante.
Embora haja esse desejo de que seus filhos estudem e busquem profissões mais
“promissoras”, observou-se na comunidade estudada que ainda existem muitas crianças e
adolescentes, cuja faixa etária é de 10 e 16 anos, já engajados nas atividades pesqueiras como
ajudantes, ganhando de dois a quatro reais por quilo de pescado adquirido. Desta maneira, um
dos pescadores afirmou que mesmo com as “facilidades” de hoje em dia para se estudar, é
possível ver que a pesca ainda atrai os jovens que buscam uma forma de adquirir seu próprio
dinheiro e assim adquirir alguma independência.
Embora a realidade da grande parte dos pescadores seja esta, o estudo formal tem sido
valorizado pelos pescadores, trata-se de uma forma de reinserção social para os seus filhos
(VALENCIO et al., 2003; VALENCIO, 2007). Foi possível visualizar este fato no desejo dos
0
20
40
60
80
Ensino FundamentalCompleto
Ensino FundamentalIncompleto
Não Estudou
(%)
Escolaridade dos entrevistados
Escolaridade
26
pescadores entrevistados neste trabalho, muitos não tiveram meios para seguir no ensino
formal, as dificuldades de deslocamento até as escolas mais próximas, a necessidade de
trabalhar para ajudar em casa foram alguns motivos. Entretanto, os pescadores desejam que
seus filhos estudem e se dediquem a outras profissões, que como destacado por Valêncio
(2007) são vistas como mais promissoras do que aquelas das águas do rio.
2.4.1.2 O tempo de profissão
O tempo de profissão variou entre 13 e 59 anos, com média de 30 anos, sendo que
apenas um não possui a carteira de pesca. Observou-se também que a iniciação as atividades
de pesca foi quando a maioria era muito jovem, todos os pescadores entrevistados iniciaram
as atividades de pesca antes dos 16 anos, destacando sete destes pescadores começaram antes
dos 10 anos.
A idade média dos pescadores, alvo deste estudo, é semelhante aos encontrados por
Thé (2003) como observado na Tabela 01. Em sua pesquisa a autora trabalhou em quatro
cidades ribeirinhas (Três Marias, Pirapora, Buritizeiro e Januária).
Tabela 01 – Idade dos pescadores artesanais do médio São Francisco.
Município Média de Idade Idade Mínima Idade Máxima
Barra do Urucuia 41 27 67
*Três Marias 37 20 72
*Pirapora 43 24 73
*Buritizeiro 40 27 70
*Januária 46 28 90
* Dados coletados entre 1999 e 2001 por Thé (2003)
A elevada média de idade é importante devido à associação entre o maior conteúdo de
conhecimento ecológico local e pessoas com idade mais avançada são considerados "experts",
partindo do pressuposto de que nessas condições, o informante possui maior experiência
acumulada no cotidiano através do convívio e o relacionamento com o meio ambiente e os
recursos naturais (DAVIS; WAGNER, 2003).
Quando questionados o porquê do início dos trabalhos tão cedo, as respostas foram
variadas, mas ressalta-se entre elas a pesca ter sido a única forma ou a mais fácil de obter
renda, como observado nos seguintes trechos: P-16 “O jeito de conseguir alguma coisa”; P-12
“Único trabalho que tinha”; P-05 “Não tinha outra profissão ou roça ou pesca”; P-15
27
“Porque era a única renda, dava muito peixe”. Outros motivos foram o gosto pela profissão e
a influência de familiares.
Sobre outras atividades desempenhadas, 35% afirmaram ter outros trabalhos
esporádicos como de tratorista, vaqueiro, auxiliar em marmoraria e operador de máquinas,
mas a principal categoria citada foi lavrador. Dos pescadores entrevistados, 82% disseram que
a renda atualmente provém exclusivamente da pesca.
O desempenho de outras atividades econômicas para a complementação da renda não
é novidade para os pescadores artesanais (THÉ, 2003). O plantio de roças para subsistência é
uma característica dessa comunidade, na qual 70% dos entrevistados afirmou trabalhar de
alguma forma na agricultura de subsistência denominado por eles de roça. Outros tipos de
atividades desempenhadas pelos pescadores entrevistados são: a prestação de serviços na
construção civil, comercialização de peixes e guias de pesca amadora.
Estas atividades ocorrem principalmente quando a pesca não vai bem, desta maneira
os pescadores procuram alternativas de renda, muitas vezes mudando-se para grandes centros
como São Paulo, Belo Horizonte e Brasília. Estes retornam as suas atividades no período de
safra quando os rendimentos com a pesca melhoram, este evento migratório é uma
peculiaridade da comunidade estudada. Um detalhe importante é a ausência de vínculo
empregatício nas atividades, desta maneira, os pescadores ainda continuam com o direito ao
seguro-defeso.
O defeso é a paralisação estratégica das atividades de pesca, uma medida de caráter
ambiental que visa proteger as espécies durante o período reprodutivo, garantindo a
manutenção dos estoques pesqueiros e consequentemente a renda do pescador. Assim, todo
pescador profissional fica impedido de pescar durante a época de reprodução das espécies-
alvo de suas pescarias. Neste período, quando o tempo de proibição é definido por legislação
específica, os pescadores profissionais recebem o seguro-desemprego ou seguro-defeso em
parcelas mensais, na quantia de um salário mínimo, em número equivalente ao da paralisação
(MPA, 2014).
Todos os pescadores afirmaram possuírem seus próprios barcos, sendo que apenas um
afirmou ter construído seu próprio barco e os demais compravam os materiais necessários e
pagavam para fazer ou ainda adquiriram a embarcação já pronta.
O trabalho dos pescadores vai além da pesca em si, os mesmos relataram que após a
prática da pesca, realizam outros trabalhos como a evisceração e o congelamento do pescado,
sendo este processo realizado pelo próprio pescador sem o auxílio de outra pessoa e em outros
28
casos há ajuda de alguém, esta pessoa pode ser o companheiro de pesca ou membros da
família como a esposa ou filhos.
Além do fato de meninos e jovens atuarem como companheiros de pesca, as mulheres
também colaboram com a pesca desempenhando outras funções, como na confecção e
manutenção dos petrechos e na limpeza e evisceração do pescado, vivendo em uma
invisibilidade social devido ao fato de ser reconhecida como uma extensão do corpo do chefe
da família (VALENCIO et al., 2003). Embora sejam raras na profissão, como destaca
Valencio (op. cit), no presente trabalho pode-se entrevistar pescadoras registradas
formalmente, além de presenciar o fato descrito das mulheres desempenhando tarefas nos
“bastidores”.
2.4.1.3 Finalidades da pesca e compadrio
A finalidade da pesca destes pescadores é para consumo próprio e para a
comercialização do pescado processado e congelado, a venda é realizada por todos para
peixarias ou atravessadores e também relataram comercializar o produto para o consumidor
final que o procurar na localidade.
O pescado é vendido para as peixarias/atravessadores da seguinte maneira: o surubim
(Pseudoplatystoma corruscans) possui dois tipos de preço com cabeça e sem cabeça; sem a
cabeça o preço é maior e é realizado somente quando o peixe excede o tamanho mínimo de
captura sem precisar do tamanho da cabeça para isso. O dourado (Salminus franciscanus) e o
pacamã (Lophiosilurus alexandri) possuem preços diferenciados dos demais por serem peixes
considerados nobres assim como o surubim. O restante das espécies de peixes é categorizado
como "peixe branco" e comercializada a preço único por quilo estabelecido na negociação. As
principais espécies caracterizadas nesta categoria são: curimatá (Prochilodus argenteus e P.
costatus), piau (Leporinus obtusidens), matrinchã (Brycon orthotaenia), corvina (Pachyurus
squamipinnis e P. francisci) e a caranha (Piaractus mesopotamicus). Os preços para as
categorias estão listadas na Tabela 02.
Uma relação social observada diretamente em campo durante a pesquisa, e confirmada
por entrevista, é a relação entre pescadores e atravessadores. A maioria dos pescadores
relatou possuir algum tipo de "compadrio" com os seus negociantes. Este "compadrio" se
processa desde favores para a aquisição de materiais necessários para a prática da pesca como
chumbo, cortiça, gasolina e conserto de motor e atividades de maior intimidade e trabalho,
como fazer a feira, pagar contas e até obter empréstimos de dinheiro. Apenas quatro
29
pescadores informaram não possuir esse tipo de vínculo com o seu atravessador, informando
“serem enrolados” ou simplesmente por “preferir a independência”.
Tabela 02 – Preço do pescado comercializado pelos pescadores da Barra do Urucuia.
Tipo de peixe Preço
Surubim (Pseudoplatystoma corruscans) R$ 19-22 e R$ 22
Dourado (Salminus franciscanus) R$ 13-15
Pacamã (Lophiosilurus alexandri) R$ 12-14
“Peixe Branco” R$ 10-12
2.4.2 Etnoictiologia Reprodutiva
2.4.2.1 Piracema e Carujo
Através das entrevistas e do preenchimento dos formulários obteve-se dados relativos
ao conhecimento ecológico tradicional sobre eventos reprodutivos e migratórios. Nesta etapa
além das perguntas referentes ao comportamento dos peixes foram realizadas também
questionamentos sobre a legislação pesqueira.
Primeiramente, buscou-se questionar o que é a piracema, a maioria dos pescadores
respondeu no sentido de “reprodução dos peixes” e outros no sentido de “restrição” conforme
demonstra a Tabela 03.
De acordo com a literatura científica, a piracema é uma palavra de origem indígena e
em tradução livre significa “saída do peixe” (pira=peixe, sem=sair) (NAVARRO, 2014),
trata-se do evento de migração reprodutiva a montante dos rios realizado pelas populações de
peixes neotropicais. Tal migração é desencadeada por diversos fatores abióticos como a
chuva, temperaturas elevadas e o nível do rio (LOWE-MCCONNELL, 1987).
As respostas obtidas sobre o significado da piracema não trouxeram uma definição,
mas sim uma descrição do fenômeno possibilitando a categorização dos resultados em quatro
tipos, sendo que a maioria se referiu à “época de reprodução dos peixes”, período em que
ocorre a migração das espécies quando as condições abióticas são favoráveis, desta maneira
os peixes iniciam a migração reprodutiva à procura de local que possua as condições ideais
para a desova (LOWE-MCCONNELL, op. cit.).
30
Questionou-se também a respeito de como ocorre a reprodução dos peixes, entretanto
nem todos os pescadores responderam. Dos que o fizeram pode-se classificar as respostas
obtidas nas categorias a seguir, cada uma com seus respectivos exemplos: Comportamento
reprodutivo, P-09: “carujando pra soltar as ovas”; Comportamento migratório, P-10: “tem
que ter enchente aí ele sobe, o rio vai subindo, aí eles começam a produzir, aí nascem os
filhotinhos que vai pra lagoa”; Cuidado parental, P-02 “ele produz ali que eu nunca vi, eu
vejo aqueles ovinhos, mas eu nunca vi os peixinhos assim gerando, de surubim a gente vê
agarrado nos outros peixes”; Dinâmica hidrológica do rio e Defesa e predação, P-04:“eles
falam que o rio tem que encher, pra água banzeirar, jogar nas lagoas, porque eles produzem
mais na água parada, desovam mais na agua parada, na correnteza os predador comem as
ovas né”.
Tabela 03 – Categorização das respostas a respeito da Piracema.
Pescador Respostas Categorias
P-01 “Época dos peixes produzir” Reprodução dos peixes
P-02
“Uma construção do peixe para reproduzir, criar,
recriar”.
Reprodução dos peixes
P-03
“Período que não deveria ir para o rio porque é a
desova do peixe”.
Restrição/Reprodução dos
peixes
P-04 “Época da reprodução do peixe, desova”. Reprodução dos peixes
P-05 “Tempo da reprodução do peixe, proibido de pescar”. Reprodução dos
peixes/Restrição
P-06 “Quando é a desova do peixe, época de proibição”. Reprodução dos
peixes/Restrição
P-07 “Sai mais um peixe, a gente ganha mais um
dinheirinho, peixe tá na desova”.
Reprodução dos peixes/Época
de melhor rendimento/
Restrição
P-08 “Meio do peixe render mais, precisa da enchente”. Reprodução dos peixes
P-09 “Época da desova do peixe, proibida que não pode
pesca”.
Reprodução dos
peixes/Restrição
P-10 “Época da desova dos peixes”. Reprodução dos peixes
P-11 “Uma das coisas hoje em dia que se não fizer esse
trabalho acaba de acabar os peixes”.
Restrição/Conservação
P-12 “Época do peixe produzir”. Reprodução dos peixes
P-13 “Época do peixe produzir”. Reprodução dos peixes
P-14 “Desova do peixe”. Reprodução dos peixes
P-15 “Desova do peixe”. Reprodução dos peixes
P-16 “Produção do peixe”. Reprodução dos peixes
P-17 “Época da reprodução dos peixes”. Reprodução dos peixes
Buscou-se também compreender o que é “carujo", citado por alguns pescadores,
diversas respostas traziam o sentido de comportamento reprodutivo, dimorfismo sexual e
dinâmica do rio. A Tabela 04 ilustra todas as respostas obtidas, muitas são as descrições de
como o ato ocorre e não uma definição propriamente dita.
31
Embora muitos pescadores tenham afirmado que todos os peixes carujam, os
principais relatos são para o surubim (P. corruscans) e a curimatá (Prochilodus argenteus e P.
costatus), sendo o primeiro o mais visualizado e descrito com detalhes. Houve algumas
espécies em que os pescadores disseram não ter visualizado ou ouvido como no caso do
pacamã, do cari preto e da piranha, ilustrada através dos seguintes trechos: P-11 “pacamã
nunca vi, cari preto nunca vi e piranha também eu nunca vi, os outros eu já vi”; P-7 “...o
moleque caruja para caramba, dourado não caruja não, nunca vi dourado carujar”.
Tabela 04 – Pescadores explicando o carujo.
Pescadores Respostas Categoria
P-01 “peixe namorando” Comportamento reprodutivo
P-02
“o carujo de surubim, ele levanta assim, e faz aquele
barulho assim, depois vira assim, aí quando ele desce ele
faz com os dois ou três, aquele cardume, hoje é dois, três
ali, antigamente era muito, aí eles fazia com a “pata”
assim”.
Comportamento reprodutivo
P-03
“Eles tá namorando” Comportamento reprodutivo
P-04 “quando o peixe sobe na flor d’agua, assanha na flor
d’agua”
Comportamento reprodutivo
P-05 “Carujo é toda época quando o rio enche e suja a água, aí
o peixe que sai dos lugar escondido e vai desovar aí eles
caruja no meio do rio”
Dinâmica do
rio/Comportamento reprodutivo
P-06 “eles falam assim quando o peixe tá carujando sempre a
fêmea fica por baixo grande aí ela fica de barriga pra cima
assim, aí outro vem e solta, uns fala ova outros falam leite,
os machos passando por cima”
“quando o peixe tá carujando, eles falam que tá
desovando, jogam os filhotinho”
Comportamento reprodutivo
P-07 “o carujo é quando o peixe sai pra desova” Comportamento reprodutivo
P-08 “é o peixe sobe né, aí um peixe vai montar um por cima do
outro aí que eles vai reproduzindo e aumentando”
Comportamento reprodutivo
P-09 “Carujando pra soltar as ovas” “carujo eles sobem por
cima d’agua, dão aquela rabanada pra jogar as ovas e
outro solta o esperma pra reproduzir”
Comportamento
reprodutivo/Dimorfismo sexual
P-10 “na hora que eles tão envazando” Comportamento reprodutivo
P-11 “hoje em dia não vê mais, cansei de ver carujo de surubim
aí que pipocava em riba assim, hoje em dia vê um
carujinho aí aquelas carainha e aqueles piauzinho ainda
fala “oh o carujo”, antigamente via surubim mesmo,
aqueles grandão e os menor mais por riba, aquilo ia até
pra beira do capim chegava a empanar, ia passando e
Comportamento reprodutivo
32
vendo eles mexendo naqueles capim assim... já tem anos
que não vejo um carujo”
P-12 “carujo é a fêmea fica de barriga pra cima e os machos
sobem em cima dela e vai soltando aquele leite em cima, no
meio do rio, a fêmea fica de barriga pra cima, e todo peixe
e o macho fica soltando aquele leite em cima dela, aquilo
ali que é a produção do peixe”
“carujo é a fêmea fica de barriga pra cima e os machos
sobem em cima dela e vai soltando aquele leite em cima, no
meio do rio, a fêmea fica de barriga pra cima, e todo peixe
e o macho fica soltando aquele leite em cima dela, aquilo
ali que é a produção do peixe, aquilo ali é que é a
produção do peixe, que faz vingar”
Comportamento
reprodutivo/Dimorfismo sexual
P-1 “acho que é o peixe usando do outro pra dar as ovas” “o
peixe grande o surubim grande chega e vira de barriga pra
cima, hoje não, mas antigamente via aqueles peixão de asa
de fora, tinha gente que ia pegar ele e arpão, eles abria
assim virada de barriga pra cima e você pensava que tava
morto, aí virava aquele tanto de pequeno os menos que
bagunçava e chega voar água pra cima”
Comportamento
reprodutivo/Dimorfismo sexual
P-15 “Pra soltar as ovas, a fêmea de barriga pra cima, os outros
tudo em redor”
Comportamento
reprodutivo/Dimorfismo sexual
P-16 “reprodução, acasalando” Comportamento reprodutivo
P-17 “sobe na água pra carujar” Comportamento reprodutivo
Quando solicitado para que descrevessem o carujo, muitos pescadores indicaram o ato
com uma grande riqueza de detalhes, sendo que alguns ilustravam suas falas com
onomatopeias referentes aos peixes no ato do carujo como podemos verificar nas seguintes
falas:
P-02 - “o carujo de surubim, ele levanta assim e faz aquele barulho,
depois ele vira assim, aí quando ele desce ele faz com os dois ou três aquele
cardume, hoje é dois, três ali, antigamente eram muitos, aí eles faziam com a
“pata” assim”. “carujo mesmo é só surubim, agora as de curimata elas
ficam fazendo aquele barulho que a gente escuta, não sei se você já viu, você
vai no barco e fica vendo elas fazendo assim “trooooo””.
P-06 - “eles falam assim quando o peixe está carujando sempre a
fêmea grande fica por baixo, aí ela fica de barriga pra cima assim, aí outro
vem e solta, uns fala ova outros falam leite, os machos passando por cima”.
P-09 – “Sobe por cima d’agua, dá aquela rabanada pra joga as ovas e o
outro o esperma pra reproduzir, surubim, curimatá, caranha tudo faz”
P-11 - “...hoje em dia não vê mais, cansei de ver carujo de surubim
aí que pipocava em riba assim, hoje em dia vê um carujinho aí aquelas
carainha e aqueles piauzinho “trooo” ainda fala “olha o carujo”,
antigamente via surubim mesmo, aqueles grandão e os menor mais por riba,
aquilo ia “troooooooo”, aquilo ia até pra beira do capim chegava a
33
empanar, ia passando e vendo eles mexendo naqueles capim assim... tinha
vez que passava o bicheiro neles assim, cansei de pegar muitos assim,
encostava o barco devagarzinho passava o bicheiro o bicho faltava arrancar
a gente de dentro do barco, já peguei foi muitos assim no bicheiro, mas hoje
em dia a gente não vê mais, aliás pra falar a verdade já tem anos que não
vejo um carujo de surubim... e aquilo é só descendo, não é subindo não, que
eles começam com o carujo lá em riba e vem descendo, descendo só
descendo nas águas, acho que quando chega lá embaixo aí eles param e vem
subindo... O surubim é o mais necessário, ave maria, era o peixe que mais
carujava, o estouro dele é igual o estouro do boto que passa na televisão.”
P-12 - “carujo é a fêmea fica de barriga pra cima e os machos
sobem em cima dela e vai soltando aquele leite em cima, no meio do rio, a
fêmea fica de barriga pra cima, e todo peixe e o macho fica soltando aquele
leite em cima dela, aquilo ali que é a produção do peixe”.
P-14 - “o peixe grande o surubim grande chega e vira de barriga
pra cima, hoje não, mas antigamente via aqueles “peixão” de asa de fora,
tinha gente que ia pegar ele e arpão, eles abria assim virada de barriga pra
cima e você pensava que estava morto, aí virava aquele tanto de pequeno os
menos que bagunçava e chegava voar água pra cima e os outros tudo ao
redor, você via eles tudo ao redor”.
Foi relatado que o carujo ocorre apenas na época da chuva, com o rio cheio, com a
água suja, na enchente ou na piracema, todos estes fatos estão relacionados com o verão
chuvoso da região, tempo onde os rios recebem grande aporte de água das chuvas.
Os pescadores também afirmaram em sua maioria que o carujo ocorre no período
vespertino, principalmente após as cinco horas da tarde, apenas um pescador relatou o carujo
na parte da manhã próximo das seis horas, os trechos retirados das entrevistas ilustram os
resultados.
P-12 – “De tarde sempre à tarde, nunca vi um carujo de manhã”.
P-11 – “Nunca vi carujar cedo, turrar, só à tarde, três horas”.
P-09 – “À tarde cinco horas”.
P-10 – “De tarde com o sol entrando”.
P-15 - “De tardezinha, três horas em diante”
.
Os pescadores disseram ainda que o peixe reconhece o período correto para carujar em
função da enchente, água suja, cheia; outros fatores citados foram época de calor e o faro dos
peixes. Os mesmos informaram que a enchente é o fator mais importante para a reprodução
dos peixes, um pescador afirmou ser importante: P-04 “não pescar e prolongar a piracema”
outro citou outros fatores importantes além da enchente como: P-05 “não pescar e não andar
com motor”.
Em relação ao local onde os peixes soltavam a sua produção, a maioria dos pescadores
afirmou que na estratificação vertical os peixes soltavam sua produção na flor d’agua ou
34
superfície, houve ainda uma citação para a barra do Urucuia, confluência entre o Rio São
Francisco e Rio Urucuia, as seguintes falas especificando espécies: P-13 “Piau no capim”; P-
17 – “Depende do peixe surubim é na flor d’agua outros no fundo”, além de duas abstenções.
Para a estratificação horizontal foram agrupadas categorias semelhantes "canal do rio", "meio
do rio", "lugar corredor" e "lugar fundo" que correspondem ao local onde a correnteza é mais
forte. Outros locais citados foram o "beiradão", que é em proximidade com a margem do rio,
as "barras" ou “boca de afluente’, deve-se considerar que dois entrevistados não responderam.
Observou-se também a sobreposição de locais como demonstrado na seguinte fala: P-14 –
“No canal, na barra onde tem o canal que corre mais, geralmente é no encontro, pra nós aqui
é na barra do Urucuia, nos outros lugares é onde a água puxa mais”.
Percebe-se que os pescadores detêm o conhecimento ecológico local sobre os eventos
reprodutivos, o ato da desova em si citado como carujo é um “meme”4 estabelecido na cultura
dos pescadores entrevistados sendo referido também em outros estudos no Rio São Francisco
(SATO et al., 2003a; THÉ, 2003). O carujo citado em trabalhos anteriores foi definido como
“momento da desova” (SATO et al., 2003a); “namoro ou namorar; época do cruzamento e
época das enchentes” (THÉ, 2003), a partir da comparação entre os resultados obtidos pelo
trabalho acima citado é possível observar que também não existiu um conceito bem definido
permeando entre os conceitos reprodutivos e de dinâmica do rio, apesar da inexistência de um
conceito fixo, todas as respostas estão dentro de um contexto semelhante.
Em muitos relatos foram à descrição de como o ato ocorre no rio, estas descrições
foram bastante detalhadas e puderam demonstrar diversos aspectos do evento como
dimorfismo sexual e comportamento reprodutivo, sendo a fêmea aquela que "é grande" e "fica
de barriga para cima". Tais informações também são recorrentes para a o Alto-Médio São
Francisco, Thé (2003) já trazia relatos de pescadores descrevendo o carujo como a fêmea da
espécie surubim na correnteza de barriga para cima com machos passando por cima.
O uso de onomatopeias para ilustrar as falas foi presenciado principalmente para
evidenciar o turrar dos peixes como a curimatá (Prochilodus argenteus e P. costatus), piau
(Leporinus obtusidens) e caranha (Piaractus mesopotamicus), relata-se um barulho, um ronco
realizado pelo macho dessas espécies. Esta afirmação condiz com as afirmações científicas
disponíveis, sendo este turrar uma vocalização de corte emitida pelo macho, como encontrado
por SATO et al (2003b). Na bacia do alto Paraná este evento é denominado “rodada” onde o
4 Segundo Dawkins (1979) a definição de ““memes” se refere a fragmentos da informação cultural que são
armazenados nos cérebros e transmitidos entre indivíduos de forma comportamental e verbal.
35
cardume de adultos nada na superfície da água emitindo barulho durante a desova
(SCHUBART, 1943 apud GODINHO, 2005).
Apesar da descrição com riqueza de detalhes, os pescadores possuem muitas
informações sobre o surubim (Pseudoplatystoma corruscans) e a curimatá (Prochilodus
argenteus e P. costatus) sendo poucos relatos sobre os demais peixes. Isto pôde ser
evidenciado e a explicação talvez esteja relacionada com o tamanho da espécie, já que sendo
maior, torna mais facilmente visível os comportamentos, outra possibilidade também seria ao
valor do surubim para a pesca profissional, por ser um alvo muito procurado, a busca pelos
seus exemplares levaram os pescadores a uma observação mais atenta a esta espécie
desenvolvendo um corpo de conhecimento prático mais conciso destoando das demais. Tal
conhecimento continua sendo mantido apesar da diminuição drástica desta espécie em virtude
de vários fatores que interferem nas populações de peixes e consequentemente os ribeirinhos
vem vivenciando.
As afirmações sobre o carujo ocorrer sempre na “época de chuva”, com o “rio cheio” e
as “águas”, evidenciam a consistência do conhecimento detido pelos pescadores já que todos
afirmaram ocorrer neste período. Isto também é um “meme” bem definido como explicitado
por Thé (2003) cujos pescadores relataram a classificação de peixes que desovam “nas águas,
na época das chuvas, que vai de novembro a fevereiro”. Da mesma maneira que apontado
neste trabalho, os pescadores de outras regiões da bacia quando indagados sobre qual o
período de reprodução, eles retornaram também o período determinado pela legislação,
entretanto também enfatizaram que o fator importante para a reprodução dos peixes é a
presença da “chuva e enchente, sem a chuva o peixe não desova e a ova seca” (THÉ, 2003).
O carujo foi relatado que ocorre no período da tarde principalmente após as cinco
horas da tarde ou com o sol entrando, e como referido pelos pescadores o período correto para
carujar está relacionado à enchente. Tais informações podem ser comparadas com
observações realizadas em um estudo conduzido nos rios Grande, Pardo e Moji Guaçu no
estado de São Paulo, visando o estudo da migração de curimatás (Prochilodus lineatus) onde
a desova foi descrita como ocorrendo entre a "Cachoeira das Emas" e "Cachoeira de Cima"
sempre quando o nível do rio estava subindo e no horário da tarde e à noite (GODOY, 1959
apud JUNHO, 2008).
As informações fornecidas pelos pescadores a respeito do carujo quanto ao horário e o
reconhecimento do período correto para a desova é totalmente compatível com o descrito na
literatura científica, desta maneira o aproveitamento deste corpo de conhecimento e prática é
passível de uso na geração de hipóteses testáveis e também no auxílio à gestão pesqueira.
36
Segundo os pescadores a desova pode ocorrer nos seguintes locais: no canal do rio,
meio do rio, lugar corredor e lugar fundo; em sua classificação vertical os mesmos afirmam
ser na flor d’agua5. O local onde mais visualizam o carujo é na barra o Urucuia que reúne
todas as características horizontais descritas. THÉ (2003) em sua pesquisa conseguiu um
detalhamento melhor das espécies e seus respectivos locais de desova e que divergem
ligeiramente dos resultados encontrados neste trabalho em função de grande parte dos peixes
citados em sua pesquisa desovarem em locais mais protegidos, em moitas, remansos, beiradas
e locas.
O fenômeno da desova na confluência entre dois rios também foi relatado por
pescadores para o jaraqui (Semaprochilodus sp.) no encontro do rio Solimões com o rio
Negro (AMADIO6, comunicação pessoal). Os pescadores compreendem a importância das
barras para os estoques pesqueiros, segundo eles, estas são as áreas nas quais os dois rios se
encontram ou onde as lagoas ficam ligadas com o rio, sendo assim, os peixes jovens podem
entrar e se criar nas lagoas conforme o observado e relatado pelos pescadores. É um local
onde podem se alimentar e fugir de predadores.
É de conhecimento geral que muitos peixes tropicais utilizam a planície de inundação
como habitat de alimentação, reprodução e refúgio (AGOSTINHO; ZALEWSKI, 1995). É de
grande importância, este ciclo de inundação da planície, que proporciona a ligação do rio com
as lagoas marginais, pois estes locais são conhecidos por servirem como criadouros de peixes
(MENEZES, 1956 apud POMPEU, 1997). Foi demonstrada a importância das lagoas
marginais situadas no Alto São Francisco no recrutamento das espécies de peixes,
principalmente de piracema que são de extrema importância para a pesca comercial e
esportiva (SATO; CARDOSO; AMORIM, 1987).
Em uma pesquisa realizada em três lagoas no médio São Francisco foi possível
identificar a presença de cinquenta espécies nas lagoas, dentre elas oito espécies consideradas
migradoras (Salminus franciscanus, Prochilodus costatus, Prochilodus argenteus,
Pseudoplatystoma corruscans, Leporinus reinhardti, Leporinus taeniatus, Leporinus
obtusidens e Brycon orthotaenia) em sua grande parte indivíduos jovens, evidenciaram assim
a importância das lagoas para o ciclo de vida de várias espécies e principalmente as de
piracema (POMPEU, 1997).
É ressaltado ainda que a ausência de cheias de grande intensidade ou uma maior
flutuação no nível das águas do São Francisco diminuiria a inundação das lagoas marginais,
5 Termo utilizado para se referir a superfície do rio. 6 Professora Sidinéia Aparecida Amadio do INPA durante o XXI Encontro Brasileiro de Ictiologia, Recife 2015.
37
trazendo consequências graves para a comunidade de peixes como a diminuição da
abundância e riqueza de espécies nas lagoas marginais. Consequentemente os estoques
pesqueiros nos rios também sofreriam reduções, já que as populações do rio dependem dos
peixes oriundos das lagoas (POMPEU, op. cit), os pescadores apontam este fato, a ausência
de enchentes, como um dos fatores que prejudicaram os estoques pesqueiros da região.
As informações dos pescadores entrevistados coincidem com os estudos científicos
disponíveis, os ovos e larvas da maioria dos peixes de água doce são demersais, assim
possuem uma gravidade específica maior do que a da água. A literatura científica traz que os
ovos de peixes classificados como migradores, são dependentes da correnteza para que
mantenham na coluna d’agua do rio por motivos de oxigenação e dispersão (BALON, 1984
apud RIZZO; GODINHO, 2003). A reprodução em cativeiro de espécies migradoras da Bacia
do São Francisco como Prochilodus costatus e P. argenteus, Salminus franciscanus,
Leporinus obtusidens demonstrou que quando o fluxo de água das incubadoras foi cortado os
ovos se depositaram no fundo, portanto são demersais (SATO et al., 1996, 1997, 2000).
O conhecimento dos pescadores é baseado nas observações, eles sabem os locais onde
os peixes desovam a partir da visualização do ato no rio ou pela transmissão oral através das
gerações, apesar de não terem conhecimento sobre a explicação “científica” para tal fato, estes
conseguem afirmar com grande grau de acurácia eventos que ocorrem no dia a dia com a lida
na pesca.
2.4.2.2 Cuidado parental
Sobre o cuidado parental, os pescadores relataram sobre quatro peixes que exibem tal
comportamento, o surubim (Pseudoplatystoma corruscans), o tucunaré (Cicla sp.), a pacamã
(Lophiosilurus alexandri) e a tilápia (Oreochromis niloticus; Tilapia rendalli). O primeiro foi
indicado pelo fato de carregar seus filhotes agarrados nas costas, o segundo por fazer ninhos e
ser protegido por ambos, machos e fêmeas, o terceiro por fazer ninho e se manter em cima e o
quarto por montar cerco e como o tucunaré ter um comportamento agressivo, sendo que na
percepção dos pescadores nem a piranha (Pygocentrus piraya), que é um peixe extremamente
voraz não ataca o ninho do tucunaré.
Em outras áreas da bacia, os pescadores também relataram o cuidado parental para o
surubim, a pacamã e o tucunaré que foram descritas por Thé (2003). Em seu trabalho o
surubim foi descrito por “filhote gruda nas costas dos pais”, o tucunaré por “Vigia a ova,
desova nos paus e fica vigiando, perto, bravo” e a pacamã “vigiam as ovas e os filhotes”,
estas são informações semelhantes às obtidas neste trabalho, com exceção da tilápia
38
(Oreochromis niloticus; Tilapia rendalli) que foi citada por montar cerco e ter comportamento
tão agressivo que até mesmo à piranha evita o ataque, é conhecido que as tilápias possuem
cuidado parental e variam de acordo com o gênero, sendo possível distinguir três grupos: os
do gênero Tilapia são de desova em substrato e guardadores; Sarotherodon tem cuidado
biparental com incubação oral e Oreochromis tem cuidado maternal com incubação oral
(TREWAVAS, 1983 apud COWARD; BROMAGE, 2000). O Quadro 01 ilustra e compara o
conhecimento sobre cuidado parental para o tucunaré no presente estudo, no trabalho
desenvolvido por Thé (2003) e informações científicas.
O cuidado parental relatado sobre o surubim, onde os pais carregam os filhotes
grudados nas costas é um “meme” consistente entre pescadores. Entretanto o convívio com
técnicos de instituições como CODEVASF e IBAMA e a constante troca de informações
demonstram que afirmações diferentes tem surgido. Os seguintes registros obtidos por Thé
(2003) ilustram a mudança na percepção dos pescadores:
“Surubim não tem filhote nas costas, é parasita, peixe pequeno que parece
com o surubim”. THÉ (2003).
“Eu achava que o surubim cuidava, que tinha filhote grudado nele, mas um
biólogo falou que era um parasita”. THÉ (2003).
No presente estudo pôde-se observar que um pescador afirmou que estes peixes
encrustados nas costas dos surubins não são filhotes, mas quando questionado sobre o que
eram não soube responder, quando perguntado se seriam parasitas ele concordou.
“Ele (analista ambiental do Ibama) falou pra mim, que aquele que nós
falamos que é o filhotinho de surubim, porque parece tem a cabecinha
parece que tem um esporãozinho e ele falou que aquilo não é um filhote de
surubim... falou que é um... (entrevistador: um parasita?) -Isso! É um
parasita. Eu achava que era (surubim)” – P-15
A percepção de que o surubim carrega seus filhotes implica em outras consequências
ecológicas, por exemplo, para peixes utilizados como iscas no anzol de galho/pinda. De
acordo com o pescador quando os “filhotes” de surubim grudam na isca eles a libertam, pois
acreditam que o surubim não irá ataca-la por serem filhotes, o que seria correspondente a
evitar o canibalismo.
“Gruda mais no surubim, ele só gruda em outro peixe se você iscar um
anzol, põe uma curimatá e fica muitos dias, aí de vez enquanto eles grudam
nela aí eles tem até aquela ciência né, ah pode tirar que tem surubim nela,
encostou filhote de surubim peixe não vai, aí a gente vai lá e solta a isca” P-
15
39
Quadro 01 – Tabela de cognição comparada sobre o tucunaré (Cicla sp.) a respeito de aspectos
reprodutivos.
Compreensão dos pescadores Informações Científicas
Presente estudo Thé (2003)
“Tucunaré fica o macho e
fêmea, aí eles soltam os
alevinos deles aí eles ficam
vigiando, aí não encosta
nenhum peixe ali, os dois,
abrem um buraquinho no chão
e você olha e vê um monte
deles lá dentro, aí peixe
passam eles correm atrás”
“em lago, no rio é raro você
pegar um tucunaré” P-05
O tucunaré desova de
setembro a janeiro.
Toda a passagem de lua nova
ele desova.
O tucunaré... sempre tem com
ova.
Gosta de água parada, grota
pequena, rio pequeno.
“O tucunaré (Cichla
monoculus) vive em ambientes
lênticos, onde se reproduz
principalmente na época das
chuvas”.
“... a frequência relativa dos
estágios do ciclo reprodutivo
de fêmeas e machos indicaram
peixes em maturação durante
todo o ano, com maior
frequência de fêmeas
desovadas em janeiro, quando
a precipitação na região de
Três Marias é mais alta”.
(MAGALHÃES et al, 1996)
“tucunaré protege se elas por
as ovas nada come, nem
piranha”. “Tucunaré põe as
ovas dela dentro do golfo e
nada come os filhos dela, eu já
vi em lagoa” “Tucunaré é
difícil no rio”
O macho tem o cupim, a fêmea
não tem.
O macho fica com uma
cristona na cabeça, só quando
desova. Vigia por perto, limpa
o lugar da desova. Choca que
nem jacaré. Dentro dos
córregos, nas grotas, nos
tocos ele solta as ovas.
Enquanto tá pequeno fica a
fêmea em cima da desova e o
macho na frente, vigiando.
“A espécie apresenta
dimorfismo sexual na época
da reprodução, quando surge
no macho uma protuberância
pós-occipital...”.
“executa cuidado parental à
prole, presença de órgãos
adesivos nas larvas evitando
que sejam carregadas”.
(MAGALHÃES et al, 1996)
2.4.2.3 Fatores de previsão e ribada (migração)
As entrevistas revelaram também a existência de dois “fatores de previsão” que os
pescadores utilizam na sua lida diária, o primeiro está relacionado ao nível do rio, durante a
estação seca o nível do rio se torna baixo devido a ausência de chuvas, o início da estação
chuvosa traz a água e assim o nível do rio aumenta. A enchente é o fator de marcação para os
pescadores entrevistados, ela traz um aumento no número de peixes capturados, entretanto a
40
estação chuvosa também possui oscilações, de forma que se o rio enche a primeira vez, as
capturas melhoram e se por ventura com a ausência de chuvas ele baixar o seu nível, as
capturas irão piorar e só voltarão a melhorar assim que ultrapassar o nível da primeira e assim
por diante.
O segundo fator é a visualização do carujo como fator de predição se o rio vai alterar
seu nível, de acordo com os pescadores, se o rio está aumentando o seu nível e se visualiza o
carujo, o rio começará a diminuir seu nível no dia seguinte, se ele vem em uma sequência de
dias diminuindo o nível e o carujo é visualizado o rio começará a encher e desta maneira
cíclica os pescadores vão prevendo as suas capturas para os próximos dias.
Uma das informações obtidas sobre eventos migratórios que ocorrem na região está a
denominada ribada este evento é definido como:
P-01- “muitos peixes subindo, por cima d’agua (superfície)”.
P-03 – “quando o peixe tá subindo mudando de um lugar pra outro”.
P-04 - “muito peixe reunido subindo na flor d’agua”.
P-09 - “junta cardume pra subir mudando de lugar”.
Para alguns pescadores este evento migratório ocorre devido à mudança de lugar dos
peixes e outros foram mais específicos afirmando que a ribada é a saída de peixes das lagoas
à procura de lugar no rio São Francisco.
Os pescadores afirmaram que a época em que este evento ocorre é na “vazante geral,
limpada da água, baixada do rio, quando o rio está baixando” que na compreensão do
pescador é na transição entre o período chuvoso e o período seco. Apenas uma pescadora
relatou considerar o evento de migração reprodutiva durante a “época das águas” como sendo
o evento ribada.
2.4.2.4 Período de defeso: percepção e atividades desenvolvidas
Quando questionados o que pensam sobre as portarias de defeso elaboradas pelo
Instituto Estadual de Florestas (IEF) e Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos
Naturais Renováveis (IBAMA), respectivamente os órgãos estadual e federal responsáveis
pela regulamentação da pesca no estado e país, alguns pescadores apenas disseram que
concordam com os respectivos órgãos. Entretanto, outros pescadores em seus relatos apontam
divergências entre as portarias e o que realmente acontece biologicamente no rio, a principal
delas se refere ao período de defeso; para eles o período estabelecido não está adequado, pois
muitas espécies estão “ovadas” antes da determinação do período convencional de defeso em
41
novembro e após a abertura da temporada de pesca no início de março ainda existem peixes
ditos “ovados”, os relatos informam que até meados de maio ainda foi possível capturar
espécies como caranha (Piaractus mespotamicus) e curimatá (Prochilodus argenteus e P.
costatus) ainda com “ovas boas, vivas”.
No estado de Rondônia, os pescadores profissionais contestaram a legislação vigente,
afirmando que o período de defeso estabelecido para a região de Guaporé pelos órgãos
ambientais e gestores da pesca não correspondiam às épocas de reprodução das principais
espécies comercializadas sendo eles: o tambaqui, a pescada, o tucunaré e o surubim ou
caparari, fato que poderia comprometer os estoques pesqueiros locais (DORIA et al., 2004
apud DORIA et al., 2008).
Em conformidade, os pescadores entrevistados afirmaram que o dourado é uma
espécie que inicia sua desova cedo, em setembro já é possível encontrar exemplares desta
espécie “ovadas”, outras espécies como curimatás, matrinchãs (Brycon orthotaenia) e piaus
(Leporinus obtusidens) também foram encontradas em estágio de maturação intermediário e
avançado no final de setembro (observações pessoais).
O estudo conduzido por Doria et al., (2008) demonstrou que para sete espécies existia
divergência entre o período de defeso estabelecido e o conhecimento ecológico local dos
pescadores da região e para quatro delas foi sugerido que as portarias fossem revistas visando
a proteção das espécies no período correto de reprodução, assim como indicado pelos
pescadores.
No estado do Mato Grosso, o Ministério Público Estadual emitiu uma Notificação
Recomendatória (nº0001/2015) à Secretaria de Estado do Meio Ambiente (Sema), onde
recomendou a ampliação do período de defeso de 120 para 180 dias. Desta forma o período de
proibição da pesca iniciaria em outubro e se estenderia até março, esta orientação foi baseada
na afirmação de que existem “peixes cuja reprodução se inicia no mês de outubro, como a
piraputanga (Brycon microlepis) e a corimbatá (Prochilodus lineatus), e outros que retardam,
indo até o mês de março, como ocorre com o pintado (P. corruscans) e o dourado (Salminus
maxillosus)”, de forma que é necessária a alteração do período de defeso para manutenção dos
estoques pesqueiros (MEDEIROS, 2015).
A resolução da divergência entre a portaria de defeso estabelecida e o que ocorre no
rio deve ter uma atenção maior sob o risco dos estoques pesqueiros, prejudicados por
inúmeros outros fatores, serem extintos, já que o período reprodutivo das espécies não está
sendo devidamente preservado. A integração do conhecimento ecológico tradicional mantido
pelas comunidades e o conhecimento científico deveriam ser utilizados como subsídio para a
42
gestão dos recursos pesqueiros e também em políticas públicas (BERKES et al., 2006;
COSTA NETO; VILLELA; NOGUEIRA, 2002; DREW, 2005; SILVANO; BEGOSSI,
2002).
2.4.3 A Pesca na Barra do Urucuia
2.4.3.1 Espécies capturadas e as melhores épocas
Os pescadores profissionais entrevistados informaram a frequência com que exercem a
profissão, a maioria exerce sua atividade diariamente, os demais vão de duas a quatro vezes
por semana, um deles realiza pescarias não sistemáticas. O tempo dispendido na atividade é
variável, grande parte dos pescadores pesca até doze horas por dia, alguns iniciam as
atividades às 18 horas e finalizam às 6 horas da manhã do dia seguinte, outros pescadores
preferem pescar apenas de dia, iniciam pela manhã e finalizam ao entardecer.
Através das entrevistas, definiu-se três grupos de peixes de acordo com a sua melhor
época de captura para cada espécie. O primeiro grupo é composto pelas espécies do complexo
enchente/repondo7/água suja, que compreende aquelas que são mais capturadas durante todo o
período chuvoso, o segundo grupo é composto pelas espécies do complexo vazante geral/água
limpa, que compreende as espécies cuja captura é melhor quando se inicia a estação seca e o
terceiro é o grupo das espécies que não tem sua captura alterada pelos eventos de chuva e
seca, sua captura se mantêm constante durante o ano todo. Conforme informações elaborou-se
um esquema demonstrado na Figura 05.
Figura 05 – Distribuição dos peixes de acordo com sua melhor época de captura.
7 Repondo é o termo utilizado pelos pescadores para se referir a primeira enchente do ano.
43
Apesar desta categorização os pescadores afirmam que a melhor época para a pesca é
a estação chuvosa, a justificativa é de que no período reprodutivo, os peixes começam a
“andar mais”, a pesca durante a piracema não é uma peculiaridade da pesca contemporânea,
registros de Christian Frederik Lütken em sua monografia intitulada “Velhas-Flodens Fiske:
Et Bidrag til Brasiliens Ichthyologi” e publicada em 1875 descreveu as anotações realizadas
por Johannes Theodor Reinhardt sobre a prática da pesca na região do Rio das Velhas:
“Nas últimas semanas de minha estada em Lagoa Santa, perto do início da
estação das chuvas, em meados de outubro, tanto os moradores da cidade
como os fazendeiros locais começaram a praticar com empenho pesca com
rede no Rio das Velhas e em seus afluentes menores, bem como em muitos
lagos pequenos.
O lugar escolhido para a pescaria era geralmente uma baía pequena, estreita e
fechada que o rio escavara na floresta. Algumas pessoas jovens pulavam no
rio nuas, equipadas com galhos, a certa distancia da baía; faziam uma linha
através do riacho, cuja água os alcançava na altura do peito, e caminhavam,
gritando e berrando, em direção à baia, enquanto batiam os galhos fortemente
na água, empurrando os peixes assustados para dentro da baía, pois a saída
para o curso normal do rio estava fechada, como uma parede, por uma rede
esticada através do rio, mantida verticalmente dentro d’água por pedras em
sua parte submersa.
Depois de os peixes serem empurrados para dentro da baía fechada que o rio
havia formado, eles eram cercados por uma rede igual à anteriormente
mencionada, no lugar onde se tinha começado a empurrar os peixes, e, assim
que eles ficavam presos naquela parte do rio cercada pelas duas redes,
começava de fato a pescaria, já que uma rede muito grande, do mesmo
formato que aquelas que cercavam o rio, e com pedras amarradas, de forma a
chegar até o fundo, era puxada da parte cega da baía em direção à rede
superior e de volta, com a ajuda de pessoas que estavam nas margens do rio.
Quando os peixes que escapavam chegavam a uma das barreiras do lugar
cercado, as pessoas recolhiam com cuidado a rede de um dos lados, fazendo
sempre arcos menores, até que os peixes cada vez mais estreitamente
confinados alcançassem a margem. A rede e os peixes aprisionados eram
então puxados com segurança, e os animais maiores e mais valiosos,
recolhidos. Depois de a rede ter sido puxada algumas vezes para frente e
para trás, o lugar ficava praticamente sem peixes”. (ALVES; POMPEU,
2010, pág. 34.)
Através da passagem acima citada é possível inferir que aqueles que pescavam,
buscavam o melhor retorno para o esforço realizado, desta maneira o período chuvoso é
considerado a safra. Thé (2003) em seu trabalho ressaltou que embora exista a concentração
de eventos de pesca durante o período de seca (abril a setembro), o período chuvoso (outubro
a março) correspondeu a maior parte da produção pesqueira, demonstrando assim que o
período de safra acontece durante as cheias do rio, no qual a pesca é proibida para o defeso
reprodutivo.
Outros estudos também evidenciaram a melhoria de rendimento pesqueiro durante a
estação chuvosa; na Amazônia os desembarques são fortemente influenciados pelo pulso de
44
inundação, força que regula o ecossistema (JUNK; BAYLEY; SPARKS, 1989). Tal ciclo
influencia diretamente nas capturas e gera picos de sazonais no desembarque pesqueiro em
Manaus e nos outros centros regionais (FREITAS; RIVAS, 2006); desta maneira, o primeiro
pico na produção corresponde ao primeiro semestre do ano, considerado como o período de
enchente e cheia, entre os meses de abril e junho, o que coincide com a migração de algumas
espécies de Characiformes como os jaraquis (Semaprochilodus sp), matrinxãs (Brycon sp),
curimatás (Prochilodus sp). O segundo pico na produção pesqueira corresponde ao período de
vazante, no segundo semestre onde a pescaria em lagos aumenta a produtividade (FREITAS;
RIVAS, op. cit).
Segundo informação ainda fornecida pelos pescadores, que existe uma época em que a
pesca fica ruim, esse “desaparecimento” dos peixes segundo a lógica dos pescadores está
relacionada a temporada de frio, onde o peixe não “anda” muito, assim o mês de junho foi o
mais citado como época ruim de peixe.
Quando indagados se alguns desses peixes não existiam quando iniciaram suas
atividades de pesca, quase todos os entrevistados afirmaram que a caranha (Piaractus
mesopotamicus) foi uma espécie que apareceu no rio, entretanto não existe um consenso na
percepção sobre quando esta espécie apareceu, as respostas variam entre o máximo de trinta e
o mínimo de sete anos. Outras duas espécies citadas foram o tucunaré (Cichla sp.) e a tilápia
(Oreochromis niloticus) e o futi-futi, o qual imagina-se que seja o Callichthys callichthys já
que não foi possível amostrar indivíduos. Os pescadores quase em sua totalidade afirmaram
ainda que todas as espécies que pescavam continuam existindo no rio, entretanto ressaltam
que diminuíram drasticamente em seus estoques.
Durante as entrevistas, solicitou-se para que aos pescadores enumerasse quais os cinco
peixes que mais pescavam durante o ano, a mais citada foi a curimatá (Prochilodus argenteus
e Prochilodus costatus), em segundo o dourado (Salminus franciscanus), em terceiro o piau
(Leporinus obtusidens), em quarto a matrinchã (Brycon ortothaenia) e em último lugar o
surubim (Pseudoplatystoma corruscans).
Os pescadores também informaram quais os peixes mais procurados para a venda,
sendo os principais: o surubim, o dourado e o pacamã. Um pescador relatou que não há essa
distinção segundo ele “o que tiver vende”, devido à escassez de peixes no rio.
Em relação à época em que se obtêm mais pescados ou um melhor rendimento, a
maioria dos pescadores afirmou que é a época das águas, tempo da chuva, segundo eles, os
peixes no período de reprodução começam a andar mais. Houve ainda algumas citações que
declararam que a melhor época é nos meses de agosto e setembro, por ser uma “época de
45
calor” o peixe movimenta mais. Além disso, dois pescadores informaram que o período de
melhor rendimento é na “vazante geral, onde o rio diminui seu volume e o peixe sai fora da
pauzada”.
2.4.3.2 Motivos para a redução dos estoques pesqueiros
Houve o relato de que em períodos passados existiam mais peixes, essa afirmação é
considera verídica por quase 94% dos pescadores, para eles alguns fatores influenciaram para
a menor quantidade de pescado existente no rio, como: muitos pescadores/pesca excessiva,
fechamento das barras, ausência de enchentes, mortandade de peixes, assoreamento, materiais
pré-fabricados.
Figura 06 – Pescador demonstrando um local assoreado, neste ponto menos de um metro de
profundidade.
Acresce que as principais ameaças aos ecossistemas brasileiros de águas continentais
são a poluição, a eutrofização, o assoreamento, a presença de barragens, a pesca e a
introdução de espécies (AGOSTINHO; THOMAZ; GOMES, 2005). Desta maneira os
pescadores já retratavam as mudanças ambientais sofridas na bacia do São Francisco como
assoreamento, poluição, o barramento das lagoas marginais e a influência da represa de Três
Marias sobre ecossistema aquático, e atribuíam a estes fatores a contribuição para a depleção
dos estoques pesqueiros, este entendimento é visivelmente retratado nos seguintes trechos
retirados de Thé (2003):
“A cachoeira aqui de Pirapora, nessa época assim (seca) alguns lugar aqui,
você atravessava a pé, pelas pedras,....mudou depois da construção da
barragem...foi mais ou menos em 1965, 1966, veio a mudança do rio... você
vê assim o rio cheio, mas ele não tá cheio, ela tá é inchado, porque é a areia
que tá subindo... essa ilha mesmo, aqui na frente, ela não era tão longa
assim, ela era metade disso”.
46
...até que hoje já não mata tanto, mas aqui antigamente já morreu muito
peixe por causa dessa CMM8.
O rio está muito raso, ficou muito raso...e ainda a enchente diminuiu...
Os fazendeiros cercam a água, não tem como o peixe navegar. A lagoa
enche, os peixes chegam na barragem e não passam o rio para desovar...
Outra ocorrência citada como causa da escassez de peixes é a ausência de “enchentes”,
sem este fenômeno para o rio “jogar” os peixes na lagoa, os predadores como as piabas
comem as ovas liberadas no rio, portanto para os pescadores a enchente é um importante fator
para a renovação dos estoques pesqueiros.
Vinculada a ausência de “enchentes” está o “fechamento das barras”9 realizado por
empreendimentos agropecuários, que tampam a ligação das lagoas com o rio, principalmente
para a passagem de veículos, este também é apontado como um fator que contribui para a
menor quantidade de pescado existente no rio. O “fechamento” é realizado pelos
empreendimentos agropecuários situados as margens dos rios São Francisco e Urucuia e que
segundo os pescadores prejudica a entrada dos peixes pequenos nas lagoas, as quais são
considerados locais melhores para os peixes crescerem por terem refúgio contra predadores e
alimento.
A ausência das “enchentes” é apontada pelos pescadores como uma das causas na
redução dos estoques pesqueiros, se reconhece que o pulso de inundação controla a
produtividade do rio (JUNK; BAYLEY; SPARKS, 1989) afetando assim, o sucesso da
criação e recrutamento das espécies de pesca que utilizam as lagoas marginais como
principais berçários (SATO; GODINHO, 2003) sendo a cheia necessária para o êxito
reprodutivo (GODINHO; KYNARD, 2006), assim, foram propostas cheias induzidas como
tentativa para a restauração dos recursos pesqueiros (GODINHO; KYNARD; MARTINEZ,
2003; GODINHO; MARTINEZ, 2007), entretanto estas ideias não foram adiante nas
discussões realizadas no âmbito do Comitê de Gestão dos Recursos Pesqueiros do São
Francisco.
A grande quantidade de pescadores é o fato mais citado como responsável pela
diminuição dos estoques pesqueiros, segundo relatos, naquela região não existiam mais que
oito pescadores e em épocas passadas os pescadores mais antigos afirmaram ser possível
capturar entre 500 e 1800 quilos de surubim por noite.
Embora os pescadores tenham afirmado em sua maioria que o aumento do número de
pescadores tem contribuído para a depleção dos estoques pesqueiros, esta é apenas uma parte
8 Companhia Mineira de Metais posteriormente adquirida pelo grupo Votorantim. 9 Barras são os locais onde as lagoas marginais se comunicam com o rio.
47
do problema, já que existem outros fatores anteriormente citados atuando sobre o ecossistema,
e considerar apenas os pescadores como causadores da depleção dos estoques pesqueiros, será
analisar apenas uma parte do complexo.
2.4.3.3 Técnicas de pesca
Os pescadores informaram quais as técnicas utilizadas e suas melhores épocas de uso,
esta utilização está relacionada com o seu melhor rendimento em relação às condições
ambientais observadas, rio sujo ou rio limpo, lua clara ou escura. As técnicas bem como as
principais espécies capturadas, melhores épocas de uso e local de uso estão detalhadas na
Tabela 06.
Tabela 06 – Técnicas pesca utilizadas na Barra do Urucuia descritas pelas as entrevistas.
Técnica Espécies alvo Melhor época Local
Rede Armada Todas Água suja/Rio cheio Banzeiro, Beiradão
e Praia
Rede de Caceia Dourado, Matrinchã e
Curimatá Água limpa/Seca
Praia/Croa, Lugar
limpo
Rede de Arrasto Todas Água suja/ Rio cheio Lance específico
Tarrafa Todas Água limpa/Seca Praia/Croa,
Beiradão
Anzol/Pinda Surubim, Pacamã,
Dourado Água suja Margem corrente
Vara e anzol Todas Água limpa/Seca Pedreira
Algumas técnicas não foram citadas, mas através do convívio com a comunidade
observou-se e questionou-se sobre elas. A primeira delas foi a “corda” que é semelhante à
técnica de “espinhel” na qual são amarrados vários anzóis e iscados com diversos tipos de isca
como jenipapo (Genipa americana), acerola (Malpighia emarginata), siriguela (Spondias
purpurea), maçã (Malus sp), casca de melancia (Citrullus lanatus) e mandioca (Manihot sp)
para a pesca da caranha. Para a pesca do surubim foi utilizada isca viva como curimatás
pequenas e caris (Hypostomus sp). A segunda técnica foi o “grampão” ou “tarrafão”, trata-se
de uma tarrafa utilizada com o barco transversalmente ao rio em que parte fica arrastando no
fundo, os pescadores ficam com o restante do material aberto esperando para quando sentirem
o peixe encostar-se à parte submersa, soltarem o restante do apetrecho em cima, culminado
com a apreensão do peixe. A terceira técnica visualizada, mas menos utilizada, foi o “colfe”
ou “colfo”, que é um armadilha confeccionada de arame e iscada com iscas vivas amarradas
48
para atrair os peixes, muito utilizada para a pesca da piranha ilustrada na Figura 09. A quarta
técnica mencionada foi a fisga ou arpão, esta técnica consiste em uma dupla pescando durante
a noite com uma lanterna potente iluminando as margens e o arpão em mãos, quando o peixe
é visualizado o arpão é arremessado pelo pescador na tentativa de acertá-lo.
Figura 09 – Pescador armando o “colfo” para a pesca da piranha.
As redes armadas/espera são redes de emalhar que são colocadas em locais específicos
onde à água é parada, denominada pelos pescadores de “banzeiros”. As malhas e o
comprimento das redes variam de acordo com o pescador e a espécie que se busca capturar,
foi observada a variação entre 10 e 16 centímetros entre nós adjacentes.
A rede de caceia é uma rede de emalhar que desce a deriva na superfície, é utilizada
nas margens dos rios de forma que os peixes que ficam nestes locais são espantados pelas
batidas de remos na água ou pelos barulhos efetuados pelo pescador, vão de encontro com a
rede esticada paralelamente a margem, as malhas também variaram de 10 a 14 centímetros
entre nós adjacentes.
A rede de arrasto é semelhante a caceia, mas diferencia-se por possuir mais chumbos
que a fazem arrastar no fundo do rio, por esse motivo somente utilizada nos locais
denominados "lances" que foram previamente limpos para evitar que a rede enrosque. Estas
redes geralmente possuem mais de 150 “braças”10 aproximadamente 250 metros de
comprimento. A utilização dos petrechos de pesca na modalidade arrasto é proibida pela
10 A braça é uma medida náutica utilizada para medir a profundidade e equivale a 1,83m. Os pescadores utilizam
desta medida para medir suas redes, onde comprimento dos braços abertos da ponta dos dedos de uma mão até a
ponta dos dedos da outra mão equivale a uma braça.
49
portaria do IBAMA nº 18 de 11 de junho de 2008, que estabelece as normas para o exercício
da pesca na bacia do rio São Francisco.
Este tipo de material pode ser confeccionado com “malha dobrada”, quando ao tecer a
rede os pescadores utilizam dois carretéis de linha simultaneamente para que a cada malha da
rede tecida saia com duas linhas, à outra forma visualizada desta rede denominada
“empanada”, onde na hora de "entranhar"11 são colocados dois ou mais panos de rede,
geralmente com tamanhos de malhas diferentes, por exemplo, malha 14 no primeiro pano e 16
no segundo, as malhas variam de 10 a 36 centímetros entre nós adjacentes.
A tarrafa é uma rede de arremesso em forma de saco, é utilizada em praias e no
beiradão, como demonstrado na Figura 10, é uma técnica muito propícia a enroscar, fazendo
com que os pescadores tenham que mergulhar frequentemente na tentativa de recuperar o
material.
Figura 10 – Pescador utilizando a tarrafa em um local onde havia feito uma ceva.
O anzol de galho ou pinda é a técnica que consiste em uma corda e anzol com isca
viva, amarrados em galhos nas margens do rio, muito utilizada para a pesca do surubim,
entretanto, foram relatadas capturas de dourado, pacamã, piranha e caranha (Piaractus
mesopotamicus) por meio desta técnica.
O uso de vara e anzol é a mesma técnica utilizada pelos pescadores amadores, podem
ser do tipo simples, usa-se apenas a vara e a linha, ou mais modernas, com as varas e
molinetes ou carretilhas com sistemas de recolhimento da linha. São utilizados principalmente
para a captura de dourado (Salminus franciscanus), caranha (Piaractus mesopotamicus) e
11 Entranhar é o ato de prender o pano de rede tecido às cordas em que são acoplados as boias e os chumbos.
50
curimatá (Prochilodus argenteus e P. costatus), o uso desta técnica é restrita a poucos
pescadores.
O pescador escolhe o material a ser utilizado baseando-se nas condições ambientais
observadas. São utilizadas redes de “náilon mole” (linha multifilamento) e “náilon seco”
(linha monofilamento), os pescadores relataram que utilizam as redes de náilon mole para
épocas de chuva, tempo em que a água está suja, já náilon seco é melhor para a época de água
limpa ou período seco. Alguns pescadores ainda afirmaram utilizar o náilon seco em ambas
as épocas. A razão para a utilização do náilon seco apenas na temporada de águas limpas é a
percepção de que o peixe enxerga a rede de náilon mole, que com o acúmulo de sujeira fica
escuro, fato que com a água suja não ocorre, pois a rede fica com a cor próxima a da água.
A confecção dos petrechos de pesca é realizada pelo próprio pescador, pela arte do
tecer, a maioria dos pescadores afirmou confeccionar suas redes. Uma prática observada é o
pagamento de um terceiro para realizar o trabalho de tecer, desta forma é fornecido todo o
material pelo pescador e paga-se por “braça” tecida. Outro fato relatado é a aquisição de
material industrialmente fabricado, principalmente as redes de náilon seco, estes são
adquiridos os “panos de rede”12 que são apenas entranhados com chumbos e boias para seu
uso.
No que diz respeito às técnicas utilizadas pelos pescadores entrevistados, são
basicamente as mais comuns na região, observou-se uma diferença em relação ao número de
técnicas utilizadas em outros trechos da bacia (THÉ, 2003), entretanto, tal diferença pode ser
em decorrência da baixa utilização de outras técnicas não sendo mencionadas. Pelo menos
quatro técnicas não foram mencionadas nas entrevistas, mas puderam ser observadas.
As condições ambientais encontradas no momento da pesca condicionam na escolha
do material a ser utilizado, os pescadores ajustam a cada dia seus petrechos para exercer a sua
atividade. A diferença no uso dos dois tipos de linha está relacionada à eficiência de pesca,
turbidez da água, o preço e a facilidade no manuseio; a linha de náilon monofilamento é
descrita por ser utilizada com a água limpa, com turbidez mínima por sujar menos e ficar da
cor da água, já o náilon multifilamento é utilizado apenas quando a água está suja ou barrenta
(THÉ, 2003).
No presente trabalho, de acordo com os relatos dos pescadores e observações durante a
pesca, notou-se que a utilização do náilon mole (multifilamento) ocorre durante o ano inteiro,
com menor intensidade durante a temporada de seca, onde a água é mais transparente, em que
12 Redes industrialmente fabricadas vendidas em medidas estabelecidas pelas fabricantes.
51
muitos substituem pelo náilon monofilamento, segundo os pescadores, devido ao peixe
enxergar as redes de náilon mole.
Este “meme” também foi mencionado pelos pescadores entrevistados por Thé (2003),
entretanto relacionado às fases da lua e a turbidez da água, onde a lua clara e a turbidez baixa
são as piores condições para a pesca, pois o peixe “enxerga a rede e não cai”, para os
pescadores a época boa é lua escura e turbidez alta. No presente trabalho os pescadores
afirmaram que a claridade da lua atrapalha na pesca, porque o peixe visualiza a rede, assim
como descrito por Thé (2003), entretanto não foi mencionado se os rendimentos são piores ou
melhores que em outras fases.
A pesca na barra do Urucuia é predominantemente realizada através do arrasto,
embora fossem visualizadas mudanças pontuais no seu uso. Estas mudanças ocorreram
principalmente quando os rendimentos com o arrasto diminuíam. Observou-se também a
utilização simultânea de técnicas, enquanto o pescador soltava a rede de arrasto que descia a
deriva no rio, o mesmo utilizava este tempo para pescar com a tarrafa ou a caceia, e deixava
armados anzóis de galho/cordas e redes, ampliando assim o seu esforço de pesca.
2.4.3.4 Confecção das técnicas de pesca
Através do relato de alguns pescadores pode-se observar a mudança de petrechos
durante o passar do tempo, primeiramente as redes eram de "caroá" (Neoglaziovia variegata)
com chumbos de barro, segundo eles, os mais antigos, a linha era feita da casca de uma
madeira que era deixada para “pubar”13, após este processo as fibras eram enroladas e
trançadas para fazer os carreteis e posteriormente utilizadas para a confecção dos petrechos,
segundo os mesmos a resistência do material era ínfima, exigia-se muito tempo para
confeccioná-lo e de fácil apodrecimento do material devido ao uso constante.
Após este foi citado à linha “uça” já vendida em carreteis e trazida pelos vapores,
posteriormente a incorporação de linhas mono e multifilamento, que segundo os pescadores a
resistência e durabilidade são boas.
A mudança no tipo de material também pode contribui para a sobre-explotação dos
recursos pesqueiros, com redes mais resistentes e duráveis os pescadores permanecem mais
tempo na pesca, com a evolução dos materiais, este prazo de manuseio prolongou-se, podendo
assim exercer uma pressão maior sobre os recursos pesqueiros. Berkes (1987) estudando
sobre a extração de recursos pesqueiros de Barbados e Jamaica chegou à conclusão de que o
desenvolvimento do poder de pesca não é ecologicamente sustentável.
13 Apodrecer
52
No trabalho, o autor se referia a mecanização da frota pesqueira passando de canoas
não motorizadas, para motores de popa, cada vez mais potentes, o que praticamente dobrou a
capacidade de pesca gerando inicialmente o aumento no rendimento do pescado, entretanto as
taxas caíram seguidamente pela sobre pesca. Além da mecanização, outro fator levantado foi
o aparecimento de um novo grupo de usuários, os pescadores de arpão que competiam com os
pescadores de armadilhas (BERKES, 1987).
Desta forma é possível visualizar como o aumento no esforço de pesca pode vir a
tornar a atividade insustentável, além da mecanização, a utilização de materiais mais
resistentes e de fácil acesso, juntamente com outros fatores já citados, contribuem para a
redução dos recursos pesqueiros. Assim como discutido no tópico anterior, atribuir o declínio
nos estoques pesqueiros somente aos pescadores ou a modernização das técnicas de pesca é
incorreto, já que existem inúmero outros fatores, que são muitas vezes mais impactantes e que
contribuem para esta situação de depleção.
2.5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O conhecimento mantido pelos pescadores da Barra do Urucuia é fruto das
experiências vividas ao longo da sua vida na lida com a pesca. Neste estudo foi possível
perceber o quão rico é este conhecimento, já que os mesmos possuem a compreensão de
inúmeras áreas como eventos reprodutivos, dinâmica hidrológica do rio, importância das
lagoas marginais e de pequenos afluentes, fatores que contribuem para o declínio do estoque
pesqueiro. Este conhecimento é interconectado e diacrônico, sendo este resultado das
observações temporais ao longo dos anos.
O conhecimento acumulado está disponível para contribuir com a gestão pesqueira,
como demonstrado neste trabalho e em outros realizados no Alto-Médio São Francisco, tal
conhecimento é acurado e totalmente compatível com o que traz a literatura científica, não
que uma seja mais importante que a outra, mas podem se complementar.
A gestão pesqueira adotada pelo país faz com que os recursos pesqueiros sejam
considerados de "livre acesso", já que não existe um contingente necessário para monitorar e
fiscalizar todo o território de pesca. Este exemplo por si só, demonstra como a inserção dos
pescadores poderia contribuir para o monitoramento do desembarque pesqueiro, este é um
ponto crítico para o país, não havendo estatísticas confiáveis, em alguns casos os próprios
pescadores poderiam ser os fiscalizadores da sua profissão, esta prática ainda estreitaria as
relações entre órgãos governamentais e pescadores estabelecendo laços de confiança.
53
Entretanto para que isto ocorra é necessário que exista a descentralização da gestão
pesqueira, passando a dividir a responsabilidade de gerenciar os recursos pesqueiros com
todos os que necessitam ou estão ligados direta e indiretamente a este recurso: comunidades
ribeirinhas, pescadores tanto profissionais quanto amadores, indústrias e empreendimentos
que captam água dos rios e órgãos governamentais, todos juntos construindo uma gestão
participativa e igualitária, com intuito de recuperar e preservar os recursos para todos os
usuários.
2.6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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58
2.7 APÊNDICE A – ROTEIRO ENTREVISTAS LIVRES
59
2.8 APÊNDICE B – ROTEIRO ENTREVISTAS ESTRUTURADAS
60
61
62
63
3. CAPÍTULO II – ASPECTOS DA BIOLOGIA REPRODUTIVA DO PIRÁ
(Conorhynchos conirostris)
3.1 INTRODUÇÃO
O Brasil é um país considerado megadiverso e é também aquele que possui o maior
número de espécies de peixes em água doce do mundo, fato atribuído as suas extensas bacias
hidrográficas. (DRUMMOND et al., 2005). A fauna de peixes ósseos pode atingir 3261
espécies (LEWINSOHN; PRADO, 2005) que além da riqueza de espécies também possui alto
número de endemismos.
O estado de Minas Gerais é privilegiado por abranger quase todas as principais bacias
hidrográficas do país, com exceção da bacia amazônica e é também detentor das nascentes de
inúmeras outras bacias importantes, fato que explica as 354 espécies nativas descritas.
representando 12% do total encontrado no Brasil (DRUMMOND et al., 2005).
O número de espécies descritas para a bacia do rio São Francisco aumenta a cada ano,
fato que pode ser atribuído às recentes descobertas de novas espécies como o dourado
(Salminus franciscanus) (LIMA; BRITSKI, 2007) e a reclassificação de outras já existentes
como o piau verdadeiro (Leporinus obtusidens) (BRITSKI; BIRINDELLI; GARAVELLO,
2012).
Drummond et al. (2005) relata 173 espécies formalmente descritas na bacia, já
Barbosa e Soares (2009) em coletas realizadas em alguns pontos da bacia e através da revisão
de literatura especializada citam pelo menos 244 espécies, sendo 214 nativas. Dentre as
espécies nativas 76 são endêmicas da bacia do rio São Francisco, outras 24 são introduzidas e
seis são espécies marinhas coletadas no rio, especialmente nas cercanias de Penedo, Estado de
Alagoas (BARBOSA E SOARES, 2009).
O pirá (Conorhynchos conirostris) é uma espécie endêmica e símbolo da bacia do São
Francisco, entretanto o conhecimento sobre sua biologia e ecologia ainda são escassos
havendo poucos trabalhos desenvolvidos até então. Apesar de constar na lista de espécies
ameaçadas de extinção (Portaria MMA nº 445/2014), ela possui importância econômica e
social para as populações ribeirinhas.
64
3.2. REVISÃO BIBLIOGRÁFICA
3.2.1 Espécie alvo e sua demanda
O pirá (Conorhynchos conirostris) é um bagre reofílico14 da família Pimelodidae, que
pode atingir até 100 cm de comprimento total e 13 kg de peso corporal (SATO, 1999)
(Figura 01). Possui uma boca atípica, ausente de dentes (Figura 02) e a pele na coloração
azul-prateada, alimenta-se principalmente de moluscos, mas também estão incluídos em sua
dieta insetos (larvas e pupas), vermes e micro crustáceos (SATO; GODINHO, 2003).
Figura 01 – Exemplar de Conorhynchos conirostris capturado durante o estudo. Foto: Thomás
Yoshinaga
Figura 02 – Detalhe da boca de Conorhynchos conirostris. Foto: Thomás Yoshinaga
14 Peixes reofílicos são aqueles que necessitam do ambiente lótico para completarem o seu ciclo de vida. Esses
peixes podem ser migradores ou não (DRUMMOND et al., 2005).
65
É um peixe que realiza migrações reprodutivas, se reproduz nos leitos dos rios durante
a estação chuvosa e possuem um curto período reprodutivo, são de desova total e não
apresenta cuidado parental. Os ovos são amarelos, livres e com diâmetro médio de 1,4mm, a
embriogênese é rápida variando de 19 a 22 horas a 23-24ºC (SATO, 1999).
Trabalhos desenvolvidos com esta espécie são escassos, não existindo desta forma
informações suficientes as quais possam contribuir para o pleno conhecimento de seus hábitos
e padrões de vida. Apesar da falta de dados científicos, em 2003 foi definido o tamanho de
primeira maturação em 45 centímetros pela portaria15 do Instituto Estadual de Florestas,
tamanho este que configurava o tamanho mínimo de captura para a espécie antes de sua total
proibição. Apesar de não ser uma espécie alvo da pesca comercial e amadora, existem relatos
de desembarque em alguns locais da bacia. De acordo com a SUDEPE/CODEVASF (1980) o
pirá tinha representatividade na produção pesqueira do médio São Francisco, registrada nos
escassos relatos de desembarque até o ano de 2003 (GODINHO; BRITO; GODINHO, 2003;
GODINHO et al., 1997).
Alves e Pompeu (2005) também ressaltaram a importância desta espécie na pesca
comercial, entretanto, informaram que sua captura aparentou ser inconstante, fato que pode
estar relacionado às falhas na coleta de dados de desembarque ou pelo simples fato de não ser
relatado pelos pescadores, já que ela passou a ser considerada ameaçada de extinção a partir
de 2004. Ainda segundo os autores, a espécie se tornou abundante após as cheias de 1996-
1997 sendo que em 1998 juvenis entre 11 e 13 cm foram capturados no Rio São Francisco nas
proximidades do Rio Carinhanha (ALVES; POMPEU, 2005).
Em trabalho realizado pelo IBAMA, na região do médio São Francisco, próximo à foz
do rio Urucuia, o pirá aparece na captura da pesca comercial sendo o pico do desembarque
relacionado com o início do período chuvoso. Nas coletas realizadas entre Setembro de 2012
a Março de 2013 representou 16% das capturas, já entre setembro de 2013 e março de 2014 as
capturas foram de 14% para a pesca comercial. Na pesca amadora sua captura é acidental
e/ou insignificante (IBAMA, 2015).
O pirá é considerado praticamente extinto no trecho do alto São Francisco, a montante
da represa de Três Marias e no baixo, a jusante da represa de Sobradinho. Os principais
motivos parecem ser os empreendimentos hidrelétricos, poluição, assoreamento e ausência de
lagoas marginais e outros locais de recrutamento. A espécie encontra-se na lista de espécies
ameaçadas desde 200416 e recentemente em 201417 a atualização da lista classificou esta
15 Portaria IEF nº111 de 16 de outubro de 2003. 16 Instrução Normativa do MMA Nº 5 de 2004.
66
espécie com o status de “em perigo” fundamentado na redução de habitat e pressão de pesca,
estimando-se que a população foi reduzida em mais de 50% nos últimos trinta anos (ICMBIO,
2015).
O fato de o pirá constar na lista de espécies ameaçadas de extinção, faz com que
pescadores não relatem oficialmente sua captura. Contudo, os relatos informais e dados
parciais do projeto de Monitoramento da Pesca no médio São Francisco (IBAMA, 2015)
mostram sua representatividade e importância econômica e social para as populações
ribeirinhas. A ilegalidade de sua pesca e de sua comercialização colocam os pescadores em
uma situação de risco, gerando insatisfação com a legislação vigente e com os órgãos gestores
da pesca no estado.
3.2.2 A ictiologia no São Francisco.
A atividade pesqueira nas águas do São Francisco tem como característica a
incipiência e dispersão de informações sobre a biologia e ecologia das espécies. Estes
aspectos dificultam a avaliação do estado de exploração dos recursos, bem como a procura de
medidas racionais de ordenamento da atividade, constituindo um dos principais motivos pelos
quais as práticas de manejo dos recursos pesqueiros na região sejam pouco efetivas. Além
disso, historicamente, o manejo da pesca no São Francisco provém de ações isoladas, a partir
de informações fragmentadas de instituições e pesquisadores. Da mesma forma, que ocorre no
resto do país, tem se demonstrado ineficiente, não apenas em função da maneira como tem
sido implementado, mas, sobretudo, pela sua concepção teórica e filosófica (BARBOSA;
SOARES, 2009).
Apesar dos trabalhos serem pulverizadas em grupos de pesquisa específicos, o que
dificulta sua compilação e organização, alguns estudos merecem destaque como aqueles
ligados à área reprodutiva (BONCOMPAGNI-JÚNIOR et al., 2013; FREITAS et al., 2013;
GODINHO; LAMAS; GODINHO, 2009; GOMES et al., 2013; LAMAS, 1993; MIRANDA
et al., 1999; MORAIS et al., 2012; NORMANDO et al., 2009; PERINI et al., 2013; RIZZO,
2002; SATO, 1999; SATO et al., 2006); migração (GODINHO; KYNARD; GODINHO,
2007; GODINHO; KYNARD, 2006; GODINHO, 2005); parasitologia (BRASIL-SATO;
DOS SANTOS, 2005), lagoas marginais (POMPEU, 1997; POMPEU; GODINHO, 2006), e
estudos com conhecimento tradicional e regras informais de uso dos recursos e gestão
pesqueira (FERNANDEZ; THÉ, 2013; SOBRINHO; THÉ, 2012; THÉ; NORDI, 2006; THÉ,
1999, 2003).
17 Portaria MMA Nº 445, 17 de dezembro de 2014.
67
Os estudos em biologia reprodutiva aparecem em maior número e as informações
levantadas auxiliam no processo de gestão pesqueira, nos planos de manejo para a
conservação da biodiversidade e estudos aplicados na pesca comercial e aquicultura
(BONCOMPAGNI-JÚNIOR et al., 2013; FREITAS et al., 2013).
Sato (1999) estudando os padrões reprodutivos de um conjunto de peixes da bacia do
São Francisco conseguiu definir três grupos: o primeiro é constituído por espécies que são
migradoras e sem cuidado parental, caracterizado por desovar somente uma ou duas vezes
durante a estação chuvosa, uma grande quantidade de ovos pequenos, sendo esta a reprodução
sincrônica e de maturação tardia, correspondente à estratégia sazonal descrita por Winemiller
(1989). O segundo grupo é composto por espécies não migradoras, sem cuidado parental e a
presença de órgão adesivo na fase larval, o que corresponde à estratégia oportunista
(Winemiller, op cit.) cujas espécies apresentam maturação precoce, reprodução constante com
uma estação reprodutiva prolongada, ciclo de vida curto, rápido crescimento larval e
mudanças nas taxas populacionais. O terceiro grupo é constituído por espécies que possuem
ou possivelmente possuem o cuidado parental, de acordo com Winemiller (op cit) esta é a
estratégia de equilíbrio, com peixes de porte médio, baixa fecundidade e ovos grandes.
Estudos focados em biologia reprodutiva utilizam diversos parâmetros importantes
para o manejo de espécies, como os índices somáticos: Índice Gonadossomático (IGS) e o
Índice Hepatossomático (IHS). O IGS é utilizado como indicador das fases de
desenvolvimento gonadal e na identificação da fase do ciclo reprodutivo, sendo os valores
crescentes associados ao período de maturação e os decrescentes ao período de desova ou
reabsorção. O Índice Hepatossomático (IHS) indica a mobilização de reservas energéticas
para o processo reprodutivo, baseado na afirmação de que o fígado participa na síntese de
precursores do vitelo, assim é esperado que o IHS decresça com o desenvolvimento gonadal
(AGOSTINHO et al., 1990). A determinação das fases do ciclo reprodutivo é fundamental
para compreender o comportamento da espécie dentro de seu habitat (VAZZOLER, 1996).
Outro parâmetro reprodutivo importante é a fecundidade que se refere à quantidade de
ovócitos eliminados na desova por cada indivíduo. Uma alta fecundidade está frequentemente
associada a fêmeas maiores, pois este parâmetro é regulado, entre outros fatores, pelo
tamanho da cavidade celomática, portanto fêmeas maiores tem a capacidade de abrigar maior
quantidade ovócitos (AMADIO; ROPKE; SANTOS, 2012). Desta maneira o tamanho é um
fator importante em uma população, de acordo com Wootton e Smith (2014) indivíduos
maiores exibem maior dominância, são capazes de adquirir melhores territórios para desova,
são mais atrativos para acasalamento.
68
Além disso, os peixes grandes tem uma importância ecológica fundamental, tanto
como indicadores de um processo de sobrepesca, quanto na recuperação de ambientes sobre
explotados. Em um ambiente com pesca massiva, um dos primeiros sinais de diminuição dos
estoques pesqueiros e/ou sua sobre explotação, é o desaparecimento dos grandes exemplares.
Por outro lado, a manutenção de matrizes em um ambiente, permite uma recuperação mais
rápida do estoque, devido aos melhores parâmetros reprodutivos que esses animais
apresentam (fecundidade, tamanho de ovócitos, eficiência reprodutiva, cuidado parental, entre
outros).
A importância do tamanho para a população é ressaltada com base em estudos que
revelaram a existência de correlação entre o tamanho e número dos ovócitos, além da
resistência das larvas com o comprimento e principalmente a idade da fêmea (BERKELEY;
CHAPMAN; SOGARD, 2004; BOBKO; BERKELEY, 2004; HISLOP, 1988). Tais estudos
apontaram que o melhor desempenho reprodutivo, maiores ovócitos e larvas com maior
vitalidade geradas por adultos mais velhos, foram resultados de maiores reservas energéticas
dos pais, demonstrando desta maneira que pais mais velhos conseguem investir uma maior
reserva energética em cada descendente (BERKELEY; CHAPMAN; SOGARD, 2004;
BOBKO; BERKELEY, 2004).
A importância dos maiores e mais velhos também está relacionado ao tamanho e
resistência das larvas à fome, os descendentes de indivíduos maiores apresentam tamanho
superior aos de indivíduos menores e são mais resistentes à fome devido a um maior volume
na gota de lipídios, que fornece o sustento para a larva após o saco vitelino ser esgotado
(BERKELEY; CHAPMAN; SOGARD, 2004; BOBKO; BERKELEY, 2004). Esta resistência
confere as larvas, um fator de sobrevivência adicional e permite aos progenitores uma maior
amplitude no “sistema de apostas” ambiental, onde podem desovar mesmo com condições não
tão favoráveis e que suas crias poderão sobreviver até as condições ambientais mudarem e se
tornarem propícias para o seu desenvolvimento (BERKELEY; CHAPMAN; SOGARD, 2004;
BOBKO; BERKELEY, 2004).
O tamanho de primeira maturação também é um indicativo de como a população está
se comportando com as pressões exercidas sobre o ecossistema, principalmente a pesca que
seleciona artificialmente indivíduos e favorece aqueles fenótipos que possuem crescimento
mais lento e reprodução precoce, como o estudo demonstrado para o bacalhau do norte
(OLSEN et al., 2004).
Desta forma, a determinação dos parâmetros reprodutivos é fundamental para uma
gestão eficiente dos recursos pesqueiros, possibilitando, entre outras coisas, estimar-se o
69
tempo que uma população necessita para se recompor da sobrepesca e também qual o
tamanho de captura mínimo ideal, que possibilite que cada espécime contribua
reprodutivamente antes que possa ser retirado do ambiente. As informações levantadas
contribuem para a gestão dos recursos pesqueiros, permitindo que os estoques se mantenham
equilibrados e as comunidades ribeirinhas possam usufruir desses recursos de maneira
sustentável.
3.2.3 Influência dos fatores ambientais na reprodução dos peixes
A reprodução dos peixes teleósteos é diretamente relacionada a estímulos ambientais e
hormonais. Dentre os ambientais, citam-se as alterações térmicas e hidrodinâmicas,
principalmente para os peixes migradores que dependem do aumento da temperatura e da
inundação como “gatilhos” para a desova (PARKINSON; PHILIPPART; BARAS, 1999).
As mudanças sazonais nos fatores ambientais desempenham duas possíveis funções na
determinação dos padrões temporais de reprodução em peixes, atuando como proximais e
fatores terminais. Os fatores proximais são percebidos pelo sistema sensorial dos peixes e
funcionam como “gatilhos” atuando sobre os processos fisiológicos, que regulam a
reprodução. Os principais fatores são: fotoperíodo, temperatura, ciclo lunar, composição
química da água e a variação no fluxo d’agua. Já os fatores terminais estão relacionados com
o timing reprodutivo sobre a sobrevivência progênie, o que determina quando e onde
reproduzir. Os fatores terminais usualmente utilizados são: a disponibilidade de alimento, o
risco de predação e evasão de condições físicas desfavoráveis (LOWERRE-BARBIERI et al.,
2011).
Desta maneira, como ilustrado na Figura 03, os fatores proximais reconhecidos pelo
sistema sensorial desencadeiam uma série de reações hormonais, começando pela liberação
do neurohormônio liberador de gonadotrofina (GnRH) pelo cérebro, este estimula a hipófise a
lançar dois hormônios reprodutivos, o hormônio gonadotrópico I (GtH I) que é
estruturalmente e funcionalmente semelhante ao folículo-estimulador (FSH) e o hormônio
ganadotrópico II (GtH II) ao hormônio luteinizante (LH), sendo o FSH e o LH encontrado em
mamíferos. Uma vez produzidos o GtH I e GtH II são transportados via corrente sanguínea
até as gônadas onde estimulam a produção e esteroides (andrógenos, estrógenos e
progesteronas) que iniciam o processo de maturação gonadal regulando o processo de
oogenese e espermatogênese18 (WOOTTON; SMITH, 2014).
18 Oogenese e espermatogênese são os nomes atribuídos aos processos de formação das células reprodutivas
femininas e masculinas respectivamente.
70
Figura 03 – Resumo simplificado dos processos que regulam a reprodução em peixes teleósteos. GnRH -
hormônio liberador de gonadotropinas; GtH I – hormônio gonadotrópico I; GtH II – hormônio gonadotrópico II;
↑ efeito positivo; ↓ efeito negativo. Fonte: (WOOTTON; SMITH, 2014)
3.2 OBJETIVOS
Avaliar o período, o pico de atividade reprodutiva e as características reprodutivas do
pirá (Conorhynchos conirostris).
Determinar o tamanho onde cinquenta por cento da população está apta a reprodução
(L50) e o tamanho L100 onde toda a população está apta à reprodução
Determinar se a área de estudos tem importância no ciclo reprodutivo da espécie.
3.3 MATERIAIS E MÉTODOS
As coletas foram realizadas mensalmente no médio São Francisco (Figura 04), entre
as cidades de São Francisco – MG e São Romão-MG, sob as seguintes coordenadas
geográficas S16 07.412 W45 04.919, o local foi escolhido por ser um trecho livre do rio (sem
barramentos), ser rico em lagoas marginais e possuir grandes afluentes como os rios Urucuia e
Pandeiros, os quais são fundamentais para a reprodução de várias espécies. As expedições
tiveram duração mínima de cinco dias, iniciando-se no mês de setembro de 2012 e terminando
no mês de março de 2013. Os meses de coleta foram definidos com base no período
71
reprodutivo convencional para espécies migradoras das regiões sudeste e centro oeste do
Brasil.
Parâmetros de qualidade de água foram fornecidos pelo escritório da COPASA em
São Francisco-MG. As amostras foram coletadas no leito do rio, em local próximo a cidade.
O ponto de coleta de água fica a aproximadamente 35 km do local de captura dos peixes. Os
dados de pluviosidade foram fornecidos pelo sistema de monitoramento da CHESF (Centrais
Hidrelétricas do São Francisco), coletados em São Francisco-MG.
Figura 04 – Mapa da Bacia do São Francisco. A seta indica o local de estudo. Fonte:
www.sfrancisco.bio.br
Para a captura dos peixes foram utilizados os petrechos empregados rotineiramente na
pesca local: rede de caceia, rede fixa, rede de arrasto (Figura 05) com malhas variando entre
oito e vinte centímetros entre nós opostos, espinhel, pinda, tarrafas, caniços e anzóis.
72
Figura 05 – Coletores utilizando uma rede de arrasto. Foto: Thomás Yoshinaga
Buscou-se a captura de no mínimo trinta exemplares de cada sexo quando possível, em
cada expedição de coleta, bem como variações nas classes de peso, a fim de propiciar uma
maior distribuição nas análises reprodutivas.
Os exemplares capturados foram levados para o laboratório de apoio, cujos dados
biométricos foram mensurados: peso total (PT) (Figura 06), comprimento total (CT) e padrão
(CP) (Figura 07). O peso total representa o peso do exemplar inteiro, sem evisceração, o
comprimento total equivalente ao comprimento da ponta do focinho até o final da nadadeira
caudal, já o comprimento padrão é caracterizado pelo comprimento do focinho até o final do
pedúnculo caudal.
Figura 06– Exemplar de pirá (Conorhynchos conirostris) sendo pesado. Foto: Thomás Yoshinaga
73
Figura 07– Exemplar de pirá (Conorhynchos conirostris) sendo medido. Foto: Thomás Yoshinaga
Após aferidas às medidas biométricas, os exemplares tiveram a cavidade celomática
aberta com auxílio de bisturi e tesouras a fim de permitir a visualização das estruturas
internas. Foram então coletados o fígado e gônadas para mensuração do peso e realizada a
classificação macroscópica de ovários e testículos de acordo com as seguintes características:
1. Imaturo/Repouso - Fêmeas: Ovários pequenos, translúcidos, sem sinais de
vascularização; não se observam ovócitos a olho nu; Machos: Testículos pequenos
e translúcidos.
2. Maturação Inicial – Fêmeas: Ovários maiores se observam ovócitos opacos
pequenos e médios; Machos: Testículos branco-leitosos desenvolvidos.
3. Maturação Final – Fêmeas: Ovários grandes e túrgidos, vascularização
acentuada e evidente, ovócitos grandes numerosos; Machos: Testículos branco-
leitosos grandes, bem desenvolvidos e túrgidos.
4. Desovado/Espermeado – Fêmeas: Ovários flácidos e hemorrágicos, ocupando
menos da metade da cavidade celomática com poucos ovócitos visíveis a olho nú;
Machos: Testículos pequenos, hemorrágicos e flácidos.
Após a classificação macroscópica, as gônadas foram seccionadas na porção mediana
e fixadas em solução de formol a 4% por 24 horas em seguida transferidas e armazenadas em
álcool 70% para a realização das técnicas histológicas: inclusão em parafina, microtomia de
5-7µm de espessura com coloração com hematoxilina-eosina. Em laboratório, foi realizada a
determinação microscópica do estágio de maturação gonadal de acordo com os seguintes
parâmetros sintetizados por Brown-Peterson et al (2011).
74
1. Imaturo - Fêmeas: Apenas oogônias e oócitos pré vitelogênicos em crescimento
primário presentes, sem atresia. Parede do ovário fina e pouco espaço entre os
oócitos. Machos: Somente espermatogônias indiferenciadas presentes, lúmen dos
lóbulos imperceptível.
2. Desenvolvimento - Fêmeas: Presença de oócitos vitelogênicos finais
completamente desenvolvidos. Algumas atresias e folículos desovados tardios
podem estar presentes. Em espécies de fecundidade determinada: predominância
de oócitos vitelogênicos finais. Em espécies de fecundidade indeterminada:
prevalecem os oócitos vitelogênicos intermediários e finais (com ou sem evidência
de desova anterior/presença de folículos pós-ovulatórios); ou oócitos vitelogênicos
iniciais com evidência de desova anterior (presença de folículos pós-ovulatórios);
Machos: Início da espermatogênese e formação dos espermatocistos.
Espermatogônias diferenciadas, espermatócitos primários, espermatócitos
secundários, espermátides iniciais e mesmo finais podem estar presentes no
interior dos espermatocistos. Espermatozóides não estão presentes no lúmen dos
lóbulos/túbulos seminíferos ou ductos espermáticos. O epitélio germinativo
contínuo ao longo de todo o testículo.
3. Apto à desova/liberar esperma – Fêmeas: Presença de oócitos vitelogênicos
finais/completamente desenvolvidos. Algumas atresias e folículos desovados
tardios podem estar presentes. Em espécies de fecundidade determinada:
predominância de oócitos vitelogênicos finais. Em espécies de fecundidade
indeterminada: prevalecem os oócitos vitelogênicos intermediários e finais (com
ou sem evidência de desova anterior/presença de folículos pós-ovulatórios); ou
oócitos vitelogênicos iniciais com evidência de desova anterior (presença de
folículos pós-ovulatórios). Machos: Espermatozóides presentes no lúmen dos
lóbulos/túbulos seminíferos e/ou ductos espermáticos. Todos os estágios da
espermatogênese (espermatogônias, espermatócitos, espemátides) podem estar
presentes nos espermatocistos ao longo do epitélio seminífero/germinativo que
pode se contínuo ou descontínuo. Características do epitélio germinativo nessa
fase: Inicial, epitélio contínuo ao longo de todo o testículo; Intermediária, epitélio
descontínuo nas proximidades do ducto espermático; Final, epitélio descontínuo
por todo o testículo.
4. Regressão – Fêmeas: Folículos atrésicos e folículos pós-ovulatórios presentes.
Alguns oócitos com alvéolos corticais e/ou em vitelogênese podem estar presentes.
75
Machos: Presença de espermatozóides residuais no lúmen dos lóbulos/túbulos
seminíferos e/ou ductos espermáticos. Espermatócistos contendo espermátides não
liberadas dispersos pelo epitélio seminífero. Proliferação das espermatogônias e
regeneração do epitélio germinativo pode ter início.
5. Regeneração – Fêmeas: Presença apenas de oogônias, oócitos profásicos iniciais
e oócitos pré vitelogênicos em crescimento primário. Vasos sanguíneos dilatados,
folículos atrésicos ou folículos pós-ovulatórios em degeneração podem estar
presentes. Machos: Lúmen dos lóbulos/túbulos seminíferos não detectável.
Espermatogônias em proliferação por todo testículo. Epitélio seminífero contínuo
Espermatocistos ausentes. Espermatozóides residuais ocasionalmente presentes no
lúmen dos lóbulos/túbulos seminíferos e ducto espermático.
A partir de dados coletados foram calculados o índice gonadossomático (IGS = 100 x
PG / PT-1), que fornece a relação entre o desenvolvimento gonadal e corporal de cada
indivíduo, o índice hepatossomático (IHS= 100xPF/PT-1) que pode indicar o período
reprodutivo em função da participação do fígado no processo de maturação gonadal e o fator
de condição K alométrico, que é o indicador de condição do bem estar do indivíduo
fornecendo a relação entre a condição corporal e/ou estado fisiológico e o meio em que vive.
Obedece a seguinte equação K = Pt/Ctb, onde b = coeficiente da regressão entre Pt/Ct
(VAZZOLER, 1996). Para este cálculo primeiramente foi realizado uma regressão entre peso
e comprimento total para a determinação dos coeficientes da regressão.
Para estimar a fecundidade dos indivíduos, foi retirada uma alíquota da gônada (não
utilizada para retirada da porção mediana destinada à análise histológica), a qual foi pesada,
posteriormente dissociada e conservada em líquido de Gilson modificado (ARANTES et al.,
2010). Para a análise foi utilizado o método gravimétrico proposto por Vazzoler (1996) onde
se realizou a contagem dos ovócitos através de uma lupa, em seguida através do peso total das
gônadas (Pt), peso da alíquota (p) e o número de ovócitos (n) foi estimado o total de ovócitos
nos ovários (N= nPt/p). Após a determinação da fecundidade individual foi realizado um teste
de GLM (Generalizated Linear Model) com distribuição Poisson para a determinação da
relação entre o peso e o tamanho com a fecundidade.
Para a determinação do tamanho, onde cinquenta por cento dos espécimes amostrados
estão aptos à desova (L50) e o tamanho onde todos os espécimes se encontram nesse estado
(L100) foi utilizado o método descrito por Vazzoler (1996), com a distinção entre imaturos e
76
demais classificações por classe de tamanhos, o calculo da frequência para cada classe e o
ajuste da curva sigmoide.
Foram realizadas análises de correlação de Pearson para verificar as relações entre os
índices somáticos e os seguintes parâmetros ambientais: temperatura, turbidez, nível do rio,
pluviosidade e pH.
3.4. RESULTADOS E DISCUSSÃO
3.4.1 Proporção Sexual
As coletas foram realizadas entre Outubro de 2012 e março de 2013, pela inviabilidade
de uma coleta no mês de setembro foram realizadas duas coletas no mês de outubro uma na
primeira semana e uma na última. Durante as expedições de coleta foram capturados e
analisados 175 indivíduos de pirá, destes 149 eram fêmeas e 26 machos com uma proporção
sexual foi de 5,73 fêmeas para cada macho com p<0.001 para o teste do Qui-quadrado
conforme demonstrado pela Figura 08.
Figura 08 – Proporção sexual de Conorhynchos conirostris
Em estudo com esta mesma espécie, Conorhynchos conirostris, na região de Pirapora-
MG, a proporção sexual encontrada foi próxima de 1:1 (RIBEIRO, 2002). Foi evidente a
diferença encontrada na proporção sexual, este contraste pode estar relacionado com: I - o
tamanho do indivíduo e petrechos utilizados; II - local da captura; e III - estratégia
reprodutiva. Como demonstrado na Figura 09 à distribuição dos tamanhos dos indivíduos
capturados demonstra que 76% dos machos capturados estão abaixo de 50 centímetros e as
fêmeas apresentam uma distribuição mais homogênea, sugerindo que fêmeas crescem mais
que os machos.
77
Figura 09: Distribuição de frequência no tamanho dos indivíduos de Conorhynchos conirostris
capturados.
O maior tamanho das fêmeas poderia favorecer a sua captura pela seletividade do
petrecho de pesca (ISAAC et al., 2000 apud AMADIO; BITTENCOURT, 2005), entretanto,
observa-se que com os mesmos petrechos capturaram-se fêmeas nas classes de tamanho em
que machos foram capturados, refutando esta alternativa.
Outra hipótese possível é que esta diferença na proporção sexual seja uma estratégia
para aumento da fecundidade total da população das espécies migradoras, que possuem uma
alta fecundidade individual (AMADIO; BITTENCOURT, 2005), sendo assim, com mais
fêmeas na população o sucesso reprodutivo poderia ser aumentado, entretanto as autoras
ressaltam a ausência de dados que comprovem esta relação.
Diferenças entre sítios reprodutivos também pode ser outra hipótese, visto o total
desconhecimento da biologia reprodutiva dessa espécie, não existem relatos detalhados sobre
os locais de ocorrência, áreas de recrutamento, distribuição dos cardumes, sítios de
alimentação e reprodução, ou mesmo as características de cada um desses locais. Portanto,
diferenças na proporção entre sexos podem ser atribuídas a características específicas do local
de amostragem. Outros fatores como o crescimento e mortalidade diferenciada para os sexos
também são possíveis (AMADIO; BITTENCOURT, op. cit.), contudo, neste trabalho não
puderam ser testadas estas hipóteses.
0
2
4
6
8
10
12
14
16
18
20
3134353739404142434445464748495051525354555657596063656867697175
Fre
qu
ênci
a A
bso
luta
Tamanho dos indivíduos capturados
Distribuição dos tamanhos de Conorhynchos conirostris
Fêmeas
Machos
78
3.4.2 Frequência nos estágios de maturação
A distribuição na frequência dos estágios de maturação está explicitada nos Figuras
10 e 11. Apenas uma fêmea imatura foi capturada durante as amostragens (Figura 12),
fêmeas em desenvolvimento (Figura 13) foram amostradas entre novembro e março,
indivíduos aptos à desova (Figura 14) foram amostrados entre dezembro e março, nos meses
de fevereiro e março foram capturados exemplares em regressão (Figura 15) e a presença de
fêmeas em repouso (Figura 16) foi visualizada durante todos os períodos de coleta.
O mês de janeiro é o pico de atividade reprodutiva para as fêmeas, onde foi encontrada
uma maior porcentagem de fêmeas aptas à desova, já para machos foi necessário cautela ao
avaliar os gráficos, pois a baixa amostragem (n=1) nos meses de novembro e janeiro forneceu
uma falsa impressão do pico de atividade reprodutiva, contudo, este deve estar situado entre
novembro e janeiro. Através das análises microscópicas não foram observados machos
imaturos nem em repouso reprodutivo, todos os exemplares capturados estavam em
desenvolvimento (Figura 17), aptos a espermear (Figura 18) ou em regressão (Figura 19).
Figura 10 – Frequência relativa dos estágios de maturação gonadal para fêmeas de Conorhynchos
conirostris.
0
20
40
60
80
100
SET OUT NOV DEZ JAN FEV MAR
Estágios de Maturação Gonadal
F5
F4
F3
F2
F1
79
Figura 11 – Frequência relativa dos estágios de maturação gonadal para machos de Conorhynchos
conirostris.
Figura 12 – Corte transversal de ovário de Conorhynchos conirostris, demonstrando uma fêmea imatura com a
presença de ovócitos jovens (O1) (seta) e pré vitelogênicos (O2) (ponta de seta). Escala: 200µm. Foto: Thomás
Yoshinaga
0
10
20
30
40
50
60
70
80
90
100
SET OUT NOV DEZ JAN FEV MAR
Estágios de Maturação Gonadal
M5
M4
M3
M2
M1
80
Figura 13 – Corte transversal de ovário de Conorhynchos conirostris, demonstrando uma fêmea em
desenvolvimento apresentando ovócitos jovens e pré vitelogênicos (setas duplas) e ovócitos (O3) (seta)
apresentando vesículas corticais (ponta de seta). Escala: 200µm. Foto: Thomás Yoshinaga
Figura 14 – Corte transversal de ovário de Conorhynchos conirostris, demonstrando uma fêmea apta a desova,
com a presença de poucos ovócitos jovens e pré vitelogênicos e com ovócitos vitelogênicos (O4) (pontas de seta)
abundantes. Escala: 200µm. Foto: Thomás Yoshinaga
81
Figura 15 – Corte transversal de ovário de Conorhynchos conirostris, demonstrando uma fêmea em regressão,
presença de folículo pós-ovulatório. Escala: 100µm. Foto: Thomás Yoshinaga
Figura 16– Corte transversal de ovário de Conorhynchos conirostris, demonstrando uma fêmea em regeneração,
presença de corpos residuais (pontas de seta). Escala: 200µm. Foto: Thomás Yoshinaga
82
Figura 17 – Corte transversal de testículo de Conorhynchos conirostris, demonstrando um macho em
desenvolvimento, com poucos espermatozoides presentes nos túbulos seminíferos com (pontas de setas) HE.
Escala: 200µm. Foto: Thomás Yoshinaga
Figura 18 – Corte transversal de testículo de Conorhynchos conirostris, demonstrando um macho apto a
espermear, com túbulos seminíferos repletos de espermatozoides (pontas de setas) HE. Escala: 200µm. Foto:
Thomás Yoshinaga.
83
Figura 19 – Corte transversal de testículo de Conorhynchos conirostris, demonstrando um macho em regressão,
com túbulos seminíferos com resquícios de espermatozoides (pontas de setas) HE. Escala: 200µm. Foto:
Thomás Yoshinaga.
Ribeiro (2002) também obteve resultados semelhantes, encontrando fêmeas de
repouso em quase todos os meses amostrados, exceto entre junho a setembro, havendo
também poucas capturas de fêmeas maduras. De acordo com os dados obtidos pela autora
citada é possível inferir a amplitude do período reprodutivo que vai de dezembro a março,
semelhante aos dados obtidos neste trabalho. Foi possível verificar também que para os
machos, houve um aumento na atividade reprodutiva nos meses de outubro e novembro
(RIBEIRO, 2002), no presente estudo foi observado tal atividade para ambos os sexos, o que
pode indicar uma possível tática reprodutiva em função da mudança drástica do regime
hídrico, partindo do pressuposto de que dentro da população existem peixes em diferentes
estágios de maturação a espera de condições ambientais favoráveis à reprodução.
3.4.2 Índices Somáticos e Correlação com as Variáveis Ambientais
Os índices gonadossomático (IGS) e hepatossomático (IHS) foram calculados por sexo
e demonstraram que as fêmeas de pirá alcançaram o valor máximo de IGS em janeiro,
prevaleceu o maior número de fêmeas maduras e para os machos o pico foi no mês de
fevereiro, já o IHS apresentou oscilações com setembro sendo o mês com maior índice e
fevereiro com o menor, para os machos o IHS e IGS oscilaram de forma inversa, como
ilustrado pela Figura 20.
84
No mês de outubro houve um pico na atividade reprodutiva evidenciada tanto pelos
índices gerados quanto para a distribuição de frequências.
Figura 20 – Índices gonadossomático (IGS) e hepatossomático (IHS) para fêmeas de pirá
(Conorhynchos conirostris) entre os meses de setembro de 2012 a março de 2013.
O IGS é frequentemente utilizado como indicador de atividade reprodutiva
(VAZZOLER, 1996), os resultados obtidos corroboram com os estudos realizados por Ribeiro
(2002), havendo um aumento no valor médio do IGS de acordo com o andamento do processo
de maturação, atingindo seu pico com os exemplares maduros.
Os resultados de IHS obtidos neste trabalho foram muito variáveis e não
demonstraram um padrão claro, entretanto no pirá já foi inferido sobre a possível
transferência de substâncias de origem hepática para os ovários onde posteriormente é
produzido o vitelo, em função do alto valor de IHS para estágios em repouso e a redução
deste valor nos estágios maduros (RIBEIRO, 2002).
Existe a premissa de que o fígado, como um órgão de reserva energética, fornece
“materiais” para a maturação das gônadas, principalmente precursores vitelínicos para o
desenvolvimento dos ovários (AGOSTINHO et al., 1990). Entretanto a relação entre o IHS e
o período reprodutivo não pode ser considerado um padrão, visto que em algumas espécies
como: Gasterosteus aculeatus L. (WOOTTON; EVANS; MILLS, 1978), Carassius auratus
(DELAHUNTY; VLAMING, 1980) esta relação existe enquanto para outras não como:
Rhinelepis aspera (AGOSTINHO et al., 1990), Loricariichtys platymetopon (QUEROL;
QUEROL; GOMES, 2002), Astyanax scabripinnis (NAVARRO et al., 2006).
0
0,5
1
1,5
SET OUT NOV DEZ JAN FEV MAR
IGS
Meses amostrados
IGS e IHS de Conorhynchos conirostris para machos e
fêmeas
IGS M
IGS F
IHS M
IHS F
85
As análises de correlação entre os índices somáticos e os fatores ambientais (vide
Tabela 01) mostraram que nas fêmeas houve diferença significativa com o pH e nos machos
com a turbidez conforme a Tabela 02.
Tabela 01 – Parâmetros ambientais avaliados
Meses Temperatura (ºC) Pluviosidade (mm) Nível do Rio (m) Turbidez (NTU) pH
SET 27 0 2,964 20,22 6,84
OUT 27,5 0,01 2,88 23,15 6,85
NOV 28 11,9 4,67 480,66 7,01
DEZ 28 0 4,212 328,8 7,34
JAN 27 13,1 4,8 390,5 7,3
FEV 26 0,1 3,32 91,1 7,4
MAR 28 6,6 2,78 136 7,38
Fonte: COPASA e CHESF
Tabela 02 – Correlações entre variáveis ambientais e índices somáticos de Conorhynchos conirostris.
Em negrito os valores significativos.
Temperatura (ºC) Pluviosidade (mm) Nível do Rio (m) Turbidez (NTU) pH
IGSM cor= -0.53
p= 0,221
cor= -0.49
p= 0,254 cor= -0.83
p= 0,018
cor= -0.86
p= 0,013
cor= 0.09
p= 0,837
IHSM cor= 0.18
p= 0,691
cor= 0.31
p= 0,485
cor= 0.36
p= 0,420
cor= 0.26
p= 0,560
cor= -0.70
p= 0,074
IGSF cor= -0.44
p=0,320
cor= 0.24
p= 0,593
cor= 0.15
p= 0,738
cor= -0.02
p= 0,963
cor= 0.17
p= 0,715
IHSF cor= 0.12
p= 0,782
cor= 0.08
p= 0,850
cor= 0.01
p= 0,988
cor= -0.05
p= 0,910 cor= -0.91
p= 0,004
Foi observada uma maior frequência de fêmeas aptas à desova, quando houve um
aumento no nível do rio, na turbidez e também na pluviosidade. Entretanto, não houve
correlação significativa para os índices biológicos, exceto IHS (r=-0.91, p<0.01). Para machos
houve a correlação entre o IGS e o nível do rio (r=-0.83, p<0.05) e a turbidez (r=-0.86,
p<0.05).
A reprodução dos peixes tropicais está frequentemente associada a uma maior
pluviosidade e consequentemente aumento no nível do rio (LOWE-MCCONNELL, 1987). A
referida autora cita estudos realizados por Bayley (1973) no rio Pilcomayo, tributário do rio
Paraguai, onde Prochilodus platensis desovou nos dias seguintes as primeiras cheias da
temporada chuvosa. Brito e Bazzoli (2003) estudaram sobre a reprodução do surubim
(Pseudoplatystoma corruscans) na região de Pirapora, em Minas Gerais, reportaram maiores
capturas durante o período reprodutivo, coincidindo com as chuvas e a enchente. O fato da
86
existência de correlação entre os índices somáticos e os fatores abióticos (pH, turbidez e o
nível do rio) se dá em função das alterações na composição química da água durante o
período chuvoso, sendo estas alterações responsáveis por sinalizar e desencadear o processo
reprodutivo (MUNRO, 1990 apud BRITO; BAZZOLI, 2003).
3.4.3 Relação peso-comprimento e Fator de Condição
A relação peso/comprimento demonstrou que os machos possuem crescimento
alométrico negativo, isso indica que o peso aumenta mais lentamente em relação ao
comprimento, enquanto as fêmeas possuem crescimento isométrico, aumentando tamanho e
peso na mesma proporção conforme ilustrado na Figura 21.
Figura 21 - Relação peso-comprimento de Conorhynchos conirostris para Machos (vermelho) e Fêmeas
(azul) com respectivas expressões e valor do R².
O fator de condição foi maior para os machos do que para as fêmeas, pois os machos
apresentaram uma oscilação maior como demonstrado na Figura 22, já as fêmeas
apresentaram valores mais altos nos meses iniciais e mais baixos nos finais. Os valores do
fator de condição mais baixos ocorreram em dezembro para os machos e em fevereiro para as
fêmeas.
Os valores encontrados para os machos podem estar relacionados às diferenças no
deslocamento de energia para os eventos reprodutivos, uma vez que as fêmeas têm um maior
investimento na produção de gametas, existindo assim uma menor disponibilidade de energia
para outras funções fisiológicas. Fêmeas de Oligosarcus hepsetus apresentaram valores mais
baixos no fator de condição do que machos, e isso foi atribuído ao seu gasto energético na
produção de ovócitos ser mais acentuado do que os machos no desenvolvimento dos
espermatozóides (GOMIERO; VILLARES-JUNIOR; BRAGA, 2010).
87
Trabalhos relataram variações no fator de condição para Cichla cf occellaris, C.
monoculus e Oligosarcus hepsetus, sendo estas variações em função da intensidade
reprodutiva no verão e na primavera pela menor atividade alimentar (GOMIERO; BRAGA,
2003; GOMIERO; VILLARES-JUNIOR; BRAGA, 2010).
Figura 22 - Fator de condição para machos e fêmeas de pirá capturados entre os meses de setembro de 2012
a março de 2013.
3.4.4 Fecundidade e Tamanho de Primeira Maturação
A fecundidade absoluta encontrada variou de 10.883 a 142.769 ovócitos, com média
de 40432±44866 e de 12,61±9,22 ovócitos por grama de fêmea. A análise de regressão apesar
de significativa demonstrou uma fraca relação entre a fecundidade e o comprimento total
(Figura 23) e também para fecundidade e o peso (Figura 24).
Sato (1999) determinou em sua pesquisa uma média de fecundidade absoluta de
663.179±147.585 e com 137±26 ovócitos por grama de fêmea, entretanto o trabalho avaliou
um número baixo de fêmeas (n=5) com uma alta média de comprimento total (75±6cm) e de
peso (4937,3±1192,0g), capturadas nos rios São Francisco e Paracatu, as quais foram
mantidas em cativeiro por no mínimo 4 meses e submetidas a reprodução induzida.
A discrepância de valores entre os trabalhos pode ser explicada pela diferença de
tamanho entre os peixes avaliados, já que no presente estudo foram avaliadas fêmeas de
diversos tamanhos, e o tamanho médio de 63,50±10,31cm e peso médio de 2718,1±1709,8g,
valores bem abaixo dos utilizados por Sato (1999). Os diferentes estímulos reprodutivos
relacionados com animais de cativeiro ou vida livre também devem ser considerados, uma vez
que sob condições controladas, os indivíduos sofrem estímulos hormonais induzidos, fato que
0
0,005
0,01
0,015
0,02
0,025
0,03
0,035
0,04
SET OUT NOV DEZ JAN FEV MAR
Fa
tor
de
Co
nd
içã
o M
édio
Meses amostrados
Fator de Condição
Fêmeas
Machos
88
não ocorre no ambiente natural, dependendo totalmente dos fatores ambientais proximais e
terminais (LOWERRE-BARBIERI et al., 2011).
Figura 23 – Fecundidade em função do comprimento total
Figura 24 – Fecundidade em função do peso.
Outro fator que pode ter interferido nos resultados, foi o período de armazenamento
das amostras no fixador, que pode ter degradado parte dos fragmentos, pois foram mantidos
até sua dissociação, algumas amostras tiveram tempo de dissociação baixo e outras ficaram
até dois anos na solução sem sua total separação. O Liquido de Gilson modificado, solução
utilizada para a dissociação foi relatado segundo Lowerre-Barbieri e Barbieri (1993) como
possível degradador de amostras após armazenamentos prolongados.
Sato (1999) determinou a fecundidade para diversas espécies, fornecendo as relações
lineares para grande parte delas, entretanto, estas relações para o pirá, tanto para comprimento
89
total quanto para peso ficaram ausentes nas tabelas apresentadas. Embora a comparação tenha
sido impedida pela ausência dos dados, fato que poderia comprovar se houve ou não
degradação das amostras pela ação do reagente, o pirá em seu ambiente natural pode ter
comportamento reprodutivo diferente, devido ao processo de maturação reprodutiva
desencadeada sob os estímulos impostos pelo ambiente.
Buscou-se determinar o tamanho da primeira maturação através do método proposto
por Vazzoler (1996), com a divisão por classes de tamanho e distribuição de frequência dos
indivíduos imaturos e em atividade reprodutiva. A diferenciação entre indivíduos imaturos e
em regeneração foi realizada através da identificação dos “corpos amarelos” ou “corpos
residuais” (Figura 25), que são estruturas que podem ser originadas a partir dos folículos
vazios, organizando-se em uma massa celular, a qual muitas vezes não tem afinidade pelos
corantes utilizados (HE), adquirindo coloração em tom castanho (FÁVARO et al., 2005;
MIRANDA et al., 1999).
Figura 25 – Fêmea em regeneração, presença do corpo amarelo ou residual (*)
Entretanto a metodologia para a determinação do L50 com uma amostragem baixa
pode gerar problemas no ajuste da curva sigmoide. No presente estudo houve apenas um
indivíduo com o tamanho de 34 centímetros, que de acordo com as características
microscópicas analisadas, foi classificado como imaturo, impossibilitando desta maneira o
cálculo do L50 e L100.
90
Embora a determinação do tamanho de primeira maturação não ter sido estabelecida,
se observa que para fêmeas, o valor poderá ser em torno de 34 cm, para machos o menor
indivíduo capturado foi 31 cm e também estava reprodutivamente ativo. A Tabela 03
demonstra os dados biométricos dos menores indivíduos capturados aptos a
desova/espermear.
Tabela 03 – Maiores e menores exemplares reprodutivamente ativos
Menor
indivíduo
capturado
(cm)
Maior
indivíduo
capturado
(cm)
Médio (cm)
Menor Indivíduo
reprodutivamente ativo
(cm)
Peso Min
(g)
Peso Max
(g)
Peso Médio
(g)
Fêmeas 34 75 48,77±7,17 43 333 5078 1185±662
Machos 31 67 46,04±9,69 39 261 2446 989,7±595
Ribeiro (2002) também encontrou dificuldades em capturar exemplares imaturos de
Conorhynchos conirostris, entretanto os menores indivíduos capturados aptos a reproduzir
foram 62 e 34 cm respectivamente para fêmeas e machos. Portanto para a determinação do
L50 será necessário à captura de indivíduos menores do que aqui determinados.
Segundo relatos dos próprios pescadores, dificilmente um pequeno exemplar de pirá é
capturado, seja no leito do rio ou nas lagoas marginais, o que dificulta na determinação do
tamanho mínimo que entra em reprodução. Além disso, não existe um consenso entre
pesquisadores sobre os locais de recrutamento dessa espécie.
De acordo com os pescadores esta é uma espécie que não possui hábitos de lagoa,
segundo eles tal espécie utiliza a planície de inundação durante a cheia do rio, pois
conseguem capturar exemplares dentro das áreas alagadas, entretanto aos primeiros sinais de
recuo do rio os indivíduos desta espécie retornam para o curso principal do rio.
3.5 CONCLUSÕES
Diante dos resultados apresentados é possível concluir que a área de estudo
demonstrou ser importante para trabalhos com o pirá (Conorhynchos conirostris), devido a
sua abundância e com a possibilidade de captura de indivíduos com diversos tamanhos e em
diversos estágios de maturação gonadal, desta maneira pode-se a que a espécie consegue se
reproduzir no local, sendo assim considera-se esta área como prioritária para conservação da
espécie.
As amostragens realizadas demonstraram uma maior frequência na captura de fêmeas,
com o período reprodutivo se estendendo de janeiro a março e com maior de atividade
91
reprodutiva ocorrendo em janeiro, além disso, o nível do rio e a turbidez foram os parâmetros
ambientais que tiveram correlação significativa com os indicadores somáticos obtidos para a
espécie estudada.
Encontrou-se uma baixa fecundidade para a espécie em comparação com trabalho já
desenvolvido, contudo não foi possível definir quais as causas dos baixos valores obtidos. O
tamanho de primeira maturação gonadal parece estar em torno de 34 cm para fêmeas e de 31
para machos, demonstrando que a espécie se reproduz precocemente.
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96
4. CAPÍTULO III – POR UMA GESTÃO SOCIOAMBIENTAL NO SÃO
FRANCISCO
4.1 INTRODUÇÃO
Atualmente a pesca de pequena escala emprega 50 milhões de pescadores no mundo,
sendo que grande parcela deles se concentram nos países em desenvolvimento (BERKES et
al., 2006; MAHON, 1997). Esta categoria de pesca é responsável por quase metade da
produção global do pescado marinho e corresponde por cerca de 98 milhões de toneladas
anuais, suprindo assim, uma grande parte do pescado consumido nestes países (BERKES et
al., 2006).
Embora a pesca de pequena escala contribua com grande parte do pescado mundial,
ela sofre com a depleção dos estoques pesqueiros em função do somatório de vários fatores,
os quais ameaçam os ecossistemas aquáticos, atingindo diretamente a pesca. A poluição e
eutrofização, o assoreamento, empreendimentos hidrelétricos e controle de cheias, as
introduções de espécies e a sobrepesca, são as principais ameaças para os ecossistemas
aquáticos brasileiros (AGOSTINHO; THOMAZ; GOMES, 2005).
Além destas ameaças, há a falta de uma gestão eficaz na pesca de pequena escala,
quando esta existe, não conseguem limitar o esforço pesqueiro e administrar os conflitos,
sendo incapaz de acompanhar o avanço da tecnologia, da economia, do crescimento
populacional e suas implicações como a pobreza e demanda de alimento (BERKES et al.,
2006).
Esta ineficiência na gestão da pesca de pequena escala é fruto da negligencia da
ciência pesqueira, que tem como principal ferramenta a avaliação de estoques pesqueiros e é
focada principalmente nos países do Norte (BERKES et al., 2006). Sendo assim, muitos
países em desenvolvimento se baseiam e utilizam conceitos e técnicas de países
desenvolvidos para as abordagens de avaliação e manejo, grande parte das vezes sem
adaptação à realidade local (MAHON, 1997).
O problema da gestão de países em desenvolvimento é o fato de que a maioria dos
países é tropical, nos trópicos o número de espécies é maior e a distribuição geográfica é
menor do que em altas latitudes (STEVENS, 1989 apud MAHON, 1997), e por isso a
tendência nestes países é a pesca de muitas espécies com estoques pequenos (MAHON,
1997).
O modelo convencional brasileiro é baseado em três pilares básicos de acordo com
Ruffino (2005):
97
Os recursos pesqueiros são de domínio da União e devem ser acessíveis a
qualquer cidadão;
Os grupos de usuários não são capazes de manejar os recursos sem a
supervisão e o controle do Estado;
O rendimento máximo sustentável de cada recurso pode ser estimado por meio
de métodos científicos.
Pontuam-se alguns problemas críticos ligados a estes pressupostos. O primeiro, a
ineficiência do Estado de regular efetivamente a pesca, tornando o recurso de “livre acesso”.
O segundo é questionável o julgamento em relação à incapacidade dos usuários de controlar a
pressão sobre os recursos, por exemplo, na Amazônia o baixo número de habitantes e o forte
controle social podem facilitar o manejo comunitário. O terceiro, a complexidade do sistema
da pesca dificulta quantificar o rendimento, o que seria ótimo e sustentável com métodos
clássicos e ainda a dificuldade em considerar as duas esferas a natural e a social. Portanto,
para o desenvolvimento de uma nova forma de manejo, a integração entre peixes e pescadores
deve ser encarada como um complexo único, fato fundamental para a manutenção eficaz do
recurso (RUFFINO, 2005).
Os sistemas convencionais de gestão dos recursos de uso comum tem recebido
críticas, principalmente aqueles que tratam dos recursos pesqueiros fundamentados em dados
quantitativos (BERKES; COLDING; FOLKE, 2003; BERKES, 2003; MOLLER et al., 2004),
ressalta-se que a gestão dos recursos certamente não obterá bons resultados se for realizada
pelo uso de proibições impostas pelo Estado. Alguns países já exibem as tendências para a
conservação destes recursos. os quais estão baseadas no manejo comunitário com abordagem
participativa (MOLLER et al., 2004).
A gestão da pesca no Brasil vem sofrendo alterações desde a década de 60, é possível
destacar três fases institucionais distintas, a fase SUDEPE19, a fase IBAMA20 e a fase
MAPA21 (DIAS-NETO, 2010). Entre os anos de 1960 até o final de 1980, a criação da
Sudepe tinha como meta principal, o aumento da produção pesqueira no país,
desconsiderando os fatores socioculturais e ambientais vinculados à atividade pesqueira
(RUFFINO, 2005). Esta fase foi caracterizada por uso inadequado de crédito e incentivos
fiscais; marginalização da pesca artesanal; corrupção e uso dos recursos pesqueiros de
maneira danosa e com declínio na produção de diversas espécies (DIAS-NETO, 2010).
19 Superintendência do Desenvolvimento da Pesca 20 Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis 21 Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento
98
Com a criação do IBAMA em 1989, o gerenciamento dos recursos naturais
incorporou as questões ambientais e passou a buscar modelos de gestão integrada das várias
atividades atuantes sobre cada ecossistema (RUFFINO, 2005). A herança deixada pela
SUDEPE não foi das melhores, os principais recursos pesqueiros se encontravam em estado
de sobrepesca e consequentemente houve a queda na produção nacional e o descrédito por
parte da sociedade quanto à conservação da biodiversidade aquática. Entretanto, a gestão
pesqueira empreendida pelo novo órgão conseguiu reverter o quadro em que se encontravam
os estoques pesqueiros e assim sua produção. (DIAS-NETO, 2010).
Acrescenta-se que a criação de órgãos, sendo o primeiro o Grupo Executivo do Setor
Pesqueiro - GESPE vinculado a Câmara de Políticas dos Recursos Naturais em 1995, o
segundo o Departamento de Pesca e Aquicultura - DPA pertencente ao MAPA em 1998, que
introduziu mudanças nas competências relacionadas com a gestão do uso sustentável dos
recursos pesqueiros, o terceiro a Secretaria Especial de Aquicultura e Pesca da Presidência da
República – SEAP/PR em 2003 e o quarto, o Ministério da Pesca e Aquicultura em 2009, o
que deu indícios de ser promissor. No entanto, especialistas consideram que esta situação foi
agravada, devido aos constantes “cabos de guerra” empreendidos pelos órgãos criados e o
Ministério do Meio Ambiente – MMA/IBAMA (DIAS-NETO, op. cit).
Embora a criação de diversos órgãos cuja gestão é semelhante à conduzida pela
SUDEPE e que o IBAMA tenha tentado implantar uma gestão mais integrada sociocultural e
ambientalmente, o que se observa é uma gestão convencional da pesca, com alguns poucos
modelos de gestão participativa, principalmente por meio de acordos de pesca da Amazônia
(DIAS-NETO, 2010).
Os sistemas de gestão participativa têm sido reconhecidos mundialmente em função da
crescente percepção por parte dos gestores da pesca, que a mesma não pode ser efetivamente
manejada sem a cooperação e participação dos pescadores na formulação das leis e
regulamentações (POMEROY; BERKES, 1997).
Na gestão participativa, o envolvimento dos usuários diretos dos recursos nos
processos de planejamento, na implementação e no monitoramento/avaliação de planos de
manejo é necessário. Isto significa que, no caso da pesca, o governo, os pescadores e diversos
outros usuários que utilizam os mesmos espaços ou outros recursos dentro destes espaços,
podem e devem participar também dos processos de gestão, esta é tida como uma alternativa
viável para a descentralização do gerenciamento pesqueiro (KALIKOSKI; SEIXAS;
ALMUDI, 2009; SEIXAS; KALIKOSKI, 2009).
99
Existem diversos graus de envolvimento dos usuários na gestão participativa da pesca,
desta forma Sen e Nielsen (1996) resumiram cinco tipos de arranjos institucionais na gestão
da pesca:
Gestão instrutiva: Há pouca troca de informação entre governo e usuários; e o
governo apenas informa aos usuários das decisões que pretende tomar.
Gestão consultiva: Há mecanismos para o governo consultar a opinião dos usuários,
mas todas as decisões são tomadas pelo governo.
Gestão cooperativa ou compartilhada: As decisões são tomadas em cooperação
entre governo e usuários.
Gestão de aconselhamento: Os usuários aconselham o governo das decisões a serem
tomadas, e o governo, de maneira geral, aprova tais decisões.
Gestão informativa: O governo delega as tomadas de decisão aos usuários, que são
responsáveis por informar o governo das decisões tomadas.
No Brasil, existem diversos termos que se referem à gestão participativa, por exemplo:
gestão compartilhada, cogestão, manejo comunitário, manejo participativo, manejo local, co-
manejo, e co-gerenciamento. Existem sutis diferenças entre os termos, entretanto, o
importante é frisar que em qualquer um desses arranjos existe a participação dos usuários no
processo de gestão (SEIXAS; KALIKOSKI, 2009).
As formas alternativas brasileiras de gestão iniciaram através dos acordos de pesca,
que são formas participativas de regulamentação dos recursos pesqueiros, e ocorreu
principalmente nas regiões de várzea da Amazônia Central. Estes acordos já existiam
informalmente entre as comunidades ribeirinhas desde os anos 60 e 70; sendo reconhecidos e
oficializados pelo IBAMA através de portarias apenas no final da década de 90 (ISAAC;
CERDEIRA, 2004).
A implementação destes acordos trouxe também impactos; entre os positivos destaca-
se o fortalecimento das comunidades, da organização social e institucional da região com a
criação dos Conselhos Regionais de Pesca22. Os impactos negativos são a redução na
rentabilidade do pescador e a queda na produção total da região (ISAAC; CERDEIRA, 2004).
O surgimento dos acordos de pesca ocorreu após a intensificação da atividade
pesqueira na Amazônia, a partir de 1960, decorrente de fatores como o aumento da demanda
de alimento, a modernização das técnicas de pesca e os incentivos para o setor, elevando os
22 Órgãos mediadores de conflitos
100
riscos de sobre-explotação, além de acirrar a disputa pelo recurso pesqueiro. Os conflitos
entre ribeirinhos e as frotas bem equipadas de outras regiões, considerados “de fora”, levaram
as comunidades a defenderem as áreas, as quais consideravam de uso comum e assim, a
solução encontrada foi à criação do manejo comunitário para a proteção destas áreas de
interesse comunitário (ISAAC; CERDEIRA, 2004).
De acordo com as autoras acima citadas, os sistemas de manejo propostos ainda
possuíam questões não respondidas, devido ao pequeno tempo de implantação ou pela baixa
eficácia e continuidade do monitoramento. Entretanto, ressalta-se que a falta de participação
dos usuários no processo de gestão é a principal causa da falha de adequação e
descumprimento das regulamentações existentes. Os acordos de pesca são uma forma de
evidenciar que existe uma alternativa ao manejo convencional, direcionando os objetivos
deste para os interesses socioambientais dos usuários e suas comunidades (ISAAC;
CERDEIRA, 2004).
Na região do médio São Francisco existem sistemas semelhantes há anos, como as
“Corredeiras de Pirapora e Buritizeiro” e a “Praia de Januária”, cujos próprios pescadores
foram os responsáveis pela formulação de normas de uso comunal que regulam o acesso aos
recursos pesqueiros (SOBRINHO; THÉ, 2012; THÉ; NORDI, 2006; THÉ, 2003). Embora
estes sistemas de manejo comunal existam na bacia do São Francisco, eles ainda não foram
legitimados pelo IEF e IBAMA, órgãos ambientais responsáveis pela gestão e fiscalização da
pesca no estado de Minas Gerais (SOBRINHO; THÉ, 2012).
O modelo de gestão pesqueira vigente no Estado de Minas Gerais contribui para que
estes sistemas não sejam oficialmente reconhecidos, já que a formulação das leis está
centralizada nos referidos órgãos. Assim, o Estado permanece como o único locutor nas
tentativas de estabelecer um sistema de manejo participativo para a região (FERNANDEZ;
THÉ, 2013; SOBRINHO; THÉ, 2012).
A gestão adotada pelo Estado de Minas Gerais tem sido ineficaz na resolução dos
conflitos que envolvem o manejo e uso dos recursos pesqueiros, como o conflito entre
pescadores artesanais e órgãos ambientais. Estes são oriundos muitas vezes da falta de
confiança entre ambos; há ainda casos como a proibição de técnicas de pesca e as práticas de
manejo local, e como conflitos entre os próprios órgãos legisladores com a elaboração de
portarias de pesca. Estas medidas dificultam a fiscalização e o cumprimento da legislação pela
comunidade, fazendo com que os conflitos entre os diversos usuários aumentem
(FERNANDEZ; THÉ, 2013).
101
Segundo as autoras, este tipo de gestão coloca em risco os recursos pesqueiros de
sobre-explotação e proporciona ainda uma fiscalização ineficiente e socialmente injusta, pois
é mais atuante sobre a pesca artesanal do que em outras atividades impactantes existentes
(SOBRINHO; THÉ, 2012).
Estes dois exemplos somados aos outros demonstrados no Capítulo I desta dissertação,
demonstram como a integração dos diversos grupos de usuários dos sistemas de gestão
compartilhada é a alternativa viável para a solução dos problemas de sobre-explotação e
conflitos existentes dentro da pesca.
O objetivo deste capítulo é demonstrar e propor a mudança da forma de gestão para a
bacia do São Francisco baseando-se no Conhecimento Ecológico Tradicional, desta maneira
contribuir para que esta seja mais equitativa entre os diversos usuários, principalmente os
pescadores artesanais que se encontram em uma situação de maior vulnerabilidade
socioeconômica e política dentro deste sistema.
4.2 A contribuição dos pescadores e do seu conhecimento ecológico tradicional para
uma gestão compartilhada da pesca no São Francisco.
Os pescadores artesanais da Barra do Urucuia, como explicitado no Capítulo I,
possuem amplo conhecimento sobre os aspectos reprodutivos, comportamento migratório,
dinâmica hidrológica do rio, importância das lagoas marginais e pequenos afluentes, e os
fatores que contribuem para o declínio do estoque pesqueiro.
Todo este conhecimento é resultado dos anos de experiência acumulada, vivendo em
um mesmo local, fato que faz com que eles tenham um “retrato” dos eventos ocorridos até os
dias atuais. Entretanto, observa-se que este vasto “arsenal” de informações é desvalorizado.
Entende-se que a integração dos usuários e consequentemente o CET associado a eles
no sistema de gestão compartilhada contribuirá para que esta seja mais efetiva e equitativa,
como alguns exemplos discutidos a seguir a partir desta pesquisa na Barra do Urucuia.
4.2.1 Informações sobre biologia reprodutiva
Os pescadores do rio São Francisco possuem um grande conhecimento a respeito dos
aspectos da biologia reprodutiva dos peixes, tanto do período quanto local de desova,
comportamento migratório e reprodutivo, cuidado parental e até dimorfismo sexual (THÉ,
2003).
Assim como descrito por Thé (2003), na Barra do Urucuia, temos conhecimento
semelhante, sobre o local de desova do surubim (Pseudoplatystoma corruscans) ocorrendo
frequentemente em locais de água corrente e fundos. Associados a este fato, há os dados a
102
respeito do comportamento desta espécie, enquanto realiza a desova, ato conhecido como
“carujo”, cuja a fêmea que é a maior (dimorfismo sexual) fica de barriga para cima, enquanto
os machos menores passam por cima desta, liberando o “leite”. Assim os pescadores podem
atuar informando locais onde os peixes se reproduzem na busca por sua preservação, além de
monitorar e indicar se foi possível visualizar a espécie reproduzindo durante o período de
defeso.
Para outras espécies como Dourado (Salminus franciscanus) e Matrinchã (Brycon
orthotaenia), relataram ainda a presença de uma lixa na nadadeira anal do peixe,
possibilitando diferenciar machos das fêmeas apenas pelo tato (THÉ, 2003; Presente estudo),
fato que contribuiu para o auxílio na parte de biologia reprodutiva destas espécies, por
exemplo, como na escolha das fêmeas para a análise de fecundidade, já que assim foi possível
selecionar e abrir apenas indivíduos desejados, evitando o desperdício de tempo abrindo o
indivíduo e procurando as gônadas. Este conhecimento além de auxiliar na economia de
tempo, contribui também para a determinação mais precisa do sexo de determinadas espécies,
no caso dos dourados são difíceis de classificar macroscopicamente e através desta
característica foi possível distinguir e classificar os indivíduos facilmente.
Para as curimatás (Prochilodus argenteus e P. costatus) os pescadores relatam o
“turro” (THÉ, 2003) que é uma vocalização de acasalamento e podem indicar o local onde a
espécie se reproduz, já que as vocalizações realizadas por machos são feitas no intuito de
atrair as fêmeas. Este “meme” é corroborado pelo estudo conduzido por Godinho e Kynard
(2006), apesar de ainda não terem observado os peixes marcados em seus receptores, eles
sabiam que o Pontal do Abaeté era utilizado como sítio reprodutivo em função destas
vocalizações, o que foi posteriormente confirmado pela técnica de radio-telemetria.
4.2.2 Monitoramento da pesca
Um problema crítico no Brasil é a falta de estatísticas pesqueiras confiáveis, Godinho
e Godinho (2003) afirmam que apesar da bacia do São Francisco ter sido uma das principais
fontes brasileiras de pescado, a pesca nunca foi regularmente quantificada, desta maneira
inexistem séries históricas de estatística pesqueira para a bacia.
A integração dos pescadores no processo de gestão favorecerá para a solução do
problema de monitoramento de desembarque pesqueiro, por exemplo, no município de São
Francisco existe o projeto “Monitoramento da Pesca no Médio São Francisco”, este projeto
visa à coleta de dados das principais espécies capturadas na localidade, no qual são recolhidos
103
o nome, peso e comprimento da espécie, tanto da pesca amadora quanto da artesanal, e os
próprios pescadores e guia de pesca23 foram instruídos para o levantamento de dados.
Esse tipo de metodologia permite a coleta sincrônica de grande quantidade de dados
com um custo relativamente baixo, este método pode ser utilizado para toda a bacia, o que
resolveria o problema da centralização do monitoramento em um ponto fixo, por exemplo,
como nas colônias de pesca. Esta abordagem de selecionar as colônias de pescadores como
locais preferenciais de monitoramento, pressupõe que a maioria do pescado capturado passa
por lá, entretanto não foi observado isso na localidade estudada, nenhum dos pescadores
forneceu pescado para a colônia, todos venderam diretamente para peixarias ou
atravessadores, o que evidencia como a metodologia utilizando apenas um ponto fixo pode ser
falha, fazendo com que o monitoramento seja subestimado.
4.2.2 Contribuição para a determinação do período de defeso
O conhecimento dos pescadores sobre o período reprodutivo dos peixes também é
outro exemplo que pode ser utilizado. O período de defeso em Minas Gerais é definido pelo
IEF, que estabelece os meses nos quais a pesca é proibida em função do período reprodutivo
dos peixes. A portaria vigente para a bacia do São Francisco é a nº154/2011 que estabelece
anualmente o período de defeso entre 1º de novembro a 28 de fevereiro objetivando assegurar
a proteção à reprodução natural das espécies de peixes nativos.
Os pescadores artesanais da Barra do Urucuia possuem outra percepção sobre o
período reprodutivo, para eles este período não assegura totalmente a reprodução dos peixes,
já que os peixes já estão “ovados”24 antes mesmo do período de defeso iniciar, e após o final
do período, em março, também é possível capturar exemplares na mesma situação. Para os
pescadores, o defeso deveria iniciar em outubro e finalizar no final de março, ampliando
assim o período que as espécies estariam protegidas.
O mesmo caso é visualizado por pesquisadores no Mato Grosso, onde algumas
espécies adiantam o período reprodutivo e outras atrasam (MEDEIROS, 2015). Este fato fez
com que o Ministério Público Estadual encaminhasse uma carta recomendatória para a
Secretaria de Estado de Meio Ambiente sugerindo a alteração do período de defeso de quatro
para seis meses, passando a iniciar em outubro e finalizar em março (MEDEIROS, 2015).
Além da informação em relação ao período de defeso não proteger realmente a
reprodução dos peixes, os pescadores ainda afirmam que para o peixe desovar é necessário
23 Atividade que muitos pescadores artesanais adotam para complementar a renda, guiando pescadores amadores
até bons pontos de pesca. 24 Termo utilizado para se referir aos peixes que já estão em estágio de maturação avançado.
104
que exista a “enchente”, sem o rio cheio o peixe “ova”, mas não “solta a produção”, e esta ova
“seca” e se perde.
As observações in loco comprovam os relatos dos pescadores, espécies como curimatá
(Prochilodus argentes e P. costatus), piau (Leporinus obtusidens), matrinchã (Brycon
orthotaenia) e dourado (Salminus franciscanus) em estágio de maturação avançado no final
do mês de setembro. Existem também relatos de espécies como a caranha (Piaractus
mesopotamicus) e a curimatá aptas a desovarem nos meses de março e abril. No que se refere
a “enchente” é de conhecimento que os peixes requerem condições abióticas necessárias para
a sua reprodução, como para salmonídeos, a espécie Thymallus thymallus, a migração
reprodutiva para os sítios de desova iniciam quando a temperatura e o nível do rio variar
substancialmente (PARKINSON; PHILIPPART; BARAS, 1999).
A importância das “enchentes” afirmada pelos pescadores também foi destacada para a
reprodução da curimatá (Prochilodus argenteus) (GODINHO, 2005). Em seu trabalho, o
autor afirma que existe a possibilidade de desova desta espécie em locais sob a influência das
cheias, no rio Abaeté, o qual desagua no rio São Francisco, comprovando assim a importância
das “enchentes” no processo de migração e reprodução dos peixes.
Outro trabalho comparativo entre uma área sob influência da represa de Três Marias e
outra sob influência do rio Abaeté, explicitou que os indivíduos de curimatá (Prochilodus
argenteus), os quais estavam sob influência da represa, neste caso com o fluxo de enchentes
regulado pelo barramento, apresentaram alta taxa de atresia folicular25, indicando que as
condições ambientais são inadequadas para o desenvolvimento do ovócito e maturação
gonadal (SATO et al., 2005).
4.2.3 Informações básicas sobre espécies raras, em extinção ou pouco estudadas.
Outra contribuição que os pescadores prestam são informações sobre espécies raras,
ameaçadas ou pouco estudadas como o pirá (Conorhynchos conirostris). Esta é uma espécie
cujos trabalhos a respeito são poucos, é considerada símbolo da bacia e está listada como
ameaçada26, principalmente pela destruição de seu habitat e a sobrepesca (ICMBIO, 2015).
É reconhecido que as lagoas marginais são berçários para muitas espécies de peixes
(POMPEU, 1997; POMPEU; GODINHO, 2006; SATO; CARDOSO; AMORIM, 1987),
25 Processo fisiológico natural pós desova, mas pode ser induzido sob condições de stress. É caracterizado pela
desorganização do oócito, fragmentação da zona pelúcida e liquefação do vitelo (MIRANDA et al., 1999 apud
SATO et al., 2005). 26 Portaria nº445, de 17 de dezembro de 2014
105
principalmente as migradoras, que são alvo da pesca pelo seu maior valor comercial.
Contudo, os pescadores relatam que o pirá não é encontrado em lagoas marginais.
Para os pescadores esta espécie é muito sensível ao pulso de inundação, ao menor
sinal de que o rio baixará o seu nível, os pirás se transferem para a calha principal. Eles
relatam isso porque conseguem fazer a captura desta espécie nas margens inundadas durante a
cheia, contudo não as capturam em lagoas marginais. Estas observações levam a deduzir que
esta espécie “sente” o nível do rio abaixando e retornam para o leito principal.
Este “meme” relacionado ao pirá pode ser confirmado pelo trabalho desenvolvido em
três lagoas marginais no norte de Minas, nos municípios de Jaíba e Itacarambi. Nele foram
listadas em capturas experimentais de 50 espécies entre os anos de 1994 e 1996, entre estas
constavam muitas espécies migradoras como o dourado (Salminus franciscanus), o surubim
(Pseudoplatystoma corruscans), a matrinchã (Brycon orthotaenia) e o piau (Leporinus
obtusidens), entretanto, o pirá não foi amostrado (POMPEU, 1997; POMPEU; GODINHO,
2006), demonstrando que o “meme” é de fato concreto.
Por ser uma espécie listada como ameaçada de extinção, a sua captura não é relatada
oficialmente, entretanto, demonstra a sua importância social e comercial para os pescadores
que ficam em uma situação de risco, insatisfeitos com a legislação e também com os órgãos
gestores.
A pesca é um sistema complicado de se gerir, pois a maioria dos petrechos utilizados
para a captura dos peixes não é específica para uma espécie, desta maneira o pirá
(Conorhynchos conirostris) pode ter sua captura restrita pela legislação, entretanto isto não
evita de que seja capturado. Existem peixes que são mais resistentes e suportam um tempo
preso as redes possibilitando uma possível soltura, entretanto, existem aqueles que morrem
mais facilmente, para estes que morrem, qual a decisão deve tomar o pescador? Desvencilhar-
se do peixe porque sua pesca é proibida, evitando assim uma possível penalização do estado
mesmo o indivíduo estando morto? Desperdiçando assim proteína que poderia ser consumida
ou convertida em renda direta?
Existem relatos de que pescadores que atiraram os peixes no rio para evitarem tais
penalizações, entretanto, quando não há sinais dos fiscais, os peixes são levados, consumidos
e em alguns casos comercializados. O caso do pirá ainda vai além, em função da abundância
desta espécie na região da Barra do Urucuia, a sua captura é frequente, de acordo com
informações dos pescadores ocorre principalmente com o inicio das chuvas, com a “sujada da
água” ou “repondo” e na “vazante geral” quando a temporada de chuva acaba.
106
Este fato causa o descontentamento dos pescadores que se sentem prejudicados por
não poderem capturar esta espécie, para piorar a situação existem poucos trabalhos científicos
desenvolvidos coma referida espécie, sabendo-se muito pouco sobre os parâmetros utilizados
para a gestão pesqueira, como tamanho de primeira maturação, distribuição geográfica e local
do recrutamento.
4.2.4 Contribuição com insights para estudos
Outra demonstração de como o CET dos pescadores pode trazer insights para a
ciência, são os fatores de previsão utilizados pelos pescadores para “prever” a condição do rio
nos próximos dias. O primeiro fator de previsão é baseado na “enchente” durante as chamadas
“primeiras águas” que correspondem às primeiras chuvas, aumentam o nível do rio, conforme
os pescadores, a produtividade aumenta e permanece alta até que o rio comece a “vazar”,
assim a pesca fica prejudicada em função do rio ter abaixado seu nível. A condição de pesca
“ruim” continua até a próxima “enchente”, que passa o nível daquela primeira; quando a
segunda enchente ultrapassa a primeira, os peixes “assanham” e a pesca melhora novamente.
Desta forma é possível predizer quando a pesca estará boa ou não, otimizando assim seus
esforços a fim de obter melhores rendimentos.
Os peixes utilizam fatores abióticos como gatilhos para a migração reprodutiva e
desova (PARKINSON; PHILIPPART; BARAS, 1999), a temperatura, o nível do rio, a
turbidez e a pluviosidade são parâmetros tidos como responsáveis pelo evento, assim, estes
parâmetros estão presentes em quase todos os estudos que visam estabelecer parâmetros
reprodutivos (ARANTES et al., 2011; BONCOMPAGNI-JÚNIOR et al., 2013;
NORMANDO et al., 2009).
Outro fator de previsão está relacionado ao carujo do surubim, os pescadores
relataram que quando o rio está enchendo e eles visualizam o surubim carujando, os
pescadores sabem que o rio irá “vazar” ou baixar o seu nível, da mesma maneira, quando o rio
está “vazando” e eles visualizavam o carujo o mesmo irá encher. Os pescadores afirmaram
com convicção que este fenômeno ocorria com 100% de acerto, contudo atualmente com o
baixo estoque desta espécie, quase não se visualiza seu carujo, portanto sem este indicador
eles não conseguem mais determinar a dinâmica do rio.
Estes dois exemplos ilustram como gerar novos insights ou hipóteses testáveis para a
ciência aplicada, Berkes (1999) já citava trabalhos que buscavam uma nova perspectiva, seja
na busca por estes insights ou um componente espiritual e pessoal ausente na ecologia
científica. O autor ainda ressalta que estes esforços são em grande parte resultado do interesse
107
no CET, uma vez que representa a experiência adquirida através de milhares de anos de
contato direto dos humanos com a natureza.
4.3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste breve capítulo buscou-se demonstrar através de exemplos práticos, como a
integração dos pescadores e seu Conhecimento Ecológico Tradicional podem contribuir para
uma gestão da pesca mais próxima da realidade e igualitária e corresponsável. Assim,
procurou-se citar alguns dos benefícios que se obtém trazendo os usuários para fazerem parte
do processo de gestão ambiental, uma vez que a gestão convencional não tem cumprido o seu
objetivo. Trabalhos como de Moller et al., (2004) atribuem o usual descumprimento da
legislação, e a falta de participação dos usuários no processo de gestão. Desta maneira, inserir
os diversos usuários dos recursos, no processo de gestão, é uma alternativa frente ao modelo
vigente que é ineficiente e ineficaz.
Entretanto, falta a “vontade” dos órgãos legisladores do Estado de Minas Gerais em
descentralizar a gestão, que é o principal entrave para que de fato haja a inserção dos usuários
no processo de gerenciamento dos recursos pesqueiros. Houve tentativas de promover o
diálogo entre os diversos usuários dos recursos na bacia do São Francisco, entretanto os
únicos locutores foram os órgãos governamentais (SOBRINHO; THÉ, 2012). Enquanto não
houver alterações no sistema de gestão vigente da pesca para uma gestão participativa, os
recursos naturais associados estarão sob o risco de uma “tragédia dos comuns” (HARDIN,
1968), a qual pressupõe que os usuários em seu egoísmo façam o uso dos recursos naturais até
sua exaustão. Este fato ocorre devido à falta de recursos financeiros e humanos por parte do
Estado para fiscalizar toda a extensão geográfica da bacia, fazendo com que o recurso seja de
fato de “livre acesso”.
A pouca iniciativa da participação popular e a baixa estima da população e/ou a sua
marginalização, são fatores que também dificultam a implantação dos sistemas de gestão
compartilhada e comunitária no São Francisco (GUTBERLET et al., 2007; KALIKOSKI;
SEIXAS; ALMUDI, 2009). Entretanto, existem exemplos da mobilização de pescadores na
busca por mudanças, em alguns municípios (Buritis-MG, Pedras de Maria da Cruz-MG e
Penedo-BA), os pescadores e pescadoras tem tornado ativo a sua participação em reuniões e
workshops para discutir a busca por soluções de seus problemas (GUTBERLET; SEIXAS,
2003 apud GUTBERLET et al., 2007).
As comunidades de pescadores do Brasil tem sofrido com o enfraquecimento político
e com a marginalização no processo de gestão dos recursos pesqueiros, necessitando em
108
muitos casos de passar por um processo de capacitação para a criação e a manutenção da
gestão compartilhada (KALIKOSKI; SEIXAS; ALMUDI, 2009).
Os órgãos governamentais e seus agentes também precisam estar preparados para
atuarem num processo de gestão participativa (KALIKOSKI; SATTERFIELD, 2004 apud
KALIKOSKI; SEIXAS; ALMUDI, 2009), como o Brasil sempre adotou uma gestão
centralizada, o reestabelecimento de uma relação de confiança entre comunidades e governo é
a chave para alcançar a gestão compartilhada no país (KALIKOSKI; SEIXAS; ALMUDI,
2009).
Percebe-se que para alcançar a gestão compartilhada da pesca é necessário um longo
caminho, demanda articulação das comunidades e usuários e a facilitação dos órgãos
governamentais. Portanto, inserir o usuário do recurso no processo de gestão, dando direito de
voz e voto é uma alternativa possível e tem gerado resultados positivos para diversos locais
como na Amazônia e no Estuário de Cananéia-SP (CASTELLO et al., 2009; FERNANDEZ;
THÉ, 2013; ISAAC; CERDEIRA, 2004; MACHADO et al., 2011; VIANA et al., 2004).
Tendo em vista que a gestão pesqueira do Brasil ainda é centralizada nos órgãos
governamentais e que existem sinais de sobre-explotação em diversos estoques (DIAS-
NETO, 2010), frente a estes fatos, conclui –se é o momento certo de buscar as mudanças
necessárias para a preservação dos recursos pesqueiros, das comunidades pesqueiras, do seu
conhecimento e da sua cultura e estabilidade social dos pescadores.
4.4 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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