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LIBAMO João Batista: Eu creio, nós cremos: Tratado da fé. São Paulo: Loyola, 2000.478 pp., 22,5 X 16 em. Coleção Theologica ISBN: 85-15-02093-9. Mais uma vez, as faculdades e institutos de Teologia do Brasil con- tam com uma significativa contribui- ção para seus cursos de Teologia Fundamental. Sempre lidando com a escassez de bons textos e sobretu- do bons manuais em português, tra- ta-se de uma enorme ajuda o lança- mento recente, pelas Ed. Loyola, do livro "Eu creio, nós cremos. Tratado da fé", do conhecido teólogo jesuíta J.B. Libanio. O autor é bem conhecido por sua abundante produção bibliográfica, publica da em português e traduzida em várias línguas. Vem, além disso, publicando regularmente sobre temas ligados à Teologia Fundamental (d. Formação da consciência crítica, Petrópolis: Vozes, 1981; Teologia da Libertação: roteiro didático, São Pau- lo: Loyola, 1987; Fé e Política. Au- tonomias especificas e articulações mútuas, São Paulo: Loyola, 1985).Mais recentemente, na década de 90, publi- cou dois livros que cumpririam, en- tão, o papel de manuais para profes- sores e alunos do tratado de Teologia Fundamental: Teologia da Revelação a partir da modernidade, São Paulo: Loyola, 1992;com A .MURAD, Intro- dução à Teologia: perfil, enfoques, tarefas, São Paulo: Loyola, 1996. O livro que ora resenhamos é composto na mesma linha destes dois últimos. Pretende oferecer um manu- al para o curso de Teologia Funda- mental, já que, na Introdução, se re- fere explicitamente a um curso, situ- ado no primeiro ciclo de uma Facul- dade de Teologia (p. 9). E o autor deixa claro que seu objetivo é ofere- cer uma formação básica teórica de natureza sistemática da teologia da Igreja Católica (d. p. 9). A estrutura e composição do li- vro obedece aos mesmos critérios de didática e clareza dos dois anterior- mente citados. Após o tema desen- volvido em cada capítulo, o leitor pode encontrar, no final, uma biblio- grafia temática cuidadosamente se- lecionada e didaticamente organiza- da, separando artigos de livros, e li- vros básicos de livros complementa- res. Encontrará, além disso, sugestões de dinâmicas de aprofundamento, com breves textos sugeridos, a fim de poder verificar o grau de assimi- lação daquilo que foi lido e apreen- dido. Ao final, um roteiro de auto- avaliação do curso e outro de avali- ação objetiva e coletiva, seguido de uma série de frases significativas sobre o tema da fé permitem a pro- fessores e alunos verificar o aprovei- tamento do percurso andado. Este recurso - característico dos manuais de teologia produzidos por J.B. Libanio - será de grande ajuda

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LIBAMO João Batista: Eu creio, nós cremos: Tratado da fé. São Paulo: Loyola,2000.478 pp., 22,5 X 16 em. Coleção Theologica ISBN: 85-15-02093-9.

Mais uma vez, as faculdades einstitutos de Teologia do Brasil con-tam com uma significativa contribui-ção para seus cursos de TeologiaFundamental. Sempre lidando coma escassez de bons textos e sobretu-do bons manuais em português, tra-ta-se de uma enorme ajuda o lança-mento recente, pelas Ed. Loyola, dolivro "Eu creio, nós cremos. Tratadoda fé", do conhecido teólogo jesuítaJ.B. Libanio.

O autor é bem conhecido por suaabundante produção bibliográfica,publica da em português e traduzidaem várias línguas. Vem, além disso,publicando regularmente sobre temasligados à Teologia Fundamental (d.Formação da consciência crítica,Petrópolis: Vozes, 1981; Teologia daLibertação: roteiro didático, São Pau-lo: Loyola, 1987; Fé e Política. Au-tonomias especificas e articulaçõesmútuas, São Paulo: Loyola, 1985).Maisrecentemente, na década de 90, publi-cou dois livros que cumpririam, en-tão, o papel de manuais para profes-sores e alunos do tratado de TeologiaFundamental: Teologia da Revelaçãoa partir da modernidade, São Paulo:Loyola, 1992;com A .MURAD, Intro-dução à Teologia: perfil, enfoques,tarefas, São Paulo: Loyola, 1996.

O livro que ora resenhamos écomposto na mesma linha destes dois

últimos. Pretende oferecer um manu-al para o curso de Teologia Funda-mental, já que, na Introdução, se re-fere explicitamente a um curso, situ-ado no primeiro ciclo de uma Facul-dade de Teologia (p. 9). E o autordeixa claro que seu objetivo é ofere-cer uma formação básica teórica denatureza sistemática da teologia daIgreja Católica (d. p. 9).

A estrutura e composição do li-vro obedece aos mesmos critérios dedidática e clareza dos dois anterior-mente citados. Após o tema desen-volvido em cada capítulo, o leitorpode encontrar, no final, uma biblio-grafia temática cuidadosamente se-lecionada e didaticamente organiza-da, separando artigos de livros, e li-vros básicos de livros complementa-res. Encontrará, além disso, sugestõesde dinâmicas de aprofundamento,com breves textos sugeridos, a fimde poder verificar o grau de assimi-lação daquilo que foi lido e apreen-dido. Ao final, um roteiro de auto-avaliação do curso e outro de avali-ação objetiva e coletiva, seguido deuma série de frases significativassobre o tema da fé permitem a pro-fessores e alunos verificar o aprovei-tamento do percurso andado.

Este recurso - característico dosmanuais de teologia produzidos porJ.B. Libanio - será de grande ajuda

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para professores e alunos de Teolo-gia Fundamental, que terão ao alcan-ce das mãos e dos olhos os instru-mentos para trabalhar e fazer cami-nhar o processo pedagógico do cur-so. Mesmo enriquecidas e modifica-das de outras maneiras e com outroselementos, as presentes sugestõesservirão como ponto de partida daorganização didática.

Quanto ao conteúdo da obra, di-vidida em três grandes partes: r. Eucreio; lI. Nós cremos; lI!. Desafios atu-ais, encontra-se repartida equilibra-damente, sendo que as duas primei-ras partes - mais longas e alentadas- fornecem fundamentação, respec-tivamente, para a dimensão pessoal(Eu creio) e ec!esial (Nós cremos) dafé; e a terceira apresenta três dosgrandes desafios com os quais a fécristã é confrontada hoje: a impor-tância da perspectíva holística e eco-lógica que se sucede a uma perspec-tiva mais antropocêntrica na análiseda experiência de fé (Fé cósmica); odiálogo inter-religioso (O diálogoentre as religiões); e a perspectiva dalibertação, que traz para o centro dareflexão a interação entre fé e políti-ca (Nós cremos na perspectiva dalibertação). Neste último, o autor re-toma e amplia a reflexão já feita epublicada em seu livro de 1985, Fé epolítica, por nós já citado aqui.

Em relação aos livros recentespublicados sobre o tema, o livro deJ.B.Libanio merece alguns destaques:

1. Parece-nos de vital importânciae autêntica ajuda para professores eestudantes de hoje os quatro primei-ros itens da primeira parte, que ana-lisa a passagem da experiência de fédentro de um contexto sociologica-mente cristão para a complexidade docontexto moderno e/ou pós-moderno,na sua complexidade de secularização,ateísmo, indiferentismo religioso e

ec!osão de um "novo"sagrado. Pare-ce-nos que a reflexão que o Autor aífaz sobre toda a questão da nova sub-jetividade e experiência é de funda-mental importância não só para oestudo do Tratado da Teologia Fun-damental, mas para todos os temasda Teologia Sistemática que virão nodecorrer do curso que se seguirá aeste primeiro passo.

2. O Autor dedica importantespáginas (em número e em qualidade)à dimensão trinitária da fé. Embora a"consciência" trinitária da Teologia vácrescendo consideravelmente nos úl-timos anos, é confortador ver já des-de o tratado da Teologia Fundamen-tal uma sólida reflexão sobre tal di-mensão, que configura todo o edifí-cio da fé cristã, e prepara para a re-flexão sobre o mesmo mistériotrinitário, que virá no decorrer domesmo curso.

3. Na segunda parte, é muito fe-liz o enlace que o Autor realiza como Tratado da Revelação, retomandoas categorias fundamentais de inspi-ração, inerrância e canonicidade. Istopermite ao estudante de teologiacompreender os dois tratados talcomo são e devem ser: ou seja, umúnico e mesmo tratado com duas par-tes distintas e situar sua experiênciade fé, única e irrepetível dentro dagrande corrente de fé da Igreja.

4. Os desafios atuais selecionadospor J.B. Libanio são igualmente deextrema felicidade. Trata-se, certa-mente, das três mais importantesquestões com as quais a fé deve sedefrontar no mundo de hoje, com-plexo e pluralista. A abordagem doautor dá adequada conta da novida-de do desafio e abre pistas para queo leitor e a comunidade teológicapossam continuar a reflexão a partirdo caminho aberto e traçado. Resta-ria por acrescentar, a nosso ver, o

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desafio da emergência do laicato edentro dele, da mulher, como novoprotagonista visível da fé na Igreja.Parece-nos ser um tema relevante eum desafio mordente. No entanto,

espera-se que outros, na esteira deJ.B. Libanio, possam debruçar-se so-bre ele.

GONZÁLEZ de CARDEDAL, Olegario: La entraiia deZ cristianismo,Salamanca: Secretariado Trinitario, 1997. 952 pp., 23 X 15,5 em. ISBN84-88643-33-0.

o livro é uma apresentação glo-bal do Cristianismo, em seus elemen-tos e princípios essenciais, a partirde sua raiz e na sua estrutura origi-nária, levando em consideração o seuconteúdo teológico, a sua gênese his-tórica e sua significação existencial.É assim que o A. descreve sua inten-ção fundamental.

Esta obra se insere numa tradi-ção que desde o século XVI vem in-dagando pela essência do Cristianis-mo, sobretudo depois de tanto tem-po em que acumulou gigantescaquantidade de elementos culturais. OA. evita a palavra "essência" porjulgá-Ia vinculada ao mundo dascoisas, enquanto o Cristianismo re-monta, em seu núcleo fundamental,a uma pessoa. Por isso, prefere otermo "entranhas". Enquanto a teo-logia francesa valoriza mais a dimen-são histórica, a teologia alemã valo-riza a conceitualização filosófica; ateologia espanhola focaliza aintencionalidade pessoal, mostrandoa profunda comunhão de destinoentre Deus e o ser humano, a dimen-são encarnatória e entranhável doCristianismo.

A trajetória do livro parte desseenraizamento de Deus e do homemem Cristo, para subir até às manifes-tações históricas do Cristianismo. Éesta raiz que torna inteligível a ri-queza de tantas instituições e situa-ções que daí surgiram. Como tarefa

da teologia de hoje, o A. entendetentar a superação das distânciasexistentes entre história e dogma,enquanto relato evangélico e pensa-mento metafísico, piedade individu-al e pertença à Igreja, vivência histó-rica e vivência cristã, articulandoambos os pólos.

O A. quer entender a trajetóriada consciência moderna desde oRenascimento até nossos dias, e mos-trar os conteúdos essenciais da fé emreferência e diálogo com tal consci-ência. Parte da exterioridade históri-ca para chegar à interioridade pesso-al, abrindo-se para o mais-além dametafísica. O Cristianismo pressupõeessas três ordens: transcendência,historicidade e interioridade; põe emjogo os dinamismos da pessoa: me-mória, inteligência e vontade; atuali-za os três tempos do ser humano:passado, presente e futuro; e abre-seao mistério de Deus como Princípioabsoluto (Pai), como figura na histó-ria (Cristo), como Dom na interio-ridade (Espírito Santo). Esta é a lógi-ca que determina as três partes dolivro.

Não se trata de uma apologéticademonstrativa do Cristianismo, nemmesmo dedutiva de seus princípiosgerais a serem aceitos. O Cristianis-mo não necessita de demonstraçãoteórica nem de verificação empírica,mas de uma interpretação intelectu-al e uma experiência real. Não se faz

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nenhuma demonstração da fé, masuma "mostração". O livro quer seruma ponte entre a teologia científicae a piedade cristã num estilo, segun-do o A., "edificante, crítico e medita-tivo".

Como se vê, é um programa gran-dioso pelas intenções e volumoso naconcretização para além de 900 pági-nas. É um rico manancial teológico.Obra de um autor maduro de longae respeitada carreira teológico-pasto-ral, concretizada em trabalhos reco-nhecidos.

Para exprimir essas três preocu-pações básicas da obra, o A. distinguetrês termos de uma mesma raiz: cris-tianismo, cristandade e "cristianía".

Por cristianismo entende o prin-cípio histórico teológico. É a realida-de objetiva, derivada da pessoa deCristo para o mundo enquanto fatohistórico, proposta de verdade resul-tante da autodoação divina, determi-nação da existência humana e cunha-gem do futuro. É uma religião uni-versal, histórico-revelada, dogmática,escatológica, integral, comunitária,objetivada. Implica fatos históricos,verdade teológica e promessa esca-tológica anteriores.A Igreja é mais que as realidadesestruturais instituídas por Cristomediante o Espírito e a ação dosapóstolos nos seus inícios. Ela assu-me figuras diversas ao longo da his-tória por sua inserção nas culturas esociedades. Ao longo de dez séculos,a Igreja assume uma realidade soci-al. É a unidade religiosa e culturaldos povos do Ocidente, unidos poruma comunidade de destino e porinteresses comuns, formando umasociedade em que se engloba tanto ocultural ~ religioso, como o jurídico,econômico e político. Nesse momen-to, surge a Cristandade como a uni-dade formada por todos os batizados,determinada pelos mesmos princípi-os, regida pelos mesmos pastores e

príncipes, orientada aos mesmos fins.A Cristandade é a realidade forma-da por todos os povos cristãos quevão acrescentando um sentido deidentidade e pertença comum à fé. Éuma idéia, uma comunidade de na-ções, um âmbito territorial, um pro-jeto espiritual, interesses históricos eeconômicos. É mais e menos que oCristianismo. A Cristandade é prin-cípio comunitário institucional. É afigura histórica, a expressão públicaverificável, a realidade coletiva einstitucional que o Cristianismo tomaquando deixa de ser uma palavraanunciada para ser uma palavra apli-cada à vida e pensada.

Como projeto de unificação entrerealidade humana e fermento cristão,a Cristandade tem no século XIII seuponto mais alto com todas as suascontradições, sobretudo quandoEvangelho e poder se desposam.

Para exprimir uma terceira reali-dade diferente, o A. forjou o neologis-mo castelhano "cristianía". É o princí-pio subjetivo pessoal. É a realizaçãopessoal e criadora da realidade cristãcomo vida e como vivência no sujeitoque crê. O Cristianismo é somente realquando a autocomunicação de Deusao ser humano chega a cada pessoa,e esta o acolhe. A Igreja está a servi-ço dessa realidade cristã.

O livro se divide em três partes,segundo a estrutura trinitária. Não éuma consideração de Deus em simesmo, mas na sua relação com oser humano. Começa traçando rápi-do itinerário da relação entre Deus eo homem. O Cristianismo presente éresultado de longo percurso, desde avontade explícita de Jesus, passandopela história de vinte séculos de Igre-ja, cuja figura atual está marcadapelos séculos mais recentes damodernidade. Por isso, o A. estuda ahistória particular de Deus na Euro-pa. Indica pontos fundamentais des-sa história recente da relação entre o

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homem e Deus. O ponto de partidaé a autonomia do homem moderno.Em seguida, acena aos ateísmosmetodológico, real e postulatório. Noentanto, o homem é também memó-ria, conhecimento e desejo de Deus.O final do processo produziu umadesnaturalização de Deus, com vári-as conseqüências, delineando assimuma tarefa específica para a teolo-gia. Prosseguindo, o A. descreve omovimento oposto do "reclame deDeus" para fundar a moral, parasuscitar as grandes criações e paraintegrar as tensões irreconciliáveis daexistência.

Num capítulo ulterior, estuda-sea realidade de Deus. Na origem doCristianismo está a revelação deDeus. Esta está intimamente associa-da no Ocidente à pessoa de Jesus e àIgreja. Só nessa interligação com Je-sus e com a Igreja é que se pode fa-lar de Deus. Religação que faz onúcleo da fé cristã. A modernidadeintroduz separação entre essas reali-dades, deslocando a objetividade dasmediações para a subjetividade daconsciência na vivência da fé.

No processo de compreensão deDeus, os ocidentais trabalham comduas instâncias: a história de Israel ea meta física grega. A teologia cristãsurge como resultado da integraçãodessas duas correntes de pensamen-to. Toda a história do Ocidente é umaexplicitação desse encontro entre ametafísica grega e a história da sal-vação, a memória de Israel e o con-ceito da Grécia. O A. continua suareflexão percorrendo pensadores damodernidade que marcaram a com-preensão de Deus: Lutero, Descartes,Pascal, Hegel, Kierkegaard, S. Joãoda Cruz, Kant. Ora apresenta o su-jeito diante de Deus, ora a tensãoentre razão natural e coração intuiti-vo, entre o Deus da certeza e o damoralidade.

Em outro capítulo, o A. retoma agrande questão levantada pelos mo-dernos sobre a "essência do Cristia-nismo". Aponta duas fases no esta-belecimento do dado cristão: umadeterminação objetiva de seu conteú-do dogmático diante do judaísmo epaganismo e a reflexão subjetiva naera moderna, quando já estavamperdidas algumas evidências objeti-vas da fé cristã.

Tendo esses dois pontos em men-te, o A. segue o percurso histórico emque a determinação objetiva se esta-belece no Novo Testamento, naPatrística e na Teologia Medieval. Aoutra vertente subjetiva tem seus iní-cios no final da Idade Média com osmovimentos radicais de pobreza. Oséculo XVI conta com as figuras deErasmo e Lutero, na linha da buscado "puro evangelho". O A. continuaseu itinerário passando por Kant,Rousseau, Hegel, Schleiermacher,Harnack, indicando a novidade decada um a respeito da questão daessência do Cristianismo. O séculoXXvive uma virada. Barth, Guardini,Bonhoffer são nomes desse momen-to. Unamuno merece um parágrafo àparte. A questão da "essência doCatolicismo" tem também sua histó-ria e encontra em F. Heiler, K. Adame H. de Lubac momentos altos. O ca-pítulo termina com a virada exegéticada segunda metade do século XX ecom o Concílio Vaticano lI.

O lugar da Igreja é o assunto doquarto capítulo. Este é o um proble-ma crucial da Igreja: por quê Igreja,para quê Igreja, quando o homempode manter uma relação direta comDeus? Qual o por quê da Igreja parauma sociedade que atingiu a maiori-dade? O livro toca questões como:Jesus contra a Igreja; relação Igreja emundo, passando pela identificação,oposição e encontro-colaboração apartir da diferença. O texto nem sem-

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pre é transparente; às vezes tem so-brecarga de idéias.

Encerrando essa primeira parte,um capítulo apresenta o Cristianismocomo caminho do homem a Deus ede Deus ao homem. Há intentos, jáno final do século XIX (O. Wilde,Nietzsche) de buscar um caminhopara além do Cristianismo e damodernidade, retornando à Europapré-cristã. Antecipa-se à pós-moder-nidade. A consciência clássica, cristãe moderna tinham caminhos, metas eobjetivos. A pós-modernidade rompecom esse universo de idéias e ideais.O A. não entra em definições da pós-modernidade. Apresenta duas respos-tas à pergunta sobre qual é a relaçãodo homem pós-moderno com Deus:rechaço de Deus como um dos abso-lutos recebidos da modernidade eu-ropéia egocêntrica e universalizante,ou silêncio, esquecimento de Deus.

A segunda parte trata de JesusCristo. O Cristianismo é antes detudo a pessoa histórica de Jesus. Doreconhecimento dessa pessoa o Cris-tianismo nasce como proposta uni-versal de salvação que se desenca-deia pelo desvelamento da origem,e, pela antecipação do fim, uma novacompreensão do ser (meta física), doser humano (antropologia), de Deus(teologia) e do sentido de toda histó-ria (escatologia). O grande paradoxodo Cristianismo, que escandaliza amodernidade é ser um fato particu-lar de alcance universal. Cristo é oUniversal Concreto. O olhar cristãoora vai enfocar o concreto de Jesus(teologia francesa) ora seu universal(teologia alemã).

Um primeiro capítulo dessa Il"parte trata da figura de Jesus numaleitura histórica, teológica esoteriológica. Estuda os relatos, osfatos históricos e seu significado, suacondição judaica, sua mensagem so-bre o Reino, suas parábolas, o signi-ficado de sua morte na cruz, sua

ressurreição e aparições, seu sentidoe a força de seu Evangelho. Toca aquestão da ruptura entre história efé, na modernidade. Aprofunda emseguida a pessoa de Jesus como Ver-bo, profeta, taumaturgo, poeta, mes-tre, iniciador de uma comunidade deculto, mártir, ressuscitado, sacramen-to de Deus, modelo de vida, sua di-mensão escatológica e cósmica. Cadaitem revela uma face desse homem-Deus plural que foi Jesus.

Terminando o capítulo sobre afigura de Jesus, dedica páginas àcomunidade de vida a seu redor,desde seus inícios. Em relação a Je-sus, existe a "analogia cristológica"entre a maiêutica e a dialética. Elenos transcende (portanto, não se tra-ta de maiêutica), mas se fez humano(portanto, não cabe a dialética). Co-nhecer a figura histórica de Jesus,aceitar sua doutrina, seguir-lhe oexemplo, crer na sua pessoa, estabe-lecer comunhão com sua vida, soli-dariedade com sua causa, participan-do de sua vida divina trinitária: eiscomo ser cristão.

No sétimo capítulo, o A. abordaa Eucaristia na seqüência da vida deJesus. Seus seguidores recolhem osgestos de sua vida, recordam suaspalavras e repetem o que ele fez nanoite antes de ser entregue. Aí per-cebem o sentido da vida de Jesuscomo dom pela salvação da humani-dade. A Eucaristia é criação de Jesuse recriação da Igreja, que assume todaa experiência do Jesus pré-pascal, omandato da última ceia, a presença ea comensalidade do ressuscitado, areunião dos discípulos, a experiên-cia do Espírito, o envio missionário.Ela é a conseqüência última daEncarnação, aproximando-se ao má-ximo de nós.

Esta parte termina com um longocapítulo sobre o significado da mor-te de Cristo sob o expressivo subtítu-lo: símbolo, crime e mistério. E um

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outro se concentra sobre as duaspalavras primigênias em torno dasquais gira o Cristianismo: Deus ehomem, Deus feito homem, amor deDeus e a Deus, ao Homem-Deus, aopróximo. Cada binômio encerra todauma riqueza de reflexão, No fundo,o Cristianismo é a religião do Amorna sua ampla extensão.

A lI!" parte é consagrada ao Espí:rito Santo, a Igreja e ao Mundo. Eclaro que a Igreja e o mundo estive-ram já presentes no livro sob váriosaspectos. Agora recebem uma ênfaseespecial na parte dedicada ao Espíri-to, experimentado especialmente pelaconsciência cristã dentro da comuni-dade. Insere essa reflexão sobre oEspírito na história espiritual doOcidente com suas vicissitudes, emque ora o Espírito é esquecido, ora éexaltado. Vê-o na compreensão deDeus, de Jesus Cristo, na sua presen-ça depois da glorificação de Cristo.Retoma a imagem de Irineu, das duasmãos do Pai - o Filho e o Espírito.É o Espírito da promessa. O A. tra-balha critérios para identificar ediscernir sua presença, sobretudo nasua relação com Cristo. Termina ocapítulo décimo relacionando o Es-pírito com a consumação do mundo.

Todo um capítulo é dedicado àatualização da Revelação, como obrado Espírito na sua função interio-rizante, enquanto Cristo cumpre afunção exteriorizante. As mediaçõesatualizadoras da revelação tem con-dições objetivas e subjetivas. Aí aIgreja cumpre papel de relevo. Estecapítulo termina com um parágrafosobre a permanência na verdade ena ação no coração do mundo.

No capítulo XII, o A. estuda asrelações entre Igreía e Sociedade ci-

vil analisando as contribuições es-pe~íficas da Igrejas e suas formasconcretas.

O livro termina com um toqueescatológico: o destino do homem ea vida no Espírito. Breve reflexãofecha o livro. Recolhe o itineráriopercorrido, de pensar diante de Deus,de pensar a realidade a partir deDeus, de pensar o homem com Deuse pensar Deus tal qual ele se nosrevelou no Filho e no Espírito Santo.

É uma obra material e teologica-mente abrangente. O A. expõe todauma visão teológico-sistemática, sobum prisma extremamente europeu,escrito a partir da Europa e para aEuropa. Os grandes problemas queafetam o lIlo Mundo não são trata-dos, como a libertação dos pobres eo diálogo inter-religioso. O A. conju-ga o conhecimento dos teólogos ~filósofos clássicos e modernos. Ehomem de vasta cultura. Através desuas referências percebe-se sua pre-ferência pelos clássicos gregos, pelosgrandes teólogos da Antigüidade(Santo Agostinho), por Santo Tomás,pelos filósofos, teólogos, místicosmodernos (Lutero, João da Cruz,Teresa de Ávila, von Balthasar,Rahner, Barth, Kant, Hegel, Guardini,Kierkegaard, Nietzsche, Ratzinger).Entre os modernos, predomina apresença dos pensadores da subjeti-vidade; porém mais ausentes sào osda dimensão crítico-social.

O livro oferece muito materialpara aprofundar temas concretos dateologia, É fácil de leitura. Abundan-te. Obra de consulta.

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STARK, Rodney / BAINBRIDGE, William Sims: The Future of Religion:Seeularization, revival and eult formation. Berkely / Los Angeles /London: University of California Press,1985. 571 pp., 23 X 15,5 em.ISBN 0-520-05731-7.

o livro tem teses provocantessobre o futuro da religião e a seCll!a-rização, criticando a corrente dos ci-entistas sociais incapazes de enten-der o fenômeno religioso. O anúnciodo fim da religião foi simplesmenteuma ilusão. A secularização é a cor-rente principal dos tempos moder-nos, mas não é um desenvolvimentomoderno e não anuncia o fim dareligião. Antes, a secularização é umprocesso que acontece em todas aseconomias religiosas, em todas associedades. A secularização crescenuma parte da sociedade, e noutraparte, em contraposição, acontece aintensificação religiosa; o ritmo dasecularização ora cresce, ora decresce.As organizações religiosas dominan-tes tendem a "mundanizar-se", a se-cularizar-se. Porém o resultado não éo fim da religião, mas o deslocamentode chances entre as religiões comocrenças, de modo que as mais "secu-lares" são suplantadas pelas religiõesmais vigorosas e menos seculares.

A secularização é um dos três pro-cessos fundamentais e inter-relaciona-dos que afeta constantemente todas aseconomias religiosas. O processo desecularização é autolimitante e geradois processos contrabalançadores.Um deles é o "revival", reavivamento.As organizações religiosas que so-frem erosão pela secularização, dei-xam uma parte substancial de seumercado para a demanda de umareligião menos secularizada; deman-da esta que provoca surtos de seitas.A secularização estimula a inovaçãoreligiosa, provoca a formação denovas tradições religiosas. Sempreestão aparecendo novas religiões nassociedades.

Os cientistas sociais falharam, sejapor causa de seu desejo de que asreligiões desaparecessem, seja pornão reconheceram o caráter dinâmi-co das economias religiosas.

Como se vê, são teses muito inte-ressantes. A secularização é parte deum fenômeno religioso que é tantoocaso como aurora. As fontes da re-ligião estão se deslocando, mas agrandeza religiosa permanece relati-vamente constante. Os AA. traba-lham com o conceito de religião dosestudiosos do século XIX,segundo oqual as religiões envolvem algumaconcepção de seres, mundo e forçasobrenaturais; o sobrenatural atua demodo que os eventos e as condiçõesna terra sejam influenciados por ele.Entende a religião como organizaçõeshumanas comprometidas primaria-mente em prover compensações/re-tribuições gerais baseadas em cren-ças sobrenaturais.

Depois de trabalhar o conceitoreligião, os AA. estudam as formasprimárias de desvio dos movimen-tos religiosos: seitas e cultos, distin-tos das instituições religiosas ou igre-jas. Entre os cultos, há os que sãomovimentos religiosos plenamentedesenvolvidos e outros são gruposou atividades que representam ma-gia e não religião. Para entender osmovimentos religiosos, os AA. exa-minam a mútua influência entre elese seu contexto. Na Ia parte, dedicam-se à economia religiosa dos USA eCanadá, na sua diversidade de cren-ças, e à tensão entre elas. Descrevemtambém o ambiente sócio-culturalpara entenderem a competição entreelas. Trabalham as variações regio-nais nas religiões convencionais.

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Assim se prepara a análise para sa-ber onde e quando as seitas e cultosprosperam.

Na Ira parte o estudo trata dasseitas, explicando porque as organi-zações religiosas tendem a entrar embaixa tensão com seu ambiente eassim serem incapazes de provercompensações eficazes para a penú-ria como os "grupos em alta tensão"oferecem. Assim se entende as cir-cunstâncias em que os cismas religi-osos se desenvolvem - as seitas sãogrupos cismáticos que deixam umgrupo de tensão baixa para formarum de mais alta tensão. Estuda-setambém de onde e porque surgemos líderes das seitas. E raro quemovimentos religiosos irrompam dasseitas. Estas constituem ameaça crô-nica para as igrejas monopolistas. OsAA. estudam a Igreja medieval e seusmuitos modos para recanalizar osmovimentos sectários e responder àsnecessidades religiosas das pessoas.A Reforma não foi uma brusca rup-tura na universalidade da Igreja ca-tólica. A Igreja nunca foi capaz demonopolizar as atividades religiosasnem de prover adequada magia oueliminar competidores mágicos. Tudoisso culminou na Inquisição.

Ainda nesta parte, o A. estuda osmovimentos de seitas nascidas nosUSA: quantas, onde estão, seu tama-nho, quantas crescem, quais são asmais comuns variedades. Em segui-da, com o seu instrumental teórico,os AA. analisam os mecanismos quetransformam seitas em igrejas.

A ma parte é dedicada aos cultos,como eles se formam. Baseados em501 movimentos atuais de culto, osAA. se perguntam: onde florescem;os que se formam agora em compa-ração com o passado; se estão se tor-nando mais freqüentes. Estudamtambém grupos que não são (ainda)plenamente movimentos de culto.Analisam-se grupos que tiveram su-

cessos na década de 20, mostrandoque os de hoje não têm nada de real-mente novo na formação de novasreligiões. A pesquisa se concentra, emseguida, em dois movimentos de cul-to atuais de muito êxito: Cientologia eMeditação Transcendental.

A IV· parte diz respeito ao recru-tamento para as seitas e cultos. Comoesses movimentos divergentes atraemnovos membros? Emergem a impor-tância das relações interpessoais parao processo de recrutamento, a rele-vância das crenças religiosas e ocul-tas para casais de amigos, o impactodos números de conversões para acarreira dos líderes e sucesso doscultos. Sem uma média alta, os fun-dadores de culto e seu círculo inicialde seguidores, provavelmente per-dem ânimo depois de 20 ou 30 anosde esforço. Os cultos brotam,preferentemente, nas sociedadesmaiores, mas têm sucesso nas meno-res. O surto de crenças e movimen-tos ocultos se deve menos a umanova espécie de "consciência" do queà fraqueza nas religiões convencio-nais. Pode-se concluir que nenhumsecular sistema de sentido, provêexplicações gerais sobre a vida comoa religião fornece. A partir de infor-mações dos freqüenta dores de cul-tos, conclui-se que nas atuais conjun-turas os cultos podem ter grandeêxito no recrutamento de pessoas quesão totalmente normais.

Na V·lparte, é feito um balançode todos os temas tratados. Os AA.desenvolvem sua tese fundamental:a secularização, isto é, o enfraqueci-mento das organizações de muitasigrejas maiores, propicia inovaçãoreligiosa. O futuro não será um tem-po sem religião, mas de novas religi-ões. Seitas e cultos surgem no vácuocriado pelas igrejas fracas. Baseadosem dados de hoje e da década de 20,mostram como isto acontece. Valepara os USA como para o Canadá,

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onde vigora outro sistema religioso.Tenta tal teoria na Europa, que é umoutro contexto. Apesar de muitoscientistas sociais terem predito a fa-lência da religião, as teses dos AA.são, porém, confirmadas também naEuropa. Mostram como crenças na-turalistas são incapazes de substituircrenças sobrenaturais, mesmo emcontextos de movimentos políticosradicais, de estados oficialmenteateus. Tais políticos radicais são sus-ceptíveis de freqüentar cultos e sei-tas. Movimentos políticos transfor-maram-se freqüentemente em movi-mentos religiosos bem desenvolvi-dos. Os AA. examinam porque esta-dos totalitários e oficialmente ateusfracassaram nos esforços de erradicara religião. "Martelar numa religião é

martelar um prego. Quanto mais for-te, tanto mais ele penetra".

As teses do livro são realmenteprovocantes, com toques de origina-lidade; permanecem atuais, mesmotendo sido este livro escrito há 15anos. Hoje aparecem ainda mais cla-ramente muitas de suas teses. Seucampo principal de pesquisa foramos EE. UU. e o Canadá; porém mui-tas de suas conclusões valem paraoutros contextos, embora a baseempírica venha de lá, pois revela seuinteresse maior pela América do Nor-te. É lido, certamente com proveito,em nossos contextos, já que sofremosgrande influência dos EE. UU.

TRESIDDER, JACK: Simbols and tizcir IIlcanings. London: Dunean Baird,2000. 184 pp., 28, 5 X 20, 5 em. ISBN 1-900131-98-6.

Antes de tudo, um livro grafica-mente muito belo. Edição luxuosa.Conjugação harmônica de pequenostextos com mais de 1000 fotografiasartísticas e símbolos bem escolhidos,como o próprio título revela.

O A. explorou oito campos se-mânticos. O primeiro é a criação enela o ser humano, masculino e fe-minino com seu corpo e partes. Osegundo trata da mente, da alma edas realidades sobrenaturais. O ter-ceiro abarca o mundo dos animais.O quarto é o reino vegetal. O quintocontempla os espíritos do cosmos. Osexto cataloga artes e artefatos. Osétimo recolhe modelos e realidadesgráficas. Finalmente, refere-se aosgrandes sistemas simbólicos religio-sos, cabalísticos, numéricos. Em cadaum desses campos significativos, oA. escolheu os símbolos que lhe pa-receram mais importantes. Assim p.ex., no primeiro capítulo, além de

falar da criação, em geral, inclui aágua, os gigantes (Titãs), o ovo deavestruz e cósmico; no princípio fe-minino trata da mãe, da mulher, darainha, do losango, da Mandorla(auréola em forma de amêndoa), daYoni (vulva), da concha; o princípiomasculino é relacionado com o pai,o falo, o mastro de maio, a barba; arespeito do corpo, abordam-se a nu-dez, a boca, os dentes, o umbigo, abarriga, os intestinos, os pés, a lín-gua ameaçadora, o cabelo - longo,madeixa, rabo de cavalo, corte, cor-, coração - ardente, traspassado-, sangue, cabeça - decapitada -,mão - direita e esquerda -, olho- terceiro olho, olho mau, múltiplosolhos -, prazo da morte - tempodo pai, da criança, longevidade, ca-veira, esqueleto, roda, cavaleiro damorte. Como se vê, um tema se asso-cia a amplíssimas relações, a inúme-ras simbologias. O mesmo procedi-

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mento acontece nos outros campossemânticos.

Com efeito, as explicações, ape-sar de sua brevidade, passeiam porespaços culturais muito amplos. Nãose restringem, nem de longe, aomundo simbólico cristão. Freqüen-tam as culturas antigas, primitivase clássicas, sem deixar de aludirtambém a compreensões já de nos-sos tempos.

É livro de consulta. Permite oleitor aguçar seu sentido simbólico,ao descrever-lhe a enorme capacida-de dos antigos de falarem por meiode símbolos. Num mundo, extrema-mente formalizado, matematizado emarcado pelas ciências positivas, ummergulho no universo simbólico detantas culturas é altamente sadio. Li-vros como estes contribuem para des-pertar em nós todos a sensibilidadepara apreciar os símbolos, além defornecer dados de muita erudição.

Realidades que pertencem a nos-so quotidiano e às quais nunca atri-buímos nenhum valor simbólico, massimplesmente funcional, se iluminamà luz de tradições culturais antigasnuma perspectiva figurativa.

Não deixaria de ser interessanteque pais e professores passassempara a geração nova a riqueza des-ses símbolos. Assim poderemoshumanizar mais a nova geração efazê-Ia mais crítica diante do avilta-mento do símbolo no mundo da pro-paganda. O símbolo pertence às ex-periências da gratuidade, da estéti-ca, do religioso, enquanto omarqueting é absolutamente interes-sado na venda de mercadorias. Osímbolo eleva-nos, a propaganda faz-nos aterrissar no cotidiano dos obje-tos. Este livro serve para purificar-nos da intoxicação propagandística.

BüFF, Leonardo: Depois de 500 anos que Brasil queremos? Petrópolis:Vozes, 2000. pp., 127,21 X 13,5 em. ISBN 85.326.2328-X.

L. Boff sabe dizer coisas novas eprovocantes sobre temas antigos. Esteé um livro que veio para acordar asconsciências acomodadas com o pro-cesso histórico do Brasil. Cansadosde tantas lutas, desiludidos de tan-tas derrotas, acabrunhados por tan-tas estatísticas desanimadoras, osbrasileiros, pouco a pouco, vão seacostumando com a triste sina denossa história.

A lembrança dos 500 anos doBrasil terá a valência positiva ounegativa conforme for interpretada.Visto a partir da praia, onde estavamos nativos, o Brasil foi invadido esubjugado. Não se transformou numanação, mas num entreposto comerci-

aI e depois numa colônia para enri-quecer a metrópole. A partir dascara veJas, o Brasil só começou a exis-tir com o descobrimento. Antes era afase da barbárie. O Brasil visto a par-tir do Brasil é uma invenção, já inici-ada e muito mais ainda a tomar cor-po. Apesar de todas as oposições fez-se aqui um experimento civilizacionalsingular étnico-cultural com suascontradições. Tem tudo para dar cer-to, mas até agora foi vítima de umaelite gananciosa.

Encontra-se diante da alternativade prolongar nesse novo patamar deglobalização a colonização ou reto-mar a construção interrompida cominventividade.

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Quatro invasões marcaram essepaís: iniciou-se no século XVI com acolonização. No século XIX vieramos emigrantes europeus. A terceirase deu nos anos trinta do século XX,consolidando-se no regime militarpor meio da industrialização moder-na de substituição em estreita associ-ação com o capital transnacional.Estamos vivendo agora a quarta in-vasão da globalização econômica como neoliberalismo levando o Brasil auma submissão ao mercado global.

No Brasil convive uma cultura dadominação por meio da reproduçãodos centros do poder com uma cul-tura da resistência e da libertação dossetores dominados em vista da cons-trução de uma cidadania popular ede um novo projeto alternativo.

A cidadania é uma realidadecomplexa que implica uma dimen-são econômico-produtiva, político-participativa, popular, de solidarie-dade e consciência planetária.

Há vários projetos de cidadania.Há um projeto neoliberal demundialização por meio do merca-do, gerando uma cidadania seletiva.Há um projeto do capitalismo nacio-nalista mais inclusivo, mas com ascontradições do capitalismo e um pro-jeto da democracia social, popular deplena cidadania e solidariedade.

É necessário construir este últi-mo projeto Brasil alternativo e nãouma cópia dependente dos centrosfinanceiros e políticos. Devem-se tra-balhar três eixos dialeticamente im-bricados: a educação libertadora, ademocracia integral e o desenvolvi-mento social. Propõe-se uma mudan-ça de paradigma de desenvolvimen-to. A produção econômica é apenaspara possibilitar um desenvolvimen-to cultural, social e espiritual do serhumano. A democracia deve ser vi-

vida em todos os níveis. O cidadãoprecisa dispor de poder, saber cola-borar e auto-educar-se para a cida-dania. A educação também deve serintegral. Uma educação da práxis.

Uma transformação profunda dopaís não se faz sem a articulaçãoentre os pobres e a inteligência. Estadeve conscientizar-se de sua dívidasocial para com o povo. A universi-dade não pode permanecer fechadaem si, mas ir ao encontro da socieda-de. Está aí o desafio de criar umBrasil alternativo. Troca de saberes,horizonte utópico são ingredientes detal projeto.

L. Boff termina o livro analisan-do a contribuição da dimensão espi-ritual nesse processo de gestar o novoBrasil. Articula uma visão mais am-pla e profunda de espiritualidadecom a base religiosa de nosso povo.Comparando com a Roma imperial,que assimilava as religiões dos con-quistados, o Brasil poderá ser umaRoma tropical com sua enorme rique-za religiosa e com sua alma tolerantee sincrética. Além de construir-se, oBrasil pode contribuir para o proces-so de globalização com sua parteprópria. Não se trata de sonhos qui-méricos, mas possíveis.

O livro deixa uma mensagem deesperança e alento tanto mais neces-sária quanto mais se vive num desâ-nimo globalizado diante do Leviatãneoliberal.

O livro pode ser utilizado comgrande proveito nas escolas, nas dis-cussões de grupos. Junto está umapequena dinâmica com perguntasque facilmente se tornarão pólos deprovocantes debates. Vale a penaconferir.

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CUTIÉRREZ, Custava: Teologia da libertação: Perspectivas. Traduçãodo espanhol, nona edição, de 1996por Yvone Maria de Campos Teixeirada Silva e Marcos Marcionilo, São Paulo: Loyola, 2000. 366 pp., 21 X14 em. ISBN 85-15-02036-X.

CUTIÉRREZ, Custavo: Beber em seu próprio poço: Itinerário espiritu-al de um povo. Tradução da edição peruana sem data por YvoneMaria de Campos Teixeira da Silva. São Paulo: Loyola, 2000. 172 pp.,21 X 14 em. ISBN 85-15-02035-1.

CUTIÉRREZ, Custava: O Deus da vida. Tradução da edição peruanade 1989 por Cabriel C. Calaehe SI, e Marcos J. Marcionilo. São Paulo:Loyola, 1992. 239 pp., 21 X 14 em. ISBN 85-15-002445-2.

CUTIÉRREZ, Custavo, A Verdade vos libertará: Confrontos. Traduçãoda edição peruana de 1990 por Cilmar Saint'Clair Ribeiro. São Paulo:Loyola, 2000. 211 pp. 21X 14 em. ISBN 85-15-02053-X.

o mercado dos livros segue, semmais, as regras da oferta e demanda.E a demanda funciona muito à basede sensacionalismos, de ondas, deeventos-notícia. Assim houve tempoem que os livros produzidos pelosprincipais corifeus da teologia da li-bertação ocupavam a primeira linhade vendagem. Seus livros eramreeditados inúmeras vezes.

Este clima passou sobretudo emrelação às obras diretamente ligadasà temática da libertação social e suasimplicações. Por isso, muitos de seustítulos foram lentamente desapare-cendo dos catálogos das editoras.

Eis que as edições Loyola queremir na contramão do mercado e resol-vem relançar, nos dias de hoje, asobras mais conhecidas de G.Gutiérrez. Tal gesto veste-se de ou-tro significado que o mercadológico.Fez-me lembrar a mais lídima tradi-ção judaica.

O livro do Êxodo prescreve acelebração da Páscoa. E oferece aospais de família subsídios para pode-rem responder quando os filhos per-guntarem: - "Que rito é esse queestais celebrando"? Então os paisdirão: - "É o sacrifício da Páscoa

para o Senhor que passou diante dascasas dos filhos de Israel no Egito,quando golpeou o Egito e libertounossas casas" (Ex 12, 26s).

Assim a geração de amanhã nosperguntará: - "Que é teologia dalibertação"? "Quem foi GustavoGutiérrez"? Os pais poderão respon-der, compulsando essas obrasreeditadas pela Loyola: a teologia dalibertação nasceu por volta dos anos70 numa situação difícil para os po-bres e queria pensar a fé cristã emvista da libertação deles; e houve umteólogo peruano que colocou essasprimeiras reflexões no papel, dandoinício a todo um novo método defazer teologia; esta teologia cresceu evicejou durante décadas, sofreu mui-tas incompreensões dentro e fora daIgreja; seus principais teólogos foramperseguidos; armaram-Ihes proces-sos; tiveram que silenciar-se; foramalijados de encontros importantes,simplesmente porque pensavam as-sim. E a história então poderá sercontada, recontada.

Vejo esses quatro livros de G.Gutiérrez como uma memória dessacaminhada. Evidentemente Teologiada libertação é o livro fundante. Deu

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as coordenadas para os teólogos se-guintes irem elaborando seus livros.Livro programático. Vale a pena sem-pre voltar a ele. A distância não odesatualiza, mas faz-nos captar omomento-nascente da teologia da li-bertação.

Beber em seu próprio poço apon-ta para a espiritualidade que é a almade qualquer teologia. Tanto maisimportante foi esta obra quanto maisse acusava de a teologia da liberta-ção ser uma sociologia, não terespiritualidade nem mística. No má-ximo aceitavam que fosse uma teolo-gia fundamental, mas nunca uma te-ologia que irrigasse todos os camposda teologia da mina pura da experi-ência que o povo pobre faz de Deus ese toma exemplar para todos nós.

Deus da vida é o oposto da opres-são, da dominação sobre os pobres.É Ele que está sempre ao lado dospobres num imenso protesto contratanta morte. Nada tão atual quandoa caravana que conduz os pobres auma maior pobreza ainda continuacomandada por novas forças, massempre ligadas ao capital. Tenha onome que tiver.

A Verdade vos libertará. Livroque sintetiza muito do pensamentodo A. quando quis apresentar suasidéias diante de uma banca para aobtenção do doutorado. Obra madu-ra. É a teologia latino-americanaapresentando-se em nível de igual-dade diante da intelligentzia teológi-ca européia.

Reeditar esses livros, não deixá-los desaparecer dos olhos, é querermanter acesa a lâmpada da liberta-ção quando tanto se faz para apagá-Ia. Considero esses livros clássicos.A palavra "clássico", na suaetimologia, vem muito bem a calharcom o sentido dessas obras.Classicum é o toque da trombeta. É amesma raiz de "jubileu" em hebraico.

Toca-se a trombeta para anunciarboas notícias ou maus agouros. Obinômio que sempre acompanhou aobra de Gustavo Gutiérrez foi: "de-núncia" e "anúncio". Ele toca a trom-beta denunciando a injustiça sob assuas mais diversas formas. Mas nes-sa injustiça preocupa-lhe a sorte dospobres. Há injustiças entre os pró-prios ricos. Roubam-se mutuamente.Mas eles sabem se defender. E como!

Dói-nos quando a injustiça atin-ge a viúva, o órfão, o desprotegido.A quem recorrer? G. Gutiérrez temum pequenino livro com o provocan-te título: Onde dormirão dos pobres?Ele se inspira em belíssima passagemdo Êxodo em que Deus se prontificaa ser o defensor dos pobres.

O Classicum anuncia a libertaçãodos pobres. Vem despertar os ador-mecidos diante de realidade tão gri-tante.

Clássico tem a ver também com"classe", "sala de aula". Os "clássi-cos" são aqueles livros que merecemem todo tempo ser lidos pelos alu-nos. Estão os grandes filósofosPIatão,Aristóteles, Santo Agostinho, SantoTomás, ete. para testemunhar a ver-dade de ser um clássico. Suas obrasaté hoje são lidas, comentadas, estu-dadas.

Dentro da simplicidade e pobrezade nosso universo teológico latino-americano, estas obras de G. Gutiérrezmerecem o nome de "clássicos". Me-recem ser sempre compulsadas pelosalunos para aí encontrarem a inspira-ção primeira do que foi um dos mo-mentos mais gloriosos e originais denossa teologia.Por esse lado, são obrasque necessitam ser sempre reeditadas,independentemente das ondasmercadológicas.

Com alegria e esperança sauda-mos esta retomada editorial paramanter viva a memória dos iníciosda teologia da libertação! E como a

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pobreza continua a crescer, os pobresse multiplicam e são ainda mais ex-cluídos, o acicate da teologia da li-bertação se faz absolutamente neces-sário para manter despertas as ener-gias espirituais de compromisso comos pobres. O esquecimento dos po-bres é o esquecimento do Deus dospobres, do Jesus crucificado. Assim

entendeu Paulo como ponto centralde seu confronto de fé com Pedro:"Apenas teríamos de nos lembrar dospobres, o que eu tive muito cuidadode fazer" (GI 2, 10).

DELUMEAU, Jean: Que reste-t-íl du paradis? París: Fayard, 2000. 535pp. 23,5 x 15,5 em. ISBN 2-213-60714-9.

O A. dá prosseguimento a suapesquisa anterior sobre o medo (LaPellr en Occident. XIV-XVIII síecles,Paris, Fayard, 1978; tradução brasi-leira: Hístóría do medo no Ocídente1300-1800, São Paulo, Companhia dasLetras, 1989; Le péché el Ia peLl r,Paris: Fayard,1983) e o sentimento desegurança (RasslIrer et protéger, Pa-ris: Fayard, 1989; L'Avell el lI'pardon, Paris: Fayard, 1990). Fechan-do a trílogia, dedica-se ao tema doparaíso, sobre o qual escreveu a his-tória (Une hístoíre dll paradis: LeJardin des délices, Paris: Fayard,1992)e mil anos de felicidade (Mílle Ans debanhellr, Paris: Fayard, 1995). Encer-rando o projeto, temos este livro.

Estas obras do A. refletem vastís-sima pesquisa de material abundantede iconografia, hinos litúrgicos, visõesnarrativas, textos místicos, imagens,obras de arte, poesias, ete. Ele mostracomo o paraíso não é nenhum temainsípido, enquanto que o medo, o in-ferno teriam sido temas muito maiscarregados de emoção e bem traba-lhados . Restringe-se ao paraíso cris-tão. Material já abundantíssimo e demuita beleza. A esperança cristã deuma eternidade de felicidade susten-tou uma civilização inteira durantelongo período.

A abundância do material mos-tra a relevãncia do tema. O livro quer

ser uma reabilitação do paraíso cris-tão, da beleza e da variedade dasobras em todos os gêneros que elefez surgir e também da inspiraçãoreligiosa que permitiu concebê-Ias.

Não há contradição para o A.entre esta obra e as anteriores quecarregaram as tintas escuras. São doisdiscursos que conviveram por muitotempo. O A. estuda as obras de ar-tes, convencido de que elas não sãoredutíveis simplesmente à arte pelaarte, nem são simples divertimentode artistas geniais. Estão cheias dealusões complexas, traduzindo o so-brenatural. Devem ser lidas no códi-go religioso, como ele tentou fazer.

Mesmo que haja dependência daarte em relação aos textos blblicos,ela não é servil. A imagem tem suaespecificidade e autonomia. O livronão é uma história da arte, mas en-saio a respeito do imaginárioparadisíaco e uma tentativa de ilu-minar o modo como a esperança seinseriu num contexto cultural emconstante evolução. Importante é vera influência da música, da nova as-tronomia na visão do paraíso.

O livro divide-se em quatro par-tes: Ofuscamento, felicidades, trans-formações e desconstrução, com si-nal interrogativo. O livro detém-sesobre o estudo do belíssimo quadro:

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o Retábulo do Cordeiro Místico de J.- H. Van Eyck (1432)- (Gand, Bélgi-ca), nas suas duas primeiras partes.Aí se descreve pormenorizadamenteo país da felicidade eterna a partir dosescritos fundadores, das visões e dasnarrativas de viagens no além. Comoos textos em ligação com o retábulorevelam, este constituiu verdadeirasuma das certezas paradisíacas que sesomaram desde o início da era cristãaté o século XV.

As representações do além entre-laçam-se com a civilização de modoque as suas transformações as afe-tam. Sob o título de transformação, oA. estuda especialmente a influênciada promoção da música, o uso daperspectiva, o êxito prodigioso dascúpulas, o nascimento do protestan-tismo e da ciência moderna sobre odestino do paraíso. Houve um mo-mento em que o céu e o paraíso jánão coincidiram. A partir do séculoXVIIIo além já não se exprimiu emforma de figuras. E o A. pergunta-sepelo significado e conseqüências detal mudança.

No decorrer da história do Oci-dente, o A. mostra como o sobrena-tural e o real concreto se implicarammutuamente. O sobrenatural infor-mava o cotidiano e por sua vez o

mundo terrestre povoava com suasimagens o mundo celeste. A imagemreligiosa se referia ao sagrado. De-pois, a partir do Renascimento, elaentrou no campo da arte, insinuan-do-se uma laicização crescente emtodos os domínios. A revolução ci-entífica do século XVIIcolocou o céue a terra sob as mesmas leis. O céudeixou de ser o "lugar de Deus". Oparaíso começou desde então a serpensado como "não-lugar". A fé cris-tã assumiu esta visão do "não-lugar",mas não lhe negou a realidade, fa-zendo dele o futuro para além damorte por meio da ressurreição.

A perda da representação do céufoi pesada. O cristão hoje é chamadoa compensá-Ia pela esperança da re-alização das promessas de Jesus quevão desde as bem-aventuranças atéa ressurreição.

É escusado dizer que se trata deuma obra monumental, produzida porum dos maiores historiadores católi-cos da atualidade. O leitor delicia-secom a riqueza de informações. Asanálises são profundas, originais, ofe-recendo uma idéia ampla sobre o temado paraíso na simbologia cristã.

BROCKELMAN, Paul: Cosmology and Creation: The spiritualsignificanee of the eontemporary eosmology. New York / Oxford:Oxford University, 1999. 194 pp., 21,5 X 14,5 em. ISBN 0-19-511990-8.

Tema muito atual e provocante.O A. tece três narrativas sobre a ori-gem e realidade do mundo. Narrati-vas que pretendem responder asperguntas básicas: como as coisasvêm à existência? Como elas vêm aser o que são? Como o futuro podeoferecer-nosuma direção satisfatória?Toda comunidade necessita de uma

narrativa. E hojenecessitamosde uma.O A. se pergunta: qual é a estória(story) que o universo nos conta?

Inicia-se com a narrativa tradici-onal apresentada na versão bíblica dolivro de Gênesis. É o relato da cria-ção muito conhecido. Alude a outrasnarrativas religiosas mitológicas.Nelas as culturas antigas descobri-

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am a amplidão da realidade em queviviam, o sentido e destino de suasvidas. Com a distinção do duplo ní-vel sagrado e profano nos mitos,mune-se o A. de uma gramáticahermenêutica para entender comonessas culturas as pessoas viviam ocotidiano à luz de uma realidademais profunda, última, sagrada.

Sobre tais textos faz pertinente,clara e bem elaborada reflexão sobremitologia, mito, símbolo, metáfora. Agrande metáfora dos relatos tradici-onais é a "mãe fértil" ou o "paiamoroso", segundo a qual as pesso-as percebiam a vida ordinária comodependente dela Não se trata de nadamuito original, mas extremamentedidático e bem fundamentado. O li-vro está realmente bem fornecido emcitações longas de autores diversifi-cados, revelando por parte do A.domínio amplo do assunto.

A segunda narrativa é a leiturasecularizan te, da modernidadeiluminista, que encontra em Descar-tes - várias vezes citado como pro-tagonista - expressão significativa.Seculariza, desmitifica a leitura ante-rior, transformando o mundo numobjeto a ser dominado, separado dosujeito espiritual, manipulado peloser humano, que é entendido comoseu senhor. Tal relato científico per-mitiu o avanço das ciências, mastrouxe um encurtamento da dimen-são espiritual do ser humano. O li-vro é uma crítica desse reducionismomoderno e uma proposta nova, ba-seada na cosmologia contemporâneae sua dimensão espiritual.

Com efeito, o livro dedica prati-camente a sua maior parte a estanova narrativa, elaborada pelacosmologia contemporânea. Aquiestá a sua novidade. Mostra a pro-funda ligação entre essa novacosmologia e uma compreensão espi-ritual. Nesse contexto de oposiçãoentre o relato moderno da ciência

cartesiana e o da cosmologia contem-porânea, trata do tema da existênciade Deus, do sentido de transcendência,do significado da vida nova (vidatransformada). O A. expõe num doscapítulos, de maneira brilhante econcisa, esse relato das ciências mo-dernas (naturais e humanas), basea-do especialmente na física quântica,astrofísica, geologia, biologia, ecolo-gia, psicologia. O capítulo sobre a"nova cosmologia" serve de excelen-te introdução para quem queradentrar-se nessa nova perspectivacientífica. Consegue expor com cla-reza os princípios basilares de talcosmologia.

O A. dá muita importância a ex-periência da Transcendência, sobre-tudo sob a forma do maravilhoso(wonder), mostrando a diferença emrelação à perspectiva da prova dacausalidade. Na base do maravilho-so, está o "respeito pelo milagre doser". No fundo, é a experiênciaarquetípica: "por que existe, existe".Dedica todo um capítulo paraenuclear a experiência do maravilho-so, recorrendo à fenomenologia exis-tencial.

Explicita também muito bem osdois contextos diferentes que permi-tiram uma preocupação com a provada existência de Deus e a busca deuma experiência do Transcendente.A nova cosmologia favorece a segun-da maneira de aproximar-se de Deus.Em dado momento, faz a afirmaçãoprovocativa, mas absolutamente cor-reta. "Deus não existe, ele é a exis-tência". Dedica longas páginas refe-rentes à dimensão de mistério, de"ser" de Deus.

Merecem ser valorizados os pe-quenos resumos, muito bem feitos,que o A. introduz em vários capítu-los depois de uma longa explicitaçãodo tema. Sente-se a preocupação coma clareza e didaticidade, o que valo-riza muito a obra.

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Ela se situa na perspectiva deuma nova compreensão da relaçãoentre Deus e mundo. Busca numavisão pan-en-teísta um caminho quese afasta tanto do transcendentalismotradicional quanto do panteísmo in-sinuante. Citando V. Havel e muitosoutros, o A. crê que nossa tarefa hojeé descobrir um sentido espiritual da"realidade mais ampla" ou da "or-dem meta física" a que pertencemos.A tragédia da vida moderna é quereprimimos e suprimimos qualqueridéia ou experiência de uma realida-de transcendente a nós mesmos quepodia prover um sentido maior emais inclusivo para nossas vidas.Perceber o "milagre de ser" que en-volve todas as coisas é ir além dosconfins fechados, niilistas e degra-dantes de nossas sociedades moder-nas, tecnológicas e consumistas eencontrar um papel e destino huma-nos com sentido dentro da natureza

como um todo. Isso buscavam osmitos tradicionais. A narrativa mo-derna fez-nos perder tal compreen-são. Cabe redescobri-la à luz da nova"narrativa" científica da história daevolução, elaborada nas últimas dé-cadas, de significado científico e es-piritual. De fato, a nova cosmologiatorna possível perceber o maravilho-so, inexplicável e milagroso poder-para-ser (power-to-be) de tudo o queexiste. O encontro com essa visãoleva-nos a uma transformação devida e comportamento no nível indi-vidual e social e a uma abertura ecompaixão em relação a toda a cria-ção. O livro coloca-se destemidamen-te na linha de explicitar esta pers-pectiva. Por isso, é muito bem-vin-do.

GUÉHENNO, Jean-Marie: L'avenir de Ia liberté: La démoeratie dansIa mondialisation. Paris: Flammarion, 1999. 222 pp., 21 X 13, 5 em.ISBN 2-08-211579-8.

Advogado de profissão, dedicaesse livro a analisar onde se realiza averdadeira luta democrática. Ele sus-peita do triunfalismo que se seguiuà queda do comunismo. Uma demo-cracia satisfeita é uma democraciaameaçada. Distingue, logo de início,uma democracia considerada comotécnica, como método de limitação depoder, como preocupação com a li-berdade do indivíduo (liberdade dosmodernos) e uma democracia comovalor, como experiência partilhada depoder, como ambição de formar umacomunidade política (liberdade dosantigos). Não quer opô-Ias emborase valorize muito a segunda. Ambasliberdades são inseparáveis. Demo-cracia como valor é recordar a afir-

mação do bem comum, o dever detodos participarem na vida pública.O idiota para os atenienses era quemse devotava à vida privada e nobreera participar como homem livre navida da cidade. Os modernos vêema democracia como defesa contraautoritarismos a que a liberdade dosantigos poderia chegar. Por isso, sãonecessárias as duas liberdades e asduas faces da democracia. A demo-cracia do voto, da maioria sem umacomunidade humana pode destruira própria democracia, se lhe falta abase de comunidade política. Nasdemocracias adormecidas do mundodesenvolvido, o poder se tornadifuso, menos controlável de modoque a liberdade humana é ameaçada,

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menos pelo abuso de poder do quepor sua indeterminação.

O mercado global não cria comu-nidade global. Está a acontecer uma"des-intermediação" política à seme-lhança do mundo econômico - obanco coloca o investidor e tomadorde empréstimo em contacto diretosem assumir os riscos - possibilita-da pela revolução tecnológica. Desa-parecem as estruturas intermediári-as entre as pessoas e a globalidadedo mundo de modo elas se defron-tam com a globalização num senti-mento de embriaguês e/ou de angús-tia Essa análise o A. já a fizera emobra precedente (La fill de Iadr'mocrntie, Paris: Flammarion, 1995).

No presente livro o A. pretendedefinir as novas condições da demo-cracia na mundialização. Como cons-truir nela as comunidades políticasdo futuro?

A mundialização nos faz órfãos deuma comunidade herdada. Devemosconstrui-Ia. Passar de um mundo decomunidades de memória para ummundo de comunidades de escolha éuma liberdade pesada de suportar epara a qual estamos mal preparados(p. 16). Daí as fugas: no comunit-arismo, na xenofobia, na tirania.

Além disso, modificaram-se ascondições técnicas do funcionamen-to da democracia: as comunidadeshumanas já não se definem por umalógica unicamente territorial, os cír-culos do poder, seu campo de apli-cação e suas modalidades de contro-le não são os mesmos. Devem-seredefinir a liberdade dos modernos- conjunto de regras e procedimen-tos que garantem a liberdade dosindivíduos - e a dos antigos - cons-trução de um espaço público de en-contro dos cidadãos.

Para responder a tais perguntase definir a luta democrática hoje

deve-se analisar o significado domercado apresentado freqüentem entecomo matriz e modelo das comuni-dades futuras, estudar os efeitos con-cretos da desintermediação políticasobre as instituições públicas. Por queo mercado mundial não constrói umacomunidade mundial quando as pes-soas se encontram num terreno co-mum de concorrência? Quais as con-seqüências para o Estado, o tradicio-nal braço das comunidades políticas,num contexto em que as pessoas es-tão numa face-a-face com a globa-lidade?

Como se vê o livro trata de ques-tões sumamente interessantes. Divi-de-as em três grandes blocos: adesintermediação política, os novosterritórios da política e os cidadãosda mundialização.

No primeiro bloco sobre adesintermediação, estuda o mercadocom toda sua ilusão, a concorrênciacomo realidade-valor universal, ofuturo do Estado e a democracia di-reta. A política modifica seu campo.A desintermediação embaralhou nãosó as fronteiras territoriais dos Esta-dos-nações e mas também a distin-ção entre os interesses públicos eprivados, cessando de ser monopó-lio do Estado a gestão dos interessespúblicos. Novos espaços públicos,escapando à lógica nacional, apare-cem e se interpõem entre umamundialização abstrata e os indiví-duos fechados na sua solidão. A pró-pria natureza do poder muda e im-põe-lhe novos modos de controle.

No segundo bloco, consagrado àexploração dos novos territórios dapolítica: a empresa, o interesse geral einteresses públicos, o saber e poder, atransparência e o segredo, as comuni-dades virtuais e comunidades políti-cas. A questão é de ver como a partirdesses novos espaços públicos cons-truir comunidades políticas, articulan-

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do a liberdade dos modernos - cida-dãos consumidores da mundialização- e a dos antigos - experiência deuma comunidade política.

Finalmente, no terceiro bloco,pergunta-se como inventar os cida-dãos da mundialização. Aborda aquestão das comunidades de escolhae de memória comparando a demo-cracia americana e européia. Pois ademocracia americana quer ser umacomunidade de escolha, enquanto asdemocracias européias reconhecem aimportância das comunidades herda-das. Nem uma das duas é respostacabal aos desafios da mundialização.A experiência política nova em quese engajou a Europa tem um signifi-cado que supera a Europa. Pode aju-dar os homens a reconciliar as exi-gências da mundialização com a ne-cessidade de enraizamento nas comu-nidades particulares, fabricando nãopessoas de uma utopia global - se-ria totalitária -, mas de comunida-des particulares, em parte herdadas,em parte construídas, nas quais sereconhecerão. Nada de destruir as co-munidades particulares em benefícioda utopia totalitária de uma comuni-dade universal. São ilusões de cien-tistas. Sem dúvida, a evolução con-

temporânea parece pôr fim às cons-truções institucionais herdadas doRenascimento e da Ilustração, aoEstado-nação e às formas tradicionaisda soberania democrática. No entan-to, não dita nenhuma ordem políticaque dispense o trabalho construtivode novas instituições adaptadas aseus destinos particulares por meioda nossa razão. É tempo de colocarem dúvida a ideologia do mercado eas respostas que ela oferece à ques-tão da democracia. O livro terminacom um pequeno capítulo sobre ofuturo da liberdade.

É um livro muito rico em refle-xões e informações sobre os temasindicados acima. O A. manifesta ex-celente conhecimento da matéria,capacidade e clareza de comunicação.Nas avaliações críticas, mostra equi-líbrio, expondo os prós e contras dasposições. Com muito sentido de rea-lismo, coloca o leitor diante dos fa-tos com toda a sua crueza. Deixaespaço para ulteriores reflexões edebates. Cada tema merece realmen-te ser discu tido.

FLORISTÁN SAMANES, Cassiano - TAMAYO-ACOSTA, Juan-José(dirs.): Dicionário de Conceitos fundamentais do Cristianismo. Tradu-ção da edição espanhola de 1993 por Isabel Fontes Leal Ferreira eIvone de Jesus Barreto. São Paulo: Paulus. 1999.917 PP., 23,5 X 16 em.(Série Dicionários) ISBN 85-349-1298-X.

A editora Paulus oferece-nos natradução portuguesa uma obra rele-vante que apareceu na Espanha em1993.Não se trata de recenseá-Ia aqui,mas simplesmente de chamar a aten-ção do leitor brasileiro para mais esseinstrumento de trabalho no campoteológico.

Num mundo que nos inunda deinformações os dicionários temáticosse tornam cada vez mais importan-tes quando feitos com seriedade ecompetência. A natureza, os temas,os colaboradores desse dicionário deconceitos fundamentais do Cristianis-mo recomendam-no.

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A natureza do dicionário: sãoartigos razoavelmente amplos, o quefaz, portanto, necessária uma boaseleção de temas. O título já indicaque não se trata de um dicionário demuitos verbetes de breves informa-ções, mas de elaboração sucinta detemas fundamentais do Cristianismo.O francês diz que quem tem a esco-lha, tem a cruz. A escolha dos temaspode sempre ser criticada pelo quefalta e pelo que sobra. Mas é inevitá-vel que se selecionem os assuntosquando o quadro geral é o Cristia-nismo. No entanto, algumas ausên-cias podem ser mais sentidas. O títu-lo do dicionário menciona o termo"Cristianismo". E não há nenhumverbete especificamente sobre ele,nem sobre cristandade, nem sobre ofato cristão. Tal se faria necessáriopara situar o próprio dicionário. Euma outra ausência importante serefere ao "pentecostalismo" e ao atu-al fenômeno religioso que mereceri-am um tratamento e não ser apenastocados no verbete "seitas" ou bre-vemente em outros lugares.

Em geral, os temas estão muitobem escolhidos e cobrem realmentebem o espaço do Cristianismo. Oleitor encontra no dicionário os te-mas mais relevantes em torno darealidade cristã.

Os verbetes são escritos por au-tores diferentes, refletindo uma na-tural desigualdade. Uma impressãogeral é de que os autores espanhóis,embora mostrem especial atenção àproblemática da América Latina,desconhecem a literatura teológicabrasileira que não foi traduzida. As-sim, por exemplo, o artigo sobre re-ligiosidade popular não conhece aobra de R. Azzi e de Pedro AssisRibeiro de Oliveira, que são marcosreferenciais nesse estudo com posi-ções originais e consistentes, sem

falar da literatura sobre a religiosi-dade negra. Poderíamos multiplicaros exemplos.

Os autores são na sua imensamaioria espanhóis. Há alguns daAmérica Latina espanhola e dois bra-sileiros (L. Boff e H. Assmann). Des-ta maneira, o dicionário reflete omundo teológico da Espanha. Sãoautores que naturalmente conhecembem a literatura dos outros paíseseuropeus, aliás abundantemente ci-tada. Conhecem bem menos a litera-tura do outro lado do oceano, postose perceba nos organiza dores da obrauma sensibilidade para a teologia dalibertação e temas de nosso universosóciocultural. Há verbetes que refle-tem bem tal interesse e algumas abor-dagens aludem a essa literatura.

Esse dicionário constitui maisuma excelente obra de consulta. Ser-ve altamente para introduzir as pes-soas nos assuntos trabalhados, ofe-recendo sínteses claras e suficiente-mente amplas. O nível de informa-ção reflete a competência dos auto-res, nomes conhecidos e reconheci-dos na literatura teológica e afim.

Quanto à tradução, não se teve apreocupação de conferir a existência,em português, de citações feitas emespanhol. Até obras escritas em por-tuguês são citadas em espanhol, semque as tradutoras o indicassem. Na-turalmente tal conferição seria umtrabalho ingente, mas certamente fa-cilitaria um leitor menos adentradono universo bibliográfico teológico.

É uma obra que se faz necessáriaem toda biblioteca dos Institutos te-ológicos permitindo aos alunos umfácil acesso a temas da atualidadetrabalhados com seriedade e rigor.

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KONINGS, Johan. Evangelho segundo João: Amor e fidelidade.Petrópolis: Vozes / S. Leopoldo: Sinodal, 2000. 452 pp., 21 X 13,5 em.ISBN85.326.2305-0.

Ao falarmos de exegese joaninano Brasil, o nome que logo ocorre éo de Johan Konings. Com razão: suafamiliaridade com o IV Evangelhovem de longa data, desde a tese dedoutorado (A narrativa joanina noquadro da crítica literária, Lovaina1972), passando por diversas obrasde divulgação, até Evangelho segun-do João: Amor e fidelidade, editadoem 2000 por Vozes e Sinodal. Duascaracterísticas têm marcado a atua-ção do Autor. Primeira: seu espíritoeclesial; para ele, comunidade,liturgia, bíblia e catequese sempreandam juntas. Segunda: a capacidadede valorizar exegese competente comboa comunicação. Significativamente,este seu livro mais recente sai na co-leção "Comentário Bfblico", que sepropõe comentar os escritos de ma-neira séria mas sem academicismos,para atingir também pessoasengajadas, sem uma formação bíbli-ca superior. Os comentaristas procu-ram aprender sempre de novo, nosmeios populares, a repensar as prio-ridades; ir ao essencial, para além daletra, buscar a vida. Não é fácil, compouco espaço para justificar as pró-prias opções exegéticas, atingir, semchoques desnecessários, pessoas deculturas e escolaridade diferentes. OA. é o homem certo para esta tarefa.

O plano do livro tem poucas no-vidades. O Prefácio, de apenas umapágina, declara, em grandes linhas,objetivos e método da obra; de tãobreve, tem a rara chance de ser lidopelo usuário. A Introdução ocupa 67páginas, mais da metade dedicadasao evangelho em seu contexto. Textoe comentário seguem a repartiçãoclássica: Entrada (mais conhecida

como Prólogo), Livro dos Sinais, Li-vro da Glória, e Epílogo (cap.21). Aperícope da mulher adúltera é anali-sada à parte. No fim, um Vocabulá-rio histórico e exegético de 18 pági-nas traz 65 pequenos verbetes, preci-osos pela sabedoria e senso do es-sencial.

A tradução do Evangelho é a daCNBB (coordenada pelo próprio A.),com retoques, quando oportunos. EmJo 1 o Verbo passa a ser a Palavra.No Livro da Glória, em vez de ele-vado temos enaltecido. Em 6,5, ondevamos comprar passa a ser de ondevamos conseguir, recuperando a pa-lavra-chave joanina donde. Em 19,13é Pilatos que se sentou, não Jesus (éboa a respectiva nota 27). Para quenão vos escandalizeis de 16,1 passaa ser para que vossa fé não fiqueabalada. Várias vezes a tradução con-serva a expressão usual, mas é para-fraseada no comentário. Assim,"aquele que Jesus amava" é seu "ho-mem de confiança"; estar recostado"no regaço" de Jesus, significa estar"bem pertinho" dele; o jardim de 18,1é um sítio. Os exemplos poderiammultiplicar-se; são outros tantos si-nais de sensibilidade por comunica-ção adequada. Para o leitor que nãotiver curso superior alguns textos sãodifíceis: o primeiro parágrafo da p.67 (não só por causa do "platonismomédio"); o 4.2 da p. 69; a p. 83 quasetoda; expressões técnicas como "pas-sivo teológico" (p. 104), "profetasanteriores"(p. 264), YHWH (p. 336);o primeiro parágrafo do box da p.427.

Cá e acolá a tradução será discu-tível. Em 2,4 (as bodas de Caná), quedesejas de mim? transforma em ob-

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sequiosa oferta de ajuda uma expres-são que, embora com nuanças, su-gere divergência ou distanciamento;como diz o comentário, "Jesus pare-ce resistir à sugestão de sua mãe".Em 3,10 (Nicodemos), til és mestreem Israel, atenua o original: [entrenós dois, oficialmente,] º mestre deIsrael és til! Em 8,31, "os qlle tinhamacreditado" parece preferível a "osqlle tinham passado a crer", que in-sinua que eles ainda eram crentes(idem às pp. 215ss: tinham sido [nãoeram] crentes). Às pp. 248s, melhorfalar em reanimação que em ressllr-reição de Lázaro. Em 12,14 o contex-to sugere sentido adversativo para apartícula grega de, estabelecendoforte contraste: mas Jesus .... Em20,28, na profissão de fé de Tomé,falta o importante lhe.

O A. não visa só esclarecer: dadaa ocasião, gosta de alargar os IlOri-zontes do leitor. Para isto, distribuiao longo do livro 62 breves excursos,numerosos quadros e detalhes inte-ressantes; (mas fica devendo o por-quê da pomba em 1,32); bem como,esquemas (pp. 40.193.248), quadri-nhos (pp. 329 e 359!) e tabelas. Muitooportuna a comparação gráfica entrea cronologia dos últimos dias de Je-sus nos Sinóticos e em João; paramaior clareza, sugiro que o quadroseja Simplificado. Em termos de pe-dagogia pastoral, valham duas amos-tras: o lembrete sobre "a coragem detraduzir a linguagem da fé para no-vos tempos e novos ouvintes" (p. 24);e a explicação do que significa o"cumprimento das Escrituras" (p. 25).Quanto à teologia joallilla, muitohaveria a salientar: na Introdução, asseções sobre a índole própria do IVEvangelho (pp. 55-64) e a alternativacristã segundo João (65-68); o desta-que dado a palavras-chaves aparen-temente inócuas como de ollde epermanecer; as páginas sobre o Es-

pírito Santo (pp. 315-318); principal-mente, a insistência em ver ocristocentrismo de João como sendo,em última análise, um vigorosoteocentrismo, d. pp. 60.62.242 a 245;p. 172 (aqui, em vez de remeter paraa Introdução, § 5.1.3, não seria me-lhor citar §§ 3.3.5 e 3.3.7?). Merecemser citadas, ainda, as breves observa-ções que, ao longo do livro, abremtodo um leque de impulsos. Apenasum exemplo: corrigindo uma tendên-cia moralista bastante comum, o A.insiste que o "indicativo" da graçade Deus sempre precede o seu "im-perativo" (p. 291; também pp.296.330). É um dos princípios bási-cos da exegese judeu-cristã, salienta-do por Bultmann (eu dispensaria anota 1 sobre Bultmann, (p. 82) e,ecumenicamente, o citaria aqui).

Mais que outros livros, o QuartoEvangelho é uma "leitura sem fim"(p. 8): é como um hipertexto, todofeito de conexões, sempre aberto anovas paisagens. Neste sentido, ocomentário do A., amadurecido du-rante anos de pesquisa e ensino, tema cara do evangelho que comenta: éinstigante, e não só para marinhei-ros de primeira viagem. Suscita ques-tões de diversas ordens, que mere-cem mais espaço que o de umarecensão. Limito-me a elencar algu-mas.

1. O exegeta-comentador do IVEvangelho enfrenta uma difícil op-ção prévia: como situar-se diante dalinguagem fortemente simbólica doJoão? Que parâmetros temos pararespeitar a mentalidade semito-helenística de João sem cairmos emfantasias descabidas? Entre os auto-res, encontramos um amplo leque deabordagens, desde a leitura à luz dojudaísmo de F. MA]\;NS,passando porcomentários tipicamente ocidentaiscom moderado apelo ao simbólico,

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como os de R.E. BROWN e B. MAGGIONI,

até o recurso mais amplo à leiturasimbólica, à maneira de MATEOS /

BARRETO (que, para BROWN, "constro-em castelos no ar",d. Biblica (1982)291) ou, na outra vertente, a leituragermanicamente mais racional de umJürgen BECKER. o A. adota, a meu versabiamente, a linha balanceada dotipo BROWN e MAGGIONI.

2. A questão da linguagem teoló-gica. Estamos vivendo uma crise dasepistemologias, com a conseqüenterevolução lingüística. Como traduzirhoje as vigorosas profissões de féformuladas na comunidade joanina,para que expressem de maneira novaa mesma fé? Termos há longa dataconsagrados costumam revestir-se deuma aura de reverente mistério quenão pode ser desprezada; merecemser conservados enquanto ajudarema vivenciar o mistério da fé, não maisque isto. Assim, como vimos, em vezde Verbo, o A. usa Palavra. Nestamesma lógica, porém, por que nãoexpressar de outra maneira que aPalavra se fez carne (1,14)? Comoprofessar hoje que Jesus está pre-sente entre os seus graças ao Espíri-to? E a relação de Jesus com o Pai? Ea questão da linguagem "de dentro"?Claro, entre católicos é legítimo estejogo lingüístico sui generis que é a"comunicação dos idiomas". Temosum exemplo à p. 83: "num nível queprecede a criação, Jesus [ ] partici-pou com Deus na criação ". Acon-tece que Jesus é o nome da Palavraque se fez fraqueza humana em de-terminado momento da História;para evitar desnecessárias incompre-ensões e até problemas de fé, em vezde Jesus, não seria melhor dizer quea Palavra participou ..., como faz oPrólogo?

3. Especial discernimento pasto-ral merecem os textos bíblicos

"decepcionantes ": gostaríamos quefossem todos bem humanos, liberta-dores - segundo nosso modo depensar -; mas nem sempre é assim.Tomemos o caso da fraternidade emJoão. O IV Evangelho urge o amormútuo entre os membros da comu-nidade: é a grande prova dodiscipulado; dá coesão ao grupo; étestemunho e convite a que tambémoutros adiram a este discipulado.Mas estamos longe do amor ao "ou-tro", ao diferente e até inimigo, deque fala Mateus. o A. admite que Joinsiste no amor mútuo "ad intra" (pp.42.54ss.60s.64s.74e 326 nota 24); mashesita em problematizar esta limita-ção. Não fiquei convencido de que"o aprofundamento que Uo] produz/"'/ nos prepara muito bem para odiálogo com as religiões e mundivi-dências de hoje, porque João vai aoessencial" (p. 53). Prefiro as pondera-ções da p. 74. Pergunto: seria oportu-no dar mais um passo, chamando aatenção para o quanto esta restrição,mesmo contextualizada, é chocante?Esta transparência não poderia abrirperspectivas notáveis para o amadu-recimento do cristão adulto? Temosalgo de semelhante na resposta deJesus à sua mãe em Caná. Já comen-tamos a discutível tradução de Jo 2,4.Entretanto, o A. dá uma excelentepista para aprofundar o vigorquerigmático deste texto, a meu veraté como corretivo de certa mario-logia light.

4. O nó do conflito. O cristianis-mo separou-se do judaísmo em cli-ma fortemente polêmico. Ora, numapolêmica, a prudência manda ouviros dois lados. As fontes, tanto judai-cas como cristãs, têm que passar pelocrivo da contextualização na comple-xa história da época. O A. tem estecuidado. Repetidas vezes ele acentuanão só o conflito, mas sua centra-Iidade no IV Evangelho, principal-

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mente nos caps. 5-12. Como eixo dodesentendimento o A. aponta de umlado as grandes instituições do juda-ísmo de Jâmnia, o Templo e a Torá,do outro Jesus Cristo que, para seusdiscípulos, as substitui em sua pes-soa. Do Templo e seu culto o A. falacom freqüência, lembrando tambémo "pensamento do Templo", tão atu-ante no judaísmo proto-rabínico de-pois do fatídico ano 70. Há um as-pecto da Torá, porém, normalmenteesquecido pelos autores cristãos: o daTorá Oral. No judaísmo, até hoje, aTorá compreende as Escrituras (Toráshebikhtav) e, pelo menos de igualimportância, a Torá Oral (Torá shebeai pelo Esta representa a ininterruptacorrente de sábios interpretes, a tra-dição viva que, como a Escritura,remonta a Moisés; no séc. I está soba responsabilidade dos mestresfariseus, que interpretam e atualizama Torá Escrita em forma de leis. Écom esta Torá Oral (ainda em forma-ção, mais tarde redigida) que a co-munidade joanina rompe ostensiva-mente: em seu lugar coloca JesusCristo, o enviado plenipotenciário doPai; com ele começa uma nova "tra-dição oral" (mais tarde redigida). Ouseja: para a comunidade joanina, Je-sus desbanca a figura central do ju-daísmo, Moisés, e toda a Torá Oral,sem a qual a Escritura e o culto per-dem seu referencia!. O A. é dos rarosautores cristãos que apresentam aogrande público este fundamentalquadro hermenêutico; apenas, a meuver, poderia ser mais incisivo. Lem-bra que a Torá é escrita e oral; expli-citamente, porém, só o diz uma vez,entre parênteses (p. 56); duas outrasvezes o fato é comentado brevemente(pp. 25s e 280),mas sem explicitar quese trata da Torá Oral; no Vocabulárionão o menciona. Por ser este o nó doconflito, senti falta de um enfoqueespecífico, menos fragmentário, com

mais realce; por exemplo, quando dojudaísmo sinagogaI (pp. 45s) e no Vo-cabulário (Guerra judaica - Rabi /Rabínico - Torá). Tal aprofunda-mento, mesmo sucinto, ajudará acompreender a resistência dos judeusa uma mudança tão radical, justa-mente no período de sua grande cri-se de identidade. Ajudará também apercebermos que nossas costumeirascategorias fé/recusa são mais com-plexas do que parece. Por tudo isto,eu não diria que o divisor de águasentre João e o judaísmo formativo dosmestres são os deuterocanônicos (pp.25s): nestes, mais que o divisor deáguas eu veria uma sua conseqüên-cia. O divisor de águas é a autorida-de da Torá Oral e de seus mestres.

Estas reflexões nos levam ao queme parece um dos principais méri-tos do livro em análise. Como o A.deixa claro, o IV Evangelho não é nempodia ser antijudaico; mas foi habitu-almente lido como ta!. Deste modo,por dois mil anos, Jo foi talvez o livroque mais alimentou o antijudaísmo nomundo ... até hoje. Muito oportuna-mente o A. nos brinda com uma obraque respira um clima ao mesmo tem-po de fidelidade ao projeto de JesusCristo e de compreensão do "outro".Para nossos agentes de pastoral, é umalufada de ar puro no meio de tantapseudo-informação e malhação dojudaísmo. Vale frisar que não é só ojudaísmo que está em questão: é anossa atitude em relação ao "diferen-te" em geral; é nossa capacidade de"descentramento" (interessante a bre-ve indicação no fim do n.2, p.46; tam-bém 49).

Esta nova mentalidade pro-vocará beneficamente novos desdo-bramentos: é justo avaliarmos nega-tivamente todos os judeus que nãoaceitaram o Jesus Cristo proposto demaneira tão polêmica pela comuni-dade joanina? Não seria preciso

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reavaliar também as estratégias, tan-to dessa comunidade como deJâmnia? Compreender o quanto hou-ve de resistência nos dois lados?

Por fim, um desiderato e três su-gestões. O desideratum. Volta a cres-cer o número de agentes de pastoral eseminaristas que estudam hebraico egrego. Seria oportuno que biblistas,hebraístas e helenistas procurassempôr-se de acordo a respeito da trans-crição de palavras hebraicas e gregas.

As sugestões. 1. Nas suas 452páginas, o livro é um repertórioriquíssimo de informações e impul-sos; um índice analítico aumentariao aproveitamento desta riqueza. 2.Dada a impossibilidade de estender-se sobre aspectos importantes docontexto histórico do evangelho, nãoseria bom indicar algumas obras bá-

sicas capazes de suprir a lacuna? 3.Os itens 2 a 4 da Introdução (pp. 16-70)adiantam ou resolvem problemasque o leitor ainda não tem, enquantoatrasam a alegria do contato diretocom o texto do evangelho. Não seriamelhor deixar para o fim do volumetudo o que não for indispensávelpara a compreensão do texto?

Extrapolei os limites de umarecensão. Em grande parte, a culpa édo A.: seu livro é tão seminal, que oleitor se vê provocado a sempre no-vos desdobramentos. Recomendamosa obra a quantos têm a coragem dese desinstalar seguindo o itineráriode fé traçado por João, mas com es-tratégias e horizontes sempre novos.