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Pesca Brasil l 78 Feminino »Por: Janaína Quitério [email protected]

"Eu, mulher pescadora"

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Matéria publicada na Revista Pesca Brasil 17, em março de 2009. (Txt sem aplicação da Nova Ortografia) Assumindo a força da feminilidade, as mulheres abrem janelas no mercado de trabalho, reorganizam os papéis no lar e assumem atividades de esporte e lazer em espaços antes dominados por homens. Nada aconteceu num virar de páginas de livros: são mais de 150 anos de histórias de luta pela emancipação feminina

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»Por: Janaína Quitério [email protected]

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Assumindo a força da feminilidade, as mulheres abrem janelas no mercado de trabalho, reorganizam os papéis no lar e assumem atividades de esporte e lazer em espaços antes dominados por homens. Nada aconteceu num virar de páginas de livros: são

mais de 150 anos de histórias de luta pela emancipação feminina

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Até pouco tempo atrás, as mulheres ribeirinhas da Amazônia eram

proibidas de atuar em atividades pesqueiras devido ao mito do Panema — em tupi: que ou quem é infeliz na pesca e na caça. Assim, de acordo com a mitologia, a mulher que estivesse em período de menstruação, ao se aproximar do rio ou tocar em utensílios de trabalho de caça e pesca, ‘empanemaria’ os homens. Foi daí que se difundiu a lenda de que mulher em pescaria é sinônimo de azar. Se o mito foi sólido por muito tempo, agora se desmancha no ar. As próprias mulheres ribeirinhas superaram as cordas mitológicas e desempenham um papel econômico importante nas localidades onde moram, no interior da Amazônia. O exemplo é singular, mas representa a universalidade no início do século 21. Um passo após o outro: cada maçaneta virada não põe termo à questão. A mulher ocupa o espaço, mas ainda sobram dúvidas, preconceitos, olhares tortos. E ela continua lá, disposta e bem-humorada. Persistente e intuitiva. Mãe e líder. Chefe de família e amiga. Fragilidade da beleza e agressividade da sobrevivência, por mais que pareça, não são contraditórias, apenas a metáfora de novos tempos.

Para enfrentar preconceitos, as mulheres ainda precisam superar a própria intolerância feminina com o esporte-lazer de pesca. “Ami-gas acham que eu devia ter nasci-do homem, já me disseram isso”,

lamenta a pescadora Sônia

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Sônia Garrotti, em Salvador, com o “troféu” olho-de-boi

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Vara cor-de-rosa? Não existem ainda da-dos concretos sobre a evolução da participação feminina na pes-ca esportiva. A História ainda está devendo essa. Sabe-se que sempre foi uma atividade de lazer e esporte essencialmente masculina. Entretanto, já não é mais possível ignorar o papel das pescadoras nesse univer-so. É visível que hoje em dia há cada vez mais mãos femininas engrossando na briga com as criaturas das águas. Mas, existe diferença entre homem e mulher quando o assunto é pesca? — é a primeira curiosidade que vem à mente. Márcia Sousa Cassiano Ferreira mais do que mulher de pescador é pescadora desde

pequena. Apaixonada por

pesca de praia, ela compara: — A mulher não tem muita noção de direção, e para determinadas coisas o homem é mais detalhista, como a escolha de equipamentos ou na percep-ção de um canal. Mas o lado masculino não presta atenção nos detalhes: quando saio com meu marido para pescar, ele fica tão profundamente concentrado pescando que sou eu quem lhe apresento a beleza do mar e do sol nascendo. Chamo a atenção dele, porque não podemos per-der tudo. Pescar tem dois lados; ambos são bons para aproveitar. Já Sônia Garrotti, pes-cadora de pesca embarcada em alto-mar, é mais enfática: — Na pesca esportiva ainda existe um ‘clube do bolinha’ organizado pelos pescadores para saírem da rotina. Os pesca-

dores mais jovens aceitam bem

mais a mulher pescando, mas, de pescadores

antigos ainda ouço brincadeiras do tipo

‘você coloca perfume na isca?’ — Sônia gar-

galha — Mas a mulher, no que se propõe a

fazer se sai melhor que o homem. É difícil de eles aceitarem. Para enfrentar preconceitos, as mulheres ainda precisam superar a própria intolerância femi-nina com o esporte-lazer

de pesca. “Amigas acham que eu devia ter nascido homem, já me disseram isso”, lamenta a pesca-dora Sônia. Afinal, a mulher não tem o saber fincado somente à terra ou às coisas práticas. Sua intui-ção combina com as águas, com a natureza e com o saber-fazer de uma boa pescaria. Pescar com-bina com educação dos filhos, com convivência familiar, com amizade. É espaço para conhecer novas geografias, novas vidas, novas artes. É conhecer-se. Márcia Ferreira neu-traliza a agitação do marido na pesca quando abre a visão dele para a natureza. Tornou-se companheira do marido, o que é um bom exemplo de interação e harmonia entre casais. Desde quando as filhas eram peque-nas, Vladimir Ferreira reservava um tempo para a esposa pescar na praia, enquanto cuidava das filhas. Agora, ela acompanha o marido em 95% das pescarias, e traz para outras artes sua in-teração com a natureza: há oito anos a pescadora-professora faz mosaico artístico, e a pri-meira obra foi uma releitura de “O pescador”, da pintora Tarsila do Amaral. E assim, as mulheres pintam um cenário com peixes, mar, natureza — dentro e fora de casa — no qual elas aos poucos vão se tornando perso-nagens importantes. Não mais antagonistas. Não mais caipo-ras, como na lenda.

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Mini-perfil: quem são elas?

Márcia Sousa Cassiano Ferreira é professora de educação infantil da prefeitura de São José dos Campos há 28 anos. Tem duas filhas, gêmeas, Ca-rolina e Mariana.

Modalidade preferida: pesca de praia. “A pesca de praia facilita muito, porque geralmente a mulher não gosta dessa coisa de pisar na lama, entrar no barro ou segurar iscas como minhoca. Essa modalidade acaba sendo até mais limpinha. Basta o camarão como isca para conseguir fisgar peixes, diferente-mente das iscas em pesqueiros”.

Peixes preferidos: betara, robalo e farnanguaio ou panaguaiú (conhecido como agulhinha). “É um peixe pequenino, mas muito briguento”, atesta Márcia.

Lugares preferidos: praia de Massaguaçu — litoral norte de São Paulo — e Praia Grande, em São Fran-cisco do Sul-SC. “Por serem praias de pescadores, não há muitos banhistas ou surfistas. Nada atrapa-lha a pesca, nada me deixa aborrecida, nem me sin-to atrapalhando alguém quando estou pescando”.

Por que gosta de pescar? “Para mim é terapia e me possibilita ficar perto de meu marido e filhas. Eu gosto de pescar pelo prazer de pescar. Não me importo se pegarei ou não o peixe, o que vale mais é o prazer de estar pescando.”

Acima ela trava batalha com a

bela corvina da foto ao centro.

Abaixo em São Francisco

do Sul, com uma betara de

respeito

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Sônia Garrotti é fabricante de jigs, tem dois fil-hos, hoje com 21 e 29 anos.

Modalidade preferida: pesca embarcada em alto-mar. “Eu acho o peixe de rio briguento, mas é mais bobinho. Com o peixe de mar, você fica uma hora e meia brigando com ele para tirá-lo de lá. É uma briga diferente da pesca de rio”. Sфnia não gosta de corricar, gosta de pesca trabalhada, “jigada”.

Peixe preferido: olho-de-boi — o maior pescado por ela foi um de 25 quilos, na Bahia. Em São Paulo, gosta de pescar bicuda, “porque é um peixe que salta”.

Lugares preferidos: Salvador e Praia do Forte – BA. Em São Paulo, considera que a pesca es-portiva já está defasada devido às várias proi-bições de pesca.

Por que gosta de pescar? Esquece de tudo quando está pescando, mesmo quando volta frus-trada da pescaria. “Para mim, é um prazer ficar no mar oito horas ininterruptamente. Não vejo a hora passar”.

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Olho-de-boi, fisgado na

Bahia

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Elisa Senda Nakano é mulher de pescador e tem três filhos dos quais só o caçula hoje pesca. É fabricante de iscas artificiais há oito anos junto com o marido.

Modalidade preferida: pesca embarcada em alto-mar. “Os peixes são melhores, é uma pescaria mais esportiva. Pesqueiro é muito parado”.

Peixe preferido: ubarana — “para comer não, mas é bem esportivo, briga muito”.

Lugar preferido: Guaratiba-RJ — para quem gosta de pesca embarcada em um lugar tranqüilo.

Por que gosta de pescar? Apesar de não ser uma pescadora assídua, como o filho e o marido, pesca por lazer, para observar a natureza. Gosta também da companhia de pescadores, da amizade de longa data que se faz entre os que montam equipe. Como a equi-pe do marido não tem preconceitos em levar mulhe-res para pescar, isso ajuda Elisa a gostar de pesca.

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Elisa, na Praia do Forte — BA, com um dourado-do-mar

Fisgando tucunaré no rio Araguaia

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1827 — Brasil — Surge a primeira legislação relativa à educação de mulheres. A lei admitia meninas apenas em escolas elementares, não para instituições de ensino mais adiantado.1857 — 8 de março/ Nova Iorque-EUA — 129 operárias morrem queimadas pela força policial, numa fábrica do setor têxtil. Elas tiveram a ousadia de reivindicar a redução da jornada de trabalho de 14 para dez horas diárias e o direito à licença-maternidade. O Dia Internacional da Mulher foi instituído em homenagem a essas trabalhadoras corajosas.1879 — Brasil — O governo brasileiro abriu as instituições de ensino superior às mulheres. Entretanto, as jovens que seguiam esse caminho eram sujeitas a pressões e à desaprovação social.1880 — Brasil — As primeiras mulheres graduadas em direito encontram dificuldades em exercer a profissão.1893 — Nova Zelândia — Sufrágio feminino. Primeiro país a conceder o direito de votos às mulheres.1920 — EUA — Sufrágio feminino.1932 — Brasil — O governo de Getúlio Vargas promulgou novo código eleitoral garantindo o direito de votos às mulheres brasileiras.

1937/1945 — Brasil — O Estado Novo criou o Decreto 3199, que normatizava a prática esportiva feminina. Era proibido às mulheres praticarem esportes ‘incompatíveis’ com as condições femininas, como luta de qualquer natureza, futebol de salão e de praia, pólo, halterofilismo e beisebol. O decreto só foi regulamentado em 1965. 1949 — França — A escritora Simone de Beauvoir (1908-1986) publica o livro “O segundo sexo” — uma análise da condição feminina. É famosa sua frase: “Não se nasce mulher, torna-se mulher”.1969 — Brasil — O CND (Conselho Nacional de Desportos) proíbe a prática de futebol feminino no Brasil. A decisão só foi revogada em 1981.1974 — Argentina — Isabel Perón torna-se a primeira mulher a ser presidente da república.1979 — Brasil — A equipe feminina de Judô inscreve-se com nomes de homens no campeonato sul-americano realizado na Argentina. Esse fato motivou a revogação do decreto 3199.1996 — Brasil — O futebol feminino chega às Olimpíadas. O Brasil fica em quarto lugar.

Datas marcantes às mulheres na luta pela sua emancipação. Cada conquista são duas vitórias: superação de uma condição e promessa de fatos novos. Fonte: WMulher

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2009 em diante — A história

da participação feminina na pesca

esportiva poderia ser elaborada.

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