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BÍBLIA E HERMENÊUTICAS JUVENIS EVANGELHO DE JOÃO – FUNDAMENTALISMOS E DIÁLOGO INTER-RELIGIOSO Fazendo as Perguntas Necessárias

EVANGELHO DE JOÃO FUNDAMENTALISMOS E DIÁLOGO … · Devemos nos perguntar sobre o que queremos ... calhamaços de até 500 páginas! Não, esta preocupação não será a nossa

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BÍBLIA E HERMENÊUTICAS JUVENIS

EVANGELHO DE JOÃO – FUNDAMENTALISMOS E DIÁLOGO

INTER-RELIGIOSO

Fazendo as Perguntas Necessárias

Bíblia e Hermenêuticas Juvenis – Módulo 5 – Etapa 1 1

Módulo 5 – Etapa 1

A porta da verdade estava aberta,

mas só deixava passar meia pessoa de cada vez.

(Carlos Drummond de Andrade)

Para lermos qualquer texto, seja ele o mais sagrado para nós, sempre colocamos lentes, as quais determinarão até mesmo o que veremos. Eis aí a questão! Devemos nos perguntar sobre o que queremos ler no texto, quais os assuntos nos motivam e quais as perguntas faremos à obra sobre a qual nos deteremos.

O texto escolhido é o evangelho de João, um dos mais complicados para a exegese1 do Novo Testamento. Seus temas, as fonte, a comunidade por trás do texto, seus simbolismos e suas estratégias literárias ainda são assuntos discutidos. O que queremos com este instigante texto? Ou melhor, quais as perguntas que faremos a ele? Antes de respondermos a estas questões, vejamos algumas das perguntas que não faremos, as quais poderiam ser feitas em outra ocasião e até as encontramos em algumas bibliografias. Não nos preocuparemos em saber se o conteúdo é histórico ou não. Ou seja, não queremos saber se as afirmações realmente são factuais e se o texto reflete, por exemplo, a imagem “verdadeira” do Jesus histórico2. Este tipo de 1 Disciplina das ciências bíblicas que serve de instrumentos para interpretação de textos bíblicos. É, pois,

o trabalho de interpretação e explicação de um ou mais textos bíblico. Ou seja, exegese é tirar do texto seus

sentidos, a partir de seus contextos e gêneros

2 É o termo usado por pesquisadores /as para se referiram à imagem de Jesus da história sem interferências

das ideias das comunidades como termos nos evangelhos. O nome dado a esta tarefa é “busca do Jesus

Histórico”, que se encontra na terceira onda, ou seja, terceira fase de utilização de instrumentos

metodológicos para a tarefa de descobrir quem realmente foi Jesus , suas palavras e ações na palestina do

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preocupação há muito tem se mostrado infértil. Não nos deteremos, também, nas questões das fontes históricas do evangelho, como se fossemos rastrear de onde o escritor tirou suas histórias, conhecidas pelas pesquisas como “tradições”, para compor o livro. Esta preocupação levou muitos autores como Rudolf Bultmann e, mais recentemente, J. Ashton a escreverem calhamaços de até 500 páginas! Não, esta preocupação não será a nossa.

O que perguntaremos, então? Bom, as lentes de nossos óculos serão pintadas pelo colorido do pluralismo religioso, que mais do que nunca, como vemos no Censo de 2010, anunciado pelo IBGE, convida-nos a darmos respostas aos fundamentalismos que insistem em pregar a violência e preconceito. Simplificando, perguntaremos ao Evangelho de João, conhecido como o evangelho do “Discípulo Amado”, como a comunidade joanina, que preservou as memórias de Jesus, se portava e respondia aos conflitos com as comunidades e grupos religiosos que a cercavam. Esta empreitada precisa ser feita com bastante senso crítico, para conseguirmos entrar nas lutas ideológicas e teológicas que o texto mostra para o relermos numa perspectiva de aceitação do outro. Tentaremos olhar o evangelho e percebermos o/a “outro/a” não como um/a concorrente, mas colaborador/a que ajuda no desvendar da verdade. Como diz o poeta mineiro citado acima, é como porta aberta pela qual se passa meia pessoa, como suas parcelas, com suas contribuições. Para isso, não podemos ler o evangelho ingenuamente, porque no

primeiro século

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meio dos conflitos da segunda metade do primeiro século, especialmente com os judeus, ele acaba demonizando o/a outro/a e limitando a manifestação do amor aos membros da comunidade de fé. No entanto, mesmo que o evangelho tente afirmar sua identidade negando o/a outro/a, ele acaba assumindo algumas de suas ideias e perspectivas, mostrando como precisamos do/a outro/a para pensar a nós mesmos e formarmos nossa própria identidade.

Na Teologia que trabalha com o pluralismo religioso, como também nas Ciências da Religião3 em geral, pergunta-se como se pensar a relação entre as religiões. Para isso se chegou a três conceitos básicos:

1. Exclusivismo: “fora da igreja ou cristianismo não há salvação”. Só o cristianismo tem a palavra sobre a Verdade.

2. Inclusivismo: há salvação nas outras religiões,

3 É um campo disciplinar que estuda o fenômeno religioso utilizando diversas ciências.

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mas mediante o Espírito de Cristo presente no crente no não cristão/ã. São cristãos/ãs anônimos/as. A salvação por estas outras religiões é incompleta e deficiente. São lampejos da Verdade, que é encontrada só no Cristianismo.

3. Pluralismo: Todas as religiões, inclusive o Cristianismo, giram em torno do sol, que é o mistério de Deus. As outras religiões são religiões que contribuem com a Verdade e revelação de Deus. As religiões compõem o jardim que exala a verdade.

Estes, mais dos que conceitos, são posturas e pressupostos para a aproximação às outras crenças e outras partes do colorido da verdade. Especificamente, estes podem ser tratados como itinerário seguido pela teologia cristã, no esforço de compreender a relação do cristianismo com as outras religiões (FAUSTINO, Teixeira. Teologia das Religiões. Uma visão panorâmica. São Paulo: Paulinas, 1995). Dependendo do como nos

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posicionamos ou em que grupo destes entrarmos, poderemos ser considerados/as intolerantes ou não.

Vamos refletir e nos fazer algumas perguntas

O Prof. Faustino Teixeira, no lançamento do seu livro “Teologia e Pluralismo Religioso”, fez uma palestra na qual falou um pouco destas três posturas. Vamos assistir e depois levantaremos algumas questões:

Parte 1 (10 minutos): Apresentação da trajetória de Faustino Teixeira de fazer teologia em perspectiva do pluralismo religioso. Parte 2 (10 minutos): Paradigmas que marcam a Teologia do Pluralismo Religioso; exclusivismo; inclusivismo. Parte 3 (6 minutos): Paradigmas que marcam a Teologia do Pluralismo Religioso: inclusivismo. Parte 4 (9 minutos): Paradigmas que marcam a Teologia do Pluralismo Religioso; inclusivismo; Jacques Dupuis; Claude Geffré. Parte 5 (12 minutos): Paradigmas que marcam a Teologia do Pluralismo Religioso; pluralismo; Paul Knitter; John Hick; Roger Haight. Parte 6 (6 minutos): Paradigmas que marcam a Teologia do Pluralismo

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Religioso; pluralismo; os teólogos asiáticos; a Teologia da Libertação e o Pluralismo Religioso. Parte 7 (6 minutos): Debate; Frei Betto: valores evangélicos ou humanos no contexto do pluralismo religioso? Pós-pluralismo religioso: pessoas religiosas vivem valores humanos; Henri Peña Ruiz Parte 8 (10 minutos): Debate: profundência, transparência e imanencidade do mistério de Deus; a importância das opções espirituais; a maldade humana e o diálogo inter-religioso; linguagem exclusivista como obstáculo no diálogo inter-religioso. Parte 9 (4 minutos): Debate: a necessidade de fazer redução da linguagem teológica: construir linguagem de diálogo e respeito e não beligerante. Parte 10 (6 minutos): Debate: o anúncio do Evangelho em contexto do diálogo inter-religioso ou do pluralismo religioso

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Vamos ler o poema “Verdade” de Carlos Drummond de Andrade?

A porta da verdade estava aberta, mas só deixava passar

meia pessoa de cada vez.

Assim não era possível atingir toda a verdade, porque a meia pessoa que entrava só trazia o perfil de meia verdade.

E sua segunda metade voltava igualmente com meio perfil.

E os meios perfis não coincidiam.

Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta. Chegaram ao lugar luminoso

onde a verdade esplendia seus fogos. Era dividida em metades diferentes uma da outra.

Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.

Nenhuma das duas era totalmente bela. E carecia optar. Cada um optou conforme

seu capricho, sua ilusão, sua miopia.

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Convido você para fazer uma parada agora e refletir:

1. Ouvindo a palestra, quais são as grandes diferenças entre a postura exclusivista, inclusivista ou pluralista? O poema reflete qual destas perspectivas?

2. Em qual destas três você se encaixa melhor?

3. A partir do que você leu e ouviu, o que poderia ser feito para termos um ambiente mais harmonioso, pacífico e solidário entre os homens e as mulheres das diferentes crenças?

4. Você já foi alvo de alguma expressão de intolerância?

Para pesquisas pessoais...

- A REJU (Rede Ecumênica de Juventude) em 2011, encabeçou a Campanha Nacional Contra a Intolerância Religiosa, a partir de 21 de janeiro – Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa –, junto com o Combate ao Extermínio da Juventude em todas as regiões do Brasil. Conheça mais sobre a REJU (recomendo que vejam também os vídeos)

- Entre as muitas obras sobre Teologias das Religiões há um recente texto, que recomendo a leitura, pois é bem didático e atual.

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Entrando no mundo do Evangelho de João

Depois de aguçarmos nosso olhar, ou seja, sabermos o que queremos com o Evangelho de João, basta-nos entrar em seu mundo. Antes de responder às nossas questões, precisamos saber, um pouco, sobre contexto literário e como o evangelho foi tecido para entendermos quais eram as prováveis perguntas ou preocupações que impulsionaram a redação deste evangelho.

De uns anos para cá, o Ev. de João tem sido lido como uma obra que responde às lutas e desejos da comunidade que o produziu e o preservou. Desta forma, Jesus e suas memórias servem mais para revelar a comunidade e seu contexto de onde surge o texto, do que a própria imagem e contexto do Jesus de Nazaré. Desta forma, encontramos no próprio evangelho, como dizem os especialistas, a história da comunidade e de seus conflitos. Assim, podemos identificar no livro grupos antagônicos e teologias divergentes. O grande problema é que acessamos esses grupos a partir do olhar do evangelho de João, ou seja, já é uma apresentação a partir do preconceito. Por isso, devemos ter muito cuidado e capacidade para uma leitura crítica.

Então, para lermos o evangelho vamos primeiro entrar no seu mundo literário para vermos como o texto está organizado. Depois, vamos dar uma olhadinha no mundo histórico-social, perguntando pelos grupos que o subjazem e quem são o(s) outro(s) no olhar da comunidade; isso sem perder de vista a história da comunidade e como este evangelho lidou com eles. Somente depois disso, nos próximos encontros,

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poderemos escolher textos centrais para relermos.

O evangelho lado a lado com os sinópticos

De maneira resumida, podemos dizer que o Evangelho de João é bem diferente dos outros que encontramos no Novo Testamento, os conhecidos sinóticos4. Encontramos detalhes literários diferentes, episódios inéditos, discursos compridos, a imagem de Cristo em perspectiva mais celeste do que terrestre, muitas ironias etc. Ou seja, Mateus, Marcos e Lucas não partilham certas características que lhes são comuns com este evangelho.

Um ponto importantíssimo entre essas diferenças é a movimentação geográfica de Jesus no Evangelho de João, que é muito particular. Vamos dar uma olhada aqui no mapa da Palestina nos tempos de Jesus:

4 É o termo utilizado pelos estudos bíblicos para referir-se aos três primeiros evangelhos do Novo

Testamento: Mt, Mc e Lc.

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No esquema sinótico, usado por Mt e Lc à luz de Mc, o ministério público de Jesus dura um ano e se desenrola principalmente em torno do Mar da Galiléia (região em amarelo no mapa) e termina na ocasião da páscoa, quando Jesus sobe para Jerusalém. Ou seja, há uma caminhada para Jerusalém, com um clímax: sua morte.

Na versão do evangelho de João, o itinerário é completamente diferente. Jesus vai à Jerusalém pelo menos quatro (ou cinco) vezes, por ocasião das festas judaicas (Jo 2,13; 5,1; 7,10; 10,22; 12,12). Por isso, a porção de textos do ministério de Jesus na Galiléia neste evangelho é bem menor do que a dos sinóticos. Em João encontramos a cena de Filipe e Natanael (1,43-51), o episódio da transformação de água em vinho (2,1-12), cura do filho de um oficial (4,43-54), multiplicação dos pães e peixes e a caminhada sobre as águas (6,1-21), como uns poucos exemplos de sua atuação na Galiléia. Talvez, esta seja uma estratégia literária para servir de crítica à Jerusalém, centro da tradição religiosa da época, onde acontecem os maiores embates entre Jesus e os judeus (J 5; 7-8).

Dentro desta organização geográfica da movimentação de Jesus, própria do Evangelho de João, encontramos, também, diferenças de episódios em relação aos sinóticos. João não fala do batismo de Jesus, nem dos três anúncios da paixão e não cita nenhuma parábola. Episódios como as bodas de Caná (Jo 2, 1-12), a conversa com Nicodemos (3,1-21), a ressurreição de Lázaro (Jo 11,1-43) e outros, são exemplos de textos que só encontramos em João. Além disso, encontramos no Evangelho de João grandes discursos, tais como o de

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despedida (13,31 – 16,33), nos quais são fixados importantes temas teológicos da fé joanina. Nestes, encontramos a identidade de Jesus, a natureza de sua salvação, o sentido de sua partida etc. O mais importante a se destacar destes grandes discursos é a referência da presença de sinais nas suas introduções (por exemplo, Jo 5,1-9; 6,1-15), os quais serviam de revelação do poder do enviado do Pai.

O Jesus do quarto evangelho não centra seu discurso no Reino de Deus, não é um rabi de fala parabólica, não dá ensinamentos éticos, não faz exorcismos. Este Jesus do evangelho de João sabe de maneira sobrenatural sobre eventos e particularidades das pessoas (Jo 1,48;2,25;4,18-19; 13,1.3;16,30). Ele é visto como ser eterno, junto ao Pai antes da criação (17,5.24). Ele é um ser que revela coisas celestiais (Jo 8; 10).

Estas particularidades dizem muito sobre as perspectivas redacionais da obra e como Jesus era visto na comunidade, ou seja, como o Glorificado, o enviado de Deus (3,16-18), um com o Pai.

A organização literária do evangelho

Quando observamos o evangelho como ele está, sua forma final, percebemos que tem uma organização peculiar. Como veremos ainda nesta etapa, no evangelho encontramos algumas tensões e interrupções que acabam denunciando seu caráter compósito5 e até 5 Esta expressão tem a ver com composição. Para os estudos bíblicos é usada para informar que um texto

não foi escrito numa única ocasião ou por uma única pessoa, ou seja, dizer que o Ev. de João é compósito

é o mesmo que afirmar que na sua formação foram utilizadas fontes e várias mãos compuseram-no.

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mesmo uma complexa história de formação. Contudo, biblistas6 como Johan Konings leem o evangelho como uma grande obra inteira. Quem tiver interesse em ler mais sobre o que diz Johan Konings acesse aqui.

Nesta perspectiva, de uma obra inteira, o evangelho tem uma organização estática e dinâmica. No primeiro nível está a organização literária do texto, que seria tipo um díptico, um quadro com dois painéis articulados com dobradiças. Um painel é Jo 1,19-12,50, no qual Jesus traz a Palavra ao mundo. O outro painel seria Jo 13,1-20,31, que seria a caminhada final de Jesus para sua glória. Nesta moldura, há um prólogo que precede os dois painéis (Jo 1,1-1,18) e um epílogo redacional (Jo 21).

No entanto, não há necessidade de escolhermos pela leitura sincrônica (unitária) em detrimento à crítica, ou diacrônica, pois as duas se completam e uma dá novas luzes sobre a outra. No entanto, para uma visão geral do texto esta proposta mostra-nos o fruto final de um logo processo de formação do texto, através do qual podemos entrar no mundo literário da obra.

6 São pesquisadores e pesquisadoras que se especializaram em literatura bíblica – Bíblia Hebraica (Antigo

Testamento) ou Novo Testamento.

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A obra pode ser dividida da seguinte maneira:

1,1-18

(Prólogo)

1,19-12,50 (Livro dos

Sinais)

13,1-20,31 (Livro da

Glória)

21

(Epílogo)

A palavra do pai ao mundo

1,19 – 2,11

2,1 – 4,54

5,1 – 10, 42

11,1–12,36

12,37-50

13,1– 17,26

18,1 – 19,42

20, 1-29

20,30-31

Texto posterior: reflexo da

comunidade

Os grupos e a história da comunidade

Mesmo que a gente leia o texto em sua integridade, como está na sua forma final, há muitos indícios que o Evangelho de João é uma obra retrabalhada por mais de uma mão. O indício mais evidente encontra-se no capítulo 21. Em Jo 20,30-31 temos uma conclusão, fechando claramente o texto. No entanto, o capitulo 21 dá novo recomeço e outra conclusão (21,24-25). Existem outras partes que denunciam interrupções nas narrativas e descontinuidades que mostram etapas de redações (por ex.: 14,31 encontramos sua sequência lógica em 18,1-12, deixando 15-17 fora de lugar).

Essas constatações geraram algumas respostas por parte dos/as pesquisadores/as.

Um das mais conhecidas foi a de R. Bultmann, que encontrou dentro do evangelho uma “fonte dos sinais”,

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uma “fonte de revelação” e um “relato da paixão”, as quais foram harmonizadas por um redator final, o mesmo responsável pelo capítulo 21.

No entanto, as opiniões foram se divergindo, mas todas admitem que a obra foi composta durante um longo tempo até sua redação final.

Dessa análise redacional, pela qual se descobriu camadas de textos de períodos diferentes, surgiu a pergunta pela história da comunidade. J. L. Martyn foi um dos primeiros a perceber certo desenvolvimento da imagem de Jesus no próprio texto joanino, como se em um tempo a comunidade percebe-se Jesus como um profeta passando para um ser preexistente, igual ao Pai.

Rudolf Bultmann (1884-1976)

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Bom, R. E. Brown propõe o seguinte:

1. Período das Origens (50-80 d.C): judeus aceitam Jesus como messias davídico (descendente de Davi), milagreiro e profeta. Estes ainda não viam Jesus como um ser pré-existente. Entre eles estavam os discípulos de João Batista e aquele que seria conhecido mais tarde como Discípulo Amado. Esta concepção vai mudando depois que um grupo de judeus contrários ao Templo, os quais fizeram convertidos alguns em Samaria, se juntou à comunidade. Estes consideravam Jesus como um novo Moisés que estava com Deus, o qual viu Deus e trouxe para a terra essa revelação. Com isso, a comunidade começa a ter uma nova visão sobre Jesus, agora como um ser pré-existente, surge o que

Nos últimos anos, R. E. Brown, em um comentário ao evangelho (ver ao lado), ainda em inglês, e num pequeno texto já em português, tem se destacado por conseguir demonstrar de forma simples e didática a história da formação da comunidade joanina e os consequentes conflitos. Para nossa leitura à partir da ideia da intolerância, esta história pode nos dar luz.

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se costuma chamar de alta cristologia7, o que gerou grandes conflitos com os judeus mais rígidos, gerando a expulsão dos cristãos joaninos das sinagogas8.

2. Segunda fase (90 d.C): A expulsão da sinagoga gera um conflito duro contra os judeus, os quais são vistos pela comunidade joanina como filhos do diabo e dominados pelo príncipe deste mundo. Ao mesmo tempo, isso proporciona uma nova fase na história da comunidade, pois ela se espalha pela Diáspora9 e os gentios se achegam a ela. Com o contato com grupos fora da palestina a cristologia torna-se ainda mais alta. É neste período em que a primeira e principal redação do evangelho é feita. A interpretação dos judeus e dos demais cristãos sobre Jesus, aos olhos dos joaninos, era errada, mesmo que eles acreditassem numa reconciliação com os cristãos apostólicos, representados por Pedro. Ou seja, o cristianismo da época mostra-se plural e composto por diversos grupos, entre os quais estavam os joaninos.

3. Terceira fase (100 d.C): aqui estamos no período das epístolas joaninas (1, 2 e 3 João). De dentro da própria comunidade, por ocorrerem interpretações divergentes sobre o evangelho de João, saiu um grupo de separatistas (1Jo 2, 19). As divergências em torno de temas tais como

7 É o estudo da pessoa de Cristo, conforme apresentado no texto bíblico e desenvolvido pela teologia no

decorrer da história da igreja cristã.

8 Eram centros culturais e de estudos judaicos, nas quais se reuniam os judeus exilados. Na diáspora era o

centro de estudo da Lei, e depois da destruição do templo, em 70 d .C., foi muito útil para reuniões de cultos

e da leitura e exposição da Lei de Moisés.

9 Dispersão dos judeus, para terras fora de Israel.

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cristologia, ética, escatologia10 e pneumatologia por fim geram a separação total, após o ano 100 d.C.

Vamos fazer algumas reflexões agora...

1. Como vimos, a história da comunidade, que está bem vinculada à história da própria redação do evangelho, mostra como é difícil lidar com as diferenças. Pelo que você já conhece sobre o conteúdo do evangelho, há alguns textos que revelam valor do amor e do respeito com o/a outro/a? Quais? E, como poderíamos lê-los, à luz desses conflitos com os judeus da época e os demais cristãos?

2. Vamos dar uma olhada neste engraçado vídeo: http://www.youtube.com/watch?v=TApmimuSq4I

Responda: há muitas diferenças entre os dois batistas? Por que, então, se preferiu a morte do outro em vez da reconciliação?

10 Reflexão sobre as últimas coisas (do grego, éscatos = último; logia = discurso, estudo, palavra).