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1 O intempestivo, ainda 1 Eduardo Viveiros de Castro Os selvagens querem a multiplicação do múltiplo P. Clastres Reaprendendo a ler Clastres Arqueologia da Violência, publicado originalmente em 1980 sob o título Recherches d’anthropologie politique, compreende textos escritos, em sua maioria, pouco antes da morte de seu autor, três anos antes. Ele forma um par natural com a coletânea publicada em 1974, La société contre l’État. 2 Se esta última possui uma maior unidade interna, e contém um maior número de artigos baseados em experiência etnográfica direta, a presente coletânea documenta a fase intensamente criativa em que se achava o autor quando do acidente em que perdeu a vida, aos 43 anos, em uma estrada das Cévennes. Os trabalhos aqui reunidos compõem, assim, um livro de transição, que projeta uma obra inacabada; transição e obra que cabe agora a seus leitores — especialmente, é claro, aos etnólogos americanistas —, completar e prolongar o melhor que soubermos; e que será por força de outros modos que aquele que apenas podemos adivinhar. Entre vários textos notáveis deste Arqueologia da Violência, destacam-se, sem sombra de dúvida, os dois capítulos finais: o ensaio que dá nome ao livro em sua presente edição e o artigo subsequente, o último que Clastres publicou em vida. Eles imprimem uma inflexão decisiva ao conceito que tornou seu autor célebre, a “sociedade-contra-o- Estado”. Retomando o problema clássico das relações entre a violência e a constituição 1 Este ensaio foi originalmente publicado como introdução à segunda edição em inglês de Archeology of Violence, dada à luz em 2010 pela editora Semiotext(e), na Semiotext(e) Foreign Agent Series. Agradeço a Sylvère Lotringer não só o convite a escrevê-lo, como o entusiasmo generoso com que acolheu a proposta de tê-lo republicado em português. Entre outras diferenças, a presente versão se estende por mais algumas páginas que a versão original. 2 A Sociedade contra o Estado, trad. Theo Santiago, CosacNaify 2003.

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O intempestivo, ainda1

Eduardo Viveiros de Castro

Os selvagens querem a multiplicação do múltiplo

P. Clastres

Reaprendendo a ler Clastres

Arqueologia da Violência, publicado originalmente em 1980 sob o título Recherches

d’anthropologie politique, compreende textos escritos, em sua maioria, pouco antes da

morte de seu autor, três anos antes. Ele forma um par natural com a coletânea publicada

em 1974, La société contre l’État.2 Se esta última possui uma maior unidade interna, e

contém um maior número de artigos baseados em experiência etnográfica direta, a

presente coletânea documenta a fase intensamente criativa em que se achava o autor

quando do acidente em que perdeu a vida, aos 43 anos, em uma estrada das Cévennes.

Os trabalhos aqui reunidos compõem, assim, um livro de transição, que projeta uma obra

inacabada; transição e obra que cabe agora a seus leitores — especialmente, é claro, aos

etnólogos americanistas —, completar e prolongar o melhor que soubermos; e que será

por força de outros modos que aquele que apenas podemos adivinhar.

Entre vários textos notáveis deste Arqueologia da Violência, destacam-se, sem sombra

de dúvida, os dois capítulos finais: o ensaio que dá nome ao livro em sua presente edição

e o artigo subsequente, o último que Clastres publicou em vida. Eles imprimem uma

inflexão decisiva ao conceito que tornou seu autor célebre, a “sociedade-contra-o-

Estado”. Retomando o problema clássico das relações entre a violência e a constituição

1!Este ensaio foi originalmente publicado como introdução à segunda edição em inglês de Archeology of

Violence, dada à luz em 2010 pela editora Semiotext(e), na Semiotext(e) Foreign Agent Series. Agradeço a Sylvère Lotringer não só o convite a escrevê-lo, como o entusiasmo generoso com que acolheu a proposta de tê-lo republicado em português. Entre outras diferenças, a presente versão se estende por mais algumas páginas que a versão original.2 A Sociedade contra o Estado, trad. Theo Santiago, CosacNaify 2003.

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do corpo político soberano, Clastres propõe nesses artigos uma relação funcional positiva

entre a “guerra” (entenda-se, o estado meta-estável de hostilidade latente entre

comunidades locais autônomas) e a intencionalidade coletiva que define ou constitui as

chamadas sociedades primitivas — o espírito de suas leis, para falarmos como

Montesquieu.3

***

A morte de Pierre Clastres foi a segunda perda precoce sofrida pela geração de

antropólogos franceses formada na passagem dos anos 50 para os 60, um período de

grande fermentação intelectual, na França como em outras partes do mundo, quando se

lançaram as bases daquela brusca virada na sensibilidade político-cultural do Ocidente

que veio a marcar os anos 60-70 com uma qualidade única — talvez a palavra

“esperança” seja, ou fosse, a mais adequada para defini-la. A neutralização dessa ruptura

foi um dos objetivos principais da violenta contra-revolução da direita que tomou de

assalto o planeta desde então, imprimindo sua fisionomia ao mesmo tempo arrogante e

ansiosa, voraz e desencantada, à história mundial das décadas seguintes. E assim vem

sendo até hoje, mesmo que as coisas pareçam estar começando a querer mudar (aqui,

toda cautela é pouca).

O primeiro da geração a partir foi Lucien Sebag, que se suicidou em 1965, para a

imensa consternação de seus amigos (entre os quais Félix Guattari), seu professor Claude

Lévi-Strauss e seu analista Jacques Lacan. Os doze anos que separam as mortes de Sebag e

Clastres, nascidos no mesmo ano (1934), ambos filósofos de formação, rompidos ambos

com o Partido Comunista após 1956, convertidos à antropologia pela poderosa influência

intelectual de Lévi-Strauss (que então se aproximava do zênite), talvez expliquem algo da

diferença que suas respectivas obras mantêm com o estruturalismo. Sebag, originário da

vibrante comunidade francófona de judeus tunisinos, era muito próximo do fundador da

antropologia estrutural, que o tinha como seu melhor discípulo e provável sucessor. O

3 L’Esprit des lois sauvages (Abensour [org.] 1987) é o título de uma coleção de ensaios comemorativos do décimo aniversário da morte de Clastres.

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estudo de Sebag (1971) sobre a mitologia cosmogônica dos Pueblo, publicado

postumamente, foi um dos materiais preparatórios para a vasta empresa de análise da

mitologia ameríndia por Lévi-Strauss. O jovem etnólogo mantinha também um

envolvimento intenso com a psicanálise. Um de seus raros trabalhos publicados em vida

analisava os sonhos de Baipurangi, uma moça do povo Aché-Guayakí, junto ao qual

Sebag chegou a compartilhar com Clastres alguns períodos no campo4 antes de se fixar

entre os Ayoreo do Chaco, para uma pesquisa etnográfica que sua morte deixou por

terminar. Além disso, Sebag foi um dos primeiros pensadores de sua geração a tentar

aprofundar o significado filosófico e político do estruturalismo, com Marxisme et

structuralisme (Sebag 1964), um livro teoricamente sofisticado, que poderá voltar a

suscitar interesse à medida em que a dinâmica intelectual do período começa a ser

reavaliada em profundidade.5

Clastres tinha em comum com seu amigo a ambição de reler a filosofia social

moderna à luz dos ensinamentos da antropologia de Lévi-Strauss; mas as semelhanças

entre as respectivas inclinações paravam mais ou menos aí. A Sebag atraíam sobretudo o

mito e o sonho, os discursos da fabulação humana; já os temas preferenciais de seu

colega eram o rito e o poder, os mecanismos de instituição do social, de abordagem à

primeira vista mais difícil pela antropologia estrutural:

Não sou estruturalista. Mas não porque tenha qualquer coisa que seja contra o estruturalismo; é porque me ocupo, como etnólogo, de campos que não são suscetíveis de uma análise estrutural, em minha opinião (Clastres 1975: [xx) FLO: Isso está em “Entretien avec Pierre Clastres (14 décembre 1974)”, L’Anty-Mythes, 9, 1975. Mas não tenho a paginação, porque li em uma versão na internet sem paginação: www.plusloin.org, onde aliás não consigo mais pegar o texto… Ver adiante, mesma coisa (mesmo texto) para a frase “Todos os Estados são natalistas”]]

O autor de Arqueologia da Violência se dedicou desde cedo a articular uma

respeitosa mas implacável crítica interna ao estruturalismo, recusando-se a aderir à doxa

positivista que começava a se acumular em volta da obra de Lévi-Strauss, e que a ia

transformando, na mão de seus epígonos, em “uma espécie de Juízo Final da Razão,

capaz de neutralizar todas as ambiguidades da História e do Pensamento” (Prado Jr. 1982:

4) [FLO: isso do Bento está no prefácio da Arqueologia da Violência ed. da Brasiliense;

4 Dessa convivência resultou um artigo conjunto sobre alguns costumes funerários dos Aché (Clastres & Sebag 1963).5 Para um balanço da obra de Lucien Sebag, ver D’Onofrio [org.] 2005.

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não sei se vcs vão querer remeter à edição presente pela CN, ou a de 2004…]). Ao

mesmo tempo, Clastres manifestou durante toda a sua carreira uma hostilidade ainda mais

implacável — e esta não exatamente respeitosa (ver o cap. 10 deste livro) — ao que

chamava de “etnomarxismo” francês, isto é, os antropólogos que se empenhavam em

enquadrar na aparelhagem conceitual do materialismo histórico as chamadas “formações

sociais pré-capitalistas”, em particular as sociedades de linhagem da África do Oeste.6

Assim, se Sebag escreveu um livro real intitulado Marxisme et structuralisme, Clastres

deixou-nos, com A Sociedade contra o Estado e Arqueologia da Violência, os materiais

para um livro possível que caberia intitular Nem marxismo, nem estruturalismo. O autor

via no marxismo e no estruturalismo uma mesma falha fundamental, oriunda do privilégio

concedido por ambos à racionalidade econômica: a inevitável desvalorização da

intencionalidade política, que seria como que um verdadeiro “princípio vital” das

coletividades humanas. A fundamentação metafísica do socius na produção, com o

marxismo, e na troca, com o estruturalismo, incapacitaria ambos para pensar o que havia

de característico, ou mais exatamente, de singular na socialidade primitiva, e que Clastres

resumiu na fórmula “sociedade-contra-o-Estado”. Esta expressão designa uma forma de

organização da vida coletiva baseada na despotencialização simbólica e prática da

representação política, na inibição estrutural da tendência perene à conversão da

autoridade, riqueza e prestígio em coerção, desigualdade e exploração, e em uma gestão

das alianças interlocais guiada pelo imperativo estratégico de autonomia política do grupo

local, que se reflete igualmente no plano do ethos pessoal, o indivíduo e o grupo

primitivos sendo ambos feitos da mesma matéria múltipla e intratável, do mesmo espírito

6 Os etnomarxistas franceses eram, em sua imensa maioria, africanistas de formação (além de bastante antipáticos a Lévi-Strauss). Isso é tão pouco acidental quanto a relação entre o etno-anarquismo de Clastres e sua especialização nas sociedades das terras baixas da América do Sul. As diferentes áreas etnogeográficas do mundo — melhor dizendo, seus diversos estilos civilizacionais — possuem como que “valências” sociocosmológicas que as tornam mais ou menos afins a determinadas abordagens teóricas, sem se tornarem por isso meras hipóstases dessas teorias. Quando muito, é antes o contrário que se passa, uma teoria antropológica geral sendo, frequentemente, pouco mais que uma redescrição abstrata e “estilizada” de determinadas “teorias nativas”, isto é, de cosmopráticas histórica e culturalmente situadas.

Observe-se, de passagem, que o fato de a sucessora designada (na prática) por Lévi-Strauss para sua posição no Collège de France ter sido Françoise Héritier, uma africanista próxima dos “etnomarxistas” — em vez de, especulemos, o Lucien Sebag de um outro mundo possível —, explica em parte a trajetória algo apagada do pensamento lévi-straussiano dentro da antropologia francesa, nas últimas duas décadas do século passado. A declarada lealdade teórica de Héritier a Lévi-Strauss nunca chegou a compensar sua invencível incompreensão do estruturalismo.

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revesso e “inconstante”.7

***

O anti-marxismo de Clastres era, pois, diverso de seu não-estruturalismo. No materialismo

histórico, ele não conseguia ver mais que um elogio etnocêntrico da produção como

verdade da sociedade e do trabalho como essência da condição humana. Esse

evolucionismo economicista se defrontaria, nas sociedades primitivas, com seu limite

epistemológico absoluto, pois estas constituem “máquinas anti-produção”, que

desmentem todos os preceitos científico-metafísicos da economia política. Em lugar da

economia política do controle — controle do trabalho produtivo dos jovens, pelos velhos;

controle do trabalho reprodutivo das mulheres, pelos homens — que os etnomarxistas, na

esteira de Engels, se compraziam em ver na raiz das sociedades rotuladas, com impecável

lógica mítica, de “pré-capitalistas”, Clastres discernia, nas sociedades

“primitivas” (adjetivo que remete a um outro mitema filosófico ocidental), um duplo

contracontrole, ou metacontrole: o controle político da economia, por um lado — regime

de suficiência subprodutiva, bloqueio da acumulação pela redistribuição forçada ou a

dilapidação ritual — e o controle social do político, por outro lado — separação entre

chefia e poder, submissão do guerreiro ao imperativo suicida da glória. A sociedade

primitiva como sistema imunológico: a mobilização guerreira a serviço da integridade

sociológica, o controle da tentação do controle. Arqueologia da Violência é um Contra

Hobbes (Abensour 1987b) — a guerra continua a se opor ao Estado, mas com essa

diferença crucial que a socialidade está do lado da guerra, não do soberano, o qual

aparece ao contrário como quase-natureza (Richir 1987) —, mas é talvez mais ainda um

Anti-Engels, um manifesto contra o continuísmo necessitarista da História (Prado Jr. 2003:

428).[FLO: isso é a paginação da entrevista do Bento a Leirner & Toledo na Revista de

Antropologia: se estiver repubicada aqui tem de mudar a ref.] Clastres é o pensador da

ruptura, do acidente, da contingência radical, do evento como “mal-encontro”. Sob este

aspecto, ele se mostra profundamente lévi-straussiano.

7 Viveiros de Castro 2002a.

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Com efeito, é possível tomar a obra de Clastres como representando antes uma

radicalização que uma rejeição do estruturalismo. É nela que um conceito fundamental de

Lévi-Strauss, o de “sociedade fria” — forma arcaica e normal da vida coletiva, que,

diferentemente daquela adotada pelas sociedades ditas “históricas”, tem a propriedade

(ativa e positiva) de não refletir nem interiorizar sua historicidade empírica como sua

condição transcendental—, encontra uma expressão determinada no plano da

antropologia política. A sociedade primitiva de Clastres é a sociedade fria de Lévi-Strauss;

a primeira é contra o Estado pelas mesmas razões (razões, não “causas”) que fazem a

segunda ser contra a História. E em ambos os casos, aquilo que elas procuram conjurar

ameaça constantemente invadi-las, do exterior, como irromper de seu próprio interior;

este foi um problema que Clastres e, a seu modo, Lévi-Strauss jamais cessaram de se

colocar.8 Além disso, se a guerra clastreana desloca a troca estruturalista — este é o bordo

de ataque do capítulo 11 do livro —, deve ser sublinhado que ela não a abole. Ao

contrário, ela reafirma seu estatuto de vetor genérico de hominização (em sua encarnação

prototípica como “proibição do incesto”), incapaz por isso mesmo, entretanto, de dar

conta da singularidade daquela forma de vida humana que é a “sociedade primitiva”.

Ora, eis que essa forma era, para Clastres, o verdadeiro objeto da antropologia ou da

etnologia, palavra que às vezes preferia para descrever sua profissão. Para ele, a

antropologia ou etnologia é “uma ciência do homem, mas não de qualquer

homem” (Clastres 1968: 77). O que faria dela uma ciência humana diferente das outras:

arte das distâncias, saber paradoxal, sua vocação é a de tentar um diálogo com aqueles

povos cujo silenciamento foi uma condição de possibilidade (prática e teórica) da

civilização que gerou a antropologia. Com os outros, então, da civilização ocidental, seus

“selvagens” ou “primitivos”, aqueles coletivos que escaparam, como se por uma precária

tangente, ao Grande Atrator da Razão e do Estado. A relação do projeto de Clastres com o

de Lévi-Strauss se torna, a partir daí, um tanto mais delicada: se o homem que é objeto

dessa ciência não é qualquer sorte de homem, é porque a distância requerida não é

qualquer espécie de distância, uma distância que pudesse ser percorrida dentro de um

universo politicamente isotópico. A distância clastreana é, primeiro que tudo, uma

8 Parece-me portanto em vão que Claude Lefort (1987: 189-90) pretende não haver relação entre os conceitos de Clastres e de Lévi-Strauss; a rejeição crítica que ambos enfrentaram, expressa em termos praticamente idênticos, é uma prova por assim dizer a contrario dessa afinidade.

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distância cosmopolítica, e portanto epistêmica.

A antropologia encarna, para Clastres, um projeto de consideração do fenômeno

humano como definido por uma alteridade intensiva máxima, uma dispersão cujos limites

são a priori indetermináveis. “Quando o espelho não nos devolve nossa própria imagem

isso não prova que não haja nada a observar”, escreve o autor. Essa constatação seca9 —

encontra eco em uma formulação recente de Patrice Maniglier (2005: 773-74) sobre o que

este filósofo chama de “a mais alta promessa” da antropologia, a saber, a de “nos devolver

uma imagem de nós mesmos em que não nos reconheçamos”.10 O propósito de tal

consideração, o espírito dessa promessa, não pode ser então o de reduzir a alteridade que

envolve o percurso interno do conceito de humano, mas sim o de multiplicar as suas

imagens. Alteridade e multiplicidade definem ao mesmo tempo o modo como a

antropologia constitui a relação com seu objeto e o modo como seu objeto se auto-

constitui. “Sociedade primitiva” ou “contra o Estado” é o nome que deu Clastres a esse

objeto, e ao seu próprio encontro com a multiplicidade. E se o Estado existiu desde

sempre, como argumentaram Deleuze & Guattari (1980: 445), então a sociedade primitiva

também existirá para sempre: como exterior imanente do Estado, força de anti-produção

sempre a ameaçar as forças produtivas, multiplicidade não-interiorizável pelas grandes

máquinas mundiais. “Sociedade primitiva”, em suma, é uma das muitas encarnações

conceituais da perene tese da esquerda de que um outro mundo é possível: de que há

vida fora do capitalismo, como há sociedade fora do Estado. Sempre houve, e — é para

isso que lutamos — continuará havendo.

***

“Há em Clastres uma maneira de afirmar que prefiro a todas as precauções ditadas pela

prudência acadêmica”. Quem o diz é a grande helenista Nicole Loraux (1987: 158-59),

9 Feita em “Copérnico e os selvagens”, o cap. 1 de A Sociedade contra o Estado. O espelho etnológico de Clastres seria então um daqueles raros a seguir o conhecido conselho de Cocteau: “Os espelhos deveriam refletir um pouco mais antes de devolver as imagens”.10 O ponto de Maniglier — que se situa por assim dizer no momento seguinte da “reflexão” do espelho da nota anterior —é que esta promessa é cumprida pelo estruturalismo, algo de que Clastres não poderia, pelo menos no primeiro momento de sua carreira, discordar.

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que nem por isso deixou de contrapor a certas afirmações de nosso autor, que implicavam

equivocamente a Grécia antiga, considerações críticas tão judiciosas quanto serenas. Tal

serenidade é bastante rara quando se trata da recepção da obra de Clastres, cuja “maneira

de afirmar” é fortemente polarizadora. Por um lado, ela provoca uma irritação de cômica

intensidade entre os zelotes da razão e da ordem, isto é, nos temperamento reacionários

em geral. Não é incomum que o anarquismo do autor seja alvo de juízos que fazem

pensar antes na psicopatologia criminal que na história das idéias.11 Mesmo no campo da

etnologia sul-americana, onde a influência de Clastres foi formativa (não confundir com

normativa) para toda uma geração, assiste-se hoje à retomada de um esforço de

nulificação de seu trabalho, como parte de um processo específico de “rotinização do

carisma” disciplinar12 no qual a prudência de que fala Loraux parece vir servindo de

pretexto para uma empresa de desvitalização metódica do pensamento. Não apenas do

pensamento de Clastres, mas sobretudo daquele dos povos que estudou. A “harmonia em

toda parte” prevista pelo autor — a captura dos índios pelo regime da semelhança

universal: evangelização, escolarização, onguificação, administratização… — ameaça

agora o modo de vida indígena também no plano do conceito etnológico:

patrimonialização, familiarização, convivialização, proprietarização…

Nos espíritos mais jovens — mais generosos e inquietos —, por outro lado, a obra de

Clastres pode suscitar uma adesão algo “irrefletida” (falávamos há pouco de espelhos) e às

vezes preguiçosamente auto-congratulatória, graças ao poder de sedução de sua

linguagem, de uma concisão e insistência quase formular, à enganosa simplicidade de sua

argumentação, e à paixão autêntica que transpira de praticamente cada página sua.

Clastres transmite ao leitor a sensação de que este é testemunho de uma experiência

privilegiada; ele o faz compartilhar consigo uma mesma admiração pela dignidade

existencial daquelas imagens de nós mesmos em que não nos reconhecemos, e que assim

mantêm sua inquietante alteridade, isto é, sua autonomia. Tudo isso — aquela sensação,

essa admiração, e esta autonomia —, é meio perigoso, como se sabe. Sobretudo no bom

sentido.

11 Ver, por exemplo, o diagnóstico de Moyn (2004): “ódio exagerado e monomaníaco ao Estado”; “ódio vociferante ao capitalismo”; “desconfiança fanática do Estado”; “obsessão paranóica”, e por aí afora. O autor fica a um milímetro de culpar Clastres pelos atentados do Unabomber.12 Essa é uma história que fica para outra vez; dar nome aos bois, aqui, levaria um bom pedaço de nosso comentário.

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Autor difícil, em sua aparente facilidade. São justamente os melhores leitores de

Clastres que precisam (re)aprender a lê-lo, depois de tantos anos sendo persuadidos a

ignorá-lo ou esquecê-lo. Precisam permanecer atentos às suas virtudes como aos seus

defeitos: saber apreciar suas intuições antropológicas fulgurantes e sua profunda

sensibilidade como etnógrafo de campo (Chronique des Indiens Guayakí13 é uma obra-

prima do gênero etnográfico, de leitura indispensável para uma avaliação do projeto

teórico do autor); mas também saber resistir à sua peremptoriedade muitas vezes

excessiva, não desviando pudicamente os olhos diante de suas incômodas hipérboles,

suas hesitações, suas impaciências e imprecisões — sem por isso deixar de preferi-las de

longe à remencionada prudência, meticulosa e melíflua, própria de certa gravitas

acadêmica. Resistir a Clastres, mas não parar de lê-lo; resistir com Clastres, enfim:

confrontar seu pensamento no que nele permanece de vivo e perturbador. François

Zourabichvili tem uma feliz reflexão sobre Gilles Deleuze, autor tão decisivo para a

posteridade de Clastres, que lhe cabe igualmente bem:

A filosofia de Deleuze não é, para mim, nem evidente nem satisfatória; a razão de meu interesse por ela é bem outra: ela não me deixa tranquilo… [U]ma filosofia só é interessante por seus aspectos desorientadores, ao mesmo tempo estranhos e atraentes. Em caso contrário, ela se torna uma doutrina, um sinal de reconhecimento para uma comunidade de fiéis. Eis porque não se deve procurar esconder as aparentes contradições do filósofo que se admira. É preciso, ao contrário, partir dessas contradições, e confrontá-las incessantemente; é preciso saber ver nelas não aporias definitivas, como faria um refutador, mas o signo seguro de uma perspectiva inabitual (cf. Zourabichvili 2004, citado conforme ms. sem indicação de página)

***

Maurice Luciani, em um necrológio publicado na revista Libre, evocava a “indiferença ao

espírito do tempo” como uma das características da personalidade irônica e solitária de

Clastres. É uma apreciação curiosa, visto que o espírito dos tempos que correm tende a

descartar seu pensamento justamente por seu caráter anacrônico, “datado”, como se diz:

romântico, primitivista, exotizante e outros vícios que a crítica neo-liberal e neo-

13 Clastres 1972. Ver Crônica dos Índios Guayakí, trad. bras. T.S. Lima & J. Caiafa, Ed. 34, 1995.

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conservadora associa a 1968.14 Mas justamente, Luciani escrevia em 1978, uma década

depois daquele annus horribilis, quando já havia então se instalado o silêncio ou o

opróbrio que iriam envolver a obra de Clastres e de tantos outros pensadores seus

contemporâneos. Uma releitura de Arqueologia da Violência a tantos anos de distância é,

assim, uma experiência ao mesmo tempo desorientadora e iluminadora. Se ela vale a

pena ser feita, é porque algo da época na qual esses textos foram escritos, ou melhor,

contra a qual foram escritos — e foi nessa medida que ajudaram a defini-la —, algo dessa

época permanece na nossa, algo dos problemas de então continuam conosco. Ou talvez

não: os problemas mudaram radicalmente, dir-se-á. Pois tanto melhor: o que acontece

quando reintroduzimos em outra época conceitos elaborados em circunstâncias muito

específicas? Que efeitos eles produzem ao reaparecerem?15

O efeito de anacronismo suscitado pela leitura de Clastres é real. Tomem-se os três

primeiros capítulos de Arqueologia da Violência, por exemplo. Falar dos Yanomami como

“o sonho de todo etnógrafo”, despejar um sarcasmo furioso contra os missionários e os

turistas sem temperá-lo com algumas gotas de identificação “autocrítica” com eles,

manifestar uma fascinação franca por um modo de vida que o autor não hesita em chamar

de primitivo e qualificar de feliz, deixar-se mesmerizar pela ilusão imediativa (e algo

falóculo-cêntrica, com a licença de L. Irigaray) que se exprime no elogio entusiasmado do

depoimento de Elena Valero,16 incorrer no pessimismo nostálgico do “último círculo”, da

“última liberdade”, da “sombra mortal” que se estende por sobre “a última sociedade

primitiva livre, na América do Sul com certeza, e provavelmente também no mundo” —

tudo isso tornou-se propriamente impronunciável nos salões contemporâneos. Admirável

época a nossa, em que o puritanismo pruriente, a hipocrisia autoflagelatória e a

impotência militante conspiram para tornar impossível sequer “imaginar uma alternativa

coerente”17 ao nosso inferno civilizacional, quanto mais de por mãos à obra. Considere-

14 Some-se a essa crítica “neo-neo” de direita, o retorno recente, ali mais para a esquerda do espectro intelectual, de um certo universalismo autoritário (Badiou, Zizek) que parece ter aprendido muito pouco e esquecido menos ainda.15 F. Châtelet, citado em Barbosa 2004: 532.16 “Em suma: pela primeira vez, sem dúvida — milagrosamente, quase se poderia dizer —, uma cultura primitiva relata-se ela própria, o Neolítico expõe diretamente seus prestígios, uma sociedade indígena descreve-se a si mesma de dentro. Pela primeira vez, podemos nos introduzir no ovo sem arrombá-lo, sem quebrar a casca: ocasião bastante rara e que merece ser celebrada” (p. 40) [FLO: precisa conferir essa paginação do livro…]17 Fisher 2009: 2, um livro tão despretensioso quanto essencial.

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se, entre outros signos disfóricos, a difundida síndrome do pânico diante de tudo que

possa soar como “othering” — como se toda diferença desembocasse em inevitável

opressão, e toda alteridade preparasse uma inaceitável discriminação. Parece que os

outros agora realmente nos devolvem uma imagem na qual, enfim!, nos reconhecemos.

Que se passe então direto ao gozo do narcisimo depressivo, sem perder mais tempo com

as cansativas preliminares (no sentido erótico) do exotismo nostálgico.

A análise breve mas devastadora que faz Clastres do projeto da antropologia,18 ao

mesmo tempo em que antecipa a reflexividade pós-colonial que iria levar a disciplina, nas

décadas subsequentes, a uma aguda crise de consciência — o que é sempre a pior

maneira de fazer surgir uma descontinuidade criativa dentro de um projeto político ou

intelectual —, formula-se em termos que nos parecem hoje desconfortavelmente

aristocráticos, no sentido de Nietzsche, com certeza o personagem essencial para uma

“genealogia” da obra clastreana. Esse viés aristocrático do pensamento tornou-se quase

incompreensível, com a subida da maré de má consciência e boas intenções em que se

banha a apercepção cultural do cidadão neo-ocidental globalizado. E no entanto, é fácil

ver que a profecia que encerra o primeiro capítulo do livro (p.37), sobre a visita do autor

aos Yanomami, estava substancialmente correta:

Eles são os últimos sitiados. Uma sombra mortal se estende por toda parte... E depois? Talvez se sintam melhor, uma vez rompido o último círculo dessa última liberdade. Talvez se possa dormir sem ser despertado uma única vez... E algum dia, ao lado dos chabuno, haverá então perfuradoras de petróleo; no flanco das colinas, escavações de minas de diamante; policiais nas estradas, lojas à beira dos rios... Harmonia em toda parte.

Este “algum dia” parece de fato próximo: a mineração já está lá, espalhando morte e

desolação; as perfuradoras de petróleo não estão muito longe, nem as boutiques; o

policiamento das vias públicas talvez ainda demore um pouco (vai depender da economia

do ecoturismo). A grande e inesperada diferença em relação à profecia de Clastres,

porém, é que agora são os Yanomami eles mesmos que chamaram a si a tarefa de articular

uma crítica cosmopolítica da civilização ocidental, recusando-se a contribuir para a

“harmonia em toda parte” com o silêncio dos derrotados. A reflexão extensa, minuciosa e

implacável do xamã-filósofo Davi Kopenawa, em uma colaboração intertradutiva com o

antropólogo Bruce Albert que vem se construindo ao longo de mais de trinta anos,

18 Ver os artigos “Copérnico e os selvagens”, de 1969, e “Entre silence et dialogue” de 1968.

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materializou-se enfim em um livro, La Chute du ciel, que promete mudar os termos da

interlocução antropológica com a Amazônia indígena (Kopenawa & Albert 2010). Estamos

talvez, com essa obra excepcional a todos os títulos, começando realmente a passar “do

silêncio ao diálogo”; mesmo que a conversa não possa ser senão escura e ominosa, pois

vivemos em tempos sombrios. A luz, que há, está do lado dos Yanomami, com seus

inumeráveis cristais brilhantes e suas legiões resplandecentes de espíritos infinitesimais a

povoar as visões xamânicas.19

Anacronismo de Clastres, então? Intempestividade, antes. Às vezes tem-se a

sensação de que é preciso mesmo lê-lo como se ele fosse um pensador pré-socrático,

alguém que fala não apenas sobre um outro mundo, mas a partir de um outro mundo,

usando uma linguagem que é uma ancestral da nossa, e que, como não somos mais

capazes de entendê-la perfeitamente, precisamos traduzir-transcriar, mudando a

distribuição de seus aspectos implícitos e explícitos, literalizando o que ela tem de

figurativo e reciprocamente, procedendo a uma re-abstração de seu vocabulário em

função das mutações de nossa retórica filosófica e política; reinventando, em suma, o

conteúdo e o propósito desse discurso.20

Da carência à endo-consistência

A questão que se põe, assim, é a de saber até que ponto a noção de sociedade contra o

19 Viveiros de Castro 2007. O livro de Kopenawa e Albert é uma prova convincente (há muitas outras) de que a antropologia tem algo de melhor a mostrar a respeito dos Yanomami do que a lista de abominações de todo tamanho em que ela se viu historicamente implicada em sua atuação junto a este povo, as quais vêm dando matéria para farto escândalo; nem todo ele, longe disso, motivado pelas mais puras das intenções.20 A analogia com os pré-Socráticos é um pouco mais que uma licença poética. Clastres aproximou e contrastou, em mais de uma ocasião, o pensamento dos xamãs Guarani com a filosofia de Heráclito e Parmênides, reformulando o problema tradicional da “passagem” do mito à filosofia — correlativo, para ele, ao problema do surgimento do Estado — a partir de uma comparação do destino da oposição do Um e do Múltiplo entre os Guarani e os Gregos (Loraux 1987; Prado Jr 2003). Clastres não via, portanto, a passagem do mito à filosofia como marcando a transição do despotismo teocrático “oriental” à democracia racional “proto-européia”. Ele opera com um conceito de mito muito diverso daquele utilizado pelos helenistas.

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Estado permanece hoje, para usarmos uma conhecida fórmula, “boa para pensar”,21 em

outras palavras, se ela ainda é capaz de suportar um verdadeiro uso analítico, mais que

uma simples menção histórica. E boa para pensar, acrescentemos, não apenas a paisagem

sociopolítica da América indígena — região sobre a qual o conhecimento empírico

aumentou várias ordens de magnitude desde a época em que Clastres escrevia — ou,

como defende aqui Clastres, a “sociedade primitiva em geral” (p. 139), mas boa também

no sentido de continuar a ser uma peça-chave dentro da máquina desejante da esquerda

libertária; especialmente agora, em que o Mercado parece ter se tornado muito mais

ameaçador que o Estado, e que o Capitalismo conseguiu o que a Microsoft quase

conseguiu, a saber, ele se tornou o único sistema operacional disponível para rodar o

etograma da espécie. O sucesso foi tamanho que, na frase atribuída a F. Jameson, “hoje

em dia parece ser mais fácil pensar o fim do mundo que o fim do capitalismo”.22

O projeto de Clastres era o de transformar a antropologia “social” ou “cultural” em

uma antropologia política, no duplo sentido de uma antropologia que tomasse o poder

como imanente à vida social, e que fosse capaz de levar a sério a alteridade radical da

experiência dos povos ditos primitivos, o que incluiria, antes de mais nada, o

reconhecimento de sua plena capacidade de auto-invenção. Para isso, era preciso

primeiro romper a relação teleológica — melhor dizendo, teológica — entre a dimensão

política da vida coletiva e a forma-Estado, afirmada e justificada por virtualmente toda a

filosofia ocidental. Deleuze escreveu, em uma passagem famosa, que “A esquerda precisa

que as pessoas pensem, e seu papel, esteja ela ou não no poder, é o de descobrir um tipo

de problema que a direita quer a todo custo esconder” (1990a: 173). O problema que

Clastres descobriu, o da coincidência fortuita entre poder e coerção, é um daqueles que a

direita precisa esconder. A antropologia só se tornará realmente política, afirma Clastres, a

partir do momento em que for capaz de mostrar que o Estado e tudo aquilo a que ele deu

origem (em particular, as classes sociais) são uma contingência histórica, um infortúnio

acidental antes antes que um destino essencial.

21 Sztutman 2005: 37.22 Facilidade e dificuldade que se mostram, por exemplo, nos esforços desesperados (entre os bem intencionados) ou cínicos (entre os bem interessados) de acreditar ou fazer acreditar nessa contradição em termos que é um “capitalismo sustentável”, quando todos sabemos — ou pelo menos deveríamos desconfiar — que existe uma incompatibilidade axiomática entre a economia capitalista e qualquer noção de sustentabilidade (Fisher 2009: 19).

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A esquerda precisa que as pessoas pensem… Ela precisa então fazer as pessoas

pensar (ninguém pensa se não for provocado a fazê-lo); mas para isso, é preciso fazê-las

levar a sério o pensamento, a começar pelo pensamento dos outros — uma vez que todo

verdadeiro pensamento já de si suscita os poderes da alteridade. O tema do “como levar

enfim a sério” as escolhas filosóficas expressas nas formações sociais primitivas retorna

insistentemente em Clastres. No cap. 6 deste livro, afirmando que a etnologia das últimas

décadas tinha feito muito para liberar essas sociedades do olhar exotizante do Ocidente23

o autor escreve (p. 101):

Em outras palavras, não se projeta mais sobre as sociedades primitivas o olhar curioso ou divertido do amador mais ou menos esclarecido, mais ou menos humanista; elas são levadas de certo modo a sério. A questão é saber até onde vai essa seriedade.

Até onde, com efeito? Essa é uma questão que a antropologia decididamente não

resolveu, talvez porque ela seja a questão que a define; resolvê-la equivaleria, para

Clastres, a dissolver uma diferença indispensável e irredutível; seria ir mais longe do que

pode almejar a disciplina.24 Por isso, talvez, o autor associasse sempre o projeto da

disciplina à figura do paradoxo. O paradoxo é um operador central na antropologia de

Clastres: há um paradoxo da etnologia (o conhecimento não como apropriação mas como

despossessão); um paradoxo próprio a cada uma das duas grandes formas sociais (na

sociedade primitiva, a chefia sem poder; na nossa, a servidão voluntária); e um paradoxo

da guerra e do profetismo (dispositivos de indivisão que se tornam os germes de um poder

separado). Seria mesmo possível conceber esse primeiro grande tipo psico-social

identificado pelo discurso clastreano, o chefe sem poder, como uma espécie de “elemento

paradoxal” do político, termo supranumerário e casa vazia ao mesmo tempo, significante

flutuante que não significa nada em particular (seu discurso é vazio e redundante),

existindo apenas para se opor à ausência de significação (essa vacuidade institui o plenum

da sociedade). Isso tornaria o chefe clastreano, desnecessário lembrar, uma figura —

paradoxalmente? — emblemática do universo estruturalista (Lévi-Strauss 1950; Deleuze

1972).

23 O fato de que sua própria obra seria, mais tarde, acusada de exotizante não deixa de ser uma prova de que Clastres tinha muito mais razão do que suspeitava, e ao mesmo tempo que ele subestimava seus inimigos presentes e futuros.24 Vejam-se as melancólicas palavras finais do cap. 2: — “Sendo as coisas o que elas são…” (p. 46) — às quais o livro já mencionado de Kopenawa e Albert talvez constitua um bem-vindo começo de desmentido.

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Seja como for, o fato é que, hoje, o paradoxo se generalizou; não são mais apenas os

etnólogos que se vêem diante do desafio da alteridade. A questão do “até onde?” se

coloca para o Ocidente como um todo, e nela se joga o destino daquilo que chamamos

orgulhosamente de nossa Civilização. Enfim, o problema de “como levar a sério os

outros” se tornou, ele próprio, um problema que é imperativo levar a sério. Em La

sorcellerie capitaliste, um dos poucos livros publicados na França de hoje que prolonga o

espírito da indagação clastreana (pela mediação da voz de Deleuze e Guattari), os autores

observam:

Temos por exemplo o costume de deplorar os estragos feitos pela colonização, e as

confissões de culpa tornaram-se rotina. Mas falta-nos ainda o devido sentimento de

horror [effroi] diante dessa idéia de que não apenas nos consideramos um dia a

cabeça pensante da humanidade, como, e isso com as melhores intenções do mundo,

nós continuamos a fazê-lo. […] O horror começa quando nos damos conta de que,

malgrado nossa tolerância, nossos remorsos, nossa culpa, nós afinal não mudamos

tanto assim (Pignarre & Stengers 2005: 88).

E eles concluem a reflexão com uma pergunta que é uma versão do “até onde?” de

Clastres: “Como abrir espaço para os outros?” (id.: 89).

Abrir espaço para os outros certamente não significa tomá-los como modelos,

fazendo-os passar de “nossas” vítimas (ibid.) a “nossos” redentores. O projeto de Clastres

se inclui entre aqueles que entendem o trabalho da antropologia como sendo o de

elucidar as condições de auto-determinação ontológica do Outro,25 o que significa, entre

outras coisas, reconhecer-lhe uma consistência sociopolítica própria, e, enquanto tal, não

transferível para nosso mundo como se fosse a receita há muito perdida da felicidade

eterna universal. O “primitivismo” clastreano não era uma plataforma política para o

Ocidente. Em seu debate com Birnbaum (cap. 9), ele contesta:

Assim como o astrônomo não convida outrem a invejar a sorte dos astros, não milito em favor do mundo dos selvagens. Birnbaum confunde-me com os promotores de uma empresa da qual não sou acionista (R. Jaulin e seus acólitos). […] Analista de um certo tipo de sociedade, tento descobrir modos de funcionamento e não elaborar programas … (p.138).

A comparação com o astrônomo evoca, é claro, o “olhar distanciado” de Lévi-

Strauss, mas dando-lhe uma explícita interpretação política. Astrônomo e não astronauta, 25 Ver Viveiros de Castro 2009, para o desenvolvimento deste ponto de vista.

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Clastres não pretendia possuir os planos do veículo que nos permitisse fazer a viagem até

esses mundos distantes, esse “outro planeta sociológico” (Richir 1987: 62) que são as

sociedades primitivas. De fato, ele acreditava que um limite absoluto, equivalente à

velocidade da luz para a física, impedia as sociedades modernas de cruzar o espaço

intersocietário — a barreira populacional. Embora sempre recusando a imputação de

determinismo demográfico (ver por exemplo aqui, p. 142), Clastres sustentava que a

pequena dimensão populacional e territorial das sociedades primitivas era uma condição

básica para a não-emergência de um poder separado, assim como via uma relação

intrínseca entre o Estado e o crescimento demográfico: “todos os Estados são

natalistas” (1975: [FLO:] pag???). A perda de controle da sociedade primitiva sobre seu

“fluxo demográfico” era uma das preocupações frequentemente expressas pelo autor. A

multiplicidade primitiva é subtrativa antes que aditiva, é molecular antes que molar, é

minoritária no sentido quantitativo e qualitativo: o múltiplo só se faz com poucos, e com

pouco. O igualitarismo selvagem de Clastres é, mais uma vez, “aristocrático”, como é

aristocrática toda verdadeira minoria.26

Sem dúvida que a análise da questão do poder nas sociedades primitivas deve

alimentar uma reflexão política sobre nossas próprias sociedades (Clastres 1975 [FLO:

mesma entrevista para L’Anti-Mythes…]), mas de um modo que se poderia dizer

principalmente comparativo e especulativo. Por que o Estado, sendo uma contingência

antropológica, tornou-se uma fatalidade histórica para tantos povos, e sobretudo para a

nossa tradição? Em que condições a linha flexível da segmentaridade primitiva, com seus

códigos e territorialidades, dá lugar à linha rígida da sobrecodificação generalizada, à

emergência de um aparelho de captura que separa a sociedade de si mesma, criando a

necessidade de uma instância exterior ao corpo social que o totalize e unifique? E mais,

26 Uma das hipóteses que Clastres aventou para o que entendia serem sinais de emergência do Estado nas sociedades Tupi-Guarani, foi justamente uma explosão demográfica. Reciprocamente, como lemos no cap. 12 deste livro, o autor via na atitude anti-natalista das sociedades do Chaco a contrapartida feminina — era às mulheres que repugnava a idéia de ter filhos — da sede suicida de glória que impelia os guerreiros. Ambos os movimentos manifestariam uma espécie de pulsão de morte coletiva, latente em todas as sociedades primitivas (mas apenas nelas?), fazendo com que, em certas circunstâncias históricas, elas voltassem a máquina de guerra anti-estatal contra si mesmas. Resta que no caso Tupi-Guarani, pelo menos, Clastres pode ter confundido (não estou certo de que o tenha feito) o tamanho absoluto da população de uma categoria étnica (os “Tupi-Guarani”) com as dimensões demográficas e sociopolíticas efetivas das várias sociedades ou redes de comunidades que pertenciam (mas de um ponto de vista meramente linguístico-cultural) a essa categoria. O múltiplo só se faz com poucos, mas esses poucos podem ser — ou serão sempre? — alguns entre muitos.

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como pensar a nova face do Estado no mundo das “sociedades de controle” (Deleuze

1990b), em que a transcendência se imanentiza e moleculariza, o socius tende a se

identificar totalmente com a instância que o unifica, o indivíduo interioriza o Estado e é

perpetuamente monitorado e modulado por ele? Quais as novas formas de resistência que

se impõem, isto é, que surgem inevitavelmente?27 A resposta a estas questões depende do

tipo de economia da diferença que está em jogo na comparação antropológica.

***

Há duas maneiras muito distintas pelas quais a antropologia “universaliza”, isto é,

estabelece uma troca de imagens através (no duplo sentido) do espelho. Por um lado, ela

pode fazer funcionar a imagem dos “outros” de modo que esta revele algo sobre “nós”,

certos aspectos de nossa própria humanidade que não somos capazes de reconhecer

como nossos, por múltiplas razões. Este é o projeto antropológico que, iniciado na fase

heróica de Boas, Malinowski e Mauss, consolidou-se na época em que Clastres escrevia, e

que veio se prolongando até a nossa, de Claude Lévi-Strauss a Marshall Sahlins, de Roy

Wagner a Marilyn Strathern: a passagem de uma imagem do Outro como definida pela

falta ou carência, por sua distância privativa em relação ao Eu, para uma figura da

alteridade dotada de endo-consistência, de autonomia em relação à imagem de nós

mesmos, e, nessa medida, dotada de valor crítico e heurístico para nós. O que Lévi-

Strauss fez para a razão classificatória, com sua noção de pensamento selvagem, Sahlins

para a racionalidade econômica, com sua “primeira sociedade de afluência” (ver o cap.8

do presente livro), Wagner para o conceito de cultura (e de natureza), com sua meta-

semiótica da invenção e da convenção, Strathern para a noção de sociedade (e de

indivíduo), com a elucidação das práticas melanésias de análise social e de conhecimento

relacional, Clastres fez para o poder e a autoridade, com sua sociedade contra o Estado —

a construção, por via da imagem do outro, de uma outra imagem do mundo: uma imagem

do mundo que incorpora a imagem que o outro faz do mundo, a imagem com a qual o

outro faz seu mundo. Uma nova imagem, então, do pensamento, da economia, da

27 E digo “inevitavelmente” porque trata-se, aqui também, de “descobrir modos de funcionamento e não [de] elaborar programas” — ou antes, de descobrir aqueles para melhor elaborar estes.

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cultura, da socialidade, da política. E do mundo.

Em qualquer destes casos, jamais se tratou de estabelecer uma dicotomia

substantiva, erguendo uma Grande Muralha antropológica, mas sim de indicar uma

bifurcação que, mesmo decisiva, não é por isso menos fortuita: uma outra distribuição

cosmo-semiótica entre forma e fundo, a integração parcial de uma série de pequenas

diferenças no modo de fazer a diferença. É preciso insistir ao máximo sobre a

contingência dessas meta-diferenças, ou recriam-se outros tantos Estados na esfera do

pensamento, traçando-se um grande divisor, uma linha rígida ou “maior” no plano do

conceito — atualizando aquilo que Deleuze & Guattari (1980: 446-ss) chamam de

“ciência de Estado”, a ciência teoremática que extrai constantes das variáveis, por

oposição à “ciência menor”, a ciência nômade e problemática das variações contínuas,

associada antes à máquina de guerra que ao Estado, Mas a antropologia é uma ciência

menor por vocação; é a ciência paradoxal de Clastres.

Essa diferença contingente entre Eu e Outro não impede, ao contrário, incita à

percepção dos elementos de alteridade no coração de nossa “própria” identidade. Assim,

o pensamento selvagem não é o pensamento dos selvagens, mas a potência selvagem de

todo pensamento enquanto este não é “domesticado em vista de um rendimento” (Lévi-

Strauss 1962: 289). O princípio de suficiência subprodutiva e a propensão ao ócio e à

dilapidação criativa pulsa por baixo de todo o moralismo da economia e da suposta

insaciabilidade pós-edênica do desejo humano (Sahlins 1972, 1996). Nossa sociedade

também é capaz gerar momentos — em nosso caso, sempre excepcionais e

“revolucionários” — em que a vida é vivida como uma “sequência inventiva” (Wagner

1981), assim como compartilha com todas as outras — mesmo que de um modo

paradoxal, semi-clandestino — a condição de interpenetração relacional das pessoas que

chamamos “parentesco” (Edwards & Strathern 2000; Strathern 2005). E por fim, no caso

de Clastres, a constatação de nossa dependência constitutiva, no plano do pensamento

mesmo, perante a forma-Estado não impede a percepção de todas as intensidades

contrárias, as fendas, folgas, aberturas, frestas e linhas de fuga por onde nossa sociedade

está constantemente resistindo à sua captura pela transcendência sobrecodificadora do

Estado. É neste sentido que a “sociedade-contra-o-Estado” permanece válida como

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conceito universal — não como tipo-ideal ou como designador rígido de uma espécie

sociológica, mas como analisador de toda e qualquer experiência de vida coletiva.

A segunda forma de universalização consiste, ao contrário, em demonstrar que os

primitivos são mais parecidos conosco do que nós com eles. Eles também, exprimindo

espontaneamente a racionalidade infusa do Capital, são maximizadores genéticos e

individualistas possessivos; eles também otimizam a relação custo-benefício e fazem

escolhas racionais (o que inclui serem convenientemente irresponsáveis quando se trata

da relação com o ambiente — exterminaram a mega-fauna na América! incendiaram a

Austrália!); eles são sujeitos pragmáticos e razoáveis como nós, que não confundem

capitães de longo curso da Marinha Real com divindades bárbaras (cf. Obeyesekere

contra Sahlins) nem experimentam sua consciência íntima, o recesso sacrossanto da

própria subjetividade, sob o modo esdrúxulo da “dividualidade” relacional (cf. LiPuma

contra Strathern); eles também instituem desigualdades sociais à menor oportunidade para

tanto, cobiçam o poder e a riqueza, admiram os mais fortes e, como aquele juiz de

Courbet, têm seus pesadelos de que acordam gritando: “Quero julgar! Quero julgar!”. Eles

aspiram, em suma, a viver sob a economia cósmica que governa a vida do Homem

Moderno: a santíssima trindade do Estado (o Pai), do Mercado (o Filho) e da Razão (o

Espírito Santo). Em suma, esses primitivos estão — ou estavam, até que se lhes passou

nosso trator por cima — no caminho certo. A prova de que eles são humanos (e de que

estamos sendo cientificamente anti-etnocêntricos ao insistir sobre isso, contra aquele

anarco-romantismo “fanático” de Clastres, aquele relativismo cultural “implausível” de

Sahlins, Wagner ou Strathern) é que eles agora compartilham conosco todos os nosso

defeitos naturais, transformados pouco a pouco, é claro, em virtudes sociais, durante as

décadas gloriosas que nos brindaram com Thatcher, Reagan, o Patriot Act, a Fortaleza

Europa, o neo-liberalismo — e, de quebra, com a psicologia evolucionária, pronta a

justificar tudo o que precede com alguma Just-so story. A sociedade primitiva é agora tida

e havida por uma ilusão, uma “invenção” da sociedade moderna (Kuper 1988). Esta

última, ao que parece, não é uma ilusão e jamais foi inventada por quem quer que seja.

Talvez porque só o Capitalismo seja real, natural e espontâneo, o vero Dado encarnado.

Walter Benjamin tinha toda a razão em defini-lo como uma estrutura diretamente

religiosa.

É contra essa segunda forma de universalização, reacionária, míope e, sobretudo,

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reprodutiva da figura do Estado como modelo do Universal, que a obra de Clastres se

construiu, preventivamente por assim dizer. Pois ele sabia muito bem que o Estado não

podia “tolerar”, jamais pôde admitir, as sociedades primitivas, aquelas, justamente, que

não querem ser admitidas. A imanência e a multiplicidade são sempre escandalosas aos

olhos do Um.

O diferente e o semblante

A tese da sociedade contra o Estado é às vezes confundida com um elogio do

libertarianismo no sentido “americano” (estadunidense) do termo, isto é, interpretada

como se seu conteúdo lógico implicasse em uma oposição à interferência do governo

central na vida dos indivíduos, um elogio do assim chamado mercado livre, uma defesa

das milícias de cidadãos, a liberação do porte de arma para todos, um tíquete para algum

Tea Party e por aí afora. Em suma: Pierrre Clastres e Ayn Rand, même combat.

Naturalmente, tomar a desmontagem teórica do conceito de Estado por uma recusa

da organização política enquanto tal, por um elogio do individualismo à americana ou do

auto-capitalismo (o nome certo parece que é “empreendedorismo”), é um engano

grotesco. O cap. 9 é instrutivo a este respeito, na medida em que discute o erro inverso.

Pierre Birnbaum, cujas críticas o autor rebate ali, faz uma leitura durkheimiana da

sociedade contra o Estado, identificando-a, antes que a um elogio do indivíduo, a uma

“sociedade de coerção total”. Clastres glosa assim seu crítico (p. 139):

Em outras palavras, se a sociedade primitiva ignora a divisão social, é ao preço de uma alienação bem mais terrível, a que submete a comunidade ao sistema esmagador das normas às quais não é permitido a ninguém alterar. O “controle social” se exerce de maneira absoluta: não é mais a sociedade contra o Estado, é a sociedade contra o indivíduo.

A resposta de Clastres consiste mais ou menos em dizer que o “controle social”, ou

antes, o poder político, não se exerce sobre o indivíduo, mas sobre um indivíduo, o chefe,

que é individualizado justamente para que o corpo social continue indiviso, “em relação

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consigo mesmo”. Em seguida, o autor esboça a tese (também mencionada no cap. 5) de

que a sociedade primitiva inibe o Estado mediante a extrusão metafísica de sua própria

causa e origem, ao remeter ambas à esfera do mundo mítico primordial, àquilo que está

totalmente fora do controle humano e, nessa medida, não pode ser apropriado por uma

fração da sociedade de modo a convencionalizar desigualdades. Ao colocar seu

fundamento fora de “si mesma”, a sociedade se torna natureza, isto é, torna-se o que

Wagner (1986) chamaria de um “símbolo que representa a si mesmo”, impedindo a

projeção de uma Convenção totalizadora, uma figura do Um que a encarnasse e

sobrecodificasse. A transcendência heteronômica da origem serve então como garantia da

imanência e autonomia do poder social. O mito contra o Estado, em suma.

Clastres credita essa mini-teoria política da religião primitiva a Marcel Gauchet, que

anos mais tarde iria desenvolvê-la em um sentido que o primeiro autor talvez não pudesse

prever. Mas desde o começo, na verdade, Gauchet associava tal exteriorização da origem

justamente à origem do Estado — que surge com a captura, por uma figura humana,

desse lugar da transcendência —, e acabou por derivar daí (para encurtarmos uma longa

história) uma reflexão sobre as virtudes do Estado constitucional moderno, regime no qual

a sociedade se aproximaria de uma situação ideal de autonomia, por via de uma

interiorização das fontes simbólicas da socialidade que seria engenhosa o suficiente para

não destruir sua exterioridade instituinte enquanto tal. O Estado contra o Estado, digamos

assim, em uma autêntica “sublação” do anarquismo clastreano, que se veria finalmente

transformado em um programa político defensável.28

A resposta de Clastres a Birnbaum, parece-me, poderia ter ido mais longe. A

sociedade contra o Estado é efetivamente contra o indivíduo, porque o indivíduo,

enquanto sujeito, é um produto e um correlato do Estado. O Estado precisa do indivíduo e

o indivíduo requer o Estado; a auto-separação criadora do Estado cria-separa igualmente

os sujeitos ou indivíduos (singulares ou plurais), ao mesmo tempo em que o Estado se

apresenta a si mesmo como modelo para estes: l’État c’est le Moi. É assim importante que

possamos estabelecer um contraste nítido entre a sociedade clastreana e seu homônimo

28 Em Moyn 2005 acha-se uma descrição da trajetória de Gauchet, a quem o comentador parece perdoar (ou louvar) tudo, menos seu pecado original, a saber, sua adesão “juvenil” à visão maligna de Clastres. Ver também, em sentido contrário, uma cortante passagem onde Lefort (1987: 202-03) desautoriza, mas sem mencionar nomes, o raciocínio de Gauchet sobre a condensação da alteridade exterior primitiva na figura do Estado.

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durkheimiano, uma fonte de equívocos nem sempre esclarecida por Clastres, que tendeu

ocasionalmente a hipostasiar a sociedade primitiva, concebendo-a como um Sujeito

coletivo, um Super-Indivíduo que seria realmente, e não apenas formalmente, exterior e

anterior ao Estado (Deleuze & Guattari 1980: 443-ss), e assim, ontologicamente

homogêneo a ele. Neste caso, estaríamos efetivamente navegando em águas conceituais

durkheimianas.29 A Sociedade de Durkheim é a forma-Estado em sua tradução

“sociológica”: pense-se na coercividade constitutiva do fato social, na transcendência

inaugural do Todo em relação às Partes, na sua função de Entendimento universal, no seu

poder de unificação inteligível e moral do diverso sensível e sensual. Por isso a relevância

estratégica que tem para Durkheim a “oposição” entre indivíduo e sociedade: um é uma

versão do outro, os membros da sociedade enquanto corpo espiritual coletivo são como

minúsculos sub-Estados individuais subsumidos pelo Estado enquanto Super-Indivíduo. A

sociedade primitiva de Clastres, ao contrário, é contra o Estado, e portanto contra a

“sociedade” concebida à sua imagem. Ela tem a forma de uma multiplicidade assubjetiva,

seus componentes ou associados não são individualidades ou subjetividades, mas

singularidades — ela desconhece a máquina abstrata produtora de sujeitos, rostos ou

semblantes (bela e precisa palavra) que exprimem uma interioridade subjetiva:

[D]eterminados agenciamentos de poder exigem a produção de um rosto, outros não. Se consideramos as sociedades primitivas, poucas coisas passam pelo rosto: sua semiótica é não-significante, não-subjetiva, essencialmente coletiva, polívoca e corporal, apresentando formas e substâncias de expressão bastante diversas. A polivocidade passa pelos corpos, seus volumes, suas cavidades internas, suas conexões e coordenadas exteriores variáveis (territorialidades). […] Os “primitivos” podem ter as cabeças mais humanas, as mais belas e mais espirituais; eles não têm rosto e não precisam dele. A razão disso é simples. O rosto não é um universal, nem mesmo o do homem branco; é o próprio Homem branco, com suas grandes bochechas e o buraco negro dos olhos. O rosto é o Cristo. (Deleuze & Guattari 1980: 215-16, citado conforme a tradução bras. de A.L. de Oliveira e L.C. Leão).

Uma interpretação do anarquismo de Clastres em termos individualistas ou liberais,

subjetivistas e “rostificantes”, seria, portanto, um erro simétrico àquele que imaginaria sua

sociedade primitiva como uma ordem totalitária ou mesmo simplesmente “totalizante”.

Na fórmula feliz de Bento Prado Jr. (2003), o pensamento de Clastres era, mais que

simplesmente anarquista, “anarcôntico”— uma palavra-valise que inclui não apenas uma

referência ao arconte ateniense, mas o “falso” sufixo /-ôntico/, como que para marcar o

29 Por razões algo diferentes, Lefort (1987: 198) também imputa a Clastres uma “tentação” durkheimiana.

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significado metafísico ou ontológico do anarquismo de Clastres, sua oposição ao que este

via como o princípio fundador da filosofia e do Estado ocidental, a saber, a idéia de que o

Ser é Um e o Um é o Bem.

Por isso, é da mais alta importância observar que o regime da exteriorização da

origem intrínseco à sociedade contra o Estado não significa, como Gauchet e outros

sustentam, nem uma exteriorização “instituinte” do Um, nem uma unificação “projetiva”

do Exterior.30 Pois é preciso, por um lado, incluir a máquina de guerra entre os

mecanismos principais de conjuração do Estado mobilizados pelas sociedades primitivas,

e, por outro, tirar todas as consequências do fato de que a exterioridade primitiva é

inseparável da figura do Inimigo como determinação transcendental do pensamento.31 A

exteriorização está a serviço de uma dispersão. O selvagens querem a multiplicação do

múltiplo.

***

Há hoje um sentimento amplamente difundido na Esquerda, de que o neo-liberalismo

efetivamente enfraqueceu o poder do Estado nas sociedades ocidentais modernas, e que é

chegada a hora de abandonarmos a postura anti-estatista e anti-totalitarista associada à

crítica do stalinismo e ao “autonomismo” utópico dos anos 60 e 70. Enfim, é tempo de

constatarmos que talvez tenhamos sido cúmplices do Mercado em sua luta para diminuir

e subjugar o Estado, última barreira protetora dos direitos do povo contra a sanha do

Capital. Essa é uma discussão complexa, que não tenho espaço nem competência para

aprofundar. Mas não posso deixar de dizer que a idéia de que o capitalismo globalizado

acarretou uma diminuição do poder do Estado parece-me uma ilusão. À parte o fato de

que foi e continua a ser preciso um gigantesco aparelho regulador administrado pelo

Estado para produzir a “desregulação” da economia, bem como para sustentar econômica

e politicamente um “livre mercado” que não é nem uma coisa nem outra, não é preciso

ser um militante anarco-autonomista para perceber que jamais os Estados mundiais

30 Este é um ponto que não escapou a Lefort (1987: 201).31 Ver Viveiros de Castro 2009: cap. 12.

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estiveram tão presentes na vida dos “cidadãos”. A Grã-Bretanha, com suas câmeras de

vigilância onipresentes, seus agentes infiltrados nos movimentos civis, sua polícia neo-

orwelliana, transformou-se em um espaço de auto-espionagem universal e perpétua, uma

perfeita encarnação da “sociedade de controle”; nos EUA, a Guerra contra o Terror

justificou uma invasão dos espaços privados e uma violação das liberdades públicas como

jamais se viu na história das democracias modernas; e em toda parte, o aparelho jurídico-

policial dos Estados nacionais dá seu apoio solícito aos esforços das corporações

transnacionais para cercar definitivamente os commons da noosfera e esmagar com a

máxima violência qualquer resistência à biopolítica e à bioeconomia do Capital.32

Enfim, não é preciso ir a Agamben e à sua tese sobre o estado de exceção (o Estado

como “fundado” no estado de exceção), ou reencaminhar o leitor ao utilíssimo manual de

anti-feitiçaria de Pignarre e Stengers, para manter que se pode levar perfeitamente a sério

uma observação feita por Clastres em 1974, e apresentada por um historiador como

evidência cristalina da “fixação” do antropólogo gascão33 no fantasma do totalitarismo:

Nada, senão uma fixação no totalitarismo pode explicar essa recomendação feita por Clastres em uma entrevista: “Não se deixem enganar pelas aparências… A máquina do Estado, em todas as scoiedades ocidentais, está se tornado cada vez mais estatista, o que quer dizer, cada vez mais autoritária… com o amplo apoio da maioria” Ele acrescentava: “A máquina do Estado está se encaminhando para uma espécie de fascismo, não o fascismo de um partido, mas um fascismo interior.” Todos procuram a autoridade para mandar, mesmo aqueles que prometem usar o Estado em nome da liberdade. (Moyn 2004: 72).34

Se lembrarmos do que se passava em 2004, quando Moyn escrevia estas linhas, nos

EUA e em tantos outros lugares santos da democracia no Ocidente, até que o juízo de

Clastres não soa tão paranóico assim. E ele não difere muito, no frigir dos ovos, do que já

previa o velho Tocqueville (Moyn 2005: 179), não é mesmo? Por fim, se os leitores

preferirem a opinião de outro especialista inconteste na cultura política francesa, e que

tampouco pode ser considerado um anti-estatista hidrófobo, recordemos então Tony Judt

32 Veja-se o caso exemplar de Marie Mason e o “Green Scare”(http://migre.me/3PxMN), entre outros. O ativista ecológico se vê promovido a terrorista, e o “pirata” que baixamúsicas na internet é aproximado da figura do “inimigo de todos” (Heller-Roazen 2009), a tal ponto que hoje a situação se inverteu, e todos nos tornamos os inimigos do Um; todos nós fomos transformados em terroristas virtuais diante do Estado.33 Prado Jr (2003) lembra que Clastres, nascido na Gasconha (”como D’Artagnan”), só foi aprender o francês, arquétipo moderno de toda língua maior ou de Estado, na escola. Esse detalhe biográfico ilumina particularmente a leitura do cap.4 deste livro, “Do etnocídio”, ajudando a perceber algo do substrato existencial do discurso clastreano.34 A citação de Clastres provém da entrevista a L’Anti-Mythes (1975).

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(2010), em artigo recente (cito a versão on-line):

O Estado, longe de desaparecer, pode estar às vésperas de alcançar seu triunfo total: as prerrogativas da cidadania, a proteção fornecida pelos documentos que consignam os direitos de residência, todas essas coisas vão ser utilizadas como trunfos políticos. Demagogos intolerantes, brotados de dentro de nossas democracias estabelecidas, irão, muito em breve, começar a exigir “testes” — de conhecimentos, de linguagem, de atitude — para decidir se todos esses imigrantes desesperados, acabados de desembarcar, merecem ou não a “identidade” britânica, ou holandesa, ou francesa. Já se está fazendo isso. Neste admirável novo século, vamos sentir saudade dos tolerantes, dos marginais — do povo da borda [the edge people].

Bem, talvez Pierre Clastres não fosse especialmente tolerante. Mas ele pertencia sem

dúvida ao povo da borda, em mais de um sentido. Pois o caso é que todos nós precisamos

em algum momento, ou melhor, a cada momento, escolher entre “tornar-se índio” —

habitar a margem e viver nas bordas — ou permanecer no centro fortificado, identificado

ao colonizador. Uma questão de, como direi?, “gosto”.

Entre a filosofia e a etnologia

A crítica de Clastres à antropologia lévi-straussiana, fundada na convicção de que haveria

dimensões importantes da vida humana que escapavam tanto à metodologia do

estruturalismo como à sua ontologia do social, foi um dos primeiros sinais da virada pós-

estruturalista do pensamento francês nas cercanias de 1968, que trouxe a filosofia política

(e a política da filosofia) para o centro da cena. Clastres e Sebag, de fato, eram os dois

candidatos naturais ao papel de mediadores entre o projeto científico de Lévi-Strauss e o

horizonte filosófico mais amplo em que este projeto, nolens volens, estava situado.35 A

morte de ambos interrompeu brutalmente essa comunicação complexa, iniciando uma

fase de dormência filosófica da antropologia francesa, de que esta que só recentemente

começou a despertar, e isso graças à iniciativa de uma nova geração de filósofos (onde 35 Lévi-Strauss sempre marcou, com ênfase não despida de altivez, a distância entre suas preocupações e as da filosofia “do seu tempo”. Como se ele não se desse conta (ou fingisse não dar) de que sua própria obra ia contribuindo de maneira decisiva para modificar a filosofia do seu tempo, e que além disso, para além das diferenças de estilo, de objeto, ou de ascendência teórica, era evidente a emergência de um campo problemático transdisciplinar, comum aos diversos “estruturalismos”, inclusive aqueles em que Lévi-Strauss não se reconhecia (Deleuze 1972; Maniglier 2011).

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cabe destacar a estratégica intervenção inicial de Jean Petitot, e, nos últimos anos, a

reflexão de Patrice Maniglier) mais que aos herdeiros disciplinares de Lévi-Strauss.36

É sem dúvida por via da filosofia que a obra de Clastres se inscreve na história

intelectual e pode pretender a uma atualidade no presente. Mas essa obra consiste,

primeiro que tudo, em uma intervenção no campo da antropologia social ameríndia, (e

aqui, outra vez, Clastres prolonga Lévi-Strauss), intervenção esta que veio fecundar a

filosofia ocidental com o aporte do pensamento dos selvagens, abrindo a possibilidade de

um verdadeiro devir-índio do conceito. Recoloca-se, portanto, a questão da utilidade da

obra de Clastres no ambiente político e filosófico contemporâneo. Neste momento, em

que pensar se tornou tarefa da mais profunda urgência e da mais extrema gravidade —

quem ainda não percebeu que “nossa civilização”, com toda certeza, e nossa espécie,

com forte probabilidade, entraram em uma crise de dimensões absolutamente inauditas? e

que pode destruir, junto consigo, uma boa parte da vida no planeta? — neste momento,

dizíamos, o excêntrico etnólogo gascão e sua estranha sociedade primitiva continuam

bons para pensar?

***

Costuma-se considerar Pierre Clastres como um autor de uma nota só, proponente de uma

tese monolítica, a “Sociedade-contra-o-Estado”. Note-se, de saída, que essa forma de

organização da vida coletiva é, na verdade, definida por uma dupla relação inibitória:

uma inibição interna, a chefia sem poder, a outra externa, o dispositivo centrífugo da

guerra. Tal distinção, em si mesma, sugere a possibilidade de interpretações filosóficas

distintas, senão divergentes, da obra de Clastres. E, como toda possibilidade aspira à

realidade, isso foi naturalmente o que aconteceu. Há de fato duas leituras principais dessa

36 Dentre estes últimos, a parcela mais dinâmica dedicou-se, de início, a cultivar um cognitivismo de inspiração originalmente chomskyana; mais tarde, parece ter aderido ao catecismo da psicologia evolucionária. A maioria dos herdeiros, porém, refugiou-se em uma prática etnográfica tendendo ao burocrático, marcada por um grande rigor descritivo e uma modesta imaginação teórica — com as exceções de praxe, escusado dizer. Nos últimos cinco anos, a obra de Philippe Descola (2005) aparece sem dúvida como a primeira tentativa de fôlego da antropologia francesa de retomar a trajetória interrompida do pensamento estruturalista, em bases próximas à inspiração lévi-straussiana.

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obra: a fenomenólogica e a deleuzo-guattariana. Mas sua coabitação um tanto

problemática não foi até agora, que eu saiba, objeto de nenhuma menção mais explícita

pelos comentadores, e menos ainda de qualquer reflexão mais aprofundada. As linhas

abaixo, por isso, têm apenas um valor sugestivo e tentativo.

A primeira leitura da obra de Clastres põe a ênfase na determinação que ali teria sido

feita de uma “função política”, invariante através de todas as sociedades. O propósito ou

resultado dessa função seria “constituir um lugar onde a sociedade aparece para si

mesma” (Richir 1987: 69). A sociedade-contra-o-Estado é definida, nesses termos, por um

certo modo de representação política, a política ela própria sendo concebida como um

modo de representação, um dispositivo de projeção de um duplo molar do corpo social

no qual este se reconhece (“aparece”) como tal. A figura do chefe sem poder — a inibição

interna, objeto dos primeiros trabalhos de Clastres — avulta aqui como o aporte

primordial do autor, que teria descoberto uma nova ilusão transcendental (id.: 66), um

novo modo de instituição (necessariamente imaginária, no sentido de Castoriadis) do

social; digo novo, mas tratar-se-ia de fato do modo arcaico ou originário da socialidade.

Este modo consistiria na retroprojeção de um Exterior, uma “Natureza” que é preciso

negar para que a Cultura ou Sociedade possam se instituir, mas que é preciso ao mesmo

tempo representar dentro do socius por um simulacro que é, precisamente, o lugar

destinado à figura do poder. Temos assim o chefe como quase-natureza, o elemento

excluído do circuito socializante da troca, a imagem invertida do socius: o líder, frio e

imóvel espelho do grupo, reflete para este sua face una e indivisa.

Essa interpretação efetua o que se poderia chamar, com perdão do trocadilho, de

“redução fenomenológica” da sociedade-contra-o-Estado. Redução feita com a inteira

complacência do inventor do conceito, diga-se de passagem. Refiro-me com isso à

proximidade entre Clastres e os intelectuais reunidos à volta de de Claude Lefort na

concepção da revista Textures e em seguida da Libre, onde foram publicados os três

últimos capítulos do presente livro. Lefort, aluno de Merleau-Ponty, egresso do movimento

trotskysta, com quem rompeu em 1948, co-fundou com Cornelius Castoriadis o

legendário “Socialisme ou Barbarie”, grupo que teve um papel de destaque na história do

socialismo libertário na França. A marca registrada desse agenciamento fenomenológico-

socialista (que incluía Marcel Gauchet até sua conversão ao liberalismo, a partir dos anos

80) era a combinação de um radical anti-totalitarismo político com um não menos radical

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humanismo metafísico, que já se revelava, por exemplo, no tipo de crítica “anti-troquista”

cedo dirigida por Lefort (1951) contra o estruturalismo, bem como em sua tentativa de

trazer os primitivos para o regaço da História, ao propor — supostamente contra Hegel e o

materialismo histórico — a existência de “modos de historicidade” próprios, os quais

exprimiram posições intencionais características de cada sociedade, reflexos de suas

maneiras singulares de habitarem o tempo.

A rejeição por Lefort da teoria lévi-straussiana da troca e da busca estruturalista das

regras formais subjacentes à prática, em favor de um entendimento da “conformação

[mise en forme] das relações vividas entre os homens” (Lefort 1987: 187) pode ter tido

alguma influência sobre Clastres, ainda que este talvez deva mais, no que respeita ao seu

“anti-troquismo”, à Genealogia da Moral, tendo tomado sua inspiração do Anti-Édipo, isto

é, do Nietzsche deleuziano. De qualquer modo, sua formação mostra uma óbvia dívida

para com o universo de temas e problemas da fenomenologia (lato sensu). Ele sempre

reconheceu, por exemplo, a importância formativa de Heidegger sobre seu pensamento,

que transparece em sua interpretação das concepções indígenas sobre a linguagem, ou na

idéia (melhor dizendo, neste caso, na fórmula verbal) de um “ser-para-a-morte” do

guerreiro selvagem, avançada em seu último texto publicado.37 Reciprocamente, é muito

mais no ambiente filosófico-fenomenológico do que no antropológico-estruturalista que a

obra de Clastres continua a repercutir na França, como dá testemunho a coletânea L’Esprit

des lois sauvages, onde se destacam, pela profundidade do engajamento com o

pensamento do homenageado, as contribuições de Miguel Abensour, Marc Richir e

Claude Lefort. Abensour (1987a: 11), por exemplo, é explícito em sua generosidade

cooptativa: “A obra de Clastres faz parte de uma abordagem fenomenológica…“38

O que vai sobretudo caracterizar a “leitura Libre” da obra de Clastres é a associação

desta obra com uma concepção canonicamente metafísica da idéia de uma antropologia

política. Segundo essa concepção, a essência do humano é política; a dimensão do

político arranca o homem do domínio da natureza, fazendo o “animal político” deixar de

37 É interessante observar, nesse sentido, como Clastres recorre ao tópico de uma oposição fundamental entre linguagem e violência em seu artigo inaugural de 1962 sobre a chefia (Sebag diria o mesmo, mas sobre si mesmo, na primeira linha de seu livro de 1964). A última teoria da sociedade primitiva (o cap. 11 do presente livro), ao contrário, que recupera a “violência” como instrumento de liberdade antes que de dominação, permanece muda sobre a linguagem e seus funcionamentos possíveis nessa outra direção.38 Ou “está incluída em uma perspectiva fenomenológica” [fait partie d’une approche phénoménologique].

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ser apenas um animal, e tornando-o um ser dividido, simbólico e auto-transcendente;

carente e capaz, ao mesmo tempo, de representar para ser. A novidade do gesto de

Clastres teria consistido, conforme essa leitura, em redefinir a extensão referencial do

conceito do político, ao incluir aquelas sociedades tradicionalmente tidas por “pré-

políticas”, mas também em reformular sua compreensão, dissociando o político da

transcendência estatal. Indo mais longe, poder-se-ia talvez dizer que Clastres, a rigor,

inverteu o sentido, a referência e a “vetorização histórica” do conceito de sociedade

política. As verdadeiras sociedades políticas — porque verdadeira ou mais integralmente

humanas — são as sociedades primitivas, aquelas contra o Estado.39 Semelhante inversão,

naturalmente, não rompe com a metafísica antropológica: a política permanece

antropogenética e antropotélica. Em uma palavra, antropocêntrica. Ou, na “reveladora”

palavra de Lefort: “Somente o homem pode revelar ao homem que ele é um homem…“40

O extra-humano, mesmo ali onde ele é um elemento reconhecido como integral à

constituição (especular) da humanidade, pertence ao domínio da crença, ele é uma

divisão interna ao humano; a exterioridade é, precisamente, uma ilusão transcendental.

Revelação, ilusão, revelação…

***

A segunda apropriação filosófica da etnologia de Clastres põe a ênfase na inscrição de

fluxos antes que na instituição de imagens, nos códigos semiótico-materiais antes que na

Lei simbólica, na segmentaridade flexível e molecular antes que na macropolítica binária

do interior e exterior, na máquina de guerra centrífuga antes que na chefia centrípeta.

Estou-me referindo, é claro, à leitura feita por Deleuze e Guattari no díptico Capitalismo e

esquizofrenia, os “famigerados” — no duplo sentido, o rosiano e o dicionarizado —

L’Anti-Œdipe (1972) e Milles plateaux (1980), onde as idéias de Clastres são utilizadas

como um dos principais elementos para a montagem de uma uma antropologia

39 É neste sentido, em particular, que Clastres “permanecia um evolucionista, e supunha um estado de natureza, com a diferença que esse estado de natureza era, para ele, uma realidade plenamente social…”(Deleuze and Guattari 1980: 445).40 Citado por Abensour (1987b: 141). A forte ênfase de Clastres na determinação do econômico pelo político (ver os caps. 8 e 10 aqui) pode ter uma de suas raízes — haverá decerto outras — em tal humanismo.

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radicalmente materialista, isto é, não-humanista e não-representacionalista, bastante

diversa do espiritualismo político que transpira das interpretações fenomenológicas de

Clastres.

O Anti-Édipo foi um livro essencial para Clastres, que assistiu aos cursos onde ele foi

ensaiado (Prado Jr. 2003), ao mesmo tempo em que sua própria obra era incorporada ao

argumento de Deleuze e Guattari. Mil platôs, por sua vez, publicado após a morte de

Clastres, critica e desenvolve em uma direção inteiramente nova as intuições do autor.

Deleuze e Guattari completaram o trabalho de Clastres, liberando-o de sua ganga mística

e atualizando uma riqueza filosófica que nele permanecera em estado incoativo ou

virtual. O silêncio embaraçado com que a disciplina antropológica acolheu os dois livros

de Deleuze-Guattari, nos quais tem lugar um dos diálogos mais inspiradores jamais

travados entre a filosofia e a antropologia, talvez explique (e/ou se explique por) o mal-

estar análogo que a obra de Clastres provocou no prudente e pundonoroso “meio

acadêmico”. “Parece-me que os etnólogos deveriam se sentir em casa no Anti-Édipo,

estimava Clastres (citado in Guattari 2009: 85). Pode ser; mas a grande maioria deles não

se sentiu nem um pouco assim.41

No Anti-Édipo, a sociedade-contra-o-Estado se tornou a “máquina territorial

primitiva”, perdendo suas conotações parasitas de Sujeito coletivo e transformando-se em

um puro “modo de funcionamento” — para falarmos como o próprio Clastres —, cujo

objetivo é a codificação exaustiva dos fluxos materiais e semióticos que constituem a

produção desejante humana. Essa máquina territorial codifica os fluxos, investe os órgãos,

marca os corpos: ela é uma máquina de inscrição. Seu funcionamento supõe a unidade

imanente do desejo e da produção que é a Terra. A questão da chefia sem poder se vê

assim resituada em um contexto geofilosófico mais amplo: a vontade de não-divisão que

Clastres via no socius primitivo se torna impulso de codificação absoluta dos fluxos e de

preservação da coextensividade entre o corpo social e o corpo da Terra. A conjuração

“antecipatória” de um poder separado é a resistência dos códigos primitivos à

sobrecodificação despótica, a luta da Terra contra o Estado desterritorializador. A

intencionalidade coletiva que se exprime na recusa da unificação por uma instância

41 O silêncio quase geral do estabelecimento antropológico sobre os dois livros de Deleuze e Guattari, em particular na França, é objeto de um esboço de reação (tardia, decerto) em Viveiros de Castro 2009. Para uma avaliação muito perspicaz, e relativamente precoce, do componente antropológico do Anti-Édipo, ver Hermano Vianna 1990.

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sobrecodificante perde assim sua máscara antropomórfica, tornando-se — e aqui já

estamos usando a linguagem de Mil Platôs — um dos efeitos de um certo regime de signos

(a “semiótica pré-significante”) e da dominância de uma segmentaridade primitiva

marcada por uma “linha relativamente flexível de códigos e territorialidades

entrelaçados”.42

A conexão principal entre Anti-Édipo e a reflexão de Clastres está em uma comum,

embora não exatamente idêntica, rejeição da troca enquanto “princípio” fundador da

socialidade. O Anti-Édipo sustentava que a noção nitezscheana de dívida deveria estar no

lugar eminente ocupado pela reciprocidade de Mauss e Lévi-Strauss. Clastres, em seu

primeiro artigo sobre a filosofia da chefia indígena — uma crítica engenhosamente

sinuosa a um texto de Lévi-Strauss que pensava a chefia como uma troca recíproca entre o

líder e o grupo —, já havia sugerido que a concepção indígena do poder implicava ao

mesmo tempo uma afirmação da reciprocidade e sua negação, ao colocar o lugar do

chefe fora de sua esfera, na posição, precisamente, de devedor unilateral perpétuo do

grupo. Sem retirar da troca seu valor sociológico fundante, Clastres introduzia a

necessidade política instituinte de uma não-troca.43 Em seus últimos artigos sobre a guerra,

a disjunção entre troca e poder se transforma, ao contrário, em uma estranha ressonância.

Ao deslocar-se da relação intracomunitária para a relação intercomunitária, a negação da

troca se converte na essência mesma do socius primitivo. A sociedade primitiva é “contra

a troca” pelas mesmas razões que é contra o Estado: porque ela deseja a autarquia e a

autonomia — porque ela “sabe” que toda troca é uma forma de dívida, isto é, de

dependência, mesmo se recíproca.

Mil Platôs desenvolve as teses de Clastres em dois longos capítulos: um sobre a

“máquina de guerra”44 enquanto forma pura de exterioridade (em termos da qual a guerra

propriamente dita tem um papel secundário), por oposição ao Estado enquanto forma de

interioridade (em termos da qual a centralização administrativa tem um papel igualmente

secundário); e o outro sobre o “aparelho de captura”, que expõe uma teoria do Estado

como um modo de funcionamento co-presente aos das máquinas de guerra e dos

mecanismos de inibição característicos (mas não exclusivos) das sociedades primitivas.

42 Deleuze & Guattari 1980: 271; sobre a semiótica pré-significante, id.: 147-ss.43 Essa negatividade, em Lévi-Strauss, permaneceria na esfera do imaginário; recorde-se o célebre parágrafo final das Estruturas elementares do parentesco, que remete a desnecessidade da troca para o Além.44 Onde uma seção tem a dedicatória: “homenagem à memória de Pierre Clastres”.

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Esses desenvolvimentos modificam não só alguns aspectos das proposições de Clastres,

como algumas categorizações axiais do Anti-Édipo. Assim, por um lado, o esquema linear

Selvagens-Bárbaros-Civilizados do primeiro livro se desdobra como que lateralmente,

passando a incluir a figura que eu chamaria “suprasegmental” do Nômade, ao qual a

máquina de guerra passa a estar constitutivamente associada. Por outro lado, surge uma

nova tripartição, derivada do importante conceito de segmentaridade: a linha flexível e

polívoca dos códigos e territorialidades primitivas; a linha rígida de sobrecodificação e de

ressonância generalizada (o aparelho de Estado); as linhas de fuga definidas pela

decodificação e desterritorialização (a máquina de guerra). A sociedade primitiva de

Clastres (os “Selvagens” do Anti-Édipo) deixa de ser a “inventora” da máquina de guerra e

assim de ser definida por ela; ela apenas lança mão da máquina como uma forma de

exterioridade, para conjurar as tendências de sobrecodificação e de ressonância que estão

constatemente prontas a subsumir os códigos e territorialidades primitivas, os quais

funcionam, essencialmente, segundo um regime de inibição da ressonância dos centros

de poder (dispersão, molecularidade, multiplicidade): o regime primitivo é essencialmente

a antecipação-conjuração do Estado por inibição da ressonância segmentar. Do mesmo

modo, o Estado pode capturar a máquina de guerra — que é, não obstante, seu exterior

absoluto, sua, literalmente, nemesis — e pô-la a seu serviço, não sem correr o risco de ser

destruído por ela (caso do nazismo). Por fim, as socidades contemporâneas continuam

“imersas em um meio [tissu] flexível fora do qual seus segmentos rígidos não se

sustentariam”.45 Com isso, a dicotomia exaustiva e mutuamente exclusiva entre dois

macro-tipos de sociedade (“com” e “contra” o Estado) se diversifica e complexifica. As

linhas coexistem, se entrelaçam e se transformam umas nas outras; o Estado, a máquina

de guerra, a segmentaridade primitiva perdem suas conotações tipológicas e se tornam

formas ou modelos abstratos, atualizando-se em procedimentos e substratos materiais

múltiplos: em estilos científicos, filos tecnológicos, atitudes estéticas e sistemas filosóficos

tanto quanto em formas de organização macropolítica ou modos de representação-

instituição do socius.46

45 Deleuze & Guattari 1980: 259-60.46 Para a leitura fenomenológica ou representacionalista de Clastres, a “guerra” primitiva — o segundo dispositivo inibitório — não deixará de constituir um desafio e um enigma. Nota-se assim, em alguns dos comentários reunidos em L’Esprit des lois sauvages, uma dificuldade de pensar a violência guerreira em toda a sua positividade, em vista da pressuposição de que o laço social é primordialmente determinado como

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Finalmente, ao mesmo tempo em que eles incorporam uma tese fundamental de

Clastres, quando afirmam que não é o Estado que se explica por um desenvolvimento das

forças produtivas, pois, antes que supondo um modo de produção, é o próprio Estado que

faz da produção um “modo” (op.cit.: 534), Deleuze e Guattari esbatem o contraste radical

e intransigente entre o político e o econômico característico de Clastres. Como se sabe, a

posição dos dois volumes de Capitalismo e esquizofrenia face ao materialismo histórico —

ao etnomarxismo francês inclusive — é bastante diferente daquela do autor de “Os

marxistas e sua antropologia” (cap. 10). Por outro lado, e este é um ganho decisivo, no Mil

platôs a questão da origem do Estado deixa de ser o mistério que, no fundo, ela sempre foi

para Clastres (o mal-encontro… a demografia…), para tornar-se o exemplo privilegiado de

uma não-questão. O Estado deixa de ter uma origem “histórica”, pois o tempo ele próprio

é o sítio de causalidades reversas, não-evolucionárias (op.cit.: 537); e o Estado existiu

“desde sempre”, sob forma de virtualidade imanente, inclusive nas sociedades primitivas.

Não há apenas uma muito antiga presença atual do Estado “fora” das sociedades

primitivas, mas sua perpétua presença virtual “dentro” destas sociedades, sob a forma dos

maus desejos que é preciso conjurar e dos focos de ressonância segmentar que estão

sempre a se formar.47 A desterritorialização bárbaro-estatal não é historicamente segunda

em relação ao território selvagem-primitivo, os códigos não são separáveis do movimento

de decodificação (op.cit.: 271).

Criticadas e requalificadas, as teses expostas nos textos curtos e lapidares de Pierre

Clastres têm assim um peso decisivo na dinâmica conceitual de Capitalismo e

Esquizofrenia. Em particular, a teoria clastreana da “guerra” enquanto máquina abstrata de

geração de multiplicidade, oposta, em sua essência, ao Estado sobrecodificador — a

guerra como inimiga número um do Um —, desempenha um papel-chave nesse que é um

dos maiores sistemas filosóficos do século XX.

philia (como Amity, diria Meyer Fortes). “Como pensar juntas a guerra e a amizade?” (Abensour 1987b: 139). A exclusão violenta do inimigo aparece como condição negativa da unidade intra-comunitária; a Amity se define primeiro que tudo como não-Inimizade, antes que o inverso. Isso é um paradoxo quase intolerável para um pensamento que identifica a socialidade à koinonia cristã (id.: 141). Outra formulação do paradoxo clastreano: a guerra como “relação que separa, que opõe os homens entre si e … ao mesmo tempo, os conecta sob o signo de uma multiplicidade refratária à totalização” (loc.cit.). Relação que separa… a fórmula só parecerá paradoxal a quem não leu Wagner, Strathern — ou Deleuze.47 Ver o comentário aprovativo de Clastres à noção de “Urstaat” in Guattari 2009: 86. Sobre o “fora” e o “dentro”, ver a observação absolutamente crucial de Deleuze e Guattari: “A lei do Estado não é a lei do Tudo ou Nada (sociedades com Estado ou contra o Estado), mas a lei do interior e do exterior”. (1980: 445).

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***

“Por que voltar aos primitivos, pois que se trata da nossa vida?” perguntam-se

filosoficamente Deleuze e Guattari (1980: 254). Às vezes gosto de imaginar que Clastres

jamais teria aceito essa pergunta. Como bom etnólogo que era, penso que ele a teria

reformulado de modo a conter sua própria resposta: “Por que voltar aos primitivos? Porque

se trata de nossa vida.” Talvez essa diferença, que, repito, meramente imagino, sirva para

considerarmos a distância que (ainda ou sempre) separa essas duas artes das distâncias, a

filosofia e a etnologia.

Entre a antropologia e a etnologia

A justificada excitação em torno de diversas descobertas arqueológicas recentes, que

trouxeram à luz vestígios, na Amazônia, de formações sociais semelhantes às chefaturas

circum-caribenhas — senão mesmo, talvez, às civilizações do planalto dos Andes e da

costa peruana — bem como o avanço dos estudos históricos sobre as zonas de contato e

os processos de intercâmbio entre os entes sociopolíticos andinos e os coletivos das terras

baixas do continente, têm levado alguns estudiosos a desqualificar o conceito da

“sociedade-contra-o-Estado”, que, para eles, não passaria de um artefato duplamente

europeu: tomaria por um estado de coisas originário o que é, na verdade, o resultado de

uma dramática involução das sociedades das terras baixas (da Amazônia em especial) a

partir do século XVI; e seria a projeção ideológica de algumas velhas utopias ocidentais

que haviam recuperado sua liquidez durante a fatídica década de 1960.

O fato de que esses dois argumentos invalidantes, em que pese à sua independência

mútua (senão contradição interna), tenham sido mobilizados ao mesmo tempo por certas

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correntes da etnologia atual,48 sugere que estas últimas não estão livres de sua própria

carga de preconceitos e projeções. A focalização nas forças centrífugas que inibiam o

surgimento da forma-Estado jamais impediu Clastres, ao contrário do que aparentam

pensar seus críticos, de registrar e destacar “o lento trabalho das forças de unificação” nas

organizações multicomunitárias das Terras Baixas, nem a presença de formas de

estratificação social e de centralização política na região (sobretudo no norte e noroeste

amazônicos).49 Quanto às utopias “anarcônticas” ocidentais, sabe-se o quanto elas devem,

precisamente, ao encontro com as sociedades do Novo Mundo no início da era moderna.

Os equívocos foram sem dúvida legião — mas não foram arbitrários. Por fim e sobretudo,

observe-se que a regressão demográfica pós-colombiana, catastrófica como efetivamente

foi, não pode explicar tudo da presente paisagem sociopolítica da América indígena:

assim como qualquer outra trajetória evolucionária, a “involução” exprime

necessariamente mais, e outra coisa, do que apenas as exigências e limitações

adaptativas. É sobre este excedente crucial de sentido — de morfologia, estrutura, cultura

ou história, como se queira — que a pertinência etnológica da tese da “sociedade-contra-

o-Estado” está apoiada, e em função do qual ela deve ser avaliada.50

A sociedade primitiva talvez fosse, para Clastres, algo como uma essência; mas não

era uma essência estática. O autor sempre a concebeu como um modo de funcionamento

profundamente instável, em sua busca mesma de estabilidade a-histórica. Seja como for,

existe, sim, um “modo de ser” muito característico do que ele chamou sociedade

primitiva, e que nenhum etnógrafo que tenha convivido com uma cultura amazônica,

mesmo uma daquelas que mostra elementos importantes de hierarquia e de centralização,

pode ter deixado de experimentar em toda sua evidência, tão ubíqua como elusiva. Esse

modo de ser é “essencialmente” uma política da multiplicidade; Clastres talvez possa ter-

se enganado ao interpretá-la como se ela devesse se exprimir, em toda parte, como

multiplicidade “política”, isto é, como uma forma institucionalizada de auto-

representação coletiva. A política da multiplicidade é um modo de devir antes que um

modo de ser (donde sua elusividade); ela é efetivamente instituída ou institucionalizada

em certos contextos etno-históricos, mas não depende dessa passagem a um estado molar 48 Isso… e também há isso… é como na anedota freudiana do balde furado.49 Isso sem falar de sua fascinação pelo problema da suposta crise das sociedades Tupi-Guarani, que estariam às vésperas de gerar “a mais mortal das inovações”, o Estado e a desigualdade social. Para tudo isso, ver os caps. 2, 3 e 4 de A Sociedade contra o Estado e o cap. 5 do presente livro.50 E isso a despeito dos pendores demográfico-deterministas do próprio Clastres.

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para funcionar — muito pelo contrário. Esse modo precede sua própria instituição, e

permanece em seu estado molecular original (ou retorna a ele) em muitos outros

contextos, não-primitivos inclusive e sobretudo. “Sociedade-contra-o-Estado”, em suma, é

um conceito que designa um modo intensivo de existência ou um funcionamento virtual

onipresente, cujas condições variáveis de extensivização e de atualização compete à

antropologia determinar empiricamente. Não basta apontar com o dedo para um déspota

faccional jê, um clã tukano de alta hierarquia ou uma “aristocracia” alto-xinguana para

estourar a idéia da sociedade contra o Estado como se ela fosse uma bolha de sabão — de

sabonete, quero dizer, francês, e perfumado, por suposto.

***

A posteridade de Clastres na etnologia sul-americana tomou dois rumos principais. O

primeiro consistiu na elaboração de uma teoria sobre a organização social amazônica,

conhecida por nomes como “economia simbólica da alteridade” ou “metafisica da

predação”51, que prolonga as teses sobre a guerra primitiva; o segundo foi a descrição do

correlato cosmológico da sociedade- contra-o-Estado, o assim chamado “perspectivismo

ameríndio” ou “multinaturalismo”.52 Os dois rumos, ou eixos, exploram a hesitação

criativa entre tendências estruturalistas e pós-estruturalistas que marca a obra de Clastres;

ambos privilegiam a leitura deleuzo-guattariana sobre a leitura fenomenológica dessa

obra.53 Juntos, eles definem uma cosmopolítica indígena da multiplicidade perspectiva,

51 Viveiros de Castro 2002b; Lévi-Strauss 2000: 720.52 Lima 1996; Viveiros de Castro 1996.53 Na etnologia brasileira, que responde por uma boa parcela desses desenvolvimentos, Clastres nunca deixou de ser um interlocutor de primeira ordem (Lima & Goldman 2001, Barbosa 2004). A tese ainda não-publicada de Sztutman (2005) é a tentativa mais completa to date de submeter suas idéias a uma atualização etnográfica. Ver também Sztutman 2009a, 2009b; Perrone-Moisés & Sztutman 2010 e Perrone Moisés [no prelo], para análises e aplicações inovadoras das idéias clastreanas. Não posso fazer mais que registrar, aqui, o fato de que a presença de Clastres na filosofia brasileira também não é nada desprezível, como atestam os trabalhos de J.A. Giannotti, Bento Prado Jr. ou, mais recente e muito mais focalizadamente, de Sérgio Cardoso.

No mundo anglófono, uma tendência ou escola etnológica sob a liderança de Joanna Overing inspirou-se em Clastres, ainda que de um modo algo impressionista e unilateral, inclinando-se por uma leitura que destaca os aspectos supostamente convivialistas e comunitaristas das sociedades amazônicas,

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que pode ser dita constituir uma contra-antropologia, uma poencial antropologia reversa

(no sentido de Wagner 1981), instalada no intervalo precário “entre silêncio e diálogo”.

Na verdade — a verdade sempre se conta no fim —, os presentes comentários ao

trabalho de Clastres têm também essa intenção: a intenção de assumir claramente, ou, se

preferirem, de começar a reconstruir polemicamente, a aliança epistemo-política do

perspectivismo e da metafísica da predação com a leitura clastreana do estruturalismo. E

com efeito, esta não é uma má uma maneira de situar os motivos do perspectivismo

interespecífico, do multinaturalismo ontológico e da alteridade canibal, que formam

como a trama temática e a urdidura metateórica da etnologia amazônica (de “uma certa”

etnologia, é claro) a partir dos anos 80 — não é uma má maneira de fazê-lo mostrando

sua derivação a partir da obra clastreana.

***

A teoria da guerra de Clastres, embora pareça, à primeira vista, reforçar uma oposição

binária massiva entre o Dentro e o Fora, o Nós humano e o Outro menos-que-humano,

termina de fato por desdobrar e relativizar a posição de alteridade — e portanto qualquer

posição de identidade —, solapando o subtexto narcísico ou “etnocêntrico” (cer o cap. 4)

que acompanha por vezes sua caracterização da sociedade primitiva.

Imaginemos a etnologia clastreana como um drama conceitual onde se defrontam

um pequeno número de personagens ou tipos: o chefe, o inimigo, o profeta, o guerreiro.

Todos constituem figuras de alteridade, operadores paradoxais que definem o socius por

meio de alguma forma de negação (a sociedade primitiva de Clastres parece sempre

projetar uma antropologia negativa, ou talvez contra-afirmativa: contra o Estado, contra a

história, contra a economia, contra a troca). Assim, o chefe encarna o exterior da Troca

fundadora da sociedade, e representa o grupo na medida em que tal exterioridade é

ignorando (para dizer o mínimo) o que Clastres chamaria de seu ser-para-a-guerra. (A monografia recente de Rupert Stasch sobre os Korowai da Melanésia traz uma avaliação curta e fina [Stasch 2009: 7-11] dessa concepção gemeinschaftlich da socialidade.) Entre os Amazonistas franceses, a influência de Clastres é sistêmica, mas quase sempre auto-reprimida ou denegada, quando mais não seja porque a anarquia ontológica não está exatamente na ordem do dia na academia local.

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interiorizada e domesticada: ao tornar-se “o prisoneiro do grupo”, ele permite sua unidade

e indivisão. O inimigo nega o Nós coletivo, permitindo que este se afirme contra ele, por

sua exclusão violenta; o inimigo morre para assegurar a persistência do múltiplo, a lógica

da separação. O profeta, por sua vez, é o “inimigo” do chefe, ele afirma a sociedade

contra a chefia quando esta ameaça escapar do controle do socius e se afirmar como

poder transcendente; ao mesmo tempo, o profeta arrasta a sociedade para uma saída

impossível, a auto-dissolução. O guerreiro, por fim, é o inimigo de si mesmo, destruindo-

se na demanda da imortalidade gloriosa, impedido pela sociedade que ele defende de

transformar seu valor no combate em valor de poder. O chefe é uma espécie de inimigo, o

profeta uma sorte de guerreiro, e assim por diante.

Essas quatro personagens formam então um círculo de alteridade que contra-efetua

ou contra-inventa a sociedade primitiva.54 Mas no interior do círculo não está o Sujeito, o

Eu-Nós, a forma reflexiva da Identidade. O quinto elemento, que pode ser dito o elemento

dinâmico central precisamente por sua excentricidade, é o personagem sobre o qual se

apóia toda política da multiplicidade: o aliado político, interposto entre os pólos de

interioridade e exterioridade ocupados pela comunidade de referência e as comunidades

inimigas. Nunca há apenas duas posições no socius primitivo, tudo gira em torno do

aliado, o terceiro termo que permite converter a indivisão interna na fragmentação externa

e reciprocamente, modulando a guerra indígena e a transformando em uma relação social

plena, ou mesmo, como sustenta Clastres, no nexo fundamental, “arqueológico”, da

socialidade primitiva.

Os aliados políticos, aqueles grupos locais que formam uma cintura de segurança (e

de incerteza) em torno de cada grupo local, são sempre concebidos, na Amazônia, sob a

guisa da afinidade potencial, isto é, como uma forma qualificada de alteridade (a

afinidade), mas uma alteridade que permanece alteridade (afinidade potencial), marcada

54 Ao que caberia acrescentar uma outra personagem que Clastres apenas esboçou, em seu último artigo (o cap. 12 do livro): a mulher, a posição feminina, que completaria dialeticamente o círculo, ao negar a auto-negatividade (o ser-para-a-morte) do guerreiro e se constituir no gênero que controla a reprodução (a vida) da sociedade primitiva. Contra a repisada tese da “dominação das mulheres pelos homens” nas sociedades indígenas (ou dos genros pelos sogros, i.e. dos jovens pelos velhos, por via das mulheres, que já viriam por assim dizer pré-dominadas), Clastres afirma, de modo um tanto surpreendente, que as mulheres são as senhoras da sociedade primitiva, enquanto os homens são os servidores desta mesma sociedade. Os homens talvez controlem imediatamente as mulheres; mas estas controlam, em última análise, a sociedade que, por sua vez, controla os homens. Meta-controle.

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por conotações agressivas e predatórias muito mais produtivas ritualmente — isto é,

realmente — que a mera inimizade genérica e anônima, ou que a reiteração

despotencializante das trocas matrimoniais, criadoras da interioridade social. É a figura

instável e indispensável do aliado político que impede tanto uma “reciprocidade

generalizada” (a fusão das comunidades em uma unidade sociológica superior) quanto

uma guerra generalizada (a atomização suicida do socius). O verdadeiro centro da

sociedade, esse conjunto fluido de grupos locais ciosos de sua autonomia, é sempre extra-

local, estando situado em todo ponto onde a conversão entre interior e o exterior é

possível ou pensável. Por isso a “totalidade” e a “indivisão” da comunidade primitiva,

sobre que tanto insiste Clastres, não contradizem a dispersão e a multiplicidade da

sociedade primitiva, antes o contrário. O caráter de totalidade significa que a comunidade

não é parte de nenhum outro Todo hierarquicamente superior; o caráter de indivisão

significa que ela tampouco está hierarquizada internamente, dividida em partes que

formassem um Todo interior. Totalidade subtrativa, indivisão negativa. Ausência de

distinção localizável entre um dentro e um fora. Multiplicação do múltiplo.

É sabido o quanto a teoria clastreana da guerra deve ao seu contato direto e indireto

com os Yanomami. A referência mais abalizada aqui continua a ser a tese, magistral em

todos os sentidos — e inexplicavelmente ainda inédita —, de Bruce Albert (1985). Ora,

esse etnógrafo mostra com perfeita clareza como, na sociocosmologia yanomami, é a

morte enquanto evento biocósmico que produz a violência como evento sociopolítico:

uma inversão completa da lógica clastreana, que não deixa entretanto de validá-la por um

outro caminho. São os pressupostos cosmológicos yanomami — sua teoria e prática da

morte — que se mostram “contra o Estado”, não sua teoria da sociedade.55 A

demonstração de Albert permite, no meu entender, uma conclusão importante. Assim,

55 Albert inscreve a guerra yanomami em um gradiente concêntrico de formas de agressão diretamente projetável sobre o espaço social, que se estrutura, para dentro como para fora, a partir da relação ambivalente entre “aliados não-coresidentes”. Essa figura sociológica yanomami, determinada originalmente por Albert, tornou-se o exemplar-tipo da teoria da afinidade potencial ou “economia simbólica da alteridade” (Viveiros de Castro 2002c. Recorde-se ainda, proporções guardadas, uma observação de passagem de Bento Prado Jr (2003): “Segundo Clastres, o coeficiente de violência, envolvido na guerra [yanomami] era quase igual a zero… A violência eclodia, por assim dizer, fora da Guerra. E ela ocorria nas festas em que uma tribo recebia outra, sua aliada, para uma festa de confraternização. Sobretudo quando os convidados eram aliados distantes. Como se o aliado mais distante fosse, mais que o inimigo, o verdadeiro objeto da violência social” (eu sublinho). Ternarismo e cromatismo do Outro, antes que binarismo massivo do Eu e do não-Eu.

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quando Sztutman (2005: 39) discerne pertinentemente uma conversão da negatividade em

positividade na evolução teórica de Clastres, na medida em que a “sociedade-contra-o-

Estado” se reformula em “sociedade-para-a-guerra”, penso que haveria que ir mais longe.

Deve-se poder ver (ou seja, defender) algo mais que uma troca de sinal. É preciso inverter

a ordem das razões, liberando a teoria clastreana de qualquer interpretação funcionalista

(no sentido de Radcliffe-Brown). A guerra primitiva não tem necessariamente uma função

social, mas ela terá sempre um efeito político. A negação do Estado é consequência da

afirmação da guerra e não sua causa final. Por isso a guerra não tem uma função ou razão

(isto é, uma representação que comanda a instituição), mas nada mais, nem menos, que

consequências ou efeitos. Não há função política; há funcionamentos políticos.

***

Por fim, se há uma dimensão onde a obra de Clastres se mostra presa ao passado, é em

sua concepção bastante exclusivista do socius. A sociedade primitiva é um projeto

constitutivamente humano; a política de Clastres é uma política estritamente intra-

específica. A monografia do autor sobre os Aché-Guayaki é rica em informações sobre a

caça, a floresta, os animais, os espíritos, as estações, os ritos e os ritmos vitais; mas sua

concepção da sociedade primitiva possui poucos, se alguns, componentes ou mesmo

correlatos cosmológicos. Não se tem uma idéia de que tipo de mundo é habitado pelas

sociedades contra o Estado; não se sabe grande coisa sobre as outras espécies de

56 Ela também resulta da “obsessão” do autor pelo profetismo Tupi-Guarani, o qual manifestaria uma autonomização do discurso religioso.

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cidadãos, para além dos humanos “imediatos”, que integram (ou antes, diferenciam) as

cosmopolíticas primitivas.

Essa limitação intrigante da antropologia clastreana talvez não esteja totalmente

desvinculada de suas simpatias fenomenológicas. É aqui que a etnologia americanista

mais avançou, extraindo as idéias do autor de sua moldura antropocêntrica e mostrando

como sua decisão de levar a sério o pensamento indígena requer que se passe da

descrição de uma (outra) forma de instituição do (mesmo) social para uma outra idéia de

“antropologia” — uma outra prática da humanidade — e para uma outra noção de

“política” — uma outra experiência da socialidade.

O capítulo 5, “Mitos e ritos dos índios da América do Sul”, é um texto fundamental a esse

respeito. O autor escreve ali (p. 68-69):

De fato, uma estadia um pouco prolongada no seio de uma sociedade amazônica, por exemplo, permite constatar não apenas a devoção dos selvagens, mas o investimento da vida social na preocupação religiosa, a ponto de parecer dissolver-se a distinção do leigo e do religioso, de apagar-se o limite entre o domínio do profano e a esfera do sagrado: em suma, a natureza é, como a sociedade, atravessada de uma ponta à outra pelo sobrenatural. É assim que animais ou plantas podem ser ao mesmo tempo seres da natureza e agentes sobrenaturais: uma queda de árvore que causa o ferimento de alguém, ou uma mordida de cobra, ou um ataque de fera, a passagem de uma estrela cadente, serão interpretados não como acidentes mas como efeitos de uma agressão deliberada de forças sobrenaturais, como espíritos da floresta, almas dos mortos ou mesmo xamãs inimigos. Essa recusa decidida do acaso e da descontinuidade entre profano e sagrado deveria logicamente levar a abolir a autonomia do campo religioso, identificável desde então em todos os acontecimentos individuais e coletivos da vida cotidiana do grupo. Na realidade, mesmo se nunca está totalmente ausente dos múltiplos aspectos nos quais se manifesta uma cultura primitiva, a dimensão do religioso encontra um meio de se afirmar como tal em algumas circunstâncias rituais específicas…

A insistência em determinar uma dimensão do “religioso como tal” — a recusa, em outras

palavras, de tirar todas as consequências do que é sugerido pela cosmológica geral das

sociedades amazônicas — talvez exprima uma influência de Gauchet.56 Ela fez Clastres

pouco sensível ao fato de que a comum “sobrenaturalização” da natureza e da sociedade

tornava a distinção entre esses dois domínios altamente problemática, visto que a

natureza se revela como social e a sociedade, como natural. É tal não-separação

cosmológica, muito mais do que a exteriorização do poder como “natureza”, que deveria

57 Não poderia deixar de remeter o leitor aqui, como já o fiz tantas vezes em meus trabalhos, à monografia paradigmática de M. Carneiro da Cunha (1978) sobre a relação disjuntiva entre vivos e mortos em uma

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ser posta em paralelo com a não-separação política definidora da sociedade contra o

Estado.

E não obstante, Clastres nos põe na pista certa. Ele esboça neste capítulo um

contraste, que viria a ter grande rendimento na etnologia americanista, entre as

cosmologias dos povos dos Andes e das Terras Baixas, cuja dimensão diacrítica é a relação

entre os vivos e os mortos. Nas Terras Altas agrárias, dominadas pela máquina estatal dos

Inca, a religião se apóia em um complexo funerário (túmulos, sacrifícios) que conecta os

vivos ao mundo mítico originário — povoado pelo que o autor chama de ancestrais — por

meio dos mortos. Nas Terras Baixas, todo o esforço ritual consiste, ao contrário, em

separar maximamente os mortos e os vivos. A relação da sociedade com suas fundações

“imemoriais” se faz ali, digamos assim, por sobre o cadáver dos mortos, que devem ser

desmemorializados, isto é, esquecidos e aniquilados (comidos, por exemplo) como se

fossem inimigos mortais dos vivos. Yvonne Verdier (1987: 31), em seu tão belo comentário

à Crônica dos Índios Guayaki, observava que a grande divisão entre os vivos e os mortos

era a garantia da indivisão entre os vivos. A sociedade contra o Estado é uma sociedade

contra a memória; a primeira e mais constante guerra da sociedade-para-a-guerra é aquela

que ela move contra seus desertores mortos. “E cada vez que se come um morto, pode-se

dizer: mais um que o Estado não vai pegar.” (Deleuze & Guattari 1980: 148).57

Mais uma vez, há um passo adicional a ser dado. O contraste entre Andes e Terras

Baixas sugere que a distinção variável entre vivos e mortos (identificação versus

diferenciação) tem uma relação variável com uma outra distinção, ela própria variável:

aquela entre humanos e não-humanos — animais, plantas, artefatos, corpos celestes, toda

a vasta mobília do cosmos. Nos mundos andinos, a continuidade diacrônica entre mortos

e vivos opõem estes globalmente como humanos aos seres não-humanos, submetendo o

cosmos à lei do Estado, a lei antropológica do interior e do exterior, ao mesmo tempo em

que permite a estabilização de descontinuidades sincrônicas entre os vivos, que eram

bloqueadas nas sociedades contra o Estado graças à aniquilação dos mortos (ausência de

culto de ancestrais = ausência de hierarquia). Nas Terras Baixas, a alteridade radical entre

58 Dos animais em particular, uma vez que é comum na Amazônia que as almas dos mortos se transformem em animais, ao mesmo tempo em que uma das principais causas de morte é a vingança dos espíritos ou almas animais contra os humanos.

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vivos e mortos aproxima os humanos mortos dos não-humanos,58 ao mesmo tempo,

porém, essa aproximação faz da não-humanidade um modo ou modulação da

humanidade — todos os não-humanos (inclusive os mortos) possuem uma essência ou

potência antropomorfa formalmente idêntica, a alma, oculta sob os diversos “hábitos”

corporais. Isso, como se sabe, é o que os etnólogos da Amazônia chamaram de

“perspectivismo”: a idéia de que todos os habitantes do cosmos são gente em seu próprio

departamento, ocupantes potenciais da posição deítica de “primeira pessoa” ou sujeito do

discurso cosmológico. Nada mais distante de um mundo edênico, diga-se de passagem:

as relações interespécies são marcadas por uma disputa perpétua em torno dessa posição

de sujeito, que não pode ser ocupada simultaneamente por duas espécies distintas; por

isso, ela é comumente esquematizada em termos da polaridade predador/presa. A

“agência”, no sentido de agency ou autodeterminação, é, acima de tudo, essa capacidade

de predação, a “intencionalidade predatória”, como às vezes escrevem os etnógrafos. O

ser é devoração; a vida é roubo. 59

Essa idéia transforma a humanidade em algo nas antípodas de uma substância com

contornos fixos e extensão evidente: ela se torna uma posição e uma relação, marcadas

pela relatividade, a incerteza e a alteridade. Tudo pode ser humano, porque tudo é

humano para si mesmo: todos os seres do cosmos se percebem a si mesmos como

humanos e vêem os que chamamos, nós, de humanos como não-humanos. O efeito

global dessa inexistência de um ponto de vista cosmológico transcendente é a

disseminação molecular da agência “subjetiva” pelo universo. Isto é um correlato óbvio

da rejeição de um ponto de vista político unificante, ocupado por um Agente (o agente do

Um) que conteria em si o princípio da humanidade e da socialidade. 60

O perspectivismo, enfim, é a cosmologia contra o Estado. Essa cosmologia se radica na

composição ontológica do mundo mítico, aquela “exterioridade” originária para onde

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estariam projetados os fundamentos da sociedade. Este mundo mítico, contudo, não é

realmente exterior, nem interior, nem presente nem passado, porque ele é ambos. Da

mesma forma, como seus habitantes não são nem humanos nem não-humanos, pois são

ambos. O mundo das origens é, precisamente, tudo: ele é o plano de imanência

amazônico. É assim na esfera virtual do “religioso” que o conceito de sociedade contra o

Estado ganha sua verdadeira endo-consistência, ou diferença, etnográfica. Clastres nos

levou quase lá. Ninguém poderia ter feito melhor; estaremos sempre quase em algum

outro lugar.

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