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RENÊ COPPE PIMENTEL 1 Evolução Histórica e Ambiente da Contabilidade - INTRODUÇÃO - Material Adicional de Aula Elaborado por: Renê Coppe Pimentel ( [email protected]) MATERIAL EM ELABORAÇÃO (DRAFT) FAVOR NÃO CITAR OU DISTRIBUIR SEM PRÉVIA AUTORIZAÇÃO RENÊ COPPE PIMENTEL Fev, 2017

Evolução Histórica e Ambiente da Contabilidade · RENÊ COPPE PIMENTEL 1 Evolução Histórica e Ambiente da Contabilidade - INTRODUÇÃO - Material Adicional de Aula Elaborado

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RENÊ COPPE PIMENTEL 1

Evolução Histórica e

Ambiente da Contabilidade - INTRODUÇÃO -

Material Adicional de Aula Elaborado por: Renê Coppe Pimentel ([email protected])

MATERIAL EM ELABORAÇÃO (DRAFT)

FAVOR NÃO CITAR OU DISTRIBUIR SEM PRÉVIA AUTORIZAÇÃO

RENÊ COPPE PIMENTEL

Fev, 2017

RENÊ COPPE PIMENTEL 2

Sumário 1 ......................................................................................................................................................................... 3

Introdução Geral à Contabilidade ..................................................................................................................... 3

1.1 O que é contabilidade? ............................................................................................................................ 4

1.1.1 O Processo Contábil .......................................................................................................................... 5

1.2 O Papel da Contabilidade no Ambiente em que está Inserida ................................................................ 7

1.2.1 Pré-história: surgimento da Contabilidade ...................................................................................... 7

1.2.2 Antiguidade: antigos sistemas organizados ..................................................................................... 8

1.2.3 Idade média e renascimento: a contabilidade como conhecemos hoje .......................................... 8

1.2.4 As grandes navegações: o surgimento das Companhias .................................................................. 9

1.2.5 Revolução Industrial: do comércio à indústria e o mercado de capitais ........................................ 10

1.2.6 Crise de 1929: a maior crise contábil ............................................................................................. 11

1.2.7 A Revolução Tecnológica e a Internacionalização do Mercado de Capitais ................................... 11

1.2.8 Afinal, o que concluirmos ao estudar a história da contabilidade? ............................................... 12

1.3 Contabilidades: Financeira, Gerencial, Tributária e Pública .................................................................. 13

Questões: ..................................................................................................................................................... 14

Referências: ................................................................................................................................................. 14

2 ....................................................................................................................................................................... 16

O Ambiente da Contabilidade ......................................................................................................................... 16

2.1 A Teoria Contratual da Firma ................................................................................................................ 17

2.2 Conflito de Agência ................................................................................................................................ 22

2.2.1 Acionistas vs Administradores - os casos de remuneração variável .............................................. 24

2.2.2 Credores vs Administradores/acionistas – os casos de risco de crédito ........................................ 24

2.2.2 Acionistas Controladores vs Acionistas Minoritários – os casos de mudanças societárias............ 25

2.3 Assimetria de Informação...................................................................................................................... 25

2.3.1. Seleção Adversa ............................................................................................................................. 25

2.3.2. Risco Moral .................................................................................................................................... 26

2.4 Mercado de capitais e informação contábil .......................................................................................... 27

2.4.1 Hipótese de Mercado Eficiente ...................................................................................................... 28

2.4.2 Implicações da pesquisa sobre contabilidade e mercado de capitais ............................................ 30

2.5 Modelos de Governança Corporativa .................................................................................................... 31

Referências .................................................................................................................................................. 32

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Introdução à Contabilidade

1 Introdução Geral à Contabilidade

Objetivos do capítulo:

Definir Contabilidade

Diferenciar a contabilidade para público interno e externo

Apresentar a ideia geral do processo contábil

Caracterizar o papel das teorias, da ciência e da teoria da contabilidade

Destacar os principais momentos históricos que associados com a evolução da contabilidade

Diferenciar os tipos de abordagens contábeis mais comuns

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Como o título do capítulo sugere, não há consenso sobre uma “teoria da contabilidade” que seja única, imutável e universal. Desta forma, este capítulo apresenta aspectos iniciais sobre “contabilidade”, “teoria” e a ligação entre os dois conceitos. Diferentemente de textos acadêmicos bastante difundidos no Brasil, que consideram que a contabilidade é a ciência que estuda o patrimônio das entidades, este capítulo busca apresentar argumentos de que essa é uma visão apenas parcial sobre Contabilidade. Como consequência, do ponto de vista teórico, há mais perguntas do que respostas.

1.1 O que é contabilidade?

Uma definição direta e objetiva da Contabilidade dependerá muito de quem a faz, ou melhor, depende de qual a visão que o indivíduo tem ou adota da contabilidade. Apesar de ser impossível dissociar a prática profissional do corpo teórico da contabilidade, para fins didáticos (especialmente para os níveis introdutórios) a Contabilidade pode ser melhor entendida por duas visões 1principais que não são exclusivas, mas, pelo contrário, se complementam:

A Contabilidade como Técnica - O senso comum provavelmente diria que a contabilidade é uma técnica de coleta, registro e organização de dados e geração de relatórios. Essa visão tecnicista da Contabilidade é, na verdade, a visão do Processo Contábil, composto pelas etapas de reconhecimento, mensuração e evidenciação dos eventos/fenômenos econômicos. Nesse sentido, a técnica contábil visa suprir os diversos agentes interessados em informações econômicas e financeiras com informações úteis que darão suporte à tomada de decisão. Essa é a abordagem clássica da Contabilidade e, nesse sentido, praticamente toda e qualquer tentativa de registrar, mensurar e comunicar resultados ou eventos pode ser considerada como “contabilidade”. Assim, o simples fato de uma pessoa controlar suas despesas e seus rendimentos mensais não deixa de ser uma contabilidade pessoal. Inclusive, a mídia frequentemente utiliza o termo “contabilidade do crime” para se referir a papeis com anotações precárias sobre recursos arrecadados, de registro de devedores e quantias devidas, pagamentos a outros criminosos. Ultimamente também se tem visto com certa frequência o termo “contabilidade criativa”, em situações que a contabilidade é utilizada de maneira a maquiar uma determinada situação. Obviamente essa é uma visão extremamente limitada e restrita da Contabilidade.

A Contabilidade como Ramo do Conhecimento – Na qualidade de formação acadêmica e profissional as “Ciências Contábeis” dizem respeito ao ramo do conhecimento que difunde, reflete e aprimora o conhecimento contábil em termos técnicos e em relação às demais áreas que circundam a contabilidade (interfaces da contabilidade). Esse é, portanto, um conceito mais abrangente que engloba o processo de reflexão sobre a adequação das diversas possibilidades (técnicas) de tratamento contábil. Isso implica que não há um único tratamento contábil possível para o mesmo evento/fenômeno econômico, pelo contrário há diversos tratamentos contábeis possíveis e passíveis de julgamento. Assim, as “Ciências Contábeis” são classificadas como uma ciência social aplicada.

Apesar de as duas visões serem inseparáveis, na prática, alguns profissionais (geralmente não contadores) acreditam que a Contabilidade se limita a simplesmente preparar regularmente as demonstrações e relatórios contábeis de acordo com regras pré-estabelecidas. Entretanto, apesar de os contadores de fato desempenharem esse papel, os registros e a geração de relatórios não são um fim em si mesmos: o grande objetivo da contabilidade é a geração de informação útil para tomada de decisão. Isso implica, necessariamente, no conhecimento do usuário, das decisões a serem tomadas e do ambiente em que a contabilidade está inserida. Com isso, o foco deixa de ser o mero tecnicismo de controle do patrimônio e dos eventos econômicos e passa a ser a Contabilidade como ferramenta efetiva de

1 Aqui apresentamos apenas duas visões (contabilidade como técnica e contabilidade como ramo do conhecimento por considerarmos ambas suficientemente abrangentes. Porém, a literatura contábil utiliza-se de outras visões ou “imagens”, como prefere Belkaoui (1997), por exemplo. Nesse sentido, Belkaoui (1997) extende as visões da contabilidade como ideologia, como linguagem, como registro histórico, como realidade econômica, como sistema de informação ou como commodity.

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informação. Para tanto, o objeto estuda deixa de ser simplesmente o “patrimônio” e passa a ser também o usuário, ou melhor, o efeito da informação para o usuário na tomada de decisão. Essa é a abordagem da utilidade da informação contábil para o usuário (decision-usefulness approach).

Assim, a Contabilidade é parte (talvez a mais importante) do sistema de informação das empresas, provendo informações úteis para que os agentes econômicos (gestores, investidores, credores etc) aloquem adequadamente recursos econômicos escassos. Dentre o grupo de agentes econômicos (usuários da informação contábil), uma grande divisão pode ser feita em usuários internos e usuários externos.

Tipicamente, os usuários internos têm acesso amplo e facilitado à informação de maneira rápida, detalhada (analítica) e customizada para cada tipo de tomada de decisão. São incluídos nesse grupo os gestores, administradores e corpo diretivo em geral. Uma vez que as informações são geradas e utilizadas internamente, não há padrão rígido de contabilidade a ser seguido, pois cada empresa pode adequar seus relatórios de forma a atender adequadamente suas necessidades na gestão da empresa e suas atividades.

Por sua vez, os usuários externos, via de regra, só têm acesso às informações divulgadas pela empresa, daí a necessidade de haver um padrão de relatório a ser seguido. Estão incluídos nesse grupo os acionistas (que não participam da gestão), analistas de mercado de capitais, analistas de crédito de bancos, credores em geral, governo (por meio de seus órgãos de fiscalização e regulação), clientes, sindicatos, funcionários não ligados à gestão etc. Considerando a gama de usuários externos e seus diversos objetivos a contabilidade ganha caráter mais formal, devendo haver um padrão geral para o processo contábil (de reconhecer, mensurar e evidenciar), esses padrões são os chamados “Princípios Contábeis Geralmente Aceitos” ou sua expressão em inglês “Generally Accepted Accounting Principles – GAAP”. Desta forma, os padrões contábeis buscam estabelecer uma base de referência para problemas contábeis de reconhecimento, mensuração e evidenciação.

A contabilidade voltada para o público interno é tipicamente denominada Contabilidade Gerencial, enquanto que a contabilidade voltada para o público externos é denominada Contabilidade Financeira (ou Contabilidade Societária). Ambos, usuários internos e externos, devem assegurar que suas decisões de alocação de recursos sejam eficientes, para tanto, eles precisam de informações econômicas e financeiras acerca da empresa, cabe à Contabilidade suprir adequadamente essa necessidade.

Portanto, a Contabilidade pode ser entendida como uma ciência social que estuda o Processo Contábil e o impacto da informação contábil nos diversos usuários da informação.

1.1.1 O Processo Contábil

O Processo Contábil consiste em transforma eventos e fenômenos econômicos em informações úteis e relevantes para a tomada de decisões. Para tanto, o Processo Contábil consiste em (1) reconhecer, (2) mensurar e (3) evidenciar eventos econômicos, sendo que os eventos econômicos são todas as transações realizadas entre as empresas, as pessoas e os governos. Como exemplo: vendas de produtos, pagamento de fornecedores, remuneração de executivos, operações de fusões e aquisições de empresas, compra e venda de ações, operações com instrumentos financeiros e derivativos, captação de recursos, entre muitos outros. Assim, o reconhecimento busca identificar quando o fato ocorreu e, se aplicável, registrá-lo contabilmente; a mensuração busca medir o que a informação representa em unidades monetárias, ou seja, atribuir um valor; e a evidenciação busca disponibilizar a informação aos usuários interessados.

Com isso, a Contabilidade se preocupa em desenvolver e aplicar modelos que capturem a realidade econômica subjacente às entidades de maneira a propiciar informações úteis para a tomada de decisões. Informações contábeis são extensamente utilizadas como linguagem dos negócios dentro das empresas, servindo de base para a formação de diversos contratos (acordos) que tenham consequências econômicas.

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Exemplo para reflexão

Um pequeno agricultor resolve alocar o dinheiro que estava aplicado em sua caderneta de poupança (R$ 112.000) para fazer, em parte de sua propriedade (o valor proporcional ao terreno é de R$ 175.000), uma pequena plantação de eucalipto para vender a madeira em momento futuro. Os gastos do plantio (correção de solo, adubação, mudas etc) totalizaram R$ 40.000, sendo plantadas mudas de 50cm. Sabe-se que os custos anuais de manutenção (irrigação, controle de pragas etc) são de R$ 12.000/ano (todos os serviços feitos por terceiros e pagos à vista). Assim, houve investimento dos R$ 40.000 iniciais (que estavam aplicados na poupança) e mais R$ 12.000 a cada ano.

Ao final do 5º ano, o agricultor olha orgulhoso para sua plantação e vê suas árvores, que antes tinham apenas 15 cm e que agora estão com cerca de 20m de altura. Dadas as características e qualidade de sua plantação, a madeira poderá ser utilizada para lenha, carvão, celulose ou serralharia. Com base em inventário recente, o agricultor estima que o volume total de madeira, na forma como já está, poderá ser vendido, atualmente, por R$ 600.000 a preços de mercado corrente. No entanto, se esperar mais 3 anos, com o crescimento das árvores, o valor de venda poderá chegar a R$ 950.000. Em qualquer caso, haverá custos adicionais para colheita e transporte que totalizarão R$ 150.000.

Assim, ao final do 5º ano nos temos a seguinte condição:

Valores investidos/desembolsados:

Inicial Ano 1 Ano 2 Ano 3 Ano 4 Ano 5 TOTAL

40.000 12.000 12.000 12.000 12.000 12.000 100.000

Valor total de venda atual (líquido do custo de colheita): 600.000 – 150.000 = R$ 450.000

Valor total de venda em 3 anos (líquido do custo de colheita): 950.000 – 150.000 = R$ 800.000

Considere que a remuneração da caderneta é de 6% a.a.

Perguntas para reflexão:

1) Ao final do 5º ano o agricultor deveria ter reconhecido (registrado) alguma receita? 2) Ao final do 5º ano o agricultor deveria ter reconhecido (registrado) algum custo? 3) Durante o período, houve algum ganho para o agricultor? Houve lucro? 4) Se alguma das respostas acima for positiva, qual o valor? 5) Se ele (agricultor) tiver que informar seu patrimônio, qual deveria ser esse patrimônio do agricultor, ao

final do 5º ano (considere apenas a atividade de eucalipto e que o valor inicial alocado ao projeto foi de R$ 112.000 + R$ 175.000, poupança + terreno)?

6) Quais os elementos que compõe o patrimônio do agricultor? Como esse patrimônio poderia ser apresentado?

Todas essas perguntas, e o caso como um todo, estão relacionadas às etapas de reconhecimento (registar, reconhecer ou não um determinado item ou evento), de mensuração (qual valor atribuir) e evidenciação (como informar).

O ponto chave do problema é se o crescimento natural das árvores, mesmo que elas não tenham sido vendidas ou extraídas, pode ser considerado como uma receita e, assim, gerar lucro. Uma coisa que sabemos é que não houve entrada nenhuma de caixa, porém, o valor da plantação aumentou e está maior que o custo de se produzir, até aquele momento. O agricultor deve reconhecer ou não o lucro (a receita)?

Se alguma receita for considerada, como mensurar seu valor? O eucalipto pode ser utilizado em diversas atividades (lenha, carvão, celulose ou serralharia) dependendo da função, mais ou menos nobre, o preço de mercado varia. Qual preço utilizar, da madeira para lenha/carvão ou celulose/serralharia? Os mercados ao redor do país podem praticar preços diferentes, qual utilizar?

Esses são problemas de reconhecimento e de mensuração contábil. Nem sempre a resposta é objetiva, a seu ver, qual seria a melhor representação do patrimônio do agricultor?

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Como você divulgaria esse patrimônio para:

- Um banco que está analisando a situação econômica do agricultor para conceder empréstimos

- Um investidor que potencialmente poderá comprar para si a plantação de eucalipto (incluindo a parte do terreno destinada à plantação).

- O governo, que irá calcular o imposto sobre a renda do agricultor.

A apresentação seria a mesma nos três casos?

As questões de divulgação (evidenciação) também são problemas enfrentados pela contabilidade. Nem sempre as coisas são totalmente claras e objetivas, por isso o processo contábil está em constante mutação. Por essas potenciais diferenças é que o mundo têm harmonizado suas práticas contábeis em princípios gerais similares para fins de divulgação financeira.

Esse exemplo será retomado e dissecado em partes específicas do livro, quando se tratar especificamente do processos contábil.

1.2 O Papel da Contabilidade no Ambiente em que está Inserida

Uma vez que a Contabilidade tem como objetivo principal de fornecer informações úteis para tomada de decisão, a evolução da Contabilidade acaba se confundindo com a evolução da economia, da sociedade, da tecnologia e das operações das empresas.

1.2.1 Pré-história: surgimento da Contabilidade

A Contabilidade, em sua forma mais rudimentar, remonta dos primórdios da humanidade em diversas partes do mundo quando os humanos começam a trabalhar de maneira cooperativa, por meio de observação, comunicação, memória sobre comportamento passado e sanções informais em virtudes de desvios das normas sociais.

Mullings, Whitehouse and Atkinson (2013) sugerem que “a escrita e a manutenção de registros [recordkeeping] ajudam a resolver problemas de cooperação em grupos numerosos de indivíduos por transcender a diversas limitações do desenvolvimento psicológico através da elaboração de quatro ferramentas de cooperação: (1) comportamentos recíprocos, (2) formação e manutenção de reputação, (3) normas sociais e fiscalização das normas e (4) identificação e empatia com o grupo”.

Nesse sentido, já nos primórdios da civilização moderna, os grupos de pessoas aumentam de tamanho, assim como sua complexidade, o que dificulta a lembrança, por parte dos indivíduos, sobre interações do passado e obrigações. Dessa forma, as sanções informais aos desonestos (“cheaters and free riders”) tornam-se menos eficazes e como resultado, novos arranjos são necessários para suportar grandes grupos.

Assim, a contabilidade surge como uma necessidade básica da de manutenção de registros (recordkeeping). Segundo Basu e Waymire (2005, p. 8): “a manutenção de registros [recordkeeping] é uma instituição que é necessária (mas não suficiente) para o surgimento de cooperação humana em grande escala. Nosso argumento é que a manutenção de registros evoluiu bio-culturalmente para apoiar a coordenação econômica e uma complexa divisão do trabalho, servindo como um dispositivo mnemônico para complementar a memória humana”.

Assim, segundo Basu e Waymire (2005) a contabilidade é uma instituição cujo desenvolvimento depende da co-evolução com outras instituições culturais, tais como comunicação, direito, tecnologia da informação, medição, etc formando, assim, sistemas estáveis em um nível social e coletivo.

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Adicionalmente, a contabilidade deve co-evoluir com nossa composição biológica e genética com maior ênfase às habilidades cognitivas e funções cerebrais ao longo do tempo. Assim, entender a evolução humana ajuda a entender a evolução da contabilidade e vice-versa.

1.2.2 Antiguidade: antigos sistemas organizados

Segundo Hain (1966), um antigo papiro encontrado em 1915, conhecido como “Papiro de Zenon” – sendo Zenon, um grego que ocupou o cargo de chefe executivo em Apolônio, Egito, 256 a.c. – mostrou evidências de que os gregos já utilizavam sistemas elaborados de registros contábeis cinco séculos antes de Cristo. O modelo grego de controle, que apresenta informações sobre a construção de projetos, atividades agrícolas e atividades mercantis, se espalhou pelas regiões do oriente médio e leste do mediterrâneo. Conforme essas áreas foram sendo conquistadas pelos Romanos, esses também passaram a adotar o sistema grego com algumas modificações. Esse método de controle prevaleceu ente as administrações públicas e privadas até a queda do império romano após as invasões bárbaras e islâmicas (Hain, 1966, p.699).

Vollmers (2009) mostra que Império Persa, entre 509 e 494 a.c., também possuía sistema elaborado de controle de bens em blocos de argila (um “tablet" da antiguidade), especificamente, suprimentos alimentares, que eram distribuídos por pessoas específicas para regiões específicas. Tais controles de quantidade física e pessoas envolvidas na distribuição eram sistematicamente anotados e monitorados.

Uma característica geral para as sociedades antigas é que elas estavam baseadas, substancialmente, em regimes de subsistência, escambo e comércio localizado. Para tanto, não eram necessários sistemas contábeis altamente sofisticados ou que fossem aplicados em diversos locais e diversas situações de forma sistemática e padronizada. Basicamente, a contabilidade passava pelo controle de mercadorias e não havia um rigor na medição com base em denominador monetário comum. Os usuários da informação eram os próprios donos dos ativos e os governos que buscavam tributação. Não havia uma ideia rígida de período contábil. Porém, com a evolução econômica e social, esse cenário mudou especialmente na alta idade média.

1.2.3 Idade média e renascimento: a contabilidade como conhecemos hoje

A idade média é o período que compreende a queda do império romano até o renascimento cultural, comercial e início das grandes navegações Mais formalmente, aceita-se que a idade média se encerra com a queda de Constantinopla em 1453. Porém, diversos outros eventos relevantes fazem a transição da idade média para a idade moderna, tais como a viagem de Cristóvão Colombo à América em 1492 ou a viagem de Vasco da Gama à Índia em 1498. O ponto principal é a mudança no panorama da sociedade e da economia.

O início da idade média (chamada de baixa idade média), especificamente a Europa e leste do mediterrâneo, foi um período considerado “era da estagnação” ou “idade das trevas”. A Europa estava dividida e as atividades produtivas e comerciais eram bastante restritas devido a constantes ataques dos chamados “bárbaros”2, especialmente os vindos do norte da Europa, e dos árabes, vindos principalmente do norte da África. A insegurança e a forma desigual na qual a sociedade estava estruturada (com senhores, servos e clero) limitaram por muito tempo as formas mais complexas de comércio e de produção. Os senhores feudais basicamente realizavam a contabilidade e esta servia como um instrumento de avaliação e controle de suas riquezas, havendo delegação de funções no desenvolvimento das atividades profissionais.

No entanto, com o início das cruzadas, houve aumento do fluxo de pessoas, mercadorias e recursos entre o ocidente e o oriente. Com isso algumas cidades italianas tiraram proveito de suas posições

2 A denominação de bárbaros era dada pelos romanos a todos os povos que não tinham influencia da língua e da cultura romana.

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privilegiadas em relação à prática do comércio, especialmente as cidades de Genova e Veneza que mostraram uma efervescência comercial sem precedente, surgindo, inclusive uma nova classe social: os burgueses. Com as profundas alterações na estrutura social, iniciou-se a segregação entre propriedade e gestão/execução das atividades comerciais, produtivas e intelectuais: a Europa chega ao seu momento de renascimento.

Cada vez mais o comércio se mostrava uma atividade lucrativa e uma grande necessidade de recursos era necessária para financiar o comercio, afinal havia grande demanda por produtos que não era suprimida. Assim, maiores recursos envolvidos, maiores segregações de atividades profissionais e especialização em determinadas áreas geraram necessidade de maior controle e maiores informações para tomada de decisão. Nesse cenário é que, no final do século XV, Frei Luca Pacioli publicou o livro: ‘Summa de Arithmetica, Geometria, Proportioni et Proportionalita’ em 10 de novembro de 1494, essa obra, especificamente em seu capítulo ‘Tractatus de Computis et Scripturis’ deu origem à base de escrituração contábil como a conhecemos até hoje: por meio da introdução do método das partidas dobradas. Portanto, os italianos são considerados os “pais da contabilidade moderna”.

Apesar de indícios de que as partidas dobradas surgiram por volta de 1200, foi de Luca Pacioli a primeira exposição completa do método contábil por partidas dobradas a partir do inventário. Na época, os números negativos eram considerados absurdos e fictícios, daí a engenharia de controle considerando a subtração por oposição.

1.2.4 As grandes navegações: o surgimento das Companhias

As grandes navegações impulsionaram fortemente a contabilidade. Com elas, ampliou-se a separação entre propriedade e gestão e criou-se uma grande necessidade de capital para financiar as expedições. Foi nessa época, por volta de 1600, que houve o surgimento das grandes companhias de navegação com a criação da Companhia das Índias Orientais (East India Company) em 1600, na Inglaterra, e a Companhia Holandesa das Índias Orientais (Dutch East India Company) em 1602, sendo essas consideradas extensões das commendas italianas e predecessores das sociedades por ações modernas.

No caso inglês, Napier (2010) sugere que o método de contabilização por meio das partidas dobradas surgiu da influência de mercadores italianos que atuavam em Londres e outras cidades inglesas. Somente no século XVI foram impressos os primeiros livros em primeiro Inglês sobre o método das partidas dobradas, conhecido como o "método italiano". Já o conceito legal de “corporação” ou “sociedade anônima” – sendo uma pessoa artificial existindo separadamente de seus membros constituidores e que continuaria a existir mesmo que os membros constituidores mudassem – já existia na idade média, mas era restrito alguns órgãos públicos e religiosos. Dessa forma, corporações entendidas como entidades empresariais tiveram seus inícios com autorizações do reino inglês para exploração de atividades monopolísticas específicas, como o caso da Companhia das Índias Orientais.

Como a Companhia das Índias Orientais passou a ser um negócio lucrativo e que demandava grandes volumes de investimento, começou-se a controlar os ativos não mais por “empreitada” (projetos específicos de navegação e exploração) mas sim pelo total acumulado durante um período de tempo (período contábil). Ao final desse período, havia apuração e distribuição dos resultados, não de uma única empreitada, mas de todos os resultados obtidos no período de acordo com a participação no capital, iniciou-se o processo de distribuição de lucros e pagamento de dividendos de acordo com a parcela proporcional de capital empregado.

Assim, com empresas operando em processo de continuidade por diversos períodos, foi necessário desenvolver registros e demonstrações contábeis que refletissem contribuições contínuas ou periódicas de capital e que resumisse o resultado da operação em determinados intervalos de tempo. Nesse contexto, visando separar o desempenho (resultado) de diferentes períodos dos investimentos de capital, houve também a separação entre a demonstração do resultado e o balanço patrimonial (Schroeder, Clark e Cathey, 2011). Adicionalmente, houve a necessidade de tornar públicas as demonstrações contábeis criando a figura da demonstração financeira para usuários externo e para fins gerais.

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Portando, do ponto de vista contábil, a Companhia das Índias Orientais (inglesa) e teve grande importância pois “mudou de uma corporação empresarial que proporcionava aos proprietários o retorno do capital mais um lucro, para algo que gerava retorno sobre o capital na forma de dividendos regulares” (Napier, 2010).

Neste ponto, importante apontar uma hipótese apresentada na literatura contábil e econômica: foi com (1) a criação das “corporações” (sociedades anônimas) e com (2) o método das partidas dobradas e a apuração do retorno sobre o capital, precisamente calculado, possibilitaram a criação das corporações modernas e, consequentemente, possibilitaram a criação da economia capitalista moderna.

Neste contexto, a contabilidade deixa de ser uma mera resposta à demanda dos usuários por informação, mas passa a ser um meio para o desenvolvimento da sociedade moderna. Em outras palavras, a contabilidade criou ambiente informativo propício para o surgimento do capitalismo e dos mercados de capitais modernos.

Essa hipótese sempre será alvo de discussão e contestação, e talvez nunca tenhamos uma resposta definitiva para ela, afinal, do ponto de vista científico essa não é uma hipótese testável, porém, é possível encontrar argumentos, evidências e sugestões que tendam a corroborar ou refutar esse argumento.

1.2.5 Revolução Industrial: do comércio à indústria e o mercado de capitais

Com a revolução industrial, entre 1760 e 1820, outros grandes passos foram dados do ponto de vista contábil. As colônias na América e Ásia já estavam constituídas e gerando recursos para grandes empresários. No entanto, com o advento da revolução industrial e da produção em série, torna-se nítida a grande mudança que se instaurou na sociedade em geral: a atividade econômica principal passa de uma base comercial para uma base industrial, onde torna-se necessário apurar custos de produção e otimizar processos produtivos. Assim, surgiram novos conceitos na contabilidade, tais como: rateios, custos, depreciação, capital.

Com a revolução industrial a contabilidade gerencial, com característica detalhada e refinada, especificamente na gestão de custos de produção, ganhou extrema relevância. Associado à mudança no perfil econômico, houve crescimento substancial da demanda por recursos para financiamento das grandes empresas, especialmente em empresas ferroviárias e metalúrgicas. Com a maior demanda por capital, houve maior necessidade de captação de recursos junto ao público em geral, isso influenciou diretamente no crescimento e desenvolvimento do mercado de capitais e, com isso, houve a necessidade de maior formalidade da contabilidade na prestação de contas sobre o desempenho das atividades operacionais. Assim, vultuosos recursos captados impulsionaram o mercado de títulos e valores mobiliários negociáveis, mas como contrapartida demandaram adequada remuneração do capital empregado e detalhada prestação de contas ao público investidor. O Código Comercial Francês de 1673, por exemplo, determinava que todas as empresas deveriam elaborar demonstrações contábeis a cada dois anos.

No entanto, nesse período (séc. XIX e começo do sec. XX) a profissão contábil não estava adequadamente estruturada e diversos conceitos contábeis não estavam bem definidos, criando espaço para diversas interpretações e diversas metodologias de mensuração, reconhecimento e evidenciação contábil. Até 1915, por exemplo, o conceito de lucro não estava devidamente formalizado e desenvolvido; sendo que a primeira tentativa de organizar a profissão contábil e criar padrões gerais de contabilidade ocorreu em 1904 com o Congresso Internacional de Contadores organizado por contadores norte-americanos (Schroeder, Clark e Cathey, 2011).

Iniciava-se, portanto, em meados de 1910, uma tentativa de organizar e sistematizar as práticas contábeis entre empresas e ao longo do tempo; ou seja, buscava-se consistência das demonstrações contábeis e a busca por princípios gerais para elaboração e divulgação de relatórios contábeis para o público em geral. No entanto, muitos críticos da época sugeriam que a informação contábil era muito mais

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voltada para atender a gestão interna da empresa do que de prestação de contas ao público externo; com isso permitia-se muita flexibilidade na publicação dos relatórios contábeis. Esse era o grande desafio enfrentado por contadores e investidores no começo do século XX.

1.2.6 Crise de 1929: a maior crise contábil

Foi na primeira metade do séc. XX que a contabilidade conheceu seus principais pensadores nas principais escolas contábeis incluindo a norte-americana, europeia, árabe e asiática (Japão, principalmente). Aos interessados, Edwards (1994) dedica toda uma obra a estudar os principais pensadores do séc. XX, de muitos países e escolas contábeis diferentes (ao todo 19 influentes teóricos). Em linhas gerais, o mercado de capitais assumia um papel de destaque no financiamento produtivo das empresas em diversos países do mundo, sendo esse movimento foi mais proeminente nos EUA. Foi principalmente, com a quebra da Bolsa de Nova Iorque em 1929, em que ficou clara a necessidade de que a contabilidade deveria desempenhar papel fundamental na quebra da assimetria informacional entre gestores/administradores e investidores. Adicionalmente, a contabilidade deveria monitorar contratos entre os diversos agentes envolvidos na atividade operacional e financeira das empresas.

A consequência da Crise de 1929 foi dramática, principalmente nos Estados Unidos, onde muitas famílias ricas simplesmente faliram do dia para a noite e as famílias de classe mais baixa passaram por problemas ainda maiores com a falta de itens básicos como alimentação, saúde, emprego. Como resposta direta à quebra da bolsa, os Estados Unidos, no que naquele momento já possuíam o maior mercado de capitais do mundo, iniciaram uma série de medidas para organizar o mercado de capitais e melhorar as práticas contábeis: foi dado início a uma série de reuniões entre a Associação Americana de Contadores (AAA) e a Bolsa de Valores de Nova Iorque (NYSE) para desenvolvimento de princípios gerais de contabilidade que deveriam ser seguidos pelas empresas; foi criada a SEC – Securities and Exchange

Commission; foram criados mecanismos de proteção aos agentes do mercado de capitais por meio de controles e fiscalização mais rigorosos; formação e fortalecimento do que viria a ser no presente o American Institute of Certified Public Accountants (AICPA); criação de um Comitê de Procedimentos Contábeis etc.

A partir dessas iniciativas, deu-se início ao desenvolvimento uma estrutura conceitual básica de contabilidade, de forma organizada e estrutura, para fins de divulgação financeira. Devido à necessidade de representação democrática dos diversos agentes interessados em na regulação da contabilidade, em 1973 foi criado o FASB – Financial Accounting Standards Board, que possuía em sua estrutura representantes de diversas organizações e membros atuantes em tempo integral ao desenvolvimento de normas contábeis.

Com uma base participativa que convergia interesses dos diversos agentes de mercado, a estrutura conceitual norte-americana se destacou muito em relação às demais práticas contábeis ao redor do mundo, especialmente pelo forte apelo do mercado de capitais norte-americano. No entanto, esse modelo contábil era diverso do restante dos demais países do mundo, e isso ficou bastante evidente quando diversas empresas de países ao redor de todo o mundo passaram a listar seus títulos no mercado de capitais norte-americano.

1.2.7 A Revolução Tecnológica e a Internacionalização do Mercado de Capitais

Recentemente, durante a década de 80, o mundo passou por uma grande transformação tecnológica: microcomputadores com alta capacidade de armazenamento e processamento de dados começaram a ser desenvolvidos. Sistemas de rede e transmissão em tempo real de dados tiveram um papel fundamental na otimização das atividades empresarias, na geração de informações e na internacionalização dos mercados de capitais.

Investidores dispersos geograficamente passaram a ter informações sobre oportunidades de investimentos e passaram a ter acesso a um fluxo cada vez mais facilitado de recursos financeiros entre os diversos países. Assim, durante os anos 90, surge uma verdadeira economia global e essa integração de

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mercados deixou claro que as práticas contábeis eram extremamente diferentes e geravam resultados completamente díspares entre países.

Frente à grande diversidade de padrões contábeis, verificou-se a necessidade de se criar, internacionalmente, uma estrutura conceitual similar ente os diversos países para fins de publicação de relatórios financeiros. Nesse momento, ganha forma o IASB – International Accounting Standards Board, criado em 2001 como sucessor do IASC – International Accounting Standards Committee. O IASB passou a ser responsável por desenvolver as Normas Internacionais de Contabilidade - IFRS (International Financial Reporting Standards).

As IFRS são atualmente utilizadas para elaboração de relatórios contábeis e financeiros na grande maioria das economias mais representativas do mundo. Com isso foram reduzidas as discrepâncias entre diversos métodos contábeis distintos.

1.2.8 Afinal, o que concluirmos ao estudar a história da contabilidade?

Em resumo, os fatos históricos aqui relatados são pontuais e representaram apenas os maiores impactos nas práticas contábeis ao longo dos tempos. No entanto, a grande conclusão que se chega é que a contabilidade está em constante evolução para acompanhar a também constante evolução da economia e da sociedade. A Contabilidade é, portanto, reflexo das interações e das circunstâncias econômicas e sociais.

Na verdade, a contabilidade pode ser entendida não só como uma mera resposta à demanda dos usuários por informação, mas sim um meio para o desenvolvimento da sociedade moderna, uma vez que a contabilidade cria condições e ambiente informativo propício para o surgimento e a evolução da econômica como um todo.

Ilustrando: assim como o diagnóstico na medicina evoluiu de uma simples avaliação médica manual para técnicas mais elaboradas como raio-x, tomografia e ressonância magnética, a contabilidade também evolui com um único objetivo: fornecer o melhor conjunto possível de informação para o diagnóstico a tomada de decisão. Certamente, em ambas as áreas, a pesquisa, a tecnologia, a prática e o tempo criarão formas cada vez mais acuradas para gerar informação. Afinal, as ferramentas de medição evoluem por conta da evolução da medicina ou é a medicina que evolui devido às ferramentas mais sofisticadas de medição?

Hopwood (1987) ilustra essa interdependência entre as mudanças no ambiente (mercado) e as mudanças contábeis, sob o ponto de vista organizacional, conforme apresentado da Figura 1. Do ponto de vista organizacional, ao mesmo tempo em que a contabilidade possui papel crucial na mediação de novas políticas de produção, pode ser entendida como a resultante de uma complexa interação das estratégias organizacionais, de marketing e de produção.

Figura 1 – Contabilidade inserida nas ações organizacionais (Hopwood, 1987, p.222)

Assim, a contabilidade é, de fato, parte dos sistemas organizacionais e não pode ser entendida nem concebida de forma separada das instituições. Da mesma forma, as instituições não podem ser

Mudança

no

Mercado

Mudança

nas políticas

de produção

Mudança

Organizacional

Mudança no sistema

de informação

Mudança

Contábeis

Mediação

contábil

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concebidas de forma independente da contabilidade: a contabilidade promove governabilidade às estratégias e contratos das instituições. A contabilidade é ao mesmo tempo causa e efeito das mudanças organizacionais, sociais e econômicas.

Aspectos adicionais poderão ser obtidos em: HOPWOOD (1983, 1987), Nahapiet (1980) e Roberts (2014).

1.3 Contabilidades: Financeira, Gerencial, Tributária e Pública

Como visto, a contabilidade visa suprir de informações úteis os diversos agentes envolvidos não processo de tomada de decisão (são os usuários da informação contábil). Considerando que as necessidades por informação dos diversos usuários são diferentes, a contabilidade pode assumir diferentes características e funções. Da mesma forma, as características do processo contábil podem variar de acordo com a entidade que está sendo analisada, por exemplo, entidades públicas ou providas, com ou sem fins lucrativos, entidades financeiras e não-financeiras etc. Nesse sentido, é possível identificar alguns direcionamentos da técnica e da pesquisa contábil, a seguir são elencados três grandes grupos de acordo com seus usuários:

Contabilidade Financeira (ou Societária): tem como objetivo prover informações para os usuários externos de maneira geral, ou seja, não busca atender um usuário em específico mas a maior gama possível de usuários. É na contabilidade financeiras que as demonstrações contábeis e financeiras são elaboradas e publicadas. Apesar de não haver direcionamento da informação para um usuário específico, tipicamente, a contabilidade financeira tende a favorecer aqueles que fornecem capital à empresa, mais especificamente investidores, acionistas ou credores. Para tanto, ao divulgarem publicamente as informações financeiras as empresas devem seguir, de forma consistente, um conjunto de regras e procedimentos de reconhecimento, mensuração e evidenciação que privilegia a apresentação das demonstrações com base na essência econômica das operações. Portanto, para fins de contabilidade financeira, as demonstrações e relatórios contábeis devem apresentar uma visão verdadeira e apropriada da situação econômica e financeira das empresas.

Mesmo entre os usuários externos, é possível distinguir diversos contextos de decisão. Em geral, grandes grupos ganham maior destaque para a contabilidade financeira: os tomadores de decisão voltados para o patrimônio líquido (acionistas e títulos de propriedade); os tomadores de decisão voltados para operações de crédito e emissão de dívida e os tomadores de decisão voltados para remuneração do quadro diretivo. Assim, mesmos outros tomadores de decisão utilizam informação contábil. Os gestores da companhia e funcionários frequentemente precisam dessa informação para desenvolver seus controles de rotina sobre as operações.

Portanto, a contabilidade financeira fornece informação para diversos usuários com diferentes propósitos, ou seja, as demonstrações são elaboradas para propósitos gerais.

Contabilidade Gerencial: envolve o desenvolvimento e interpretação de informação contábil para fins específicos do gerenciamento das atividades operacionais e financeiras das empresas. Os gestores utilizam informação contábil para uma diversidade de fins, tais como avaliação de desempenho das diversas unidades de negócios, das diversas áreas e subáreas das empresas e dos indivíduos. Normalmente, a contabilidade gerencial fornece informações sobre a introdução ou a exclusão de determinada linha de produtos e serviços de acordo com as o consumo de recursos e contribuições geradas por cada produto e diversos outros aspectos das operações empresariais.

A grande parte das decisões é de caráter financeiro, no entanto, a contabilidade gerencial também tem como papel gerar informações e fatore de natureza não financeira, como market share, capacidade produtiva, aspectos políticos, sociais e ambientais, imagem da empresa, atuação de concorrentes, produtividade dos trabalhadores etc. No entanto, uma vez que todas decisão envolve considerações financeira, normalmente a maior parte dos sistemas de informação gerencial tem caráter financeiro.

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Muitas empresas de fato mantem sistemas avançados de sistema de informações gerenciais que proporcionam as informações requeridas para a gestão do negócio. Diferentemente das informações geradas pela contabilidade financeira, a contabilidade gerencial tem caráter mais analítico, específico, detalhado e customizado, uma vez que os sistemas de informação gerencial variam em função de cada tipo de empresa, dependendo da estrutura e cultura organizacional.

Do ponto de vista teórico, uma vez que não há padronização das decisões gerenciais, não uma teoria que diga como a contabilidade gerencial deve ser. Normalmente, os estudos estão baseados no impacto da informação gerada pelos diversos sistemas e artefatos gerenciais na tomada de decisão dos gestores. São também tradados de aspectos temporais das decisões e sistemas de incentivo e remuneração dos gestores.

Contabilidade Tributária (ou Fiscal): Especialmente após a separação formal da contabilidade financeira da contabilidade tributária, a atuação da contabilidade tributária no processo de apuração do lucro tributável passou a ser fundamental. No entanto, a contabilidade tributária não se limita a apuração do lucro para fins tributários mas principalmente no processo de planejamento tributário, ou seja, antecipar os efeitos tributários gerados pelas diversas decisões operacionais das empresas. Por exemplo, abrir (ou transferir) uma unidade produtiva onde sejam aplicados benefícios fiscais; utilizar meios logísticos que minimizem o impacto fiscal das operações etc.

No Brasil, a contabilidade tributária sempre exerceu grande influência na contabilidade financeira e muitas vezes as disciplinas eram analisadas conjuntamente (apesar da nítida especialização da contabilidade fiscal). Atualmente a contabilidade tributária tem características mais próprias e não emprega todos os conceitos da contabilidade financeira (e nem deveria devido a diferença de propósitos), no entanto, há grande desafio para os profissionais e pesquisadores em contabilidade tributária: a difícil adequação e acompanhamento das contínuas e volumosas mudanças e exigências tributárias. É sabido que o Brasil é um dos países onde se gasta maior números de horas para se cumprir aspectos burocráticos, formais e tributários.

Ao mesmo tempo em que a contabilidade tributária gera grandes desafios, também gera grandes oportunidades tanto em termos profissionais como em termos de pesquisa científica. Trata-se de uma área que, não fossem as constantes incertezas geradas pelo governo, a seria melhor explorada, inclusive do ponto de vista internacional.

Questões:

1) O que é contabilidade? 2) O que é e como é dividido o Processo Contábil? 3) O que são os Princípios Contábeis Geralmente Aceitos? Qual sua importância? 4) Por que a contabilidade não é totalmente objetiva? 5) Por que o renascimento, as grandes navegações e a revolução industrial são relevantes para entender

a evolução da contabilidade? 6) Como a crise de 1929, com a quebra da bolsa de Nova York influenciou o desenvolvimento contábil? 7) Qual a principal conclusão podemos chegar ao estudar a história da contabilidade? 8) Caracterize contabilidade financeira, gerencial e tributária.

Referências:

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Merton, Robert. (1970). Sociologia: Teoria e Estrutura. São Paulo. Ed.Mestre Jou. p. 51

Mullins, Daniel A.; Whitehouse, Harvey and Atkinson, Quentin D. The role of writing and recordkeeping in the cultural evolution of human cooperation. Journal of Economic Behavior & Organization. Volume 90, Supplement, June 2013, Pages S141–S151

Napier, Christopher. (2010). The history of financial reporting in the United Kingdom. in Gary Previts, Peter Walton & Peter Wolnizer (eds) A Global History of Accounting, Financial Reporting and Public Policy (Bingley: Emerald, 2010), pp. 243-273. DOI: 10.1108/S1479-3504(2010)000014A013.

Popper, Karl R. (1976). A lógica da pesquisa científica. 3ª ed. 1972. Tradução Leônidas Hegenberg e Octanny S. Mota. São Paulo: Ed. Cultrix.

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2 O Ambiente da Contabilidade

Objetivos do capítulo:

Apresentar a contabilidade como uma função do ambiente no qual está inserida

Apresentar e discutir a ideia da firma como um conjunto de contratos (teoria contratual da firma)

Discutir o papel da contabilidade da teoria contratual da firma

Apresentar e discutir a teoria de agência e o papel da contabilidade

Apresentar e discutir as hipóteses de mercado eficiente e seus impactos para a contabilidade

Discutir como os diferentes modelos de governança corporativa influenciam na contabilidade

Este capítulo discute quando e por que a contabilidade é importante. Apresenta aspectos que fundamentam a existência da contabilidade e justifica seu uso no processo de tomada de decisão sob três principais óticas: (1) a contabilidade como ferramenta de controle na execução de contratos (poder de feedback ou stewardship); (2) a contabilidade como ferramenta de quebra de assimetria informacional e (3) a contabilidade como ferramenta de projeção de desempenho futuro.

A teoria da firma e a teoria organizacional estão diretamente preocupadas com o comportamento das pessoas ao buscarem alcançar determinados objetivos por meio da manipulação das diversas variáveis a sua disposição. Assim, os indivíduos usariam essas variáveis a sua disposição de forma ótima, racional ou eficiente para alcançar seus objetivos individuais e/ou objetivos coletivos (Simon, 1979). Porém, não há uma forma única ou perfeita para se modelar o conjunto de variáveis e conjunto de interesses individuais e coletivos; da mesma forma, não há uma única forma de medição ou de geração informações úteis para monitoramentos de contratos e tomada de decisão.

Padronização de certos aspectos da informação contábil captura ganhos da coordenação social. Porém é difícil dizer oque é bom para um indivíduo, da mesma forma que é difícil dizer o que é bom para a sociedade como um todo (Sunder, 1997). Assim, a utilidade da informação depende do usuário. Porém, tipicamente, a mesma informação utilizada pelos investidores na tomada de decisão é utilizada para avaliar o desempenho dos gestores. Nesse contexto, surgem os dilemas enfrentados pela contabilidade no processo de reconhecer, mensurar e evidenciar informação. Os investidores demandam informações que

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possibilitem investimentos eficientes em empresas, especialmente aquelas listadas no mercado de capitais. Com isso, mensurações a valor corrente, ao invés de custo histórico, tendem a ser mais informativas sobre a situação atual dos ativos e passivos da entidade, e seu consequente desempenho futuro.

Do ponto de vista da mensuração do desempenho dos gestores, o objeto principal da avaliação é informação sobre a atuação eficiente dos gestores na administração dos recursos investidos. Nesse caso, valores correntes, por serem tipicamente mais voláteis e gerarem resultados que não estão diretamente relacionados à atuação dos gestores, não representam a medida mais informativa sobre a eficiência da atuação dos gestores.

Com isso, a divulgação financeira assume dois principais papeis que muitas vezes são conflitantes entre si: o de monitoramento e avaliação do valor da empresa e o de avaliação de desempenho gerencial (stewardship).

2.1 A Teoria Contratual da Firma

Desde a formação das companhias modernas, com dissociação entre gestão e propriedade, houve crescente complexidade do ambiente interno e externo às empresas. Segundo a teoria da firma, as companhias surgiram de uma necessidade coordenação econômica entre indivíduos diversamente especializados e que operam em uma economia de mercado. Portando, cada indivíduo ou grupo de indivíduos desempenharia um papel na organização econômica que adquire e gerencia recursos para produzir produtos e serviços desejados pelo mercado. Assim, essa organização econômica do processo produtivo seria feita por meio das organizações (firmas).

Por exemplo, imagine que um indivíduo precise de um empréstimo para comprar sua casa. A princípio, ele pode obter esse dinheiro de qualquer um de seus amigos ou conhecidos, no entanto, ele teria que perguntar a cada um deles se eles têm dinheiro e se têm interesse em emprestar. Pode acontecer que nenhum de seus conhecidos tenha dinheiro ou interesse de emprestar, então o indivíduo vai perguntar aos conhecidos dos conhecidos e assim por diante. Acontece que identificar as pessoas que poderiam fazer o empréstimo, ainda que parcial, demoraria muito tempo e demandaria grande esforço (isso sem contar na desconfiança entre as partes, principalmente do credor, que entrega o dinheiro). Imagine ainda que fossem necessários diversos empréstimos, com contrapartes diferentes, para aquisição do imóvel. É nesse momento que surgem os bancos (Fig. 2.1) como agentes especializados em captar dinheiro e emprestar para aqueles que demandam dinheiro (e que deverão pagar no futuro, evidentemente). Nesse caso, apenas um contrato será firmado entre banco e o indivíduo e o contratual será mais facilmente monitorado. Para tanto, os bancos, na qualidade de organização econômica, vão cobrar uma taxa (lucro) para exercer essa atividade.

Figura 2.1 – Bancos: organização econômica entre indivíduos

para realizar captação e empréstimos

Obviamente, as organizações não têm substância física propriamente, são “abstrações contratuais”. Por exemplo, um único indivíduo (pessoa) não poderia fazer consulta a todos os demais indivíduos de uma sociedade sobre a necessidade de emprestar ou tomar dinheiro emprestado. Muito provavelmente ele precisaria de ajuda que, em uma corporação tradicional, poderia vir por meio de um sócio, que dividiria as atividades e ganharia partes de um lucro possivelmente variável, ou um funcionário que receberia remuneração em maior parte fixa (ignore a questão do aporte de capital por enquanto). Em ambos os casos haveria um contrato, ou de sociedade, ou empregatício. No primeiro caso, como apurar a

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parcela que cada um teria direito? No segundo caso, vale apena ter funcionários ou sócios? Nessas questões entra a contabilidade.

Já nas corporações modernas, os proprietários (tipicamente os acionistas) estão dispersos e contribuem principalmente com aporte de capital, não participando, de fato, de aspectos operacionais. Dessa forma, eles (proprietários) delegam a gestão operacional da empresa e não possuem capacidade ou incentivos de controlar todas as atuações dos gestores de forma eficiente. Acontece que os gestores tendem a agir em seu próprio interesse em detrimento dos interesses dos proprietários e dos demais agentes econômicos. Desse modo, ao invés de gerar eficiência à coordenação econômica e redução de custos de transação, haveria desequilíbrio entre os agentes pelo não cumprimento adequado dos contratos.

Para Simon (1952), as organizações podem ser entendidas como grupos de contratos entre diversos indivíduos relacionados a vários fatores de produção em que os indivíduos são motivados por objetivos individuais, porém não egoísta, na busca pela otimização de seus esforços. Nesse sentido, a Teoria Contratual da Firma considera que as empresas são formadas com base em contratos privados, onde o papel do estado é limitado a zelar pelo correto cumprimento dos contratos. Dessa forma, as diversas partes (agentes) são livres para firmarem acordos em conformidade aos seus interesses e cada contrato deve possuir proteção legal e constitucional.

Portanto, os contratos são, na verdade, resultado de ações cooperativas entre os agentes para obtenção de um beneficio final comum a todos os participantes. Assim, a empresa poderia ser entendida como um conjunto de contratos entre diversos agentes econômicos e mesmo que haja conflito entre os diversos agentes, há também interesse de cooperação para se chegar a acordos comuns que as partes consideram individualmente adequadas. Portanto, cada agente relacionado com a empresa contribui para seu funcionamento e manutenção e espera certa remuneração (também usados os termos direitos, incentivos ou payoff, nas páginas adiante) por seu esforço.

Simon (1952) exemplifica isso com uma organização com apenas um empreendedor (proprietário/acionista) um empregado e um consumidor (cliente). O sistema pode ser representado por:

Quadro 2.1 – Tipos de agentes, suas contribuições e direitos

Tipo de Agente Contribuições Direitos/Incentivos/Remuneração

Empreendedor Custo da produção (capital no início) Receitas com vendas

Empregado Trabalho Salário, benefícios

Consumidor Preço de pago pelo produto Mercadorias

E fácil perceber que o empreendedor não incorreria em custos de um projeto se não houvesse a perspectivas de geração de receitas, da mesma forma, o empregado só trabalharia se tivesse a perspectiva de recebimento de salário e benefícios e o consumidor só desembolsaria seus recursos caso tivesse interesse pelo produto mediante preço estabelecido. Tratam-se, portanto, de esforços colaborativos e complementares.

Em um ciclo inverso, o consumidor, ao pagar pelas mercadorias, proporciona ao empreendedor sua receita que viabiliza seus custos de produção e, por sua vez, possibilita ao empreendedor pagar o salário ao funcionário, uma vez que o funcionário viabilizou a transformação de produtos que possibilitou a geração da receita.

Claramente, temos um sistema em que cada participante tem seu interesse e seu custo de oportunidade. O consumidor pode comprar mercadorias de outras empresas com características ou preços diferentes; o funcionário pode trabalhar para outras empresas com salário maior ou carga de trabalho menor, e o empreendedor pode optar por projetos que sejam mais lucrativos. Inicia-se aí, a partir do resultado de forças de oferta e demanda, um complexo sistema de equilíbrio, em que TODOS os agentes

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buscaram maximizar seus benefícios individuais até que um equilíbrio seja atingido. Como isso, a forma, o montante e o período dos recursos e contribuições que um indivíduo aloca e os direitos esperados são motivos de negociação ou barganha entre as partes.

No entanto, cabe lembrar que sempre haverá custos e riscos associados ao processo, especialmente custos relacionados à identificação de outros indivíduos para criação de novos esforços colaborativos. Por exemplo, para o consumidor haverá custos para identificar novos fornecedores, descobrir preços e avaliar a qualidade dos produtos e sempre há o risco de comprar mercadorias com qualidade inferior. Da mesma forma, o empreendedor tem custos para encontrar e manter funcionários e consumidores. Funcionários, apesar de muitas vezes protegidos pela legislação trabalhista, têm custos para identificação de novo empregador e sempre haverá incerteza na troca de empregador (entra aqui outros aspectos relacionados a assimetria de informação que será tratado adiante).

Um ponto crucial para a teoria dos contratos diz respeito às condições em que os indivíduos continuarão a participar de um contrato de colaboração. É possível dizer que cada indivíduo permanecerá na organização se a sua satisfação (ou utilidade) gerada a partir dos incentivos (direitos) líquidos forem maiores que a contribuição (utilidade) percebida caso ele escolha sair da firma, e assim terminar sua relação cooperativa (Simon, 1952).

Desta forma, a estabilidade de uma organização (firma) depende se sua habilidade de proporcionar incentivos suficientes aos indivíduos para que eles considerem mais desejável participar da organização do que sair dela. Assim, a firma nada mais é do que um grande conjunto de acordos cooperativos contratuais (que podem ser formais ou não). Como complemento ao exemplo anterior, o Quadro 2.2 a seguir apresenta as contribuições e os direitos de alguns dos principais tipos de agentes envolvidos em contratos com a empresa:

Quadro 2.2 – Tipos de agentes, suas contribuições e direitos (Sounders, 1997, p16)

Tipo de Agente Contribuições Direitos/Incentivos/Remuneração

Acionista Capital Dividendos

Administrador Habilidades Salário, bônus, benefícios

Credor Financiamento Juros, principal

Empregado Habilidades Salário, bônus, benefícios

Fornecedor Bens, serviços Caixa

Cliente Caixa Bens, serviços

Governo Ações públicas Impostos

Auditor Serviços Honorários

Fonte: Sounder (1997, p16)

Assim, o funcionamento adequado da empresa depende do equilíbrio contratual estabelecido entre as diversas partes. Para um indivíduo ingressar em um contrato cooperativo com outros, formando a empresa, deverá ser levado em conta: (1) qual contribuição ele tem a oferecer, (2) qual direito ele terá e (3) quais as alternativas disponíveis para ele no momento do ingresso. Um agente racional não entrará em um contrato que prometa menos do que as melhores alternativas disponíveis e conhecidas. Porém, na prática, há problemas no estabelecimento e na execução dos contratos uma vez que esses contratos são firmados e operados em condições de incerteza que podem advir de informações imperfeitas ou informações incompletas.

Em ambientes e contratos operados com condições de informação imperfeita, as regras são claras e todos os participantes as conhecem, porém um agente não conhece as ações dos outros agentes. Por exemplo, investir na bolsa de valores: todos conhecem as regras de negociação, sabem que o preço dos ativos varia em função de oferta e demanda, porém, um agente não consegue saber, a priori o comportamento dos outros investidores em relação àquela ação. Assim, o comportamento do valor da

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ação vai proporcionar informação sobre os vários eventos e ações dos outros agentes. O mesmo ocorre com a informação contábil, ao ser divulgada, ela mostra quais foram as ações dos administradores na gestão da empresa, mesmo que esse comportamento não fosse conhecido anteriormente.

Já em ambientes e contratos operados em condições de informação incompleta, as regras não estão totalmente claras e por isso é necessário que haja um agente intermediário. Por exemplo, partilha de bens de uma família ou empresa: muitas disputas ocorrem quando membros de uma família se acham, por qualquer motivo que seja, com direitos maiores ou diferenciado dos demais. Nesses casos é difícil aplicar uma regra clara de partilha, necessitando de um agente intermediário que irá gerenciar o conflito indicando as direções mais satisfatórias para a partilha de bens. E o mesmo ocorre com a contabilidade, muitos contratos, as vezes firmados entre sócios, não são detalhados o suficiente para englobar todos os casos e possibilidades possíveis (inclusive de extinção da empresa), nesse ponto, a contabilidade surge como uma forma de mostrar a estrutura do contrato e a posição de cada individuo em relação a ele.

Além de operarem em condições de informação imperfeita e incompleta, os diversos agentes tendem a maximizar seus próprios benefícios individuais em detrimento dos benefícios de terceiros, gerando conflitos de agência, que será tratado em detalhes no tópico a seguir. Contudo, considerando que a execução de contratos não é perfeita, diversos problemas na execução de contratos podem gerar uma variedade de custos contratuais, tais como:

Custos de negociação: por exemplo, a contratação de advogados para causas trabalhistas, cíveis ou tributárias, negociações com sindicatos etc;

Custos de monitoramento dos contratos: por exemplo, honorários de auditorias independentes, manutenção de departamentos de controles internos, de cobrança e de recursos humanos etc;

Custos de prevenção a fraudes: por exemplo, controle de estoque, seguros, sistemas de vigilância etc;

Custo de renegociação ou violação de contratos: por exemplo, renegociar taxas de empréstimos bancários, pagamento de multa por atraso no pagamento de obrigações, pagamento de multas por erros ou omissões fiscais etc;

Custos de possíveis falências: por exemplo, aumento no custo dos empréstimos devido a possibilidade de ‘calote’ ou insolvência da empresa etc

Com base nos exemplos acima, é fácil perceber que os custos contratuais dependem das características econômicas e legais das empresas, tais como, constituição jurídica (sociedade anônima ou de quotas de responsabilidade limitada), setor econômico, estrutura de capital (financiamento por meio de dívidas ou capital próprio) etc. Para otimização da contribuição da empresa no fornecimento de bens e serviços à sociedade e para satisfação dos diversos agentes é desejável que os custos de transação sejam minimizados, ou seja, seriam contratos eficientes.

A disputa contínua entre sindicatos e bancos no Brasil

A cada ano os sindicatos dos bancários no Brasil iniciam processo, muitas vezes caloroso, de negociação salarial com os bancos e como resultado há greves e paralizações nos serviços bancários por todo o país. O argumento sindical, na maioria das vezes, parece ser sempre o mesmo: o alto lucro dos bancos. Segundo os sindicatos, os bancos não estariam repassando seu desempenho crescente de lucro para a criação de novos postos de trabalho e aumento salarial. Conforme manchete divulgada em novembro/2013 “apesar dos altos lucros, bancos reduzem agências e cortam empregos”1.

Os bancos por sua vez, alegam que as constantes incertezas no país, tanto por questões econômica quanto por ações políticas, dificultam a gestão de riscos e demandam spread3 coerente com essas incertezas enfrentadas. Adicionado a isso, existe a grande incerteza no mercado financeiro internacional quando considerado sob a perspectiva de um mercado emergente, como o caso brasileiro. Adicionalmente, os bancos alegam que o cenário de queda nas taxas de juros nas últimas décadas e a maior concorrência no setor financeiro forçam a contenção de custos das instituições financeiras.

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Esse é, portanto, um nítido exemplo de agentes visando maximizar seus benefícios individuais em contratos, especificamente em contratos de trabalho. Os trabalhadores, representados por seus sindicatos, buscam maximizar seu bem estar enquanto que empregadores buscam atingir seus objetivos de rentabilidade sobre seu capital alocado. Aqui, também é nítido o papel da contabilidade no monitoramento dos contratos, os sindicatos acompanham a divulgação do lucro visando equilibrar o contrato, de forma que os empreendedores (no caso proprietários e acionistas das instituições financeiras) não aumentem significativamente seus benefícios em detrimento daqueles que contribuem e viabilizam, com suas aptidões, para o desenvolvimento da atividade bancária (no caso, os funcionários).

Tipicamente, após negociação entre as partes, chega-se a um equilíbrio de interesses que satisfaz a utilidade de cada participante. É exatamente esse equilíbrio que viabiliza a perenidade das corporações. Caso qualquer uma das partes desista integralmente de seus contratos, e não haja substituto para os indivíduos, a firma (no caso as instituições financeiras) deixa de existir.

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1Contraf-CUT “Apesar dos altos lucros, bancos reduzem agências e cortam empregos” 19/11/2013. Acesso em janeiro/2014: http://www.contrafcut.org.br/noticias.asp?CodNoticia=36510.

2Spread, grosso modo, é a diferença entre as taxas de captação e de aplicação dos bancos e que gera o resultado da intermediação financeira (espécie de lucro bruto das instituições financeiras).

A contabilidade tem, portanto, papel fundamental no monitoramento dos diversos contratos entre agentes na empresa. Especificamente, a contabilidade financeira tem extrema relevância na mensuração da contribuição e na mensuração do direito/remuneração de cada indivíduo. Assim, esses contratos vão desde contratos empregatícios entre a empresa e seus gestores, contratos de empréstimos entre firma e seus financiadores, até contratos comerciais de fornecimento e compra de bens e serviços.

Toda argumentação apresentada neste capítulo torna explicito que os diversos contratos de cooperação, entre os diversos agentes envolvidos com a firma, possuem naturezas e características diferentes. Mas será então que a contabilidade está desenhada para mensurar eficientemente todo tipo de contrato?

É nesse ponto que surgem as diferenças no processo de mensuração contábil. As contribuições e direitos dos diversos indivíduos não são mensurados de maneira homogênea. Do ponto de vista contatual, a mensuração das contribuições e dos direitos de cada agente é simples e direta, por exemplo, numero de horas trabalhada, volume de produção, volume de vendas etc. Entretanto, contratos que possuam a geração de riqueza ou outra variável não observável de forma direta ou objetiva são mais custosos e complexos para se mensurar.

O custo para se produzir medidas específicas para o monitoramento de cada contrato seriam maiores. Por isso, a contabilidade financeira, especificamente, justifica-se com a utilização de uma única metodologia contábil para fins gerais e não específicos. Mais que isso, a contabilidade financeira, apesar de almejar o maior número de usuários possíveis, tem suas atenções mais voltada para o monitoramento de contratos relacionados à alocação de capital à firma. Contratos que consideram alocação de capital para gestão de terceiros (gestores) são apontados como de maiores riscos e incertezas em suas execuções, especialmente pela possibilidade de apropriação da riqueza dos detentores de capital pelos gestores da firma.

A Estrutura Conceitual das IFRS/CPC, por exemplo, é clara em afirmar que as demonstrações contábeis:

objetivam fornecer informações que sejam úteis na tomada de decisões econômicas e avaliações por parte dos usuários em geral, não tendo o propósito de atender finalidade ou necessidade específica de determinados grupos de usuários.

Demonstrações contábeis elaboradas com tal finalidade satisfazem as necessidades comuns da maioria dos seus usuários, uma vez que quase todos eles utilizam essas demonstrações contábeis para a tomada de decisões econômicas, tais como:

(a) decidir quando comprar, manter ou vender instrumentos patrimoniais;

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(b) avaliar a administração da entidade quanto à responsabilidade que lhe tenha sido conferida e quanto à qualidade de seu desempenho e de sua prestação de contas;

(c) avaliar a capacidade de a entidade pagar seus empregados e proporcionar-lhes outros benefícios;

(d) avaliar a segurança quanto à recuperação dos recursos financeiros emprestados à entidade;

(e) determinar políticas tributárias;

(f) determinar a distribuição de lucros e dividendos;

(g) elaborar e usar estatísticas da renda nacional; ou

(h) regulamentar as atividades das entidades.

Por esse motivo, as estruturas conceituais básicas de contabilidade são desenvolvidas de forma a serem aplicáveis a uma gama de modelos contábeis e conceitos de capital e sua manutenção. No entanto, as informações contábeis podem ser restritas para o uso igualmente eficaz de todos os usuários, tais usuários devem considerar informações oriundas de outras fontes, como, por exemplo, condições econômicas gerais e expectativas, eventos políticos e clima político, e perspectivas e panorama para a indústria e para a entidade.

Também é devido a diversidade de contratos, em suas naturezas e características, é que a contabilidade gerencial torna-se relevante. É a contabilidade gerencial terá função extremamente relevante em mensurar contratos particulares entre gestores, funcionários e detentores de capital. Justamente por isso, a contabilidade gerencial não terá uma estrutura conceitual única, mas sim específica para cada ambiente de interesse.

Baiman (2007) sugere que a teoria contratual da firma se tornou o paradigma dominante na pesquisa analítica em contabilidade gerencial. Segundo ele, a teoria contratual proporcionou grandes insights sobre o papel dos sistemas de contabilidade gerencial. A teoria contratual também gerou bases teóricas para a pesquisa empírica sobre comportamento e orientação temporal dos gestores. Dessa forma, parece claro que pesquisadores em contabilidade gerencial devem iniciar suas hipóteses e pesquisas enxergando a firma como um conjunto de contratos que demandam monitoramento e controle. Disso se desprendem as demais plataformas de pesquisa.

2.2 Conflito de Agência

Como visto na seção anterior, os agentes envolvidos nos diversos contratos da empresa buscam, de forma racional, maximizar seus próprios benefícios individuais. Para tanto, os agentes devem possuir recursos e diferenciais que os façam obter benefícios e, para o mesmo fim, agem de maneira inovadora, ou seja, tomam atitudes que os privilegiem, mesmo que não estipulado previamente nos contratos.

A relação de agência (ou conflito de agência) surge quando há dissonância ou desequilíbrio entre os interesses dos agentes. Relação de agencia é definida como um contrato em que uma ou mais pessoas (o principal(is)) delegam a outra pessoa (o agente) a execução de determinadas atividades que envolvem, inclusive, a delegação no processo de tomada de decisão em nome do(s) principal(is) (Jensen e Meckling, 1976, p.308).

Tipicamente, há três relações de agências que geram problemas na execução de contratos, e consequentemente, custos no monitoramento desses contratos, ou mais especificamente, custos de agência. A primeira é a relação entre os proprietários (acionistas - principais) e os gestores (agentes). A segunda é a relação entre credores (principais) e gestores (agentes). A terceira é a relação entre acionistas minoritários (principais) e acionistas controladores (agentes).

O principal, especificamente o proprietário (acionista), não possui capacidade ou habilidade para realizar pessoalmente a gestão da empresa. Dessa forma, os proprietários procuram gestores capacitados

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para representa-los e tomar as melhores decisões em prol da maximização da riqueza dos proprietários. O mesmo ocorre no caso dos credores, em que as decisões deveriam ser tomadas no sentido de garantir o pagamento do principal da dívida mais os juros esperados pelos credores.

Ocorre que os proprietários e credores não conseguem observar todas as ações dos gestores, possibilitando aos últimos, agirem em função da maximização de sua própria riqueza ou bem estar. Assim, a teoria de agência sugere que haverá conflito entre proprietários (principal) e gestores (agentes); afinal, se ambas as partes desejam maximizar seu bem estar (sua utilidade), haverá bons motivos para acreditar que os gestores não irão agir sempre em função do melhor interesse dos proprietários (Jensen e Meckling, 1976). Evidentemente, esse conflito ocorrerá quando o interesse dos gestores é divergente do interesse dos proprietários, e nesse caso, a riqueza dos proprietários não será maximizada.

Por exemplo, gestores podem tomar decisões de investimentos para geração de lucros de curto prazo não sustentáveis em detrimento da geração de lucros persistentes no futuro. Os gestores podem ainda, escolher práticas contábeis ou manipular a informação contábil de forma a aumentar o lucro atual para obterem bônus maiores. Com isso, a remuneração dos gestores aumenta e a riqueza dos proprietários diminui. Para forçar o alinhamento de objetivos, os proprietários assumem diversos custos de monitoramento (ou custos de agência) para limitar a atuação dos gestores. Todos os custos de agência irão reduzir a riqueza dos proprietários como resultado da divergência entre os interesses. Jensen e Meckling (1976) identificam três tipos de custos de agência:

(1) custos de monitoramento dos contratos – são gastos com auditores, gastos com divulgação pública de informações (publicações e sites de relações com investidores), criação e manutenção de comitês de administração e fiscalização da ação dos gestores etc

(2) custos para manter alinhados os interesses dos gestores – são basicamente os gastos com remuneração dos gestores como remuneração variável por desempenho, bonificação, benefícios etc

(3) custos residuais – são todos os gastos adicionais aos dois anteriores oriundos de decisões dos gestores que não seriam tomadas caso os proprietários fossem responsáveis pela operação da empresa. Dessa forma, os proprietários iriam incorrer nos dois custos anteriores caso eles sejam menores que os custos residuais.

Para Lambert (2001), a principal contribuição da teoria de agência para a literatura contábil é o fato de questionar: (1) como as características da informação, da contabilidade e dos sistemas de remuneração afetam (reduzem ou pioram) os incentivos gerenciais e (2) como a existência de problemas nos incentivos gerenciais afeta o desenho e a estrutura da informação, da contabilidade e dos sistemas de remuneração.

Portanto, “a teoria de agência explicitamente incorpora potenciais conflitos entre duas (ou mais) partes, e ela reconhece o papel da informação na gestão desses conflitos. Como resultado, o paradigma de agência tem sido muito útil em proporcionar entendimento de muitas práticas de contabilidade gerencial” (Magee, 2001, p.89). Desta forma, a teoria de agência é uma vertente da teoria dos contratos e que vem ganhando maior atenção da literatura contábil, uma vez que há desequilíbrio/dissonância de interesses entre os agentes.

Em resumo, o conflito de agência ocorre, portanto, quando existem diferentes interesses entre o agente (gestor, credor) e o principal (fornecedor de recursos). Quando a empresa começa a crescer e tem um gestor diferente do acionista

(1) Acionistas vs Administradores (2) Credores vs Administradores/acionistas (3) Acionistas Controladores vs Acionistas Minoritários

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2.2.1 Acionistas vs Administradores - os casos de remuneração variável

Para alinhar os interesses dos gestores aos interesses dos proprietários (acionistas), são criados mecanismos de incentivos para os gestores, incluindo contratos produtividade, ou seja, muitos contratos de trabalho de executivos são baseados metas a serem atingidas, metas essas pré-acordadas e de conhecimento das partes. Com isso, no fim do ano, por exemplo, ao atingir as metas estipuladas, os executivos ganham bônus e estariam, ao mesmo tempo, obtendo resultados que interessam aos acionistas e a si próprios.

No entanto, tais bônus podem fazer com que gestores ajam de forma a apenas atingirem as metas e maximizarem seu bem estar. Assim, poderiam agir de maneiras a prejudicarem os acionistas, por exemplo (lista não extensiva):

(1.1) Orientação temporal para o curto prazo: Investir em projetos que gerem retorno menor em curto espaço de tempo, ao invés de projetos que tenham maior geração de retorno, porem, em prazos mais longos;

(1.2) Gerenciamento de informações contábeis: Utilizar informações e práticas contábeis que antecipem receitas e posterguem despesas por meio de gerenciamento de resultados;

(1.3) Assumpção de riscos desnecessários: Assumir maiores riscos em investimentos incertos em detrimento de projetos menos ariscados e de forma geral assumirem posições desnecessárias de risco, como, por exemplo, endividamento excessivo;

(1.4) Realização de fraudes: Realizar operações que não estão em conformidade com a lei ou com o contrato original firmado entre as partes; e

2.2.2 Credores vs Administradores/acionistas – os casos de risco de crédito

Imagine que a empresa ABC possua dívidas que totalizam $160.000 e que vencem em três meses. Atualmente, a situação patrimonial da empresa é:

ATIVO PASSIVO

$120.000 $160.000

PL ($40.000)

Sendo o ativo formado por máquina e equipamento no valor de $120.000, considerando que o valor de liquidação dos ativos equivale ao seu valor em uso e ao valor contábil registrado e considerando que A=P+PL 120.000=160.000+PL PL=-$40.000

Sabe-se que a empresa possui dois projetos mutuamente excludentes para uso de seus ativos: 1º) Fluxo de Caixa garantido de $20.000 (ou seja, VPL=20.000) 2º) Probabilidade de 10% se se obter um Fluxo de Caixa de $100.000 (VPL=100.000) No primeiro caso, se o primeiro projeto for escolhido, o credor esperaria receber $140.000 (valor

de liquidação dos ativos mais o resultado gerado pelo projeto), enquanto que os acionistas não receberiam qualquer valor e a empresa seria liquidada (caso não seja possível renegociar a dívida).

No segundo caso, se o segundo projeto for escolhido, o credor poderia receber $160.000 (valor total de sua dívida) e os acionistas poderiam receber $60.000. O evento de sucesso é condicional a uma probabilidade de 10%. Ou seja, é pouco provável que seja recebido, mas há, sim, uma pequena possibilidade. Porém, no segundo caso o cenário mais provável, com 90% de probabilidade, é que o credor receba $120.000 (valor de liquidação dos ativos) e os enquanto que os acionistas não receberiam qualquer valor e a empresa seria liquidada (caso não seja possível renegociar a dívida).

Portanto, qual o projeto deveria ser escolhido pelos gestores? - Do ponto de vista do credor, o primeiro projeto gera o maior payout, de $140.000

($140.000x100%), uma vez que os credores iriam se apropriar de 100% do valor de liquidação mais o resultado gerado pelo projeto. Já o segundo projeto tem um payout condicional de apenas $124.000

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($160.000x10% + $120.000x90%), posto de outra forma, é mais provável que eles recebam apenas o valor de liquidação dos ativos.

- Do ponto de vista do administrador e do acionista, o segundo projeto seria preferível, pois gera um payout condicional de $6.000 [($120.000+100.000-160.000)x10% + $0x90%], enquanto que o primeiro projeto tem payout igual a zero (os credores iriam se apropriar da totalidade dos recursos). Do ponto de vista do acionista, apenas o segundo projeto poderia manter parte de seu capital. Da mesma forma, apenas o segundo projeto poderia manter o emprego dos gestores.

Surge aí mais um conflito de agência: os gestores tomariam decisões que prejudicariam os credores em detrimento do interesse dos acionistas e seus próprios interesses.

Na prática, para evitar esse tipo de comportamento, os credores tipicamente impõem cláusulas restritivas, covenants, e limitando a atuação dos gestores no sentido de expropriação do capital, ou parte do capital, dos credores. Assim, as covenants, são estrições contratuais impostas pelos credores para execução mais harmônica dos contratos.

2.2.2 Acionistas Controladores vs Acionistas Minoritários – os casos de mudanças societárias

As ações podem atribuir aos seus detentores direito de voto (ações ordinárias, acionistas ordinaristas) ou atribuir certas preferências no recebimento de dividendos ou outros benefícios (ações preferências, acionistas preferencialistas).

Assim, haverá controle de uma empresa se uma ou mais pessoas ligadas tiverem, individualmente ou em conjunto, preponderância nas deliberações sociais da empresa, ou seja, esse indivíduo ou grupo de indivíduos “manda” na empresa, tendo capacidade de determinar e indicar os gestores/administradores e as políticas operacionais e financeiras da empresa. É o chamado controlador ou grupo de controle. Tipicamente, sabe-se que esse grupo de controle possuir mais do que 50% do capital votante, haverá, necessariamente, controle. Os demais acionistas irão compor o grupo dos minoritários.

2.3 Assimetria de Informação

Como vistos nas seções anteriores: (1) as empresas podem ser vistas como um conjunto de contratos entre diversos indivíduos, sendo que o funcionamento adequado da empresa depende, portanto, do um adequado equilíbrio contratual entre os agentes; e (2) no caso específico das relações de agência, o agente pode agir de forma a maximizar sua própria riqueza em detrimento da riqueza do principal, quebrando assim uma relação contratual.

Ocorre que, alguns indivíduos podem ter acesso a uma maior quantidade de informações sobre as operações das empresas e sobre a execução dos contratos do que outros. A essa diferença de acesso à informação dá-se o nome de assimetria de informação. A priori, dois grandes problemas surgem da assimetria de informação e que possuem impacto direto na contabilidade: a seleção adversa e o risco moral.

2.3.1. Seleção Adversa

Seleção Adversa (adverse selection) ocorre quanto um indivíduo (ou mais) possui maior acesso às informações sobre um determinado ativo do que outros agentes. A primeira, e ainda melhor ilustração para o caso, foi feita por a George A. Akerlof em 1970 em "The Market for Lemons: Quality Uncertainty and the Market Mechanism", citado mais de 18.000 vezes segundo o Google Academic. Basicamente, Akerlof (1970) utiliza o exemplo de carros usados e que pode ser estendido para uma diversidade de outros ativos. Segundo ele, a demanda por carros usados depende principalmente de duas variáveis: (1) Preço e (2) Qualidade Média dos Carros Negociados. Em condições de informação perfeita, é de se esperar que os carros de maior qualidade tenham preços maiores e carros com menor qualidade, preços menores. Assim, a carros com qualidade média estariam sendo vendidos exatamente pelo preço médio. No entanto, os compradores não possuem informações perfeitas sobre as condições e qualidade dos carros, mas os vendedores possuem essa informação.

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Como exemplo, digamos que o preço médio dos carros seja de $20.000. Nitidamente, vender o carro a esse preço seria um bom negócio para os proprietários de carros em situação inferior à média. Em contrapartida, aqueles que tem carros em bom estado (melhor que a média) não se sentiriam atraídos em vender seus carros pelos $20mil, logo, eles não estariam dispostos a continuar no mercado. Uma vez que apenas os carros de qualidade inferior permanecem (ficam disponíveis para negociação), o efeito da assimetria de informação é desfavorável ao mercado como um todo (por isso seleção adversa) e, principalmente, aos (1) proprietários de carros em melhor estado e (2) compradores que não são capazes de diferenciar a qualidade dos carros devido à ausência de informações.

Como resolver esse problema de assimetria informacional? No caso dos carros, existem diversos mecanismos que ajudam na quebra de assimetria de informação: por exemplo, (1) o manual do carro contendo todas as revisões ao longo da quilometragem é um indicativo do grau de comprometimento com a manutenção do veículo, (2) uma inspeção visual sobre os componentes do carro também, mas principalmente (3) uma inspeção detalhada do veículo com um especialista em mecânica reduziria significativamente a assimetria de informação, ele seria um agente de quebra de assimetria informacional ou intermediário informacional.

Do ponto de vista contábil, exatamente os mesmos conceitos podem ser estendidos: com ausência de informações um investidor não será capaz de distinguir empresas boas das empresas ruins, assim as decisões de investimento ficam prejudicadas, empresas boas poderiam ser penalizadas por empresas ruins e não estarem dispostas a continuar no mercado. E da mesma forma, para que a assimetria não prejudique o mercado de capitais como um todo, alguns mecanismos que ajudam na quebra de assimetria de informação como a própria (1) divulgação da informação contábil, (2) a inspeção das demonstrações, e (3) inspeção detalhada das informações por especialistas, eles seriam agentes de quebra de assimetria informacional ou intermediários informacionais.

Os intermediários informacionais são os agentes de mercado e fazem a transição e o alinhamento de informação entre os agentes interessados com vender e comprar títulos, como por exemplos: auditores independentes, analistas de investimento e analistas financeiros, agências de rating etc.

Em resumo, a seleção adversa ocorre quando um comprador racional interpreta informação não divulgada como uma informação desfavorável sobre o valor ou qualidade do ativo; desse modo, a estimativa do valor do ativo passa a ser adversa. Na falta de informação, os investidores descontam o valor dos seus ativos até o momento em que se torna interessante para a firma revelar a informação, mesmo que desfavorável (Verrecchia, 2001, p.161).

Apesar de uma quantidade considerável de divulgação financeira ser obrigatória (por exemplo, informações trimestrais, relatórios anuais, balanços, demonstração de resultados etc), os gestores podem ter informações adicionais cuja divulgação não é obrigatória, mas útil para avaliar a perspectiva futura da empresa. Consequentemente, um problema do ponto de vista contábil é identificar em quais circunstâncias um gestor divulgará ou não esta informação.

2.3.2. Risco Moral

Risco Moral (Moral Hazard) é a possibilidade de um individuo agir desonestamente de forma a prejudicar outro. Em geral, surge quando as pessoas agem de uma determinada forma acreditando (ou sabendo) que não serão punidas ou prejudicadas e sairão ilesas. Esse conceito corresponde, portanto, ao comportamento de uma pessoa ou agente econômico que, ao receber determinado tipo de cobertura, seguro ou poderes para suas ações, diminui os cuidados ou assume comportamento oposto ao esperado.

Em operações de seguros, por exemplo, risco moral ocorre quando uma pessoa, ao assinar um contrato de seguro, age de maneira a facilitar a ocorrência de um sinistro, diminuindo seu cuidado com o veículo, ou ainda instigando a ocorrência intencional um sinistro.

Do ponto de vista contábil, ao receber recursos de investidores, os gestores, por acreditarem que não serão monitorados, agem com displicência na gestão da empresa ou com dolo em provocar perdas aos investidores; assim, gestores podem agir de maneira a não assegurar e maximizar os recursos que lhes foram confiados. Portanto, em condições de assimetria de informações os acionistas não têm como

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garantir que os executivos de suas empresas agirão de modo a maximizar o valor da firma. Mais uma vez a contabilidade surge como instrumento de quebra de assimetria informacional.

Em resumo, enquanto a seleção adversa está relacionada a uma informação oculta (não conhecida) o risco moral está relacionado a uma ação oculta (não conhecida).

Caso: Adiamento da publicação de demonstrações financeiras da Petrobras

Em 06/02/2014, o Valor Econômico divulgou a seguinte manchete: “Ação da Petrobras desaba com adiamento de balanço” (por: Tatiane Bortolozi, Alessandra Saraiva e Edna Simão). Segundo a reportagem, “O adiamento da divulgação do balanço da Petrobras acendeu ontem um sinal de alerta entre os analistas que cobrem a empresa. A estatal divulgou que os números do quarto trimestre de 2013 deverão ser divulgados em 25 de fevereiro. A data inicial era 14 de fevereiro. Para os especialistas, o adiamento sinaliza desempenho ruim para o exercício da estatal no ano passado.”

De fato, durante o pregão de 05 de fevereiro (data em que foi informado o adiamento da publicação das informações anuais de 2013), as ações chegaram a cair até 4%. Segundo os gestores da Petrobrás, o adiamento foi devido a questões técnicas, porém, não houve maiores explicações sobre tais questões técnicas. No entanto, analistas avaliaram essa informação não divulgada (ou pelo menos, postergada) de forma bastante negativa, demonstrando a expectativa de resultados insatisfatórios. Analistas entrevistados na reportagem sugeriram que o adiamento da divulgação do resultado seja, talvez, “um pouco de superstição do mercado. Historicamente, nos últimos anos em que isso ocorreu, veio um resultado pior que o esperado. O mercado não gostou do adiamento" (Lenon Borges, Ativa Corretora).

Reflexão: Afinal, seria esse um caso de seleção adversa? Aparentemente, sim. A informação não divulgada foi interpretada como um sinal negativo sobre o desempenho operacional da empresa, a consequência é que diante a incerteza há penalização do preço dos ativos. Eventualmente, problemas podem ter ocorrido na agenda dos gestores ou problemas operacionais na elaboração das demonstrações contábeis, o fato é que essa informação também não foi explicitada pela companhia, causando assimetria de informação entre o público interno (que conhece o real motivo do adiamento) e o público externo (que pode apenas fazer suposições e conjecturas).

Bortolozi, T.; Saraiva, A & Simão, E. (2014). “Ação da Petrobras desaba com adiamento de balanço”. Valor Econômico, 06/02/2014. Disponível em: http://www.valor.com.br/empresas/3421028/acao-da-petrobras-desaba-com-adiamento-de-balanco#ixzz37iId0G1w

2.4 Mercado de capitais e informação contábil

Como discutido no Capítulo 1 e anteriormente neste capítulo, o desenvolvimento de uma teoria da contabilidade não irá resolver todas as necessidades de todos os usuários da informação contábil. As teorias também devem ajudar a explicar e prever as reações dos diversos agentes acerca das informações divulgadas pela contabilidade. Nesse sentido, algumas teorias ajudam a entender como os usuários reagem à informação contábil.

O valor real de uma empresa, muitas vezes denominado de valor intrínseco, não é uma variável diretamente observável. De qualquer forma, esse valor real da empresa reflete as expectativas futuras de seu desempenho. Há uma série de formas para se calcular o valor de uma empresa e, em condições ideais, o valor será sempre o mesmo, independente da forma na qual o valor da empresa é calculado. E nesse caso, em condições perfeitas, o valor dos ativos da empresa deveria refletir o valor presente dos benefícios futuros esperados por esses ativos. Portanto, o valor das ações da empresa seria estável e sempre entraria em equilíbrio por meio da oferta e demanda de títulos (Fama, 1970).

No entanto, a realidade do mundo dos negócios é extremante incerta e os benefícios futuros estão sujeitos à mudanças, assim como o custo de oportunidade e a aversão/tolerância ao risco variam dinamicamente ao longo do tempo. Em ambiente de incerteza, a tomada de decisão é feita com base em cenários esperados, em que não há benefícios futuros certos, mas sim esperados com base no valor resultante da probabilidade de cada cenário possível3. Desta forma, expectativas futuras são mensuradas

3 Considerando três cenários e as respectivas probabilidades, imagine que o lucro esperado será função de:

(1) Economia estará aquecida – Lucro de $500mi com probabilidade de 30% (2) Economia permanecerá estável – Lucro de $460mi com probabilidade de 40%

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de forma condicional ao estado da natureza em determinado momento. Porém, mesmo com as incertezas sobre o futuro, o valor das ações entraria em equilíbrio por meio da oferta e demanda de títulos.

O fato é que investidores, analistas e gestores possuem conhecimento limitado sobre as os cenários e sobre as probabilidades de cada cenário, com isso, seu poder de projeção também será limitado. Logo, a definição de cenários e suas respectivas probabilidades são subjetivas assim como subjetivas serão as expectativas de resultado e, consequentemente, o valor da empresa. Uma vez que os investidores, analistas e gestores sabem que suas previsões estão sujeitas a erros, eles ficam alertas sobre qualquer nova fonte de informação que possibilite a eles revisar seus cenários e estimativas. A informação contábil é uma dessas fontes.

Mais que isso, a informação pode não ser distribuída a todos os investidores de maneira uniforme, assim como as novas informações podem ser percebidas de maneira distinta entre os agentes. Por isso surge, no mercado de capitais, a análise fundamentalista de ações, que tenta identificar se determinadas ações ou títulos estão mal precificadas por meio de análises detalhadas de toda informação financeira disponível. A premissa subjacente à análise fundamentalistas é que pode haver erro na precificação dos ativos por parte do mercado, em outras palavras, o valor de equilíbrio das ações estaria divergente do valor real (ou valor intrínseco) da ação. Porém, isso só ocorreria que o mercado não reconhecesse eficientemente todas as informações disponíveis.

2.4.1 Hipótese de Mercado Eficiente

Em economia, os preços dos produtos e serviços são definidos a partir da interação entre oferta e demanda até que seja atingido um preço de equilíbrio. A intuição geral é bastante simples: se a oferta for maior que a demanda sobrarão produtos e, o excesso de produtos ofertados fará com que o preço caia, o preço diminuindo pode impulsionar mais indivíduos a comprar o produto até que o novo equilíbrio seja estabelecido. O oposto também é valido: se a demanda for maior que a oferta o preço dos produtos tende a aumentar reduzindo a demanda até o equilíbrio. Graficamente:

Figura 2.2 – Curva de oferta e demanda de produtos e serviços

A mesma ideia foi estendida ao mercado de capitais, principalmente a partir dos trabalhos de Eugene F. Fama e Kenneth R. French (frequentemente, Fama e French) durante a década de 60 e 70. A

(3) Economia estará em recessão – Lucro de $280mi com probabilidade de 30%

Nesse caso o valor (lucro) esperado será de $418mi, que é a resultante das probabilidades (500x0,3 +460x0,4 + 280x0,3). Mais formalmente, sendo X o lucro como uma variável aleatória; E[ ] representa esperança matemática; xi são os valores possíveis para o lucro, e p(xi) a probabilidade de ocorrência do cenário i (onde, i=1, 2 e 3).

1

)(][i

ii xpxXE

onde, D=Demanda S=Oferta (supply) P=Preço Q=Quantidade

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partir dos modelos de oferta e demanda o preço dos ativos é determinado por consenso dos compradores em função de toda informação disponível sobre o produto (no caso, ativos financeiros).

Dessa forma, o preço das ações de uma empresa deve refletir adequadamente todas as informações relevantes disponíveis sobre a economia como um todo e cada empresa em específico (por meio de demonstrações financeiras, prospectos, relatórios etc), assim, o mercado seria eficiente ao reconhecer toda informação disponível no preço dos ativos. No entanto, caso isso ocorra, não haveria possibilidade de ganhos adicionais por meio de análises fundamentalistas. Por esse motivo, as discussões e estudos acadêmicos sobre o grau de eficiência com que o mercado reconhece as informações disponíveis ficam conhecidos como Hipótese de Mercado Eficiente (HME).

A HME sugere três formas de eficiência de mercado: na forma fraca, semiforte e forte.

2.4.1.1 Hipótese de Mercado Eficiente na Forma Fraca

A forma fraca sugere que os preços dos ativos possuem comportamento aleatório a partir de suas séries históricas (random walk process), ou seja, o preço passado do ativo é uma estimativa adequada para seu valor futuro. O preço dos ativos mudaria a partir de novas informações sobre a expectativa de benefícios futuros ou de novas alternativas de investimento.

Assim, o mercado incorpora toda informação sobre o preço passado dos ativos o que implica que um investidor não poderia ter retorno acima dos demais apenas por conhecer a série histórica de preços passados. Neste caso, há espaço para que os analistas fundamentalistas consigam obter retornos acima dos demais agentes de mercado ao considerar que os ativos podem estar precificados incorretamente.

Em resumo, a hipótese de mercado eficiente de forma fraca sugere que o preço dos ativos incorpora apenas informação sobre o preço passado dos ativos, havendo, portanto, possibilidades de ganho adicional ao se buscar o real valor da ação (ou seu valor intrínseco).

2.4.1.1 Hipótese de Mercado Eficiente na Forma Semiforte

A HME em sua forma semiforte sugere que o preço dos ativos incorpora todas as informações publicamente disponíveis, sejam elas sobre os preços passados ou sobre informações sobre o desempenho da empresa que sejam publicamente disponíveis. Isso implica que nenhum investidor poderia obter ganhos adicionais se operar apenas com informação publicamente disponível, porém, investidores operando com informações privilegiadas (insider information) poderiam obter retornos acima da média de mercado.

Do ponto de vista contábil, a HME semiforte implica que toda informação contábil é importante e afetará o preço dos ativos assim que tornada pública, isso incluiria as notas explicativas e estimativas; dessa forma, todas essas informações seriam incorporadas imediatamente ao preço dos ativos assim que fossem tornadas públicas. Acima de tudo, a implicação contábil é de que as práticas contábeis adotadas por uma determinada empresa não influencia em sua precificação se os investidores forem capazes de ajustar as demonstrações contábeis para a forma que desejarem. Portanto, se a HMF de forma semiforte prevalecer, a mudança das normas brasileiras locais para as IFRS não afetariam o preço das ações.

Caso: Geografia contábil: Variações do preço de mercado de instrumentos financeiras na demonstração do resultado ou na demonstração do resultado abrangente?

Em 16/08/2013, o Valor Econômico divulgou a seguinte manchete: “'Geografia contábil' sob os holofotes” (por: Fernando Torres). Segundo a reportagem, “A temporada de balanços do segundo trimestre [de 2013] trouxe para o holofote temas contábeis extremamente áridos como "geografia contábil" e o uso do "valor justo" para mensurar ativos e passivos.”

O fato é que, durante o segundo trimestre de 2013, houve mudanças significativas nas taxas de juros (elevadas pelas autoridades monetárias brasileiras) e no câmbio (especificamente o dólar subiu 10% no período). Especificamente, o impacto da variação do dólar provocou um aumento - em reais - da dívida em moeda estrangeira das empresas. Esse aumento de passivo teria como contrapartida natural uma despesa na demonstração do resultado das companhias. No entanto, algumas companhias, como Petrobras, Vale e Braskem, decidiram adotar a contabilidade de hedge para evitar esse impacto. Dessa forma, o efeito do câmbio na dívida foi registrado diretamente no patrimônio, sem reduzir o lucro líquido das companhias no trimestre. O impacto é evidenciado apenas na demonstração do resultado abrangente, que inclui outras variações patrimoniais que não afetam o resultado do exercício.

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A princípio, essa "geografia contábil" não deveria gerar diferenças no fluxo de caixa das empresas caso os ajustes da mudança do valor de mercado fossem registrados no resultado ou no patrimônio líquido, já que o impacto final é igual. Entretanto, isso não foi percebido (ou entendido) por todos os agentes de mercado, motivando análise do caso pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e sugerindo que a forma de classificação e divulgação das informações no balanço tem importância.

A ideia central é que se o passivo aumenta devido à variação cambial, a empresa reconhece a perda (redução) de patrimônio, sem que haja registro dessa redução no resultado, uma vez que aos ganhos futuros com exportação irão contrapor a redução de patrimônio (Eliseu Martins, FEA/USP). Segundo a reportagem, “o que aparentemente aconteceu é que as empresas preferiram enfrentar o trabalho de ter que provar aos auditores que seus hedges funcionam do que ter que passar horas tentando convencer investidores e o público que a despesa "não caixa" que corroeu o lucro não terá efeito nenhum - quando na maior parte dos casos a distribuição de dividendos é sim afetada pelo sobe e desce cambial.”

Reflexão: Considerando a eficiência de mercado, tal classificação (no resultado ou no patrimônio líquido), deveria afetar o preço dos ativos? A princípio, não, apesar de haver uma diferença temporal na distribuição de dividendos. Ao lançar o impacto da variação cambial no resultado corrente, a parcela a pagar de dividendos referente aos resultados correntes deverá ser reduzida. Ao realizar o lançamento pelo patrimônio líquido, a variação o valor futuro efetivo da dívida (e o seu resultado financeiro considerando os efeitos de ganhos com exportação) será conhecido com maior propriedade. Apesar de não ter efeito direto no fluxo de caixa da empresa, a redução na oscilação dos lucros é frequentemente apontada pela literatura como algo positivo.

Lucros com parcelas significativamente transitórios (como é o caso da variação cambial ocorrida) são mais difíceis de serem previstos e consequentemente mais incertos em seu comportamento futuro. Assim, práticas que minimizam variação nos lucros por resultados transitórios podem dar maior estabilidade e previsibilidade aos lucros, fazendo com que o risco percebido da empresa seja menor. Ao mesmo tempo em que isso tem um lado positivo, isso pode ser entendido como gerenciamento dos resultados ao ponto da manipulação contábil se tornar prejudicial aos investidores, especialmente nos casos de fraude, por isso a preocupação da CVM no caso, por isso a necessidade de avaliação empírica e acadêmica de tais procedimentos, suas causas e suas consequências.

Torres, F. (2013). ““'Geografia contábil' sob os holofotes”. Valor Econômico, 18/08/2013. Disponível em:

http://www.valor.com.br/empresas/3235436/geografia-contabil-sob-os-holofotes#ixzz2cnvsB7LE

2.4.1.1 Hipótese de Mercado Eficiente na Forma Forte

A HME de forma forte considera que todas as informações, incluindo preços passados, informações públicas e informações privadas estão incorporadas o preço dos ativos. A ideia sugere evidenciação completa de todo tipo de informações (full disclosure). Dessa forma, o não haveria possibilidade de ganho adicional por qualquer investidor ou agente. Ou seja, qualquer nova informação sobre a empresa seria imediatamente tornada pública e incorporada ao preço.

Do ponto de vista contábil, se todos já possuem informações sobre as operações e as perspectivas futuras das empresas, a informação contábil não geraria qualquer impacto no preço dos ativos; elas já estariam incorporadas ao preço antes de serem tornadas públicas.

2.4.2 Implicações da pesquisa sobre contabilidade e mercado de capitais

As pesquisas sobre eficiência de mercado tiveram grande impacto para a contabilidade e para a pesquisa em contabilidade. A falta de uniformidade nos princípios contábeis e a possibilidade de escolhas contábeis baseadas em julgamento dos gestores fizeram (e fazem) com que a contabilidade seja duramente criticada ao oferecer aos gestores oportunidades de manipularem os números contábeis (especialmente lucros) e enganar investidores. Esse é um dos pontos centrais nas discussões contábeis, porém, muita pesquisa já foi desenvolvida e mostra, dentre outros pontos que:

A contabilidade não é a única base de informação dos analistas e investidores. Pelo contrário, a contabilidade representa apenas uma menor parcela de informação para determinação do retorno das ações. Frequentemente vemos notícias de que as ações sobre e descem por conta de mudanças nas taxas de juros (do Brasil e do exterior), sobre perspectiva de aceleração ou desaceleração econômica internacional, taxa de desemprego, câmbio, valor de commodities etc. Tais itens representam a maior parte das variações no preço das ações.

A contabilidade tem sim, conteúdo informacional, porém incremental e confirmatória. Os analistas e investidores utilizam informação contábil para revisar (ou não) suas expectativas

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futuras, isso acontece especialmente ao nível da empresa (não do mercado). A evidência empírica é imensa ao mostrar que quando a publicação das demonstrações financeiras traz informações novas (inesperadas), como lucros anormais, faz com que os analistas revejam suas expectativas, caso essas novidade seja persistente (i.e. não são transitórias).

Diferentes práticas e escolhas contábeis podem afetar o retorno das ações. Apesar de a HME indicar que escolhas contábeis não deveriam afetar o preço das ações, a evidência empírica é que muitas vezes elas afetam. Isso sugere que o mercado não é eficiente em sua forma forte, mas sim, semiforte, onde a informação é incorporada ao preço quando divulgada.

2.5 Modelos de Governança Corporativa

Como visto no Capítulo 1, a contabilidade é fruto do contexto em que está inserida (ao mesmo tempo em que é agente ativo em influenciar seu meio). Rene Davis, em seu livro “Les Grands systèmes de droit contemporains”4 de 1966, foi o primeiro a identificar e documentar as características principais de dois grandes sistemas jurídicos no mundo os sistemas de Direito Romano (ou code-law) e Consuetudinário (commo-law). Em 1978, com a parceria de John E.C. Brierley o livro foi traduzido para o inglês (Major Legal Systems in the World Today) e, apesar de não ser uma obra contábil, influenciou enormemente a literatura contábil ao identificar os fatores jurídicos e institucionais que tornavam a contabilidade diferente entre os diversos países.

Davis e Brierley (1985) mostram que a política pode exercer grande influência no processo legislativo (standard setting) e nos mecanismos que forçam o cumprimento da lei (enforcement). No entanto, essa influência acontece de maneira muito diferente em países code-law e common law. Assim, diversos estudos5 passaram a utilizar a separação dos países em code-law e common-law para avaliar a influência política na formulação de padrões contábeis. Do ponto de vista contábil Ball, Kothari e Robin (2000) identificam implicações a seguir:

Code-law se origina a partir de interesses coletivos definidos pelo setor público. Nesse caso a contabilidade seria definida (ou fortemente influenciada) por entidades governamentais ou entidades representantes dos interesses governamentais. Da mesma forma, os mecanismos que forçam o cumprimento da lei são basicamente governamentais e não existe crime caso não possa ser enquadrado no arcabouço legal vigente.

Common-law se origina a partir de interesses individuais no setor privado. Procedimentos legais se desenvolvem ao se tornarem comumente aceitos na prática, sem que haja a formulação de arcabouço legal prévio. Nesse caso a contabilidade seria definida por práticas aceitas pela prática de mercado, independentemente de uma formulação (codificação) governamental. Assim, o sistema common-law se desenvolveu para atender as demandas contratuais de mercado. Tal prática surgiu no Reino Unido (UK) e se espalhou por suas colônias.

São os principais exemplos de países common-law: Australia, Africa do Sul, Canada, UK, US, Malásia e Nova Zelandia. Em geral, os demais países da europa, américa latina, áfrica e asia são considerados code-law. Porém, evidentemente, há características em comum aos dois sistemas. Não há nenhum país que seja totalmente common-law ou code-law, há influência de um em outro sempre: o que há é predominância de um modelo ou outro. Ilustrando, não há preto e branco, apenas tonalidades de cinza.

Quadro 2.3 – Comparação dos sistemas code-law e common-law

CODE LAW

(DIREITO ROMANO)

COMMON LAW

(DIREITO CONSUETUDINÁRIO)

Regulamentação contábil Definida por órgão governamental o Definida por entidade com interesses

4 “Principais sistemas legais no mundo atual” 5 Como exemplo dos mais influentes pode-se citar: Ball, Kothari e Robin (2000); Bushman, Chen, Engel e Smith (2004); e Bushman e Piotroski (2006)

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relacionado ao governo privados

Fontes de financiamento Mercado de capitais Mercado de crédito (bancos)

Estrutura acionária Concentrada. Baixa parcela de free-float

das ações.

Pulverizada. Alta parcela de free-float das

ações.

Força da profissão contábil Baixa, busca atender exigências legais. Alta, busca melhor avaliação patrimonial.

Impacto tributário na contabilidade Elevado, grande influência de normas

fiscais.

Reduzido, há influência fiscal, mas o foco é

na evidenciação da posição econômica.

Relevância da contabilidade Menor Maior

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