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1 EXCELENTÍSSIMA SENHORA MINISTRA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, DD. ROSA WEBER, RELATORA DA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE Nº 4.162 CONECTAS DIREITOS HUMANOS, associação sem fins lucrativos qualificada como Organização da Sociedade Civil de Interesse Público, inscrita no CNPJ/MF sob o nº. 04.706.954/0001-75, com sede na Rua Barão de Itapetininga, 93, 5º andar, São Paulo/SP, no presente ato representada por sua diretora executiva e representante nos termos de seu Estatuto Social, Sra. Lucia Nader (doc. 01 e 02), vem, respeitosamente, à presença de Vossa Excelência, por intermédio de seus procuradores (doc. 03), manifestar-se, com lastro no § 2º do artigo 7º da Lei 9.868/99, no artigo 543-A, §6º do Código de Processo Civil, e no artigo 323, §3º do Regimento Interno deste Supremo Tribunal Federal, na qualidade de AMICUS CURIAE na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.162, ajuizada pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil em face da Lei Federal n.º 10.792 de 2003, que alterou os artigos 52, 53, 54, 57, 58 e 60 da Lei de Execução Penal (Lei Federal n.º 7.210/1984), para instituir o Regime Disciplinar Diferenciado (RDD), pelas razões a seguir articuladas, que indicam a necessidade de esta Corte Suprema declarar referidos dispositivos legais inconstitucionais .

excelentíssima senhora ministra do supremo tribunal federal, dd

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EXCELENTÍSSIMA SENHORA MINISTRA DO SUPREMO

TRIBUNAL FEDERAL, DD. ROSA WEBER, RELATORA DA AÇÃO

DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE Nº 4.162

CONECTAS DIREITOS HUMANOS, associação sem fins lucrativos qualificada como

Organização da Sociedade Civil de Interesse Público, inscrita no CNPJ/MF sob o nº.

04.706.954/0001-75, com sede na Rua Barão de Itapetininga, 93, 5º andar, São Paulo/SP,

no presente ato representada por sua diretora executiva e representante nos termos de seu

Estatuto Social, Sra. Lucia Nader (doc. 01 e 02), vem, respeitosamente, à presença de

Vossa Excelência, por intermédio de seus procuradores (doc. 03), manifestar-se, com lastro

no § 2º do artigo 7º da Lei 9.868/99, no artigo 543-A, §6º do Código de Processo Civil, e

no artigo 323, §3º do Regimento Interno deste Supremo Tribunal Federal, na qualidade de

AMICUS CURIAE

na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.162,

ajuizada pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil em face da Lei Federal

n.º 10.792 de 2003, que alterou os artigos 52, 53, 54, 57, 58 e 60 da Lei de Execução Penal

(Lei Federal n.º 7.210/1984), para instituir o Regime Disciplinar Diferenciado (RDD), pelas

razões a seguir articuladas, que indicam a necessidade de esta Corte Suprema declarar

referidos dispositivos legais inconstitucionais.

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I – LEGITIMIDADE DA ENTIDADE SUBSCRITORA COMO AMICUS

CURIAE NA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE Nº 4.162.

O instituto do amicus curiae teve sua inserção formal na legislação processual

constitucional com as Leis n.ºs 9.868/99 e 9.882/99, que dispõem sobre o trâmite das

ações diretas de inconstitucionalidade e das arguições de descumprimento de preceito

fundamental, respectivamente. No que se refere às ADIs, o art. 7º, §2º. da Lei 9.868/99,

dispõe que:

§ 2o O relator, considerando a relevância da matéria e a representatividade dos

postulantes, poderá, por despacho irrecorrível, admitir, observado o prazo fixado no

parágrafo anterior, a manifestação de outros órgãos ou entidades.

No entendimento desse Egrégio Supremo Tribunal Federal, a possibilidade de

manifestação da sociedade civil em tais processos tem o objetivo de democratizar o

controle de constitucionalidade, oferecendo novos elementos para os julgamentos, o

que confere, inegavelmente, maior qualidade nas decisões.

É o que se depreende, por exemplo, da ementa de julgamento da ADI n.º 2130-

3/SC:

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE.

INTERVENÇÃO PROCESSUAL DO AMICUS CURIAE.

POSSIBILIDADE. LEI Nº 9.868/99 (ART. 7º, § 2º). SIGNIFICADO

POLÍTICO-JURÍDICO DA ADMISSÃO DO AMICUS CURIAE NO

SISTEMA DE CONTROLE NORMATIVO ABSTRATO DE

CONSTITUCIONALIDADE. PEDIDO DE ADMISSÃO

DEFERIDO.

- No estatuto que rege o sistema de controle normativo abstrato de constitucionalidade,

o ordenamento positivo brasileiro processualizou a figura do amicus curiae (Lei nº

9.868/99, art. 7º, § 2º), permitindo que terceiros - desde que investidos de

representatividade adequada - possam ser admitidos na relação processual, para efeito

de manifestação sobre a questão de direito subjacente à própria controvérsia

constitucional.

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- A admissão de terceiro, na condição de amicus curiae, no

processo objetivo de controle normativo abstrato, qualifica-se

como fator de legitimação social das decisões da Suprema Corte,

enquanto Tribunal Constitucional, pois viabiliza, em obséquio ao

postulado democrático, a abertura do processo de fiscalização

concentrada de constitucionalidade, em ordem a permitir que nele

se realize, sempre sob uma perspectiva eminentemente

pluralística, a possibilidade de participação formal de entidades e

de instituições que efetivamente representem os interesses gerais

da coletividade ou que expressem os valores essenciais e relevantes

de grupos, classes ou estratos sociais.

Em suma: a regra inscrita no art. 7º, § 2º, da Lei nº 9.868/99 - que contém a base

normativa legitimadora da intervenção processual do amicus curiae - tem por

precípua finalidade pluralizar o debate constitucional.”

(destacamos)

Este saudável posicionamento de ampliação de acesso da sociedade civil ao Supremo

Tribunal Federal tem se refletido no número de amici curiae protocolados nesta Corte, bem

como na diversidade de atores proponentes.1

Nos termos da previsão legal e da construção jurisprudencial acerca dos limites da

possibilidade de manifestações de organizações da sociedade civil na qualidade de amicus

curiae nas ações de controle concentrado, depreende-se, no presente caso, a presença de

ambos os requisitos para admissão deste amicus curiae:

1) A relevância da matéria discutida, no sentido de seu impacto sócio-político:

Evidenciada no caso em tela tanto pela legitimidade da demanda, fundada na

garantia de direitos individuais frente à força do poder de punir do Estado, como

também pelo impacto que a decisão a respeito de regime disciplinar rígido terá no

sistema carcerário nacional;

2) A representatividade da postulante e a sua legitimidade material:

1 Dados de 2006 dão conta que mais de 70% dos amici eram requeridos por atores da sociedade civil e cerca de 19% por organizações de defesa de direitos, como a que ora se manifesta. Pesquisa desenvolvida em dissertação de mestrado Sociedade civil e democracia: a participação da sociedade civil como amicus curiae no Supremo Tribunal Federal, de Eloísa Machado de Almeida, Dissertação de Mestrado em Ciências Sociais. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2006.

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A missão institucional da entidade subscritora e os reconhecidos trabalhos que vem

desenvolvendo na área de proteção e garantia de direitos fundamentais discutidos

no caso em questão são incontestes. Vejamos:

CONECTAS DIREITOS HUMANOS foi fundada em 2001 com a missão de fortalecer e

promover o respeito aos direitos humanos no Brasil e no hemisfério Sul, dedicando-se,

para tanto, à educação em direitos humanos, à advocacia estratégica e à promoção do

diálogo entre sociedade civil, universidades e agências internacionais envolvidas na defesa

destes direitos. Desde janeiro de 2006, Conectas tem status consultivo junto à Organização

das Nações Unidas (ONU) e, desde maio de 2009, dispõe de status de observador na

Comissão Africana de Direitos Humanos e dos Povos.

Por meio de seu Programa de Justiça, CONECTAS promove advocacia estratégica em

direitos humanos, em âmbito nacional e internacional, com o objetivo de alterar as práticas

institucionais e sociais que desencadeiam sistemáticas violações de direitos humanos. É

hoje a organização com maior número de amicus curiae frente a este Supremo Tribunal

Federal2.

Recentemente, aliás, a subscritora foi admitida como amicus curiae em decisão do

Ministro Gilmar Mendes, nos autos do Recurso Extraordinário n.º 635.6593:

“DECISÃO (Petições 9687/2012; 10857/2012; 11257/2012; 13574/2012

e 27347/2012): A instituição Viva Rio, em conjunto com a Comissão Brasileira

Sobre Drogas e Democracia (CBDD) – fl. 179, a Associação Brasileira de Estudos

Sociais do Uso de Psicoativos (ABESUP) – fl. 224, o Instituto Brasileiro de

Ciências Criminais (IBCCRIM) - fl. 245; o Instituto de Defesa do Direito de

Defesa (IDDD) – fl. 281; e a Conectas Direitos Humanos, juntamente

com o Instituto Sou da Paz, Instituto Terra Trabalho e Cidadania

(ITTC) e Pastoral Carcerária – fls. 558 e 559, requerem o ingresso

no presente recurso extraordinário na qualidade de amici curiae e

pleiteiam a possibilidade de realização de sustentação oral,

juntada de memoriais, bem como a notificação de atos e termos

processuais aos advogados indicados em suas petições.

2 Desde a sua fundação, em 2001, CONECTAS já ajuizou 42 amici curiae perante esta Suprema Corte. 3 RE 635.659, Rel. Min. Gilmar Mendes, em 05/06/2012.

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Tendo em vista a representatividade e o interesse das entidades no

resultado do recurso, defiro os pedidos nos moldes em que

postulados, nos termos do artigo 323, § 2º, do Regimento Interno

do STF.

Petição 16936/2012: Defiro, ainda, o pedido da Defensoria Pública do Estado de

São Paulo, a fim de que seja intimada para sustentação oral da causa, nos moldes

pleiteados à fl. 555.

À Secretaria Judiciária para as providências cabíveis.

Publique-se.” (destacamos)

Considerando que a CONECTAS DIREITOS HUMANOS desenvolve ações ligadas

à proteção dos direitos humanos, e em particular na área de justiça criminal e no

sistema carcerário, resta, deste modo, devidamente demonstrado os requisitos

necessários para a admissão da presente manifestação na qualidade de amicus

curiae, o que desde já se requer.

II- OBJETO DA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE Nº 4162.

A presente ADI questiona a constitucionalidade da Lei nº 10.792/2003, no que

tange aos dispositivos que alteraram os artigos 52, 53, 54, 57, 58 e 60 da Lei de Execução

Penal, quais sejam:

"Art. 52. A prática de fato previsto como crime doloso constitui falta grave e, quando

ocasione subversão da ordem ou disciplina internas, sujeita o preso provisório, ou

condenado, sem prejuízo da sanção penal, ao regime disciplinar diferenciado,

com as seguintes características:

I - duração máxima de trezentos e sessenta dias, sem prejuízo de repetição da sanção

por nova falta grave de mesma espécie, até o limite de um sexto da pena aplicada;

II - recolhimento em cela individual;

III - visitas semanais de duas pessoas, sem contar as crianças, com duração de duas

horas;

IV - o preso terá direito à saída da cela por 2 horas diárias para banho de sol.

§ 1o O regime disciplinar diferenciado também poderá abrigar presos provisórios ou

condenados, nacionais ou estrangeiros, que apresentem alto risco para a ordem e a

segurança do estabelecimento penal ou da sociedade.

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§ 2o Estará igualmente sujeito ao regime disciplinar diferenciado o preso provisório ou

o condenado sob o qual recaiam fundadas suspeitas de envolvimento ou participação, a

qualquer título, em organizações criminosas, quadrilha ou bando." (NR)

"Art. 53. .................................................................................

.................................................................................

V - inclusão no regime disciplinar diferenciado." (NR)

"Art. 54. As sanções dos incisos I a IV do art. 53 serão aplicadas por ato motivado

do diretor do estabelecimento e a do inciso V, por prévio e fundamentado despacho do

juiz competente.

§ 1o A autorização para a inclusão do preso em regime disciplinar dependerá de

requerimento circunstanciado elaborado pelo diretor do estabelecimento ou outra

autoridade administrativa.

§ 2o A decisão judicial sobre inclusão de preso em regime disciplinar será precedida de

manifestação do Ministério Público e da defesa e prolatada no prazo máximo de

quinze dias." (NR)

"Art. 57. Na aplicação das sanções disciplinares, levar-se-ão em conta a natureza, os

motivos, as circunstâncias e as conseqüências do fato, bem como a pessoa do faltoso e

seu tempo de prisão.

Parágrafo único. Nas faltas graves, aplicam-se as sanções previstas nos incisos III a

V do art. 53 desta Lei." (NR)

"Art. 58. O isolamento, a suspensão e a restrição de direitos não poderão exceder a

trinta dias, ressalvada a hipótese do regime disciplinar diferenciado."

................................................................................." (NR)

"Art. 60. A autoridade administrativa poderá decretar o isolamento preventivo do

faltoso pelo prazo de até dez dias. A inclusão do preso no regime disciplinar

diferenciado, no interesse da disciplina e da averiguação do fato, dependerá de despacho

do juiz competente.

Parágrafo único. O tempo de isolamento ou inclusão preventiva no regime disciplinar

diferenciado será computado no período de cumprimento da sanção disciplinar." (NR)

O argumento central dos autores da ADI é que a Lei n.º 10.792/2003 afronta o

devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa. Isso porque a inclusão do preso no

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RDD depende apenas de uma solicitação da administração penitenciária e de um despacho

do juiz – não há processo, nem mero procedimento. Além disso, afrontaria a dignidade da

pessoa humana e a vedação da tortura, de penas cruéis e de tratamento degradante, já que o

preso fica isolado e incomunicável, com severa restrição ao recebimento de visitas.

Afrontaria, ainda, a previsão constitucional segundo a qual “a pena será cumprida em

estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado”, ou seja, o

tipo de diferenciação prisional estabelecido pelo RDD não está previsto na Constituição.

Tendo em vista que o tema é de extrema relevância, a organização

CONECTAS DIREITOS HUMANOS, que ora se manifesta na qualidade de amicus

curiae, oferece, nesta oportunidade, argumentos em favor da declaração da

inconstitucionalidade dos artigos 52, 53, 54, 57, 58 e 60 da Lei de Execução Penal

(Lei nº 7.210/84) redação dada pela Lei nº 10.972/03.

As razões que se seguem traçam, primeiramente, um panorama histórico da política

penitenciária das décadas de 1980 e 1990, fundamental para contextualizar e

compreender o surgimento do Regime Disciplinar Diferenciado nos anos 2000. Esse

contexto é essencialmente trabalhado com enfoque na política criminal paulista, vez que

mentora do RDD. Nesse sentido, rememorar os elementos históricos, políticos e sociais

que desencadearam o surgimento de nefasto instituto em nosso ordenamento jurídico é

central para compreendê-lo de modo adequado.

Após, abordaremos os elementos violadores de normas nacionais e internacionais

de Direitos Humanos, destacando o relatório sobre confinamento solitário apresentando

pelo Relator Especial para Tortura da ONU em agosto de 2011 à Assembleia Geral

da ONU – juntado à presente petição (doc. 04).

Também apresentaremos estudos que evidenciam as consequências

irreversíveis dos danos físicos e psicológicos sobre aqueles submetidos a esse tipo

de regime. Por fim, apresentamos jurisprudência do próprio Supremo Tribunal Federal

que caminha no sentido da declaração de inconstitucionalidade do RDD.

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III – RAZÕES PELAS QUAIS A ADI 4.162 DEVE SER JULGADA

PROCEDENTE.

1) CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA: A POLÍTICA CRIMINAL PENITENCIÁRIA NO

ESTADO DE SÃO PAULO.

A política penitenciária paulista segue um histórico de recrudescimento

incompatível com a garantia dos direitos humanos. Frente à incapacidade do Estado para

gerir o sistema prisional e para lidar com questões de segurança pública, o RDD foi criado

como uma resposta imediata e superficial a problemas complexos e estruturais. Esse tipo

de regime não apenas é absolutamente ineficiente em seu suposto propósito de “manter a

ordem” no sistema penitenciário, como também mostra-se contrário à garantia dos direitos

mais básicos dos cidadãos.

a) A promulgação da Lei de Execução Penal: o ideal ressocializador da década de

1980.

Em 1981, uma importante articulação ocorreu em São Paulo: o Instituto de

Estudos Especiais da PUC-SP e a Pastoral de Direitos Humanos da Arquidiocese de São

Paulo organizaram um debate sobre a questão carcerária. O encontro resultou na formação

de um Grupo de Trabalho sobre a Questão Carcerária (1981-1983), que uniu diversas entidades

da sociedade civil4 e políticos, intelectuais, secretários de Estado em uma experiência

inédita de debate de ideias entre esses segmentos no sentido da politização da questão

carcerária. O foco do Grupo de Trabalho estava na proposição de reformas carcerárias, tendo

em vista a perspectiva dos direitos daqueles que estavam presos.5

Paralelamente a esse movimento, o debate em âmbito legislativo que teve início

ainda na década de 1970, com a realização da Comissão Parlamentar de Inquérito sobre o

sistema penitenciário nacional, desembocou na reforma do Código Penal de 1984.

4 Centro Santo Dias de Direitos Humanos, Organização Comunitária pelo direito dos Presos, Pastoral Carcerária, OAB, Centros Acadêmicos e Departamentos Jurídicos de Faculdades de direito e a comissão Teotônio vilela para Prisões e Instituições Fechadas são algumas das organizações que integram o Grupo de Trabalho sobre a Questão Carcerária naquele momento. Cf. TEIXEIRA, Alessandra. Prisões da Exceção: política pena penitenciária no Brasil contemporâneo. Curitiba: Juruá, 2009, p.69. 5 TEIXEIRA, Alessandra. Op.cit.p.69.

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No período subsequente, de redemocratização, o Brasil estava inflamado por ideais

democráticos, pela força dos movimentos sociais que lutaram contra a ditadura e pelo

enfraquecimento da base do governo militar. Esse contexto influenciou diretamente o

Poder Constituinte a produzir uma Constituição que ficou conhecida como “Constituição

Cidadã”. É nessa mesma conjuntura que a Lei de Execução Penal (LEP) é editada, em

1984, influenciada pela doutrina da nova defesa social.

A LEP positivou o ideal ressocializador da prisão e se inspirou na Nova Defesa

Social. A teoria criminológica da nova defesa social, bem como a teoria da defesa social –

que a antecedeu – atribuem dupla função à pena: prevenção geral negativa, pela prevenção

ao cometimento de novos delitos, e prevenção especial positiva, através do objetivo da

ressocialização.

O ideal de humanização dos presídios, aliado ao ideal ressocializador,

chegava ao Brasil neste período histórico, exprimindo-se na redação da LEP, nas

reformas do Código Penal e no texto constitucional:

“Não obstante a defasagem histórica de algumas décadas, verificava-se, no Brasil, no

plano das políticas do Estado, a preocupação com um sistema carcerário

que conferisse um rol mínimo de direitos aos indivíduos presos e

que não os incapacitasse para a vida em liberdade no futuro, algo

que já era experimentado em grande parte nos países da Europa pelo menos desde os

anos 60, com o avanço das teorias garantistas no direito penal, da criminologia

progressista e até de correntes como o abolicionismo penal. Nos termos das

Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento de

Reclusos aprovada em 1955, o Brasil da transição democrática

vivenciava, mais de vinte anos depois, a ideia de que os presos

seriam também portadores de direitos humanos, e debatia como seria

possível uma política penal que ao mesmo tempo prevenisse crimes e reprimisse

criminosos com a perspectiva de sua ressocialização.”6

Após a promulgação da Constituição Federal de 1988, esses ideais ganharam ainda

mais força. Princípios e garantias como presunção de inocência, irretroatividade da lei

penal, prisão apenas motivada por decisão judicial, limites à prisão temporária, prescrição

6 Idem. p.70. (destacamos).

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das penas, proibição de prisão por dívidas, individualização, progressividade e

jurisdicionalização da execução da pena, bem como a prisão como ultima ratio e penas

alternativas restritivas de direitos, são os principais exemplos de preservação das liberdades

e aumentos das garantias individuais.7

A LEP inaugura uma fase em que a relação entre o preso e o Estado é de

litígio, já que o preso pode litigar pelos seus direitos em respeito ao devido

processo legal. Para tal, o Poder Executivo e o Poder Judiciário tiveram que se aparelhar

para dar conta dessa demanda. Além disso, a LEP traz poderes correcionais ao juiz da

execução, que deve visitar as unidades prisionais para exercer a função de fiscalização

frente à administração prisional. Os papeis do Ministério Público e da Defensoria Pública

também se tornaram essenciais nessa nova configuração. A LEP estabeleceu diversos

outros direitos para os presos com relação a sua integridade física e mental, educação,

trabalho, assistência médica e social, dentre outros.

Nesse contexto, se insere ainda a política denominada de “humanização do

cárcere”8 implementada pelo então Secretário de Justiça do governo de São Paulo, José

Carlos Dias (1983-1986). Além de assegurar diversos direitos dos presos, como assistência

jurídica, implementação de visita íntima para presos do sexo masculino dentre outras,

houve a efetivação de ações que assegurassem aos presos o exercício de vida política, como

por exemplo, a implantação de urnas nos presídios e a criação de Comissões de

Solidariedade9.

Os grupos contrários a essas políticas criaram um ambiente hostil para o

aprofundamento desses ideais. Sendo assim, a sua gestão foi marcada por controvérsias,

motins e rebeliões (sendo que não se tem certeza da veracidade de todas elas).10

7 Idem. p.83. 8 Leonel Brizola, governador do Rio de Janeiro, também adotou no mesmo período política de humanização do cárcere. Teve como Secretário de Justiça Nilo Batista e como diretora do Departamento do sistema Penitenciário –DESIPE- Julita Lemgruber. LEMGRUBER, Julita. PAIVA, Anabela. A Dona das Chaves: uma mulher no comando das prisões do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Record, 2010. 9 Estas Comissões seriam compostas por presos eleitos pelos próprios presos daquela unidade prisional, em voto secreto. Também foi prevista uma Comissão semelhante composta por representantes dos agentes penitenciários. Porém, a pressão para que tais Comissões de Solidariedade não fossem criadas foi enorme e apenas uma foi constituída, na Penitenciária Estadual, em 1984. 10 Idem. Ibdem.

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Esse momento de turbulência política em torno das medidas para o sistema

penitenciário deu força ao pacote de segurança de Orestes Quércia, que seria então eleito

Governador do Estado sob a bandeira de endurecimento da política penitenciária.

b) Década de 1990: ideal de segurança e política de endurecimento do cárcere.

A conjunção de alguns fatores fez com que o Brasil ingressasse em uma nova etapa

do desenvolvimento penal, os três principais são: a percepção do fracasso do ideal

ressocializador, as más condições de detenção e o aumento da criminalidade urbana.11

Esses fatores eram especialmente relevantes no contexto político do estado de São Paulo à

época.

O episódio do Massacre do Carandiru é a expressão cruel dessa política. Em 1992,

o Estado autorizou que a Polícia Militar invadisse o maior presídio da América Latina à

época e exterminasse, ao menos, 111 presos12.

A explosão do número de presos no Brasil na década de 1990 e, com maior ênfase,

no início dos anos 2000, levou à piora substancial das condições de detenção, em especial

de superlotação, rebeliões, insuficiência dos serviços prisionais (alimentação, asseio e

higiene pessoais, vestuário, assistência jurídica, programas de reabilitação, etc.), além da

presença cada vez mais intensa de grupos organizados nas prisões.

A tortura e a violência, dentro dos presídios, também se incorporaram nessa

política:

“Mais uma vez a promessa de constituição dos sujeitos de direitos e de politização da

questão criminal seria suplantada por uma orientação de cerceamento de direitos e

11 FREIRE. Christiane Russomano. A Violência do Sistema Penitenciário Brasileiro Contemporâneo: o caso RDD (Regime Disciplinar Diferenciado). São Paulo: IBCCrim, 2005. (Monografias 35). p. 105. 12 Antes do Massacre do Carandiru, dois outros fatos, também em São Paulo, de extrema violência ocorreram: Em 1987, na Penitenciária do Estado, a intervenção da Polícia Militar em um motim resultou em 31 mortes de presos; Em 1989, 18 presos morreram asfixiados no 42º Distrito Policial após terem sido presos em uma cela 1,5X4m, sem ventilação, com 51 homens como punição por uma fuga que não se concretizou. SALLA, Fernando. As Rebeliões nas Prisões: novos significados a partir da experiência brasileira. Sociologias, Porto Alegre, ano 8, nº16, jul/dez2006. p.293/294.

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violência institucional que se explicitaria no domínio mesmo da própria

Administração” 13.

A década de 1990, pois, dá início a um novo paradigma na questão penal e

penitenciária brasileira. Este período foi marcado pelo recrudescimento. Neste

mesmo período é que foi criada no estado de São Paulo a Secretaria de Administração

Penitenciária14.

No âmbito do Poder Legislativo, surgiram diversos projetos de lei em

regime de urgência, propostos e aprovados sem efetivo debate com a sociedade.

Com efeito, a análise das proposições legislativas em matéria de execução penal

desde a edição da LEP (1984) até 2011 mostra que, de 265 projetos de lei, 258 tratam de

sanções penais, das quais 196 têm por intenção a ampliação do uso da prisão.15 Carolina

Cutrupi Ferreira, que realizou tal estudo, afirma a prevalência de políticas de

recrudescimento:

“A primeira constatação é a abordagem, quase exclusiva, do uso

da pena de prisão. A maior parte das propostas (75% do total de

265 propostas) cria mecanismos para prolongar o tempo de

permanência do condenado dentro do cárcere, por meio da

restrição ou vedação à aquisição de direitos subjetivos. Mesmo as

propostas que pretendem reduzir a exclusão social do condenado estão, em sua

maioria, fundadas na seleção da pena de prisão. Estas propostas concentram-se na

possibilidade de reduzir a pena de prisão pelo estudo (9,4% do total de 265

propostas). Pode-se dizer que, de certa forma, elas pretendem criar medidas paliativas

à exclusão, mas ainda estão atreladas á sanção prisional como única resposta

possível.”16

13 TEIXEIRA, Alessandra. Op.cit. p.124. 14 Lei Estadual nº 8.209/1993. Antes da criação da Secretaria de Administração Penitenciária, o sistema penitenciário ficava a cargo da Secretaria de Justiça. 15 FERREIRA, Carolina Cutrupi. Legislar pela exclusão social: um estudo da atividade legislativa sobre cumprimento da pena de 1984 a 2011. Dissertação de Mestrado. FGV/SP. 2011. p.42. Destaque nosso. 16 Idem. p.61.

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Ainda, muitas das leis que visam o recrudescimento penal são propostas e

aprovadas em contextos de forte demanda e produção da opinião pública – o que,

diga-se, acontece até os dias de hoje.

Um dos marcos deste contexto é a Lei dos Crimes Hediondos – Lei nº 8.072/1990

– que “além de exasperar as formas anteriores de execução da pena, criou um obste concreto para o sistema

progressivo, delineando com isso os futuros contornos da política penitenciária.”17

A legislação voltada para o recrudescimento penal, que inclui a Lei de Crimes

Hediondos e a Lei que institui o RDD, é caracterizada pelo excesso em decorrência da

afobação com que é aprovada, como conclui o sociólogo Marcelo da Silveira Campos, que

pesquisou a produção legislativa criminal entre 1989 e 2006:

“Tanto na ampliação das ofensas e dos danos tipificados como crimes, bem como

representam um conglomerado de crenças, desejos e sentimentos de muitas das respostas

contemporâneas ao crime que clama por: rapidez, hiperatividade, urgência, certeza,

gratificação imediata. Tais respostas formariam, atualmente, um tipo de oposição

identitária entre aqui/lá, nós/eles, trabalhadores/bandidos. Tais formas se articulam

com a ‘sensibilidade’ (inflamada e fabricada) da opinião pública em demandas por

ordem, o que pressiona respostas governamentais em políticas de segurança

caracterizadas pela punitividade e pela urgência (já que são adotadas, conforme

apontei, mais rapidamente pelo governo brasileiro).”18

Nesse contexto, inegável que o Regime Disciplinar Diferenciado surge como um

instrumento de imposição de um regime de cumprimento de pena mais rigoroso do que o

próprio regime fechado, sob a justificativa de haver uma suposta necessidade de se lidar

com mais firmeza com alguns presos.

c) Anos 2000: a megarrebelião de 2001 e o surgimento do RDD.

O primeiro modelo de Regime Disciplinar Diferenciado que surgiu oficialmente foi

em 2001, logo após a chamada megarrebelião que ocorreu no estado de São Paulo em 18

17 FREIRE. Christiane Russomano. Op. Cit. P. 120. 18 CAMPOS, Marcelo da Silveira. Crime e Congresso Nacional: uma análise da política criminal aprovada de 1989 a 2006. São Paulo: IBCCrim, 2010. (Monografias 57).p.209.

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de fevereiro de 2001. Esta rebelião ocorreu simultaneamente em 25 unidades prisionais de

responsabilidade da Secretaria de Administração Penitenciária e em mais quatro cadeias

públicas, vinculadas à Secretaria de Segurança Pública19, tendo envolvido cerca de 28 mil

presos.20

Essa rebelião, além de ter tomado amplitudes nunca experimentadas antes, trouxe

como novidade a reivindicação pelos presos não apenas sobre as condições de detenção21,

mas também reivindicações relacionadas ao trabalho desenvolvido pelo governo em

desarticular os grupos organizados nas cadeias.

Com efeito, as principais reivindicações foram de que os líderes do grupo articulador

voltassem para a Casa de Detenção – haviam sido transferidos – e a desativação do Anexo

da Casa de Custódia de Taubaté, onde vigorava um regime de disciplina considerado muito

severo.

Essa megarrebelião expôs uma forma de organização entres os presos que nunca

havia sido tornada pública22.

Poucos meses depois, a Secretaria de Administração Penitenciária de São

Paulo editou a Resolução “SAP 26” criando o RDD, inicialmente em cinco unidades

prisionais: Casa de custódia de Taubaté, Penitenciárias I e II de Presidente Venceslau,

Penitenciária de Iaras e Penitenciária I de Avaré23.

O regime consistia no isolamento do detento por 180 dias na primeira inclusão e por

360 dias nas demais.24 Em julho de 2002, a Secretaria editou a Resolução SAP 49 de modo

a restringir o direito de visita e as entrevistas com advogados25.

19 SALLA, Fernando. Op.cit., p.274-5. FREIRE. Christiane Russomano. Op.cit., p.125. 20 COSATE, Tatiana Moraes. Regime disciplinar diferenciado (RDD). Um mal necessário?. Jus Navigandi, Teresina, ano 14, n. 2112, 13 abr. 2009. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/12606>. Acesso em: 5 jan. 2012. 21 De acordo com Fernando Salla as rebeliões dos anos 1980 são marcadas por reivindicações quanto às condições de detenção. Essa característica das rebeliões da década de 1980 se alterou nos anos 1990 e seguintes. SALLA, Fernando. Op.cit. 22 DIAS, Camila Caldeira Nunes. Efeitos simbólicos e práticos do Regime Disciplinar Diferenciado (RDD) na dinâmica prisional. Revista Brasileira de Segurança Pública, ano 3, edição 5, ago/set 2009.p.129. 23 FREIRE. Christiane Russomano. Op cit. p.126-7. 24 COSATE, Tatiana Moraes. Op.cit. 25 FREIRE. Christiane Russomano. Op.cit. p.127.

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15

A criação deste regime teve a intenção de isolar os líderes de organizações

criminosas – especialmente os responsáveis pela megarrebelião26.

Apesar de o RDD representar uma continuidade do endurecimento da política

penitenciária adotada desde o início dos anos 1990, ele significa uma mudança de patamar

em relação ao que existia anteriormente. Ocorre que essa política passou a ser

implementada com volumoso aporte de recursos, expandida e tratada como solução para

deter o crime organizado presente nas unidades prisionais paulistas:

“No processo de institucionalização e expansão do RDD, transformou-se

aquilo que era marginal, ocultado e improvisado, no principal instrumento de

uma política de contenção concebida e gerida com a finalidade de promover a

defesa da sociedade.”27.

Em 2003, foi a vez do estado do Rio de Janeiro editar uma Resolução da Secretaria

de Administração Penitenciária oficializando o Regime Disciplinar Especial de Segurança

(RDES) para o sistema penitenciário fluminense, inspirado no RDD paulista e

curiosamente também num momento de comoção pós-rebelião no presídio de Bangu I em

dezembro de 2002, que resultou na morte de quatro pessoas.28

Nesse mesmo momento histórico, em que São Paulo e Rio de Janeiro criavam

normas que enrijeciam a disciplina carcerária, o estado do Rio Grande do Sul caminhava no

sentido contrário. A Portaria estadual 202, de dezembro de 2001, estabeleceu regras mais

humanas para o sistema prisional29. No que tange ao isolamento celular, por exemplo, a

Portaria limitou o prazo para 30 dias e proibiu que essa sanção fosse imposta em casos de

suspeitas ou dúvidas. Além disso, estabeleceu que o isolamento deveria se dar em local que

atendesse às exigências do art. 88 da Lei de Execução Penal30, preservando, ainda, outros

26 DIAS, Camila Caldeira Nunes.Op.Cit.p.129. 27 TEIXEIRA. Alessandra. Op.Cit. p.161. 28 FREIRE. Christiane Russomano. Op.cit. p.128-9. 29 FREIRE. Christiane Russomano. Op.cit. p.129. 30 Art. 88. O condenado será alojado em cela individual que conterá dormitório, aparelho sanitário e lavatório. Parágrafo único. São requisitos básicos da unidade celular: a) Salubridade do ambiente pela concorrência dos fatores aeração, insolação e condicionamento térmico adequado à existência humana; b) Área mínima de 6.00m2 (seis metros quadrados).

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direitos como de visita semanal, tempo mínimo de 30 minutos no parlatório, continuidade

das atividades de trabalho e de educação e etc.31

Apesar de algumas iniciativas como essa, a tendência ao maior rigor se mostrou

majoritária e já em 2001 o Projeto de Lei nº 5.073 deu início à sua tramitação no Congresso

nacional – mesmo ano da megarrebelião no estado de São Paulo. Este Projeto de Lei previa

a criação do Regime Disciplinar Diferenciado, tendo sido aprovado em pouquíssimo tempo

(2003) e recebido o número de Lei nº 10.792 – objeto de contestação da presente Ação

Direta de Inconstitucionalidade.

d) Conclusão: a Lei Federal n.º 10.792/2003 como expressão da falência do Estado

em gerir o sistema prisional.

Como amplamente exposto, conclui-se sem equívocos que diante das rebeliões

ocorridas em São Paulo e Rio de Janeiro, que demonstraram a incapacidade do

Estado de gerir o sistema penitenciário, os governos responderam de modo rápido

e brutal, com uma medida de impacto midiático.

Evidente que a criação do RDD é de natureza complexa e não pode ser explicada

apenas sob uma perspectiva. De um lado, a Lei nº 10.792/03 possui uma natureza punitiva,

e de outro tem uma natureza instrumental que pretensamente se volta para a proteção da

sociedade e gestão dos riscos.

No entanto, ao utilizar uma força punitiva muito severa, o Estado demonstra a sua

capacidade de punir, tentando esconder a sua falha como garantidor da segurança pública.

“A resposta punitiva tem o atrativo de transmitir a ilusão de que se está fazendo algo, independentemente

disso funcionar ou não.”32

Freire analisa em sua obra os três fatos que considera essenciais para a adoção do

RDD: a expansão do modelo punitivo em nível mundial, os efeitos produzidos pelo

31 FREIRE. Christiane Russomano.Op.Cit.p.130. 32 DIAS, Camila Caldeira Nunes.Op.Cit. p.135.

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17

desgaste das premissas ressocializadoras e o terceiro elemento se refere aos problemas

endêmicos do próprio sistema prisional brasileiro33.

Sobre, especificamente, o terceiro ponto – crise estrutural do sistema prisional

brasileiro – Freire argumenta que o recrudescimento da disciplina carcerária, que inclui

nitidamente o RDD, surge como uma resposta simultaneamente punitiva e simbólica, com

o fim de maquiar as falhas do poder público com relação às questões estruturais, “ao mesmo

tempo aposta na inabilitação pura e simples de determinados sujeitos”34.

As falhas estruturais do sistema penitenciário nacional – como a superlotação 35, as

péssimas condições de detenção e práticas de tortura36 “potencializaram permanentemente

soluções permeadas pela violência”37.

33 FREIRE. Christiane Russomano.Op.Cit.. p.136. 34 Idem. p.141. 35 De acordo com dados do InfoPen, em dezembro de 2012, a população carcerária nacional era de 548.003 e a quantidade total de vagas no sistema era de 310.687. Disponível em: http://portal.mj.gov.br/data/Pages/MJD574E9CEITEMIDC37B2AE94C6840068B1624D28407509CPTBRNN.htm. Último acesso em: 14/04/2013. 36 O Comitê contra Tortura (CAT) da ONU, no relatório que produziu sobre o Brasil em 2009 disse que “a tortura e maus tratos similares continuam a ser utilizados de modo generalizado e sistemático” ONU, Comitê contra a Tortura. “Report on Brazil produced by the Committee under art. 20 of the Convention”, Documento CAT/C/39/2, parágrafo 178 (no original “torture and similar ill-treatment continues to be meted out on a widespread and systematic basis”). O Relator Especial contra Tortura da ONU afirmou no relatório de março de 2001, produzido após a visita ao país em 2000, que: “O período do regime militar de 1964 a 1985, caracterizado pela tortura, desaparecimentos forçados e execuções extra-judiciais, ainda paira sobre o presente regime democrático”. ONU, Comissão de Direitos Humanos. Civil and political rights, including the questions of torture and detention. Report of the Special Rapporteur, Sir Nigel Rodley, submitted pursuant to Commission on Human Rights resolution 2000/43. Addendum Visit to Brazil. Documento E/CN.4/2001/66/Add.2. parágrafo 158. (no original “A period of military government from 1964 to 1985, characterized by torture, enforced disappearances and extra-legal executions, still looms over the present democratic dispensation.”). O governo brasileiro reconheceu que é prática disseminada. Em 7 de março de 2008, no relatório enviado ao Conselho de Direitos Humanos da ONU, na Revisão Periódica Universal, o Estado brasileiro afirmou que: “Ainda é observado, no Brasil, acusações frequentes de abuso de poder, tortura e uso excessivo da força cometidos, principalmente, por policiais e agentes penitenciários”. ONU, Assembléia Geral. Conselho de Direitos Humanos. Grupo de trabalho sobre a Revisão Periódica Universal. “National report submitted in accordance with paragraph 15(a) of the annex to human rights council resolution 5/1.” Documento A/HRC/WG.6/1/BRA/1. parágrafo.51.(no original “It is still observed, in Brazil, frequent accusations of abuse of power, torture and excessive use of force, committed mainly by police officers and penitentiary agents.”). Em 2000, o governo brasileiro narrou ao Relator Especial contra Tortura da ONU, em sua visita feita ao Brasil, que “a persistência da dessa situação [de tortura] significa que os policiais estão ainda utilizando a tortura para obter informação e forçar a confissão, como forma de extorsão ou punição. (…) Deve ser observado que retaliações contra presos envolvendo tortura, espancamentos, privação e humilhação são comuns.”. ONU, Conselho Econômico e Social. Comissão de Direito Humanos. Report of the Special Rapporteur, Sir Nigel Rodley, submitted pursuant to Commission on Human Rights resolution 2000/43- Addendum – Visit to Brazil, 30 mar. 2001, Documento E/CN.4/2001/66/Add.2. parágrafo 8. (no original “The persistence of this situation means that police officers are still making use of torture to obtain information and force confessions, as a means of extortion or punishment. (...) It must be observed that retaliation against prisoners involving torture, beatings, deprivation and humiliation are common”). Cf. Relatório sobre Tortura: uma experiência de monitoramento dos locais de detenção para prevenção da tortura. Pastoral Carcerária. Serviço da CNBB. São Paulo, 2010.

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18

Inclusive, uma das versões que relata a formação do Primeiro Comando da Capital

(PCC)38 afirma que o grupo se formou no Centro de Readaptação Penitenciária de Taubaté,

presídio de segurança máxima que inclui isolamento celular, o que seria um exemplo de

ineficácia dessas medidas de enrijecimento da disciplina carcerária39.

Exemplos ainda mais gritantes e evidentes dessa falsa panaceia que é adotar um

modelo como o RDD para desarticular as facções criminosas são os eventos ocorridos em

maio de 2006 e em setembro/outubro de 2012 no estado de São Paulo.

Com efeito, em 2006 houve uma rebelião de proporções ainda maiores do que a

chamada megarrebelião de 2001: 84 unidades prisionais rebelaram-se simultaneamente e

diversos ataques às forças de segurança – incluindo prioritariamente policiais e agentes

penitenciários – ocorreram do lado de fora das cadeias. Foram contabilizadas 500 mortes

durante o curto período do dia 12 até 21 de maio, a maioria com indícios de execução.

Esse período ficou conhecido como “semana sangrenta” ou “os crimes de maio.”40

Pela primeira vez, uma ação dos presos atingia a cidade, extrapolando os muros das

prisões.41 A polícia reagiu de modo truculento e excessivamente violento, colocando todo o

Disponível em: http://www.carceraria.org.br/fotos/fotos/admin/Relatorio_tortura_revisado1.pdf. Último acesso em: 06/02/2012. 37 FREIRE. Christiane Russomano.Op.Cit..p.143. 38 De acordo com Karina Biondi, não é possível afirmar como o PCC surgiu. Biondi coletou diversas versões ao longo de sua pesquisa, são elas: “que teria sido em 1989, na Casa de Detenção do Carandiru; em 199, em Araraquara; que se originou de outros grupos prisionais chamados Serpente Negra ou Guerreiros de David; ou que sua origem se deu em uma partida de futebol.” BIONDI, Karina. Junto e Misturado: uma etnografia do PCC. São Paulo: terceiro nome, 2010. p.69 39 FREIRE. Christiane Russomano.Op.Cit.p.143. 40 CONECTAS DIREITOS HUMANOS E LABORATÓRIO DE ANÁLISE DA VIOLÊNCIA (LAV-UERJ). Análise dos impactos dos ataques do PCC em São Paulo em maio de 2006. São Paulo. Publicado em: 2008. Disponível em: <http://www.conectas.org/documentos/Art1_relatorio_crimesdemaio2006_09.05.11.pdf>. Acesso em: 15 abr. 2013. JUSTIÇA GLOBAL; CLÍNICA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS DA FACULDADE DE DIREITO DE HAVARD. São Paulo sob achaque: corrupção, crime organizado e violência institucional em maio de 2006. São Paulo: Fundação Ford, Fundação Heinrich Boll, Open Society Institute. Publicado em: 2011. Disponível em: <http://global.org.br/wp-content/uploads/2011/05/SaoPaulosobAchaque_JusticaGlobal_2011.pdf>. Acesso em: 2 jan. 2012. 41 FACÇÃO PROMOVE 63 ATENTADOS EM 24 HORAS - Ataques ocorreram em 23 cidades e houve até morte de civil; Marcola, líder do PCC, é transferido para presídio de segurança máxima. Folha de São Paulo de 14/05/2006. Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff1405200604.htm (último acesso em 19/04/2009).

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seu efetivo nas ruas: instalou-se um clima de guerra e os dias que se seguiram foram repletos de inúmeras

mortes de dezenas de ‘suspeitos’42.

Outro exemplo do fracasso da contenção da organização dos presos via adoção do

regime de RDD foi o momento agudo vivenciado pelo estado de São Paulo no segundo

semestre de 2012, marcado pelo grande número de assassinatos de policiais militares,

agentes penitenciários e civis.43

Ante ao exposto, resta cristalino que o RDD não se presta aos seus objetivos

declarados e demonstra a falência do Estado em gerir os assuntos penitenciários.

Diga-se que, ainda que o RDD fosse uma política “eficiente” para tais objetivos, é

realmente inegável – e, portanto inadmissível – o fato de que esse regime viola as

normativas nacionais e internacionais de Direitos Humanos, como será demonstrado a

seguir.

2) O RDD COMO VIOLADOR DE NORMAS NACIONAIS E INTERNACIONAIS DE DIREITOS

HUMANOS.

O RDD é incompatível com a garantia dos direitos humanos em âmbito nacional e

internacional. Ele prevê o isolamento de pessoas por ao menos 22 horas ao dia. Ademais, o

banho de sol – de uma ou duas horas – também ocorre em isolamento. O contato e a

interação social são reduzidos a quase zero, havendo severa restrição de visitas.

42CONECTAS DIREITOS HUMANOS E LABORATÓRIO DE ANÁLISE DA VIOLÊNCIA (LAV-

UERJ). Análise dos impactos dos ataques do PCC em São Paulo em maio de 2006. São Paulo. Publicado em:

2008. Disponível em:

<http://www.conectas.org/documentos/Art1_relatorio_crimesdemaio2006_09.05.11.pdf>. Acesso em: 15

abr. 2013. Nessa publicação, afirma-se que os confrontos não tinham a intenção de prender suspeitos

conhecidos com mandato judicial, mas pessoas desconhecidas. A imensa maioria das vítimas foram jovens,

metade dos quais. 43 DONATO, Veruska. Onda de violência interrompe longo período de queda nos índices de SP. Jornal Hoje. Edição de: 27 nov. 2012. Disponível em: <http://g1.globo.com/jornal-hoje/noticia/2012/11/onda-de-violencia-interrompe-longo-periodo-de-queda-nos-indices-de-sp.html>. Acesso em: 15 dez. 2012. SECRETÁRIO de Segurança Pública de São Paulo deixa o cargo. G1. 21 nov. 2012. Disponível em: <http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2012/11/secretario-de-seguranca-de-sao-paulo-deixa-o-cargo.html>. Acesso em: 15 dez. 2012.

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20

Todas essas rígidas e brutais restrições são aplicadas com base em meras suspeitas e

em critérios bastante subjetivos, que dão grande margem ao arbítrio – especialmente das

autoridades penitenciárias.

As consequências físicas, psicológicas e sociais marcam a vida dos que passam pelo

regime de RDD para sempre, em especial se considerarmos o tempo de isolamento

prescrito em lei (até 360 dias – renováveis).

Abaixo será demonstrado que o RDD constitui prática de tortura e maus tratos, e

uma pena cruel e degradante, ferindo diretamente a integridade física e psíquica da pessoa e

aniquilando sua dignidade humana.

a) O RDD deve ser reconhecido como prática de tortura e maus tratos.

O Brasil tipifica o crime de tortura em uma lei específica: Lei nº 9.455/97:

Art. 1º Constitui crime de tortura:

I - constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe

sofrimento físico ou mental:

a) com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira

pessoa;

b) para provocar ação ou omissão de natureza criminosa;

c) em razão de discriminação racial ou religiosa;

II - submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência

ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo

pessoal ou medida de caráter preventivo.

Pena - reclusão, de dois a oito anos.

§ 1º Na mesma pena incorre quem submete pessoa presa ou sujeita a medida de

segurança a sofrimento físico ou mental, por intermédio da prática de ato não previsto

em lei ou não resultante de medida legal.

§ 2º Aquele que se omite em face dessas condutas, quando tinha o dever de evitá-las

ou apurá-las, incorre na pena de detenção de um a quatro anos.

§ 3º Se resulta lesão corporal de natureza grave ou gravíssima, a pena é de reclusão

de quatro a dez anos; se resulta morte, a reclusão é de oito a dezesseis anos.

§ 4º Aumenta-se a pena de um sexto até um terço:

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21

I - se o crime é cometido por agente público;

II - se o crime é cometido contra criança, gestante, deficiente e adolescente;

II – se o crime é cometido contra criança, gestante, portador de deficiência, adolescente

ou maior de 60 (sessenta) anos; (Redação dada pela Lei nº 10.741, de 2003)

III - se o crime é cometido mediante seqüestro.

§ 5º A condenação acarretará a perda do cargo, função ou emprego público e a

interdição para seu exercício pelo dobro do prazo da pena aplicada.

§ 6º O crime de tortura é inafiançável e insuscetível de graça ou anistia.

§ 7º O condenado por crime previsto nesta Lei, salvo a hipótese do § 2º, iniciará o

cumprimento da pena em regime fechado.

Art. 2º O disposto nesta Lei aplica-se ainda quando o crime não tenha sido cometido

em território nacional, sendo a vítima brasileira ou encontrando-se o agente em local

sob jurisdição brasileira.

Art. 3º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

Art. 4º Revoga-se o art. 233 da Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 - Estatuto

da Criança e do Adolescente.

Os tratados internacionais do quais o Brasil é parte também proíbem

expressamente a tortura, são eles: (i) Convenção contra Tortura e outros Tratamentos ou

Penas Cruéis, Desumanos e Degradantes de 1984 – ratificada pelo Brasil em 199144; (ii)

Protocolo Facultativo à Convenção contra à Tortura e outros Tratamentos ou Penas

Cruéis, Desumanos e Degradantes de 2006 – entrou em vigor no Brasil em 11/02/200745;

(iii) Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura de 1985 – ratificada pelo

Brasil em 198946.

Importante destacar que o isolamento total já foi reconhecido como prática de

tortura ou tratamento cruel, desumano ou degradante por diversas fontes.

Com efeito, o Relator Especial para Tortura das Organizações das Nações

Unidas (ONU) apresentou em agosto de 2011 à Assembleia Geral da ONU um

relatório temático dedicado ao confinamento solitário47 – ora juntado traduzido

(doc. 04).

44 15 de fevereiro de 1991. 45 Em 18/12/2002 o Brasil ratificou o OPCAT. Em 11/1/2007 depositou o documento de ratificação. 46 20 de julho de 1989. 47 ONU. Assembléia Geral. Torture and other cruel, inhuman or degrading treatment or punishment. Interim report of the Special Rapporteur of the Human Rights Council on torture and other cruel, inhuman or

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Segundo o Relator, Juan Mendez, tal prática pode ser considerada tortura ou

tratamento cruel, desumano e degradante por si só, mas, além disso, aumenta as

possibilidades de ocorrência de tortura em razão da falta de testemunhas e fiscalização.

O Relator da ONU recomenda que os Estados proíbam o confinamento

solitário como forma de punição – seja como parte da pena imposta judicialmente

ou como medida disciplinar. Recomenda, ainda, que os Estados desenvolvam sanções

disciplinares alternativas para evitar o confinamento solitário. Segundo o relatório, os

efeitos negativos à saúde podem ocorrer em apenas alguns dias em isolamento, e os riscos à

saúde aumentam a cada dia que se passa na solitária.

Por fim, cabe destacar que o RDD brasileiro foi condenado expressamente

neste relatório temático, por ser forma de confinamento solitário torturante.

Para o Relator da ONU, o confinamento solitário prolongado deve ser

banido. Por sua vez, o RDD brasileiro prevê o isolamento do preso por até 360 dias,

prazo este que pode ser renovado até alcançar 1/6 da pena aplicada.

Para o especialista, porém, a partir de 15 dias de isolamento, os efeitos psíquicos,

emocionais e físicos sofridos pelo preso são extremamente danosos e aviltantes, gerando

danos irrecuperáveis ao preso.

Em resposta a pedido de acesso à informação pública realizado pela Conectas

Direitos Humanos (doc. 05), a Secretaria de Administração Penitenciária de São Paulo

respondeu que as pessoas que estão submetidas ao RDD no estado hoje lá estão pelo

prazo de, ao menos, 90 dias (doc. 06).

De acordo com essas informações, tornadas públicas em 06 de março de 2013, dos

23 presos que estão submetidos a esse regime rígido, seis têm o prazo de permanência

de 360 dias, seis de 240 dias, nove de 180 dias e apenas dois de 90 dias:

degrading treatment or punishment. A/66/268. 05 de agosto de 2011. Parágrafo 84. (no original: “The Special Rapporteur urges States to prohibit the imposition of solitary confinement as punishment — either as a part of a judicially imposed sentence or a disciplinary measure. He recommends that States develop and implement alternative disciplinary sanctions to avoid the use of solitary confinement.”)

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23

Matrícula Nome Data de

inclusão

Prazo de

permanência Término

347.675 DIEGO IVAN BARBOSA 16/03/2012 360 dias 10/03/2013

280.049 RODRIGO DE SOUZA 19/03/2012 360 dias 13/03/2013

221.556 EDIR SEBASTIÃO DE SOUZA RAMOS 20/07/2012 240 dias 16/03/2013

202.191 ROGÉRIO DE SOUZA, OU 21/09/2012 180 dias 19/03/2013

504.716 ELTON DIEGO DA SILVA 28/09/2012 180 dias 26/03/2013

428.894 FÁBIO JUNIOR BEATA 03/08/2012 240 dias 30/03/2013

206.093 GLADSON ROBERTO DE OLIVEIRA 12/10/2012 180 dias 09/04/2013

231.486 JOSÉ FERNANDO GONÇALVES DE SOUZA 17/08/2012 240 dias 13/04/2013

141.897 MARCELO HENRIQUE BRAZ 27/04/2012 360 dias 21/04/2013

299.497 AIRTON SOARES ARNALDO 09/11/2012 180 dias 07/05/2013

308.210 FERNANDO RAUL DA SILVA 15/02/2013 90 dias 15/05/2013

398.233 WESLEY RODRIGUES BRITO 19/09/2012 240 dias 16/05/2013

712.742 MIKE LEONARDO GASPAR DE SOUZA 19/02/2013 90 dias 19/05/2013

419.761 FLÁVIO KINGNER MILLER, ou 07/12/2012 180 dias 04/06/2013

267.603 ENDRIGO SAMPANHA 21/12/2012 180 dias 18/06/2013

212.450 ANDERSON MARTINS RODRIGUES 19/01/2013 180 dias 17/07/2013

272.294 IVAN MARTINS ALVES, ou 29/11/2012 240 dias 26/07/2013

53.939 GILBERTO ALVES DOS SANTOS 30/01/2013 180 dias 28/07/2013

179.007 ROBERLEI DOS REIS 01/02/2013 180 dias 30/07/2013

603.413 STEFANO MANTOVANI FERNANDES 28/11/2012 240 dias 02/08/2013

180.443 ALEXANDRE CAMPOS DOS SANTOS 07/11/2012

360 dias 01/11/2013

134.004 ABEL PACHECO DE ANDRADE 07/11/2012 360 dias 01/11/2013

494.081 FRANCISCO DE ASSIS ALCANTARA DE SOUSA 22/02/2013 360 dias

16/02/2014

Como se vê, na prática, os presos submetidos a esse tipo de regime o são em

períodos absurdamente longos – uma média de 234 dias! –, que em muito superam os

parâmetros internacionais sobre o tema.

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24

Assim fica evidenciado que, de acordo com a definição do especialista e Relator da

ONU sobre tortura, o sistema brasileiro de isolamento dos presos constitui tortura e maus

tratos, o que por si só já justificaria sua declaração de inconstitucionalidade.

Em sua conclusão, o Relator destaca, ainda, os sintomas que pessoas mantidas em

regime de isolamento podem apresentar, tanto durante o período de isolamento, quanto

após o seu encerramento48:

“Ansiedade, englobando desde tensão a ataques de pânico propriamente ditos.

• Baixo grau de estresse permanente

• Irritabilidade ou inquietude

• Medo de uma morte iminente

• Ataques de pânico

Depressão, variando desde mau humor até depressão clínica

• Monotonia emocional/Insensibilidade – falta de capacidade para expressar quaisquer

“emoções”

• Mudanças de humor

• Falta de esperança

• Distanciamento social; falta de proposição de atividades ou ideias; apatia; letargia

• Depressão profunda

Ira, envolvendo desde irritação até raiva propriamente dita

• Irritabilidade e hostilidade

• Controle reduzido de impulsos

• Explosões de violência física ou verbal contra outras pessoas, contra si mesmo e contra

objetos

• Ira sem motivo, muitas vezes manifesta na forma de raiva.

Distúrbios cognitivos, variando desde falta de concentração a estado de confusão

• Capacidade limitada de atenção

• Falta de concentração

• Memória falha

• Processos mentais confusos; desorientação

Distorções de percepção, variando desde hipersensibilidade a alucinações

• Hipersensibilidade a sons e odores

• Distorções de sensações (por exemplo, sensação de estreitamento das paredes)

• Desorientação no tempo e espaço

48 Doc. 04 - páginas 27/28 do original.

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25

• Despersonalização/perda da capacidade de compreensão (desrealização)

• Alucinações que afetam os cinco sentidos (por exemplo, alucinações de objetos ou pessoas

que aparecem na cela, ou ouvir vozes quando ninguém está falando)

Paranoia e psicose, incluindo desde pensamentos obsessivos até psicose propriamente dita.

• Pensamentos recorrentes e persistentes (ruminações), em geral de caráter violento e

vingativo (por exemplo, contra agentes penitenciários)

• Ideias paranoicas – muitas vezes, ideias de perseguição.

• Episódios ou estados psicóticos: depressão psicótica, esquizofrenia.

Automutilação, autoagressão

• Automutilação e cortes

• Tentativas de suicídio."

Por sua vez, o Subcomitê de Prevenção da Tortura da ONU – órgão oficial criado

pela Convenção contra Tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou

degradantes, ratificada pelo Brasil49– em seu relatório produzido em 2009, após visita ao

Brasil, também manifestou sua profunda preocupação com o Regime Disciplinar

Diferenciado, tendo citado tal instituto diversas vezes.

Como se não bastasse citar o RDD com preocupação no relatório, o

Subcomitê de Prevenção à Tortura recomendou que o Brasil revisse a política do

RDD e RDE e frisou que o isolamento prolongado pode resultar em tortura.50

Também merece destaque a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos

Humanos sobre o tema.

No caso Velasquéz Rodrigues Vs. Honduras, por exemplo, foi estabelecido

que o isolamento prolongado se enquadra na tipificação de tortura e fere a

49 A Convenção contra Tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes foi adotada pela Resolução 39/46, da Assembleia Geral das Nações Unidas, em 10 de dezembro de 1984. Foi ratificada pelo Brasil em 28 de setembro de 1989. 50 Tradução nossa. No original: “The State party should review the disciplinary policy regimes for detainees (RDD/RDE) currently being implemented. The State party is reminded that prolonged isolationmay amount to torture”. U.N. Comitee Against Torture. Report on Brazil produced by the committee under article 20 of the Convention and reply from the government of Brazil. CAT/C/39/2. 3 de março de2009. Página 47. Parágrafo 196, X.

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dignidade da pessoa humana, ou seja, o isolamento celular fere o disposto no Artigo 5

da Convenção Americana sobre os Direitos Humanos – Pacto de São José da Costa Rica51:

156. Además, el aislamiento prolongado y la incomunicación coactiva a los que se vê

sometida la víctima representan, por sí mismos, formas de tratamiento cruel e

inhumano, lesivas de la libertad psíquica y moral de la persona y del derecho de todo

detenido al respeto debido a la dignidad inherente al ser humano, lo que constituye,

por su lado, la violación de las disposiciones del artículo 5 de la Convención que

reconocen el derecho a la integridad personal como sigue:

1. Toda persona tiene derecho a que se respete su integridad física, psíquica y moral.

2. Nadie debe ser sometido a torturas ni a penas o tratos crueles, inhumanos o

degradantes. Toda persona privada de libertad será tratada con el respeto debido a la

dignidad inherente al ser humano.52

Em diversos casos - como Penal Miguel Castro53, De La Cruz Flores54, Maritza

Urrutia55, Cantoral Benavides56, Bámaca Velasqués57, Godínez Cruz58 e Fairén Garbi

y Solís Corrales59 - a Corte considerou que o isolamento prolongado e a

incomunicabilidade coerciva são, por si mesmos, tratamento cruel e desumano,

lesivo da integridade psíquica e moral da pessoa e do direito ao respeito à

dignidade inerente ao ser humano.60

51 A Convenção Americana de Direitos Humanos foi adotada e aberta à assinatura na Conferência Especializada Interamericana sobre Direitos Humanos, em São José, Costa Rica, em 22 de novembro de 1969. Foi ratificada pelo Brasil em 25 de setembro de 1992. 52 Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Velásquéz Rodrigues Vs. Honduras. Sentença de fundo de 29 de julho de 1988. P.33, parágrafo 156. 53 Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Del Penal Miguel Castro Vs. Peru. Sentença de fundo de 25 de novembro de 2006. P.110, parágrafo 323. 54 Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso De La Cruz Flores Vs. Peru. Sentença de fundo de 18 de novembro de 2004. P.64, parágrafo 128. 55 Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Maritza Urrutia Vs. Guatemala. Sentença de fundo de 27 de novembro de 2003. P.36, parágrafo 87. 56 Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Cantoral Benavides Vs. Peru. Sentença de fundo de 18 de agosto de 2000. P.35, parágrafo 82,83. 57 Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Bámaca Velásquéz Vs. Guatemala. Sentença de fundo de 25 de novembro de 2000. P.69-70, parágrafo 150. 58 Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Godínes Cruz Vs. Honduras. Sentença de fundo de 20 de janeiro de 1989. P.30 e 36, parágrafo 164 e 197. 59 Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Fairén Garbi y Solís Corrales Vs. Honduras. Sentença de fundo de 15 de março de 1989. P.28, parágrafo 128. 60 Tradução nossa. No original: “aislamiento prolongado y la incomunicación coactiva son, por sí mismos, tratamientos crueles e inhumanos, lesivos de La integridad psíquica y moral de la persona y del derecho al respeto de la dignidad inherente al ser humano”.

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Cabe destacar que “(...) ainda que recente seja a jurisprudência da Corte, o sistema

interamericano está se consolidando como importante e eficaz estratégia de proteção dos direitos humanos,

quando as instituições nacionais se mostram omissas ou falhas.”61

Logo, evidente que caso este Supremo Tribunal Federal reconheça a

inconstitucionalidade do RDD estará externando entendimento absolutamente compatível

e harmônico com os inúmeros casos já analisados pela Corte Interamericana,

demonstrando firmemente que essa Corte também rechaça esse tipo de medida de

detenção.

Ainda, sobre a importância das decisões da Corte regional como parâmetros para

decisões nacionais:

“O sistema regional interamericano simboliza a consolidação de um

“constitucionalismo regional”, que objetiva salvaguardar direitos humanos

fundamentais no plano interamericano. Observe-se que a Convenção Americana,

ratificada por 25 Estados (sendo que 22 aceitam a jurisdição da Corte

Interamericana), traduz a força de um consenso a respeito de direitos básicos a serem

garantidos em nossa região”.62

No Brasil, merece destaque a edição pelo Conselho Nacional de Política

Criminal Penitenciária das Regras Mínimas para Tratamento dos Presos no Brasil, com

base nas Regras Mínimas para Tratamento do Preso da ONU63. O artigo 24 de referida

norma proíbe a aplicação de sanções disciplinares na forma de punição cruel,

desumana, degradante ou qualquer forma de tortura.

Além disso, o artigo 37 estabelece que “deve-se estimular a manutenção e o melhoramento

das relações entre o preso e sua família”, o que não acontece quando a pessoa está submetida ao

Regime Disciplinar Diferenciado, já que as unidades são distantes dos centros urbanos,

61

PIOVESAN, Flavia. Direitos Humanos e Justiça Internacional, São Paulo: Saraiva, p. 157. 62 PIOVESAN, Flavia. Implementação das obrigações, standards e parâmetros internacionais de direitos humanos no âmbito intra-governamental e federativo. Palestra proferida no painel "Implementation on through intrastate levels of government, including federal, state/provincial and municipal jurisdiction" na Working Session on the Implementation of International Human Rights Obligations and Standards in the Inter-American System, organizada pela Inter-American Comission on Human Rights e pelo The International Justice Project, em Washington, em 1 de março de 2003, p.5. Disponível em: http://www.internationaljusticeproject.org/pdfs/Piovesan-speech.pdf. Acesso em 18 abr. 2013. 63 Conselho Nacional de Política Criminal Penitenciária. Resolução nº 14, de 11 de Novembro de 1994.

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dificultando o acesso pela família e também as visitas são autorizadas em quantidade

diminuta.

Além disso, cabe dizer, as Regras Mínimas para Tratamento dos Presos da ONU

estabelecem, em seu artigo 61, que o tratamento conferido aos presos não deve enfatizar a

exclusão, mas, ao contrário, deve enfatizar o fato de que os presos continuam a fazer parte

da comunidade64.

Como se vê, o confinamento solitário é hoje tratado como forma de tortura e

tratamento cruel por diversos e importantes marcos normativos internacionais. A

legislação brasileira sobre o tema – ora objeto de debate – é inclusive citada como

mau exemplo de norma estabelecedora de regimes de confinamento solitário,

merecendo, pois, seja declarada inconstitucional.

b) O RDD viola a integridade física e psíquica do preso.

O Regime Disciplinar Diferenciado constitui-se em pena cruel e desumana, que

impõe a uma determinada categoria de indivíduos um sofrimento intenso por período

prolongado.

A imposição desse tipo de regime traz consequências psicológicas graves,

funcionando como autêntico aparato de violação à integridade física e psíquica do preso –

ainda mais grave se considerarmos o período de isolamento que é imposto pelo RDD

brasileiro – até 360 dias, prorrogáveis.

O professor Stuart Grassian, da Faculdade de Medicina de Harvard e do Hospital

de Beth Israel, psiquiatra especialista em questões relacionadas ao isolamento celular,

escreveu um estudo denominado “Os Efeitos Psiquiátricos do Isolamento Celular”

baseado em sua vasta experiência no tema65. Ele afirma de forma muito contundente que o

isolamento do preso em uma cela solitária por quase todo o dia, com o mínimo de

64 No original: 61. The treatment of prisoners should emphasize not their exclusion from the community, but their continuing part in it. 65 GRASSIAN, Stuart. Psychiatric Effects of Solitary Confinement. in American Journal of Psychiatry, novembro de 1983.

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interação com o ambiente e mínima oportunidade de interação social, pode provocar

transtornos psiquiátricos graves e severos.

Além disso, o isolamento pode levar à exacerbação de transtornos pré-

existentes, mas também pode fazer com que pessoas que não tinham qualquer

transtorno psiquiátrico passem a apresentar sintomas de um tipo próprio de

distúrbio. Como se não bastasse, mesmo após o término do período de isolamento,

aqueles que foram submetidos a essa privação extrema continuam a apresentar

sintomas graves como intolerância à interação social e obstáculos à reintegração na

sociedade66.

Os sintomas característicos da síndrome desenvolvida em razão do confinamento

solitário, após analisar a condição de saúde mental de mais 100 presos em isolamento

celular em diferentes unidades nos Estados Unidos, são constantes, e seu estudo destaca

sete principais sintomas:

i. Hipersensibilidade a estímulos: mais da metade dos presos apresentaram

hipersensibilidade a estímulos corriqueiros como o barulho de

encanamentos;

ii. Distorção de percepção, ilusão e alucinação: um terço dos presos

relatou ouvir vozes, em geral sussurros de ameaças e outras expressões

assustadoras;

iii. Ataques de pânico: mais da metade dos presos relataram terem ataques

de pânico enquanto estavam isolados;

iv. Dificuldades de raciocínio, concentração e memória: a grande maioria

dos presos apresenta esse sintoma. Alguns chegam a um grau mais

severo alcançando a psicose aguda;

v. Pensamentos obsessivos, emergência de agressividade primitiva: Mais

da metade dos presos relataram que pensamentos agressivos de tortura,

66 GRASSIAN, Stuart. Op cit. p.1-2.

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mutilação e maus tratos aos guardas estão sendo executados por eles.

Eles relataram se sentirem incomodados e muito assustados com esses

pensamentos recorrentes;

vi. Paranoia evidente: aproximadamente metade dos presos apresentou

medos paranoicos e sentimento de que estão sendo perseguidos;

vii. Dificuldade para controlar impulso: pouco menos da metade dos presos

relatou ter perdido o controle e ter tomado uma atitude agressiva e

violenta, inclusive, diversos recorreram a auto mutilação.67

Por sua vez, Kurki e Morris fizeram um importante estudo sobre prisões supermax –

estabelecimentos com regras de disciplina muito semelhantes às do RDD, nos Estados

Unidos – e o trabalho também conduz à conclusão de que os efeitos psiquiátricos gerados

pelo confinamento solitário são gravíssimos:

“Observadores das [prisões do modelo] supermax testemunham com frequência presos

que se comportam de modo incongruente e claramente sofrem de doenças

mentais sérias. Em casos extremos, alguns presos estão a postos para se auto-

mutilarem severamente, para que possam ser transferidos, ou tentam o suicídio

para acabar com seu sofrimento permanente. Entrevistas com os que não apresentam

sintomas e parecem agir conforme limites humanos comuns revelam que seus

estados mentais, processos de pensamento e habilidades sociais

ficam também significativamente alterados. [...] Nós achamos

difícil não acreditar que condições supermax prolongadas causem

sérios danos psicológicos e sociais para qualquer pessoa, seja ela

mentalmente forte, fraca, ou algo no meio termo.”68

67 Idem. p.3-4. 68 Tradução nossa. No original: “Observers of supermaxes regularly see inmates who act absurdly and clearly suffer from serious mental illnesses. In extreme cases, some in- mates are ready to mutilate themselves severely in order to be trans- ferred, or they attempt suicide to end their suffering permanently. Interviews with those who do not show obvious symptoms and seem to act within ordinary human limits reveal that their mental states, thought processes, and social abilities are significantly altered as well. […] we find it difficult not to believe that prolonged supermax conditions would cause serious psychological and social problems for anyone, whether mentally strong, weak, or something between.” KURKI, Leena. MORRIS, Norval. The Purposes, Practices and Problems of Supermax Prisons. Crime and Justice, v. 28, 2001, p. 415. Destaques nossos.

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Haney e Lynch também realizaram um trabalho de referência no tema e afirmam

que os estudos sobre os efeitos secundários da prisão-isolamento indicam que o

confinamento é associado ao aumento de queixas de ordem psiquiátrica,

automutilação, suicídio e de danos contra a propriedade. Essas condições também

aumentam a frustração do preso a um nível que pode provocar explosões de violência e

investidas contra os funcionários69.

De acordo com estes autores, os estudos de caso relatam ansiedade, pânico, raiva,

perda de controle, automutilação e outros sintomas recorrentes:

Estudos sobre os efeitos da prisão em isolamento documentam

uma grande variedade de nocivos efeitos psicológicos, incluindo

aumento de atitudes negativas, insônias, ansiedade, pânico,

retração, hipersensibilidade, disfunção cognitiva, alucinações,

perda de controle, agressão, raiva, paranoia, perda de esperança,

letargia, depressão, crise de nervos, automutilação e impulsos

suicidas70.

Ora, a Constituição Federal de 1988 estabelece que ninguém será submetido a

tortura nem a tratamento desumano ou degradante , além de considerar crime inafiançável

e insuscetível de graça e indulto a prática de tortura e também a conduta omissiva daquele

que poderia evitar que a tortura ocorresse. Como se não bastasse, proíbe expressamente a

aplicação de penas cruéis, assegurando, ainda, o respeito à integridade física e moral dos

presos.

Essas previsões expressas no texto constitucional são desdobramentos do

postulado da dignidade da pessoa humana, alçado a fundamento da República brasileira.

69 HANEY, Craig. LYNCH, Mona. Regulating Prisons of the Future: a Psychological Analysis of Supermax and Solitary Confinement. New York University Review of Law and Social Change, n. 23, 1997, p.528. 70 Tradução nossa. No original: “Direct studies of the effects of prison isolation have documented a wide range of harmful psychological effects, including increases in negative attitudes and affect, insomnia, anxiety, panic, withdrawal, hypersensitivity, ruminations, cognitive dysfunction, hallucinations, loss of control, aggression, rage, paranoia, hopelessness, lethargy, depression, emotional breakdowns, self-mutilation, and suicidal impulses.” Idem. p. 530.

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Por sua vez, “a dignidade humana consiste não apenas na garantia negativa de que a pessoa não

será alvo de ofensas ou humilhações, mas também agrega a afirmação positiva do pleno desenvolvimento da

personalidade de cada indivíduo.”71

Não obstante, no RDD:

“A aposta na desestruturação física e psíquica é o ingrediente essencial desta

nova forma de gestão, que visa a compensar a incapacidade de controle, por

meio da maximização da vulnerabilidade dos sujeitos encarcerados diante de

um poder que se agiganta. O isolamento celular prolongado, com os efeitos

destrutivos sobre a saúde física e mental dos sujeitos, adquire feição de castigo,

reeditando a velha noção de pena como puro e simples exercício de vingança

social.”72

Vê-se, pois, que os efeitos são devastadores e a simples presença de médicos e

psicólogos nas unidades de RDD não é suficiente para aplacar as feridas psicológicas que o

isolamento em baixíssimo grau de interação social causa. Em outras palavras, não é uma

questão de quantidade de atendimento médico, mas da própria essência do regime.

Diante da flagrante violação da integridade física e psíquica dos presos

submetidos a esses tipos de regime, conclui-se que a Lei Federal 10.792/2003 viola

no cerne princípios dos mais caros ao Estado Democrático da República brasileira,

sendo de rigor seja declarada inconstitucional por esse Supremo Tribunal Federal.

c) Conclusão.

O instituto do RDD fere de forma brutal e avassaladora a dignidade da pessoa

humana, colocada na Constituição Federal como fundamento do estado Democrático de

Direito (Art. 1º, III, CF). Trata-se, portanto, de um princípio irrefutável.

71 Pérez Luño, citando Werner Maihofer, em André Ramos Tavares, in Curso de Direito Constitucional, ed. Saraiva, 2002, p. 393. 72 FREIRE. Christiane Russomano. Op.Cit., p156 (destacamos).

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Sua inconstitucionalidade reside, entre outros, no fato de desrespeitar o devido

processo legal, o contraditório e a ampla defesa, já que a inclusão do preso no RDD

depende apenas de solicitação da administração penitenciária e de despacho do juiz.

Não se pode falar que haja um processo em que as garantias constitucionais sejam

respeitadas, posto que o art. 54 da Lei n.º 10.792/03 estabelece que o preso será incluído

no RDD por ato motivado do diretor do estabelecimento penal e por prévio e

fundamentado despacho do juiz, tão somente. Diga-se que a entidade subscritora requereu

à Secretaria da Administração Penitenciária informações a respeito das motivações que

justificaram as transferências das pessoas presas atualmente no RDD, porém a Secretaria

negou-se a fornecer esse dado, tratando como sigilosa informação que é deve ser de

conhecimento da sociedade.

Além disso, como amplamente exposto, o RDD viola a vedação da tortura, de

penas cruéis e de tratamento degradante. O preso fica isolado e incomunicável, com severa

restrição ao recebimento de visitas. Como se não bastasse, afronta, ainda, a previsão

constitucional da individualização da pena.

Ademais do absurdo da existência de tal regime em um Estado Democrático de

Direito, ainda que garantido por lei, existem novas unidades prisionais que seguem modelo

análogo ao RDD, sem previsão legal, o que gera a grande preocupação de que, se esse

modelo não for considerado inconstitucional, ele irá se espalhar com intensidade pelo país.

Tais unidades, como os novos Centros de Detenção Provisória do estado do

Espírito Santo, não são utilizadas como castigo e punição, mas para todos os presos

provisórios. Nestas unidades, as celas são individuais e os presos ficam em isolamento de

22 a 23 horas por dia, tendo direito a banho de sol com duração máxima de duas horas,

também em isolamento. Há relatos de que em algumas dessas unidades os presos têm

direito a apenas um banho de um minuto por dia73.

73 Informação obtida em visitas a essas unidades em diversas datas no ano de 2011 pela Conectas e entidades que atuam na defesa dos direitos humanos no estado.

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Além de todo o exposto, é inequívoco que o RDD fere a Lei de Execução Penal

em três dos seus principais princípios e garantias: progressividade, individualização e

ressocialização, já que deixa de seguir a lógica do desencarceramento progressivo.

Ainda, a inclusão em RDD pode ser aplicada em casos de mera suposição de risco

para a ordem e segurança do estabelecimento prisional, ou mesmo de meras suspeitas de

participação em organizações criminosas.

É fundamental destacar, também, que para compreender sua inconstitucionalidade

o RDD pode ser interpretado como um regime fechado plus. Para Freire:

“A essência do sistema progressivo, sob inspiração dos ideais correcionalistas, reside na

possibilidade de propiciar ao apenado, desde que observados os requisitos legais de

natureza objetiva e subjetiva, um movimento paulatino de desencarceramento. Em

sentido diametralmente oposto, a medida penal que cria a

modalidade do regime carcerário “fechadíssimo”, sob a aparência

de punição disciplinar, além de estar totalmente isenta dos

postulados e das regras que regem o sistema progressivo,

apresenta como objetivo central reduzir as possibilidades de saída

do interior do sistema carcerário.”74

Por fim, cabe asseverar que, ao decidir pela inconstitucionalidade dos artigos em

questionamento da Lei nº 10.792/2003, este Supremo Tribunal Federal seguirá a mesma

linha já traçada por essa Corte no sentido de frear o ideal punitivista e de recrudescimento

penal que tenta soterrar o que foi construído no período de democratização e foi

positivado na Constituição Federal e na Lei de Execução Penal.

Podemos destacar dois casos emblemáticos deste caminho que a Corte

Suprema vem, acertadamente, adotando: as decisões com relação à Lei de Crimes

Hediondos e à Lei de Drogas.

Na histórica decisão do Habeas Corpus nº 82.959/SP, em 2006, esse Supremo

Tribunal Federal entendeu que a progressão de regime está diretamente vinculada à

74 Idem. P 157.

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ressocialização do preso e não poderia ser impedida75. Este caso emblemático gerou a

declaração de inconstitucionalidade do artigo 2º da Lei nº 8.072/90.

No julgamento dos Habeas Corpus nº 97.256/RS (em 2010) e 104.339/SP (em 2012),

essa Corte seguiu a mesma linha garantista ao decidir pela inconstitucionalidade da vedação

de substituição de pena privativa de liberdade pela restritiva de direitos e da proibição de

liberdade provisória, ambas as medidas previstas na Lei nº 11.343/2006.

Inegável, pois, que esse Supremo Tribunal Federal vem optando pelos

caminhos que diminuem a carga aflitiva da pena, exatamente por compreender que

o recrudescimento da política penitenciária é inadequado ao Estado Democrático

de Direito, e que qualquer política que caminhe nesse sentido fere, de modo

inadmissível, a Constituição Federal.

Neste sentido, deve ser, também, a decisão no julgamento do presente caso,

sendo declarada inconstitucional a Lei Federal 10.792/2003.

III. Pedido.

Por todo o exposto, a entidade subscritora vem à presença de Vossa Excelência

requerer:

a) Seja admitida como amicus curiae da ADI n.º 4162;

b) Seja conferida a possibilidade de sustentação oral dos argumentos deste

amicus curiae em plenário, e que os subscritores desta sejam intimados

previamente para a realização do ato.

c) Subsidiariamente, seja esta manifestação admitida como memoriais.

75 Conectas Direitos Humanos, em parceria com o Instituto Pro Bono, ingressou como amicus curie neste caso.

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Nestes termos,

Pede deferimento.

De São Paulo para Brasília, 19 de abril de 2013.

Vivian Calderoni Flávia Xavier Annenberg

OAB/SP 286.801 OAB/SP 310.355

Rafael Carlsson Custódio

OAB/SP 262.284