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MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PROCURADORIA DA REPÚBLICA NO ESTADO DE SÃO PAULO EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR JUIZ DA ___ VARA CÍVEL FEDERAL DA SEÇÃO JUDICIÁRIA DE SÃO PAULO – SP Conexão com a Ação Civil Pública nº. 2003.61.00.032717-9 O MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, pelos Procuradores da República infra-firmados, vem à presença de Vossa Excelência, com fulcro no art. 127, caput, da Constituição Federal, no art. 6º, VII, “c”, da Lei Complementar 75/93, propor a presente AÇÃO CIVIL PÚBLICA COM PEDIDO DE TUTELA ANTECIPADA contra Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS, autarquia sob o regime especial, vinculada ao Ministério da Saúde, com sede na Rua Augusto Severo, 84, Ed. Barão de Mauá – 11º and., Lapa, Rio de Janeiro/RJ, na pessoa de seu representante legal; Golden Cross Assistência Internacional de Saúde Ltda. , pessoa jurídica de direito privado com sede na Rua Morais e Silva, 40/11º andar, Rio de Janeiro/RJ, na pessoa de seu representante legal; pelos fatos e fundamentos a seguir expostos:

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MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERALPROCURADORIA DA REPÚBLICA NO ESTADO DE SÃO PAULO

EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR JUIZ DA ___ VARA CÍVEL FEDERAL DA SEÇÃO JUDICIÁRIA DE SÃO PAULO – SP

Conexão com a Ação Civil Pública nº. 2003.61.00.032717-9

O MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, pelos Procuradores da República infra-firmados, vem à presença de Vossa Excelência, com fulcro no art. 127, caput, da Constituição Federal, no art. 6º, VII, “c”, da Lei Complementar 75/93, propor a presente

AÇÃO CIVIL PÚBLICA COM PEDIDO DE TUTELA ANTECIPADA

contra

Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS, autarquia sob o regime especial, vinculada ao Ministério da Saúde, com sede na Rua Augusto Severo, 84, Ed. Barão de Mauá – 11º and., Lapa, Rio de Janeiro/RJ, na pessoa de seu representante legal;

Golden Cross Assistência Internacional de Saúde Ltda., pessoa jurídica de direito privado com sede na Rua Morais e Silva, 40/11º andar, Rio de Janeiro/RJ, na pessoa de seu representante legal;

pelos fatos e fundamentos a seguir expostos:

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MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL

I – DOS FATOS

1.1- Instaurada a Representação MPF/PR/SP nº 1.34.001.002149/2001-79 (doc.01) motivada por denúncia de um segurado formulada por carta (doc. 02), verificou-se que a Bradesco Saúde S/A se recusa a reembolsar aos seus segurados o valor correspondente à lente intra-ocular utilizada em cirurgia de catarata (facectomia), em virtude de cláusula contratual que genericamente exclui da cobertura “aparelhos estéticos ou protéticos de qualquer natureza.”

Objetivando instruir a referida representação com os aspectos médicos relativos à cirurgia de catarata e implante da lente intra-ocular o MPF solicitou informações ao Diretor do Instituto de Catarata da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), Dr. Eduardo Sone Soriano, que assim se manifestou:

“1) A catarata é uma doença caracterizada por opacificação do cristalino, que é uma lente transparente, naturalmente presente no olho. Essa opacificação leva à diminuição da visão;2) O tratamento da catarata é realizado, rotineiramente, pela remoção cirúrgica do cristalino opacificado (catarata) e implante de uma lente intra-ocular artificial;3) A função desta lente intra-ocular é fornecer transparência aos meios oculares e focalizar as imagens no fundo de olho (retina);4) Exceto por condições especiais (intercorrências, doenças oculares, etc.) (...) nos dias de hoje não há sentido em fazer a cirurgia sem a lente intra-ocular.”(grifos da subscritora - doc. 03)

Nota-se, pelas informações prestadas e acima transcritas, que a

lente intra-ocular é indispensável à realização da cirurgia de catarata em virtude das características do procedimento cirúrgico adotado no tratamento da doença, na medida em que a cirurgia visa principalmente a uma “substituição” do cristalino opacificado pela lente intra-ocular, possibilitando que o paciente volte a enxergar.

Assim como a Bradesco Saúde, contra a qual este Parquet instaurou ação civil pública pelos motivos supramencionados, a Golden Cross Assistência Internacional de Saúde Ltda., em resposta a ofício enviado a empresas

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prestadoras de assistência à saúde nos autos da representação nº.1.34.001.002149/2001-79 (fls.159/160), também admitiu a não cobertura do implante das lentes intra-oculares nos planos de saúde firmados antes da Lei 9656/98, por expressa exclusão contratual.

Desta forma, a conduta da Golden Cross, consistente em fornecer cobertura da facectomia (cirurgia de catarata) mas excluir a cobertura da aquisição da necessária prótese, viola diversos dispositivos legais atinentes ao caso em tela (em especial a Lei 8.078/90).

É importante ressaltar, desde já, o abuso praticado pela co-ré ao comercializar seguro que, no tocante à cobertura da cirurgia de catarata (facectomia) é totalmente ineficaz, posto que de nada adianta cobrir o ato cirúrgico mas deixar de garantir a aquisição da necessária lente intra-ocular.

1.2 - Instada pelo Ministério Público Federal a prestar informações acerca da conduta da co-ré Bradesco Seguros nos autos da representação acima referida, a Agência Nacional de Saúde Suplementar alegou que “a operadora, por vontade própria e não por obrigação” pode assumir o ressarcimento da lente intra-ocular.”

Segundo as respostas oferecidas pela ANS (doc. 04), verifica-se que esta Agência aceita a conduta ilegal praticada pela Bradesco Saúde S/A e, conseqüentemente, pelas demais seguradoras, desta forma se omite em exercer suas funções institucionais (Lei nº. 9.961/ 2000), contrariando o sistema legal vigente e possibilitando uma lesão ao SUS(Sistema único de Saúde).

1.3- Os danos ao Sistema Único de Saúde ocorrem na medida em que, a recusa da seguradora - ré em fornecer a lente intra-ocular levam os segurados a realizarem a cirurgia de catarata pelo SUS, já que este sistema cobre a cirurgia e a lente.

Ressalte-se que, embora haja imposição legal que determine o reembolso ao SUS por parte da seguradora caso seus segurados se socorram do atendimento do Sistema Único de Saúde, no caso em tela a seguradora-ré somente reembolsa a cirurgia, invocando a cláusula que exclui a cobertura de “próteses e implantes”.

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Assim, como a seguradora-ré alega que o contrato não cobre a aquisição da lente intra-ocular, deixa de fazer o ressarcimento previsto em lei, obtendo enriquecimento sem causa às custas do Patrimônio Público.

1.4 - Diante dos fatos apurados, a seguradora-ré se obriga

contratualmente a fornecer cobertura da cirurgia de catarata, mas se recusa a cobrir elemento indispensável à realização da cirurgia (lente intra-ocular), estipulando em seus contratos cláusula abusiva. Caberia à ANS coibir tal conduta, porém esta nada faz, mantendo-se em uma postura omissiva.

Estas condutas conjugadas ocasionam sérios danos aos consumidores dos planos de saúde da co-ré, bem como ao Sistema Único de Saúde e merecem a intervenção do Poder Judiciário no sentido de repará-las, conforme disposto em uma série de princípios e mandamentos legais, os quais passamos a analisar a seguir.

II – DO DIREITO

1- DA LEGITIMIDADE ATIVA

Por definição apresentada pelo art. 127 da Constituição Federal de 1988, é o Ministério Público órgão indispensável à atividade jurisdicional do Estado, cabendo a ele zelar pela defesa da ordem jurídica, pelo regime democrático e pelos interesses sociais e individuais indisponíveis. Tal escopo se encontra inserido entre as funções institucionais do órgão ministerial elencadas no art. 129 da Carta Magna, como segue:

"Art. 129 - (...)II - zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia;III - promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos;"

Ante a reprodução do texto constitucional, verifica-se a incumbência concernente em resguardar o interesse público, consubstanciado

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não só no respeito à orientação dos Poderes Públicos como em questões outras de importância significativa para o Estado e para a sociedade, enquadradas entre os interesses difusos e coletivos. Com vistas a esse procedimento, é conferido ao órgão ministerial, pela Constituição, valer-se de providências como a propositura de ação civil pública, como ora se faz.

Pelo que prevê a Lei 7.347/85, ajuíza-se ação civil pública quando se intenta a responsabilização dos agentes por danos morais e patrimoniais causados aos objetos de proteção jurídica elencados pelo art. 1°, quais sejam:

“I - o meio ambiente;II - o consumidor, III - os bens de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico;IV - qualquer outro interesse difuso ou coletivo;V - a ordem econômica.”

Para propor a ação a que aqui se alude, dispõe a Lei 7.347/85 sobre os órgãos que estão legitimados a fazê-lo, acompanhando a Constituição Federal, de forma expressa, ao também atribuir a função ao Parquet:

"Art. 5º A ação principal e a cautelar poderão ser propostas pelo Ministério Público, pela União, pelos Estados e Municípios."

Na ocorrência de situação aflitiva aos interesses e direitos dos consumidores, bem como de ofensa ao patrimônio público, a Lei 8.078/90 admite a possibilidade de apreciação da questão em juízo (art. 81), sendo possível ao Ministério Público motivar o Judiciário para tanto, conforme o disposto no art. 82, I, do referido Código de Defesa do Consumidor.

A presente ação objetiva resguardar não só os direitos dos consumidores, mas também os direitos da população idosa pois, no mais das vezes, são os idosos que são acometidos pela catarata. Desta maneira, espancando quaisquer dúvidas acerca da legitimidade ativa do MPF na presente demanda, temos que incide a causa de legitimação ativa expressamente prevista no art. 74, I da lei nº 10.741, de 1º de outubro de 2003 (Estatuto do Idoso), in verbis:

“Art. 74. Compete ao Ministério Público:

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I – instaurar o inquérito civil e a ação civil pública para a proteção dos direitos e interesses difusos ou coletivos, individuais indisponíveis e individuais homogêneos do idoso;(...)” (grifos da subscritora).

2- Da Lei nº 10.741, de 1º de Outubro de 2003 – Estatuto Do Idoso

Os fatos descritos assumem maior gravidade se levarmos em conta os destinatários da cirurgia de catarata que em geral são pessoas idosas, com mais de 60 anos e protegidas não só pelo Código de Defesa do Consumidor, mas também pelo Estatuto do Idoso (Lei nº.10.741/2003)

A catarata é uma doença típica da velhice, não obstante possa ter como causas possíveis problemas congênitos, traumatismos, deficiências metabólicas ou o uso prolongado de determinados medicamentos. Daí a necessidade de adequação da conduta da seguradora aos instrumentos protetivos do direito dos idosos.

O poder constituinte originário, revelando sua preocupação em assegurar aos idosos o direito à dignidade, instituiu o artigo 230, CF, in verbis:

“Art. 230 - A família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida.”

Com efeito, o Estatuto encontra seu fundamento de validade no comando constitucional, disciplinando com mais especificidade os direitos dali decorrentes. No art. 1º do Estatuto do Idoso encontramos os sujeitos que o referido instrumento normativo objetiva proteger, in verbis:

“Art. 1o É instituído o Estatuto do Idoso, destinado a regular os direitos assegurados às pessoas com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos.”

Alguns institutos previstos no Estatuto guardam similitude com o Estatuto da Criança e do Adolescente, em especial com relação ao instituto da Proteção Integral. Esta doutrina é baseada no reconhecimento de que os idosos (assim como as crianças e adolescentes) encontram-se em condição peculiar de

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vida e necessitam de proteção especializada, diferenciada e integral. Assim como o ECA, o Estatuto do Idoso adotou a filosofia da Proteção Integral, determinando no seu artigo 2º que:

“Art. 2º O idoso goza de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta lei, assegurando-se-lhe, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, para preservação de sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade.”

A doutrina da proteção integral objetiva não a apenas a igualdade formal, mas sobretudo a igualdade material e, desta forma, estipula Direitos Fundamentais Especiais, visando atender àquela condição peculiar de vida.

Dentre estes Direitos Fundamentais Especiais, para o caso em tela importa destacar o direito ao envelhecimento com dignidade, previsto no Capítulo I, que trata do Direito à Vida, mais especificamente no art. 8º, a seguir transcrito:

“Art. 8o O envelhecimento é um direito personalíssimo e a sua proteção um direito social, nos termos desta Lei e da legislação vigente.”(grifo nosso)

Este Direito ao Envelhecimento disciplinado no Estatuto, deve ser entendido como o direito ao envelhecimento com dignidade e desta forma, para a interpretação correta do dispositivo, deve ser levado em conta todo o feixe de direitos relativos à dignidade da pessoa humana, amoldados à peculiar condição de vida do ser humano que está encontrando, dia após dia, maiores dificuldades em exercer suas faculdades físicas, mentais e sociais. Resta claro portanto que os contratos de planos de saúde devem ser adequados a essa condição especial do ser idoso.

Não obstante a catarata ser doença perfeitamente curável, no presente caso encontramos circunstância em que o tratamento necessário para a cura não se realiza em virtude de cláusula abusiva estipulada pela seguradora-ré. Desta forma observamos que a cláusula que exclui “próteses e implantes”, além de violar direitos consumeiristas, viola os direitos dos idosos assegurados pela Constituição Federal e pelo Estatuto do Idoso em virtude da extrema dificuldade que o idoso deficiente visual encontra em exercer as suas atividades mais básicas.

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Ademais, veja-se o que dispõe o art. 3º do Estatuto do Idoso, in verbis:

“Art. 3° É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do Poder Público assegurar ao idoso, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária.” (grifos da subscritora).

Quando a lei usa a locução “assegurar ao idoso, com absoluta prioridade” significa que, em havendo conflito entre quaisquer interesses e os direitos mencionados no art. 3º, estes necessariamente deverão prevalecer.

3- DO QUE DETERMINA O CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR

3.1- Da Cláusula Abusiva

A cláusula estipulada pela co-ré Golden Cross Assistência Internacional de Saúde Ltda. em seus contratos de adesão firmados antes de 1998 que, de forma genérica, exclui a cobertura de “próteses e implantes”, quando aplicada no caso da cobertura da cirurgia de catarata configura a hipótese de cláusula abusiva, prevista no art. 51, IV da lei 8.078/90, in verbis:

“Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que:

(...)IV - estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade;” (grifos nossos)

Trata-se de cláusula abusiva na medida em que a situação relatada na presente ação é incompatível com a boa-fé e a equidade. Quando consumidores contratam seguro de saúde que cobre cirurgia, incluindo-se cirurgia de catarata, é de se esperar que, necessitando do procedimento cirúrgico reestabelecedor da visão, estes consumidores sejam plenamente atendidos.

Viola o conceito de eqüidade e o de boa-fé a situação relatada na presente ação em que, em virtude da aplicação de cláusula excludente, a co-ré se

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recusa a cobrir elemento indispensável à cirurgia (lente intra-ocular) e, por via de conseqüência, seus consumidores não conseguem realizar cirurgia que é prevista no contrato como coberta.

A cláusula de exclusão genérica, aplicada ao caso da cirurgia de catarata é cláusula abusiva também por se tratar de cláusula que coloca o consumidor “em desvantagem exagerada” dentro da relação contratual. O parágrafo 1º do art. 51 do CDC complementa este conceito de “desvantagem exagerada” estipulando, in verbis:

“§ 1º Presume-se exagerada, entre outros casos, a vontade que:I - ofende os princípios fundamentais do sistema jurídico a que pertence;II - restringe direitos ou obrigações fundamentais inerentes à natureza do contrato, de tal modo a ameaçar seu objeto ou equilíbrio contratual;III - se mostra excessivamente onerosa para o consumidor, considerando-se a natureza e conteúdo do contrato, o interesse das partes e outras circunstâncias peculiares ao caso.” (grifos da subscritora)

Ora, como já visto, a necessidade de implantação da lente intra-ocular decorre da natureza do procedimento cirúrgico comumente utilizado para o tratamento da catarata e, sendo assim, a cláusula que exclui a cobertura desta lente restringe obrigação inerente à natureza do contrato e ameaça seu objeto, qual seja, a cobertura da cirurgia de catarata.

Com relação às cláusulas abusivas trazemos à colação a lição de Cláudia Lima Marques1:

“O inciso IV do art. 51 combinado com o § 1º deste mesmo artigo constitui, no sistema do CDC, a cláusula geral proibitória da utilização de cláusulas abusivas nos contratos de consumo. As expressões utilizadas, boa-fé e eqüidade, são amplas e subjetivas por natureza, deixando larga margem de ação ao juiz; caberá, portanto, ao Poder Judiciário brasileiro concretizar através desta norma geral,

1 MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor – O novo regime das relações contratuais. 4ª ed. São Paulo: RT, 2002. pg. 796. 9

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escondida no inciso IV do art. 51, a almejada justiça e eqüidade contratual.”

Prossegue a festejada autora discorrendo acerca das cláusulas de exclusão genérica encontradas em contratos envolvendo saúde (como a combatida na presente ação)2:

“Em resumo, exclusões genéricas desequilibram o conteúdo do contrato de seguro-saúde, de planos de saúde e dos demais seguros relacionados à saúde e não devem ser usadas para acobertar erros de cálculos atuariais ou cobranças a menor de prêmios, de forma a ‘baratear’ serviços que os consumidores nunca poderão usar.A abusividade das cláusulas presentes nos contratos no mercado brasileiro tem sua origem justamente na falta de precisão e razoabilidade neste tipo de contrato. Insere-se assim no previsto no §1º, III, do art. 51, que ao concretizar as cláusulas abusivas especifica que são estas aquelas que desequilibram o contrato e se mostram excessivamente onerosas para o consumidor, considerando-se a natureza e conteúdo do contrato, de tal modo a ameaçar seu objeto ou equilíbrio contratual. A cláusula é abusiva porque contraria à boa-fé, mas escolhi propositadamente o inciso III, em face das perspectivas de uma análise econômica do direito, pois afirma-se constantemente que seria impossível um plano que englobasse todas as doenças. Esta é uma desculpa simplificada, pois tal impossibilidade desaparece em face dos cálculos dos riscos, a idéia de verdadeira socialização dos riscos, inclusive com a participação estatal, e os exemplos de outros países.” (grifos da subscritora)

Acerca do tema utilização de prótese que é conseqüência da cirurgia, o Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, analisando caso análogo ao presente, decidiu pela impossibilidade de se excluir da cobertura de cirurgia reparadora de incontinência urinária, a cobertura da prótese necessária à realização do procedimento médico. Vejamos a ementa do mencionado acórdão, in verbis:

“Apelação Cível nº 94.290-4/0Apte(s): Hildebrendo Bertão (AJ)

2 Idem, pg. 838-839 10

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Apdo(s): Associação de Médicos São Paulo - Blue LifeComarca: São Paulo(...)

PLANO DE SAÚDE – cláusula de exclusão de colocação de prótese – necessidade da utilização da prótese que é conseqüência de procedimento cirúrgico – inadmissibilidade da exclusão – cláusula abusiva sob este aspecto, em não se tratando de prótese embelezadora ou estética e tendo em vista a expectativa do consumidor à qual fica cativo o fornecedor de serviço – recurso improvido” (doc.05)

Vale trazer à colação trechos do voto do Eminente Desembargador Ruy Camilo, relator do acórdão supra mencionado, in verbis:

“(...) Abusiva é a conduta que viola os deveres de respeito e lealdade entre os parceiros contratuais, agindo contrariamente aos parâmetros e expectativas criados no ato da celebração e que frustra a execução do contrato, causando lesão a um dos contratantes.

Assim já se decidiu, à larga, que cláusulas limitativas do direito do consumidor, excluindo da cobertura determinadas doenças, considerando outras como doenças pré-existentes (câncer, diabetes mellitus, asma, bronquite, etc...), limitando períodos de internação ou de permanência nos C.T.I.´s, excluindo determinados tratamentos e exames, fixando períodos exagerados de carência contratual, permitindo renúncia unilateral do contrato, devem merecer critérios de interpretação do próprio sistema do consumidor, pois interpretar tais relações de consumo sob o manto dos princípios da liberdade de contratar e da autonomia da vontade, significa interpretação em favor da parte mais fraca, tecnicamente hipossuficiente.”

O referido acórdão foi objeto de Recurso Especial, sendo que o Egrégio Supremo Tribunal de Justiça, em recente decisão (17/06/2003 - doc. 06), manteve integralmente o acórdão do Tribunal paulista:

“Acórdão RESP 519940 / SP Fonte: DJ Data: 01/09/2003 Pg:00288

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Relator Min. Carlos Alberto Menezes Direito Data da Decisão 17/06/2003 Órgão Julgador: Terceira TurmaEmenta Plano de saúde. Prostatectomia radical. Incontinência urinária. Colocação de prótese: esfíncter urinário artificial.1. Se a prótese, no caso o esfíncter urinário artificial, Decorre de ato cirúrgico coberto pelo plano, sendo conseqüência possível da cirurgia de extirpação radical da próstata, diante de diagnóstico de câncer localizado, não pode valer a cláusula que proíbe a cobertura. Como se sabe, a prostatectomia radical em diagnóstico de câncer localizado tem finalidade curativa e o tratamento da incontinência urinária, que dela pode decorrer, inclui-se no tratamento coberto, porque ligado ao ato cirúrgico principal.

2. Recurso especial conhecido e desprovido.”(grifos da subscritora)

Ressalte-se que decisões no mesmo sentido da supra colacionada são constantes em nossos Tribunais:

“Tribunal de Justiça do Estado do Rio de JaneiroNº do Processo: 2000.001.18601Órgão Julgador: Décima Quinta Câmara Cível Relator: Des. José Pimentel MarquesJulgado em 06/03/2002

Apelação cível. Direitos Civil e Processual Civil. Ação ordinária. Ressarcimento por danos materiais e morais. Plano de saúde. Aplicação do art. 51, IV, CDC. São nulas de pleno direito as disposições contratuais que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade. Constituem cláusulas abusivas, porque notoriamente desfavoráveis à parte mais fraca da relação de consumo, aquelas que impõem limitação temporal a tratamento médico, bem como limitam o fornecimento de prótese ( "stent" ) essencial ao exame de angioplastia. As estipulações contratuais dos planos de saúde não podem ofender o princípio da razoabilidade, e se o fazem, cometem abusividade vedada pelo

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art. 51, IV, CDC. Sentença mantida. Recurso improvido.”(grifos nossos)

3.2- Do Vício de Qualidade do Serviço

Ademais, a cláusula abusiva supra analisada, torna o serviço prestado pela seguradora-ré (no tocante à cobertura da cirurgia de catarata) um serviço com vício de qualidade, cuja descrição vem prevista no art. 20 no seu §2º da lei 8.078/90, in verbis:

“Art. 20. O fornecedor de serviços responde pelos vícios de qualidade que os tornem impróprios ao consumo ou lhes diminuam o valor, assim como por aqueles decorrentes da disparidade com as indicações constantes da oferta ou mensagem publicitária, podendo o consumidor exigir, alternativamente e à sua escolha:(...)§ 2° São impróprios os serviços que se mostrem inadequados para os fins que razoavelmente deles se esperam, bem como aqueles que não atendam as normas regulamentares de prestabilidade.”(grifos da subscritora)

Com relação ao dispositivo legal em comento a doutrina ensina que:

“A responsabilidade pelo fato do produto ou do serviço decorre da exteriorização de um vício de qualidade, vale dizer, de um defeito capaz de frustrar a legítima expectativa do consumidor quanto à sua utilização ou fruição. O art. 20 do Código disciplina a responsabilidade do fornecedor, por vícios de qualidade e de quantidade dos serviços. Os serviços padecem de vício de qualidade quando são impróprios ao consumo, ou seja, quando se mostram inadequados para os fins que deles se esperam ou não atendam às normas regulamentares de prestabilidade (§2º)”3.

Trata-se assim, de serviço imprestável aquele prestado pela co-ré, no que toca à cobertura da cirurgia de catarata, posto que não atende a finalidade que o consumidor objetivou quando da sua contratação.

3 DENARI, Zelmo- Código brasileiro de defesa do Consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto/ Ada Pelegrini Gringover...[et al.] – 7ª ed. – Rio de janeiro: forense Universitária, 2001. Pg. 155. 13

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4- Da Lei 9.961/2002 – Instituidora da Agência Nacional de Saúde Suplementar

Com relação a omissão da Agência Nacional de Saúde Suplementar relatada no capítulo relativos aos fatos, observe-se que a ANS tem como missão institucional a promoção da defesa do interesse público na assistência suplementar à saúde, regulando as operadoras setoriais, inclusive quanto às suas relações com prestadores e consumidores, contribuindo para o desenvolvimento das ações de saúde no País, conforme dispõe o art. 3º da lei 9.961/ 2000, in verbis:

“Art. 3º A ANS terá por finalidade institucional promover a defesa do interesse público na assistência suplementar à saúde, regulando as operadoras setoriais, inclusive quanto às suas relações com prestadores e consumidores, contribuindo para o desenvolvimento das ações de saúde no País.”

Para viabilizar a concretização de tais tarefas, estão entre as competências da ANS, in verbis:

“Art. 4º Compete à ANS:(...)XXIII - fiscalizar as atividades das operadoras de planos privados de assistência à saúde e zelar pelo cumprimento das normas atinentes ao seu funcionamento;(...)XXVI - articular-se com os órgãos de defesa do consumidor visando a eficácia da proteção e defesa do consumidor de serviços privados de assistência à saúde, observado o disposto na Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990;XXXVII - zelar pela qualidade dos serviços de assistência à saúde no âmbito da assistência à saúde suplementar;(...)”

A ANS, tomando ciência da cláusula abusiva estipulada nos contratos firmados pela Seguradora-Ré, ao invés de zelar pela qualidade dos serviços de assistência à saúde, fiscalizando as atividades dos planos privados de assistência à saúde e efetivando a proteção e defesa do consumidor, achou por bem nada fazer.

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Esta omissão da autarquia-ré, além de violar a lei, viola o interesse público, na medida em que a cirurgia de catarata já foi por diversas vezes objeto de campanhas públicas de reabilitação visual, sendo realizados através do Sistema Único de Saúde diversos “mutirões” objetivando diminuir a incidência desta doença na população idosa.

Tendo em vista tais programas de saúde, temos por certo que o interesse público no presente caso se consubstancia na promoção do amplo acesso da população em geral ao procedimento cirúrgico reabilitador. Assim observa-se que autarquia-ré não poderia ter se omitido, posto que tem como finalidade institucional “(...) promover a defesa do interesse público na assistência suplementar à saúde (...)” (art. 3º da lei 9.961/00).

Ademais, veja-se que a norma instituidora da ANS atribui à autarquia-ré a competência necessária para coibir os abusos narrados nesta exordial, nos incisos XV e XXIV do art. 4º da lei 9.961/00, in verbis:

“Art. 4º Compete à ANS:(...)XV - estabelecer critérios de aferição e controle da qualidade dos serviços oferecidos pelas operadoras de planos privados de assistência à saúde, sejam eles próprios, referenciados, contratados ou conveniados;(...)XXIV - exercer o controle e a avaliação dos aspectos concernentes à garantia de acesso, manutenção e qualidade dos serviços prestados, direta ou indiretamente, pelas operadoras de planos privados de assistência à saúde;”

Em face do que foi narrado, justifica-se a inclusão da ANS no pólo passivo da presente demanda, tendo em vista a omissão em sua missão institucional, consistente na atuação necessária a coibir a conduta abusiva da Golden Cross Assistência Internacional de Saúde Ltda. e evitar lesão ao erário-recursos do SUS (conforme previsto no art. 32 da Lei nº 9.656/98).

5- Da lesividade ao Sistema Único de Saúde.

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A seguradora-ré, ao negar aos seus consumidores o fornecimento da lente intra-ocular e a autarquia-ré, ao se omitir de sua tarefa fiscalizadora, acabam por lesionar os recursos já escassos do Sistema Único de Saúde.

Diante da recusa da seguradora em fornecer a prótese, e não tendo numerário para adquiri-la (no mais das vezes em virtude de já estar onerado com o pagamento do prêmio à seguradora), o segurado se socorre dos serviços do SUS para ter sua visão restabelecida.

A lei 9.656/98 determina que caso as operadoras de planos de seguros de saúde utilizem os serviços do SUS para atendimento de seus clientes deverão ressarcir o SUS. O procedimento para este ressarcimento vêm previsto no artigo 32 e §§, in verbis:

“Art. 32. Serão ressarcidos pelas operadoras dos produtos de que tratam o inciso I e o § 1o do art. 1o desta Lei, de acordo com normas a serem definidas pela ANS, os serviços de atendimento à saúde previstos nos respectivos contratos, prestados a seus consumidores e respectivos dependentes, em instituições públicas ou privadas, conveniadas ou contratadas, integrantes do Sistema Único de Saúde - SUS.§ 1o O ressarcimento a que se refere o caput será efetuado pelas operadoras à entidade prestadora de serviços, quando esta possuir personalidade jurídica própria, e ao SUS, mediante tabela de procedimentos a ser aprovada pela ANS.(...)”

A ANS, para cumprimento do disposto no artigo acima citado, edita as Resoluções que versam sobre a Tabela Única Nacional de Equivalência de Procedimentos (TUNEP), com a finalidade de fixar valores para fins de ressarcimento dos atendimentos médicos prestados aos beneficiários de planos privados de assistência à saúde, por instituições públicas ou privadas, integrantes do Sistema Único de Saúde – SUS (doc. 07)

No caso em tela, existe previsão de ressarcimento da facectomia com implante da lente intra-ocular (código 36019054), no valor de R$ 1.176,10 (mil, cento e setenta e seis reais e dez centavos) e da facectomia sem implante de lente intra-ocular (código 36004049), no valor de R$846,07 (oitocentos e quarenta e seis reais e sete centavos), bem como de lentes para facectomia, que variam de R$ 50,00 (cinqüenta reais) a R$ 120,00 (cento e vinte reais).

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Assim, enquanto o SUS é ressarcido em 1.176,10, quando existe o implante da lente, somente é ressarcido pela seguradora em R$ 846,07, quando ocorre apenas a cirurgia.

Porém, como a Seguradora não assume na relação contratual com o segurado o custo pela prótese, não há de se falar em reembolso da mesma para o SUS, já que o contrato, de modo abusivo, a desobriga da cobertura.

A ANS omite-se quando aceita que a cláusula abusiva, causadora de vício do serviço, possa ser oponível à Resolução da ANS que dispõe sobre a TUNEP e, consequentemente, ao SUS.

Tem-se, assim, uma lesividade com aval da Autarquia fiscalizadora, com responsabilidade legal de controlar o acesso e a qualidade dos serviços prestados pelas operadoras de planos privados de assistência à saúde (art. 4º, Lei 9.961/00).

Em face deste enriquecimento sem causa da seguradora-ré às custas do SUS impera a atuação do Judiciário no sentido de declarar abusiva a cláusula que exclui a cobertura da lente intra-ocular para a proteção não apenas dos consumidores da seguradora-ré, mas dos usuários do SUS em geral.

Por esta razão, faz-se necessária a presença da união na lide, na qualidade de assistente do Ministério Público Federal, em face do que permite o art. 5º, § 2º da lei 7.345/85, in verbis:

“Art. 5º A ação principal e a cautelar poderão ser propostas pelo Ministério Público, pela União, pelos Estados e Municípios. Poderão também ser propostas por autarquia, empresa pública, fundação, sociedade de economia mista ou por associação que:(...)§ 2º Fica facultado ao Poder Público e a outras associações legitimadas nos termos deste artigo habilitar-se como litisconsortes de qualquer das partes.”

6- Do Que Determina a Lei nº 9.656, de 03 de Junho de 1998

Inicialmente, é mister tecer algumas considerações acerca da 17

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irretroatividade deste instrumento normativo. Conforme decidido em caráter liminar pelo STF, em Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADIN 1931-8, a Lei 9.656/98 não se aplica aos contratos firmados anteriormente à sua edição (doc. 08).

Ressaltamos, contudo, que a referida irretroatividade em nada afeta a presente ação. Conforme os argumentos já mencionados, a cláusula abusiva estipulada pela co-ré em seus contratos de adesão viola preceitos básicos do Código de Defesa do Consumidor e do Estatuto do Idoso e em decorrência deste fato merecem a intervenção do Judiciário.

Decerto o STF decidiu pela irretroatividade da Lei 9.656/98 para assegurar a intangibilidade do direito adquirido e do ato juridicamente perfeito, não para proteger cláusula flagrantemente abusiva como a questionada na presente ação.

Tanto é assim que, mesmo antes da edição da lei 9.656/98, o Poder Judiciário corrigia os abusos praticados pelas operadoras de planos e seguros de saúde, utilizando as disposições contidas no ordenamento jurídico pátrio, em especial as determinações estipuladas na Constituição Federal, art. 5, XXXII c/c Art. 170, V, in verbis

“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:(...)XXXII - o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor; “

“Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:(...)V - defesa do consumidor;“

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Acerca do tema, Cláudia Lima Marques4, desenvolve três premissas básicas:

“a) Que em face aos mandamentos constitucionais de proteção do consumidor, a atuação do Estado brasileiro na proteção do consumidor encontra fundamento constitucional (para seu poder fiscalizador) desde 05.10.1988;

b) Que não há direito adquirido ou ato jurídico perfeito frente ao controle administrativo a favor do consumidor, único sujeito de direitos envolvidos nestas relações privadas que possui direito fundamental à Proteção do Estado (art. 5, XXXII CF/88), que o controle, fiscalização e regulamentação dos serviços de assistência à saúde também é mandamento constitucional, logo, este controle será exercido sempre ( e diariamente) pelo órgão no momento competente, tanto a SUSEP, quanto a CNPS, o CONSU, a Câmara de Saúde Suplementar, o MS ou, como no momento, pela ANS, criada em janeiro de 2000, pela Lei 9.961, de 28 de janeiro de 2000;

c) Que a liberdade de iniciativa, também no setor da assistência e seguros de saúde, estava limitada pelo mandamento constitucional de proteção do consumidor desde 1988 (art. 5,XXXII c/c 170, V CF/88), eis porque me parece que o controle das atividades das empresas médicas, de medicina organizada e finalidade de lucro nas suas relações com os consumidores não é a entrada em vigor do CDC, em março de 1991, ou da Lei 9.9656/98, em 1999; parece-me que o marco do controle deve ser a data de promulgação da Constituição Federal de 1988”

Se aceitas estas conclusões, a partir de 05.10.1988, face a este mandamento de proteção do Estado dos interesses dos consumidores, os contratos de seguro-saúde ou de planos de saúde (antigos) poderiam ser controlados pelos órgãos competentes (ANS, MP, PROCON etc.), no que se refere à matéria de proteção do consumidor. Isto sem que haja

4 MARQUES, Cláudia Lima. “Análise da relação da legislação de Defesa do Consumidor e da legislação especial sobre planos privados de assistência à saúde”. In: Curso de Especialização à distância em Direito Sanitário para Membros do Ministério Público e da Magistratura Federal. Brasília: UnB. Pg. 319/320 19

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MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERALretroatividade da lei 9.656/98 ou do CDC, porque o controle terá como base apenas o mandamento constitucional e as regras de abuso de direito do Código Civil.” (grifos nossos)

Feitas as considerações necessárias, passemos a analisar a lei 9.656/98. Nesta lei temos a instituição de um “plano referência” que deve ser obrigatoriamente disponibilizado aos consumidores, vedada a exclusão de próteses ligadas ao ato cirúrgico. Esta interpretação decorre do artigo 10, inciso VII da Lei 9.656/98, in verbis:

“Art. 10. É instituído o plano-referência de assistência à saúde, com cobertura assistencial médico-ambulatorial e hospitalar, compreendendo partos e tratamentos, realizados exclusivamente no Brasil, com padrão de enfermaria, centro de terapia intensiva, ou similar, quando necessária a internação hospitalar, das doenças listadas na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde, da Organização Mundial de Saúde, respeitadas as exigências mínimas estabelecidas no art. 12 desta Lei, exceto:(...)VII - fornecimento de próteses, órteses e seus acessórios não ligados ao ato cirúrgico;”

A lei 9.656/98, quando permite a exclusão de prótese não ligada ao ato cirúrgico, por decorrência lógica, veda que o plano referência exclua a cobertura de prótese vinculada ao ato cirúrgico.

Exemplificando, seria prótese não ligado ao ato cirúrgico a perna mecânica que o paciente adquiriria após a cirurgia de amputação, pois a cirurgia é perfeitamente possível de ser feita sem a aquisição prévia da prótese.

Já no caso da lente intra-ocular, como vimos que esta é absolutamente necessária à cirurgia de catarata, é assim considerada prótese vinculada ao ato cirúrgico e não pode ser objeto de cláusula excludente conforme determina a referida lei.

Nos contratos firmados antes da edição da lei 9.656/98, ato normativo que veda a exclusão da cobertura de próteses vinculadas ao ato cirúrgico, a seguradora-ré Golden Cross, conforme resposta ao ofício já mencionado, só cobre a cirurgia de catarata, havendo exclusão contratual para

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MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERALpróteses e implantes. A empresa afirma que nos contratos comercializados antes da mencionada lei não havia a obrigatoriedade legal de cobrir implantes e próteses.

No entanto, conforme as razões supramencionadas, todas as empresas operadoras de planos de saúde a partir da entrada em vigor da Lei 9.656/98 deveriam adaptar os contratos celebrados antes de sua vigência, uma vez que a exclusão contratual de próteses e implantes inerentes ao ato cirúrgico consiste em grave violação aos direitos dos segurados.

(...)Ademais, há de se registrar, inclusive, que a Agência Nacional de Saúde – órgão regulamentador da atividade exercida pelas operadoras de plano de saúde, já se manifestou, atribuindo validade às contratações firmadas anteriormente a Lei 9656/98, que prevejam a inexistência de obrigação da seguradora no custeio de próteses.”(grifos da subscritora - doc.09)

Do teor das alegações supra transcritas observa-se que a seguradora-ré estipula cláusula que exclui o fornecimento da lente intra-ocular, merecendo intervenção do Poder Judiciário, pois como a seguradora-ré contratualmente se obrigou a cobrir o evento cirúrgico, deve arcar também com todas as despesas necessárias à realização do procedimento médico, sob pena de violação dos direitos de seus segurados.

III - DA NECESSIDADE DE CONCESSÃO DA ANTECIPAÇÃO DE TUTELA

1. Da vulnerabilidade do consumidor

A vulnerabilidade é característica de todos os consumidores, indistintamente (art. 4º, I, CDC). Neste caso, é colocada em relevo em face do bem jurídico violado, qual seja, o direito à saúde. Vale destacar, a este respeito, as palavras de ANTÕNIO HERMAN DE VASCONCELLOS E BENJAMIN5:

“A vulnerabilidade é um traço universal de todos os consumidores, ricos ou pobres, educados ou ignorantes, crédulos ou espertos. Já a hipossuficiência é marca pessoal, limitada a

5 Código Brasileiro de Defesa do Consumidor Comentado pelos Autores do Anteprojeto, 7ª ed., Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2001, p. 325. 21

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MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERALalguns – até mesmo a uma coletividade – mas nunca a todos os consumidores. (...) A vulnerabilidade do consumidor justifica a existência do Código. A hipossuficiência, por seu turno, legitima alguns tratamentos diferenciados no interior do próprio Código, como, por exemplo, a previsão de inversão do ônus da prova (art. 6º, VIII)”

A vulnerabilidade – diferentemente da hipossuficiência – é conceito relacional. O consumidor é presumido vulnerável pela lei porque o seu poder econômico em comparação com o poder econômico da empresa é de tal modo ínfimo que, se o legislador não estabelecesse como regra que aquele é a parte mais fraca, ter-se-ia como resultado um desequilíbrio permanente no tratamento dos sujeitos da relação de consumo. Por conseqüência, os recorrentes abusos praticados pelos fornecedores de produtos e serviços – tais como os narrados na petição inicial da presente demanda – não encontrariam mecanismo apto a corrigi-los, já que os consumidores nunca se encontrariam em paridade de condições em relação às empresas das quais adquirem produtos e serviços.

2. Da presença dos requisitos para concessão da antecipação de tutela.

Justifica-se o pedido de antecipação dos efeitos da tutela inicial quando existe probabilidade de que as alegações feitas pelo autor sejam verdadeiras – o que resulta da conjugação dos requisitos prova inequívoca e verossimilhança da alegação, presentes no caput do artigo 273, do Código de Processo Civil. Neste sentido são os ensinamentos de CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO6:

“ O art. 273 condiciona a antecipação da tutela à existência de prova inequívoca suficiente para que o juiz se convença da verossimilhança da alegação a dar peso ao sentimento literal do texto. Seria difícil interpretá-lo satisfatoriamente porque prova inequívoca é prova tão robusta que não permite equívocos ou dúvidas, infundindo no espírito do Juiz o sentimento de certeza e não mera verossimilhança. Convencer-se da verossimilhança, ao contrário, não poderia significar mais do que imbuir-se do sentimento de que a realidade fática pode ser como descreve o autor. Aproximadas as duas locuções formalmente contraditórias contidas no artigo 273, do Código de Processo Civil (prova

6 A reforma do Código de Processo Civil, 2ª ed., São Paulo, Malheiros Editores, 1995. 22

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MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERALinequívoca e convencer-se da verossimilhança), chega-se ao conceito de probabilidade, portador de maior segurança do que a mera verossimilhança” (destaques nossos)

A plausibilidade do alegado é mais do que contundente em face de tudo quanto foi exposto e provado nesta exordial, figurando clara a responsabilidade da seguradora ré que, ao estipular em seus contratos cláusulas abusivas, compromete o equilíbrio dos contratos de seguro-saúde, especialmente quando o serviço é prestado para pessoas idosas.

Destes fatos decorre a verossimilhança da alegação do MPF de que as co-rés descumprem preceitos legais pertencentes tanto ao Código de Defesa do Consumidor quanto à Lei nº. 10.741/2003.

Além do requisito acima demonstrado, é necessário evidenciar – como fundamento do pedido da antecipação de tutela – a existência de fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação.

Por meio das cláusulas contratuais acima mencionadas, a seguradora-ré exime-se de cumprir com o que se obrigou contratualmente com o consumidor, que possuía expectativas legítimas de ser plenamente atendido. Há risco de dano irreparável a todos os consumidores que, pleiteando a justa cobertura da aquisição da lente intra-ocular, diante da recusa da seguradora-ré permanecem em situação de deficiência visual.

Ante o exposto, o Ministério Público Federal requer seja antecipada a tutela para que:

1- a Golden Cross Assistência Internacional de Saúde Ltda.:

a) elabore aditivo de apólice de seguro e encaminhe a todos os seus segurados com modificação que preveja a cobertura da lente intra-ocular, independentemente da data em que os contratos foram firmados;

b) notifique seus consumidores, no prazo de 15 dias, por carta e também por meio de comunicação de grande alcance que os mesmos serão reembolsados pela seguradora-ré do valor da lente intra-ocular, caso tenham realizado a cirurgia nos últimos 10 (dez) anos, sendo

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MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERALnecessário a comprovação de que a lente foi adquirida por recursos particulares.

c) seja condenada em multa diária (astreintes), no valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais), a partir da ocorrência do desatendimento do item 1, “a” e/ou item 1, “b”, a ser revertida para o fundo previsto no artigo 13 da Lei nº 7.347/85.

2- Ainda em sede de tutela antecipada, requer que a Agência Nacional de Saúde Complementar:

a) identifique e apresente em juízo, no prazo de 30 dias, todos os ressarcimentos feitos pela Golden Cross junto ao SUS em relação à cirurgia de facectomia (catarata), com ou sem implante da lente intra-ocular;

b) apresente em juízo, no prazo de 45 dias, um plano de ação (com cronograma de execução) que coíba práticas abusivas das seguradoras, em relação à cobertura de próteses ligadas a atos cirúrgicos.

c) seja condenada em multa diária (astreintes), no valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais), a partir da ocorrência do desatendimento do item 2, “a” e/ou item 2, “b”, a ser revertida para o fundo previsto no artigo 13 da Lei nº 7.347/85;

IV- DO PEDIDO

Ante o exposto, requer seja julgada a presente ação civil pública procedente, com a confirmação dos pedidos feitos em sede de tutela antecipada, bem como:

1- a declaração de nulidade de cláusula contratual que afasta a cobertura de próteses ligadas ao ato cirúrgico, no que tange ao termo de aditivo

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requerido no item 1-a do pedido de antecipação de tutela;

2- a condenação das rés no pagamento de danos morais coletivos no valor de R$ 1.000.000,00 (um milhão de reais), sendo R$ 500.000,00 (quinhentos mil reais) devidos por cada ré, a serem encaminhados ao fundo de reconstituição dos interesses supraindividuais lesados, criado pelo artigo 13, da Lei nº 7.437/85.

V – DOS REQUERIMENTOS

Por fim, requer-se:

a) a citação pessoal das rés, a fim de, querendo, contestar o presente feito, sob pena de sofrer os efeitos da revelia;

b) seja a União intimada para tomar conhecimento do presente feito e eventualmente formular, consoante o disposto nos artigos 50 e seguintes, do Código de Processo Civil, pedido de intervenção no processo como assistente do Ministério Público Federal;

c) a produção de todas as provas admitidas em direito, sem exceção, em especial prova pericial, oral e documental, incluindo, nesta, cópia dos autos da representação n° 1.34.001.002149/2001-79, em tramitação no MPF, que embasa a presente ação;

d) a dispensa do pagamento de custas, emoluentos e outros encargos, conforme o artigo 18 da Lei 7347/85;

e) a condenação dos réus ao pagamento de honorários periciais e despesas processuais decorrentes da sucumbência;

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MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERALf) aplicação dos benefícios previstos no artigo 172, §

2º, do Código de Processo Civil;

Dá-se à causa o valor de R$ 1.000.000,00 para fins de alçada.

Termos em que,Pede deferimento.

São Paulo, 19 de novembro de 2004.

INÊS VIRGÍNIA P. SOARES RICARDO NAKAHIRA Procuradora da República Procurador Da República

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