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4ª Promotoria de Justiça de Aparecida de Goiânia EXCELENTÍSSIMO SENHOR JUIZ DE DIREITO DA VARA DAS FAZENDAS PÚBLICAS DA COMARCA DE APARECIDA DE GOIÂNIA/GOIÁS O MINISTÉRIO PÚBLICO ESTADUAL, através da 4ª Promotoria de Justiça de Aparecida de Goiânia, pelo Promotor de Justiça infra assinado, vem perante Vossa Excelência, propor AÇÃO CIVIL PÚBLICA em face de: 1) ESTADO DE GOIÁS; 2) MUNICÍPIO DE APARECIDA DE GOIÂNIA; 3) JOSÉ ANTÔNIO ALVES LINO E SILVA 4) MARIA EDNÉIA LINO E SILVA CUNHA 5) MARIA ADÉLIA LINO E SILVA RESENDE 6) JOSÉ AGENOR LINO E SILVA JÚNIOR 7) LUIZ ANTÔNIO ALVES LINO E SILVA 8) ANDRÉ LUIZ ALVES LINO E SILVA pelas razões de fato e de direito a seguir aduzidas: 1. BREVE RELATÓRIO: 1.1. INTRODUÇÃO: Foram instaurados procedimentos administrativos, na 4ª Promotoria de Aparecida de Goiânia – que tem atribuição na defesa da ordem urbanística – para apurar loteamentos clandestinos e irregulares em Aparecida de Goiânia, dentre eles, o Setor Serra das Brisas (irregular) e Belo Horizonte (clandestino). Na doutrina, há uma diferenciação acerca do que vem a ser loteamento clandestino e irregular. O loteamento clandestino é aquele em que nenhum ato foi praticado junto ao Município tendente à regularização. Esse é constituído, portanto, ao arrepio completo da lei. Já o irregular, é realizado em desacordo com o ato de licença, ou ainda, sem execução de obras de infra-estrutura. 1/31

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4ª Promotoria de Justiça de Aparecida de Goiânia

EXCELENTÍSSIMO SENHOR JUIZ DE DIREITO DA VARA DAS FAZENDAS PÚBLICAS DA COMARCA DE APARECIDA DE GOIÂNIA/GOIÁS

O MINISTÉRIO PÚBLICO ESTADUAL, através da 4ª Promotoria de Justiça de Aparecida de Goiânia, pelo Promotor de Justiça infra assinado, vem perante Vossa Excelência, propor AÇÃO CIVIL PÚBLICA em face de:

1) ESTADO DE GOIÁS;2) MUNICÍPIO DE APARECIDA DE GOIÂNIA;3) JOSÉ ANTÔNIO ALVES LINO E SILVA 4) MARIA EDNÉIA LINO E SILVA CUNHA 5) MARIA ADÉLIA LINO E SILVA RESENDE 6) JOSÉ AGENOR LINO E SILVA JÚNIOR 7) LUIZ ANTÔNIO ALVES LINO E SILVA 8) ANDRÉ LUIZ ALVES LINO E SILVA

pelas razões de fato e de direito a seguir aduzidas:

1. BREVE RELATÓRIO:

1.1. INTRODUÇÃO:

Foram instaurados procedimentos administrativos, na 4ª Promotoria de Aparecida de Goiânia – que tem atribuição na defesa da ordem urbanística – para apurar loteamentos clandestinos e irregulares em Aparecida de Goiânia, dentre eles, o Setor Serra das Brisas (irregular) e Belo Horizonte (clandestino).

Na doutrina, há uma diferenciação acerca do que vem a ser loteamento clandestino e irregular. O loteamento clandestino é aquele em que nenhum ato foi praticado junto ao Município tendente à regularização. Esse é constituído, portanto, ao arrepio completo da lei. Já o irregular, é realizado em desacordo com o ato de licença, ou ainda, sem execução de obras de infra-estrutura.

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O ponto comum entre os loteamentos expostos na presente ação, Serra das Brisas e Belo Horizonte, é que esses estão situados em imóveis contíguos e de propriedade dos réus enumerados nesta exordial (excetuados os poderes públicos estadual e municipal). No entanto a dominialidade dos réus retromencionados, foi obtida recentemente, em virtude de demandas judiciais. Por ocasião do início da ocupação desses loteamentos, terceiros eram proprietários dos imóveis, onde esses foram surgindo, motivo pelo qual convém fazer um breve histórico sobre o desenrolar de cada um deles.

Atualmente, tratam-se de loteamentos bastante povoados (foto de satélite a seguir), sendo que os seus moradores possuem justo título e pagam seus impostos para o Município.

Fonte: Programa Google Earth, imagens de satélite de 2006.

1.2. HISTÓRICO DOS LOTEAMENTOS:

1.2.1. SERRA DAS BRISAS:

A sua ocupação iniciou-se no ano de 1992, tendo sido o empreendedor a Construtora Gutemberg Caetano Ltda. A venda dos lotes realizou-se através da imobiliária Norte-Sul.

Apesar da informação desse loteamento ser clandestino, o loteamento enquadraria na denominação de irregular, pois a Construtora Gutemberg Caetano Ltda., mesmo não sendo a

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proprietária da área, iniciou alguns atos tendentes à regularização, apresentando, no ano de 1990, um projeto na Secretaria de Planejamento Municipal, em duas etapas. Esse projeto não foi aprovado pela Secretaria de Planejamento, mas houve a edição de um Decreto n. 66, de 22 de janeiro de 1991, aprovando o loteamento.

A Construtora, ao seu alvedrio, desistiu desse projeto e deu entrada a um novo projeto na Secretaria de Planejamento, desta feita, em etapa única. Novamente esse órgão público não se manifestou acerca da aprovação, mas sim o Chefe do Poder Executivo, de forma ditatorial, editou o Decreto n. 159, de 24 de agosto de 1992, aprovando o loteamento e revogando o decreto anterior.

Desde então, nesse processo houve manifestação da EMCIDEC – Empresa Estadual de Ciência, Tecnologia e Desenvolvimento Econômico Social, Diretoria de Articulação do Desenvolvimento Municipal – DADM, em 1º de outubro de 1992, dando anuência ao loteamento e foi expedida uma licença de instalação do loteamento pela FEMAGO (atualmente Secretaria Estadual de Meio Ambiente e Recursos Hídricos – SEMARH). Houve ainda a expedição de um alvará de licença à Construtora, pelo Município, para venda do loteamento Serra das Brisas, isto em 12 de fevereiro de 1993. Esse alvará só vem a confirmar a situação irregular do loteamento, uma vez que é procedimento totalmente estranho na aprovação de loteamentos urbanos. A manifestação do Estado era desnecessária nesse processo de aprovação, em razão da legislação pertinente.

Isso tudo aconteceu, sem o documento de aprovação da Secretaria de Planejamento Municipal, órgão competente para tal.

Como não houve aprovação, nem registro no Cartório Imobiliário, o Poder Executivo, pela terceira vez e de forma ditatorial, expediu o Decreto n. 324, de 21 de maio de 1998. Dessa vez, não se pode dizer que agiu sozinho, pois o Legislativo Municipal expediu uma Lei de n. 1.744, de 18 de maio de 1998, que autorizava o Executivo a aprovar o Setor Serra das Brisas. Essa lei pretendeu suprimir o processo de aprovação da Secretaria Municipal de Planejamento.

Em que pese todos esses “desarranjos” ou “arranjos”, no âmbito do Executivo e Legislativo Municipal para a aprovação do Loteamento Serra das Brisas, problema maior estava por vir, pois a questão da dominialidade do imóvel, que estava sendo ocupado, estava sendo discutido nas vias judiciais.

O Sr. José Agenor Lino e Silva, falecido em 1990, e seus filhos, ao proporem Ação de

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Nulidade de compra e venda cumulada com transcrição de registro imobiliário, em 30 de dezembro de 1981, na Comarca de Hidrolândia, relatam que eram proprietários de duas glebas de terras limítrofes, havidas em herança, pelo falecimento da primeira esposa, do Sr. José Agenor, Sra. Adélia Alves Lino e Silva.

As glebas de propriedade estavam assim discriminadas:

1ª) Registrada no Cartório de Registro de Imóveis, de Aparecida de Goiânia, sob o número de matrícula 535, situada na Fazenda Santo Antônio, contendo duas áreas:

a) 13 alqueires e oito litros;b) 13 alqueires e 16 litros.2ª) Registrada também no Cartório de Registro de Imóveis, de Aparecida de Goiânia,

sob o número de matrícula 536, situada na Fazenda Dourados ou Saco Feio dos Dourados, com área aproximada de 12 alqueires.

No entanto, o Instituto de Desenvolvimento Agrário de Goiás – IDAGO, réu nessa ação, teria arrecadado-as, como se fosse de domínio do Estado, com a denominação fictícia de Fazenda Olho d’Água, com área de 109,5099 hectares, sob a matrícula única de n. 69.690, para em seguida expedir título de domínio em condomínio em favor dos Srs. Édison Vieira Lopes, José Miguel dos Santos, Maria Vanda Ferreira de Sousa, Percival Ferreira Macedo, Hélio Lopes Vieira, Durval José Silva, Sebastião Lopes Vieira e Lincoln de Araújo.

Tal equívoco adveio, pois a região era constituída de terras devolutas anteriormente. Para solucionar esse problema o Juiz de Direito de Hidrolândia determinou uma perícia, que confirmou que o autor era sem dúvida proprietário das áreas em litígio.

A referida ação foi julgada procedente e confirmada pelo Tribunal de Justiça em acórdão de 1º de abril de 1997, declarando nulos os títulos emitidos pelo IDAGO.

Durante essa disputa judicial, que durou de 1981 a 1997, conforme dito anteriormente, três loteamentos foram formados por sobre esses imóveis: SERRA DAS BRISAS (irregular), BELO HORIZONTE (clandestino) e Residencial Araguaia.

Diante da confirmação do Tribunal de Justiça de Goiás, da dominialidade da área, onde se implantou o Loteamento SERRA DAS BRISAS, além de outras áreas no município, os sucessores do Sr. José Agenor Lino propuseram Ação de Reintegração de Posse – autos de n. 200201400833, na data de 3/9/2002, nessa Comarca, em desfavor da Construtora Gutemberg Caetano Ltda., cujo título de domínio se originava na matrícula n. 69.690, do

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IDAGO, declarado nulo.

Não foram incluídos no pólo passivo dessa ação, os ocupantes da área. Não se considerou que havia um fato social consumado nessas terras, onde inúmeras pessoas tinham adquiridos seus “lotes” e ali estavam morando de boa-fé e justo título, inclusive pagando IPTU, para o Município.

A área que se pretendeu a reintegração de posse, cingiu-se das duas glebas limítrofes, objeto da Ação de Nulidade, movida em Hidrolândia, retro mencionada.

Concomitantemente, houve também o ajuizamento de Ação Cautelar de Seqüestro, pelos mesmos autores da ação de Reintegração, em desfavor da Construtora Gutemberg, pois essa teria adquirido as glebas matriculadas sob os números 81.252 (área de 26 hectares e 62 ares), 121.265 (área de 5,62 hectares), 121.353 (área de 2,4 hectares) e 122.189 (área de 9,68 hectares), no total de 44,34 hectares, originárias da gleba maior de matrícula n. 69.690, pertencente ao IDAGO.

O Juiz da 1ª Vara Cível de Aparecida de Goiânia deu provimento a ambas as ações (conexão) em 2004, que foi confirmada pelo Tribunal de Justiça do Estado de Goiás.

Incontinenti, os sucessores do Sr. José Agenor Lino, réus na presente ação, propuseram Execução de Carta de Sentença, com decisão judicial proferida em 03 de abril de 2006, determinando a desocupação de todas as pessoas que moram no SERRA DAS BRISAS, embora não figurem no pólo passivo da ação de Reintegração de Posse.

No processamento da mencionada execução várias foram as decisões que determinaram expedição de mandado de reintegração de posse das áreas onde hoje estão instalados os loteamentos Serra das Brisas e Belo Horizonte aos sucessores do Sr. José Agenor Lino e Silva, inclusive, com ordem de imediata desocupação, que poderá ser levada a efeito com auxílio de força policial, se necessário.

Há de se considerar que tais decisões não atingem a executada Construtora Gutemberg, mas sim as mais de 800 (oitocentas) famílias, possuidoras diretas há mais de 10 (dez) anos das glebas faticamente parceladas em lotes urbanos.

No intuito de finalizar esse histórico, não se pode deixar de mencionar outra ação proposta na Comarca de Hidrolândia envolvendo terras do Sr. José Agenor Lino e Silva. Trata-se de uma Ação de Divisão da Fazenda Santo Antônio, proposta em 07/08/86, situada

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em Aparecida de Goiânia, com área total 51 alqueires e 46 litros. A parte autora era Maria Espíndola Pereira e outros, sendo réus o Sr. José Agenor Lino e Silva e outros. Os autores foram vencedores em primeira e segunda instância. Em 29 de abril de 1991, foi feita a divisão pelos agrimensores, ficando dispostos os quinhões da seguinte maneira:

1) quinhão 01 – Maria Espíndola Pereira – 35 hectares, 99 ares e 75 centiares;2) quinhão 02 – Antônio Espíndola Cardoso e outros – 03 hectares, 27 ares e 25

centiares;3) quinhão 03 – Luiz Antônio Alves Lino e Silva e outros – 91 hectares, 96 ares (duas

glebas), sob a matrícula n. 127.276 (matrícula anterior n. 535);4) quinhão 04 – espólio de José Agenor Lino e Silva (falecido em 25 de julho de 1990)

– 86 hectares, 52 ares e 50 centiares, sob a matrícula n. 127.277 (matrícula anterior n. 536).

1.2.2. SETOR BELO HORIZONTE:

Aproveitando o histórico anterior em que foram mencionadas as diversas demandas judiciais envolvendo o terreno onde se instalou o Setor Belo Horizonte, inclusive, valendo-me da foto de satélite reproduzida acima, constata-se que esse loteamento surgiu por sobre imóvel de domínio dos réus enumerados (excetuados poderes públicos estadual e municipal). Em caráter informativo, sem avaliação de perícia técnica, pode haver trechos do loteamento Belo Horizonte que estejam sobre imóvel da Família Espíndola.

Nunca houve nenhum ato tendente à regularização desse loteamento. As vendas dos lotes clandestinos foram feitas por Narciso Peixoto Empreendimentos, tendo a ocupação iniciado em 1990. A demarcação e abertura de ruas ocorreram entre 1988 e 1989. Todos os lotes já foram vendidos e quitados.

Não há nenhuma ação de Reintegração de Posse, nem de Seqüestro, por parte dos Sucessores do Sr. José Agenor de Lino e Silva em relação aos ocupantes do Setor Belo Horizonte.

1.3. OMISSÃO DO PODER PÚBLICO MUNICIPAL:

As ocupações dos loteamentos em comento aconteceram ao arrepio da lei, lesando direitos de inúmeros cidadãos e o Poder Público Municipal assistiu a tudo, como se estivesse na platéia. Não tomou atitudes repressivas, fiscalizadoras ou de controle, para evitar as ocupações clandestinas e nem obrigou o loteador a regularizar os loteamentos irregulares. Houve uma tolerância criminosa e contrária ao disposto na Constituição Federal, na sua obrigação de ordenar os espaços urbanos.

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Tudo foi feito à luz do dia e de modo ostensivo. Os loteadores e grileiros transmitiram aos compradores – pessoas pobres, de escassa instrução e carentes de moradia – uma aparência de licitude, levando-os a crer que a ocupação do solo, em franco desenvolvimento, era permitida. A OMISSÃO do Município propiciou a implantação dos loteamentos clandestinos e irregulares em Aparecida de Goiânia.

Mesmo depois de ocupados esses loteamentos, o ente público municipal não tomou atitudes para a regularização do loteamento ou para a contenção da ocupação. Deixou a situação, como ela permanece atualmente, inteiramente à margem da lei. Nem mesmo a notificação do loteador foi procedida. Era preciso velar para que a ordem administrativa tivesse efetivo cumprimento, o que, na espécie, não aconteceu. Daí a necessidade da tutela jurisdicional em relação aos pedidos que em face da municipalidade serão formulados.

1.4. DA CONDUTA ILEGAL DO PODER PÚBLICO ESTADUAL:

O antigo IDAGO, representando o Estado de Goiás, declarou indevidamente área particular como se pública fosse, arrecadando-as e fomentando o Cartório de Registro de Imóveis local a abrir matrícula para a gleba (de n. 69.690), o que possibilitou a transmissão do imóvel a terceiros.

Patente está a má-fé do Estado, através do IDAGO, que se locupletou com a venda de imóvel do qual não era dono, colaborando – ante a morosidade com que se obteve provimento judicial para anulação do registro duplicado – com a instalação dos loteamentos em questão.

Sua responsabilidade resta clara quando vislumbramos a sequência de fatos que sobrevieram com a criação de uma “nova” matrícula por sobre “terras devolutas”, uma vez que mais de 800 (oitocentas) famílias adquiriram de boa-fé terrenos oriundos dos parcelamentos.

1.5. DAS TENTATIVAS DE SOLUÇÃO CONSENSUAL:

Após a propositura pela família Lino e Silva de ação para cumprimento de sentença que concede reintegração na posse das glebas aos mesmos, várias foram as decisões judiciais que ordenaram a desocupação, a qualquer custo, da área em questão, o que incluiria a retirada de todos os moradores que ali se instalaram sob o manto da boa-fé e do justo título – uma vez que adquiriram os lotes por contrato particular e com pagamento em parceladas, na maioria dos casos, porém, na seqüência dominial da matrícula que atualmente se encontra cancelada.

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Desde as primeiras decisões na ação suso mencionada, vem o Ministério Público do Estado de Goiás, através desta 4ª Promotoria de Justiça – posteriormente com o auxílio dos seguintes Centros de Apoio Operacional (CAO): Meio Ambiente; Defesa do Consumidor; Criminal e do Controle Externo da Atividade Policial; e Infância e Juventude – buscando soluções amigáveis para manutenção das mais de 800 (oitocentas) famílias que hoje ocupam os loteamentos Serra das Brisas e Belo Horizonte, isto de boa-fé, seja fomentando negociações entre a família Lino e Silva e os poderes públicos Estadual e Municipal, seja pela discussão interna no órgão quanto as soluções jurídicas cabíveis ao caso.

Por vários momentos chegou-se muito próximo a um acordo que viabilizasse a indenização dos proprietários reintegrados na posse e a não-desocupação da área em contra-partida. Em uma primeira fase, com muitas dificuldades, superaram-se impasses técnicos que inviabilizavam o acordo. Já em um segundo momento, o ponto nevrálgico – sobre o qual até o presente momento não se tem espectativa de acordo – passou a ser o valor e a forma de pagamento da indenização.

Em uma tentativa de solucionar o impasse chegou-se a entabular um possível acordo sob a forma de uma desapropriação “negociada”, onde Estado e Município indenizariam em partes iguais (50% + 50%) os proprietários das glebas, porém, com flexibilização na forma de pagamento para ambos, assim buscando-se suavizar o impacto financeiro em suas contas públicas.

O que os membros do Ministério Público Estadual – inclusive o próprio Procurador Geral de Justiça, Dr. Eduardo Abdon Moura, que passou a integrar a mesa de discussões – passaram a testemunhar a partir de então foi uma escalada vertiginosa por parte da família Lino e Silva quanto a quantia pretendida, a título de indenização, e a manutenção da proposta apresentada pelo Estado e Município em valor aquém e com pagamento parcelado em prazo não superior a 36 (trinta e seis) meses.

Tal impasse estabelecido, que consideramos absurdo, perdura até o presente momento, mantendo, por conseqüência, a situação precária em que permanecem cerca de 4.000 (quatro mil) pessoas que ergueram suas casas nos loteamentos Serra das Brisas e Belo Horizonte, até agora mantidas na posse por força de ordem do Tribunal de Justiça em sede de recurso, e isto por tempo indeterminado, ou melhor, pelo prazo que durar o trâmite regular de Embargos de Terceiros (associações de moradores de ambos os loteamentos) em que o d. Juiz Singular, titular da 1ª Vara Cível desta Comarca, exerce a presidência.

Portanto, diante desta situação delicada e, ao mesmo tempo, potencialmente

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calamitosa, não se vislumbra melhor solução senão a que se proporá a seguir.

2. DO DIREITO:

2.1. PRELIMINARMENTE:

2.1.1. DA LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO PARA A PROPOSITURA DA AÇÃO:

A Constituição Federal de 1988 alçou à condição de atividade institucional do Ministério Público a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos, através da propositura da ação civil pública (art. 129, III, da CF).

No plano infraconstitucional, o regime jurídico do processo coletivo brasileiro é formado, de um modo geral, pela Lei da Ação Civil Pública – Lei 7.347, de 24 de junho de 1985 (LACP) -, e pelo sistema processual do Código de Defesa do Consumidor – Título III da Lei 8.078, de 11 de setembro de 1990 (CDC). As duas lides interagem “– uma remetendo a outra nos aspectos processuais – para formar o que podemos chamar de base fundamental do processo coletivo no Brasil”1 (art. 90 do CDC e art. 21 da Lei 7.347/85 – LACP).

Além de apontá-los e defini-los, o CDC aumentou a esfera de abrangência do diploma anterior (Lei 7.347/85 - LACP), para a defesa de todos os direitos ou interesses difusos e coletivos2.

A norma do artigo 81, § único, do CDC, “estabeleceu distinção suficientemente nítida entre a classe dos interesses ‘difusos’, pertinentes a séries de pessoas indeterminadas e unidas por meras circunstâncias de fato, como a de freqüentarem a mesma praia ou usarem o mesmo produto medicinal, e a dos interesses ‘coletivos’, peculiares a grupos menos fluidos, formados por pessoas que se vinculam entre si ou com outrem ‘por uma relação jurídica base’”3.

a) Tutela de direitos individuais homogêneos:

Sob inspiração do sistema da class action norte-americana, o CDC criou a categoria

1 Nelson Nery Junior, Defesa do patrimônio público em juízo – o sistema do processo coletivo e o interesse público, Direito processual Público – a Fazenda Pública em Juízo, Malheiros, 1ª ed., 2003, p. 254. 2 Cf. o art. 110 do CDC e o art. 1o, IV, da LACP.3 José Carlos Barbosa Moreira, Os deveres para com a comunidade, in Temas de Direito Processual, sexta série, Saraiva, 1997, p. 311.

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dos chamados direitos ou interesses individuais homogêneos, tradicionalmente tutelados a título pessoal, decorrendo o tratamento judicial coletivo de sua origem comum (art. 81, § único, III, da Lei 8.078/90).

A legitimidade ativa à propositura da ação civil pública, como, por último, contemplada no CDC (art. 82, incs. I a IV, e § 1o, da Lei 8.078/90), revestiu-se de considerável amplitude, adotando o legislador as diretrizes da Lei 7.347/85 - LACP (art. 5o, I e II) para estendê-la, concorrentemente, ao Ministério Público; à Defensoria Pública; à União, Estados, Municípios e Distrito Federal; às entidades e órgãos da administração pública, direta ou indireta, ainda que sem personalidade jurídica; e às associações legalmente constituídas há pelo menos um ano e que incluam entre os seus fins institucionais a defesa dos direitos ou interesses tutelados.

No caso concreto, age o Ministério Público na defesa de direitos titularizados pelo grupo de moradores do LOTEAMENTO SERRA DAS BRISAS e BELO HORIZONTE, que adquiriram seus lotes vendidos pela Construtora Gutembergue Ltda., em loteamentos clandestinos ou irregulares, que ofendem a ordem urbanística e o meio ambiente. Além dos direitos individuais homogêneos, tutelam-se direitos difusos relativos ao meio ambiente, à ordem urbanística, bem como o direito inaugurado pelo Estatuto da Cidade à cidade sustentável.

Os direitos individuais homogêneos são subespécie de interesses coletivos, havendo de ser tomada em sentido amplo a menção à categoria de direitos transindividuais contida no inciso III, do artigo 129, da Constituição. Regras de interpretação extensiva autorizam atestar a recepção pelo texto constitucional das subseqüentes normas do CDC (arts. 82 e 92), que possibilitam ao Ministério Público a propositura de ações de tal índole.

No caso concreto, é inegável a legitimidade do Ministério Público ao ajuizamento da presente intervenção, diante da enorme relevância social que dela emana. Não há como negar a dimensão comunitária de sua atuação, em benefício dos moradores do LOTEAMENTO SERRA DAS BRISAS e BELO HORIZONTE, mormente tendo em conta a supremacia dos fundamentos constitucionais submetidos à apreciação do Poder Judiciário (arts. 1º, III, 5º, caput, XXII e XXIII, 6º, 170, II e III, e 182, da CF).

Nesse passo, recorde-se que a própria Constituição permite a atribuição ao Ministério Público de outras funções, desde que compatíveis com suas finalidades institucionais (arts. 127 e 129, IX, da CF).

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Não é novo o exame do tema em nossos tribunais; e, no sentido exposto, a jurisprudência já se manifestou:

O Ministério Público tem legitimidade para promover ação coletiva em defesa de interesses individuais homogêneos quando existente interesse social compatível com a finalidade da instituição (DJ 23.8.89)”4.

Em hipóteses análogas também foram admitidas a legitimidade do Ministério Público: a) “questão referente a contrato de locação, formulado como contrato de adesão pelas empresas locadoras, com exigência da Taxa Imobiliária para inquilinos, que é de interesse público pela repercussão das locações na sociedade (STJ, Corte Especial, EREsp 114.908/SP – Embargos de Infringência no Recurso Especial – j. 20.5.2002, rel. Min. Eliana Calmon)”5; b) “defesa de interesses difusos e coletivos, incluindo aqueles decorrentes de projetos referentes ao parcelamento de solo urbano (STJ REsp nº 174.308/SP, j. 25.2.2002, rel. Min. Milton Luiz Pereira)”6.

O LOTEAMENTO SERRA DAS BRISAS é irregular, pois não teve regular processo de aprovação na Secretaria Municipal, não é registrado no Cartório de Registro de Imóveis e não obedece ao Plano Diretor e às leis de parcelamento no tocante à constituição das áreas públicas municipais. O LOTEAMENTO BELO HORIZONTE, por sua vez, é clandestino, posto que não há qualquer registro de sua constituição junto aos órgãos municipais.

O parcelamento do solo é uma atividade complexa, da qual derivam múltiplos efeitos. Um deles está na transformação que opera na fisionomia física e jurídica da gleba. De fato, com o registro especial, previsto no artigo 18, da Lei n.º 6.766/79, o imóvel primitivo se extingue, ou, pelo menos, se altera, resultando de sua fragmentação outros imóveis, com características próprias. As unidades, assim constituídas, por serem objeto de interesse em relação de consumo e estarem destinadas a satisfazer as necessidades de moradia ou lazer dos adquirentes, são produtos, na definição do artigo 3º, § 1º, da Lei n.º 8.078/90. Consequentemente, é fornecedor quem, desenvolvendo atividade mercantil ou civil, os oferece ao mercado (lei citada artigo 3º caput e § 1º) e consumidor toda pessoa que os adquire ou utiliza, como destinatário final (idem, artigo 2º caput).

Na espécie, houve comercialização dos lotes e, por isso, entre o parcelador e os adquirentes formou-se uma típica relação de consumo, como tal regida pelo Código de Defesa

4 Ada Pellegrini Grinover et al., Código Brasileiro de Defesa do Consumidor comentado pelos autores do anteprojeto, Forense Universitária, 8a ed., p. 818.5 Idem p. 819. 6 Idem, ibidem, p. 819.

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do Consumidor.

Dentre os direitos básicos do consumidor figuram a proteção contra práticas abusivas e a efetiva reparação de seus prejuízos decorrentes das relações de consumo (artigo 6º, incisos IV e VI, do C.D.C).

Analisando o conceito de prática abusiva, que considera, por natureza, “fluido e flexível”, ANTÔNIO HERMAN DE VASCONCELOS E BENJAMIN assim o interpreta:

“As práticas abusivas não estão regradas apenas pelo art. 6º. Diversamente, espalha-se por todo o Código. Desse modo, são práticas abusivas a colocação no mercado de produto e serviço com alto grau de nocividade ou periculosidade (art. 10), a comercialização de produtos e serviços impróprios (arts. 18, § 6º e 20, § 2º)...” ... “Tampouco limitam-se ao Código de Defesa do Consumidor. Como decorrência da norma do art. 7º, caput, são também práticas abusivas outros comportamentos empresariais que afetem o consumidor diretamente, mesmo que previstos em legislação diversa do Código”7.

Compreendida nessa acepção ampla, que o Código de Defesa do Consumidor consagrou, é, sem dúvida, abusiva a prática de colocar no mercado de consumo produtos juridicamente inexistentes e inadequados aos fins a que se destinam. E esses vícios, no caso em análise, são nítidos:

- os lotes só se constituem através do registro do loteamento, reputam-se inexistentes sem essa formalidade8, configurando crime sua colocação no mercado de consumo antes de cumprido aquele requisito (Lei n.º 6.766/79, artigos 37 e 50, inciso I e parágrafo único, inciso I);- a restrição registrária que recai sobre a gleba dividenda (falta de título de domínio) impede a fruição dos lotes segundo as faculdades próprias dos direitos reais (usar, gozar, dispor: artigo 524, Código Civil, artigo 674 do Código Civil), frustrando, notadamente, a possibilidade de edificação de moradia pelos consumidores, o que, em última análise, os inutiliza.

Para sanear o mercado e propiciar um equilíbrio de forças, o Código de Defesa do Consumidor instituiu alguns princípios de ordem pública, que devem nortear as relações de consumo. Um deles é o “princípio da proteção e da confiança”, em que se inspira a garantia legal de adequação do produto às legítimas expectativas que o seu fornecimento incute nos

7 Antônio Herman de Vasconcelos e Benjamin - Código Brasileiro de Defesa do Consumidor Comentado pelos Autores do Anteprojeto; 1992, Forense Universitária, p. 218.8 Darcy Bessone - ob. cit e loc. cit

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consumidores (cf. artigos 18, 24, 25 e 51, inciso I).

Trata-se de garantia imperativa e de resultado, inerente ao produto, que impõe ao fornecedor a obrigação de entregá-lo ao consumo livre de defeitos e apto ao funcionamento segundo os fins que dele razoavelmente se esperam.9

Por força dessa garantia, os fornecedores de produtos respondem solidariamente pelos vícios de qualidade que os tornem impróprios ou inadequados ao consumo a que se destinam, reputando-se nula de pleno direito qualquer estipulação contratual que impossibilite, exonere ou atenue essa responsabilidade legal (cf. artigos 24, 25 e 51, inciso I).

Em excelente monografia, CLAUDIA LIMA MARQUES explica o critério adotado, a respeito, pelo código:

No sistema do CDC, da tradicional responsabilidade assente na culpa passa-se à presunção legal desta e conclui-se com a imposição de uma responsabilidade legal. O novo regime de vícios no CDC caracteriza-se como um regime de responsabilidade legal do fornecedor, tanto daquele que possui um vínculo contratual com o consumidor, quanto aquele cujo vínculo contratual é apenas com a cadeia de fornecedores. (...)

Isto significa que ao fornecedor, no mercado de consumo, a lei impõe um dever de qualidade dos produtos e serviços que presta. Descumprido este dever surgirão efeitos contratuais (inadimplemento contratual ou ônus de suportar os efeitos da garantia por vício) e extracontratuais (obrigação de substituir o bem viciado, mesmo que não haja vínculo contratual, de reparar os danos causados pelo produto ou serviço defeituoso). (...)

Realmente, a responsabilidade do fornecedor em seus aspectos contratuais e extracontratuais, presente na norma do CDC (arts. 12 a 27), está objetivada, isto é, concentrada no produto ou no serviço prestado, concentrada na existência de um defeito (falha na segurança) ou existência de um vício (falha na adequação, na prestabilidade).

Observando a evolução do direito comparado há toda uma evidência de que o legislador brasileiro inspirou-se na idéia de garantia de adequação para o seu uso e, até mesmo, uma garantia referente à segurança que deles se espera. Há efetivamente um novo dever de qualidade instituído pelo sistema do CDC, um novo dever anexo à atividade dos fornecedores.

Trata-se, como afirmamos anteriormente, de uma responsabilidade legal. O dever anexo de qualidade, qualidade adequação, e seu reflexo, o vício por inadequação do produto ou do serviço, substituem no sistema do CDC, em largas

9 Claudia Lima Marques - Contratos no código do consumidor: o novo regime das relações contratuais; 1992, RT, p. 199/202.

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melhoras, a noção de vício redibitório. (...)Evitar tal vício na qualidade do produto é dever legal de rodos os

fornecedores da cadeia de produção, responsáveis pela introdução do produto no mercado de consumo. A responsabilidade nasce com a simples violação do dever legal, não sendo seu pressuposto a culpa do fornecedor ou de seu preposto (negligência, imperícia, imprudência), não importando, por isso, a ciência, o conhecimento ou não do vício pelo fornecedor responsabilizando (art.23 do CDC).”10

Realmente, como a própria Lei n.º 8.078/90 cuidou de enfatizar, ela não é a única fonte dos direitos do consumidor. Além dos que o Código prevê, muitos outros existem, decorrentes da legislação ordinária, da analogia, dos costumes, da equidade e dos princípios gerais do sistema normativo (artigo 7º).

Um desses direitos assenta-se no instituto da responsabilidade civil, segundo o qual “aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito, ou causar prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar o dano” (Código Civil, artigo 159).

Bem se vê que, não bastassem, para o mesmo efeito, os mesmos fundamentos, de que já se cuidou, há, ainda, uma causa específica, da qual deriva a responsabilidade solidária pela reparação dos prejuízos que foram provocados aos consumidores (Código Civil, artigo 159, c.c. o artigo 1.518, caput e parágrafo único).

b) Tutela da ordem urbanística:

A ordem urbanística (padrões e regras urbanos definidos em leis e atos regulamentares que visam o uso e ocupação do solo de maneira planejada e ordenada, para garantia de qualidade de vida sustentável nas cidades) – DIREITO DIFUSO está sendo violada, motivo pelo qual legitima o MINISTÉRIO PÚBLICO a ingressar na presente execução provisória que diz respeito a LOTEAMENTO IRREGULAR com 8.000 (oito) mil famílias lá residindo, que compraram e pagaram seus lotes e não a gleba rural indivisa obtida na ação de reitegração de posse.

A Ordem Urbanística passou a ser objeto da Ação Civil Pública por força da inserção do inciso III, no parágrafo 1º, da Lei da Ação Civil Pública – n. 7.347/85, determinada pela Lei Federal n. 10.257/2001 – Estatuto da Cidade.

Violações à ORDEM URBANÍSTICA também são ações que podem prejudicar o

10 ob. cit., p. 182/191.

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direito à:

• à terra urbana;• à moradia; • ao saneamento ambiental; • à infra-estrutura urbana; • ao transporte;• aos serviços públicos;• ao trabalho;• à circulação• ao lazer, ou ainda, quando o • poder Público Municipal deixa de regular as transformações do meio ambiente

urbano.

Destarte, sobejadamente, se verificam as diversas ofensas à ORDEM URBANÍSTICA, justificando a legitimidade do órgão ministerial para a propositura da presente ação.

c) Tutela do Meio Ambiente:

Busca-se também, a proteção do MEIO AMBIENTE (conjunto de leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas).

Didaticamente, o Meio Ambiente divide-se em natural, artificial, cultural e do trabalho – Constituição Federal de 1988. Os bens integrantes do Meio Ambiente cultural e natural constituem objeto da disciplina urbanística, cujo regime jurídico decorre de normas constitucionais (art. 225, CF), independentemente da aplicação do princípio da função social da propriedade.

O uso e ocupação do solo de maneira planejada e ordenada objetiva a garantia de qualidade de vida sustentável nas cidades.

As cidades do Século XX buscavam as funções de lazer, moradia, circulação e trabalho. No Século XXI além dessas funções busca-se a preservação do meio ambiente e a qualidade de vida. Trata-se do direito difuso à chamada cidade sustentável, conforme preconizado pelo Estado da Cidade.

A Constituição Federal de 1988 estabeleceu os parâmetros da política de

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desenvolvimento urbano e institucionalizou o Plano Diretor como instrumento básico dessa política, cujos objetivos são: ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes (arts. 182/183).

A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor.

Ao cabo, cumpre destacar o Enunciado n. 305, da IV Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal que estabelece que “tendo em vista as disposições dos §§ 3º e 4º do art. 1.228 do Código Civil, o Ministério Público tem o poder-dever de atuação nas hipóteses de desapropriação, inclusive a indireta, que envolvam relevante interesse público, determinado pela natureza dos bens jurídicos envolvidos”.

De todo o exposto, não resta outra conclusão que não a legitimidade do Ministério Público para a propositura da ação civil pública para a regularização fundiária dos setores Serra das Brisas e Belo Horizonte.

2.2.2. DA LEGITIMIDADE PASSIVA DOS PODERES ESTADUAL E MUNICIPAL

No pólo passivo da demanda, por sua vez, devem figurar os poderes públicos municipal e estadual, bem como aqueles que terão o direito de propriedade restringido pela determinação de desapropriação judicial.

A legitimidade do município decorre do texto expresso da Constituição Federal, a qual atribui competência aos municípios para promoção do adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano (artigo 30, inciso VIII, da Constituição Federal).

A responsabilidade do estado de Goiás, por sua vez, decorre de conduta ilegal, praticada quando da indevida arrecadação da área onde hoje estão contidos os loteamentos. Como já descrito quando do relatório dos fatos que engendraram a demanda, o IDAGO arrecadou terras particulares como se públicas fossem, alienando-as onerosamente a particulares responsáveis pela formação do loteamento11. A conduta ilegal do estado, através da ação do IDAGO, restou definitivamente demonstrada na ação de reintegração de posse promovida pela família Lino e Silva, legítima proprietária das terras, como já demonstrou a

11 Segundo o Registro de n. 01, da Matrícula 69.690, do Cartório do 1o Ofício e Registro Geral de Imóveis da Comarca de Hidrolândia, Termo de Aparecida de Goiânia, anexa, o Instituto de Desenvolvimento Agrário de Goiás, em 09 de novembro de 1981, vendeu o imóvel objeto da matrícula pelo preço de Cr$ 48.861,83 (quarenta e oito mil, oitocentos e sessenta e um cruzeiros e oitenta e três centavos).

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sentença do magistrado de 1o grau, bem como o acórdão do Tribunal de Justiça goiano, com trânsito em julgado.

O instituto da evicção serve à compreensão da responsabilidade do estado goiano no caso sob exame. Entende-se por evicção, segundo clássica lição de Caio Mário da Silva Pereira, “a perda da coisa, por força de sentença judicial, que a atribui a outra pessoa, por direito anterior ao contrato aquisitivo”.

Nesse sentido, estabelece o artigo 447 do Código Civil que o alienante responde pela evicção, ou seja, o alienante deve indenizar o adquirente pela perda, em juízo, da coisa adquirida onerosamente. Ainda considerando que os ocupantes dos setores Serras das Brisas e Belo Horizonte não adquiriram diretamente do estado os lotes que ocupam, deve-se registrar a presença do órgão estadual – IDAGO – na cadeia ilegal de alienações da gleba de terra. O equívoco originário do estado encontra-se, pois, na gênese do grave problema social que se pretende ver resolvido.

Se os agentes públicos estaduais atuaram de maneira ilegal, arrecadando terras particulares como se fossem públicas, disso resultando a perda da propriedade pelos atuais ocupantes, o estado deve ser chamado à responsabilidade, indenizando os verdadeiros proprietários da área e assegurando a regularização da ocupação advinda da posse-trabalho.

Não cabe, pois, voltar a discutir a titularidade da área onde instalados os loteamentos Serra das Brisas e Belo Horizonte. Deve-se debater, a essa altura, a responsabilidade social e jurídica de garantia dos direitos decorrentes da posse-trabalho dos ocupantes da área. A demanda situa-se, pois, na tentativa de encontrar uma solução jurídica que compatibilize o direito de propriedade dos titulares da área e os direitos decorrentes da posse-trabalho dos ocupantes.

A solução prevista no ordenamento encontra-se no artigo 1.228, par. 4o e 5o, do Código Civil, conforme exposto a seguir, incumbindo, pois, aos poderes públicos municipal e estadual o pagamento da indenização estabelecida pelo magistrado, com fundamento nos dispositivos citados.

Por último, cumpre destacar as diversas tentativas de solução consensual do conflito, pelas quais os poderes públicos estadual e municipal reconheceram, de forma expressa, não somente a necessidade premente de regularização dos loteamentos, como a responsabilidade de ambos pelos ônus decorrentes da necessidade de indenizar a família proprietária da gleba.

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Dessa maneira, resta comprovada a legitimidade passiva do município de Aparecida de Goiânia, bem como do estado de Goiás, para figurarem no pólo passivo da presente demanda, arcando com a indenização devida aos proprietários

2.2. NO MÉRITO

O complexo cenário acima exposto impõe aos Poderes Públicos o dever constitucional de agir de modo a garantir os direitos fundamentais decorrentes da cláusula geral da dignidade da pessoa humana. Os direitos de cunho individual e social assegurados pela Carta Magna demandam a regularização fundiária dos loteamentos Serras das Brisas e Belo Horizonte, assegurando-se aos seus moradores o direito à moradia, saúde, educação, segurança e meio ambiente preservado.

Ademais, dispõe a Constituição Federal, em seu artigo 182, caput, que a política de desenvolvimento urbano, cuja execução incumbe ao Poder Público municipal, deve objetivar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade, bem como a garantia e bem-estar de seus habitantes.

Do crescimento acelerado e caótico das cidades, como lugares complexos de realização história humana, decorrem problemas cuja solução demanda efetivo comprometimento das várias esferas de poder, bem como a criação de novos institutos jurídicos adequados à pluralidade de situações fáticas engendradas pelo desenvolvimento social.

Os poderes econômicos, por sua vez, quando insensíveis aos graves dilemas humanos decorrentes do processo de geração de riquezas, funcionam como agentes catalizadores de verdadeiras tragédias humanas, que, não raras vezes, terminam no extermínio de vidas humanas, insegurança jurídica e existencial e graves violações a direitos assegurados pela ordem constitucional.

O direito à moradia, insculpido no caput do artigo 6º da Constituição Federal, é de fundamentalidade evidente na promoção da dignidade humana, de modo que os poderes públicos devem se mobilizar para a sua efetividade e garantia. As mais de 800 famílias que residem nos setores Serra das Brisas e Belo Horizonte possuem, portanto, direito legítimo de tutela da situação fática criada sob as vistas dos poderes públicos, com aparência de legalidade e legitimidade decorrente da boa-fé que impera nas relações jurídicas.

No arcabouço jurídico pátrio, deve-se buscar, portanto, os institutos jurídicos que

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assegurem aos moradores dos setores Serras das Brisas e Belo Horizonte, bem como a toda a coletividade do município de Aparecida de Goiânia, o acertamento jurídico da realidade fática existente, tendo por pressuposto fundamental, pautado na boa-fé que rege as relações jurídicas, bem ainda na dignidade da pessoa humana, o direito dos moradores aos lotes que ocupam e nos quais constituíram vida e morada.

2.2.1. DA DESAPROPRIAÇÃO JUDICIAL INDIRETA12:

O Novo Código Civil trouxe novo regramento ao instituto da propriedade privada, adequando-o à normativa constitucional que estabelece a função social como elemento intrínseco, imanente ao próprio direito de propriedade. Ou seja, somente há direito à tutela jurídica da propriedade quando a mesma cumpre sua função social. A função social, pois, não é mais elemento externo e acessório do direito de propriedade, mas seu elemento principal, sua essência constitutiva em face das prementes misérias sociais que acometem nossa sociedade13.

Nesse caminhar, o Código Civil instituiu em seu artigo 1.228, §§ 4º e 5º, os seguintes dispositivos, que, por sua relevância, merecem ser transcritos:

Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.

§ 4o O proprietário também pode ser privado da coisa se o imóvel reivindicado consistir em extensa área, na posse ininterrupta e de boa-fé, por mais de cinco anos, de considerável número de pessoas, e estas nela houverem realizado, em conjunto ou separadamente, obras e serviços considerados pelo juiz de interesse social e econômico relevante.

§ 5o No caso do parágrafo antecedente, o juiz fixará a justa indenização devida ao proprietário; pago o preço, valerá a sentença como título para o registro do

12 O Enunciado nº 82, da 1ª Jornada de Direito Cível disciplinou que "é constitucional a modalidade aquisitiva de propriedade imóvel prevista nos §§ 4º e 5º do art. 1.228, Código Civil". Uma vez que somente se irá efetivar o registro após o pagamento da indenização pelo juiz.13 "A resposta segundo a qual a função social da propriedade é antes uma concepção com eficácia autônoma e incidência direta no próprio direito consente elevá-la à dignidade de um princípio que deve ser observado pelo intérprete, tal como sucede em outros campos do Direito Civil, como o princípio da boa-fé nos contratos. É verdade que assim considerada se torna uma noção vaga, que todavia não é inútil na medida em que inspira a interpretação da atividade do proprietário. Nessa ótica, a ação do juiz substitui a do legislador, do Congresso ou da Administração Pública. O comportamento profissional do magistrado passa a ser, no particular, 'uma ação de invenção e de adaptação', como se exprime Lanversin definindo a ação pretoriana como um meio de realizar a modernização do direito. É verdade que, nessa colocação, se corre o risco de um uso alternativo do direito ou de uma resistência empedernida. Como quer que seja, o preceito constitucional que atribui função social à propriedade não tem valor normativo porque não se consubstancia nas normas restritivas do moderno direito de propriedade, mas simplesmente se constitui no seu fundamento, na sua justificação, na sua ratio". (GOMES, Orlando. Direitos reais. 19. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 128. Atualizada por Luiz Edson Fachin.)

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imóvel em nome dos possuidores.

O caput do dispositivo repete a concepção tradicional de propriedade, de matiz capitalista e liberal, demonstrando o compromisso do legislador na manutenção de nosso presente ordenamento social. Todavia, sensível aos dilemas humanos decorrentes da atávica exclusão sócio-cultural das camadas pobres, o legislador ordinário criou um instrumento jurídico inovador, que relativiza o direito de propriedade em face de um dado social consistente na ocupação de área particular, por extenso número de pessoas, com desenvolvimento de obras e serviços de relevante interesse social e econômico.

Segundo lição de CRISTIANO CHAVES DE FARIAS e NELSON ROSENVALD, consignada na excelente obra Direitos Reais, a “desapropriação é judicial, pois pela primeira vez no direito brasileiro quem determinará a privação do direito de propriedade não será o poder executivo ou legislativo, mas o poder judiciário”14. O juiz torna-se, pois, competente para “verificar se o interesse social e econômico relevante de uma coletividade de possuidores apresenta merecimento suficiente para justificar a privação de um direito de propriedade”.

O texto legal estabelece, portanto, que o legítimo proprietário pode ser privado de bem imóvel correspondente a “extensa área, na posse ininterrupta e de boa-fé, por mais de cinco anos, de considerável número de pessoas, [s]e estas nela houverem realizado, em conjunto ou separadamente, obras e serviços considerados pelo juiz de interesse social e econômico relevante”.

Ora, a hipótese descrita em abstrato na lei é precisamente aquela discutida por via desta ação. Ponto a ponto, vejamos:

Descrição Legal Artigo 1.228, § 4º, CC

Loteamentos Serra das Brisas e Belo Horizonte

Extensa área 647.426,57 m2

Posse ininterrupta por mais de 05 anos

Serra das Brisas: início da ocupação da área em 1992Belo Horizonte: início da ocupação em 1990

Posse de boa-fé Aquisição do lote da Construtora Gutemberg e pagamento regular de parcelasPagamento regular de impostos

Considerável número de pessoas Mais de 800 famílias, aproximadamente 2.400 pessoasObras de relevante interesse econômico e social

MoradiaPavimentação de vias urbanasInfra-estrutura de Iluminação pública

14 FARIAS, Cristiano Chaves e ROSENVALD, Nelson. Direitos Reais. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2008, p. 43.

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Serviços de relevante interesse econômico e social

Iluminação públicaColeta de lixoTransporte coletivo

Conseqüência jurídica prevista no artigo 1.228, §5º, CC: juiz fixará a justa indenização devida ao proprietário; pago o preço, valerá a sentença como título para o registro do imóvel em nome dos possuidores.

Portanto, o provimento jurídico previsto em lei para a situação descrita no artigo 1.228, § 4º, do CC, é a fixação, pelo juiz, de justa indenização devida ao proprietário, valendo a sentença como título para registro dos imóveis, em nome dos possuidores, após a pagamento do valor arbitrado pelo magistrado. Tal solução permite a regularização fundiária de áreas particulares ocupadas irregularmente. Segundo a exposição de motivos do Novo Código Civil, “não se deve considerar a desapropriação prerrogativa exclusiva dos poderes executivo ou legislativo. Não há razão plausível para recusar ao poder judiciário o exercício do poder expropriatório em casos concretos, como o que se contem na espécie analisada”. Parece-nos, pois, uma solução promissora proposta pelo legislador ordinário e pela qual vislumbramos o enfrentamento de demandas como a verificada nos setores Serra das Brisas e Belo Horizonte.

2.2.2. DA DESAPROPRIAÇÃO JUDICIAL INDIRETA COMO FUNDAMENTO DA AÇÃO CIVIL PÚBLICA PARA TUTELA DA ORDEM URBANÍSTICA E MEIO AMBIENTE

Parcela da doutrina tem afirmado que a desapropriação judicial somente pode ser suscitada em via de defesa, em sede de ação reivindicatória ou reintegratória de posse, formando uma ação de natureza dúplice, pela qual o réu formula pretensão em sede de contestação15.

Ressalta-se, todavia, que se trata de interpretação restritiva do instituto, que não encontra ressonância na totalidade dos estudiosos, posto que desconsidera o princípio da socialidade que orienta o Novo Código Civil.

A redação expressa do parágrafo 4o do artigo 1.228 do Código Civil, bem como os fins sociais da norma permitem uma construção ampliada do instituto, compreendendo-o como um instrumento de políticas públicas voltado para a regularização de assentamentos clandestinos e irregulares. Senão vejamos.

15 FARIAS, Cristiano Chaves e ROSENVALD, Nelson. Direitos Reais. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2008, p. 48 e 49.

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O dispositivo da lei civil refere-se a imóvel reivindicado, sendo por demais restritiva a leitura que pretende limitar a utilização do instituto à hipótese de imóveis discutidos em sede de ação reivindicatória ou de reintegração de posse. Destaque-se que a lei civil traz textualmente a expressão imóvel reivindicado – e não imóvel reivindicando –, redação esta que poderia limitar o instituto ao curso de ações reivindicatórias.

Mais enriquecedor e mais adequado ao princípio da socialidade que norteia o Novo Código Civil é considerar a expressão imóvel reivindicado como aquele objeto de disputa fundada na oposição entre o direito advindo da posse-trabalho (função social da posse) e o direito de propriedade.

Os estudos da IV Jornada de Direito Civil tocam o mesmo sentir ao dispor em seu Enunciado 310 que “Interpreta-se extensivamente a expressão ‘imóvel reivindicado’ (art. 1.228, § 4º) [...]”.

Portanto, o imóvel reivindicado permanece como tal no seio da ação reivindicatória/reintegratória ou fora dela, valendo o instituto da desapropriação judicial, em todo caso, como hipótese de limitação ao direito de propriedade, fundada na função social da posse. Ademais, a lei civil é diploma de direito material, que cria instituto que poderá se adequar às várias formas de atuação do direito pela via processual.

MARIA HELENA DINIZ, em seu Curso de Direito Civil Brasileiro, menciona a possibilidade de o instituto ser utilizado como fundamento para a ação coletiva de conhecimento que vise a solução do problema fundiário. Discorre a eminente autora:

“no plano processual haverá de se indagar se essa alienação judicial deverá ser postulada em via reconvencional na ação reivindicatória aforada pelo proprietário, ou se será imposta pelo juiz de ofício como solução para o conflito de interesses [...]. Também haverá de ser suscitada a possibilidade de os possuidores, tomando a iniciativa para a solução do conflito fundiário, ajuizarem ação judicial para que tal alienação judicial se opere. Sem embargo dessas dúvidas, que remanescem quanto à operatividade do novo instituto, significativo é ressaltar que representa ele o reconhecimento pelo ordenamento jurídico o valor da posse-trabalho, que contudo não poderá ser adquirida por meio da violência, na medida em que se pressupõe para a sua tutela estar ela jungida de boa-fé”16.

16 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil – Direitos Reais. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 201.

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No mesmo sentido é a lição sempre ponderada de TEORI ALBINO ZAVASCKI para o qual

"o conflito de interesses poderá surgir não apenas no âmbito de ações reivindicatórias, como suposto no dispositivo, mas também em interditos possessórios, não sendo plausível negar-se, nessas situações, a utilização, pelos possuidores demandados, das prerrogativas asseguradas pelo instrumento agora proposto. O que se quer, em suma, enfatizar, é que a interpretação teleológica do dispositivo haverá de presidir a sua aplicação, seja para preencher valorativamente os conceitos abertos, seja para acomodar sob seu pálio as possíveis variantes análogas que a realidade vier a apresentar no futuro"17.

No caso em discussão, a gleba onde se situam os setores Serra das Brisas e Belo Horizonte constitui imóvel reivindicado pela família Lino e Silva, consistente em extensa área na posse ininterrupta e de boa-fé, por mais de cinco anos, de considerável número de pessoas que nele realizou obras e serviços de relevante interesse social e econômico.

Há diversas ações propostas, nas quais foi reconhecido à família o direito à gleba, bem como determinada a sua reintegração, provisoriamente suspensa. Cumpre ressaltar que todas as ações foram propostas à revelia dos ocupantes, que não tiveram, portanto, oportunidade de suscitar, em sede de contestação, o pedido de desapropriação judicial.

De todo o exposto, conclui-se que o imóvel permanece como “imóvel reivindicado”, tendo em vista a pendência da ação de execução de reintegração de posse, sendo aplicável, portanto, o novel instituto da desapropriação judicial indireta para a solução do grave problema fundiário que ameaça a paz social e a dignidade da humana neste município.

À guisa de conclusão de ponto, cito as palavras de RODOLFO PAMPLONA FILHO e, que pontuam de forma brilhante:

O processo interpretativo é contínuo e, nesse particular, o Código de 2002 foi muito feliz, transferiu aos juízes, advogados, promotores e demais operadores do direito, uma liberdade exegética não antes conhecida pelo Direito Civil brasileiro.

No caso específico do direito de propriedade - e mormente na hipótese do art. 1.228 e seus parágrafos - sinaliza a norma para a sensibilidade do advogado, do promotor e dos representantes estatais, mas, principalmente, do juiz. A ele, a norma dirige um apelo contundente: examinem cada caso com um olho na lei e outro na situação social e humana. Sejam juízes de direito, de fato e

17 ZAVASCKI, Teori Albino. A tutela da posse na Constituição e no projeto do Código Civil. In: MARTINS-COSTA, Judith (Org.). A reconstrução do direito privado. São Paulo: RT, 2002. p. 852.

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primordialmente, do fato.Por tudo isso, afirma-se, sem medo de aparentar excessiva utopia, que a

lei civil humanizou-se em matéria de direitos reais, criando vínculos de interesse que, outrora, primavam pela frieza puramente patrimonial. Resta aguardar que a ousadia normativa seja reproduzida pelo Judiciário18.

2.2.3. DA DESAPROPRIAÇÃO INDIRETA DAS ÁREAS PÚBLICAS:

No que diz respeito às áreas públicas contidas na gleba de terras de propriedade da família Lino, ocorreu o que a doutrina administrativista denomina desapropriação indireta. Tal instituto possui fundamento legal na regra constante do artigo 35, do Decreto-lei nº 3.365/41, que dispõe:

Art. 35. Os bens expropriados, uma vez incorporados à Fazenda Pública, não podem ser objeto de reivindicação, ainda que fundada em nulidade do processo de desapropriação. Qualquer ação, julgada procedente, resolver-se-á em perdas e danos.

Em realidade, a partir do momento em que a Administração venha a dar uma destinação pública a um bem, independentemente de ter ou não se apossado dele de forma lícita, tem-se por operada a chamada afetação desse bem a uma finalidade pública e, com ela, a sua incorporação ao patrimônio da coletividade. Perde, por conseguinte, o particular o direito de reivindicá-lo, embora lhe seja assegurada a via da indenização por perdas e danos para ressarcimento de seus prejuízos.

No caso dos autos, loteamentos Serra das Brisas e Belo Horizonte, a desapropriação indireta dá-se em relação às vias públicas e às áreas vagas necessárias à implantação de equipamentos urbanos e comunitários. Uma vez iniciada a instalação de famílias na região, uma parcela das áreas fica afetada ao fim público de circulação urbana e ao atendimento de necessidades da coletividade que exsurge, considerando que os loteamentos urbanos devem obedecer ao regramento estabelecido na Lei nº Lei 6.766/79. Quanto às áreas necessárias á regularização do loteamento, dispõe o artigo 4º, I, da referida lei que:

Art. 4º - Os loteamentos deverão atender, pelo menos, aos seguintes requisitos:I - as áreas destinadas a sistemas de circulação, a implantação de equipamento urbano e comunitário, bem como a espaços livres de uso público, serão proporcionais à densidade de ocupação prevista pelo plano diretor ou aprovada

18 FILHO, Rodolfo Pamplona e BARBOSA, Camilo de Lelis Colani. Compreendendo os novos limites à propriedade: uma análise do art. 1.228 do Código Civil Brasileiro. Caxias do Sul: Plenum, n. 4, nov. 2008. DVD-ROM.

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por lei municipal para a zona em que se situem. (Redação dada pela Lei nº 9.785, 29.1.99)

As áreas mencionadas no artigo supracitado constituem bens de uso comum do povo, ou bens públicos afetados a uma finalidade pública, sendo sua administração atribuição constitucional do Poder Público municipal.

Assim, as áreas não ocupadas devem ser consideradas transferidas ao Poder Público municipal em face da necessidade de regularização do loteamento.

A matéria é regulada pela Lei Municipal nº 2.249, de 30 de janeiro de 2002, que dispõe sobre a delimitação do perímetro urbano. Estabelece o artigo 25, I, do referido diploma legal que:

Art. 25. Os loteamentos deverão atender aos seguintes requisitos mínimos:I – reservar no mínimo 40% (quarenta por cento) da área total a ser parcelada como Vias de Circulação, Área Verde e Área Pública municipal, sendo que a Área Verde consistirá de no mínimo 20% (vinte por cento), as Vias de Circulação consistirão de no mínimo 10% (dez por cento) e a Área Pública consistirá de no mínimo 5% (cinco por cento) da área total a ser parcelada;

Em conclusão, as áreas não ocupadas passam a constituir bens públicos para o fim de atingimento do percentual de 40% (quarenta por cento) da área total voltada a vias de circulação, áreas verdes e áreas públicas. O Poder Público deverá promover os remanejamentos de famílias de forma a obter uma otimização adequada das áreas remanescentes, viabilizando a instalação de escolas, postos de saúde, praças, postos policiais, tudo segundo responsável juízo de discricionariedade administrativa.

2.2.4. DO VALOR DA INDENIZAÇÃO

Ensinam CRISTIANO CHAVES DE FARIAS e NELSON ROSENVALD que, “se o proprietário foi alijado de sua propriedade, será indenizado em dinheiro (artigo 5o, inciso XXIV, Constituição Federal), pois não trata o artigo 1.228 do Código Civil de espécie de desapropriação-sanção – restrita às taxativas dos artigos 182 e 184 da Lei Maior –, mas de desapropriação por interesse social”19.

O valor da indenização, por sua vez, deve levar em conta a situação anterior à ocupação da área e instalação de equipamentos públicos e comunitários. Por certo, os

19 FARIAS, Cristiano Chaves e ROSENVALD, Nelson. Direitos Reais. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2008, p. 47.

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legítimos proprietários reivindicam a restituição de gleba de terra, situação anterior à constituição do loteamento. A clara distinção entre gleba e loteamento é extraída do artigo 2º, § 1º, da Lei nº 6.766/79, que dispõe:

Art. 2º. § 1º. Considera-se loteamento a subdivisão de gleba em lotes destinados a edificação, com abertura de novas vias de circulação, de logradouros públicos ou prolongamento, modificação ou ampliação das vias existentes.

Assim, ao fixar o quantum indenizatório, deverá o magistrado considerar o status anterior à constituição do loteamento, sob pena de causar enriquecimento ilícito dos proprietários reivindicantes da área. É essa a lição da melhor doutrina, a qual leciona que “será excluída da indenização a valorização proveniente de edificações realizadas pelos possuidores e, suprimindo do valor venal do imóvel os gastos que o poder público incorporou para melhorias na região. De fato, seria enriquecimento sem causa o recebimento de valor de mercado por parte de quem praticou especulação imobiliária, sem imprimir destinação econômica ao bem [...]”20.

FÁBIO KONDER COMPARATO, citado for FARIAS e ROSENVALD, entende que “ressarcir integralmente aquele que descumpre o seu dever fundamental de proprietário é proceder com manifesta injustiça, premiando o abuso”21. Tal entendimento é referendado pelo enunciado da Jornada de Direito Civil, do Conselho da Justiça Federal, que estabelece que “a justa indenização a que alude o parágrafo 5o do artigo1.228 não tem como critério valorativo, necessariamente, a avaliação técnica lastreada no mercado imobiliário, sendo indevidos os juros compensatórios”.

2.2.5. DA RESPONSABILIDADE PELO PAGAMENTO DA INDENIZAÇÃO

Grassa na doutrina celeuma acerca da definição do sujeito responsável pelo pagamento da indenização devida aos proprietários, em face da redação do § 5º do artigo 1.228 do CC. A dúvida decorre do próprio texto legal, que não estabelece quem seria o responsável pelo pagamento da indenização decorrente da expropriação judicial.

Diante da ausência de decisões judiciais acerca do tema, cabe-nos discutir o balizamento dado pela doutrina. Autores discutem a natureza do novel instituto, havendo aqueles que afirmam tratar-se de espécie de usucapião coletivo22; ou modalidade de aquisição

20 Idem.21 Idem.22 Washington de Barros Monteiro.

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por posse-trabalho23; ou contradireito processual24; ou, finalmente, desapropriação judicial indireta25. Os entedimentos doutrinários submetem-se a críticas recíprocas, prevalecendo, contudo, em sede doutrinária, o entendimento segundo o qual o artigo 1.228, § 4º, do CC, introduziu no sistema jurídico pátrio uma nova modalidade de desapropriação, destinada a servir de instrumento para os poderes públicos na solução dos problemas fundiários que tomam as cidades brasileiras.

Considerando tratar-se de modalidade de desapropriação, ora em diante chamada desapropriação judicial, resta-nos a conclusão de que o responsável pela pagamento da indenização é o poder público. Entendimento diverso resultaria na inutilidade e esvaziamento do instituto, uma vez que é forçoso reconhecer que as áreas irregular ou clandestinamente ocupadas normalmente o são por grupos sociais de baixa renda, privados dos recursos necessários à regularização jurídica de suas legítimas posses.

Portanto, o art. 1.228, Código Civil, cria uma nova modalidade de aquisição da propriedade através da desapropriação judicial indireta, ficando responsável pelo pagamento da indenização o Poder Público, desde que seja suportada pela Administração Pública no contexto das políticas públicas de reforma urbana, em se tratando de possuidores de baixa renda e desde que tenha havido intervenção daquela nos termos da lei processual26.

O Enunciado 311, da IV Jornada de Direito Cível disciplinou que "caso não seja pago o preço fixado para a desapropriação judicial, e ultrapassado o prazo prescricional para se exigir o crédito correspondente, estará autorizada a expedição de mandado para registro da propriedade em favor dos possuidores".

É certo que apesar de válida constitucionalmente a norma, no âmbito social este dispositivo está fadado à ineficácia social se os juristas não lhe derem uma interpretação e aplicação que viabilize a sua efetividade.

Essa é a única interpretação capaz de assegurar o alcance social da norma civil, bem como sua efetividade. Sabe-se que a socialidade é um dos pilares que ordenaram a conformação do Novo Código Civil, ao lado da eticidade e da operabilidade. Vejamos pois,

23 Maria Helena Diniz.24 Fredie Didier Jr..25 Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald.26 IV Jornada de Direito Civil. Enunciado 308 – Art.1.228. A justa indenização devida ao proprietário em caso de desapropriação judicial (art. 1.228, § 5°) somente deverá ser suportada pela Administração Pública no contexto das políticas públicas de reforma urbana ou agrária, em se tratando de possuidores de baixa renda e desde que tenha havido intervenção daquela nos termos da lei processual. Não sendo os possuidores de baixa renda, aplica-se a orientação do Enunciado 84 da I Jornada de Direito Civil.

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como a interpretação proposta – pagamento da indenização como responsabilidade dos poderes públicos estadual e municipal – coaduna-se com os princípios mencionados.

Propõe o princípio da socialidade que as normas devem ser construídas, integradas, interpretadas e aplicadas de modo a garantir sua função social. Ou seja, a norma e os operadores do direito devem atentar para o grave quadro social que nos rodeia, garantindo os direitos das camadas excluídas, compreendendo e utilizando o direito de maneira transformadora e afirmativa do princípio da dignidade da pessoa humana. Assim interpretado, o direito transforma-se em instrumento de justiça social e equalização das desigualdades sociais que violentam nossos mais recatados pudores de justiça e realização do direito.

O direito não é, pois, instrumento de tutela de pretensões egoísticas, fundada em uma ordem liberal superada histórica e juridicamente. Tal ordem de coisas restou superada porque transformou a autonomia humana em instrumento de legitimação de injustiças e degradação do outro.

No caso vertente, considerando a situação de pobreza dos ocupantes das áreas discutidas, temos que a única solução capaz de garantir a efetividade da norma e a função social da propriedade é imputar aos poderes públicos a responsabilidade pelo pagamento da indenização aos proprietários. Solução diversa implica reconhecer, in concreto, a impossibilidade de haver a desapropriação, bem como a perpetuação do gravíssimo conflito social, com séria ameaça à vida e à dignidade de milhares de homens, mulheres, idosos e crianças.

A eticidade por sua vez é princípio que prestigia a boa-fé, reconhecendo e dando guarda às pretensões legítimas constituídas sob o ânimo honesto das partes. No caso em tela, temos presente de maneira inequívoca e irrefutável a boa-fé de centenas de famílias que adquiriram laboriosamente o direito de estabelecerem sua morada nos lotes que ocupam. Ao operador do direito – magistrados, advogados e promotores de justiça – constatada a boa-fé dos ocupantes, resta encontrar a solução que compatibilize os direitos decorrentes da posse-trabalho dos ocupantes com os direitos decorrentes da propriedade titularizada pela família Lino e Silva.

Não há outra solução, insigne magistrado, senão a decretação judicial da desapropriação, com pagamento de indenização pelo poder público e transferência da propriedade aos legítimos ocupantes, mediante registro da sentença no cartório de registro de imóveis, conforme estabelece a lei civil.

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A operabilidade, por sua vez, visa a garantir a efetividade da norma jurídica, que deve atuar de forma concreta no mundo das coisas e pessoas, transformando a realidade e conformando-a aos preceitos da justiça e do direito. No caso em apreço, diante da impossibilidade econômica do pagamento da indenização pelos possuidores, resta atribuí-la aos poderes públicos.

O órgão ministerial que subscreve esta petição entende que é eloqüente o silêncio da norma, que não estabeleceu quem deve pagar a indenização estabelecida pelo juiz ao reconhecido proprietário. Portanto, a norma admite que ora essa responsabilidade seja atribuída ao ocupante, ora ao poder público. O direito emana dos fatos, das circunstâncias reais, sendo possíveis e adequadas as duas soluções, conforme a capacidade econômica das partes envolvidas.

No caso concreto, diante da realidade de pobreza que envolve os setores Serra das Brisas e Belo Horizonte, a única solução viável – garantidora da função social da propriedade e que tutele a boa-fé dos ocupantes – é a atribuição da responsabilidade aos poderes públicos pelo pagamento da justa indenização. Na lição de RODOLFO PAMPLONA FILHO e CAMILO DE LELIS COLANI BARBOSA, “se há um direito subjetivo à percepção de uma indenização e se a hipótese legal é de desapropriação, não temos dúvida de que o responsável final pelo pagamento é a Administração Pública”27.

Na hipótese em consideração, devem ser chamados a responder pela indenização os poderes públicos estadual e municipal.

Como já exposto, a responsabilidade do poder municipal decorre do texto constitucional, que impõe, em seu artigo 182, à municipalidade a execução das políticas de desenvolvimento urbano. Assim, o município responde pela conduta omissiva, uma vez que permitiu a ocupação irregular da área, mesmo ciente da problemática que a envolve28.

Mais ainda, o município de Aparecida de Goiânia, através da cobrança regular dos impostos territoriais sobre os lotes nos quais se fracionou a área, legitimou a ocupação irregular, dando aparência de direito ao que foi considerado pelo Tribunal de Justiça goiano

27 FILHO, Rodolfo Pamplona e BARBOSA, Camilo de Lelis Colani. Compreendendo os novos limites à propriedade: uma análise do art. 1.228 do Código Civil Brasileiro. Caxias do Sul: Plenum, n. 4, nov. 2008. DVD-ROM.28 Nesse ponto, concordamos inteiramente com a Juíza Mônica Castro, ao afirmar: "Parece que o ônus será do Município em que localizada a área, haja vista que o comando do plano diretor da cidade é da competência exclusivamente municipal. Há uma co-responsabilidade na tolerância da ocupação de terrenos com a criação de verdadeiras favelas, nascidas de invasões pelos que não têm moradia". (Idem)

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ato de esbulho, passível de reintegração, como de fato determinado29.

A responsabilidade do estado, por sua vez, decorre da indevida arrecadação, pelo Instituto de Desenvolvimento Agrário de Goiás – IDAGO, de terras particulares, no início da década de 1980. Vê-se, pois, que o Poder Público estadual arrecadou terras particulares alienando-as à construtora responsável pela constituição dos loteamentos que resultaram clandestinos/irregulares. Ao arrecadar terras particulares e, a seguir, aliená-las, o Governo estadual auferiu renda de forma indevida, em prejuízo dos atuais possuidores que compraram a terra de quem as comprou do próprio Estado.

Deve-se considerar, ainda, que o governo de Goiás, na qualidade de alienante originário, deve responder pelos danos causados pela perda judicial da propriedade, segundo a regra da evicção disposta no artigo 447, do CC. Assim, pelo exposto, incumbe também ao poder público estadual a responsabilidade pela regularização fundiária da área, em ação conjunta com o poder municipal, indenizando os reconhecidos proprietários da antiga gleba, regularizando-se, ao final, a situação dos possuidores de boa-fé, na forma do § 5º do artigo 1.228 do CC.

3. DOS PEDIDOS

Diante de todo o exposto, com suporte nas razões de fato e de direito supra-expostas, pede o órgão ministerial:

a) o reconhecimento e declaração judiciais da ocupação de extensa área – a gleba onde se instalaram os loteamentos Serra das Brisas e Belo Horizonte –, na posse ininterrupta e de boa-fé, por mais de cinco anos, de considerável número de pessoas – cerca de 870 famílias, as quais realizaram na área obras e serviços de interesse social e econômico relevante;

b) a desapropriação judicial indireta da gleba na qual se instalaram os loteamentos Serra das Brisas e Belo Horizonte, com a fixação de justa indenização devida aos proprietários, considerando, na fixação do quantum indenizatório, a situação anterior à instalação do loteamento;

c) o reconhecimento e declaração da expropriação indireta das áreas relativas às vias públicas e lotes vagos, bem como a afetação dessas áreas à implantação de equipamentos urbanos e comunitários, na forma da Lei federal n. 6.766/79 e Lei municipal n. 2.249/02;

d) que sejam condenados o Estado de Goiás e o município de Aparecida de Goiânia ao pagamento da indenização estabelecida no segundo pedido;

29 A inequívoca litigiosidade da área ocupada fica patente pela Averbação de n. 02, da Matrícula 69.690, anexa, na qual consta que “o imóvel objeto da matrícula está onerado e sobre o mesmo não se [pode] praticar qualquer ato de alienação ou oneração, enquanto não fora, definitivamente, julgada a ação.

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e) a condenação do município de Aparecida de Goiânia ao cumprimento da obrigação de fazer consistente em apresentar plano de regularização fundiária dos loteamentos, no prazo de seis meses a partir do trânsito em julgado da sentença, e a executá-lo no prazo de três anos, a partir da conclusão do referido planejamento30;

f) condenação do Município de Aparecida de Goiânia na obrigação de fazer consistente em apresentar, ao Cartório de Registro de Imóveis, o cadastro dos legítimos ocupantes dos loteamentos, juntamente com os documentos comprobatórios da posse, para fins do disposto no § 5º, segunda parte, do art. 1.228, do Código Civil;

g) que seja determinado ao município de Aparecida de Goiânia e ao Estado de Goiás que promovam a instalação dos serviços essenciais e equipamentos públicos e comunitários necessários ao atendimento das necessidades básicas da comunidade instalada nos setores Serra das Brisas e Belo Horizonte.

Requer ainda:

h) a citação dos requeridos para, querendo, contestar o pedido, sob pena de revelia e confissão;

i) a produção de todas as provas admitidas em Direito, notadamente documentos, depoimento pessoal, sob pena de confissão, oitiva de testemunhas, realização de perícias e inspeções judiciais;

j) publicação de edital para conhecimento de terceiros da presente ação, dado o caráter erga omnes da coisa julgada na ação civil pública;

l) dispensa do pagamento de custas, emolumentos e outros encargos (Lei 7.347/85, art. 18; C.D.C., art. 87).

Dá-se à causa o valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais), para fins legais.

Aparecida de Goiânia, 02 de dezembro de 2008.

Wilson Rocha AssisPromotor de Justiça Substituto

Vinícius Marçal VieiraPromotor de Justiça

Membro do NAT/CAOMA31

30 IV Jornada de Direito Civil. Enunciado 307 – Art.1.228. Na desapropriação judicial (art. 1.228, § 4º), poderá o juiz determinar a intervenção dos órgãos públicos competentes para o licenciamento ambiental e urbanístico.31 Núcleo de Apoio Técnico do Centro de Apoio Operacional do Meio Ambiente/MPGO.

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