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Gênero: Multiplicidade de Representações e Práticas Sociais. ST 38 Paulo Fernando de Souza Campos Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo – ENOEEUSP/FAPESP Palavras-chave: História da Enfermagem – Mulheres Negras – Representações – Identidade Profissional A Exclusão de Mulheres Negras da Enfermagem Profissional Brasileira: entre Práticas e Representações i A pesquisa em história no Brasil muito recentemente incorporou a história das mulheres como perspectiva de investigação. A década de 1980 marcou definitivamente a produção historiográfica acerca das ações e acontecimentos praticados por mulheres, que incluíssem mulheres ou que houvesse participação feminina. Contar a história das mulheres ou suas experiências não só contribuiu para retirá-las da penumbra, na qual foram duramente colocadas, mas favoreceu ao rompimento de uma escrita da história estanque e esquemática. Narrada de forma unilateral, a historiografia tradicional pouco mencionava os enredos femininos. O positivismo que norteou a escrita da história, até seguramente a passagem para o século XX, relegava experiências de mulheres avaliando-as como inferior em relação aos fatos que deveriam ser perpetuados pois, ainda que existissem, não eram protagonistas. A escrita da história impunha uma visibilidade restritiva à participação das mulheres no processo histórico, algo similar ao padrão de comportamento a elas imposto e que as classificavam como dóceis, frágeis, abnegadas, submissas, voltadas para o lar, a educação dos filhos e manutenção da ordem doméstico-familiar, ações compreendidas como menores na escala que regia a escrita da história. O que deveria ser perpetuado eram os feitos de grandes homens, forjados com glória e opulência, atrelando o devir histórico a personagens masculinos. Deste modo, se as mulheres foram excluídas da história (PERROT, 1988), as mulheres negras foram duplamente segregadas. A condição feminina aliada ao traço negro afro- descendente desqualificava ainda mais a participação da mulher negra na história do Brasil, sempre representada como escrava, praticante do sexo venal, doméstica ou depreciada em seus padrões de beleza, moral e comportamentos (SANTOS, 2004). George Reid Andrews (1998) indica que, no Brasil, as elites políticas e dominantes estabeleceram um imaginário

Exclusão de mulheres negras na enfermagem

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Page 1: Exclusão de mulheres negras na enfermagem

Gênero: Multiplicidade de Representações e Práticas Sociais. ST 38

Paulo Fernando de Souza Campos

Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo – ENOEEUSP/FAPESP

Palavras-chave: História da Enfermagem – Mulheres Negras – Representações – Identidade

Profissional

A Exclusão de Mulheres Negras da Enfermagem Profissional Brasileira:

entre Práticas e Representaçõesi

A pesquisa em história no Brasil muito recentemente incorporou a história das

mulheres como perspectiva de investigação. A década de 1980 marcou definitivamente a

produção historiográfica acerca das ações e acontecimentos praticados por mulheres, que

incluíssem mulheres ou que houvesse participação feminina. Contar a história das mulheres

ou suas experiências não só contribuiu para retirá-las da penumbra, na qual foram duramente

colocadas, mas favoreceu ao rompimento de uma escrita da história estanque e esquemática.

Narrada de forma unilateral, a historiografia tradicional pouco mencionava os enredos

femininos. O positivismo que norteou a escrita da história, até seguramente a passagem para o

século XX, relegava experiências de mulheres avaliando-as como inferior em relação aos

fatos que deveriam ser perpetuados pois, ainda que existissem, não eram protagonistas. A

escrita da história impunha uma visibilidade restritiva à participação das mulheres no

processo histórico, algo similar ao padrão de comportamento a elas imposto e que as

classificavam como dóceis, frágeis, abnegadas, submissas, voltadas para o lar, a educação dos

filhos e manutenção da ordem doméstico-familiar, ações compreendidas como menores na

escala que regia a escrita da história. O que deveria ser perpetuado eram os feitos de grandes

homens, forjados com glória e opulência, atrelando o devir histórico a personagens

masculinos.

Deste modo, se as mulheres foram excluídas da história (PERROT, 1988), as mulheres

negras foram duplamente segregadas. A condição feminina aliada ao traço negro afro-

descendente desqualificava ainda mais a participação da mulher negra na história do Brasil,

sempre representada como escrava, praticante do sexo venal, doméstica ou depreciada em

seus padrões de beleza, moral e comportamentos (SANTOS, 2004). George Reid Andrews

(1998) indica que, no Brasil, as elites políticas e dominantes estabeleceram um imaginário

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social fundado na realidade continuada da pobreza e marginalização dos negros, imaginário

assumido como a confirmação da preguiça, ignorância, estupidez e incapacidade que os

caracterizavam, tal qual propunha a ideologia da vadiagem cujas bases remontavam as teses

da herança racial. Nestes termos, perceber como se deu o processo de exclusão de mulheres

negras e a resistência dessas mulheres às fabricações discursivas que as desqualificavam,

torna-se fundamental para o estudo da formação da identidade profissional da enfermagem

brasileira.

Tratando especificamente a história do Brasil, é possível afirmar que o paradigma

darwinista social utilizado pelas elites políticas e dominantes na Primeira República (1889-

1930) afirmava que negros seriam naturalmente degenerados, projetando-os como

sexualmente pervertidos, sujeitos de moral duvidosa ou desviantes sociais, fazendo recair

sobre essa parcela significativa da população nacional uma suspeição generalizada. Políticas

públicas, ordens médicas e regras de convívio social nivelavam diferenças entre negros e

brancos, estes últimos identificados sempre como superiores. Tais princípios eram usados,

inclusive, como critérios para definição social de uma pessoa, o que poderia incluí-la ou o seu

contrário.

As normas impostas pelo bio-poder, que atingiam habitação, higiene, alimentação,

sexualidade, religião, literatura, entre outros, produziam juízos de valor que restringiam

possibilidades. Como degenerados ou criminosos natos, negros não poderiam ou não

deveriam participar da esfera social mais ampla na medida em que a contaminaria física e

moralmente, como apregoavam médicos e também advogados (SOUZA CAMPOS, 2003).

Nas origens da sociedade republicana, quando não assumidos como crias da casa, negros

eram representados como páreas, dada a cristalização de imagens que os associavam a classes

sociais perigosas, marcando profundamente as relações sociais no Brasil nas décadas iniciais

da República. Assimilados como primitivos diante do estágio evolutivo da espécie humana

discursos médicos e jurídicos, transformados em práticas, localizavam na parcela negra da

população nacional o perigo da degeneração da raça e outras formas de contaminação social,

problema que a ideologia do branqueamento há muito pretendia resolverii.

As visibilidades decorrentes desse processo formalizam a investigação em torno dos

modos de exclusão racial e de gênero no ofício da enfermagem durante a primeira metade do

século XX. Vale dizer, ao perscrutar a história das mulheres negras no âmbito da história da

enfermagem, pretende-se perceber os alcances da opinião pública, forjada pela medicina

social, sobre o contingente negro do Brasil contribuindo, assim, para o estudo das

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representações construídas para as mulheres negras, especificamente, as que interferem na

formação da identidade profissional da enfermagem brasileira.

A história da enfermagem torna-se particularmente interessante para a história das

mulheres negras. Em sua origem profissional, os cursos de formação deveriam evitar a

presença negra - assim como a masculina - nos quadros discentes, resultado de um processo

de seleção rigidamente instituído. Tal impedimento encontrava suporte no modelo

educacional assumido como padrão profissional no Brasil, proposto originalmente por

Florence Nigthingale (1820-1910), precursora da enfermagem moderna, bem como em suas

intenções de moralizar a ação do cuidado, anteriormente identificada como prática

desqualificada e desqualificadora, exercida por mulheres desviantes, vulgares e marginaisiii.

Contrariando a concepção de democracia que fundou o regime republicano no Brasil,

bem como os antecedentes históricos da ação do cuidado realizado em território brasileiro,

para a admissão em uma escola de enfermagem considerada padrão era preciso ser mulher,

branca, possuir formação educacional e religiosa, esta preferencialmente cristã, entre outros

pré-requisitos que restringiam as possibilidades de seleção. Recuperando a documentação que

registra a trajetória da história da enfermagem no Brasil, é possível encontrar episódios

originais que permitem analisar as relações interétnicas no âmbito da formação profissional.

Um desses episódios, vividos por dirigentes e alunas da Escola de Enfermeiras do

Departamento Nacional de Saúde Pública, fundada em 1923 na cidade do Rio de Janeiro,

desvela o problema:

É verdade que a política de organização da escola tinha sido evitar, diplomática e estrategicamente, a admissão de negros, até que a opinião pública em relação à profissão de enfermagem tivesse mudado. Isto era fundamental se pretendia atrair mulheres de melhor classe... mesmo a Academia Naval colocava obstáculos para impedir a admissão de candidatos negros. Todas as vezes em que moças de cor se candidatavam para entrar na escola, havia sempre outras boas razões para que elas não fossem qualificadas, por isso nenhum problema havia surgido até então. Na verdade, havia já na escola três estudantes que, apesar de brancas, mostravam alguns traços de sangue negro. Foi enviada uma carta à imprensa comunicando que nenhuma pretendente havia sido rejeitada por causa da cor, mas não foi convincente, e o Departamento de Saúde achou que seria aconselhável permitir o ingresso de uma moça negra, se acaso se apresentasse alguma que preenchesse todos os requisitos para a admissão. Esta candidata apareceu em março, juntamente com as demais pretendentes sob forte suspeita de que havia sido mandada por um dos jornais, e foi admitida. Isto provocou uma enxurrada de protestos por parte da alunas, mas, após considerar a questão, o Conselho de Estudantes finalmente decidiu que qualquer manifestação de rejeição ou de descortesia para com uma colega de classe demonstraria falta de respeito e de vontade de cooperar, e assim não houve mais dificuldades.

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As estudantes deixaram claro, contudo, que esperavam que não fosse admitida nenhuma outra negra por algum tempo (MOREIRA, 1999).

O documento revela que a admissão de uma negra e outras “...que apesar de brancas,

mostravam alguns traços de sangue negro...” no interior dos quadros acadêmicos da referida

escola derruba a tese da ignorância e dos desvios que as caracterizavam, motivos pelos quais

estas seriam naturalmente impossibilitadas de ingressar nos cursos profissionalizantes. O

registro comprova que independente da origem étnica ou condição social, mulheres negras

poderiam preencher os pré-requisitos exigidos a uma futura enfermeira, o que permite trazer o

debate para o campo das representações (CHARTIER, 1991). As evidencias que o registro

evoca permitem observar, por outro lado, a resistência de mulheres negras na conquista de seu

espaço social, intelectual e profissional, o que implica repensar as bases que forjaram a

identidade profissional da enfermagem brasileira ou então, qual seria o motivo para a

exclusão das mulheres negras da formação profissional?

Analisando a documentação, é possível observar que o desejo de não ver o episódio

repetido consubstancia a historiografia recente, quando esta afirma que a sociedade brasileira

sempre rejeitou o convívio com aqueles que um dia foram seus cativos, justificando a

natureza das restrições impostas (DOMINGUES, 2000). As relações de interdependência

entre as práticas do cuidado e as populações negras no Brasil sempre foram muito próximas,

ainda que pouco estudadas. Durante todo o processo histórico do Brasil, era intensa a

participação de mulheres negras como parteiras, amas de leite, negras domésticas e mães

pretas, ou seja, mulheres que cuidavam de enfermos, velhos e crianças - mesmo que para o

cuidado das crianças muitas devessem abandonar os seus próprios filhos (DEIAB, 2005).

A avaliação histórica da origem brasileira da enfermagem profissional permite supor

que a interpretação do cuidado como prática desqualificadora, realizada por mulheres

ignorantes, brutalizadas ou vulgares, encontrava na mulher negra o perfil acabado, motivo que

a exclui da formação profissional. A mulher negra, no Brasil, assumia as características da

enfermagem pré-nightingaleana, tal qual o que Mrs. Sairey Gamp foi para a enfermagem

inglesaiv. Ou seja, a presença negra na enfermagem brasileira favoreceria a permanência de

uma memória inglória, pautada em representações transformadas em correlatos de verdade,

assumindo como cabais as representações que as teorias da degenerescência imprimiam às

populações pobres e negras do Brasil. Isto posto, é possível afirmar que o intrincado processo

de apropriação dos bens culturais e a espoliação das diferentes culturas afro-descendentes

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marginalizaram as mulheres negras no seu próprio mundo, eliminando da memória histórica

da enfermagem nacional ações que, no passado, resultaram na prática efetiva do cuidado.

Referências bibliográficas

CHARTIER, R. O Mundo como Representação, Estudos Avançados, São Paulo, v. 5, n.11, p.

173-191, jan./abr. 1991.

DEIAB, R. de A. A Memória afetiva da escravidão, Revista de História da Biblioteca

Nacional, ano 1, n. 4, p. 36-40, out. 2005.

DOMINGUES, P. J. Uma História mal Contada. Negro, racismo e trabalho no pós-abolição

em São Paulo (1989-1930). São Paulo, 2000, 370 f. Dissertação (Mestrado em História)

Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências, Universidade de São Paulo.

HOUFBAUER, A. Uma história do branqueamento ou o negro em questão. São Paulo, 1999,

375 f. Tese (Doutorado em História) Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências, Universidade

de São Paulo.

MIRANDA, C. M. L. O Risco e o bordado. Um estudo sobre formação de identidade

profissional. Rio de Janeiro: EEAN/UFRJ, 1986.

MOREIRA, M. C. N. A Fundação Rockefeller e a construção da identidade profissional de

enfermagem n Brasil na Primeira República. História, Ciências, Saúde - Manguinhos, v. 3, p.

621-645, nov. 1998 fev.1999. p. 637.

OGUISSO, T. Trajetória Histórica e Legal da Enfermagem. Barueri: Manole, 2005.

PERROT, M. Os excluídos da história: homens, mulheres, prisioneiros. Rio de Janeiro: Paz e

Terra, 1988.

SANTOS, G. A. Mulher negra, homem branco. Rio de Janeiro: Pallas, 2004.

SOUZA CAMPOS, P. F. de. Os crimes de preto Amaral. Representações da degenerescência

em São Paulo. 1920. Assis, 2003. 325 f. Tese (Doutorado em História) Faculdade de Ciências

e Letras - Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”.

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i

Este texto é parte da pesquisa de pós-doutorado desenvolvida junto ao Departamento de Orientação Profissional da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo – ENO/EEUSP sob supervisão da Profa. Dra. Taka Oguisso e intitulada: A Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo e a Formação da Identidade Profissional Brasileira. Bolsista FAPESP.ii De acordo com Andréas Holfbauer (1999), a ideologia do branqueamento já se fazia presente como fundamento da sociedade brasileira desde o Brasil Colônia. O autor afirma que somente em 1950, a idéia do branqueamento como pensamento e representação dominante na sociedade brasileira perde sua legitimidade sem, contudo, desaparecer. iii Nightingale é considerada a pioneira da Enfermagem Moderna por fundar, após a experiência da Guerra da Criméia (1853-1856), a Nightingale Training School for Nurses at St. Thomas Hospital, primeira escola profissional de enfermagem, em Londres, multiplicando seu modelo de ensino pelo mundo, tal como ocorreu no Brasil no início do século XX com a Reforma Carlos Chagas (OGUISSO, 2005).iv Charles Dickens, em seu romance Martin Chuzzlevitt, cujo cenário recupera Londres no final do século XIX, caracteriza a cuidadora pré-nightingaleana como sempre gorda, pesada, gulosa, cruel, corrupta, promíscua e recendendo a rum, figura personificada por Mrs.Sairey Gamp (MIRANDA, 1996).