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 43  A FONOAUDIÓLOGA DA TE-  ARTE: EXPERIMENT AÇÃO  VIVENCIAL PELA BRINCADEIRA Elni Elisa Willms Doutora em Educação pela USP. Professora da UFMT/ Centro Universitário de Rondonópolis. E-mail: [email protected] Envio em: Fevereiro de 2014  Aceite em:  Agosto de 2014 RESUMO: O texto, fragmento da pesquisa de doutorado realizada na FE-USP, trata de entrevista estruturada realizada com a fonoaudióloga Eliane Becker, da e-Arte, escola locali- zada no Butantã, em São Paulo. A sustentação teórica se f az com a fenomenologia de Gaston Bachelard, Maurice Merleau-Ponty e Marcos Ferreira-Santos, entre outros. Exploro, inicial- mente, o que é a entrevista em uma atitude etnográca; em seguida, apresento o trabalho da fono com as crianças: com experimentação vivencial lúdica, ou seja, brincando. Concluo que o trabalho educativo e preventivo da f onoaudióloga, em articulação com as demais atividades da escola, contribui para o desenvolvimento harmonioso da criança, de maneira criativa e orgânica, aproveitando elementos da natureza presentes na escola. Palavras-chave : Brincar. Fenomenologia. Educação. THE SPEECH THERAPIST TE-ART: TRIAL BY LIVING JOKE  ABSTRACT : Te text, which is a fragment of the conducted do ctorate research in FE-USP , discusses a structured interview, with s peech-language pathologist Eliane Becker, from e-Ar- te, a school, localized in Butantã, São Paulo. Its theoretical basis comes from the phenomeno- logy of Gaston Bachelard, Maurice Merleau-Ponty , Marcos Ferreira-Santos, among others. I explore, initially , what is the inter view in an ethnographic poi nt of view and, subsequently , I present the development of e-Arte’ s speech-language work towards children: through ludic, in other words, recreation. I conclude that the educational and preventable work conducted by the speech-language pathologist, in addition to the other activities promoted by the scho- ol, contributes to the harmonious development of children, in a creative and organic way, taking advantage of the elements of the natural world existent within the school. Keywords: Recreation. Phenomenology . Elementary Education.

Experimentação Vivencial Pela Brincadeira

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    A FONOAUDILOGA DA TE-ARTE: EXPERIMENTAO

    VIVENCIAL PELA BRINCADEIRA

    Elni Elisa Willms Doutora em Educao pela USP. Professora da UFMT/Centro Universitrio de Rondonpolis. E-mail: [email protected]

    Envio em: Fevereiro de 2014Aceite em: Agosto de 2014

    RESUMO: O texto, fragmento da pesquisa de doutorado realizada na FE-USP, trata de entrevista estruturada realizada com a fonoaudiloga Eliane Becker, da Te-Arte, escola locali-zada no Butant, em So Paulo. A sustentao terica se faz com a fenomenologia de Gaston Bachelard, Maurice Merleau-Ponty e Marcos Ferreira-Santos, entre outros. Exploro, inicial-mente, o que a entrevista em uma atitude etnogrfi ca; em seguida, apresento o trabalho da fono com as crianas: com experimentao vivencial ldica, ou seja, brincando. Concluo que o trabalho educativo e preventivo da fonoaudiloga, em articulao com as demais atividades da escola, contribui para o desenvolvimento harmonioso da criana, de maneira criativa e orgnica, aproveitando elementos da natureza presentes na escola.

    Palavras-chave: Brincar. Fenomenologia. Educao.

    THE SPEECH THERAPIST TE-ART: TRIAL BY LIVING JOKE

    ABSTRACT: Th e text, which is a fragment of the conducted doctorate research in FE-USP, discusses a structured interview, with speech-language pathologist Eliane Becker, from Te-Ar-te, a school, localized in Butant, So Paulo. Its theoretical basis comes from the phenomeno-logy of Gaston Bachelard, Maurice Merleau-Ponty, Marcos Ferreira-Santos, among others. I explore, initially, what is the interview in an ethnographic point of view and, subsequently, I present the development of Te-Artes speech-language work towards children: through ludic, in other words, recreation. I conclude that the educational and preventable work conducted by the speech-language pathologist, in addition to the other activities promoted by the scho-ol, contributes to the harmonious development of children, in a creative and organic way, taking advantage of the elements of the natural world existent within the school.

    Keywords: Recreation. Phenomenology. Elementary Education.

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    1. INTRODUO

    Parece que tudo est no ar, mas eu fui vendo que tudo tem fundamento Renata Perin, Educadora da Te-Arte (BUITONI, 2006, p. 82).

    Admira primeiro, depois compreenders. (BACHELARD, 1996, p. 182).

    A entrevista de que trata este artigo foi realizada em 2011, com a Fonoaudiloga Eliane Becker, da Te-Arte, como parte da pesquisa para o Doutorado em Educao na Ps-Graduao da Faculdade de Educao da USP. A Te-Arte uma escola particular, concebida e dirigida pela educadora capixaba Th ereza Soares Pagani, a Th erezita 82 anos em agosto de 2013. A escola existe desde 1975, no tem sala de aula, professores por turma e nem diviso de crianas por faixa etria: trabalha o brincar e elementos da cultura popular em um quintal de terra batida, com muitos desafi os para explo-rar, muitas plantas, rvores frutferas, fl ores e alguns animais domsticos. As crianas vivenciam as festas populares do ciclo junino, natalino, do divino, do boi, congada, alm de aulas de msica, dana, jud e capoeira, todas orientadas por professores--mestres nessas reas. A escola localiza-se na Vila Gomes, no Butant, em So Paulo e atende 80 crianas e suas famlias.

    Primeiramente, trarei algumas e muito breves contribuies tericas sobre a etno-grafi a e a prtica da entrevista. Na sequncia, farei uma anlise, de carter exploratrio, dos dados da entrevista com a fonoaudiloga e, fi nalmente, apontarei para aspectos criativos do brincar sob uma perspectiva fenomenolgica e antropolgica, rastreando o conselho de Gaston Bachelard na epgrafe de que preciso primeiro admirar, para, depois, compreender tanto o brincar quanto o trabalho da profi ssional entrevistada, pois no est no ar, como lembra Renata Perin, igualmente na epgrafe acima, pois a experincia da fonoaudiloga se enraza em uma compreenso orgnica de educao.

    2. BREVES CONSIDERAES SOBRE A PRTICA DA ENTREVISTA

    Mas o que a educao no sabe fazer, a imaginao realiza seja como for. (BA-CHELARD, 2003, p. 8)

    Na Te-Arte, o presente a referncia fundamental. Todos os adultos procuram con-centrar-se na atividade que est acontecendo: o que importa perceber a criana.(BUITONI, 2006, p. 31).

    Para Geertz (1989, p. 15), praticar etnografi a implica estabelecer relaes, fazer en-trevistas, selecionar local e informantes, transcrever textos, desenhar, mapear campos,

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    manter um dirio de campo, sendo que o que defi ne mais precisamente a etnografi a para esse autor o tipo de esforo intelectual que ele representa, ou seja, dirigir-se a uma descrio densa.

    Ezpeletta e Rockwell (1989, p. 34-35) afi rmam que Geertz uma expresso contem-pornea desta tradio de antroplogos que construram vnculos estreitos entre a des-crio etnogrfi ca e o trabalho terico. Por isso, para as autoras, no possvel pensar a descrio densa desprovida de teoria: ao adotar a etnografi a no campo da pesquisa educacional, importante no aceit-la como uma simples tcnica, mas trat-la como uma opo metodolgica, no sentido de que todo mtodo implica uma teoria. Mais adiante, as autoras apontam que:

    A opo pela escola como perspectiva de estudo no intenciona destacar o nvel micro como alternativa do macrossocial, nem tampouco procura-se um refl e-xo, num mbito menor, das estruturas sociais determinantes. Trata-se, ao con-trrio, de compreender momentos singulares do movimento social (EZPELET-TA; ROCKWELL, 1989, p. 58).

    Marli Andr (1995) aponta que o mtodo de investigao do tipo etnogrfi co possi-bilita a descrio densa a mais completa possvel, sobre o que os depoentes fazem e o signifi cado das perspectivas imediatas que eles tm do que eles fazem. Assim, o registro sistemtico por meio de um dirio de campo fornece elementos para posteriores anlises.

    Dentre os procedimentos de uma pesquisa, a entrevista apresenta-se como uma das possibilidades de coleta de dados. Para Bleger (1980), ela um instrumento e uma tc-nica de investigao e pode ser de dois tipos: aberta e fechada. Na entrevista fechada, as perguntas j esto previstas, e no se pode alter-las ou modifi c-las; na aberta, o entrevistador tem mais liberdade para fazer suas intervenes, sendo que essa liberdade reside em ter fl exibilidade para que o campo da entrevista se confi gure dependendo da personalidade do entrevistado. Para os fi ns deste trabalho, a entrevista semiestruturada foi utilizada com objetivo de pesquisar a atividade desenvolvida por uma fonoaudi-loga de uma escola.

    A realizao da entrevista, muitas vezes, acontece aps a prtica da observao, mo-mento em que se formulam hipteses, que, posteriormente, por meio da entrevista, podem ser verifi cadas e retifi cadas, enriquecendo-as. Bleger (1980) arremata que al-gumas atitudes contribuem para uma boa investigao: observar, pensar e imaginar, como parte de um s e nico processo dialtico.

    Zago (2003, p. 290-296) tem usado a entrevista como uma das estratgias que per-mite aproximar-se da realidade a ser pesquisada. Faz algumas refl exes sobre como as questes estruturais da sociedade e as polticas educacionais interferem nas escolas, e aponta que no se pode desprezar a heterogeneidade e as possveis variaes no inte-rior de um mesmo grupo social e mesmo familiar. Portanto, uma pesquisa que tenha uma perspectiva qualitativa, segundo esse autor, deve possibilitar a compreenso des-sas contradies, sendo necessria uma relao dialtica permanente entre a realidade pesquisada e o campo terico. O autor denomina de entrevista compreensiva quando:

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    o pesquisador se engaja formalmente; o objetivo da investigao a compreenso do social [...] e o que interessa ao pesquisador a riqueza do material que descobre.

    Assim como as escolas no so imutveis, porm heterogneas e variadas (EZPELET-TA; ROCKWELL, 1989) no tempo e no espao, os profi ssionais que nelas atuam so-frem as infl exes macro e micro estruturais do contexto. Nessa perspectiva, no mbito deste trabalho e no desenrolar de minhas atividades como pesquisadora, cheguei at a Escola Te-Arte.

    Em 2010, recolhi alguns dados observando a escola, sob uma perspectiva etnogrfi ca, ou seja, procurei anotar, vivenciando, o dia a dia das crianas e professores; e parti-cipei de atividades de formao, voltando o olhar para compreender como o brincar estrutura as atividades da Te-Arte. Por essa razo, trouxe algumas contribuies dos dirios de campo1, no sentido de que muitas observaes singulares puderam se con-fi rmar na entrevista.

    2.0.1. PONDERAES SOBRE A ENTREVISTA REALIZADA

    Liberdade, sensao, brincar, expressar, experimentar, olhar, mexer. Ar livre. De-graus e rvores. Rampas e pontes. Limites, limite. Sessenta crianas num quintal/jardim/pomar conhecendo o mundo e se conhecendo. Conhecendo seu prprio corpo (BUITONI, 2006, p. 40).

    Porque este o fato fenomenolgico decisivo: a infncia, no seu valor de arquti-po, comunicvel. Uma alma nunca surda a um valor de infncia. Por singular que seja o trao evocado, se tiver o signo da primitividade da infncia ele desper-tar em ns o arqutipo da infncia. A infncia, soma das insignifi cncias do ser humano, tem um signifi cado fenomenolgico prprio, um signifi cado fenome-nolgico puro porque est sob o signo do maravilhamento. Pela graa do poeta, tornamo-nos o puro e simples sujeito do verbo maravilhar-se (BACHELARD, 1996, p. 121-122. Grifos do Autor).

    Mas, porque entrevistar a fonoaudiloga da Escola Te-Arte? certo que outros pro-fi ssionais da escola tambm realizam trabalhos inspiradores, porm, com a Eliane, eu j havia conseguido manter certa relao de confi ana. Instigava-me toda aquela ex-perincia com a liberdade, destacada na epgrafe, alm de, pessoalmente, ter profundo interesse pelas questes da infncia e da educao infantil, na perspectiva de Gaston Bachelard (1996), tambm anunciada na epgrafe. Um recorte do primeiro dirio de campo, uma das primeiras observaes do trabalho da Eliane e que, certamente, mo-tivou a realizao da entrevista:

    Logo mais na hora do almoo, novamente o trabalho da Eliane me surpreendeu pela absoluta simplicidade. Uma simplicidade que traz embutida uma complexi-dade de conhecimentos por ela vivenciados. Ento eu a vi distribuindo um canudo

    1 Cito, neste texto, recortes dos dirios de campo assim nomeados: I Dirio de Campo, 2010; II Dirio de Campo, 2011, e, fi nalmente, a entrevista com a fonoaudiloga Eliane Becker, citada como BECKER, 2011.

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    para cada criana para que o colocasse atravessado na boca. E assim tinham que comer. Eu no perguntei o porqu. Perdi uma oportunidade de aprender. Mas as crianas, aparentemente j sabendo que deveriam fazer assim, comiam sem re-clamar, aceitando aquele trabalho da Eliane. Outra orientao dela era para que enfi assem toda a colher na boca, retirando-a limpa da boca aps passar apertado pelos lbios. Segundo a Eliane, era para exercitar os lbios, para favorecer a fala, a boa articulao das palavras. E para minha surpresa, ela orientou que as crianas lambessem o prato, no fi nal. Novamente um exerccio para a lngua. E disse mais: que aquilo s poderia ser feito ali na escola como um exerccio, mas que fora dali no era permitido. Sem reclamar, sabendo o que e porque estavam fazendo aqui-lo, as crianas comiam, cada uma no seu ritmo, umas com o canudinho, outras lambendo o prato e logo em seguida devolvendo-o cozinha (I DIRIO DE CAMPO, 2010, p. 18).

    Esses aportes preliminares constituram-se em motivaes para realizar a entrevista. Percebia interaes entre brincar, cuidar, educar e experimentar aspectos do corpo a partir de uma das atividades cotidianas, que a alimentao; embora tenha percebido nuances de seu trabalho tambm nas brincadeiras. Realizar a entrevista apresentou-se, ento, como uma maneira de verifi car e ampliar essas hipteses.

    No dia e horrio marcados, compareci na escola. Eliane chegou, sentou, disse que podamos comear. Fiz a leitura da fala de abordagem, conforme constava no roteiro nossa frente, de maneira tranquila, porm breve, pois nosso tempo teria que ser otimi-zado. Ela disse-me, ento, que poderia usar o nome prprio, que no havia nenhum problema da parte dela em usar o nome verdadeiro. Quanto transcrio, disse que poderia enviar por e-mail, sem problema.

    Fiz a primeira pergunta e Eliane a respondeu prontamente, dando-me detalhes de como caiu de gaiata na escola. Nesse momento, sorri solidariamente, pois, tal como ela, eu tambm passei pelos mesmos revezes, quando ali cheguei pela primeira vez:

    Cheguei aqui no tinha nem coordenadora, nem orientadora. Entrei na porta nin-gum me falou onde que eu tinha que ir, qual era a sala, qual era nada... (risos...) U?! Como que o esquema, qual orientao, como que a sala da diretora, como que a sala da orientadora ou da coordenadora?! No tinha sala nenhu-ma! Eu no conhecia a Th erezita, no conhecia o trabalho da Te-Arte, cai aqui realmente de gaiata. E fi quei assim muito impressionada, primeiro com o espao. [...] Voc t no meio da cidade, voc tem um paraso pequenininho [...] Entrei meio espantada, meio assustada, meio sem saber pra onde eu tinha que ir e com quem eu tinha que falar. [...] Mas antes de comear a conversar, ela (Th erezita) me mandou andar pela escola. [...] Ento, foi muito interessante porque algumas crianas de cara vieram me acompanhando, algumas crianas grandes foram me mostrar a escola com total desenvoltura e com total domnio do espao como se isso realmente fosse um prolongamento delas. No da casa delas, mas delas, como se isso aqui fi zesse parte do esquema corporal delas. E eu fi quei absolutamente encantada com a escola! (BECKER, 2011, p. 2).

    Na segunda pergunta (como vivia a experincia de trabalhar na Te-Arte), ela surpre-endeu-me com as primeiras palavras: disse que era uma experincia multissensorial. Porque me surpreendeu? Porque minha pesquisa est ancorada nas contribuies da Fenomenologia, uma linha de investigao pautada na percepo, a partir do cor-

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    po e seus sentidos (MERLEAU-PONTY, 1971; BACHELARD, 1996, 2003, 2008; FERREIRA-SANTOS, 2009). Assim, as informaes conectavam-se perfeitamente ao referencial terico citado acima: a importncia do corpo, da experincia, da explorao dos sentidos pelas crianas.

    A entrevista transcorreu sem muitos sobressaltos. Foram vinte e oito minutos provei-tosos do incio ao fi m. Ter um roteiro foi importante, pois no tinha que pensar na hora em qual pergunta fazer, causando vcuos no dilogo ou, ento, divagando por assuntos alheios. Por outro lado, organizou a fala da entrevistada, puxando assuntos que ainda no tinham vindo tona e que eram importantes.

    No tocante ao objeto de minha pesquisa o brincar na Educao Infantil , as con-tribuies da Eliane foram fundamentais, pois mostraram como trabalhar de maneira ldica e com alguns materiais de fcil acesso, podendo ser facilmente substitudos, conforme as peculiaridades de cada escola, de maneira a contribuir com o desenvolvi-mento da criana, nas atividades cotidianas de alimentao, por exemplo. Propondo s crianas o desafi o de esguichar gua distncia, a fono est trabalhando, por meio de uma brincadeira, que as crianas adoram, a musculatura da boca, bochechas e lbios, e, assim, as crianas exercitam esses msculos que, por sua vez, melhoram a articulao da fala: tudo isso brincando!

    A proposta da escola est alicerada em atividades que se processam, no mais das vezes, a partir do movimento das prprias crianas, dando livre curso e acreditando que a imaginao das crianas pode educar, como anunciado por Gaston Bachelard na ep-grafe. Eu j havia percebido, nas visitas anteriores, bem como nas falas dos especialistas que estiveram nas Paocas Filosfi cas2que aconteceram em 2010, que, na Te-Arte, os professores agem a partir do que vem das crianas. Trata-se do que, ali, chamado de Pedagogia do Acontecimento, ou seja, trabalhar com a imaginao e no presente:

    [...] na emergncia, aproveitando o que vem das crianas. Pode at fazer aconte-cer o que estava programado para uma aula, por exemplo, ou no. Porque este programado pode esperar outra ocasio mais propcia, pois importante escutar e esperar o que vem das crianas, a partir de uma conversa aberta, do que algum falou e que no estava no roteiro. Assim, se estabelece uma rica parceria com as crianas, por meio de jogos e improvisaes (I DIRIO DE CAMPO, 2010, p. 38. Fala de Teca Alencar Brito).

    Ou nas palavras de Marcos Ferreira-Santos (2009, p. 18), no prefcio ao livro Brincar: um ba de possibilidades:

    Ver o que acontece, ouvir o aprendiz em suas tentativas, acertos e erros, suas hi-pteses, sua imaginao, tentar entender o processo, sem a angstia do educador em tentar controlar todas as variveis e circunstncias (o que no quer dizer, de maneira alguma, improvisao do educador no sentido inconsequente da pala-

    2 Paocas Filosfi cas foram trs encontros realizados na Te-Arte, de 20/11 a 04/12/2010 com os ingredientes/especialistas: Dulcilia Buitoni, Pessia Grywac Meyerhof, Marcos Ferreira-Santos, Teca de Alencar Brito, Kazuyo Yamada, Lenira Haddad, Cybele Cavalcanti Tarantino, Marta Azevedo e Ada Pellegrini Lemos.

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    vra); pois para isso necessria uma formao humanstica, clssica e, ao mesmo tempo, quntica, que lhe possibilite lidar com a trama incerta do tecido (comple-xus) da situao, precisamente, por conta de seu repertrio corporal de vivncias. Quase uma pedagogia do arriscar-se, concentrada no primeiro risco no papel em branco, na primeira presso dos dedos na argila, no primeiro verso na criao potica, no primeiro som da improvisao sonora, nos primeiros passos brincantes da dana, na concordncia das primeiras regras do jogo coletivo, no primeiro ato da brincadeira. Aquilo que Clestin Freinet, sabiamente, tratava de tatear experi-mental como n indispensvel de sua rede de pescar chamada de livre expresso.

    uma maneira ousada e diferenciada de trabalhar, principalmente porque a maioria de ns, como professores, costuma preparar aulas previamente, forando todos a fazer uma mesma atividade ao mesmo tempo3. Em geral, na Educao Infantil, h uma rotina que realizada de maneira mecnica, portanto, sem criatividade, e que, muitas vezes, resume-se s atividades de alimentao e higiene, com poucas propostas criati-vas em que o brincar estrutura o tempo da criana. No entanto, as crianas, com suas mltiplas aberturas, com a curiosidade que lhes inerente, podem encorajar e susten-tar os professores nessa pedagogia do arriscar-se. Basta que o professor d o primeiro passo, ensaie o primeiro gesto: um tantinho de liberdade, algumas possibilidades de escolha e abertura para o dilogo. Com essas atitudes, possvel que, juntos, crianas e professores, construam relaes mais verdadeiras, sempre aliceradas pelo brincar, como faz a fonoaudiloga Eliane Becker. certo que abrir a porteira para conhecer alm do j pisado, inaugurar novas trilhas e at andar fora do trilho, quem sabe, um desafi o, mas s comear a mudar que logo as crianas, em cumplicidade de afeto, compreendem e entram no jogo e, assim, so feitos encontros potentes, que abrem possibilidades de expanso tanto para as crianas quanto para os educadores.

    Ao fi nal da transcrio, percebi algumas categorizaes. Para chegar a isso, fui sele-cionando, primeiramente em vermelho, no Word, aquilo que considerei importante. medida que assim procedia, percebi que algumas atividades relacionavam-se ali-mentao (verde), outras tinham um carter mais ldico (azul) e, ainda, outras que se referiam ao trabalho de orientao preventiva junto a professores e pais (violeta). E, assim, fui colorindo e categorizando o texto no Word para, posteriormente, trazer os recortes para este texto, articulando-os aos referenciais tericos.

    A seguir, apresentarei alguns recortes, ainda que de carter exploratrio, pois no me ative material terico especfi co sobre fonoaudiologia. A entrevista levantou aspectos que ampliaram meu olhar sobre o meu foco, o brincar na Te-Arte. Assim, a realizao da entrevista, sua transcrio e exerccio de anlise apresentaram-se como uma experi-mentao enriquecedora. A leitura deste texto pode servir como inspirao e amplia-o da percepo sobre as prticas de Educao Infantil.

    3 Pode-se ter uma boa viso da Te-Arte e seu trabalho diferenciado no fi lme realizado sobre a escola: Sementes do nosso quintal [Filme-vdeo]. Produo de Zinga, direo de Fernanda Heinz Figueiredo. So Paulo, 2012. DVD, 115 min, livre.

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    3. EXPERIMENTAO: COMO TRABALHA A FONOAUDILOGA NA TE-ARTE

    Th erezita sempre fala em corpo vivido: A Te-Arte um lugar para a criana viver seu corpo, para aprender a habitar o prprio corpo. Para isso, utiliza todos os sen-tidos os conhecidos e os ainda no nomeados e experimenta concretamente o duro, o suave, o claro, o escuro, o fraco, o forte (BUITONI, 2006, p. 28).

    Embora tivesse lido o livro de Dulcilia Buitoni (2006), que apresenta o trabalho da Te--Arte, a vivncia na escola me permitiu adensar o olhar sobre a Educao Infantil sob uma perspectiva fenomenolgica. Assim, a relao da Eliane com as crianas e com o trabalho defi nida por ela desta maneira: ento, aqui, a gente tem uma relao muito legal, assim: ela meio maluca, ela faz um trabalho meio maluco! Mas tem sempre uns desafi os muito legais que eles sempre querem superar (BECKER, 2011, p. 9).

    Segundo as palavras da Eliane Becker (2011, p. 2, 6), os objetivos do seu trabalho como fonoaudiloga sempre esto ligados respirao, mastigao e a toda mus-culatura que precisa para falar (BECKER, 2011, p. 6). Quando chegou escola, h mais ou menos quatorze anos atrs, nunca tinha feito um trabalho preventivo assim (BECKER, 2011, p. 2), nunca, antes, tinha trabalhado em uma escola, apenas atendia crianas em seu consultrio, mas aceitou o convite recebido da Th erezita, a propriet-ria, bem como o desafi o:

    Vim tentar junto com as crianas o que eu podia fazer, de brincadeira que envol-vesse todo o trabalho dessa musculatura orofacial, da respirao, do uso dos sons, de aprender a gritar, de aprender a assuar o nariz, umas coisas bsicas que as crian-as muitas vezes passam por difi culdades. E grande parte desse trabalho eu desen-volvi junto com as crianas. Elas que vo me pedindo (BECKER, 2011, p. 3).

    Conta que as diversas experincias que teve, nesses anos todos de Te-Arte, podem ser defi nidas, resumidamente, como uma experincia multissensorial (BECKER, 2011, p. 3), pois nunca faz apenas o trabalho de fono. O tempo todo seu trabalho se articula com as demais atividades inerentes a uma escola de educao infantil, ou seja, com alimentao (lanche, almoo), higiene (troca de fraldas, lavar as mos, banho, assuar o nariz), brincadeiras e orientao quanto mastigao e respirao. nessas atividades que a fono atua, na perspectiva do corpo vivido anunciado na epgrafe, que se ex-pande para onde esse corpo vai:

    Voc vai aprendendo dentro desse contexto que as crianas so um todo. Ento no d para voc trabalhar uma lngua s! [...] uma coisa de experincia pra vida! Mais do que uma experincia profi ssional, de vida [...] E todo dia diferente! Tudo que eu aprendo aqui eu levei pra casa com fi lhas e com neto... (rindo)... um aprendizado a nvel multissensorial, voc aprende absolutamente de tudo, a entender de tudo: trocar fralda, fazer comida, usar uma panela de barro, aprender a socar no pilo e fazer paoca, a descascar cana... (BECKER, 2011, p. 3).

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    Quando Eliane diz que no pode trabalhar apenas uma lngua, penso que se refere s diversas linguagens que esto envolvidas nos processos de construo do conheci-mento na Educao Infantil, pois, para a Fenomenologia, toda experincia de vida se d pelo contato que a criana (como qualquer pessoa adulta) mantm com o mun-do, permeada pelos sentidos: tato, olfato, paladar, audio e viso. Gaston Bachelard (2008) ensina que: a luta contra o real a maneira mais direta das lutas, a mais franca. O mundo resistente promove o sujeito ao reino da existncia dinmica, existncia pelo devir ativo, donde um existencialismo da fora (p.31). Como a fenomenologia explica isso?

    Para Maurice Merleau-Ponty (1971, p. 34), a funo essencial da percepo de fun-damentar ou de inaugurar o conhecimento. Portanto, para a Fenomenologia, sem o corpo e a conscincia da pessoa que acessa o mundo, os objetos no passam de simples coisas sem sentido:

    A percepo justamente este ato que cria de um s golpe, com a constelao dos dados, o sentido que os une que no somente descobre o sentido que tm, mas ainda faz com que tenham um sentido [...] A percepo , pois, o pensamento de perceber (MERLEAU-PONTY, 1971, p. 53-54. Grifos do Autor).

    Ainda que haja culturas mais olfativas, outras mais auditivas e assim por diante, mesmo dentro desses contextos, os indivduos experimentam o mundo de maneira diferente. A apreenso do mundo uma experincia individual, conquanto tenha fortes contor-nos sociais. Estudos ancorados na antropologia sensorial (PELLINI, 2009; HOWES, CLASSEN, 2011) exemplifi cam como os humanos se relacionam de maneira dife-rente com o seu entorno, criando, por assim dizer, uma paisagem mental que permite uma compreenso do mundo: ora mais auditiva, olfativa, ttil, gustativa ou visual, ou em uma combinao de duas ou mais ordens.

    Culturas diferentes socializam suas crianas para aprender a usar uma ou outra ordem sensorial, inclusive, em alguns casos, mudando durante o tempo: entre os Inuit, esqui-ms habitantes das regies rticas do Canad, por exemplo, na primeira infncia, so estimulados a explorar os sentidos do tato e do paladar, porm, medida que a idade vai passando, pelas experincias culturais, pela presso do grupo, essas crianas so desencorajadas a usar esses sentidos, pois os adultos se referem a essas experincias de forma pejorativa (fedorento, nojento...). E, assim, gradativamente, vo aprendendo a abandonar os sensos infantis para experimentar a viso e a audio, prticas sociais importantes para o mundo adulto de sua cultura (HOWES, CLASSEN, 2011).

    Ora, as experincias sensoriais, assim como so vivenciadas como algo para a vida in-teira da fono, tambm o so para a vida inteira das crianas. Porm, para se chegar a esse nvel, um longo caminho precisa ser percorrido, fruto da constituio profi ssional:

    Esse contexto todo de voc olhar tudo, t aqui, t com olho l, e outro l! Isso a gen-te aprende! At voc chegar nesse... Nesse... Momento de maturidade, que o ama-durecimento da gente como adulto aqui, como educador, tem... Tem um cho! A gente tem que aprender muito, ler muito, escutar muito (BECKER, 2011, p. 10).

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    Ento, perguntei como a relao dela com as crianas. Novamente, sorrindo, tran-quilamente, mas, talvez, um pouco encabulada por confessar sua paixo pelas crianas por duas vezes seguidas, ela disse:

    Eu acho muito bom! (rindo...) Eu acho muito bom! [...] Eu acho assim: quan-do a pessoa gosta do que faz, muito, ento as crianas sentem isso de longe... Ento elas vm assim, elas vem me procurar! Eu chego de manh assim: Eliane! Eliane! Elianeee!!! Que bom que voc veio! Que bom que voc t aqui! (BECKER, 2011, p. 9).

    A partir dos dados da entrevista, procurei fazer uma categorizao, ainda que de car-ter exploratrio, de algumas atividades que so desenvolvidas sob a forma de experi-mentao com as crianas, no tocante: a) alimentao; b) brincadeiras e c) orientaes do trabalho de fono junto aos pais e professores. H um qu de maravilhamento, como aponta Gaston Bachelard na epgrafe, lembrando que o corpo da criana preci-sa do contato com os elementos da natureza, como anuncia Dulcilia Buitoni. Eliane comentou que seu trabalho tem um componente de maluquice, pois as atividades propostas so inusitadas e divertidas. Passarei a explorar um pouco essas vivncias e desafi os propostos por ela s crianas.

    3.1. ATIVIDADES DE ALIMENTAO: TUDO MUITO NATURAL

    Cinco sentidos, sete sentidos, quantos mais houver, para viver e sentir. (BUITO-NI, 2006, p. 41)

    No trabalho, o homem satisfaz uma potncia de criao que se multiplica por numerosas metforas. (BACHELARD, 2008, p. 24)

    Ao contrrio de algumas escolas particulares em que as crianas costumam levar ali-mentos industrializados para o lanche, ou de escolas pblicas em que so servidas re-feies massifi cadas, a proposta da Te-Arte de que as crianas tenham uma alimen-tao muito natural (BECKER, 2011, p. 4), ou seja, nada de salgadinhos e bolachas moles que desmancham na boca e no oferecem nenhuma resistncia ou exerccio musculatura da boca. Gaston Bachelard (2008) afi rma que [...] a realidade material nos instrui. De tanto manejar matrias muito diversas e bem individualizadas, pode-mos adquirir tipos individualizados de fl exibilidade e de deciso (p. 21). por essa razo que so oferecidos alimentos naturais, como milho na espiga, por exemplo, com o qual a maioria das crianas tem pouco contato, pois normalmente o milho j vem cortado, ou milho com molho branco (BECKER, 2011, p. 7). Gaston Bachelard (2008, p. 16), no exerccio de explorar o elemento terra nos seus aspectos resistentes e moles, ensina que:

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    [...] no trabalho excitado de modos to diferentes pelas matrias duras e pelas matrias moles que tomamos conscincia de nossas prprias potncias dinmicas, de suas variedades, de suas contradies. Atravs do duro e do mole aprendemos a pluralidade dos devires, recebendo provas bem diferentes da efi ccia do tempo. A dureza e a moleza das coisas nos conduzem fora a tipos de vidas dinmicas bem diferentes. O mundo resistente nos impulsiona para fora do ser esttico, para fora do ser.

    No posso saber se a Eliane tem conhecimento desse autor e de suas propostas, mas possvel perceber, pelo seu trabalho na Te-Arte, que ela tem a intuio da necessidade de que a criana experimente a resistncia dos alimentos, no apenas para exercitar a musculatura da boca, mas, tambm, para ter essa experincia sensorial como parte de sua educao vivida no corpo. Nesse sentido, h outros alimentos que permitem outras possibilidades ao trabalho da fono:

    Erva-doce. Voc conhece quantas crianas que comem erva-doce? A gente tem o dia que faz erva-doce. Tem dia que a gente faz exerccio com alcachofra. Que a alcachofra voc pega folha por folha, tem que morder e chupar... [...] s vezes eu trago frutas secas. Banana por exemplo, eles no tinham comido banana seca. [...] Ento a banana seca, ela precisa de muito mais esforo, a banana (in natura) voc come num minuto, voc nem precisa mastigar, (mas a seca ou passa) fi ca bem mais rgida, precisa de muito mais mastigao, ela gruda nos dentes, ento tem que lamber, tem que trabalhar a lngua pra limpar os dentes (BECKER, 2011, p. 7).

    Laranja! Se voc soubesse o nmero de crianas que nunca chupou uma laranja na vida! Elas esto acostumadas a tomar o suco de laranja, mas chupar a laranja no tem ideia! Pega a laranja fi ca lambendo assim! As maiores at! Sem contato... (BECKER, 2011, p. 7).

    Fiz um exerccio maravilhoso! Tinha uma uva em casa sem caroo e a gente fez vrios exerccios com duas uvas na boca! E passava a uva toda para um lado, depois para o outro, dentro da boca, fora da boca, trocava de lugar, uma com a outra, e a tinha que guardar uma na bochecha e s mastigar a outra ... Assim, voc pega na hora, vem ... (BECKER, 2011, p. 6).

    Por exemplo, na mesa do lanche, que eu estou com outras crianas menores, por que assim, esse trabalho mais especfi co eu pego os mdios pra grande, mas com os pequenos eu sempre estou junto, sempre eu estou olhando, sempre eu pego um pedao da mexerica e ponho dum lado, do outro. Outro chupa um pouquinho e logo cospe, digo: No! Vai mastigar mais um pouquinho, olha voc consegue, tem um pedao pequeno. E assim, esta percepo, o dia inteiro, o tempo todo, no ? No paro... (BECKER, 2011, p. 10).

    Na maioria das casas brasileiras, a alcachofra, devido a seu alto valor comercial, no faz parte da alimentao diria. Pode-se, no entanto, pensar nesses mesmos exerccios com alimentos prprios de cada regio ou contexto escolar.

    Em Mato Grosso, onde moro, ainda possvel colher muitas frutas nos quintais, ruas e, at mesmo, nas praas. Ento pensei: ao invs da uva utilizar a jabuticaba, muito

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    comum e farta em certa poca do ano. Pensei na manga verde e na manga madura: h um costume na regio de comer a manga de vez, ou seja, quando ainda est ama-durecendo (e, portanto, est bem fi rme), de com-la com sal. Outra a experincia de chupar a manga madura, macia e suculenta, e ela abundante no clima quente daquele estado sem mencionar a grande variedade, desde as com pouca ou nenhu-ma fi bra. As crianas costumam, tambm, chupar a casca antes de descart-la. E tem muita goiaba, branca e rosada, que se come de vez e madura: assim, a cor, o sabor e a consistncia so experincias sensoriais diferenciadas com ambas as frutas.

    As experincias sensoriais podem, ainda, ser ampliadas com as frutas agridoces, como o caj e o tamarindo, sem falar da experincia cheirosa e suculenta com o caju e sua polpa fi brosa quando ainda no est bem maduro, por ser uma fruta adstringente, as pessoas dizem que ele pertento, que amarra, pois contrai os tecidos internos da boca. E o que dizer da experincia singular com o jatob: seco, farinhento e de cheiro e sabor to forte e inusitado? O uso da lngua e da saliva imprescindvel para comer essa fruta do cerrado, precisa de tempo e pacincia, pois ela seca, porm,- muito saborosa.

    Dulcilia Buitoni (2006, p. 151) exemplifi ca como o paladar, o tato e o olfato so tra-balhados na hora do lanche: um dia algum inventou de fazer um molho que acabou virando rotina. As crianas vo colher salsinha, misturam sal, suco de limo ou de laranja, e temperam alface, cenoura, pepino. Pude observar as crianas vivenciando essa experincia:

    Sentei-me junto da mesa de lanche onde normalmente tem uma ou duas traves-sas com frutas picadas. Hoje tem uma vasilha com palitos de cenoura, beterraba e pepino cortados no sentido do comprimento. H tambm outra vasilha onde tem um molho levemente temperado com sal, muita salsinha, cebolinha e cebola picadas miudinho. As crianas pegam o legume com a mo, passam o legume no molho e comem. Estavam na mesa crianas entre um ano e meio e trs anos. Co-miam muitos legumes, com vontade e prazer, lambendo os dedinhos. O professor disse que eram umas lagartas (I DIRIO DE CAMPO 2010, p. 46).

    Diz a fono: ento assim, a escola me permite, pelo tipo de alimentao que as crian-as tm aqui e pela postura que a escola tem, no sentido de que, primeiro, tem que fa-zer, tem que experimentar, tem que ter o contato e, segundo, pode se sujar (ELIANE BECKER, 2011 p. 5). s recusas das crianas em experimentar algo, a escola responde com a fi rmeza de sua proposta:

    Ah! Eu no quero experimentar... Eu no gosto... Ai eu no tenho... Aqui na escola tem uma postura que assim: Tem que comer! A comida que vem no prato, que a Th erezita coloca, tem que comer. Ento tem que fazer exerccio! Tem que comer pinho! Tem que comer coco! Tem que chupar cana! Pra! Vamos todo mundo experimentar uma coisa nova... (BECKER, 2011, p. 4).

    E se a criana no gostar? Pergunto. No precisa comer mais... mas precisa experi-mentar! (BECKER, 2011, p. 4). Assim, percebe-se, claramente, o direcionamento muito fi rme de algumas atividades da escola. O fato de no ter sala de aula ou pro-

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    fessores especfi cos e donos de turmas no signifi ca que haja um laissez-faire. Ao con-trrio, h limites e eles so incorporados pelos adultos e crianas assim que chegam Te-Arte. Dessa maneira, foi trabalhado algo amargo, para que as crianas tivessem uma experincia perceptiva (MERLEAU-PONTY, 1971) desse sabor:

    Ento eu trabalhei muito com os sabores, para experimentar as papilas, na ln-gua... Amargo, n? Como que voc faz? O caf amargo... Mas a Th erezita tem boldo aqui no jardim. Ento todo mundo ps um pedao de folha de boldo na boca... Fiquei morrendo de pena das crianas... (rindo...) Mas eles realmente con-cretizaram o que um sabor amargo, porque so poucas coisas que tem esse sabor ao alcance da criana... (BECKER, 2011, p. 4-5).

    Alm da experincia sensorial com o sabor amargo, experimentam a fi rmeza de masti-gar a polpa do coco e a sensao de apertar a semente do pinho com a boca, para que libere a polpa e, ento, sentir sua elasticidade e sabor; aprendem a chupar a cana at que o bagao fi que bem sequinho, sem segurar com a mo e sem tirar da boca e, depois, cos-pem o bagao em local prprio. Maurice Merleau-Ponty (1971) aponta que no posso compreender a funo do corpo vivo seno realizando-a eu mesmo e na medida em que sou um corpo que se levanta em direo ao mundo (p. 88). Ainda para o mesmo autor: o corpo o veculo do ser no mundo, e ter um corpo para uma pessoa viva juntar--se a um meio defi nido, confundir-se com alguns projetos e engajar-se continuamente neles (Idem, p. 94). Assim que as crianas vivenciam o corpo, provando os recursos infi nitos da espessura das coisas (BACHELARD, 2003, p. 10) engajadas nas muitas experincias, brincando. Fazendo coisas malucas, como lamber o prato, ser que exer-citam apenas a musculatura da boca, os lbios, a lngua, a respirao?

    Chupar macarro, que h o dia, a gente faz o dia do espaguete aqui, que no se come com o talher, se come com a mo. Onde voc v isso? Voc chupa o espa-guete, suja inteiro, suja a roupa, suja o rosto, suja a mo (BECKER, 2011, p. 5).

    Aqui pode lamber o prato! Em casa no pode, no restaurante no pode! Mas aqui pode! (BECKER, 2011, p. 9).

    Eliane faz uma pergunta e algumas consideraes:

    Quantas crianas voc conhece que chupam cana? (rindo...) Num meio urbano... E num meio principalmente de So Paulo, uma super-mega-metrpole, no ? Com todas as terceirizaes em relao criana, onde se preza a higiene e aqui a criana pode se sujar! (BECKER, 2011, p. 4).

    Um dia vi a Eliane na tarefa de preparar a cana para as crianas:

    Ao chegar encontro a Eliane sentada mesa das frutas e lanches. Est picando me-lo. Vejo tambm algumas ramas de cana, algumas descascadas e outras por des-cascar. Em pouco tempo vejo-a partindo os pedaos de cana com um mecanismo muito interessante, inventado na escola segundo ela e colocando-os numa tigela. Mal sabia que ela estava, naquele momento, preparando tudo aquilo para uma

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    atividade educativa. Mais tarde vejo-a com umas 30 crianas, os maiores entre 5 e 6 anos, mais ou menos. Tem que pr o pedacinho de cana na boca e chup-lo sem segurar com a mo. Algumas fazem grandes esforos para mastigar, chupar e engolir o caldo da cana, mexendo inclusive a barriga. A Eliane observa isso e pergunta se ela usa a barriga para chupar a cana. E tm que chupar no mnimo 4 pedaos, deixar o bagao bem seco e antes de jogar fora todos mostram para a Eliane o resultado: o pedao bem chupadinho, bem sequinho. Alguns ela pega, observa e pede para que chupe mais um pouco, para deixar bem seco o bagao (I DIRIO DE CAMPO 2010, p. 53).

    As crianas aderem s propostas brincando: mexendo com terra, gua, fogo, a criana aprende a lidar com seu corpo, com os limites do prprio corpo. importantssimo se jogar na terra, andar descalo, se molhar, se sujar na lama, perceber como tratar o fogo, escalar um barranco (BUITONI, 2006, p. 145).

    Aprendem de maneira divertida, pela experimentao (FERREIRA-SANTOS, 2009), por meio de desafi os, ao fazer coisas comuns, porm, de maneira audaciosa e, por isso, gostam de repetir a vivncia. E aprendem os limites do que se pode fazer ali na escola, como treino do corpo, mas que, em outros lugares, isso no permitido. Elas gostam desse exerccio inusitado de lamber o prato, por exemplo:

    Comi tudo! Deixa ver o prato, disse-lhe, e como vi alguns gros de lentilha orientei para que lambesse o prato. Ela me olhou meio desconfi ada e ento asse-gurei: Como a Eliane ensinou, aqui na escola pode. Ela lambeu e mostrou. Eu disse que ainda dava para fi car mais limpo. Mostrou de novo e vi dois gros de lentilha e disse para ela passar a lngua e chupar. Vi ela fazendo isso. Ainda tinha fi cado mais um grozinho na beirada do prado e mostrei para ela. Finalmente o prato fi cou limpo, mas disse que tinha que dar uma boa lambida na colher tam-bm. Vi que o rosto dela estava meio sujo de lentilha, por causa da proximidade com o prato, mas deixei. Ela disse sorrindo: gostoso lamber! (I DIRIO DE CAMPO 2010, p. 59).

    Assim, parece-me, saboroso aprender, pois, como indica Dulcilia Buitoni (2006, p. 146): na faixa de 0 a 7 anos, o conhecimento se faz frequentemente nos atos de pegar, apertar, cheirar, levar boca.

    3.2. AS ATIVIDADES TODAS SO DE BRINCADEIRA

    Mais do que preencher lacunas de conhecimentos e informaes especfi cas so-bre educao e desenvolvimento infantil, priorizou-se a experincia vivencial, que dialoga com o corpo e com gestos j conhecidos, para assim abrir-se e expor-se ao vnculo primordial com a criana: o brincar (MEIRELES, 2009, p. 19).

    O eu est na memria do corpo. (BUITTONI, 2006, p. 45. Grifo da autora).

    A seguir, os relatos evidenciam como so propostas atividades: uma brincadeira, o ldico direto, o tempo todo, mas com um objetivo muito srio, muito forte. Eles nem

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    sabem os objetivos todos que esto por detrs (ELIANE BECKER, p. 5). Ou, como reafi rma a fonoaudiloga: ento... o brincar est em tudo, n? Porque as atividades todas so de brincadeira (BECKER, p. 5); como certa vez presenciei:

    Eliane est trabalhando com os maiores, ou seja, crianas de 4 a 6 anos. Olho para uma menina e ela olha para mim. Assim que passo perto, ela diz: Eu lembro de voc! E eu tambm lembro de voc, respondo, beijando-a no rosto. Ela me diz que destra, mas que hoje est comendo com a mo esquerda. Mostra-me uma marquinha feita com um pincel verde na sua mo dominante. [...] Alguns tam-bm dizem que est difcil, mas que esto conseguindo. Um menino mostra-me as duas mos com marquinhas (um x feito com pincel verde), e pergunto-lhe se ambidestro e ele confi rma que sim, com a cabea, que consegue comer com as duas mos (I DIRIO DE CAMPO 2010, p. 32).

    O desafi o de comer com a outra mo, que no a dominante, transforma-se em um jogo, ao qual as crianas aderem e, esforando-se, conseguem xito. Por isso, pergun-tei: que importncia tem a brincadeira?

    Ento hoje o desafi o comer com um canudo preso aqui no dedinho (faz o gesto e mostra um canudinho preso entre o dedo mnimo e o anelar) e no pode soltar. Quando fao isso estou trabalhando a parte motora deles, nunca tem um objetivo s nos trabalhos que eu fao, em cada atividade, mas sempre tem a brincadeira e sempre tem o contato com a natureza, seja com a gua, seja com o alimento em si, na forma de um desafi o, uma competio. [...] Hoje a gente teve uma pea bem legal. Antes de comear o trabalho, a pea, os ensaios, a gente faz um treinamento de voz, lindo, pra eles aprenderem a usar o pulmo, o diafragma, empostar a voz, jogar a voz longe no teatro, voc treina aqueles movimentos que os artistas e can-tores fazem antes, de treino de lngua (BECKER, 2011, p. 5).

    A gente faz uma brincadeira de cuspir caroo de melancia a distncia [...] Aqui a gente faz um desenho com canudo e gua, a gente desenha no cho. Suja! Baba! Faz tiro de gua distncia, tambm, jato, trabalha muito musculatura de boche-cha, lbios (BECKER, 2011, p. 4).

    Ao comer melancia, o que fazer com os caroos? D para cuspi-los distncia. Exer-ccio excelente para as bochechas, treina os pulmes e, com certeza, explode a alegria! Tem um componente meio maluco, como diz a prpria Eliane, mas qual criana (e adulto) no gosta de sair do srio s vezes? Para isso, preciso ter um pouco de criativi-dade diante dos acontecimentos do dia a dia, em funo dos momentos que tem com o que as crianas esto fazendo:

    Tinha algum com um feijo e da eu pensei: Vamos pegar a semente do feijo, comeamos a chupar a semente de feijo, passar de um lugar para o outro... Nunca tinha nem pensado! Cheguei aqui... Assim... [...] Um dia com sabonete tambm... Tava lavando a mo, falei: gente eu vou fazer essa turma fazer bolinha de sabo com o sabonete na mo! Voc j fez? Assopra assim? (Faz o gesto como se segu-rasse um sabonete com as duas mos, perto da boca e assoprando) Ento assim! (BECKER, 2011, p. 6).

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    H alguns exerccios que so considerados clssicos entre os fonoaudilogos. O que Eliane cria com eles:

    Uso muito material de sopro. Ento a lngua de sogra, bexiga, os apitos todos. E a gente brinca, faz competies, a bolinha de isopor de jogar, tem uns cachimbinhos com bolinhas, eu arrumei umas bolinhas maiores que eles sopram a bolinha.

    [...] Trabalho muito com o nariz. Ento sempre na hora do parabns a gente can-ta o parabns de boca fechada antes, que o trabalho que fao muito que pra percepo desse som desse nariz, que esse nariz existe. Ento ali todo mundo faz massagem no nariz. Em determinado momento a gente assua. Essa poca, por exemplo, a poca do nariz. T todo mundo com o nariz escorrendo, ento a percepo que esse nariz est escorrendo, pegar um papel, assuar o nariz, tampar uma narina e assuar, tampar a outra e assuar... Ahnnn... Em vez de s limpar, n, (faz o gesto comum entre as crianas que limpar o nariz na manga da blusa) que aquilo para. E a importncia dessa respirao nasal. Ento a gente assopra a lngua de sogra pelo nariz. Pega a lngua de sogra, tampa uma narina (rindo e fazendo o gesto como a demonstrar) [...] Precisa de uma coordenao bem legal (BECKER, 2011, p.7).

    Mas tem, tambm, aprendizagem que se faz pela observao direta ou com a ajuda dos maiores, em uma troca orgnica e solidria:

    Agora o contato entre eles ajuda, eu acho muito bonitinho, por exemplo, os gran-des esto enchendo a bexiga, e os pequenos vem alucinados pedir uma bexiga, eu quero bola, eu quero bola, eu quero bola! E eles ainda no tem condies de assoprar! [...] A gente no d pros pequenos se no estiver com superviso, um adulto, no dou, porque eu tenho medo que coloque a bexiga na boca, vai masti-gando, essa bexiga pare... (Faz gesto mostrando na garganta), no muito seguro. Ento eu no dou. s vezes quando tem um grande eles fi cam olhando os grandes e s vezes quando eu vejo que tem um grande perto eu digo: Voc pode encher a bexiga e dar pra ele. Ento nesse sentido assim, muito como modelo, num momento do processo de imitao, das crianas pequenas. [...] Eu sinto que eles se ajudam na observao... Os pequenos tem o apoio da imagem do mais velho fazendo (BECKER, 2011, p. 8).

    Algumas vezes, observei a interao entre os professores da escola, conforme abaixo:

    Eduardo (Professor de Educao Fsica) passou pela sala com uma criana peque-na no colo, dirigindo-se para o banheiro, possivelmente levando-a para fazer xixi e disse: Olha o meu prato! Lambido! Lambe a colher! Vejo que o trabalho de um reforado pelo olhar e ao do outro. Embora seja professor de Educao Fsica e no fonoaudilogo, ele sabe do trabalho da colega e dessa forma potencializa-o. Atitude bonita (I DIRIO DE CAMPO, 2010, p. 59).

    Durante a entrevista, perguntei como se d a relao de seu trabalho com os outros professores e com os pais. Ento, a seguir, vou destacar aspectos, que chamei de orien-tao, relacionados ao trabalho de fonoaudiologia desenvolvido pela Eliane.

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    3.3. ALGUMAS ORIENTAES AOS PAIS E PROFESSORES

    O lanche, que trazido de casa, serve tambm para ser apalpado, para se perceber a textura lisa ou spera de uma casca de fruta, a dureza ou a maciez nos dedos ou dentro da boca (BUITONI, 2006, p. 148).

    Como o trabalho desenvolvido pela Eliane tem um carter preventivo, perguntei-lhe como faz isso na interao com os outros professores:

    Tem algumas crianas com mais difi culdade com a mastigao, algumas crianas tem mastigao s de um lado... Ento sempre eu passo para os professores, olha: Fulano t mastigando s do lado direito, pede pra usar o lado esquerdo. Faz usar mais o lado esquerdo. Tal criana est precisando ser mais estimulada pra assuar o nariz, t com muita secreo e a respirao bucal (BECKER, 2011, p. 7).

    [...] A criana t gaguejando, ento brincar muito de cantar com a criana, de soltar, sabe? Essa respirao (e faz um gesto de puxar e depois soltar a respirao pela boca, como se soprasse o ar pra fora....) No ? De ajudar um pouco esse diafragma quando est mais tenso. De orientao pros professores pra no chamar a ateno, falar devagar, respirar antes de falar [...] Tem uma criana aqui que fala: O ti isso? O que isso? O q substitui por t, ele j consegue falar o q. En-to oriento os professores assim: quando ele falar vocs no entendam, ele tem que lembrar, porque nele est automatizado o jeito incorreto de falar, a gente orienta nesse sentido (BECKER, 2011, p.7-8).

    O trabalho compartilhado por todos os professores em todos os momentos, assim, possvel cuidar, acompanhar e ajudar a criana, por meio das intervenes dos diversos profi ssionais: aprendem-se regras de convivncia, atitude e limite, a respeitar e ajudar o outro, a fortalecer musculaturas que aperfeioaro a articulao da fala, ou mesmo cor-rigi-la, problemas muito comuns em crianas em processo de aquisio da fala. Com a criana portadora de necessidades especiais, a mesma ateno que dedicada aos outros:

    Minha preocupao de enquadr-lo dentro de todas as coisas que as crianas es-to fazendo, desde fechar o tanque de areia, desde ouvir histria com gua na boca sem engolir, pra trabalhar a respirao. Ento assim: ele est dentro do contexto. As coisas mais especfi cas a fono faz no consultrio, com ele. No tivemos crianas com problemas auditivos, nem com problemas visuais, pelo menos desde que estou aqui na escola... A seria diferente (BECKER, 2011, p. 8).

    Com os pais, a Eliane tambm exerce um trabalho de orientao muito importante, conforme esclarece:

    Alguns pais eu tenho um contato muito bom, assim, vem perguntam: olha a ln-gua t assim, assada. Posso orientar: procura o ortodontista, t na hora de pr aparelho. Muitos pais fi cam muito angustiados quando a criana, por exemplo, no fala o r, j t com 5 anos, n? Que perfeitamente normal. O r, de arara esse r simples esperado at por volta dos seis anos. [...]

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    Alguns pais [...] so pais mais difceis, voc tenta orientar e diz: Olha! D uma ali-mentao mais consistente pra criana! No d papinha! Tem dente! Tem dente tem que mastigar! Mesmo que tenha 4 dentes na boca! No pra passar tudo no liquidi-fi cador... Quatro anos! Pelo amor de Deus! Tira a mamadeira! Sabe? Voc consegue. Alguns pais seguem numa boa. Outros so mais resistentes, mas assim tudo que a gente faz na vida tem os caminhos fceis e difceis (BECKER, 2011, p. 9).

    E assim, pude conhecer um pouco mais o trabalho da fonoaudiloga, objeto desta entrevista. Fui beber diretamente na fonte. Ao fi nal, quando perguntei se teria algo mais a acrescentar, ela disse:

    S uma pena que a gente no consiga chegar nas outras escolas, n? E entrar nos lanches e fazer umas brincadeiras assim. E a informao... Eu acho que seria assim uma coisa, que eu acho que nem as fonos iriam gostar muito, pois a gente deixaria de ter muitos pacientes, depois, a nvel de consultrio, entendeu? Mas que um trabalho maravilhoso, no sentido de prevenir mesmo, de estimular essa turminha (BECKER, 2011, p. 10).

    Fica, dessa forma, uma sugesto, alm de algumas indicaes de como se pode fazer um trabalho que seja, ao mesmo tempo, divertido, uma vez que baseado na expe-rimentao e na brincadeira, e altamente comprometido com o desenvolvimento do corpo da criana como um todo. Alm disso, a prtica da entrevista revelou-se extre-mamente enriquecedora, uma experincia para a vida:

    Tal atitude pois disso que se trata, no se reduzindo a uma mera questo metodolgica ou didtica funda-se numa imagem e concepo de ser huma-no (um anthropos) que privilegia a construo cotidiana de nossa humanidade numa pessoa na perspectiva da antropologia fi losfi ca que a concebe como o campo de foras em tenso entre dois grandes vetores existenciais: de um lado, nossa subjetividade e seus desejos; de outro lado, a resistncia do mundo concreto (Berdyaev, Mounier, Ricoeur, Durand, entre outros). A troca incessante entre esses dois vetores vai revelando o momento mtico de leitura em que se encontra a pes-soa, diria Durand, no percurso formativo do que venho denominando de jornada interpretativa: um percurso formativo de busca de sentido, busca de centramento e de plenitude existencial que se d no processo de realizao de si mesmo e que me permite uma determinada leitura provisria do mundo. Por isso, um processo dinmico, intenso e sempre inacabado (FERREIRA-SANTOS, 2009, p. 17).

    esse faa comigo vivencial (FERREIRA-SANTOS, 2009) que possvel perceber na Te-Arte, com apelo aos sentidos, pela experincia de tocar, morder, sentir sabores, cheiros e consistncias, enfi m, nesse contexto que a referida escola constri a educa-o da pessoa como um todo. Sempre com a presena companheira dos adultos e das outras crianas, todos comungam seus corpos, aprendem na relao com o outro, com a natureza: numa palavra, experimentao. Mais que saborear a experincia tranquila, arriscar-se ao imprevisto da experimentao (FERREIRA-SANTOS, op. cit. p. 18. Grifo do autor).

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    4. SEM CONCLUIR, MAS FAZENDO CIRCULAR ALGUMAS EXPERINCIAS

    E esse processo criativo no fi nda num possvel substantivo, mas se torna gerndio. Retomando uma ortografi a arcaica em portugus: creana. Pois se trata de ser fi el ao

    Creador (seja qual for nossa concepo sagrada de criador, deus, deusa ou deuses) continuando a creao. revelar a dimenso humanamente divina da criao na creao divinamente humana (Berdyaev). isso que qualquer criana nos lembra (ainda que nossa racionalizao nos faa esquecer isso para proteger nosso confor-mismo em relao mesmice das rotinas burocrticas). Ela prpria, criana como pessoa, uma criao contnua, inacabada, e, ao mesmo tempo, criadora e criatura, construo cotidiana de si mesma, creana. (FERREIRA-SANTOS, 2009, p. 18).

    Agora no quero saber mais nada, s quero aperfeioar o que no sei. (BARROS, 2008, p. 139)

    Ouvir a Eliane complementou algumas observaes do dirio de campo e confi rmou a hiptese de que experimentando, desde uma perspectiva sensorial e a partir do brin-car, tendo o acompanhamento de adultos comprometidos com a educao da criana, que se pode construir uma educao de qualidade humana. Que, brincando, pode-se aprender com seriedade e desenvolver o corpo como um todo, preparando-o para ou-tros desafi os que, certamente, viro nesse processo sempre inacabado, que a criao da obra de uma vida. Realo esse sentido com as palavras da Eliane: at descobri uma coisa maravilhosa, que uma criatividade absurda que eu nem sei, at, onde que eu acho tanto (rindo...) (BECKER, 2011, p. 6).

    criativamente que ela trabalha, a partir do acontecer das crianas, aproveitando aquilo que a escola oferece, e, em outras vezes, trazendo algo de casa, como no caso das uvas; todo esse contexto vivencial revela o quanto de comprometimento humano h nas suas atividades. E faz isso brincando: o que a brincadeira, seno o ato rec-proco de imbricar dois ou mais seres na mesma situao existencial? E o que esse imbricamento, seno o jogo ldico do reconhecimento sem outra fi nalidade, seno a experimentao de si e do outro? (FERREIRA-SANTOS, 2009, p. 19).

    Maravilhoso encontrar uma pessoa que, por mais de quatorze anos, consegue se re-alizar na experimentao de um trabalho sempre criativo porque ousa comungar seu corpo com as crianas. Esse meu maravilhamento pode ser compreendido nesta pergunta que se transforma em afi rmao: haver situao educativa mais profunda e mais signifi cativa que aprender-se e aprender o outro, ensinando-se e sendo ensinado pela pessoa da criana? (Idem, ibidem).

    Relatei, neste texto, a experincia exuberante de uma escola acolhedora, quase como se fosse um osis na metrpole de concreto que So Paulo. Um espao orgnico e feminino, ntimo, cheio de meandros, segredos e convites para brincar. Brincar, como

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    Ano III, n 2, jun./nov.2014

    viver, correr um risco e experimentar-se como corpo diante das intimaes do mun-do. Estar atenta ao instante e aceitar um convite da vida para brincar apenas o comeo. Nunca se sabe o que vir em seguida. Acho que nem na vida. Prestar ateno aos detalhes do movimento, inserir uma provocao aqui, outra ali, muitas vezes ape-nas seguir o fl uxo, ou seja, compor junto com as crianas.

    um compos, o brincar como uma colcha de retalhos. Tingida de muitas cores, feita de muitos tecidos, constela pessoas, objetos e situaes para, simplesmente, fl uir e fruir o presente. E, de repente, tudo pode mudar ou acabar, porque da j hora de comear outro movimento. Como na vida. Um equilbrio frgil, que se sustenta, enquanto houver interesse e alegria dos corpos no jogo. Nesse dilogo com as crianas, nasce um mundo. Um mundo de cumplicidade e beleza, como o trabalho da fonoau-diloga da Te-Arte.

    O fato de ter conseguido categorizar as atividades desenvolvidas pela fono em trs eixos, a saber: a) a partir da alimentao; b) a partir das brincadeiras e c) orientao aos professores e pais, revelou-se um dos pontos, que, para mim, foi alto na entrevis-ta. Com essas categorizaes, foi possvel perceber a amplitude do trabalho, como se realiza, como se ramifi ca e como se sustenta: mediado pela experincia e pelo brincar, sempre vivencial, criativamente, ou seja, de maneira orgnica. Por tudo isso, essa ex-perincia foi vlida, resultando neste texto, que se oferece como dilogo.

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